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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO FACULDADE DE PSICOLOGIA Promoção de Saúde de Profissionais do Sexo: análise de uma intervenção sob a perspectiva da saúde do trabalhador MARIA ALTENFELDER SANTOS São Paulo 2007

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

FACULDADE DE PSICOLOGIA

Promoção de Saúde de

Profissionais do Sexo: análise de

uma intervenção sob a

perspectiva da saúde do

trabalhador

MARIA ALTENFELDER SANTOS

São Paulo

2007

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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Faculdade de Psicologia

Promoção de Saúde de Profissionais do Sexo: análise de

uma intervenção sob a perspectiva da saúde do

trabalhador

Trabalho de Conclusão de Curso realizado como

exigência parcial para a graduação no curso de

Psicologia, sob orientação do Prof. Dr. Fábio de

Oliveira.

Maria Altenfelder Santos

São Paulo

2007

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AGRADECIMENTOS

Gostaria de agradecer a todos aqueles que, em algum momento, deixaram-se

contaminar por essa discussão, contribuindo das mais diferentes formas para seus

desdobramentos.

Agradeço especialmente a Ana Luiza S. Fanganiello, que me despertou, com sua

paixão pelo trabalho, para esta incessante jornada, na qual tem me acompanhado desde

então...

A Fábio de Oliveira que, seja como professor, supervisor ou orientador, tornou

este trabalho possível, acompanhando-o com particular atenção e entusiasmo e

inspirando-me a seguir sempre em frente.

A Renata Paparelli, também supervisora da intervenção citada e grande

incentivadora deste percurso.

A Odair Furtado que, com grande abertura, vem recebendo as iniciativas de

continuidade deste trabalho, permitindo-me sonhar com o futuro.

A Ana Clara Duarte Gavião, cujo apoio foi essencial não apenas para a

realização deste trabalho, mas durante toda a minha graduação.

E a Tiago Piza, que esteve ao meu lado nos momentos de maior desespero e de

maior empolgação ao longo desta produção.

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Maria Altenfelder Santos. Promoção de Saúde de Profissionais do Sexo: análise de uma

intervenção sob a perspectiva da saúde do trabalhador, 2007.

Orientador: Prof. Dr. Fábio de Oliveira

Palavras-chave: Prostituição, Saúde do trabalhador, Promoção de saúde.

RESUMO

A pesquisa descreve diferentes concepções a respeito da prostituição que

permearam o imaginário brasileiro desde o século XIX até os dias de hoje, resultando

nas mais diversas práticas adotadas em relação ao fenômeno e culminando no

reconhecimento da prostituição como profissão. Com o objetivo de observar possíveis

contribuições da perspectiva da saúde do trabalhador para a promoção de saúde e

cidadania da categoria, analisou-se, a partir do referencial formulado por Dejours, uma

intervenção de dez encontros com oito profissionais do sexo no total, contando com a

presença variável das participantes. Percebeu-se que a experiência realizada permitiu a

descrição dos impactos subjetivos gerados por esse trabalho, iniciando um processo de

potencialização das profissionais do sexo para o enfrentamento do sofrimento

vivenciado. Por outro lado, constatou-se que os padrões de relação da profissão tendem

a ser reproduzidos na intervenção, impedindo a constituição da grupalidade entre as

participantes. Mostrou-se necessário, portanto, pensar novas estratégias que venham a

facilitar, numa intervenção de maior duração, os processos de troca e de construção

coletiva entre as participantes.

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SUMÁRIO

Apresentação.................................................................................................................. 02

1. O percurso histórico das abordagens sobre a prostituição no Brasil.......................... 04

1.1. Prostituição no século XIX: a visão higienista.................................................. 04

1.2. Prostituição e modernidade, do fim do século XIX ao início do século XX..... 14

1.3. A prostituta como trabalhadora e cidadã: uma perspectiva contemporânea...... 17

2. As interfaces entre saúde e trabalho........................................................................... 29

2.1. O modelo médico............................................................................................... 29

2.2. O enfoque ambiental.......................................................................................... 30

2.3. A saúde do trabalhador...................................................................................... 31

2.4. A ampliação do conceito de saúde.................................................................... 32

2.5. Saúde do trabalhador e saúde mental................................................................ 34

2.6. A psicodinâmica do trabalho............................................................................. 34

2.6.1. O sofrimento mental no trabalho.............................................................. 35

2.6.2. Estratégias coletivas de defesa: a exploração do sofrimento.................... 37

2.6.3. Proposta metodológica da psicodinâmica do trabalho............................. 39

3. Objetivos..................................................................................................................... 44

4. Metodologia................................................................................................................ 45

5. Resultados e discussão................................................................................................ 47

6. Conclusões.................................................................................................................. 74

6.1. A demanda pela intervenção realizada.............................................................. 74

6.2. Sofrimento no trabalho das profissionais do sexo............................................. 75

6.3. Limites e possibilidades da proposta dejouriana no contexto da prostituição.. 78

7. Referências bibliográficas.......................................................................................... 81

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APRESENTAÇÃO

Esta pesquisa teve como foco o tema da prostituição. Árduos debates têm sido

travados ao longo da história em torno dessa questão, a qual parece permanecer como

um tabu, ainda nos dias atuais, mesmo após as radicais transformações ocorridas nas

concepções sobre a sexualidade em nossa sociedade.

No decorrer dos capítulos, busca-se adentrar o universo da prostituição,

propondo-se um diálogo com correntes de pensamento que, em diferentes momentos e

de diferentes formas, debruçaram-se sobre esse fenômeno.

No capítulo 1, será feita uma breve exposição dos discursos e das práticas que

historicamente têm se dirigido a essa atividade, determinando posturas desde sua

condenação, tolerância e medicalização, até a consideração da profissional do sexo

como cidadã e trabalhadora.

Adotando-se esse último posicionamento, será abordada a complexidade dos

processos sociais, políticos e institucionais relacionados à situação de vulnerabilidade

que permeia a prostituição, agravada pela discriminação, bem como pela ambigüidade

legal em torno da atividade.

A recente produção de conhecimento nos campos da saúde e do trabalho revela

grandes avanços nas formas de abordar a prostituição, disponibilizando ferramentas

teóricas e práticas para a promoção de saúde e cidadania de profissionais do sexo.

Situada na intersecção entre esses dois campos, a perspectiva da saúde do trabalhador

indica a possibilidade de trazer novas contribuições nessa direção.

No capítulo 2, a proposta da saúde do trabalhador é apresentada, caracterizando

a ênfase sobre o protagonismo dos próprios trabalhadores para o enfrentamento das

questões vivenciadas no cotidiano de trabalho implicadas no processo de saúde-doença.

Dentro dessa perspectiva, optou-se pelo aprofundamento em torno de uma abordagem

específica, centrada na obra do autor francês Cristophe Dejours, a qual busca explicitar

os mecanismos psicodinâmicos desenvolvidos a partir dos impactos intersubjetivos

gerados pela organização do trabalho.

Esta pesquisa pretende, então, avaliar em que medida a proposta dejouriana de

ação e investigação, visando à promoção de saúde no trabalho, mostra-se de interesse

para a construção de intervenções junto à categoria de profissionais do sexo. Para tanto,

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será analisada, a partir do referencial citado, uma experiência de intervenção em saúde

do trabalhador com profissionais do sexo realizada no ano de 2006.

A intervenção a ser discutida foi coordenada por duas estagiárias da Faculdade

de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sendo uma delas a

autora do presente estudo. O processo de resgate e análise desse estágio foi possibilitado

não apenas através das anotações redigidas na época, mas também das reverberações

geradas a partir do contato com a realidade da prostituição, que se fizeram presentes em

inúmeras discussões, realizadas durante e após a intervenção, entre estagiárias,

supervisores, e outros que vieram a se interessar e a colaborar com esse percurso.

Por meio desta pesquisa, pretende-se tanto registrar quanto dar continuidade à

intensa produção coletiva desencadeada por essa experiência.

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1. O PERCURSO HISTÓRICO DAS ABORDAGENS SOBRE A

PROSTITUIÇÃO NO BRASIL

“faz-se necessário discutir as diversas facetas da prostituição, analisando o cenário no qual suas produções de sentido se dão, para que, assim, possamos nos aproximar de seu significado, ainda que devêssemos saber que sua apreensão total nos é impossível” (Ministério da Saúde, 2002, p. 19).

Rago (1991) afirma que o conceito de prostituição foi “construído no século

XIX a partir de uma referência médico-policial” (p. 23). A autora aponta para a

importância de debruçar-se sobre a singularidade desse objeto, considerando o contexto

específico em que está inserido. No caso, segundo Rago (1991), tratava-se de “uma

sociedade em que predominam as relações de troca, (...) todo um sistema de

codificações morais, que valoriza a união sexual monogâmica, a família nuclear, a

virgindade, a fidelidade feminina” (p. 23).

Dessa forma, Rago (1991) argumenta que o fenômeno da prostituição não pode

ser generalizado para as diversas épocas e sociedades. A autora questiona, nesse

sentido, a expressão “a profissão mais antiga do mundo”, a partir da qual se acaba

produzindo um conjunto reducionista de explicações, que “diz pouco sobre a

especificidade dessa prática ou sobre sua dimensão positiva, isto é, sobre as funções que

desempenha como modo diferenciado de funcionamento subjetivo” (p. 21).

A seguir, buscando caminhar na direção proposta por Rago (1991), será feita

uma caracterização histórica da prostituição nas capitais de São Paulo e Rio de Janeiro,

focando inicialmente a concepção construída pela medicina a respeito do tema.

1.1. PROSTITUIÇÃO NO SÉCULO XIX: A VISÃO HIGIENISTA

“A incorporação da prostituição como objeto do saber e do fazer médicos situa-se num universo discursivo complexo, marcado não só pelas continuidades e descontinuidades que expressam as profundas transformações determinadas pela desagregação da sociedade escravista, mas também pelas contradições e ambigüidades localizadas no próprio âmbito do ideário burguês” (Engel, 1989, p.139).

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Engel (1989) faz uma análise histórica dos discursos sobre a prostituição no Rio

de Janeiro do século XIX, centrada nos textos médicos que, segundo a autora,

constituíam o eixo central de orientação das abordagens sobre a prostituição daquela

época.

A autora descreve como a medicina, ao passar a intervir sobre o cotidiano

urbano, constrói um “projeto de ordenação higiênica do espaço social da cidade” (p.

16). É dentro desse enfoque que, desde o fim do século XVIII, institui-se um “novo

falar do sexo” (Engel, 1989, p. 13), que caminha até os dias de hoje. Trata-se do

discurso da racionalidade sobre o sexo, “transformando o corpo, o desejo e o prazer em

objetos do conhecimento” (Engel, 1989, p. 13). Segundo a autora, esse crescente

processo de cientifização da sexualidade, se por um lado representa uma libertação, por

outro indica maior controle, normatização e disciplinarização.

Engel (1989) contextualiza historicamente o cenário do Rio de Janeiro desde o

final do século XVIII, período em que se distinguiam nitidamente três mundos na

cidade, segundo a autora: o do governo (composto pelos proprietários, tidos como

cidadãos ativos), o do trabalho (constituído de escravos, entendidos como não-cidadãos)

e o da desordem (referente ao não-trabalho, composto pelos chamados “vadios”). Nota-

se que, apesar da desqualificação em torno do não-trabalho, predominava uma

concepção pejorativa sobre o trabalho.

Engel (1989) comenta que as prostitutas, naquela época, eram consideradas

perturbadoras da ordem a serem presas e desterradas para casar e povoar regiões

desertas.

Contudo, a autora coloca que, desde 1850, difundia-se uma nova ética do

trabalho, que passava a ser associado a enriquecimento, dignidade e cidadania –

concepção burguesa que visava impulsionar o país para a ordem e o progresso. O Rio de

Janeiro, nesse período, desenvolvia-se como pólo urbano, complexificando seu perfil

econômico e social.

Ao longo do século XIX, ocorreu intenso crescimento demográfico na cidade. O

trabalho escravo diminuía, mas mesmo após a abolição, em 1888, continuava sendo

largamente utilizado nas atividades urbanas, segundo a autora. Isso reduzia as

oportunidades de emprego do “grande contingente constituído pelos indivíduos livres e

despossuídos” (Engel, 1989, p. 20), personagens que aumentaram em número durante o

século, considerando os escravos libertos e a chegada em massa de imigrantes. Tais

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segmentos sociais eram tidos como “indesejáveis e perigosos” (Engel, 1989, p. 23),

“desclassificados sociais” (Engel, 1989, p. 27). A procura por mão-de-obra era muito

menor do que a oferta, reduzindo os salários. Para a parcela feminina dessa população,

somava-se uma ampla restrição das opções de ocupação, fazendo da prostituição uma

importante alternativa de sobrevivência e até de ganhos mais expressivos. Porém, a

prostituta, associada à vadiagem, mendicância, alcoolismo, desordem social e moral,

permanecia como uma figura a ser corrigida e vigiada.

Segundo Engel (1989), a cidade seguia um padrão de mistura de classes e

categorias sociais. Trabalhadores e “vadios” compartilhavam o mesmo espaço físico,

caracterizado pela miséria. Da mesma forma, não havia limites precisos entre o espaço

da prostituição e o da família. O universo da prostituição era composto

predominantemente por escravas, ex-escravas libertas ou imigrantes que, do baixo

meretrício à prostituição de luxo, faziam-se presentes nas diversas regiões da cidade.

A cidade encontrava-se numa situação caótica, devido às condições precárias de

higiene pública, epidemias (tuberculose, febre amarela, cólera, varíola, sífilis...) e

tensões sociais. A autora afirma que, diante desse cenário, os médicos assumiram a

tarefa de ordenação e civilização da cidade, inspirados nos padrões burgueses e

europeus de progresso.

Engel (1989) apresenta duas instituições, fundadas na década de 1830, cujo

papel foi essencial, segundo a autora, nesse projeto normatizador da medicina, atuando

de forma atrelada ao Estado, não apenas intervindo nas ruas, mas adentrando inclusive

as residências privadas. A primeira delas é a Academia Imperial de Medicina do Rio de

Janeiro, fundada exatamente para atender à demanda de produção de conhecimento

voltado à política de higienização da cidade. Dentre os temas abordados nas pesquisas

desenvolvidas pela instituição, destacavam-se as condições sanitárias, a saúde da mulher

e da criança e os hábitos femininos, exercendo notável influência sobre o perfil das

condutas e relações estabelecidas naquela época.

A segunda instituição é a Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, cuja

produção concentrava-se em torno dos mesmos temas, incluindo os aspectos higiênicos

do casamento e das relações sexuais. Engel (1989) comenta que a cidade como um todo,

nesses textos, era caracterizada como doente ou como um ambiente propício para a

doença, a ser conhecido e tratado.

A autora detalha como a prostituição, tomada enquanto um dos aspectos da

cidade doente, passa a constituir-se como objeto do saber médico. O tema da

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sexualidade esbarrava na concepção cristã, tido como pecado e moralmente repugnante,

degradante. Engel (1989) nota nos textos médicos a freqüência de citações bíblicas e um

tom de hesitação e constrangimento frente ao tema, levando a exaustivas justificativas

sobre a escolha de abordá-lo. A associação do tema com a disseminação de moléstias

venéreas constituía o principal argumento da necessidade de tratá-lo como objeto da

medicina. A missão do cientista era, então, superar os obstáculos morais em nome da

saúde pública.

A prostituição era, nesse contexto, concebida ela própria como uma doença, uma

vez que seria o principal meio de difusão da sífilis e de outras moléstias – uma ameaça

oculta que deveria tornar-se conhecida e controlável, como ressalta Engel (1989). A

prostituição passava, assim, de pecado à doença, da mesma forma como as próprias

epidemias deixavam de ser vistas como uma punição divina para pertencerem ao

domínio da ciência e tornarem-se objeto da ação do Estado. Contudo, segundo a autora,

a medicina recria de certa forma o discurso religioso, ao argumentar por sua missão em

defesa das vítimas inocentes e da moral, em busca de legitimar-se como instrumento

eficaz de combate à doença.

Engel (1989) aponta diferentes etapas do conhecimento médico da prostituição

como doença: a definição do objeto, a explicação de suas origens, a indicação de seus

efeitos ou sintomas e a prescrição das formas de tratamento. A autora comenta que essas

ações caminhavam no sentido de fixar “os limites entre a normalidade e a doença no

campo da sexualidade” (p. 69). A autora distingue, ainda, as três dimensões do corpo

doente abordadas pelos médicos: a dimensão física, a moral e a social, detalhadas a

seguir.

Quanto à dimensão física, Engel (1989) identifica que, nos textos médicos, a

sexualidade aparecia como função orgânica, de finalidade reprodutora. O prazer,

contanto que comedido, era visto como exigência fisiológica. Já o desejo era ao mesmo

tempo considerado como “necessidade e veneno para o corpo” (Engel, 1989, p. 71).

Fora dessa finalidade, a atividade sexual equivaleria à perversão, ao comportamento

sexual desviante, constituindo um sintoma do corpo doente, uma distorção da natureza.

No sentido oposto, o casamento era tido como “instituição higiênica e único espaço da

sexualidade sadia reconhecido” (Engel, 1989, p. 73).

Em meio à sexualidade pervertida, situava-se a prostituição, reunindo o conjunto

de práticas desviantes. A autora nota a constante associação entre as idéias de

obscuridade e clandestinidade e as perversões sexuais. A prostituição era sempre

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descrita como foco de contaminação e disseminação da perversão, tanto quanto da

sífilis. Segundo Engel (1989), a sífilis era apontada como ameaça maior que as demais

epidemias porque, enquanto doença sexualmente transmissível, disfarçava-se sob a

sensação de prazer. De forma correspondente, a prostituta era caracterizada como

farsante, mentirosa, disfarçada. Cabia ao médico desvendar o perigo oculto por trás da

aparência bela e saudável da prostituta. Havia, ainda, a crença na transmissão

hereditária da sífilis, colocando a doença – e a própria prostituição – como ameaça às

gerações futuras e risco de degeneração das raças.

A autora ressalta que a sexualidade feminina era caracterizada pela medicina

como sendo mais propensa à perversão do que a masculina. Isso sob a justificativa de

que a feminilidade estaria associada ao instinto, à irracionalidade. Restava, então, à

mulher duas alternativas: ser esposa e mãe (optar pela sexualidade sadia) ou prostituta

(encaminhar-se para a sexualidade doente).

Os hábitos da prostituta, nesse contexto, eram observados e caracterizados pelo

desregramento, pontuando-se diversos fatores de degradação do organismo intrínsecos à

prostituição: “a atividade sexual excessiva e sem a finalidade da reprodução, a

alimentação irregular e de má qualidade, o sono insuficiente, a ausência ou precariedade

de asseio...” (Engel, 1989, p. 78). Defendia-se a tese de que o caráter perverso do

exercício da sexualidade prostituída gerava a esterilidade da prostituta, através de

alterações do organismo, tais como anormalidade do ciclo menstrual e propensão ao

aborto natural. As enfermidades mais freqüentemente associadas às prostitutas eram as

doenças venéreas, seguidas de “nevroses, infecções do útero, moléstias do aparelho

respiratório, desarranjos gastro-intestinais, flegmasias superficiais e profundas, febres,

moléstias da pele” (Engel, 1989, p. 79). O destino da prostituta era, portanto, ter o corpo

lentamente consumido pela morte.

No que diz respeito à dimensão moral, Engel (1989) relata que, diante da tese do

predomínio do instinto sobre a razão, a prostituição não era apenas tida como

degradação moral, mas também associada à loucura. Segundo a autora, não há uma

divisão clara entre pecado e loucura, pois o pecado mantém-se na origem moral do

sentido da doença e da anormalidade.

A sexualidade feminina era dotada nos textos médicos de um caráter de

ambigüidade: uma vez que os instintos sexuais poderiam encontrar-se aguçados devido

à função reprodutora, o critério funcional deveria ser sustentado através da moral e do

pudor, elementos que conferiam sentido à vida da mulher. Segundo a autora, a

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concepção de prostituta era construída em oposição direta ao papel de esposa e mãe,

através da seguinte formulação: a perversão compromete a capacidade moral para a

função reprodutora; a prostituta, moralmente doente, escolhe a esterilidade e nega-se a

ser mãe, conduzindo o vírus que leva à morte e não o sêmen, que gera a vida.

Associada a práticas imorais como adultério, poligamia, uniões criminosas e

relações ilícitas com diversos indivíduos, a prostituição era tomada como obstáculo

físico e moral à política de higienização e controle do corpo feminino. A autora ressalta

que o discurso médico, nesse sentido, vai além da moralidade cristã, pois resgata e

absolve o prazer ao exaltar a sexualidade conjugal, contanto que regulada pela norma

médica. Se a família é instituição higiênica, a ser preservada pelo médico, a prostituição

representa uma ameaça à família, considerando que a doença moral também é tida como

contagiosa.

A escravidão era tomada como uma das principais causas da prostituição na

cidade, dada as relações de promiscuidade entre algumas escravas e seus senhores.

Como coloca Engel (1989), a escravidão representava, para a medicina, a prostituição

inserida diretamente dentro do lar familiar e, por conta disso, deveria ser extinta. Num

contexto de início do processo abolicionista no Rio de Janeiro, algumas propostas de

abolição foram formuladas pelos médicos, segundo a autora, como etapa do combate à

prostituição, e não como uma postura antiescravista em si.

Por fim, Engel (1989) discute a dimensão social da prostituição, fazendo

referência a diferentes etapas da relação, feita pela medicina, entre prostituição e

trabalho. A autora demonstra que, em função de seu caráter comercial, a atividade

chegava a ser definida algumas vezes como ocupação nos textos médicos, mas

prevalecia sua associação à ociosidade, desonestidade e desordem social. Era

considerada uma atividade ilegítima e criminosa.

A noção de clandestinidade opunha prostituição a trabalho. Por exemplo, os

textos médicos descreviam mulheres que exerciam o ofício de costureiras, lavadeiras

etc. para disfarçar sua atividade de prostituta. Observa-se que a prostituição

correspondia, nesse exemplo, ao não trabalho, na medida em que era exercida

clandestinamente, oculta por trás de uma ocupação reconhecida. Por outro lado, se os

ofícios femininos eram entendidos como mera fachada, as mulheres trabalhadoras

passavam a ser associadas a prostitutas enrustidas, marcando-se negativamente toda

atividade produtiva feminina.

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Segundo a autora, a miséria, de início, não era vista como fator de origem da

prostituição brasileira, senão enquanto fruto da ociosidade, esta sim considerada causa

da prostituição. O escravo, considerado preguiçoso e difusor do ócio, era também nesse

sentido associado às causas da prostituição.

Engel (1989) afirma que é a partir de 1890, após a abolição, que essa relação

começa a se transformar. A ausência de emprego e os baixos salários passam a ser

tomados como fatores sociais determinantes da prostituição no Rio de Janeiro. A mulher

sem trabalho passa a ser vista como uma prostituta em potencial, enquanto que a

realização dessa potencialidade é justificada em função da ignorância e indolência,

frutos de uma educação distorcida.

A prostituição enquanto doença social passa a ser caracterizada como

reprodutora seja da miséria, seja do luxo ilícito. Quanto mais pobres, mais as prostitutas

são consideradas perigosas, pois maior é o risco de disseminação da doença e da

depravação. Já o luxo, que se supõe estar representando uma falsa imagem do ganho

fácil, passa a ser visto como fonte de desvio de mão-de-obra feminina do trabalho

honesto, levando à ilusão de riqueza e destruindo a verdadeira riqueza – o patrimônio da

família. Se a única riqueza considerada lícita é aquela construída a partir do casamento,

toda mulher com autonomia econômica será associada à prostituta. A única opção de

atividade remunerada tida como honrada para a mulher nessa época, segundo a autora, é

o trabalho nas fábricas, considerado adequado às habilidades femininas.

