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PROJETO MARISTA PARA O ENSINO FUNDAMENTAL

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PROJETO MARISTA PARA O

ENSINO FUNDAMENTAL

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PROJETO MARISTA PARA O

ENSINO FUNDAMENTAL

CURRÍCULO EM MOVIMENTO

volume 3

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ProvincialIrmão Davide Pedri

DIRETORIA EXECUTIVA DA REDE DE COLÉGIOS

Diretor ExecutivoIrmão Paulinho Vogel

Diretora EducacionalIsabel Cristina Michelan de