Além disso, a possibilidade de contágio físico e moral do cliente trabalhador,

tornando-o incapaz para o trabalho, portanto, ocioso, faz da prostituição um atentado ao

trabalho e um desperdício de seus frutos. Em última instância, a prostituta opõe-se à

propriedade, à riqueza e ao progresso da nação, constituindo uma inimiga da pátria. É

nesse sentido que caminha sua freqüente associação à figura da imigrante, da

estrangeira.

Esse foi, então, o diagnóstico da prostituição, que buscou justificar

cientificamente sua periculosidade e a necessidade de intervenção e controle por parte

da medicina. Diante desse quadro, o médico acumulou funções: foi, ao mesmo tempo,

“o cientista, o educador, o moralista, o economista, o legislador, o político” (Engel,

1989, p. 70).

Contudo, houve muitas divergências no meio médico quanto às formas de

controle da prostituição. Duas correntes sobressaíram-se nesse debate: a dos

regulamentaristas e a dos abolicionistas. Os primeiros propunham medidas higiênicas e

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policiais para isolar, mas manter a prostituição, tornando-a útil à sociedade. Os

segundos pretendiam diminuir e eliminar a prostituição, através da repressão policial.

O Ministério da Saúde (2002) demonstra que os posicionamentos

regulamentaristas e abolicionistas determinaram as políticas de diversos países voltadas

à prostituição ao longo dos últimos séculos. Há inclusive um Tratado Abolicionista

Internacional da ONU, o qual foi assinado por Brasil, Canadá, Tailândia e Inglaterra. O

Ministério da Saúde (2002) caracteriza a postura abolicionista como hipócrita e corrupta

porque, ao assumir como meta a total extinção da prostituição, acaba por adotar uma

postura de tolerância da atividade, através de uma legislação contraditória, como será

discutido adiante. Há ainda uma terceira corrente, proibicionista, que adquiriu grande

expressão nos EUA, a qual considera a prostituição como um crime.

Engel (1989) afirma que a defesa da regulamentação sanitária da prostituição

iniciou-se na comunidade médica na década de 1840, inspirada nos modelos franceses.

Contudo, os debates travados na Academia Imperial de Medicina em torno de 1850

encerram-se com a resolução de que a Academia não se ocuparia mais da questão da

regulamentação da prostituição, uma vez que o país não estava preparado para isso. A

corrente ganhou força a partir de fins da década de 1860, mas, ainda assim, vinte anos

depois, a Comissão de Saúde da Câmara dos Deputados posicionou-se novamente

contra a regulamentação. Apenas em 1890, a Academia de Medicina aprovou medidas

de profilaxia da sífilis, algumas referentes especificamente à prostituição, favoráveis à

regulamentação.

Segundo Engel (1989), os regulamentaristas afirmavam que a prostituição era

um mal que não poderia ser eliminado, fundando a concepção da prostituição como um

mal necessário. A justificativa para essa teoria dava-se através da afirmação de que a

prostituição sempre existiu devido aos instintos sexuais masculinos, que são legítimos e

necessitam do prazer sem finalidade. A prostituição, sob essa perspectiva, seria

indispensável para preservar a família, constituindo uma válvula de escape para as

necessidades masculinas, protegendo os padrões de comportamento feminino de

virgindade e fidelidade e viabilizando o projeto de tornar a família e o casamento

instituições higiênicas. Já a repressão absoluta da atividade comprometeria seu caráter

de utilidade, sua “função saneadora” (Engel, 1989, p. 110), incentivando práticas

sexuais perversas, dada a necessidade do homem de descarregar seus impulsos.

A ameaça era, portanto, a prostituição livre – uma enfermidade que não poderia

ser extinta, mas deveria ser tratada. Segundo essa concepção, a fiscalização do corpo da

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prostituta equivaleria a uma medida de saúde pública e de proteção ao consumidor. Para

que a prostituição pudesse ser convertida em espaço higiênico, considerava-se que as

prostitutas deveriam ser identificadas, com inscrição obrigatória na polícia e isoladas em

determinadas áreas da cidade, onde poderiam ser vigiadas e submetidas a rigoroso

controle médico (exames ginecológicos periódicos e minuciosos, proibição do exercício

da atividade em caso de infecção, tratamento obrigatório etc.). Essa ação seria

fundamental no combate à sífilis. Comportamentos de prostitutas ofensivos à

moralidade pública deveriam ser reprimidos, tais como provocações ou ostentação do

luxo. Engel (1989) fala da importância do espaço do bordel para esse projeto:

“A institucionalização do bordel, concentrando e fixando as prostitutas, apresenta-se, assim, como o meio mais eficaz de viabilizar a fiscalização médica e policial. E, ao mesmo tempo, através da circunscrição do espaço da prostituição, evitar e/ou restringir o contato com o conjunto da população urbana” (p. 114).

Segundo a autora, o bordel como espaço higienizado, tal como a prisão ou o

hospício, cumpria a função de delimitar o lugar da anormalidade e da doença.

A respeito das políticas de regulamentação da prostituição, Rago (1991) relata

que, em São Paulo de 1896, o delegado Cândido Motta decreta o “Regulamento

Provisório da Polícia de Costumes” (p. 112), com normas de vigilância voltadas aos

espaços do baixo meretrício, querendo confiná-los num determinado ponto da cidade.

As regras eram as seguintes: das 7 às 19 horas, os bordéis deveriam manter as persianas

fechadas e as prostitutas deveriam esconder o corpo ao aparecer na janela ou sair nas

ruas. Um livro de registro das prostitutas exigia o fichamento das meretrizes na

“Delegacia de Costumes”. Havia a fiscalização de bordéis, bares, pensões, e dos

horários de fechamento desses estabelecimentos. A repressão de cenas de imoralidade

era comum nos diversos espaços do baixo meretrício.

Um projeto ainda mais rígido que o primeiro não foi aprovado em 1913, mas

isso não abrandou as relações das autoridades paulistanas com a prostituição, segundo a

autora. Na década de 40, em São Paulo, efetivou-se uma política de confinamento do

baixo meretrício no bairro do Bom Retiro e, apenas em 1954, houve o desconfinamento,

ainda assim através da expulsão violenta das prostitutas, que tentaram em vão resistir.

Contudo, as mulheres despejadas logo transformaram hotéis e casas da região de

Campos Elíseos em bordéis disfarçados.

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Rago (1991) relata que a perseguição policial das prostitutas persistiu por

décadas na cidade de São Paulo, incluindo repressão física, prisão, duchas de água fria e

cabeça raspada. A autora aponta que a violência física foi característica dos diversos

países que implantaram a regulamentação em algum momento de sua história.

Segundo Engel (1989), a regulamentação da prostituição não chegou a ser

implantada no Rio de Janeiro. Apesar de não aprofundar a discussão, a autora afirma

que o fato de os “projetos de controle dos habitantes da cidade considerados perigosos”

(p. 140) não terem sido efetivados deve-se “não só às referidas disputas e conflitos

situados no próprio âmbito dos setores dominantes, mas também à resistência dos

grupos e segmentos sociais aos quais se pretendia atingir” (p. 140).

Engel (1989) descreve, então, a posição anti-regulamentarista, a qual

considerava a prostituição como um mal possível de ser eliminado da sociedade. Para

essa corrente, regulamentar seria legalizar o mal, tolerando e favorecendo a prostituição,

transformando “um comércio ‘imoral’ e ‘infame’ numa profissão regular e legítima”

(Engel, 1989, p. 120), provocando o aumento de prostitutas. O bordel seria, sob esse

ponto de vista, um espaço de conservação e de propagação do mal. A legalização

incentivaria a imoralidade, impedindo a reabilitação da prostituta e perpetuando o vício,

aumentando os riscos de contaminação. A regulamentação era vista, portanto, como

uma medida ineficaz no combate às doenças venéreas. A prostituição, “enquanto

atentado à saúde, à moralidade e à tranqüilidade públicas” (Engel, 1989, p. 123), deveria

ser combatida pela polícia municipal, ou seja, as causas da doença deveriam ser

atacadas.

Apesar das radicais diferenças entre essas duas correntes, havia consenso em

torno de um ponto: as medidas profiláticas em relação à prostituição, visando conter o

aumento de prostitutas. A educação moral do homem e principalmente da mulher

constituía a principal delas: a família higiênica teria a função de proporcionar um

ambiente educativo à criança, baseado em rígidos princípios morais; assim como a

escola e a igreja também deveriam cumprir seu papel na formação moral do indivíduo.

A falta de fé e a defasagem das instituições de ensino eram tidas como as principais

causas da disseminação da prostituição, pois a má orientação moral da mulher a levaria

a perder-se no excesso dos instintos. O doutrinamento cristão, portanto, seria o

instrumento mais eficaz de prevenção. Engel (1989) afirma que,

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“ao se atribuir o direito e o dever de zelar pelo desempenho correto e saudável de papéis cabíveis a instituições tal como a família, a escola e a igreja, o médico cria bases concretas para o exercício de um poder específico, procurando torná-lo necessário e legítimo” (p. 139).

A formação profissional da mulher pobre seria ainda outro meio de prevenção,

destacando-se o trabalho fabril, como dito acima, evitando a miséria e, assim, a

prostituição. No entanto, segundo a autora, permanecia a dificuldade de conciliar o ideal

da mãe e esposa com a mulher trabalhadora (ainda freqüentemente associada à

prostituição).

Para os anti-regulamentaristas, a doutrina cristã seria também um instrumento de

regeneração; enquanto que a maioria dos regulamentaristas considerava a reabilitação

impossível ou, no melhor dos casos, a ser facilitada através do isolamento em

instituições voltadas a essa função.

Engel (1989) avalia que, de modo geral, essas duas tendências constituíam

expressões divergentes do discurso liberal quanto ao papel do Estado na modernização

da cidade. Contudo, a autora aponta para o consenso, na época, de que cabia ao médico,

como detentor da verdade científica, orientar a constituição do novo cidadão, segundo

os padrões higiênicos e burgueses. “De qualquer forma, seja conferindo ao médico um

papel definido no combate à prostituição, seja negando qualquer tarefa ao médico neste

sentido, o fato é que se fala da prostituição...” (Engel, 1989, p. 134), isto é, a

prostituição torna-se definitivamente um assunto médico.

1.2. PROSTITUIÇÃO E MODERNIDADE, DO FIM DO SÉCULO XIX AO

INÍCIO DO SÉCULO XX

Avançando um pouco no tempo, Rago (1991) estuda o mundo da prostituição na

cidade de São Paulo, de 1890 a 1930, a partir dos textos de médicos, juristas,

criminologistas, literatos e jornalistas da época. A autora constata que, nesse período, as

mulheres começavam a ocupar os espaços da vida pública e do trabalho, até então

masculinos por excelência.

Nesse contexto, a imagem da prostituta permanecia sendo apontada como uma

ameaça aos códigos de comportamento. A prostituta era a mulher que vendia seu corpo:

ao mesmo tempo vendedora e mercadoria, simbolizava a degradação das relações

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sociais, agora mediadas pelo dinheiro. A prostituta passava, assim, a representar uma

fronteira, no plano simbólico; um estereótipo do qual toda mulher deveria distanciar-se;

“um contra-ideal necessário para atuar como limite à liberdade feminina” (p. 40).

Num período em que se democratizava o acesso ao consumo, as demarcações

sociais não eram mais tão claras, por isso os detalhes da aparência eram muito

valorizados, para manter a diferenciação simbólica. Isso se expressava, por exemplo, na

advertência às mulheres para serem discretas no uso de roupas, adereços e perfumes. Ou

seja, a mulher deveria prestar atenção a seus gestos e aparência para diferenciar-se da

mulher pública por excelência – a prostituta. Esta, segundo a autora, constituía um

“fantasma” amedrontador, pois representava uma possibilidade que poderia estar

presente na sexualidade de todas as mulheres. Como afirma Rago (1991),

“construir masculinamente a identidade da prostituta significou silenciá-la e estigmatizá-la e, ao mesmo tempo, defender-se contra o desconhecido – a sexualidade feminina –, recoberta por imagens e metáforas assustadoras” (p. 21).

Ao mesmo tempo, delimitava-se o espaço de evasão da sexualidade, do prazer e

da boemia. Na medida em que cumpria com uma função social importante, a esposa e

mãe burguesa era respeitada como rainha do lar. As relações extraconjugais,

diferentemente do período da escravidão, só ocorriam fora de casa. Em meio ao

desenvolvimento do espaço urbano público, a família permanecia sacralizada no espaço

privado.

Buscava-se, assim, segundo a autora, justificar a exclusão da mulher da vida

pública e a existência de um espaço destinado à satisfação sexual masculina, território

onde não caberiam mulheres honestas e respeitáveis.

Enquanto isso, a prostituição expandia-se e diversificava-se, tornando-se uma

atividade cada vez mais lucrativa e que exigia mais investimentos. “As prostitutas

profissionalizavam-se com o crescimento urbano-industrial, constituindo um mercado

de trabalho disputado” (Rago, 1991, p. 124).

Segundo Rago (1991), o bordel era o espaço em que se atualizava a

fragmentação do sujeito moderno, na separação entre amor e prazer, no universo das

mercadorias. Enquanto objeto de consumo, a prostituição seria fonte tanto de repulsa

quanto de atração, durante a passagem do século XIX ao século XX.

A autora demonstra, então, que a imagem da prostituta não foi apenas o

fantasma desse período, mas constituiu-se paradoxalmente como símbolo da

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modernidade, representando a liberalização dos costumes, a independência, a liberdade

e o poder do sexo feminino. É a partir disso que a autora introduz a dimensão da

prostituição como espetáculo.

Rago (1991) relata que, desde o final do século XIX, a ex-escrava deixava de ser

o principal signo da imoralidade sexual, dando lugar à prostituta estrangeira – a cortesã

européia, especialmente a francesa –, fosse ela estrangeira de fato ou apenas produzida

como tal. A presença dessa figura em praças, teatros e restaurantes da cidade chamava

as atenções. Ao mesmo tempo em que ameaçava a estabilidade da família e dos bons

costumes, trazia marcas da civilização e da modernidade. Nesse sentido, como diz a

autora, prostituição e modernidade foram intimamente associadas, num momento em

que a sociedade buscava ingressar numa nova era, em sintonia com o ritmo de

modernização das nações européias.

A autora descreve que, nas áreas centrais e comerciais da cidade, proliferavam

os cafés, cabarés e casas noturnas, onde se exibiam as prostitutas, trazendo tecnologias

eróticas importadas, tais como roupas íntimas, perfumes, drogas, revistas e filmes

proibidos, exibições artísticas diversas etc. Havia ainda as cortesãs de luxo, vivendo em

moradia própria, geralmente montada por algum coronel, ou em hotéis e pensões.

Diversificavam-se as formas de consumo do prazer, voltadas a clientes pertencentes a

diferentes setores da sociedade.

Quanto ao espaço reservado ao baixo meretrício, Rago (1991) afirma que a ação

da polícia paulistana empurrou as prostitutas pobres cada vez mais para a periferia,

como foi visto anteriormente. Ou seja, as políticas higienistas continuaram a agir

fortemente sobre essa população, ao longo do século XX.

Contudo, no final do século XX, haverá uma transformação radical das

concepções formuladas por profissionais de diferentes áreas a respeito da prostituição,

gerando propostas de ações diferenciadas, que implicam numa busca de maior

aproximação desse universo, como será descrito a seguir. O que não significa que as

múltiplas significações atribuídas à prostituição nos períodos anteriores não

permaneçam presentes, de diferentes formas, no imaginário social atual.

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1.3. A PROSTITUTA COMO TRABALHADORA E CIDADÃ: UMA

PERSPECTIVA CONTEMPORÂNEA

Ayres et al. (1999) comentam que, desde fins da década de 1980, quando a

epidemia da Aids espalhou-se por todo o mundo e os avanços tecnológicos da ciência

não mais davam conta de controlar esse fenômeno, ganharam espaço propostas de ação

social, privilegiando a participação comunitária e dos movimentos sociais organizados.

Foi nesse contexto que o campo da prevenção das doenças sexualmente transmissíveis

(DSTs) passou a destacar-se como um pólo de produção de conhecimento direcionado a

grupos socialmente marginalizados, dentre eles, as prostitutas, a partir de uma

concepção bastante inovadora. Desde a denominação aí utilizada, “profissionais do

sexo”, nota-se que, nessa perspectiva, entende-se a prostituição como um trabalho e

busca-se produzir reflexões e estratégias para a promoção de saúde e cidadania desse

público.

Deve-se considerar que essa nova concepção só pôde ser construída no contexto

de uma sociedade pós-revolução sexual. Isto é, o entendimento da prostituta como

trabalhadora e cidadã só tornou-se possível a partir da construção de novas referências a

respeito da sexualidade e das questões de gênero, transformações essas que, apesar de

não serem aprofundadas neste estudo, devem permanecer em vista.

No “Documento referencial para ações de prevenção das DST e da Aids”

voltadas às profissionais do sexo, o Ministério da Saúde (2002) procura constituir

referências para o planejamento, a execução e a avaliação das ações de prevenção às

DSTs e à Aids dirigidas a profissionais do sexo, resgatando e sistematizando a

experiência do país de mais de uma década com essa população.

Esse documento relata que, desde o início da epidemia da Aids, as profissionais

do sexo foram a ela associadas, devido ao estigma e à discriminação social que

enfrentam por conta de sua atividade profissional. Nesse primeiro momento, a prostituta

foi inserida nos grupos de risco, tomada (mais uma vez na história) como disseminadora

de doenças. Procurando superar esse paradigma, o governo e a comunidade brasileira

mobilizaram-se para implementar programas de prevenção dirigidos às profissionais do

sexo, buscando abordar a complexidade das experiências desse público, o que, segundo

o documento, mostrou-se fundamental para elaborar estratégias mais efetivas de

prevenção e promoção de saúde. O protagonismo das próprias profissionais do sexo, em

parceria com as organizações governamentais, foi muito valorizado nesse sentido.

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Segundo o Ministério da Saúde (2002), e em concordância com Rago (1991),

como explicitado acima, a prostituição é facilmente tratada como algo natural, analisada

através de explicações prontas, simplistas e que aprisionam o fenômeno em construções

políticas, sociais e morais.

Assim, a prostituição tem seu status de profissão insistentemente negado, ainda

que caracterizada como “meio de sobrevivência de pessoas, em especial de mulheres,

supostamente despossuídas de condições de inserção no mercado de trabalho”

(Ministério da Saúde, 2002, p. 13). Segundo o documento, recorre-se freqüentemente à

noção de carência social para justificar a sujeição a uma atividade tida como

humilhante. O Ministério da Saúde (2002) considera que essa explicação retira o caráter

de escolha das prostitutas pela profissão, tomando-as como vítimas que se deixam levar

pela falta de alternativas. Mas essa visão possibilitaria a tolerância da prostituição por

parte da sociedade. Além disso, uma vez que a causa da prostituição é localizada

externamente ao sujeito – a culpa seria do capitalismo perverso –, passa-se a acreditar

que a redenção é possível, daí as diversas iniciativas oferecendo a essas mulheres a

capacitação em atividades alternativas de geração de renda. No entanto, quando essas

tentativas fracassam, a prostituta deixa de ser vista como vítima, para ser apontada

como pecadora e imoral.

O Ministério da Saúde (2002) aponta que esse modelo explicativo desconsidera

os aspectos de erotismo, desejo e prazer da prostituição, enquanto sacraliza o sexo como

atividade reprodutiva da espécie, visão essa datada historicamente, como discutido

acima. O documento ressalta que tal formulação conceitual tem em vista a garantia da

manutenção da ordem social, negando o incômodo que a rede de comercialização do

sexo, “reveladora de sexualidades insubmissas” (Ministério da Saúde, 2002, p. 16),

suscita.

O documento acrescenta que as prostitutas não são alheias a essa lógica de

raciocínio, pois elas próprias justificam o fato de exercerem a atividade em função da

necessidade financeira. Sem negar que grande parcela das profissionais do sexo

encontra-se de fato numa condição sócio-econômica precária, o Ministério da Saúde

(2002) entende que a confirmação dessa representação social por parte das prostitutas é

também uma forma de garantir o mínimo pertencimento social e amenizar o estigma.

O documento define a noção de estigma como um atributo imposto pela

coletividade, com base numa característica diferente e indesejável do sujeito em

questão. O resultado é a introjeção, por parte daquele que é estigmatizado, da

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negatividade de sua imagem, levando à construção de uma identidade deteriorada, que

vai sendo naturalizada.

O Ministério da Saúde (2002) considera que, apesar das conquistas de direitos

civis e sexuais femininos, até os dias de hoje mantém-se a explicação da prostituição

como um mal necessário, indicando “um movimento de resistência social de re-

interpretação dos significados possíveis do exercício da prostituição” (p. 17). Muito

embora se busque na prostituição a experiência de ruptura com o sexo convencional e a

realização de fantasias, a idéia de “corpos femininos escravizados e usurpados pelo

desejo incontido dos homens” (Ministério da Saúde, 2002, p. 18) impede a visão da

prostituta como responsável por seus atos, sujeito social, cidadã plena. O documento

acrescenta que a prostituição dá-se num espaço de socialização específico, que não se

restringe ao ato sexual; pelo contrário, esse ambiente está repleto de significações,

abarcando desde a ostentação da virilidade masculina até conversas e desabafos, nas

quais o homem revela seus temores e inseguranças.

O documento cita diversos aspectos que caracterizam a situação de

vulnerabilidade das prostitutas. Uma vez que o estatuto de cidadã é negado a essas

trabalhadoras, dificulta-se o seu acesso aos sistemas de saúde, educação e proteção

social. A esse respeito, o documento afirma que

“não é de se estranhar a ausência ou invisibilidade das profissionais do sexo na rede pública de saúde, porque não se percebem, da mesma forma que não são percebidas como detentoras dos mesmos direitos da população em geral e, por isso mesmo, não conseguem acessar tais serviços ou necessitam mascarar os supostos sinais da diferença e do estigma social para obter os benefícios coletivos ofertados pela rede, acessando-a disfarçadamente” (Ministério da Saúde, 2002, p. 78).

Por isso, as prostitutas predominantemente fazem uso de estratégias alternativas

de cuidado com o corpo e prevenção às DSTs, a maioria baseada em crenças populares,

tais como: “uso de cremes vaginais, duchas e banhos com substâncias químicas ou

abrasivas (...) repassadas de geração em geração” (Ministério da Saúde, 2002, p. 51),

com riscos de lesão dos órgãos genitais.

Além disso, baseado nos indicadores de propensão ao uso de drogas definidos

pela OMS, o documento afirma que, diante do perfil das profissionais do sexo no Brasil,

pode ser atribuído um alto grau de vulnerabilidade dessa população à drogadição. O

mesmo vale para as infecções por DSTs, segundo o Ministério da Saúde (2002),

considerando que o uso de álcool e drogas pela profissional do sexo e por seus parceiros

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potencializa o relaxamento do controle, dificultando a negociação do uso do

preservativo.

O Ministério da Saúde (2002) acrescenta que a violência contra a mulher agrava-

se no contexto da prostituição, ambiente de maior exposição. Apesar de as casas

fechadas serem mais seguras do que a rua, contando com estrutura organizacional,

porteiros e seguranças, mesmo nesses locais pode ocorrer a violência policial ou por

parte de clientes.

Frente a esse contexto, o Ministério da Saúde (2002) afirma que

“a organização social da população de profissionais do sexo é a mais importante resposta possível ao processo instaurado de exclusão social, simbólica ou real, produzida seja pelas relações de poder e opressão de gênero, seja pela marginalização econômica e política imposta às classes mais empobrecidas de nossa sociedade” (p. 56).

Nesse sentido, o documento faz referência ao Movimento de Profissionais do

Sexo. Trata-se da auto-organização das prostitutas em defesa da eliminação de leis

específicas sobre a prostituição, entendendo que não devem ser discriminadas dos

demais cidadãos e negócios comerciais. A meta do movimento seria a legalização da

profissão.

A história desse movimento pode ser observada em diversos países, como EUA,

França, Inglaterra, Alemanha, Itália, Suíça, Canadá, Austrália, Áustria, Holanda, Índia,

Tailândia, China, Coréia e Uruguai. No Brasil, inicia-se em 1979, em São Paulo. O

movimento começou na região central da cidade conhecida como “Boca do Lixo”, após

quatro meses de conflito com a polícia, em que prostitutas e travestis sofreram

perseguição, violência, tortura, prisões e ocorreram três mortes. Nessa ocasião, o

movimento contou com forte apoio da sociedade civil.

Em 1987, no Rio de Janeiro, ocorre o Primeiro Encontro Nacional de Prostitutas,

organizado por Gabriela Silva Leite, culminando na formação da primeira Rede

Brasileira de Profissionais do Sexo. As associações que fundaram essa Rede, segundo o

Ministério da Saúde (2002) são: Associação da Vila Mimosa (Rio de Janeiro), DaVida

(Rio de Janeiro), Aproce (Associação das Prostitutas do Ceará), Gempac (Grupo de

Mulheres Prostitutas da Área Central, Belém do Pará), ASP (Associação Sergipana de

Prostitutas) e NEP (Núcleo de Estudos da Prostituição, Porto Alegre). Os objetivos

dessa organização são: a reforma das leis, o desenvolvimento de ações contra a

violência, contra o estigma em relação às prostitutas e a favor do resgate da dignidade e

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da auto-estima das profissionais do sexo. Atualmente, segundo o Ministério da Saúde

(2002), dezessete associações registradas em cartório fazem parte da Rede, além de

mais 65 grupos não registrados.

A proposta do Ministério da Saúde (2002) para a prevenção das DSTs e da Aids

entre profissionais do sexo foi construída conjuntamente com integrantes do Movimento

de Profissionais do Sexo e ONGs ligadas à questão da Aids. Essas organizações lutaram

pelo protagonismo das prostitutas na formulação e na execução das políticas de

prevenção. Daí resultou o Projeto Previna, desenvolvido no fim da década de 1980,

cujos agentes de prevenção eram as próprias profissionais do sexo, capacitadas para

levar informação a suas colegas, tornando-se multiplicadoras. Nessa metodologia de

educação por pares, os materiais informativos eram elaborados empregando a

linguagem e a cultura do público-alvo. Até hoje, segundo o Ministério da Saúde (2002),

esse projeto constitui a base das ações de prevenção entre profissionais do sexo.

O documento afirma que o desenvolvimento de intervenções comunitárias,

produzindo discussões coletivas, mostrou ser de grande interessante nesse contexto:

“A vantagem dessa estratégia é a possibilidade de elaboração conjunta de estratégias de enfrentamento de questões para as quais, muitas vezes, ao serem analisadas de forma individual, não são encontradas soluções possíveis ou factíveis. No caso de profissionais do sexo, onde questões transversais à epidemia de aids invariavelmente se apresentam como mais urgentes do que o risco de uma possível infecção ou doença, como a violência policial, as disputas internas do grupo e a própria sobrevivência cotidiana, o encontro em grupo pode propiciar um laço entre essas questões, a princípio distanciadas da problemática da aids, com a epidemia, já que inequivocamente tornam essa população mais vulnerável à infecção pelo HIV, em especial pela vivência diária do estigma traduzido em pequenas ações onde a exclusão e a discriminação estão presentes, ainda que de forma sutil” (Ministério da Saúde, 2002, p. 120).

Contudo, as ações de promoção de saúde voltadas a profissionais do sexo ainda

esbarram na legislação vigente no país atualmente, a qual se mantém bastante ambígua

em relação ao tema. Rodrigues (2004) afirma que a prostituição em si não é considerada

crime segundo o Código Penal Brasileiro. Obviamente, a autora não está referindo-se à

prostituição praticada por menores de dezoito anos de idade. Deve-se ressaltar,

inclusive, que em nenhum momento deste estudo pretende-se abordar tal fenômeno, de

caráter altamente diferenciado da prostituição adulta, na medida em que desrespeita

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gravemente os direitos da criança e do adolescente, tais como expressos no Estatuto da

Criança e do Adolescente (ECA).

As atividades relacionadas à prostituição, por sua vez, são tidas como

criminosas. Rodrigues (2004) analisa alguns trechos do Código que afetam

indiretamente a prostituição, os quais são apresentados abaixo.

Na “Parte Especial” do Código Penal Brasileiro vigente, encontra-se o Título VI,

sobre os “crimes contra os costumes”, cujo Capítulo V aborda os temas do lenocínio e

do rufianismo. Em referência ao lenocínio, o Código Penal caracteriza como crime as

ações de: “induzir alguém a satisfazer a lascívia de outrem” (artigo 227); “induzir ou

atrair alguém à prostituição, facilitá-la ou impedir que alguém a abandone” (artigo 228);

“manter, por conta própria ou de terceiro, casa de prostituição ou lugar destinado a

encontros para fim libidinoso, haja, ou não, intuito de lucro ou mediação direta do

proprietário ou gerente” (artigo 229). O rufianismo, por sua vez, é caracterizado pelo

Código como a prática criminosa de “tirar proveito da prostituição alheia, participando

diretamente de seus lucros ou fazendo-se sustentar, no todo ou em parte, por quem a

exerça” (artigo 230).

No mesmo capítulo, aborda-se a legislação referente ao tráfico de pessoas:

“promover, intermediar ou facilitar a entrada, no território nacional, de pessoa que

venha exercer a prostituição ou a saída de pessoa para exercê-la no estrangeiro” (artigo

231), bem como “promover, intermediar ou facilitar, no território nacional, o

recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento da pessoa

que venha exercer a prostituição” (artigo 231-A) constituem crimes.

Já o Capítulo VI trata do ultraje ao pudor, descrito como “praticar ato obsceno

em lugar público, ou aberto ou exposto ao público” (artigo 233) e “fazer, importar,

exportar, adquirir ou ter sob sua guarda, para fim de comércio, de distribuição ou de

exposição pública, escrito, desenho, pintura, estampa ou qualquer objeto obsceno”

(artigo 234). O Código acrescenta, ainda, o seguinte parágrafo único: “Incorre na

mesma pena quem: I - vende, distribui ou expõe à venda ou ao público qualquer dos

objetos referidos neste artigo; II - realiza, em lugar público ou acessível ao público,

representação teatral, ou exibição cinematográfica de caráter obsceno, ou qualquer outro

espetáculo, que tenha o mesmo caráter; III - realiza, em lugar público ou acessível ao

público, ou pelo rádio, audição ou recitação de caráter obsceno”.

Através dessa legislação, segundo Rodrigues (2004), atribui-se ao Sistema de

Justiça Criminal e, mais especificamente à polícia, o papel de lidar com a questão da

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prostituição e determinar a existência e o caráter de delitos passíveis de punição, o que

acaba dando-se de maneira arbitrária. Segundo a autora, na medida em que é o órgão

responsável pela manutenção da ordem pública, a polícia aparece como o principal

canal de mediação das relações no universo da prostituição, recorrendo freqüentemente

ao ultraje ao pudor para a detenção de prostitutas, com recorrente violência. Além disso,

o Código coloca as prostitutas como vítimas passivas.

Rodrigues (2004) também considera que ainda permanece a ideologia da

prostituição como mal necessário, a ser mantido sob vigilância e controle. A autora

comenta que essa postura nega a perspectiva das prostitutas como cidadãs de direitos, a

qual seria coerente com as formulações construídas pelas políticas de saúde.

O documento do Ministério da Saúde (2002) afirma que o Código Penal

brasileiro acaba por produzir a falsa imagem da prostituição como uma prática ilícita, na

medida em que é “passível de ser reprimida, direta ou indiretamente, pela supressão de

seu indispensável par, seja ele o cliente, a dona da casa de prostituição ou o ambiente

onde se realiza” (p. 21). A partir dessa ambigüidade legal, institui-se um território de

ilegalidade, segundo o documento, ideal para marginais e criminosos conviverem.

Identifica-se, assim, a prostituição com a marginalidade, associando-se

automaticamente a atividade ao tráfico e consumo de drogas, violência, malandragem

etc. Dessa forma, tornam-se indissociados esses diversos atores, representados

socialmente a partir de características negativas e depreciativas, num processo de

generalização que origina o preconceito e a invisibilidade desses sujeitos.

Rodrigues (2004) cita, então, uma tentativa recente de modificação do Código

Penal, empreendida através do Projeto de Lei formulado pelo deputado federal

Fernando Gabeira em 2003. Segundo a Câmara Federal (2003), a proposta consiste em

suprimir do Código os artigos 228, 229 e 231 e acrescentar a “exigibilidade de

pagamento por serviço de natureza sexual” (p. 1).

Silva (2006) retoma a justificativa apresentada por Gabeira para o projeto, na

qual o deputado argumenta que não há razão para penalizar quem favorece uma

atividade lícita, e que deixar de relegar a prostituição à marginalidade permitirá a

tomada de providências da ordem de políticas públicas.

Rodrigues (2004) avalia que essa é uma proposta de alteração radical na forma

de se abordar a questão legal da prostituição. A autora relata que o projeto foi objeto de

audiência pública na Comissão de Direitos Humanos em 2003, contando com a

presença de representantes de entidades feministas, da Rede Brasileira de Profissionais

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do Sexo, de universidades e de órgãos governamentais tais como a Coordenação

Nacional de DST/Aids do Ministério da Saúde e técnicos do Ministério do Trabalho

ligados à Classificação Brasileira de Ocupações. Em seguida o projeto foi aprovado pela

Comissão de Justiça e Constituição e de Redação da Câmara.

Porém, segundo indica o site eletrônico da Câmara Federal, o projeto foi

arquivado em janeiro de 2007. Em fevereiro do mesmo ano, Gabeira solicitou o

desarquivamento do projeto. Em março de 2007, a Câmara realiza o desarquivamento

solicitado, despachando-o novamente à Comissão de Justiça e Constituição e de

Redação da Câmara, após o que não se encontra mais notícia sobre a tramitação do

projeto.

Ainda quanto à questão da legalidade da atividade da prostituição, nota-se o

grande avanço realizado pela Classificação Brasileira de Ocupações (CBO), desde o ano

de 2002. Segundo consta no site eletrônico da CBO (2002), o termo “profissional do

sexo” constitui atualmente uma categoria ocupacional (código 5198). O mesmo passa a

vigorar para os seguintes sinônimos: “garota de programa, garoto de programa,

meretriz, messalina, michê, mulher da vida, prostituta, puta, quenga, rapariga,

trabalhador do sexo, transexual (profissionais do sexo), travesti (profissionais do sexo)”

(CBO, 2002).

Essa Classificação produz uma descrição das diferentes categorias ocupacionais

reconhecidas no país, produzidas com a participação de grupos de trabalhadores de cada

área e revisadas por comitês, também compostos por trabalhadores.

No caso da categoria de profissionais do sexo, as instituições que participaram

desse processo foram as seguintes: DaVida, Gempac, NEP, Asproba (Associação das

Mulheres Profissionais do Sexo da Bahia), Gapa-MG (Grupo de Apoio à Prevenção da

Aids), Grupo de Mulheres Prostitutas do Estado do Pará e Igualdade (Associação de

Travestis e Transexuais do Rio Grande do Sul).

A CBO (2002) define como ocupação a “agregação de empregos ou situações de

trabalho similares quanto às atividades realizadas”. Define, ainda, como emprego ou

situação de trabalho o “conjunto de atividades desempenhadas por uma pessoa, com ou

sem vínculo empregatício”.

Em “descrição sumária” realizada pela CBO (2002), registra-se sobre a categoria

de profissionais do sexo que

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“batalham programas sexuais em locais privados, vias públicas e garimpos; atendem e acompanham clientes homens e mulheres, de orientações sexuais diversas; administram orçamentos individuais e familiares; promovem a organização da categoria. Realizam ações educativas no campo da sexualidade; propagandeiam os serviços prestados. As atividades são exercidas seguindo normas e procedimentos que minimizam as vulnerabilidades da profissão.”

Observa-se que o termo “batalha” é utilizado para fazer referência à atividade da

prostituta. Quanto ao item relacionado à “formação e experiência” necessária ao

exercício da ocupação, a CBO (2002) afirma que

“para o exercício profissional requer-se que os trabalhadores participem de oficinas sobre sexo seguro, oferecidas pelas associações da categoria. Outros cursos complementares de formação profissional, como por exemplo, cursos de beleza, de cuidados pessoais, de planejamento do orçamento, bem como cursos profissionalizantes para rendimentos alternativos também são oferecidos pelas associações, em diversos estados. O acesso à profissão é livre aos maiores de dezoito anos; a escolaridade média está na faixa de quarta a sétima séries do ensino fundamental. O pleno desempenho das atividades ocorre após dois anos de experiência”.

Em relação às “condições gerais de exercício” da ocupação, entende-se que

“trabalham por conta própria, na rua, em bares, boates, hotéis, porto, rodovias e em garimpos. Atuam em ambientes a céu aberto, fechados e em veículos, em horários irregulares. No exercício de algumas das atividades podem estar expostos à inalação de gases de veículos, a intempéries, a poluição sonora e a discriminação social. Há ainda riscos de contágios de DST, e maus-tratos, violência de rua e morte” (CBO, 2002).

As “competências pessoais” são:

“agir com honestidade, demonstrar paciência, planejar o futuro, prestar solidariedade aos companheiros, ouvir atentamente (saber ouvir), demonstrar capacidade lúdica, respeitar o silêncio do cliente, demonstrar capacidade de comunicação em língua estrangeira, demonstrar ética profissional, manter sigilo profissional, respeitar código de não cortejar companheiros de colegas de trabalho, proporcionar prazer, cuidar da higiene pessoal, conquistar o cliente, demonstrar sensualidade” (CBO, 2002).

Os seguintes “recursos de trabalho” são listados:

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“Acessórios, agenda, cartões de visita, celular, documentos de identificação, gel lubrificante à base de água, guarda-roupa de batalha, maquilagem, papel higiênico, preservativo masculino e feminino” (CBO, 2002).

Por fim, a caracterização das “áreas de atividades” de profissionais do sexo

realizada pela CBO (2002) é reproduzida integralmente a seguir:

“A - Batalhar Programa

Agendar a batalha, produzir-se visualmente, aguardar no ponto (esperar por quem não ficou de vir), seduzir com o olhar, abordar o cliente, encantar com a voz, seduzir com apelidos carinhosos, conquistar com o tato, envolver com o perfume, oferecer especialidades ao cliente, reconhecer o potencial do cliente, dançar para o cliente, dançar com o cliente, satisfazer o ego do cliente, elogiar o cliente. B - Minimizar as Vulnerabilidades

Negociar com o cliente o uso do preservativo, usar preservativos, passar gel lubrificante à base de água, participar de oficinas de sexo seguro, reconhecer doenças sexualmente transmissíveis (DST), fazer acompanhamento da saúde integral, realizar campanhas sobre os riscos de uso de hormônios, realizar campanha sobre os riscos de uso de silicone líquido, denunciar violência física, denunciar discriminação. C - Atender Clientes

Preparar o kit de trabalho (preservativo, acessórios, maquilagem), especificar tempo de trabalho, negociar serviços eróticos, negociar preço, realizar fantasias eróticas, cuidar da higiene pessoal do cliente, fazer streap-tease, fazer carícias, relaxar o cliente com massagens, representar papéis, inventar estórias, manter relações sexuais, dar conselhos a clientes com carências afetivas, prestar primeiros socorros, fazer compras para o garimpo (rancho), lavar roupas dos garimpeiros, cuidar dos enfermos no garimpo, posar para fotos. D - Acompanhar Clientes

Fazer companhia ao turista, fazer companhia a cliente solitário, acompanhar cliente em viagens, acompanhar cliente em festas e passeios, jantar com o cliente, pernoitar com o cliente. E - Administrar Orçamentos

Anotar receita diária, listar contas-a-pagar, pagar contas, contribuir com o INSS, contribuir com a receita familiar, separar parte da receita diária para poupança, aplicar dinheiro em banco, abrir conta poupança habitacional, investir em empreendimentos de complementação de renda, investir em pepitas de ouro. F - Promover a Organização da Categoria

Promover valorização profissional da categoria, ministrar cursos de auto-organização, apoiar a organização das associações, fazer campanha de filiação, realizar articulações políticas, combater a prostituição infanto-juvenil, participar de movimentos organizados, treinar multiplicadores de informação, distribuir preservativos, contribuir para a documentação histórica da prostituição, fomentar a educação geral, fomentar cursos profissionalizantes, reivindicar fundos para

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profissionalização, participar da organização de cursos de primeiros socorros, reivindicar cursos básicos de línguas estrangeiras, participar da organização de cursos de beleza e massagem. G - Realizar Ações Educativas no Campo da Sexualidade

Elaborar roteiro de teatro educativo, produzir espetáculos educativos, encenar espetáculos educativos, conceder entrevistas, aconselhar meninas de rua, ministrar palestras na rede de ensino, ministrar palestras nos cursos de formação e reciclagem de policiais. Z - Demonstrar Competências Pessoais

Demonstrar capacidade de persuasão, demonstrar capacidade de expressão gestual, demonstrar capacidade de realizar fantasias eróticas.”

Nota-se, no conjunto dessas definições, a incorporação da perspectiva das

próprias trabalhadoras e também de militantes do movimento organizado da categoria,

pontuando características bastante específicas do cotidiano desse universo de trabalho,

apresentadas em seu caráter profissional, sem desconsiderar a existência de fatores de

vulnerabilidade.

Diferentemente do que se viu nos séculos anteriores no Brasil, as prostitutas são

agora chamadas elas próprias a falarem sobre sua profissão. É interessante notar que

essa é uma característica geral da CBO (2002), indicando que atualmente quem define a

possibilidade de caracterização de uma atividade ocupacional enquanto tal não é se não

as próprias pessoas que a exercem, ou seja, os trabalhadores.

Constata-se que as profissionais do sexo incorporam a essa descrição da

profissão algumas das noções preconizadas pelo Ministério da Saúde (2002) em relação

à promoção de saúde dessa população, o que não seria possível sem o diálogo com a

categoria também promovido no campo da prevenção.

Ou seja, tanto no setor do trabalho quanto no da saúde, atuar na perspectiva da

promoção de direitos e de cidadania significa tomar o público em questão como um

conjunto de sujeitos ativos e responsáveis. No caso da prostituição, isso implica em

deixar de conceber as profissionais do sexo como vítimas de contingências sócio-

econômicas. Na ausência dessa explicação já pronta, o desafio passa a ser, então, como

não recorrer aos antigos preceitos morais e estigmatizá-las.

Nesse sentido, o paradigma proposto tanto pela CBO (2002), quanto pelo

Ministério da Saúde (2002), de dar voz aos próprios sujeitos, antes de rotulá-los a partir

de uma perspectiva externa, indica o grande salto realizado por alguns setores da

sociedade contemporânea na forma de abordar o tema. Nota-se que tal compreensão

fundamenta-se sobre uma análise crítica do percurso histórico e político através do qual

o fenômeno da prostituição pôde vir a ser encarado como um trabalho.

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Uma vez que se passa a entender a prostituição enquanto profissão e as

profissionais do sexo enquanto sujeitos de direitos, faz-se necessário desenvolver

propostas que possam resultar, a longo prazo, num maior acesso à condição de

cidadania e na redução do índice de vulnerabilidade da categoria.

A perspectiva da saúde do trabalhador, fruto das intersecções entre os campos do

trabalho e da saúde, revela um potencial interessante para agregar contribuições nessa

direção. Como não poderia deixar de ser, trata-se de um referencial que também se

baseia no protagonismo de seu público-alvo.

A construção dessa perspectiva exigiu igualmente a superação de paradigmas

reducionistas a respeito do fenômeno abordado, no caso, as ações de promoção de saúde

de trabalhadores. Esse processo será brevemente resgatado no próximo capítulo, no

intuito de melhor caracterizar a perspectiva da saúde do trabalhador. Em seguida,

pretende-se investigar a possibilidade de, a partir desse referencial, produzir novas

compreensões a respeito da prostituição, bem como das intervenções que podem ser

promovidas junto a essa população.

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2. AS INTERFACES ENTRE SAÚDE E TRABALHO

2.1. O MODELO MÉDICO

Dejours (1992) traça um breve percurso histórico do movimento pela saúde dos

trabalhadores, iniciando com um panorama do trabalho no mundo ocidental do século

XIX. Nessa época, confrontavam-se o capitalismo industrial e a luta operária pela

sobrevivência. Em concordância com Engel (1989), Dejours (1992) afirma que o

controle social, nesse período, era centrado na ação médica.

Dejours (1992) afirma que, ao longo do século XIX, o movimento operário

desenvolveu-se, exigindo uma ampla resposta do Estado, que resultou na conquista de

direitos trabalhistas, dentre eles a redução da jornada de trabalho, principal

reivindicação dos trabalhadores da época.

O autor parte então para a caracterização de um segundo capítulo dessa história,

que vai da I Guerra Mundial até o ano de 1968. Nesse período, foram

institucionalizadas, através da medicina do trabalho, medidas mais especificamente

voltadas à proteção da saúde dos trabalhadores, centradas sobre o adoecimento do

corpo.

Mendes & Dias (1991) relatam que a Organização Internacional do Trabalho

(OIT), criada em 1919, produziu o primeiro instrumento normativo internacional para

os “Serviços de Medicina do Trabalho”, no final da década de 50. A atividade médica

nos locais de trabalho caracterizou-se pelo estabelecimento de vínculos monocausais e

diretos entre uma determinada doença e um agente específico. Baseada no referencial

positivista da medicina científica, a área desenvolveu-se a serviço da produtividade,

focada na adaptação do trabalhador ao trabalho. Ou seja, o trabalhador foi tomado como

mero objeto de ações individualizantes.

Os autores demonstram que, ao final da II Guerra Mundial, a evolução da

tecnologia industrial e a sobrecarga dos trabalhadores havia resultado num alto de índice

de mortalidade em função de doenças e acidentes de trabalho. Nesse contexto, revelava-

se a inadequação do modelo da medicina do trabalho, uma vez que os agravos à saúde

dos trabalhadores geravam enormes custos aos empregadores, cada vez mais

insatisfeitos.

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2.2. O ENFOQUE AMBIENTAL

A partir da segunda metade do século XX, ganhou força a área da saúde

ocupacional, cujos estudos vinham se intensificando nas escolas de saúde pública,

paralelamente a “uma relativa desqualificação do enfoque médico e epidemiológico da

relação trabalho-saúde” (Mendes & Dias, 1991, p. 6). Tratava-se de uma vertente da

saúde ambiental centrada na intervenção sobre as condições de higiene e segurança,

através da atuação de equipes multiprofissionais.

Os autores relatam que, no Brasil, o desenvolvimento da saúde ocupacional deu-

se tardiamente, expressando-se em três vertentes: acadêmica, com destaque para a

Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo; institucional, representada

pela Fundacentro, fundação baseada nos moldes dos institutos de saúde ocupacional do

exterior; e legislativa, através da reforma na década de 70 da Consolidação das Leis do

Trabalho (CLT). Quanto a esse último ponto, Mendes & Dias (1991) ressaltam que

“apesar das mudanças estabelecidas na legislação trabalhista, foram mantidas na legislação previdenciária/acidentária as características básicas de uma prática medicalizada, de cunho individual, e voltada exclusivamente para os trabalhadores engajados no setor formal de trabalho” (p. 7).

De maneira geral, a saúde ocupacional vem complexificar o modelo médico

através da introdução do enfoque preventivo e passando a abarcar o coletivo dos

trabalhadores. Múltiplos fatores de risco são localizados no ambiente, apresentando uma

relação indireta com os processos de adoecimento. O campo da saúde mental começa aí

a delinear uma relação com o trabalho, a partir do conceito de estresse e da identificação

de transtornos mentais ligados aos processos produtivos.

Ainda assim, enquanto uma resposta científica às insuficiências da medicina do

trabalho, a saúde ocupacional mantém uma abordagem tecnicista das questões da saúde

no trabalho. Os trabalhadores permanecem como objetos das ações e não se concretiza

“o apelo à interdisciplinaridade: as atividades apenas se justapõem de maneira

desarticulada e são dificultadas pelas lutas corporativas” (Mendes & Dias, 1991, p. 7).

Segundo os autores, esse paradigma passou a ser questionado no final da década

de 60, em meio a um intenso movimento de transformação social, no qual se

questionavam os valores da sociedade capitalista e se criticavam as instituições médicas.

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Nesse contexto, surgiram propostas de inovação das práticas de assistência à saúde, em

direção à desmedicalização e com ênfase na necessidade de participação comunitária.

Ao longo desse percurso, ganhavam corpo as discussões teóricas a respeito da

determinação social dos processos de saúde-doença. O trabalho, enquanto organizador

da vida social, aparecia como elemento central dessa problemática. Sendo que, na

década de 70, os processos de automação e informatização da produção passavam a

afetar a saúde dos trabalhadores de novas maneiras, destacando a importância da

organização do trabalho na relação entre trabalho e saúde.

2.3. A SAÚDE DO TRABALHADOR

Mendes & Dias (1991) relatam que, em meio a essa renovação das formas de

compreensão dos processos de saúde e doença, bem como do papel aí exercido pelo

trabalho, ganha corpo a saúde do trabalhador – área interdisciplinar, vinculada ao campo

da saúde pública.

A participação dos trabalhadores na discussão das questões de saúde e segurança

no trabalho levara a um questionamento de procedimentos técnicos e éticos dos

profissionais dos serviços de saúde ocupacional. Esse movimento acarretou em

mudanças na legislação trabalhista, que foram alcançadas ao longo do tempo por

diversos países, reconhecendo enquanto direitos fundamentais dos trabalhadores: o

direito à informação sobre os riscos do trabalho, o direito à recusa ao trabalho em

condições de risco grave e o direito à participação nas negociações sobre as formas

assumidas pelos processos produtivos.

O surgimento, na rede pública de saúde, de programas de assistência à saúde dos

trabalhadores deu-se com a ativa participação dos próprios trabalhadores,

instrumentalizando suas reivindicações por melhorias nas condições de saúde. Esses

programas contavam com assessorias técnicas especializadas. No caso do Brasil,

somavam-se os apoios de uma assessoria sindical, formada por organizações

comprometidas com a luta dos trabalhadores, e de técnicos provenientes das

universidades, de institutos de pesquisa e da rede de serviços de saúde e fiscalização do

trabalho.

Desvelava-se, assim, a dimensão social e política do impacto do trabalho sobre a

saúde, na medida em que o trabalho passava a ser entendido como espaço de

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dominação, mas também de resistência e de constituição dos trabalhadores, os quais

vinham à tona enquanto sujeitos sociais, portadores de um saber a ser reconhecido.

A saúde do trabalhador, portanto, tem como objetivo conhecer os processos de

saúde e doença em sua relação com o trabalho, incorporando o conhecimento dos

trabalhadores, de forma a desenvolver “alternativas de intervenção que levem à

transformação em direção à apropriação, pelos trabalhadores, da dimensão humana do

trabalho” (Mendes & Dias, 1991, p. 11). É nesse sentido que, ao aspecto social da

determinação dos processos de saúde-doença, soma-se a dimensão da subjetividade.

No Brasil, a I Conferência Nacional de Saúde dos Trabalhadores deu-se em 1986

e, logo após, em 1990, a denominação “saúde do trabalhador” foi incorporada à nova

Lei Orgânica de Saúde, definindo as competências do SUS nesse campo.

A trajetória da saúde do trabalhador segue no sentido de superar as formas

fragmentadas de entender a realidade, buscando “integrar as dimensões do individual x

coletivo, do biológico x social, do técnico x político, do particular x geral” (Mendes &

Dias, 1991, p. 12).

2.4. A AMPLIAÇÃO DO CONCEITO DE SAÚDE

As noções defendidas pela área de saúde do trabalhador encontram-se em

sintonia com uma concepção de saúde que vem se consolidando nas últimas décadas no

campo da saúde pública. Essa concepção é explicitada por Dejours (1986) num texto

crítico à definição da Organização Mundial de Saúde (OMS), da saúde como “um

estado de completo bem-estar físico, mental e social” (OMS, 2006).

O autor considera que essa definição é bastante vaga e trabalha com a idéia de

que “esse perfeito e completo estado de bem-estar... não existe!” (Dejours, 1986, p. 8).

Trata-se de um estado ideal, que jamais é concretamente atingido, mas do qual se busca

uma aproximação, idéia que encontra sua raiz em Canguilhem (1995).

Dejours (1986) aponta que a definição da OMS refere-se a um estado de

estabilidade, enquanto que a saúde humana caracteriza-se por um organismo em

incessante movimento. Isso significa que o bem-estar físico traduz-se na possibilidade

de se regular as variações que aparecem no próprio corpo, tais como: dormir quando se

tem sono, repousar quando se está doente etc.

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Já no âmbito psíquico, considera que a saúde não equivale à ausência total da

angústia, mas a “tornar possível a luta contra ela” (Dejours, 1986, p. 8). Para o autor,

tudo aquilo que é excessivamente regular e repetitivo faz mal ao homem, que está

sempre em vias de transformar-se. A angústia é inerente a esse processo, cujo motor é o

desejo. O bem-estar psíquico requer “a liberdade que é deixada ao desejo de cada um na

organização de sua vida” (Dejours, 1986, p. 11).

Quanto ao aspecto social, Dejours (1986) aponta o trabalho enquanto “elemento

fundamental para a saúde” (p. 10). Diferencia dois aspectos: as condições de trabalho e

a organização do trabalho. O primeiro caracteriza as condições físico-químico-

biológicas do ambiente de trabalho, que podem atacar o corpo do trabalhador. Já o

segundo refere-se ao conteúdo e a divisão das tarefas, bem como às relações humanas,

reguladas pela divisão dos homens (hierarquias, formas de controle e de comando). Este

último ponto ganha destaque na concepção de saúde do autor, que entende por bem-

estar social ter meios de “agir individual e coletivamente sobre a organização do

trabalho” (p. 11).

Nesse sentido, é interessante destacar a seguinte constatação de Dejours (1999):

“Talvez o trabalho permita repatriar, na definição do conceito de saúde, a contribuição

específica das ciências não-médicas, especialmente das ciências humanas e sociais” (p.

86).

A saúde seria, então, de acordo com Dejours (1986), um processo em direção ao

bem-estar, a ser traçado de maneira pessoal por cada sujeito, de acordo com as

condições de seu contexto material, afetivo e social. Isso significa que cada um possui

um papel ativo e criativo na produção de sua saúde, entendida aí como algo mutável,

que abarca diversidades, variabilidades. Nessa concepção, portanto, não cabe um padrão

de saúde, que estaria mais próximo da repetição e, portanto, da doença.

Tendo em vista essa concepção, o autor desenvolverá diversos estudos,

aprofundando a compreensão dos impactos subjetivos gerados pelo trabalho. O

referencial construído a partir daí expõe alguns dos avanços produzidos na interseção

entre os campos da saúde do trabalhador e da saúde mental, mostrando-se de grande

interesse para a continuidade da discussão sobre as abordagens teórico-práticas em

torno da prostituição.

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2.5. SAÚDE DO TRABALHADOR E SAÚDE MENTAL

Dejours (1992) afirma que só a partir do fim da década de 60 é que a

problemática em torno da saúde do trabalhador passa a abarcar definitivamente a

dimensão da saúde mental, em função de conjunturas sócio-históricas – tais como o

avanço da psiquiatria e a extensão das práticas da psicologia ao âmbito das instituições

– permitindo relacionar o sofrimento mental ao trabalho.

Jaques (2003) acrescenta que, na área de psicologia, a recente releitura das

teorias clássicas sobre a constituição do psiquismo “vem reafirmando a importância do

trabalho na constituição do sujeito e na sua inserção social como estratégia de saúde e

como associado ao adoecimento mental” (p. 3).

Seligmann-Silva (1994) resgata o conteúdo de estudos de diferentes disciplinas e

campos do conhecimento que se debruçaram sobre as interações entre trabalho e saúde

mental. Dentre eles, destaca três correntes de pensamento científico, centradas cada qual

nos seguintes conceitos: estresse (quadro teórico proveniente da fisiologia e do

referencial cognitivo-comportamental); desgaste (noção fundamentada originalmente no

materialismo dialético, integrando contribuições da psicologia social e da psicanálise); e

sofrimento mental (referente à psicodinâmica do trabalho). Esta terceira corrente foi

desenvolvida por Dejours e será exposta mais detalhadamente a seguir.

Jaques (2003) refere-se, ainda, a uma quarta abordagem, baseada no modelo

epidemiológico ou diagnóstico, que prioriza a identificação de quadros

psicopatológicos relacionados ao trabalho.

2.6. A PSICODINÂMICA DO TRABALHO

Em sua introdução a um livro de Dejours, Seligmann-Silva (1994) descreve o

percurso da escola dejouriana. Fundada na década de 80 por Christophe Dejours,

médico do trabalho, psiquiatra e psicanalista, essa linha de pensamento foi constituída

por profissionais de diferentes áreas, articulando diversos espaços de pesquisa,

inicialmente na França e logo se expandindo para outros países.

Nomeada inicialmente “psicopatologia do trabalho”, a corrente é apresentada

por Dejours (1999) como uma disciplina emergente no campo das ciências humanas.

Fundada ao término da II Guerra Mundial, por pesquisadores ao redor de Le Guillant,

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tinha “por objeto específico a análise clínica e teórica da patologia mental devida ao

trabalho” (Dejours, 1999, p. 16). O autor comenta, contudo, que essa disciplina estaria

agora em uma nova etapa.

De fato, na década de 90, nota-se uma ampliação de enfoque nos textos do autor,

refletida na nova denominação, “psicodinâmica do trabalho”. Segundo Seligmann-Silva

(1994), essa passagem envolve a busca por um olhar cada vez mais abrangente. Dejours

(1999) define a psicodinâmica do trabalho como uma abordagem compreensiva, que

procura interpretar o significado das ações no trabalho. E afirma que a psicopatologia do

trabalho tornou-se “um setor da psicodinâmica do trabalho” (p. 120). Isso indica um

movimento em que a sistematização nosológica deixa de ser a meta principal, passando

a constituir apenas uma parte da busca pela compreensão das dinâmicas psíquicas que

se desenrolam no âmbito do trabalho.

Seligmann-Silva (1994) diz que o autor, “embora psicanalista, desafia a

psicanálise a levar adequadamente em conta os fenômenos do mundo do trabalho que

impactam sobre a dinâmica intrapsíquica e sobre a intersubjetividade” (p. 14). Dejours

(1999), por sua vez, deixa claro que não dialoga apenas com a psicanálise, mas também

com os referenciais da fenomenologia alemã, sociologia, antropologia, lingüística e

ergonomia.

2.6.1. O SOFRIMENTO MENTAL NO TRABALHO

Ao longo de sua obra, o autor trabalha o conceito de sofrimento mental,

tomando-o como algo que não equivale à doença mental, nem à ausência dela, mas que

se localiza entre esses dois extremos. Dejours (1999) define que

“o sofrimento é uma experiência vivenciada, ou seja, é um estado mental que implica um movimento reflexivo da pessoa sobre seu ‘estar no mundo’ (...). A vivência sempre tem uma parte inapreensível, desconhecida e até mesmo, não-representável, mas, em condições muito particulares, pode ser analisada” (p. 19).

É, então, sobre a vivência do sofrimento dos trabalhadores que o autor irá

debruçar-se, buscando construir metodologias para instaurar as condições que permitam

sua análise, o que será descrito posteriormente.

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Deve-se ressaltar que, nessa concepção, o trabalho não é necessariamente

patogênico, no sentido de agravar o sofrimento, podendo também ser estruturante,

quando contribui para a transformação do sofrimento em prazer. Dejours (1992) afirma

que o trabalho pode ser favorável ao comportamento livre do trabalhador (levando em

conta seu desejo, permitindo-o transformar a realidade) ou induzir ao comportamento

estereotipado (através da ocultação e da coerção do desejo).

Da mesma forma, as exigências físicas, psicomotoras, psicossensoriais e

intelectuais da organização do trabalho por vezes são incompatíveis com as

características do trabalhador, o qual poderá sentir-se desconfortável, sobrecarregado

ou, ainda, sem desafios que o estimulem o suficiente. E, uma vez que “a vivência é

sempre indissociável da corporalidade” (Dejours, 1999, p. 19), a inadequação do corpo

também é fonte de sofrimento e insatisfação, particularmente quando não é deixada ao

trabalhador a possibilidade de modificar o ritmo e o modo operatório de execução da

tarefa.

Ou seja, quando há possibilidade de adaptação do trabalho ao trabalhador, a suas

potencialidades, necessidades e desejos, há menor frustração e insatisfação. Nota-se a

coerência dessa formulação com a concepção de saúde exposta acima. O autor chega a

afirmar que “mesmo as más condições de trabalho são, no conjunto, menos temíveis do

que uma organização do trabalho rígida e imutável” (Dejours, 1992, p. 52).

Dejours (1992) complexifica a questão ao acrescentar que, quanto menor o

conteúdo significativo do trabalho, maior o sofrimento do trabalhador. Aprofundando

essa discussão, Dejours (1999) afirma que sempre há sofrimento no trabalho,

considerando que é possível transformá-lo, mas não eliminá-lo. Isso porque o

comprometimento com o trabalho é também da ordem simbólica, na medida em que

envolve uma expectativa de auto-realização, bem como uma luta pela conquista da

identidade no campo social.

O autor entende que a elaboração do sofrimento seria possibilitada pela

construção de um sentido para essa vivência, o que implicaria num reconhecimento

social da contribuição do trabalhador através de seu trabalho. Esse reconhecimento do

fazer cotidiano, a partir do olhar do outro, dependeria da qualidade das relações

intersubjetivas. O sofrimento, então, poderia tornar-se criador.

Dejours (1999) faz uso da diferenciação entre o trabalho prescrito (aquele que é

idealizado e exigido pelas instâncias de chefia) e o trabalho real (aquele que se dá

efetivamente). O trabalho real abarca a dimensão do imprevisto, do inesperado,

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exigindo decisões ativas dos trabalhadores, resultando em soluções ou “quebra-galhos”.

Esses são, segundo o autor, ações criativas para dar conta da tarefa, as quais exigem

cooperação.

A cooperação, por sua vez, pressupõe a visibilidade dos “quebra-galhos” entre

os membros do coletivo, através da atividade de discutir, dialogar, entrar em conflitos e

acordos, negociar. Esse comprometimento e esforço constituem também aspectos do

sofrimento e, como tal, exigem retribuição. Para seu reconhecimento, no entanto, seria

preciso assumir coletivamente as falhas e contradições presentes na organização do

trabalho, bem como a engenhosidade necessária para enfrentá-las, algo que não se dá

espontaneamente.

Dejours (1992) entende que, se não há retribuição suficiente para o sofrimento

no espaço das relações sociais, esse sofrimento não se faz enunciável. Na medida em

que permanece na ausência de um sentido, o sofrimento é experimentado como absurdo,

condenando o sujeito à repetição (Dejours, 1999).

A partir daí, a questão que se coloca para o autor é que o sofrimento, apesar de

vivenciado, não é reconhecido inclusive pelos próprios trabalhadores. Ou seja, a relação

com o trabalho carece de um sentido subjetivo. Dejours (1992) investiga, então, os

mecanismos de defesa que permitem aos trabalhadores conviver com esse sofrimento.

2.6.2. ESTRATÉGIAS COLETIVAS DE DEFESA: A EXPLORAÇÃO DO

SOFRIMENTO

Para além dos mecanismos clássicos descritos pela psicanálise, o autor depara-se

com mecanismos coletivos de defesa, marcados pelas características específicas de cada

profissão. Quando a estratégia coletiva de defesa torna-se exageradamente enrijecida

(isto é, quando adquire caráter obrigatório entre os trabalhadores, gerando a exclusão

daqueles que dela não partilham), passa a constituir o que Dejours (1992) denomina

“ideologia defensiva”. Os exemplos a seguir ilustram o que o autor entende por esse

fenômeno.

Dejours (1992) define o subemprego como aquele que propicia ao trabalhador

apenas condições muito precárias de sobrevivência, com baixas taxas de condições

sanitárias, alimentação, renda e escolarização. Sentimentos de indignidade e

desqualificação permeiam esse tipo de trabalho, segundo o autor. A ideologia coletiva

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de defesa nesse caso é a da vergonha, isto é, da vivência da doença enquanto culpa e

vergonha. Essa seria uma defesa contra a ansiedade de estar doente, num corpo

incapacitado – ansiedade referente a riscos reais: a fome e a miséria. Sendo assim,

apenas o corpo que trabalha é aceito. A ausência de trabalho corresponde à doença,

encarada como algo a ser evitado. Sarar equivale a não sofrer; o corpo é silenciado.

Calar sobre o sofrimento leva à recusa de cuidados, portanto, de qualquer medida

médico-sanitária ou de higiene. As saídas que restam são o alcoolismo, a violência, a

loucura.

Um segundo exemplo trata de situações nas quais está em jogo a integridade

física do trabalhador, diante da prevenção incompleta dos riscos envolvidos no trabalho,

seja por limitação dos investimentos necessários ou por desconhecimento. Nesse caso,

está presente o medo, reação que o autor caracteriza como relacionada a um aspecto

concreto da realidade. Porém, na medida em que “a avaliação correta do risco impediria

completamente o trabalho” (Dejours, 1992, p. 70), o medo passa a ser negado e

vivenciado como a causa de inadaptação profissional.

Trata-se da luta contra o medo, contra a ansiedade gerada pelo perigo. Apesar da

natureza coletiva e material do risco, esse será assumido individual e psicologicamente

por todos os trabalhadores.

Segundo Dejours (1992), nessas situações os sistemas defensivos serão

estruturados de acordo com a natureza do risco, expressando-se, por exemplo, na

resistência às normas de segurança, na sensação de prazer diante do perigo, na atitude

de desprezo pelo risco. Isso é possível, por exemplo, através da estratégia, observada

pelo autor, na qual os trabalhadores recriam a situação de risco fora do expediente, o

que os permite experimentar um domínio do perigo, como se a instauração do risco

dependesse de si mesmos. A ideologia garante a rápida exclusão do medroso (que, no

caso, corresponde ao trabalhador improdutivo), funcionando inclusive como uma forma

de seleção.

Essa estratégia requer alguns sacrifícios, pois eventualmente alguém sofrerá o

acidente que se pretende banalizar. Para tais mártires, constrói-se a explicação de que o

pior só aconteceu com aquele que quis, procurou, exagerou.

As campanhas de prevenção, nesse contexto, encontram resistência, uma vez que

os trabalhadores não querem ser lembrados daquilo que se esforçam diariamente para

esquecer: que o perigo existe mesmo.

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Dejours (1992) lembra que a ansiedade também pode ser gerada por outros tipos

de risco, como: o de não conseguir acompanhar exigências de rendimento ou ritmo de

trabalho; ou, ainda, riscos presentes nas relações humanas (discriminação, suspeita,

agressividade, violência, desorganização dos investimentos afetivos).

Como demonstrado por Dejours (1992), quando a estratégia coletiva torna-se

ideologia defensiva, a violência é inevitável e os processos são perversos. Essa

“sintomatologia” da profissão disfarça o sofrimento. No entanto, cumpre ainda outra

função: gera maior coesão e produtividade, o que caracteriza os sistemas defensivos

como uma forma de exploração da ansiedade, do sofrimento mental. Esse é usado como

um intermediário da submissão do corpo, portanto, constitui um instrumento primordial

da organização do trabalho e da dominação.

Trata-se de um condicionamento arduamente adquirido, que envolve o homem

como um todo. Nesse sentido, o autor afirma que a cisão entre tempo livre e tempo de

trabalho é ilusória, havendo uma contaminação involuntária da vida mental que não se

restringe ao contexto de trabalho. Inclusive, a ausência dessa divisão dificulta a

identificação do trabalho como um componente da etiologia do sofrimento, podendo

levar à psicologização dos problemas.

Daí a ambigüidade das defesas, segundo Dejours (1999): se por um lado não é

condenável a tentativa de atenuar o sofrimento, afastando-o da consciência, por outro

esse processo é responsável pela naturalização dos problemas, permitindo sua tolerância

social. Trata-se de um mecanismo de alienação, através do qual os trabalhadores

tornam-se prisioneiros, perdendo a capacidade de pensar a relação com o próprio

trabalho. Essa dinâmica garante sua invisibilidade, na medida em que o trabalhador

confunde as ações defensivas com seu próprio desejo.

2.6.3. PROPOSTA METODOLÓGICA DA PSICODINÂMICA DO TRABALHO

A partir dessa concepção teórica, a psicodinâmica do trabalho propõe

metodologias de intervenção, em direção à promoção da saúde do trabalhador. Dejours

(1992) define como objetivo dessa ação desenvolver formas de enfrentar o sofrimento, a

serem construídas pelos próprios sujeitos, em detrimento da orientação de técnicos

pautada por um ideal. Ou seja, não se pretende tratar os trabalhadores e sim ajudá-los a

pensar sua relação com a atividade, potencializando a transformação do trabalho.

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Dejours, Abdoucheli & Jayet (1994) detalham que o intuito é mobilizar os recursos

analíticos (cognitivos e afetivos) do trabalhador, apostando em sua própria capacidade

de invenção para elaborar a vivência do sofrimento, permitindo-o perceber o que nessa

organização do trabalho lhe é fonte de sofrimento ou de prazer. Diferencia-se, assim, da

abordagem tradicional de prevenção que, segundo os autores, apóia-se no caráter

técnico, em busca de eliminar os riscos do trabalho. Ao contrário disso, a meta dos

autores é incentivar um processo de reapropriação das vivências e dos significados

como meio de colocar o trabalho a serviço da auto-realização e da produção de saúde

(Dejours, 1999).

Para Dejours (1992), a evolução da relação entre trabalho e saúde mental nasce

da possibilidade de um duplo movimento: a transformação da organização do trabalho e

a dissolução dos sistemas defensivos. Isto é, há uma expectativa de que os trabalhadores

iniciem um processo de desconstrução dos mecanismos coletivos de defesa, na medida

em que se permitam e lhes seja permitido experimentar novas formas de relação com o

trabalho.

Já no que se refere às estratégias para atingir tais metas, Dejours (1992) propõe

um trabalho de escuta e interpretação, atento à relação entre organização do trabalho,

sofrimento e prazer. O foco é, assim, a palavra, as formas de expressão e representação

da vivência subjetiva, do afeto, da experiência concreta e coletiva; considerando que

essa escuta é atravessada necessariamente pela subjetividade do interlocutor.

Nesse sentido, Dejours (1999) indica a constituição de um espaço de discussão

como a principal estratégia para trabalhar a qualidade das relações, isto é, as condições

de intercompreensão a respeito das questões do trabalho (o que difere, portanto, da

busca por boas relações). Os argumentos que podem aparecer nesse espaço de debate

não serão apenas técnicos, mas podem ser também relacionados a crenças, valores,

desejos.

Para Dejours (1999), “a convivência não é um efeito marginal da organização do

trabalho, mas um elemento central do bom funcionamento da organização do trabalho”

(pp. 43-44). A comunicação é uma das condições da convivência e sobre esta interfere o

espaço de discussão. Via de regra, esse espaço existe apenas informalmente. O que o

autor se pergunta é como a discussão pode abarcar a palavra autêntica, que leve à

possibilidade de transformação da organização do trabalho.

O espaço de discussão seria então aquele onde é possível passar do não dito, do

silêncio e do segredo à formulação ou à enunciação, pois,

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“quando as pessoas não se compreendem mais, quando não conseguem mais se comunicar e construir uma inteligibilidade comum das relações de trabalho, elas não ficam só decepcionadas: elas se defendem” (Dejours, 1999, p. 171).

Segundo o autor, o espaço de fala e escuta democrática possibilita a produção de

conhecimento e a qualidade de vida no trabalho, algo a ser construído pelos próprios

trabalhadores.

Por fim, Dejours (1999) define diferentes etapas de uma metodologia de

pesquisa em psicodinâmica do trabalho. Contudo, nota-se que as formas de investigação

sugeridas a partir dessa concepção coincidem sempre com uma intervenção

propriamente dita.

A primeira fase corresponde à análise da demanda. O autor coloca que é

necessário articular três planos nas ações de atenção à saúde no trabalho: o da produção

e eficácia, o das normas e valores e o da saúde mental e física. Tendo isso em vista,

coloca-se uma questão em torno de quem formula a demanda. Se a demanda provém

dos próprios trabalhadores, o processo é facilitado, considerando-se que sua

participação será fundamental em todas as etapas.

Dejours (1999) entende que a pesquisa se inicia a partir de uma queixa. No

entanto, essa queixa inicial deve ser elaborada e transformada ao longo do processo

investigativo, chegando a constituir uma demanda não por soluções, mas por elaboração

das problemáticas visadas, uma vez que as soluções só poderão ser encontradas pelos

próprios trabalhadores. Nota-se que a demanda a que se refere o autor não diz respeito

apenas à pesquisa, mas à sua dimensão interventiva. O autor ressalta que a demanda só

poderá ser trabalhada depois de analisado o sofrimento e o peso das estratégias de

defesa utilizadas.

Dejours, Abdoucheli & Jayet (1994) caracterizam essa etapa de análise da

demanda como uma pré-pesquisa. Especificam que se trata de um “processo de

formação da demanda social” (Dejours, Abdoucheli & Jayet, 1994, p. 81), isto é, um

processo em que a demanda, inicialmente pertencente a um determinado grupo ou

indivíduo, será socializada, adquirindo uma formulação coletiva. Esse processo é

sustentado pela própria enunciação, que permite a validação dos valores sobre o

sofrimento, o prazer, o sentido do trabalho, as formas de contribuição e de retribuição.

Nesse momento, os autores consideram que cabe aos pesquisadores trazerem a

problemática da relação entre saúde mental e trabalho, tornando a demanda aceitável e

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caminhando em direção à sua coletivização. Pois, assim como a organização do trabalho

não é individual, o sofrimento que dela resulta também diz respeito ao coletivo. A ação

terapêutica é justamente estimular a dinâmica intersubjetiva de transformação do

sofrimento em sentido e, eventualmente, em prazer, a partir da reapropriação ativa do

vivido. A questão é como obter um enquadre que assegure a possibilidade de elaboração

coletiva do sofrimento.

Nesse sentido, a garantia da autenticidade é trabalhada no que Dejours (1999)

apresenta como uma segunda etapa. Essa autenticidade refere-se à palavra, à construção

de inteligibilidade e comunicação:

“Falar e ser ouvido parece ser o modo mais poderoso de pensar e, portanto, de refletir sobre a própria experiência, desde que se esteja comprometido com uma relação dialógica, intersubjetiva, na qual se acredita que o outro esteja de fato tentando compreender. É ao explicar a outrem o meu sofrimento, a minha relação com o trabalho, que eu, perplexo, me ouço dizer coisas que eu não sabia que sabia, até tê-las dito. É esse o milagre da palavra: fazer nascer coisas que não existiam antes de terem sido ditas” (Dejours, 1999, p. 176).

A relação de eqüidade entre quem fala e quem escuta é, então, imprescindível.

Isso significa que os pesquisadores devem assumir seus próprios riscos nesse processo,

implicando-se com a posterior restituição dos resultados da pesquisa aos sujeitos.

Esse enquadre permitirá a ação investigativa, cujo objeto são os vínculos da

organização do trabalho com o sofrimento, perceptíveis nos “quebra-galhos”, defesas,

uso das defesas etc. (Dejours, Abdoucheli & Jayet, 1994).

A restituição constitui a fase final, segundo Dejours, Abdoucheli & Jayet (1994).

Essa deve ser uma devolutiva aos participantes, tanto oral quanto escrita, permitindo a

discussão e modificação junto aos trabalhadores das constatações formuladas,

assegurando sua validação subjetiva (que os sujeitos se reconheçam) e social (que haja

consenso sobre o relatório), servindo de estímulo a novos debates.

Em meio à perspectiva da saúde do trabalhador, o referencial da psicodinâmica

do trabalho permite o levantamento de questões fundamentais para se avançar na

compreensão da prostituição enquanto trabalho. Quais são os aspectos de sofrimento

vivenciados no exercício cotidiano da profissão? De que maneira as profissionais do

sexo lidam com esse sofrimento? Qual a relevância de uma intervenção desenvolvida a

partir desse referencial visando à promoção de saúde da categoria? Esta pesquisa

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procura caminhar no sentido de responder a tais questões, considerando que não se

pretende esgotá-las, mas sim abrir novas vias a serem exploradas nessa discussão.

Além disso, a metodologia proposta por Dejours parece fornecer parâmetros

interessantes para se avaliar uma intervenção em saúde do trabalhador com profissionais

do sexo. Embora a intervenção relatada adiante não tenha sido concebida integralmente

segundo o modelo dejouriano, ela comporta elementos da perspectiva da saúde do

trabalhador, além de estar pautada pela visão contemporânea a respeito da prostituição,

conforme descrita no capítulo 1. Tendo isso em vista, o referencial dejouriano irá guiar

a análise apresentada a seguir.

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3. OBJETIVOS

Considerando a dificuldade de se encontrar pesquisas na perspectiva de saúde do

trabalhador voltadas ao tema da prostituição, pretendeu-se levantar possíveis

contribuições desse campo para a reflexão em torno de ações de promoção de saúde e

de cidadania direcionadas à categoria de profissionais do sexo.

O objetivo específico da pesquisa foi compreender se, e de que maneira, uma

intervenção com profissionais do sexo, orientada pela perspectiva da saúde do

trabalhador permite a identificação de aspectos relacionados ao impacto subjetivo do

exercício da prostituição. Além disso, buscou-se investigar quais os limites e as

possibilidades oferecidos pela proposta dejouriana em relação à construção de um

modelo de intervenção junto a profissionais do sexo que vise promover o protagonismo

dessas trabalhadoras no cuidado à sua saúde.

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4. METODOLOGIA

Como estratégia metodológica, avaliou-se uma experiência de intervenção em

saúde do trabalhador com profissionais do sexo, referente a um estágio realizado entre

os meses de setembro e novembro de 2006 através do “Núcleo de Organizações e

Trabalho” da Faculdade de Psicologia da PUC-SP.

A intervenção consistiu na realização de 10 encontros com profissionais do sexo,

em seu local de trabalho – um bordel localizado no Largo de Pinheiros, na cidade de

São Paulo. Produziu-se um relato detalhado dessa intervenção, que foi analisado a partir

do referencial dejouriano.

No que se refere aos aspectos éticos, foi mantido o sigilo em relação à identidade

das participantes. Ou seja, nenhuma informação foi utilizada que pudesse levar à sua

identificação. Esse quesito foi, inclusive, favorecido pelo próprio contexto do objeto de

estudo, na medida em que se tratava de uma realidade onde a preservação do anonimato

era tida como uma máxima: as profissionais do sexo utilizam pseudônimos durante o

trabalho (questão esta a ser discutida na própria análise dos resultados). Ainda assim,

esses nomes foram substituídos por nomes fictícios, possibilitando fazer referência às

participantes.

Além disso, deve-se considerar que, na região do Largo de Pinheiros, há

atualmente 74 bordéis, segundo dado obtido durante a intervenção, o que permite

calcular um número mínimo de 800 pessoas circulando em torno desse negócio.

Entende-se que isso garante a possibilidade de indicação da região geográfica sem que

haja comprometimento ético da pesquisa.

Os resultados serão discutidos em seus dois planos concomitantes, de

intervenção e investigação. Quanto ao plano investigativo, serão considerados os

diversos aspectos que apontam para a relação entre organização do trabalho e

sofrimento, retomando algumas das categorias analisadas pelo autor e explicitadas no

capítulo 2.

Já quanto ao plano da intervenção propriamente, será realizada uma análise

aprofundada sobre a questão da demanda, o que Dejours (1999) propõe como um

aspecto fundamental a ser analisado. Além disso, durante toda a intervenção, contou-se

paralelamente com supervisões semanais na universidade, as quais não serão detalhadas

neste relato, mas suas reflexões serão constantemente resgatadas, buscando revelar as

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compreensões construídas pelas estagiárias nesse processo e, portanto, em que medida

sua postura como coordenadoras convocou as participantes enquanto trabalhadoras,

cidadãs, sujeitos singulares, ativos e desejantes.

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5. RESULTADOS E DISCUSSÃO

Durante o primeiro semestre de 2006, uma das estagiárias havia tido contato

com a população estudada, através do estágio que realizou no Centro de Orientação e

Aconselhamento Sorológico (COAS), localizado no Centro de Saúde Estadual de

Pinheiros, vinculado ao Programa Estadual de DST/Aids de São Paulo e à Secretaria

Estadual de Saúde de São Paulo. A estagiária era incumbida de realizar os

aconselhamentos pré e pós a testagem de infecção pelo vírus HIV.

Segundo o Ministério da Saúde (2002), o aconselhamento tornou-se uma prática no

contexto do diagnóstico sorológico, visando produzir no usuário do serviço uma

reflexão sobre o sentido desse teste em sua vida, tornando-o implicado com as possíveis

conseqüências de seu resultado. No caso de resultado negativo, pretende-se que o

sujeito possa apropriar-se dos riscos presentes em seu cotidiano e, no caso de resultado

positivo, que possa identificar condições psíquicas e sociais para se proteger ou lidar

com sua soropositividade.

Entre as pessoas que buscavam o serviço de testagem do COAS, havia muitas

profissionais do sexo, uma vez que elas têm o direito à realização periódica de testagens

sorológicas, bem como ao recebimento mensal de certa quantidade de preservativos. A

estagiária notou que, durante as sessões de aconselhamento dessas trabalhadoras,

ocorria o levantamento de inúmeros temas ligados ao exercício de sua ocupação.

No segundo semestre, ambas as estagiárias estavam matriculadas no núcleo de

“Organização e Trabalho” da Faculdade de Psicologia. Os supervisores desse núcleo

abriram a possibilidade de os próprios estagiários planejarem atividades de estágio

segundo seu interesse, contanto que voltadas ao tema do trabalho. A estagiária que

havia trabalhado no COAS formulou, então, a proposta de realizar uma intervenção com

profissionais do sexo, com o objetivo de oferecer um espaço de escuta àquelas

trabalhadoras que permitisse aprofundar a discussão dos aspectos de seu cotidiano de

trabalho, em relação com seu processo de saúde-doença.

Essa intervenção foi construída com a participação das estagiárias1 e de dois

supervisores2. Os objetivos e a metodologia de trabalho foram definidos a partir da

1 Maria Altenfelder Santos e Ana Luíza S. Fanganiello. 2 Renata Paparelli e Fábio de Oliveira.

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perspectiva da saúde do trabalhador e serão comentados a seguir, à luz dos pressupostos

teóricos da psicodinâmica do trabalho.

O objetivo geral da intervenção foi a promoção de saúde de profissionais do

sexo. De acordo com a discussão realizada no capítulo 1, adotou-se a concepção da

prostituição como um trabalho. Partindo da perspectiva da saúde do trabalhador,

pretendia-se potencializar as profissionais do sexo para o enfrentamento coletivo das

dificuldades vivenciadas no cotidiano de trabalho.

Em conformidade com a abordagem dejouriana, buscava-se auxiliar essas

trabalhadoras a apropriarem-se das vivências e significados cotidianos, elaborando os

aspectos de sofrimento e os mecanismos de defesa construídos, possivelmente levando-

as a transformar sua relação com o trabalho.

Ao mesmo tempo, entendia-se essa intervenção como um instrumento para

conhecer esse universo de trabalho e, assim, reunir novos elementos para aprimorar as

estratégias de promoção de saúde utilizadas, uma vez que, na perspectiva adotada, ação

e investigação devem ocorrer concomitantemente.

Porém, ainda que consistissem em dois planos paralelos da intervenção, a

diferenciação entre um e outro acabaria mostrando-se fundamental ao longo do

processo, como se verá adiante. Isto é, seria revelada a necessidade de insistir-se no

caráter interventivo da ação realizada, mais próximo a uma prestação de serviço do que

a uma pesquisa propriamente dita. A caracterização da proposta para as profissionais do

sexo acabaria dando-se por oposição a um modelo mais tradicional de pesquisa, no qual

o pesquisador seria um mero entrevistador ou coletor de dados, idéia que parecia

predominar no imaginário das participantes.

A estratégia planejada foi a de instaurar um espaço de discussão e reflexão entre

as profissionais do sexo sobre os temas relacionados ao trabalho e à saúde. Essa

metodologia corresponde à proposta dejouriana apresentada no capítulo 2. Sugeria-se o

enquadre grupal para que as profissionais do sexo falassem sobre o seu trabalho,

buscando produzir uma intercompreensão entre as trabalhadoras a respeito das vivências

cotidianas. Caberia às estagiárias a coordenação do grupo, realizando a função de escuta

e interpretação das falas.

O público-alvo, a princípio, seria as profissionais do sexo usuárias do COAS de

Pinheiros, a serem convidadas pelas estagiárias na própria instituição. O local onde os

encontros seriam realizados não estava definido até esse momento. Porém, quando a

proposta da intervenção foi apresentada a uma usuária do COAS, dona de um bordel

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localizado na região do Largo da Batata, ela se interessou e levantou a possibilidade de

fazer o grupo em seu próprio local de trabalho. As estagiárias concordaram e a

intervenção ocorreu nesse bordel.

A proposta de realização dos encontros no local de trabalho vinha justamente ao

encontro da concepção dejouriana do espaço de discussão. As questões encontradas ao

se colocar em prática esse modelo de intervenção serão discutidas a seguir, em meio à

apresentação e análise dos resultados obtidos.

Em torno de três meses, foram realizados dez encontros semanais, de

aproximadamente uma hora de duração cada, com as profissionais do sexo no bordel.

No início da intervenção, havia 12 trabalhadoras na casa, sendo que oito delas moravam

no próprio bordel. O fato de residirem no local de trabalho já diz de uma dificuldade de

separação, para a maioria das trabalhadoras, entre o espaço do trabalho e o do não

trabalho, sugerindo um grande impacto da ocupação sobre os demais aspectos da vida

das profissionais do sexo.

O primeiro encontro realizado no bordel foi destinado a uma conversa prévia

com a cafetina, com o objetivo de definir um mínimo contrato para a intervenção. As

estagiárias tiveram suas primeiras impressões do local.

A entrada do bordel é por uma pequena porta, que quase passa despercebida por

quem anda na calçada. Essa porta dá acesso a uma escada no meio da qual há um portão

de grades com cadeado. Desde a entrada, nota-se um forte cheiro de desinfetante e a

pouca luminosidade. Ao final da escada, localiza-se o salão, maior ambiente do local,

contando com um bar, um pequeno palco, uma mesa de sinuca, um sofá, diversas

mesinhas rodeadas de cadeiras, uma máquina caça-níqueis, um jukebox e, fixadas ao

alto, duas televisões, freqüentemente transmitindo vídeos pornográficos. Desse salão,

um corredor dá acesso a quatro quartos e desemboca numa grande sala sem janelas,

iluminada por luz verde, à direita da qual fica a cozinha. Em frente aos quartos, há um

pequeno escritório. Nota-se que a decoração do local varia de pôsteres de mulheres nuas

a escritos ou imagens religiosas.

Os quartos servem tanto para o trabalho quanto para o descanso, novamente

indicando a indiferenciação entre esses espaços. As divisórias entre os quartos são

vazadas ao alto, caracterizando uma preocupação com a segurança, em detrimento da

privacidade. Um mesmo quarto é utilizado para inúmeros programas numa mesma

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noite, o que aponta para as precárias condições de higiene do local, ainda que não tenha

sido explicitada a freqüência com que os lençóis são trocados.

A presença concomitante do sexo, produto a ser vendido, com a moral religiosa,

aparecerá em diversos momentos da intervenção, caracterizando um dos aspectos sob os

quais a ambigüidade se faz presente, marcando fortemente o exercício dessa profissão.

Nesse encontro, foi feito um relato, por parte da cafetina, de uma situação que

havia ocorrido no bordel alguns anos antes e que voltaria a ser citada outras vezes: uma

equipe de pesquisadores realizou entrevistas com todas as trabalhadoras do local,

ofertando um valor em dinheiro em troca da adesão das entrevistadas. A equipe

comprometeu-se a voltar ao local para compartilhar os resultados obtidos, no entanto,

jamais retornou.

Posteriormente, as estagiárias viriam a questionar-se sobre o sentido da repetição

desse relato. Que mensagem buscava-se transmitir? Diante da nítida falta de ética por

parte dos “pesquisadores” citados no relato, a cafetina parecia conferir se as estagiárias

não viriam para reproduzir esse modelo de intervenção. E aumentava o desafio

sugerindo que elas deveriam estar preparadas para a possibilidade de serem confundidas

com prostitutas ao serem vistas saindo do bordel. As profissionais do sexo pareciam

duvidar da possibilidade de um interesse genuíno das estagiárias por aquela realidade,

questionando até que ponto seriam capazes de sustentar esse contato.

A dificuldade de encaixar um horário naquela rotina de trabalho para a

realização do grupo chamou a atenção das estagiárias. A cafetina apontou que as

profissionais do sexo iniciavam sua jornada de trabalho às 18 horas e encerravam com o

último cliente, geralmente após as 4 horas da madrugada. Considerando que se seguia o

período de sono, restava-lhes pouco tempo a partir da hora em que acordavam para se

arrumarem e iniciarem um novo dia de trabalho. Assim, o grupo poderia ocorrer apenas

nesse intervalo, no final da tarde. Ou seja, além da jornada no período noturno, o que

implica em diversas adaptações das trabalhadoras a um fuso-horário contrário ao da

maioria da população, nota-se a ausência de tempo ocioso.

Propondo a duração mínima de uma hora para os encontros, as estagiárias

experimentariam pequenas variações no enquadre ao longo da intervenção, buscando

adequar-se àquele contexto. Os dois encontros seguintes ocorreram às sextas-feiras, às

16 horas. O dia e o horário foram ofertados pelas estagiárias no intuito de abarcar as

restritas opções das trabalhadoras e evitar que a reunião adentrasse o período de

trabalho.

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O segundo encontro contou com a presença da cafetina e de três profissionais do

sexo, as quais serão chamadas de Cláudia, Luzia e Priscila. Outra profissional do sexo,

Márcia, não quis participar do grupo, disse que estava “de ressaca”.

Ao chegarem, as estagiárias entregaram à cafetina uma cópia do projeto de

intervenção que haviam escrito. A cafetina comentou que, após o contato no COAS,

duvidou que a estagiária fosse de fato levar o projeto adiante, mas agora tinha sentido

“firmeza” e estava “gostando de ver”. Novamente, explicitava-se a desconfiança em

relação à intenção e à disponibilidade das estagiárias de dedicarem-se às profissionais

do sexo. Inclusive, o episódio da equipe de pesquisadores que pagou para entrevistar as

profissionais do sexo seria novamente citado durante esse encontro.

Percebeu-se que a compreensão imediata das profissionais do sexo a respeito da

intervenção dava-se pela associação com o universo acadêmico, isto é, a pesquisa. Ou

seja, embora as estagiárias provavelmente não aparentassem estar motivadas por uma

mera curiosidade sobre a dimensão exótica daquele universo, ainda assim sua presença

parecia ser entendida como uma busca por informações. Ao longo da intervenção, foi

muito difícil romper com esse estereótipo em torno da imagem do pesquisador, bem

como esclarecer que o principal intuito das estagiárias era oferecer uma escuta às

profissionais do sexo, apostando numa construção conjunta entre coordenadoras e

participantes do grupo.

Alguns encontros depois, seria possível analisar que a intervenção proposta

tratava-se de algo totalmente novo para elas. Num contexto onde todas as relações são

de caráter comercial, era razoável que houvesse estranhamento diante de uma oferta

cujo benefício para as profissionais do sexo não fosse o dinheiro. A tendência ali era,

portanto, a reprodução do padrão das relações mantidas com o cliente.

O grupo foi, então, formado ao redor de uma das mesinhas do salão, o que se

repetiria nos encontros seguintes.

Logo de início, foi dito pelas trabalhadoras que o termo ali utilizado para

denominá-las era “garota de programa”. Uma delas complementa a explicação com o

seguinte comentário: “profissionais do sexo você deixa para seus professores”. Já o

local de trabalho é chamado por elas de “boate” ou “casa”.

As estagiárias apresentaram-se ao grupo como estudantes de psicologia, da área

de saúde do trabalhador, acrescentando que uma delas trabalhava no COAS da região,

sendo reconhecida por algumas “garotas” que freqüentavam o serviço. As estagiárias

apontaram que a proposta da intervenção era a realização de encontros em grupo para

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conversar sobre o dia-a-dia de trabalho no bordel, com o objetivo de contribuir para que

as participantes pudessem lidar com esse trabalho de uma maneira saudável.

Acrescentaram que, embora pudessem vir a produzir conhecimentos na faculdade a

partir da intervenção, não se tratava exatamente de uma pesquisa, pois sua intenção não

era a de simplesmente obter informações e sim criar um momento de conversa e de

troca de experiências. As estagiárias ressaltaram que a participação no grupo deveria ser

voluntária.

Em seguida, sugeriram uma rodada de apresentações. As “garotas” começaram

esclarecendo que não falariam seus nomes verdadeiros, pois ali utilizavam um nome

fictício, na intenção de protegerem sua identidade, seja porque não revelavam sua

profissão a qualquer um ou porque se sentiam ameaçadas. Como exemplo, contam de

uma estratégia que utilizam quando chega alguém ao bordel procurando por uma

“garota” que, por sua vez, não quer ser encontrada por aquela pessoa. Nesse caso, se a

pessoa vem atrás de “fulana”, elas dizem que “fulana” está, mas levam outra “garota”

no lugar, fazendo com que a pessoa acredite que aquela a quem procura não está lá.

Nesse relato, é possível identificar a importância do anonimato na profissão,

algo que se refere não apenas à vivência do preconceito, mas também à necessidade de

desenvolver estratégias de auto-proteção diante de uma constante sensação de ameaça,

tema que será retomado mais adiante.

Priscila conta que tem 20 anos de idade e faz faculdade de enfermagem. Reside

com sua família, para a qual não revela o fato de trabalhar como prostituta, o que

esconde também do namorado. Diz que isso representaria uma grande decepção para a

família que, assim como o namorado, jamais aceitaria. Por conta disso, freqüenta a

boate com bastante irregularidade.

Cláudia diz ter 19 anos de idade. Está morando e trabalhando na casa há seis

meses, mas, segundo ela, adaptou-se rapidamente, sentindo-se como se estivesse lá há

anos.

Luzia relata que, embora sendo a mais velha do grupo, com 40 anos de idade, é a

mais nova no ramo, tendo iniciado suas atividades como prostituta há apenas algumas

semanas.

A cafetina não revela sua idade, mas aparenta ter em torno de 40 anos. Ela conta

que foi prostituta por muitos anos, mas deixou de exercer oficialmente a atividade desde

a abertura da casa há mais ou menos dez anos. Diz que, atualmente, realiza apenas

alguns programas “especiais”.

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As estagiárias propuseram, então, que cada uma delas dissesse o que considerava

como sendo a melhor e a pior coisa nesse trabalho.

A autonomia financeira que a atividade lhes proporciona foi ressaltada pelas três

“garotas” como o fator que mais as agradava. Disseram que a quantia de dinheiro

arrecadada é muito maior do que em qualquer outro emprego que já trabalharam ou que

consideram como uma possibilidade de trabalho. Elas comparam que, em uma noite de

muito trabalho, podem ganhar o valor correspondente a um mês atuando como

empregada doméstica ou atendente de lanchonete. O preço do programa básico é de 30

reais por meia hora, sendo que um terço desse valor é repassado à cafetina. Elas dizem

que dez programas é o número máximo que uma “garota” consegue fazer em uma única

noite, o que lhe permitiria, portanto, somar a quantia de duzentos reais. No quarto

encontro, foi citada uma possibilidade de aumentar esse valor.

Dizem, ainda que “uma vez na noite, sempre noite”, ou seja, por mais que às

vezes pensem em abandonar a profissão ou até cheguem a deixar de exercê-la por um

período, essa será sempre uma alternativa a que poderão recorrer a qualquer momento,

uma “carta na manga”.

Outro ponto positivo aparece na fala de Cláudia, que diz poder dançar e se

divertir nesse trabalho e eventualmente até sentir prazer em algum programa. As garotas

comentam que a maioria dos homens as trata bem, muitas vezes “como uma princesa”,

melhor até do que fazem seus parceiros fixos.

Essas falas indicam a presença de benefícios obtidos, tais como o rendimento

financeiro, as vivências prazerosas e de auto-estima no cotidiano de trabalho.

Contrastam, porém, com a fala de Luzia, que demonstra sentir-se bastante culpada

quando realiza um programa: “toda vez que um homem sai de cima de mim eu rezo”. A

religião aparece nas falas como uma fonte de culpa pelo exercício da atividade,

considerada como pecado. As participantes comentam que um dos dez mandamentos

diz: “não se prostituirás”. Ao mesmo tempo, na religião reside a possibilidade de

redenção e, portanto, de desculpabilização.

As “garotas” apontam o preconceito como o principal ponto negativo do

trabalho. Dizem que há homens que as tratam bem na boate, mas que na rua as xingam.

E afirmam que muitas pessoas não imaginam que elas são mulheres honestas, que

trabalham para seu sustento e, principalmente, para o de seus filhos. Dizem que não são

putas e descrevem a “puta de paredão”, termo que utilizam para se referir à mulher que

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se relaciona com vários homens numa mesma noite por mera diversão, enquanto elas o

fazem apenas a trabalho.

Diversos pontos tornam-se explícitos a partir dessas afirmações: o preconceito,

por parte das próprias “garotas”, a respeito da mulher que mantém relações sexuais com

diversos parceiros; a culpa que sentem por praticarem diariamente um ato supostamente

imoral e pecaminoso; e a justificativa baseada na necessidade financeira, que as

diferencia da suposta puta “de verdade”. Essa questão remete a um dos aspectos

considerados no primeiro capítulo deste estudo, revelando a complexidade da

formulação construída pelas profissionais do sexo para lidar com a discriminação em

torno de sua atividade, imposta por uma sociedade da qual elas também fazem parte,

compartilhando das mesmas noções e valores.

A cafetina, por sua vez, ressalta que esse é um trabalho diferente de todos os

outros, pois “ser penetrada por uma pessoa que você não conhece é muito difícil”. A

frase parece ir além dos preconceitos, apontando para um impacto subjetivo bastante

profundo da constância de relações corporais tão íntimas em meio a vínculos afetivos

tão precários.

A cafetina comenta que sua atividade diferencia-se muito da de uma garota de

programa, trazendo outros tipos de afazeres e de preocupações cotidianas, ligados à

administração do negócio. Cita como exemplo ter que cuidar da relação com a polícia

local, para quem “paga o pau”, isto é, fornece uma quantia mensal em dinheiro,

estipulada pela polícia como condição para a manutenção do estabelecimento.

Conforme discutido no capítulo 1, a ambigüidade na relação com a lei e a autoridade é

uma marca constante dessa atividade, que é tolerada, apesar de ser insistentemente

mantida no âmbito da marginalidade.

Outra condição imposta pela polícia é de que as casas não se tornem pontos de

tráfico, algo que, segundo a cafetina, certamente lhe traria problemas. Além de as

drogas ilícitas não serem toleradas pela polícia local, há ainda a eventual possibilidade

de ocorrer uma “batida” de policiais de fora da região. No caso de serem encontradas

drogas, trabalhadoras menores de dezoito anos de idade ou sinais de ocorrências de

violência, a cafetina afirma que apenas ela seria responsabilizada e provavelmente

presa, pelo fato de ser a proprietária do estabelecimento. Lembrando que apenas o

agenciamento da prostituição é ilegal no Brasil e não o exercício da ocupação por

maiores de idade.

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A cafetina afirma que prefere ser presa por causa de uma “garota” que esteja

usando um documento falso para ocultar sua idade, do que por culpa daquela que esteja

“passando droga”, pois a primeira o faz em função da necessidade de trabalho. Nota-se

uma diferenciação quanto ao caráter das atitudes da profissional do sexo, sendo que

novamente a falta de alternativas de sobrevivência justifica a suposta falha moral. Já o

tráfico e o uso de drogas são recriminados, pois colocam em jogo tanto a segurança

quanto a autoridade da cafetina. Ela conta que realiza de tempos em tempos um “pente

fino” na casa, de surpresa, com vistas a garantir a ausência de drogas no local. Explica

que, logo ao admitir uma “garota”, deixa bem claro que não é permitido vender,

comprar ou usar drogas na casa. Ainda que não possa ter controle sobre o uso por parte

de clientes, determina que as “garotas” não aceitem drogas caso o cliente lhes ofereça.

No entanto, as trabalhadoras têm direito a um intervalo de vinte minutos a cada jornada

de trabalho, durante o qual podem sair para a rua e, portanto, fazer o que quiserem.

As “garotas” dizem não usar drogas, embora já tenham feito uso anteriormente.

Demonstram concordar com a importância de não “desandar” por esse caminho. De

qualquer modo, fica clara a intersecção entre os territórios da droga e da prostituição,

caso contrário, não seria necessário um controle tão rígido por parte da cafetina. Além

do que, a citação do período de intervalo dá a entender que o uso de drogas comumente

acontece.

As participantes dizem, ainda, que não abrem mão do uso de preservativos

durante os programas. Elogiam o fato de o COAS distribuir preservativos gratuitamente,

mas declaram que a quantidade é insuficiente diante do número de programas que

realizam. Nessa reivindicação, identifica-se uma possibilidade de exercício da cidadania

das profissionais do sexo, através da interlocução com a rede pública. O fato de uma das

estagiárias estar referida ao serviço de DST/Aids viria à tona em outros momentos da

intervenção, demonstrando a relevância dessa vinculação das trabalhadoras com o

serviço.

No terceiro encontro, não foi possível realizar a reunião, pois nenhuma

profissional do sexo aguardava as estagiárias. Apenas a cafetina encontrava-se no local

e recebeu-as com o seguinte comentário: “hoje não tem garotas pra vocês, meninas”.

As estagiárias perguntaram a razão e a cafetina respondeu que as “garotas” estavam na

rua, aproveitando o horário de folga.

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Essa foi apenas a primeira das vezes em que o grupo seria cancelado pela falta

de participantes, o que consistirá num elemento fundamental para a discussão da

questão da demanda nessa intervenção.

De imediato, percebe-se mais uma vez a dificuldade de horários vagos para a

realização do grupo. Analisando mais atentamente, porém, nota-se que a frase emitida

pela cafetina dá a entender que a demanda, mais do que dela ou das “garotas”, seria das

próprias estagiárias. Isto é, as “garotas” estariam lá para as estagiárias e não o contrário.

O que não deixa de remeter novamente à impossibilidade de as participantes ocuparem

o lugar de quem recebe algo, mantendo-se insistentemente na posição daquelas que

ofertam, assim como colocando as estagiárias numa posição bastante próxima à dos

clientes.

As estagiárias questionaram se aquele era de fato um bom dia da semana para a

realização dos encontros, no que a cafetina ponderou que quinta-feira a domingo eram

os dias de maior movimento da casa, portanto o ideal seria mesmo que o grupo

ocorresse entre segunda e quarta-feira.

Foi, então, definido que os encontros seriam às segundas-feiras, dia

característico de descanso na casa, devido ao pouco movimento. O horário

disponibilizado pelas estagiárias seria a partir das 17 horas. Devido à proximidade com

o período de trabalho, a cafetina dispôs-se a manter a casa fechada até o término do

grupo.

É preciso apontar que não se tratava apenas de mera formalidade a preocupação

das estagiárias em não ultrapassar o curto período de folga das profissionais do sexo.

Parecia-se buscar evitar o inevitável em meio àquele contexto: deparar-se com os

clientes. Que fantasias estavam em jogo? Será que as estagiárias evitavam ver a casa em

funcionamento, afastando-se do contato direto com a prostituição? Será que temiam a

concretização da ameaça feita pela cafetina logo no primeiro encontro, de serem elas

próprias confundidas com prostitutas?

A princípio, a mudança de horário pareceu ter sido bem sucedida e o quarto

encontro contou com a presença de duas profissionais do sexo: Cláudia, que já havia

estado no segundo encontro e Carol, que participava pela primeira vez.

Logo de início, Carol disse às estagiárias que fizessem suas perguntas para que

elas respondessem. As estagiárias retomam a proposta da intervenção, procurando

deixar claro que não se tratava de uma entrevista, mas de um momento para que

pudessem conversar entre si e pensar sobre o trabalho. Carol, então, concordou em

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participar, mas ressaltou que as estagiárias não deveriam acreditar que iriam ajudá-las

de alguma forma. Acrescentou que preferia os psiquiatras, (“que logo receitam um

Gardenal”), aos psicólogos, que ficam apenas falando e nada fazem.

Carol não poderia ter expressado de modo mais direto sua descrença na

possibilidade de ser beneficiada pelo grupo. Ao remeter-se ao cuidado em saúde mental,

parece cobrar uma solução dos psicólogos. Ao mesmo tempo, mostra-se muito pouco

disponível para um processo de reflexão. Contudo, ao longo do encontro, Carol mudaria

radicalmente sua postura.

Em seguida, as estagiárias resgataram o tema geral abordado no encontro

anterior, apontando para a oposição entre os benefícios que as “garotas” dizem obter

através desse trabalho e a culpa que sentem por exercê-lo, principalmente em função de

valores religiosos.

Carol conta que está há mais ou menos quatro anos na casa e diz que considera o

dinheiro como a única parte boa do trabalho, acrescentando que, se alguma “garota” diz

que gosta do que faz é porque “é louca”. Diz que se sente mais protegida ali do que

quando costumava trabalhar na rua, pois pode recorrer aos seguranças contratados pela

casa, relação também constatada pelo Ministério da Saúde (2002), como exposto no

capítulo 1. Ainda assim, sente medo ao ir para o quarto com um estranho e sabe que

corre o risco de sofrer alguma violência. Por isso, mantém sempre uma faca no quarto

para se proteger caso necessário. Carol demonstra que o clima de tensão é constante,

inclusive nos momentos de descanso, dizendo: “eu durmo com um olho aberto e outro

fechado”. As estagiárias perguntam se ela já chegou a usar a faca alguma vez e ela

relata que sim, chegou a ameaçar clientes, mas usou de fato com o atendente do bar na

época, atual segurança da casa, com quem tinha um caso. Foi um conflito passional,

após o qual ela teve que ficar algum tempo afastada da casa.

Cláudia comenta que considera as brigas com faca algo comum e que ela

também já desferiu uma facada em uma mulher, com quem mantinha freqüentes

desavenças, fora do contexto do bordel.

Nessas falas, vem à tona uma dimensão do trabalho que não havia se tornado tão

explícita nos encontros anteriores, ligada ao risco que a profissional do sexo sofre de ser

violentada fisicamente, bem como ao impacto subjetivo gerado por essa sensação de

ameaça.

Esse aspecto do trabalho fornece pistas do que se poderia considerar um

mecanismo de defesa das profissionais do sexo, na abordagem dejouriana. Nesse

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sentido, vale recuperar a formulação de Dejours (1992), exposta no capítulo 2, sobre as

ocupações que colocam em risco a integridade física do trabalhador. A forma mais

comum de lidar com essa situação, segundo o autor, é negando o medo gerado por esse

risco, na medida em que ele prejudica a continuidade do trabalho. As possíveis

estratégias adotadas para afastar o medo, tal como a reconstituição da situação de risco

fora do expediente, visam obter a sensação de domínio do perigo.

Nota-se que o trabalho das profissionais do sexo envolve, se não um risco

necessário à integridade física, no mínimo a constante vivência dessa ameaça. As

trabalhadoras permanecem em estado de alerta e a reação imediata a tal situação é a

busca de proteção através da faca, arma que gera o potencial de a “garota” exercer a

mesma violência que teme. A estratégia de defesa é bastante literal nesse caso: o

objetivo é a auto-proteção. Contudo, subjetivamente, não deixa de representar a busca

de domínio sobre o perigo. Além disso, observa-se que a faca passa a ser o instrumento

utilizado para a solução de todos os conflitos encontrados, inclusive externos ao

ambiente de trabalho. Na medida em que está sempre à mão, esse recurso gera o

aumento do risco da violência dentro do bordel, podendo ser exercida não apenas pelo

cliente, mas agora também pelos próprios colegas de trabalho. O círculo perpetua-se,

naturalizando a violência nesse contexto.

As participantes apontam, então, como aspecto positivo a liberdade de escolha

presente nesse trabalho, uma vez que, exceto as regras básicas da casa, é a própria

“garota” que impõe suas condições ao cliente. Uma dessas regras é que, no salão, é

proibido beijar o cliente. O programa estipulado pela casa inclui “um sexo oral e um

vaginal”, sendo que demais combinações são feitas no quarto entre “garota” e cliente,

contrato em que é ela quem decide o que faz ou não faz: se beija na boca, usa

camisinha, faz sexo anal etc. Fica para a “garota” toda a quantia em dinheiro que ela

negociar além do “programa básico” com o cliente. Cláudia e Carol dizem que beijam

na boca apenas os “gatinhos” e que são elas que decidem quantos programas fazem por

noite, o que varia de acordo com a disposição que sentem a cada dia.

Esse trecho situa por onde passa a oportunidade de adaptação do trabalho às

trabalhadoras, isto é, sua possibilidade de o executarem conforme o seu ritmo pessoal e

o seu desejo (interesse). Contrasta-se com isso a pesada jornada das profissionais do

sexo desse bordel, geralmente somando 10 horas de trabalho diário, contando apenas

com o intervalo de vinte minutos, além da chance de que alguns dias da semana sejam

menos movimentados. No nono encontro, a cafetina falou sobre algumas das estratégias

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de punição que utiliza para a “garota” que “arranja problema”, demonstrando que o

descumprimento das regras não é tolerado. Contudo, o fato é que essa liberdade citada

na rotina é algo experienciado pelas trabalhadoras, indicando aspectos de criação

pessoal e vivências de algum tipo de prazer nesse trabalho.

Cláudia e Carol comentam que há muitos clientes que aproveitam o programa

para conversar sobre problemas pessoais e desabafar as frustrações vividas em suas

relações sexuais e amorosas, confirmando a constatação do Ministério da Saúde (2002),

citada no capítulo 1. Cláudia e Carol dizem sentir-se no papel de psicólogas nesses

momentos. O relato revela uma nova dimensão da relação com o cliente, deixando claro

que esses encontros podem ir muito além do sexo comercial.

Quanto aos preservativos, dizem usá-los em todos os programas, rejeitando

inclusive propostas de clientes de aumentar o preço caso abram mão da camisinha.

Acrescentam que essa postura é incentivada pela cafetina, que recomenda inclusive uma

atenção especial para que seus clientes não retirem o preservativo sem que elas

percebam. Carol afirma: “esses homens que vêm no bordel e querem transar sem

camisinha, eu desconfio, eles não sabem se eu tenho doença ou não. Esses homens têm

doença”. Os depoimentos das participantes revelam grande conscientização nesse meio

quanto ao uso do preservativo. Obviamente, isso não significa a inexistência de

profissionais do sexo que escapem a tal padrão, mas torna-se evidente o consenso de

que o preservativo é um instrumento desse trabalho.

As estagiárias retomam, ainda, o tema do uso de drogas citado no segundo

encontro, questionando se as “garotas” acreditam haver alguma relação do uso com a

rotina de trabalho. Carol comenta que acredita que essa relação existe e acrescenta que

vem realizando uma enquete a esse respeito com as “garotas” da casa, em que todas

responderam que fazem ou já fizeram uso de drogas ilícitas. As participantes relatam

que a droga está à mão, seja através do cliente que leva, sempre há alguém que ofereça.

Consideram que a droga não traz nada de bom, mas dizem que o uso é para esquecer os

problemas e também para conseguirem “encarar o serviço”. Já o álcool é citado como

objeto de consumo freqüente de “garotas” em geral.

A partir dessas afirmações, fica clara a função essencial exercida pelo

alcoolismo e pela drogadição nessa rotina. Recorre-se ao uso dessas substâncias na

medida da dificuldade de “encarar o serviço”. A condição de vulnerabilidade imposta

pelo trabalho remete novamente ao impacto subjetivo dessa profissão, tal como bem

explicitado pela cafetina no segundo encontro.

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Outra dimensão desse impacto aparece quando Carol afirma que, atualmente,

não se interessa mais por relacionar-se com homens para além do ambiente de trabalho.

Já Cláudia diz que está à procura de um “príncipe”, de um “gatinho”. Estão aí colocadas

duas vertentes praticamente opostas do mesmo fenômeno: as relações pessoais e

amorosas da profissional do sexo sendo afetadas pelo seu trabalho. Como foi visto no

capítulo 2, não há uma divisão precisa entre tempo livre e tempo de trabalho, mas sim a

contaminação do sujeito por aquilo que ele vive no contexto de sua ocupação. Nesse

caso específico, acrescenta-se ainda o fator da quase ausência de tempo livre e da

mistura entre o ambiente de trabalho e o de descanso.

De um lado, Carol parece exausta da constância de relações sexuais com

diferentes parceiros. Ao mesmo tempo, mostra-se desiludida quanto ao que o universo

masculino tem a lhe oferecer. Enquanto Cláudia, pelo contrário, parece extrair da

excitação do contato com os clientes a esperança de aprofundar-se em alguma dessas

relações.

É assim que Cláudia conta emocionada a história de amor que viveu com um

homem há tempos atrás. Ele era paralítico e andava de cadeira de rodas. Ela diz que não

se importava com a impossibilidade de ter relações sexuais e eles permaneceram juntos

dos seus treze aos dezessete anos de idade, quando ele morreu. Ao comentar que esse

homem havia feito uma tatuagem na mão com o nome dela, Cláudia discretamente

deixa escapar seu nome verdadeiro a uma das estagiárias, o que será comentado logo

abaixo. Por ora, ressalta-se que o relato de um relacionamento tão idealizado e pouco

carnal contrasta com a vivência de Cláudia como garota de programa, mas permanece

como algo que ela procura de alguma forma resgatar em seus relacionamentos. Essa

“garota” revela a dificuldade em manter relações sexuais meramente profissionais e não

se envolver.

Cláudia chora ao falar de seu filho, de pouco mais de um ano de idade, que mora

com o pai do garoto, com quem não mantém um relacionamento fixo. Comenta que seu

maior motivo de tristeza é não poder estar com o filho, mas que sabe que o melhor para

ele é estar com o pai, pois no momento ela não tem condições de criá-lo. Seu sonho é

juntar dinheiro para voltar a viver com o menino.

Carol também conta da filha, de sete anos, residindo com ela e seus pais. Esses

são evangélicos e receberam mal a notícia de que Carol estava trabalhando como

prostituta, mas diante da renda que ela traz para a família, tiveram que aceitar. Porém,

Carol esconde o fato das outras pessoas, inclusive de amigas suas. Diz que jamais

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gostaria de ter sua carteira assinada, se a profissão fosse regulamentada, pois não se

sentiria bem caso as pessoas soubessem o que faz. Tanto Carol quanto Cláudia dizem

não contar aos pais de seus filhos sobre sua ocupação, por medo de perderem a guarda

ou serem impedidas do contato com o filho.

O tema da família, já citado no segundo encontro, parece sempre suscitar

ambigüidades. Se, por um lado, a família é fonte de culpa e recriminação por conta da

atividade exercida, por outro é um grande fator de motivação, tendo em vista a

possibilidade de seu sustento através desse trabalho.

Ao final, ao despedir-se das estagiárias, Cláudia diz “muito prazer” e em seguida

ri do que disse, pois aquele não era o seu primeiro encontro com as estagiárias. Então a

estagiária responde: “não deixa de ser muito prazer, afinal foi hoje que você me falou

seu nome, né?”. Imediatamente Carol aproxima-se dizendo que também quer contar seu

nome verdadeiro e assim o faz.

A importância do anonimato na profissão remete novamente ao tema da situação

de ameaça, na ausência da qual o uso de pseudônimos não se faz necessário. Essa

questão traz à tona não apenas a situação de vulnerabilidade das profissionais do sexo,

como também dá indícios da complexidade do processo de construção de uma

identidade ligada à profissão, já que nem sequer o nome da trabalhadora pode ser

revelado nesse contexto. Aparentemente, uma vez que as “garotas” identificaram a

possibilidade de estabelecer uma relação de confiança com as estagiárias, puderam

revelar seus nomes. Esse foi um momento bastante relevante da intervenção, pois trouxe

a confirmação do início da formação de um vínculo entre as estagiárias e as

participantes do grupo.

No quinto encontro, novamente a reunião não ocorreu. Nesse dia, as estagiárias

foram até o bordel, mas não foram recebidas. O portão estava trancado e o local estava

escuro e silencioso. As estagiárias concluíram que as trabalhadoras ainda deveriam estar

dormindo.

Apesar do enquadre oferecido, ou seja, do fato de que toda semana o grupo

ocorria no mesmo dia e horário, mais uma vez as estagiárias não eram aguardadas. Em

geral, nos diversos encontros realizados, as “garotas” passavam a impressão para as

estagiárias de estarem surpresas com sua chegada, como se não houvesse uma

constância dessa presença. Parece que há uma impossibilidade de estabelecer

compromissos de horário nesse contexto, relacionada à dinâmica do próprio trabalho, o

qual não conta com agendamentos. Pelo contrário, o cliente que chega depara-se com a

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profissional do sexo disponível e o programa é combinado entre eles naquela mesma

ocasião. Não há contrato possível de ser estabelecido para além do momento presente.

Ao longo da intervenção, as participantes raramente escapariam desse padrão.

Esse é um aspecto positivo da realização de grupos com trabalhadoras do bordel

dentro do próprio local de trabalho. Assim como são os clientes que vão até elas, o

mesmo parecia ser exigido das estagiárias. Dificilmente podia-se imaginar que as

mesmas participantes comparecessem ao grupo caso fosse realizado fora dali.

A questão é como romper com tal padrão e motivar as profissionais do sexo a

apropriarem-se de um espaço de escuta como esse, acessando-o por conta própria e com

maior constância. Novamente, é a demanda que entra em jogo. O que motivava Cláudia,

por exemplo, a ser a maior freqüentadora do grupo? As estagiárias fizeram essa

pergunta a Cláudia no sétimo encontro.

No sexto encontro, quando as estagiárias chegaram ao local, depararam-se com

dois homens vestidos de terno preto sentados no sofá do salão. Perguntaram a eles pela

cafetina, no que eles responderam: “senta aqui, ela já vem”. As estagiárias, um tanto

desconfortáveis, responderam: “não, obrigada, a gente só quer falar com ela”,

percebendo que aqueles eram clientes e que elas estavam sendo confundidas com as

garotas de programa. Após alguns minutos, a cafetina apareceu no salão enrolada numa

toalha de banho. Disse que não seria possível realizar o grupo, pois as “garotas” já

estavam se aprontando. As estagiárias, então, voltaram a perguntar se aquele horário

estava adequado para a realização do grupo e a cafetina disse que sim, que apenas

naquele dia não tinha dado certo. As estagiárias combinaram que retornariam na semana

seguinte no mesmo horário e foram embora.

Esse foi um momento crucial da intervenção. As reverberações geradas

constituíram elementos fundamentais para a continuidade do trabalho e para os

significados que puderam ser construídos posteriormente.

Nos dias que se seguiram após o ocorrido, foi tornando-se evidente que o

episódio havia mobilizado diversas angústias nas estagiárias, que passaram a se

perguntar sobre o real sentido da intervenção. Entrava em cena a frustração pelo

rompimento do contrato estabelecido com a cafetina, de que a casa não estaria em

funcionamento no horário do grupo. Além disso, já se somavam três encontros

cancelados pelas participantes. A questão da demanda tornava-se o foco das atenções. A

quem o grupo estava beneficiando? Havia de fato um interesse das “garotas” por aquele

espaço?

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As estagiárias chegaram a levantar a hipótese de que o grupo estava sendo em

vão. Foram momentos de intensos questionamentos, nos quais se contou com grande

contribuição dos supervisores no sentido de validar a experiência que vinha sendo

realizada até então. Aos poucos, foi possível às estagiárias elaborar os sentimentos

despertados a partir do tão fantasiado contato com os clientes, essa primeira

aproximação pessoal da vivência de ser vista pelo outro como uma prostituta. As

estagiárias foram percebendo que, ao terem sido abordadas por homens que nem sequer

as conheciam e buscavam “seduzi-las”, apareceu pela primeira vez na intervenção a

dimensão concreta do sexo comercial. Uma vez que elas estavam aprofundando o

contato com aquele universo, era uma questão de tempo que isso acontecesse.

Foi, então, ficando claro que fazer um grupo naquele contexto não poderia ser

algo muito diferente daquilo que vinha sendo. Penetrar aquela realidade exigia romper

com a expectativa do grupo idealizado, que aguardasse prontamente suas coordenadoras

no horário combinado, rapidamente aderindo a uma proposta que, embora ocorresse

dentro do próprio local de trabalho, buscava instaurar um novo espaço de interlocução,

marcado pela presença da alteridade. A adesão a esse espaço estava dando-se dentro das

possibilidades daquele contexto, fosse por parte das “garotas” que participavam

efetivamente do grupo, ou ainda por parte daquelas que apenas o rodeavam, escutando

de canto e rejeitando os convites das estagiárias para juntarem-se ao grupo. A

intervenção já era uma realidade, a alteridade estava ali introduzida. Os encontros

ocorriam de fato... Ainda que de maneira muito diferente da planejada.

Ao sétimo encontro compareceu apenas uma profissional do sexo, Cláudia.

Nesse dia, o bordel estava todo enfeitado com serpentinas. A cafetina estava no bar do

salão e disse que não poderia participar do grupo. Ofereceu uma bebida às estagiárias,

que agradeceram, mas recusaram dizendo que não podiam beber, pois estavam ali a

trabalho. A oferta remete ao fato de que, para a profissional do sexo, não há distinção

entre o momento de beber e o de trabalhar.

Cláudia comenta que a nova decoração foi feita por conta do seu aniversário. A

homenagem das colegas parecia indicar a presença de um vínculo sólido entre elas, o

que mais tarde, porém, não se confirmaria.

As estagiárias lhe dão os parabéns. Em seguida, comentam que Cláudia vinha

freqüentando bastante o grupo e perguntam o que ela acha sobre o porquê das outras

“garotas” não participarem tanto. Ela responde que as outras não vêm porque são

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antipáticas. As estagiárias, então, perguntam o que a leva a participar. Cláudia responde

que gosta das estagiárias e acha legal estar ali conversando.

A princípio, parece que a motivação para a participação nos encontros é definida

em função de uma questão de empatia: Cláudia vem porque simpatiza com as

estagiárias. Porém, a justificativa para a ausência das demais é que elas são antipáticas.

Ou seja, na explicação de Cláudia, a participação das “garotas” seria um gesto de

simpatia às estagiárias, que nesse caso permanecem como as principais demandantes da

intervenção. A demanda apenas se inverte na última frase, quando Cláudia demonstra

que comparece porque está aproveitando o grupo.

As estagiárias contam a Cláudia que tinham planejado para aquele encontro

focar um pouco mais a discussão no tema da saúde e propõem a seguinte pergunta:

“como você faz para cuidar de sua saúde?” Cláudia responde que sua saúde ela deixa

“na mão de Deus” e não prolonga o assunto.

Voltando à teoria da psicodinâmica do trabalho, a categoria do subemprego é

outro exemplo de ocupação que pode auxiliar a reflexão sobre os mecanismos de defesa

desenvolvidos pela profissional do sexo. Como já colocado no capítulo 2, Dejours

(1992) descreve as precárias condições de sobrevivência oferecidas pelo subemprego,

gerando sentimentos de indignidade e desqualificação. A impossibilidade de trabalho

amedronta, portanto, a doença é um fator de ansiedade e precisa ser calada. Assim

desenvolvem-se os sentimentos de culpa e de vergonha em relação ao sofrimento.

Diante do que colocam as profissionais do sexo, esse não é um trabalho cuja

remuneração seja tão baixa. Pelo contrário, quando o comparam com outras alternativas,

como visto no segundo encontro, a ocupação apresenta ganhos muito mais expressivos,

proporcionando-lhes autonomia financeira, sua grande motivação para o trabalho. Por

outro lado, nem o dinheiro nem sequer toda a bajulação que possam receber por parte

dos clientes parece compensar, em termos de auto-estima, os efeitos da discriminação

que sofrem cotidianamente. O dinheiro, nesse caso, não representa uma fonte de

reconhecimento social suficiente para impedir os sentimentos de desqualificação e de

indignidade ligados à profissão.

Outra semelhança com o subemprego ocorre em função do corpo da profissional

do sexo constituir seu principal instrumento de trabalho, fazendo da doença algo

temido.

A importância atribuída aos cuidados com a saúde aparece nas falas sobre o uso

da camisinha. Até que ponto isso se dá na prática não é possível dimensionar a partir da

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intervenção realizada. Mas o discurso em si indica um estágio avançado quanto a esse

quesito, considerando, ainda, a existência da relação com o serviço de saúde.

No entanto, quando questionada acima sobre o tema da saúde, Cláudia responde

vaga e genericamente e muda de assunto. A doença permanece como um fator

impensável. Considerando o sofrimento que há para além de uma doença mais explícita,

pode-se levantar a hipótese de que a dificuldade das profissionais do sexo de constituir

um grupo está também relacionada à impossibilidade de pensar sobre o sofrimento. Aí

está o mecanismo de defesa: a negação e ocultação da dor. O sofrimento não é

enunciado e, como diz Dejours (1999), permanece na ausência de um sentido,

condenando o sujeito à repetição.

Quando se propuseram a tal reflexão, as estagiárias questionaram se a

intervenção não vinha justamente contra a necessidade das profissionais do sexo de não

pensarem para, assim, poderem seguir nesse trabalho. Aos poucos foi ficando claro que

esse é justamente um dos mecanismos de defesa explorados na profissão. Reside,

portanto, na ruptura desse mecanismo, através do contato com o sofrimento, a

possibilidade de as trabalhadoras apropriarem-se de suas vivências e lidarem com esse

trabalho de modo mais saudável.

Voltando ao relato, Cláudia passa a contar muito entusiasmada sobre um

“gatinho” com quem ela tinha feito um programa poucos dias antes e que havia lhe

dado um anel de presente, prometendo voltar em breve. Cláudia relata que esse rapaz

chegou ao bordel junto com um amigo e que ambos se interessaram por ela. Eles, então,

disputaram em uma partida de sinuca quem seria o primeiro a fazer o programa com ela.

O amigo acabou vencendo e Cláudia conta que, como estava mais interessada no outro,

fez com que o primeiro gozasse rápido para logo poder ficar com o segundo, indicando

o uso de técnicas sexuais de acordo com seu desejo. Sobre o primeiro cliente, ela diz:

“ele me comeu e depois foi comer outra”. Imediatamente, Cláudia comenta que as

estagiárias poderiam estranhar o fato de ela falar dessa forma, mas que ali era assim

mesmo que se falava. Obviamente, a expressão “comer” não era estranha às estagiárias,

comumente usada pela sociedade em geral para referir-se à relação sexual. O que

Cláudia parecia ressaltar era a frieza das relações nesse contexto, ao que ela

insistentemente contrapõe-se, como fica claro na seqüência de seu relato: com o

“gatinho”, Cláudia passou a noite toda, diz que foi muito gostoso, fala sobre a

expectativa de que esse rapaz a procure novamente e considera que a relação com ele

pode até tornar-se um namoro.

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As estagiárias notam nessa conversa que Cláudia utiliza sempre um tom muito

pessoal, como se conversasse com amigas. As estagiárias, então, procuram retomar que

o objetivo do grupo era discutir os temas da saúde e do trabalho e propõem falar-se um

pouco mais do trabalho em si. Essa percepção das estagiárias acabou sendo repensada

em supervisão, onde se concluiu que muitas vezes, embora a participante aparentasse

estar “desviando do assunto” do trabalho, ela estava na verdade trazendo questões mais

pessoais, porém diretamente relacionadas ao impacto desse trabalho em sua vida e em

suas relações.

A partir da pontuação das estagiárias, Cláudia diz que gosta desse trabalho

porque tem muita liberdade. Cita o espaço do quarto como uma possibilidade de obter

privacidade, onde ela diz que faz o que quer e quando quer. Está conseguindo juntar

dinheiro, o que é bastante incentivado pela cafetina, que a aconselhou a não gastar tudo,

mas a reinvestir uma parte nela mesma, produzindo-se e enfeitando-se para o trabalho.

Cláudia diz que tem seguido essas recomendações e que o restante do dinheiro está

guardando para o projeto de comprar uma casa, onde pretende morar com seu filho. Ela

diz desejar que seu filho não precise ter uma vida tão difícil quanto a dela. As

estagiárias perguntam se Cláudia pretende revelar um dia a seu filho sobre seu trabalho

e ela diz que não. Afirma que não sente vergonha de ser “garota”, mas que também não

sente orgulho. Diz que não está preocupada com a opinião dos outros, mas que às vezes

não faz bem a ela estar com um homem logo depois do outro. Essa é outra fala que

transmite, para além da discriminação, as dificuldades enfrentadas na profissão no

âmbito afetivo.

Cláudia diz que tem vontade de arranjar um namorado e pergunta se as

estagiárias não teriam algum amigo para lhe apresentar. Fala que se o “gatinho” que lhe

deu o anel não voltar, ela também não está “nem aí”, negando todo o envolvimento que

explicitou anteriormente. Ela também se contradiz ao comentar que só deixaria de ser

“garota” se fosse para casar: “o cara que me tirar daqui vai ser pra casar de véu e

grinalda”, sendo que, minutos depois, ela diz: “eu não vou casar, não vou depender de

homem”.

Cláudia relata que Fábia, uma “garota” que não chegou a participar do grupo,

mas que as estagiárias sabiam que era uma das mais antigas da casa, deixou de trabalhar

no bordel porque se casou com um antigo cliente fixo. Esse tema do envolvimento com

clientes voltou a ser abordado no último encontro. Cláudia conta, ainda, que Carol,

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participante do quarto encontro, também saiu do bordel, mas nesse caso preferiu não

revelar o motivo.

Cláudia diz que esse trabalho não mudou quem ela é: “eu sou a mesma pessoa,

só muda o nome”. A frase beira a ironia, uma vez que o nome é tratado como um

aspecto irrelevante da identidade. O processo de utilizar um pseudônimo e manter-se “a

mesma pessoa” poderia, talvez, ser encarado como uma espécie de atuação teatral. Mas

seria a profissional do sexo realmente capaz de manter-se representando um papel,

durante sua longa jornada de trabalho, sem que atriz e personagem fossem confundidas

em alguns momentos? Com essa analogia, pretende-se novamente refletir sobre a

impossibilidade de manter a cisão entre a vida no trabalho e a vida fora do trabalho.

Cláudia acaba contradizendo-se novamente, ao falar que o trabalho “mudou

tudo”, pois hoje ela lida de uma forma diferente com seus problemas. Se antes resolvia

tudo na base da briga e do xingamento, hoje ela age “com classe”, ignora quem não

gosta dela e não briga, pois a cafetina fala que “mulher que briga é feio”. A cafetina

parece buscar conter a violência no bordel de qualquer maneira. Cláudia, por sua vez,

incorpora os conselhos da cafetina com afinco.

Cláudia conta que o motivo de brigas costuma ser a disputa por clientes entre as

“garotas” da casa. Ela diz que a regra é que se uma “garota” tem um cliente fixo, as

demais não devem abordá-lo. É interessante observar que a própria CBO (2002), citada

no capítulo 1, aponta como uma das competências da profissional do sexo o respeito ao

código de “não cortejar companheiros de colegas de trabalho”, confirmando a

generalidade dessa regra na profissão. Mas Cláudia diz que, na prática, mesmo em caso

de cliente fixo, essa disputa acaba acontecendo. Ela fala que, por conta disso, não há

relação de confiança e de amizade entre as “garotas”. As estagiárias comentam que

parece haver um clima de constante tensão e desconfiança nesse trabalho. Nota-se que,

conforme as estagiárias constroem um vínculo com Cláudia, passam a poder cada vez

mais pontuar suas percepções e sugerir algumas reflexões durante os encontros.

A competição entre as colegas de trabalho revela-se mais um fator que dificulta

a constituição do grupo e fala também de uma dificuldade para o estabelecimento de

cooperação nesse trabalho. Como diz Dejours (1999), a cooperação exige uma atividade

de diálogo e negociação entre trabalhadores, o que parece raramente ocorrer nesse

contexto em que os conflitos são resolvidos através da violência física.

No oitavo encontro, apenas Sheila, que não havia participado dos encontros

anteriores, encontrava-se no salão.

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Sheila diz que está de saída e que não há mais ninguém na casa além da

cozinheira. Quando as estagiárias estão prestes a ir embora, deparam-se com Cláudia,

também saindo, e perguntam se ela não quer ficar para o grupo. Cláudia diz que não está

mais trabalhando no bordel, tirou “férias”. As estagiárias perguntam se Cláudia não

gostaria de participar de um último encontro e conversar um pouco mais sobre sua

saída, mas ela diz que não pode mais ficar ali, que estava apenas dando uma passada

rápida no local. Ela conta que decidiu deixar de ser “garota” pelo menos por um tempo

e comenta com uma das estagiárias que a procuraria no COAS para conversar. Observa-

se novamente a referência ao serviço de DST/Aids como uma possibilidade de

vinculação.

As estagiárias saíram do bordel um tanto arrasadas, tendo visto a única

participante mais assídua do grupo deixar o local sem mal se despedir. Buscando

interpretar o que o efeito gerado em si próprias poderia revelar sobre os modos de

relação naquele contexto, as estagiárias atentaram para as sensações e idéias que lhes

passavam pela cabeça naquele momento. Registraram que se sentiam: “desprezadas,

usadas, descartadas”. Imediatamente, notaram a semelhança com a situação da

profissional do sexo, usufruída e descartada logo em seguida.

A partir disso, tornava-se nítido que o modelo da relação estabelecida entre

clientes e “garotas” era novamente reproduzido com as estagiárias. Seria possível à

profissional do sexo relacionar-se de outra forma que não através de vivências intensas,

porém fugazes e passageiras? A dificuldade de constituir vínculos duradouros em meio

à atividade profissional tornava-se cada vez mais evidente. Mesmo no caso de Cláudia,

que vinha fazendo grande proveito do espaço da intervenção e aparentava ter se

vinculado fortemente à cafetina, a relação com o local de trabalho não se sustentou.

Quanto à estratégia de intervenção, a possibilidade de expressar e pensar sobre

os afetos despertados revelava-se a chave para a compreensão dos processos

desencadeados no grupo.

O nono encontro contou com a participação da cafetina e de Sheila

A cafetina conta que Sheila é sua nora. Apesar de atualmente não trabalhar mais

como “garota”, Sheila trabalhou no bordel na época em que conheceu e começou a

namorar o filho da cafetina. Sheila não deixou o trabalho por conta disso nem sequer

quando ficou grávida. Ela trabalhou durante toda a gestação, embora isso não a

agradasse. A cafetina diz que também não achava isso bom, mas que não ia deixar sua

nora “na mão” no momento em que ela mais precisava.

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Embora a cafetina justifique esse episódio como um ato de solidariedade de sua

parte diante da necessidade de Sheila, vem à tona mais uma vez a rigidez das exigências

impostas por essa rotina de trabalho: ainda que não se sentisse bem, Sheila permaneceu

trabalhando durante sua gravidez. Nem o caráter pessoal de sua relação com a cafetina

foi o suficiente para modificar a situação.

Sheila conta que nesse período havia clientes que vinham atrás dela justamente

por conta da gravidez e que, por vezes, não queriam fazer sexo durante o programa,

apenas acariciar sua barriga. Depois que teve o nenê, alguns desses clientes perderam o

interesse por ela. O relato indica a busca pela profissional do sexo para a realização de

fantasias e fetiches. Assim como no quarto encontro, ficou explícita a amplitude das

possibilidades da relação entre prostituta e cliente.

A cafetina fala, então, sobre suas preocupações com dívidas, diz que está muito

cansada e que às vezes tem vontade de deixar tudo para trás, sair da “noite”, montar

uma loja, de bijuteria, lanchonete ou “loja de um real”. Conta de seu namorado, que é

um policial, o que faz com que tenham que esconder o namoro, tornando a relação mais

complicada. Fala que seu trabalho não é fácil, pois “é um serviço público”, ou seja,

qualquer um pode entrar no local, o que significa estarem expostas a desconhecidos.

Diante disso, sua responsabilidade é grande, tem que estar atenta o tempo todo para

impedir o uso de drogas no local, desconfia de todos. Diz que tem medo de ser traída

por alguém que queira prejudicá-la.

Nota-se que a ilegalidade em torno da profissão faz-se presente demandando

grande atenção e controle por parte da cafetina, levando as relações pessoais

estabelecidas nesse contexto a serem encaradas como uma fonte de risco. O trabalho da

cafetina mostra-se desgastante nesse sentido, levando-a a desejar partir para outros tipos

de empreendimentos, legalmente regulamentados.

A cafetina relata que antigamente costumava fornecer papel higiênico, sabonete

e almoço gratuito para as “garotas”, mas que com o tempo foi notando muito

desperdício. Por conta disso, atualmente não fornece mais nada, além de almoços feitos

no local ao preço de três reais. Relata que, no tempo em que era “garota”, trabalhou em

boates muito mais rígidas, enquanto que ela é pouco severa com suas “meninas”. Impõe

poucas regras, tais como não portar ou usar drogas no local, não beijar os clientes no

salão. Já a bebida é permitida, inclusive gera maior renda para a casa do que os próprios

programas, pois o preço das bebidas é acima do normal para a região. É o cliente que

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paga pela bebida consumida pela “garota”. A idéia é que a “garota” estimule o consumo

de bebidas pelo cliente, sendo que para tanto ela recebe uma porcentagem do lucro.

A cafetina diz que explica tudo isso numa entrevista inicial, na qual decide se a

“garota” será ou não admitida para trabalhar no local. De resto, considera que trata as

“garotas” muito bem, acredita que isso é possível por ser mulher e já ter estado no lugar

delas. Diz que a maioria dos cafetões são homens e lidam com o negócio de uma forma

muito diferente, pouco se importando com as “garotas”, apenas com os lucros. Procura

sempre conversar com elas quando percebe qualquer problema e, no caso de dois avisos

não bastarem, cobra da “garota” o pagamento de uma multa, cujo valor não especificou.

É possível que essa cafetina seja de fato pouco rígida em comparação com

outros cafetões, como ela sugere. Caso isso se confirme, significa que as condições de

trabalho nas casas de prostituição em geral não devem ir muito além daquelas

encontradas nesse bordel: poucos benefícios em relação à higiene e alimentação,

contando com multas como instrumento de coação das trabalhadoras e com o consumo

de bebidas alcoólicas como parte da rotina de trabalho.

Ao final, as estagiárias combinam que o encontro seguinte será o último do ano e

que pretendem relatar um pouco do que perceberam no decorrer do grupo, com o

objetivo de fazer um balanço da experiência e considerar junto à cafetina se há interesse

na continuidade do trabalho no ano seguinte.

No início do décimo encontro, Sheila estava presente. Ela e a cafetina estavam

sentadas em volta de uma das mesinhas do salão, Sheila com um caderno na mão.

A cafetina relata que contratou Sheila como uma espécie de secretária, pois

precisava de alguém de confiança que a ajudasse com as contas do bordel.

No início do grupo, surge o tema da relação sexual entre mulheres. Sheila

comenta que, embora seja menos freqüente, as “garotas” realizam também programas

com mulheres nesse bordel. Além disso, por vezes acontece de algumas das “garotas”

manterem relações sexuais entre si. A cafetina faz um paralelo com o ambiente da

cadeia, dizendo que quando só há pessoas do mesmo sexo confinadas constantemente

num determinado local, esse tipo de relação é inevitável. A cafetina comenta que ela

própria nunca “desandou”: não bebe, não usa drogas e não fica com mulheres.

A comparação com a cadeia soa como se as “garotas” fossem prisioneiras do

local de trabalho, demonstrando a dificuldade que provavelmente enfrentam para sequer

arranjar tempo de estabelecer relações fora desse contexto. A diferenciação entre os

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hábitos da cafetina e os das “garotas” é possível, na medida em que a cafetina não está

no lugar de trabalhadora e sim no de proprietária do negócio.

Sheila levanta-se e vai trabalhar em seu caderno na mesa ao lado, enquanto a

conversa continua com a cafetina. O grupo segue com a devolutiva das estagiárias.

Trata-se da estratégia que propõem Dejours, Abdoucheli & Jayet (1994), no intuito de

garantir a validação dos participantes a respeito das constatações formuladas pelos

profissionais que realizam a intervenção. Nesse caso, não foi possível fazer a restituição

para um coletivo, o que não surpreende, diante das dificuldades enfrentadas para reunir

as participantes durante todo o processo, tema abordado na própria devolutiva.

As estagiárias começam falando da grande freqüência de Cláudia ao longo dos

encontros e comentam que as demais “garotas” acabavam participando de algum modo,

fosse apenas rodeando o grupo ou ficando para uma ou outra conversa. A cafetina

afirma que o grande impedimento para se fazer o grupo é a dificuldade de arranjar um

horário livre e comum.

As estagiárias questionam a justificativa apontada pela cafetina e relatam sua

percepção de que o empecilho para constituir o grupo poderia estar ligado à dificuldade

de formar vínculos nesse contexto, dando exemplos ligados à rotatividade de

profissionais na casa, à rivalidade entre as colegas de trabalho e às expectativas de

relacionamentos mais duradouros com alguns clientes que, porém, não se concretizam, a

não ser em casos raros, como parecia ter sido o de Fábia. A cafetina comenta do perigo

de um caso como esse alimentar falsas esperanças nas outras “garotas”. Ela considera

que Cláudia ainda é cheia de ilusões desse tipo pelo fato de ela ser muito nova na

“noite” e ainda muito infantil, diz que “ela ainda tem muito o que aprender”. A cafetina

afirma que nesse ramo, “ou a menina casa por dinheiro e trai por amor, ou casa por

amor e trai por dinheiro”, demonstrando que o casamento ou um relacionamento mais

duradouro é algo incompatível com a profissão. Quanto à rotatividade das “garotas”, a

cafetina confirma que é mesmo muito difícil uma “garota” permanecer na casa por

muito tempo. Diz que é freqüente que elas mudem o local de trabalho para renovar sua

clientela e manter o anonimato. Esclarece que no momento havia apenas duas

moradoras na casa, diferentes daquelas que lá residiam quando as estagiárias iniciaram a

intervenção. As estagiárias perguntam o porquê da saída de Carol. A cafetina responde

que Carol vivia lhe arranjando problemas. Faz uma comparação com Priscila, que havia

participado do segundo encontro, a qual cita como sendo uma “garota” exemplar. Deve-

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se notar que Priscila não freqüentava o bordel regularmente, estando sujeita a condições

de trabalho bastante diferenciadas da maioria de suas colegas.

A fala da cafetina não apenas confirma a hipótese da dificuldade de estabelecer

vínculos estáveis nesse trabalho, como caracteriza o não se vincular como uma

exigência da profissão, à qual todas as trabalhadoras devem adaptar-se com o tempo. A

não vinculação aparece, assim, como o principal mecanismo de defesa da profissão,

permitindo manter a frieza necessária à constância de relações sexuais com diversos

parceiros, ignorando os afetos. Aquela que não é capaz disso terá que aprender, pois faz

parte do processo de adaptação ao trabalho; caso contrário, será excluída. A

transposição desse mecanismo aos demais relacionamentos da trabalhadora é evidente,

prejudicando os vínculos com as colegas, com o local de trabalho, com pessoas de fora

desse contexto e expressando-se até no contato com as estagiárias.

As estagiárias levantam a hipótese de que uma das dificuldades para formar um

grupo dentro do bordel, com o objetivo de trocar experiências e pensar junto, é o fato de

ser um ambiente de tanta rivalidade e desconfiança. A cafetina concorda, acrescentando

que já sofreu traição por parte justamente das pessoas que lhe eram mais próximas e

que, portanto, não pode confiar em praticamente ninguém. Nota-se que, ao longo da

devolutiva, torna-se possível a atribuição de novos sentidos para as dificuldades

enfrentadas na intervenção, ligados às formas de organização do trabalho.

A cafetina fala, então, sobre o que ela achou da intervenção. Comenta sobre a

coragem das estagiárias de entrarem ali e diz que em todos os seus anos de “noite”

nunca tinha visto ninguém fazer nada parecido. Novamente, fala sobre o exemplo

daquela outra equipe de “pesquisadores” que pagou e não voltou, mas agora afirmando

a diferença em relação ao trabalho que as estagiárias tinham realizado. Dessa vez, o

episódio era citado como objeto de diferenciação explícita entre uma intervenção e

outra, valorizando a postura das estagiárias na busca de produzir uma outra forma de

relação dentro desse contexto, o que, afinal, parece ter sido a grande contribuição da

intervenção.

A cafetina acrescenta que acha esse tipo de trabalho muito importante para

romper com a separação que existe entre o mundo de “dentro” e o mundo de “fora” do

bordel. Considera que o fato de as estagiárias escutarem o que elas têm a dizer sem

julgá-las já é uma forma de romper com essa barreira. Ela fala sobre a expectativa de

que as estagiárias levem para “fora” um pouco do que perceberam ali dentro, podendo

ajudar a diminuir um pouco o preconceito em relação às garotas de programa,

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mostrando que elas são pessoas normais, são mulheres como quaisquer outras, que

sustentam muitas crianças com o seu trabalho. A cafetina acrescenta que, inclusive, esse

negócio só vem crescendo. Informa que a região do Largo da Batata conta atualmente

com 74 bordéis, sendo que, na época em que inaugurou a casa, havia em torno de dez

boates no bairro. Ela diz que, daqui a pouco, não será mais possível dizer “quem é

quem”, sendo que hoje em dia ela pode identificar uma garota de programa “de longe”,

apenas ao vê-la passar na rua.

Fica claro que, apesar da grande movimentação em torno desse negócio, o

preconceito ainda é um divisor de dois mundos. Tão próximas e, ao mesmo tempo, tão

segregadas, as profissionais do sexo permanecem à margem da sociedade, algo que as

obriga a cindirem-se, enquanto transitam por esses espaços. Como conciliar a prostituta

com a mulher de família, a amiga, a esposa, a cidadã? Esse é um desafio que se

apresenta ainda nos dias de hoje, não apenas à profissional do sexo, mas à sociedade

como um todo.

As estagiárias e a cafetina concluem sobre a importância de dar continuidade ao

grupo no ano seguinte. A esse respeito, a cafetina insiste em afirmar: “podem contar

comigo”, indicando a existência da demanda e a relevância da intervenção.

No ano seguinte, o grupo teve de fato continuidade, passando a ser coordenado

por uma nova dupla de estagiários, experiência que por sua vez exigiria novas reflexões,

que não cabem nos objetivos desta pesquisa. Pode-se dizer apenas que o primeiro

encontro dos novos estagiários no bordel foi mediado pela presença das antigas

estagiárias. Estas puderam constatar a permanência do vínculo da cafetina com elas,

demonstrando um importante avanço decorrente da intervenção realizada.

Por fim, como conclusão deste estudo pretende-se produzir uma síntese da

análise produzida a partir dos resultados obtidos, procurando sistematizar a discussão

em torno das questões que nortearam os objetivos desta pesquisa.

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6. CONCLUSÕES

6.1. A DEMANDA PELA INTERVENÇÃO REALIZADA

Ainda que o espaço de discussão tenha sido oferecido pelas estagiárias, ele foi

pensado a partir de uma demanda captada já no período de trabalho no COAS. A

estagiária notava o desejo das profissionais do sexo usuárias do serviço de falarem sobre

suas questões cotidianas e serem escutadas.

A rede de atendimento em DST/Aids parece ser um importante espaço de

pertencimento da prostituta, onde ela é reconhecida como cidadã justamente em função

de sua ocupação (e não apesar dela), uma vez que a profissional do sexo tem direito a

testagens periódicas e ao recebimento de preservativos nesses serviços. Nesse sentido, o

aconselhamento constitui um momento privilegiado para que a prostituta possa cuidar

de sua saúde e constituir vínculos para além dos espaços marginalizados. É, ainda, um

âmbito em que ela não precisa cindir sua identidade em duas, correspondentes a dois

universos distintos – o mundo “de dentro” da prostituição e mundo “de fora” da

prostituição.

Acredita-se, portanto, que existe essa demanda por parte das profissionais do

sexo – demanda por uma escuta sem julgamento, por uma atenção integral, na qual elas

sejam reconhecidas como sujeitos de direitos; ainda que essa demanda não venha

necessariamente pronta, sob a forma de um pedido. Como dizem Dejours, Abdoucheli

& Jayet (1994), cabe ao profissional da saúde do trabalhador explicitar as relações entre

saúde e trabalho, legitimando a demanda, que emerge nem sempre com clareza.

No caso, a cafetina, imediatamente ao tomar conhecimento da proposta, desejou

que ela fosse realizada em seu local de trabalho. O que a cafetina possivelmente

reconheceu nessa oferta, considerando que ela fala do lugar do “patrão”, foi um serviço

de promoção de saúde para seus “empregados”. Quanto a isso, imagina-se que o fato de

as estagiárias terem se apresentado como estudantes da área de psicologia tenha sido de

grande relevância, permitindo à cafetina supor que haveria uma ênfase sobre o cuidado

da saúde mental das profissionais da casa. A cafetina parecia, então, ser a porta-voz do

sofrimento vivenciado pela categoria.

Foi bastante recorrente a dificuldade de se romper com a estrutura da relação

entre prostituta e cliente, na qual são elas que oferecem um serviço. Dificilmente

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podiam reconhecer que naquele momento eram as estagiárias que se propunham a lhes

prestar um serviço, como um benefício ao qual elas teriam direito. Contudo, ao final,

esse aspecto não se revelou como uma ausência de demanda por parte das profissionais

do sexo, mas sim como uma característica desse trabalho, que parece manter a categoria

aprisionada na constante repetição de um padrão.

O padrão de instabilidade das relações estabelecidas na profissão explicitou-se

claramente ao longo da intervenção, através da ausência de expectativa das participantes

quanto ao compromisso das estagiárias com o grupo. O constante resgate, por parte das

profissionais do sexo, do modelo de pesquisadores com que tinham tido contato

denunciava a desesperança de encontrarem algo diferente. Ao mesmo tempo, na medida

em que tal relato desafiava as estagiárias a não repetirem esse modelo, anunciava-se

timidamente que ainda havia ali alguma abertura para um novo tipo de proposta. A

aposta das estagiárias foi insistir na intervenção como forma de trabalhar justamente a

possibilidade de instaurar outras formas de relação nesse contexto.

Segundo Dejours, Abdoucheli & Jayet (1994), depois de analisado o sofrimento

e o peso das estratégias de defesa utilizadas no trabalho, a questão da demanda deve ser

trabalhada. Entende-se, portanto, que a discussão da questão da demanda junto ao

próprio grupo seria o passo seguinte para se dar continuidade à intervenção realizada. A

etapa de enunciação e formulação coletiva da demanda não chegou a ser atingida nessa

curta experiência.

6.2. SOFRIMENTO NO TRABALHO DAS PROFISSIONAIS DO SEXO

A instabilidade dos vínculos não apareceu somente na relação com as

estagiárias, fazendo-se presente na rivalidade entre as colegas e na alta rotatividade das

profissionais de bordel.

Como a cafetina deixou bem claro, os vínculos duradouros são incompatíveis

com a profissão. Faz-se necessário desenvolver a capacidade de não se envolver

pessoalmente com os clientes, regra já absorvida pelas profissionais mais antigas, mas

que ao longo do tempo deverá ser também incorporada pelas novatas, o que definirá sua

possibilidade de permanecer ou não na profissão. Diante do esforço psíquico necessário

para tal empreitada, as profissionais do sexo transportam o mecanismo aprendido para

as outras esferas de sua vida e de seus relacionamentos. Assim, a impossibilidade de

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vincularem-se passa a ser uma marca desses sujeitos. Trata-se de uma ideologia

defensiva por excelência, na medida em que garante maior produtividade das

trabalhadoras, excluindo aquelas que não se adaptam e sendo reproduzida

inevitavelmente fora do âmbito do trabalho.

Outro mecanismo de defesa presente nesse contexto é o uso da violência como

forma de resolução de todos os conflitos. Esse modo de reagir resulta da necessidade de

sentirem-se protegidas frente à ameaça de serem violentadas, experimentada

cotidianamente pelas trabalhadoras. A falta de outros recursos para lidar com as

dificuldades enfrentadas revela a impossibilidade de pensar sobre o sofrimento

vivenciado no trabalho. Pode-se levantar a hipótese de que o mesmo mecanismo de

negação vale também para o sofrimento físico, pois, uma vez que a profissional do sexo

depende de seu corpo para garantir sua sobrevivência, teme lidar com a doença.

Como aponta Dejours (1999), a enunciação do sofrimento implica num

reconhecimento social da contribuição do trabalhador através de seu trabalho. No caso

de uma ocupação que sofre tamanha discriminação social, o reconhecimento torna-se

prejudicado. Diante da dificuldade das trabalhadoras de entrarem em contato com seu

sofrimento, a impossibilidade de compartilhá-lo e de refletir sobre ele coletivamente

torna-se ainda mais gritante, considerando que a precariedade dos vínculos entre as

trabalhadoras já seria um empecilho suficiente.

O trabalho da profissional do sexo torna-se, assim, um complicado campo de

constituição da identidade. A tentativa de cisão entre mundo do trabalho e do não

trabalho, como se a mulher e a trabalhadora pudessem ser duas pessoas diferentes, tende

a agravar ainda mais o sofrimento vivenciado. Uma cisão desse tipo não pode ser bem

sucedida sem prejuízo à saúde psíquica, na medida em que os modos de ser no trabalho

são sempre transportados para a vida, quanto mais num trabalho de jornada tão extensa

e com tamanha falta de privacidade.

A bebida, como se não bastasse o estímulo ao seu consumo como fonte de renda,

constitui junto com a droga um recurso sempre à mão para se lidar com o sofrimento

que é calado.

A partir da proposta dejouriana, pode-se pensar que o compartilhamento do

sofrimento seria a grande saída desse círculo vicioso. No entanto, para que seja possível

oferecer espaços autênticos de fala e escuta dessas trabalhadoras, faz-se necessário

abandonar os preconceitos em relação à atividade, rompendo com a marginalização e a

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estigmatização que lhes é imposta. Nesse sentido, a ambigüidade legal em torno da

profissão constitui, ainda, uma grande barreira.

A aceitação da ocupação enquanto tal não basta, pois todas as atividades que a

viabilizam permanecem criminalizadas. A ambigüidade reproduz-se como característica

desse trabalho em vários aspectos.

Por exemplo, observa-se que há ganhos obtidos na profissão, fazendo inclusive

com que as trabalhadoras raramente a abandonem. As vivências de prazer e de

autonomia, tanto financeira, quanto de controle do ritmo e da forma de execução do

trabalho são citadas recorrentemente pelas profissionais do sexo, apesar da rigidez das

regras impostas pela cafetina. Porém, esses fatores positivos parecem minimizados pela

presença constante de sentimentos de culpa e de vergonha diante da profissão, ocultada

sempre que possível.

Entende-se que uma verdadeira descriminalização da atividade como um todo

poderia permitir uma maior garantia de direitos para essas trabalhadoras e, portanto, a

melhoria de suas condições de trabalho, como higiene, alimentação, redução da jornada

e, de modo geral, a diminuição do grau de vulnerabilidade da categoria.

Isso não deve implicar, de forma alguma, no retorno a propostas

segregacionistas de regulamentação da profissão, tais como sugeridas nos séculos

anteriores. Nesse sentido, devem ser observados os grandes avanços no campo da

prevenção, onde se parte do pressuposto de que o cuidado à saúde, tal como a testagem

periódica do HIV, não deve jamais ser algo imposto, mas sim voluntário, caso contrário

torna-se uma medida autoritária e sem sentido. Ou seja, regulamentar a profissão do

sexo não deve significar jamais, por exemplo, obrigar as trabalhadoras a manterem em

dia seus exames de DSTs, o que inclusive traria a ilusão de que são absolutamente

isentas de doenças e desobrigaria o uso da camisinha. O Ministério da Saúde (2002)

ressalta que esse tipo de medida já foi implementada em alguns países em relação à

prostituição, gerando tanto a opressão da categoria quanto invertendo o significado

atribuído ao uso do preservativo, que nesse contexto passa a representar a presença de

risco da doença, ao invés da garantia de saúde.

Nota-se que a discussão em torno da regularização da profissão é bastante

delicada, e exige novas reflexões sobre as possibilidades de sua implementação. O que

se pretende registrar aqui é a implicação, para o sofrimento vivenciado por essas

trabalhadoras, de manter-se a associação do universo da prostituição com a

clandestinidade e a marginalidade.

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De todo modo, para além das transformações que a legislação brasileira seja

capaz de realizar, acredita-se que os recursos teórico-práticos desenvolvidos no campo

da saúde, do trabalho e da saúde do trabalhador oferecem possibilidades de ação

imediata para a promoção de saúde e cidadania das profissionais do sexo. Considera-se

que a intervenção realizada, apesar dos obstáculos encontrados, trouxe algumas

confirmações nesse sentido.

6.3. LIMITES E POSSIBILIDADES DA PROPOSTA DEJOURIANA NO

CONTEXTO DA PROSTITUIÇÃO

As formas de organização do trabalho no bordel foram não apenas relatadas

pelas participantes do grupo e observadas pelas estagiárias, mas expressaram-se também

em meio à própria dinâmica grupal.

As expectativas iniciais das estagiárias de estabelecerem um contrato de

encontros semanais com as “garotas” foram frustradas. A impossibilidade das

profissionais do sexo manterem esse tipo de compromisso foi tornando-se cada vez

mais nítida ao longo do processo. A estratégia passou a ser, então, garantir a

manutenção do enquadre por parte das estagiárias, observando de que forma o uso

daquele espaço seria feito. A variação da presença das participantes foi grande,

demonstrando que nesse contexto tudo se trata do aqui e agora, ou seja, um

planejamento a longo prazo não é possível.

A dificuldade de reunir as participantes para conversarem entre si também pôde

ser relacionada à questão da instabilidade e precariedade dos vínculos estabelecidos na

profissão, remetendo, portanto, a mais um aspecto próprio às formas de organização

desse trabalho.

Aos poucos, percebeu-se que a intervenção cumpria com sua proposta

investigativa, pois, justamente através dessas dificuldades, revelava aspectos ligados ao

impacto subjetivo e ao sofrimento gerado pela profissão.

Quanto ao objetivo de promoção de saúde, em diversos momentos percebeu-se a

abertura do grupo para a construção de novas significações sobre o cotidiano de

trabalho. Houve relatos bastante ricos, demonstrando a apropriação realizada pelas

participantes de suas vivências concretas e subjetivas. Alguns encontros sugeriram o

início da constituição de um diálogo entre as colegas de trabalho, bem como de um

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vínculo entre estagiárias e participantes, demonstrando que a introdução desse

dispositivo no bordel tem o potencial de instaurar novas formas de relação, que se

defrontem com os mecanismos já tão arraigados e impensados nesse contexto.

Isto é, a realização da proposta no local de trabalho mostrou-se uma forma de

expor essas dificuldades, sugerindo a possibilidade de as trabalhadoras virem a

compartilhá-las com o tempo. Por outro lado, a curta duração da intervenção não

permitiu avaliar até que ponto um processo grupal mais longo no bordel poderia

implicar em transformações efetivas da dinâmica ali vivenciada. Na medida em que se

constatou que os “sintomas” da profissão tendem e ser reproduzidos na intervenção,

impedindo a constituição da grupalidade, faz-se necessário pensar novas estratégias para

facilitar um processo de troca e construção coletiva.

Uma sugestão que parece interessante é a realização da intervenção num

território externo ao bordel, onde se poderia contar com a presença de profissionais do

sexo que trabalhassem em diferentes locais. Entende-se que isso garantiria um maior

diálogo entre as participantes, considerando que poderiam compartilhar questões ligadas

à profissão, com a vantagem de que provavelmente não estariam já tão defendidas umas

das outras, pois, não sendo rivais diretas no trabalho, não estariam vivenciando entre si

os mecanismos de defesa citados acima.

Acredita-se que um serviço de DST/Aids é um local adequado para se introduzir

esse modelo de intervenção, na medida em que se trata de um território já associado a

uma inserção institucional e ao cuidado à saúde de profissionais do sexo, portanto, já

ligado a uma demanda da categoria. Entende-se que uma aliança entre a perspectiva da

saúde do trabalhador e a da prevenção pode ser bastante válida nesse sentido.

Afinal, para a profissional do sexo, não é possível falar de cuidado à saúde sem

mencionar os temas do trabalho. Se, na concepção dejouriana de saúde, situa-se o

trabalho como um dos eixos fundamentais, nesse caso específico isso se torna bastante

explícito, uma vez que a prostituta tem o corpo e o sexo como seu principal instrumento

de trabalho. Nesse contexto, como falar, por exemplo, sobre os significados do exame

de HIV ou sobre as formas de prevenção sem citar aspectos do cotidiano de trabalho?

Não é por acaso que o percurso histórico do reconhecimento da prostituição como uma

ocupação tem se dado de forma interligada ao desenvolvimento das políticas de

combate à epidemia da Aids. As ações de prevenção às DSTs exigiram o recorte em

torno dessa categoria de trabalho, de modo a direcionar uma atenção específica ao

público de profissionais do sexo.

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Como visto no capítulo 1, a realização de ações na própria comunidade, bem

como a metodologia de educação por pares demonstram ser estratégias altamente

promissoras no que se refere à prevenção das DSTs voltada ao público de profissionais

do sexo. Esse tipo de intervenção encontra, inclusive, vários pontos de convergência

com a perspectiva da saúde do trabalhador, na medida em que busca abordar o sujeito e

o coletivo, inseridos em seu próprio contexto, tomando-os como os principais agentes

na produção de sua saúde.

Nesse sentido, cabe também aos serviços de saúde desenvolver ações em suas

próprias unidades, visando à produção de processos de reflexão e autonomia por parte

dos usuários em torno da prevenção e do cuidado. No caso das profissionais do sexo, tal

incentivo mostra-se particularmente relevante, uma vez que o acesso à rede pública de

serviços estaria representando um grande passo para a conquista de sua cidadania.

O que parece estar em jogo, tanto na perspectiva da saúde do trabalhador quanto

na da prevenção, é a possibilidade de ressignificação e de apropriação das vivências,

gerando a implicação do sujeito. Acredita-se que conciliar essas perspectivas, através da

constituição de grupos de discussão entre profissionais do sexo nos serviços

especializados em DST/Aids, pode ser uma aposta no potencial dessas trabalhadoras de

assumirem cada vez mais o protagonismo em relação à produção de seu processo de

saúde.

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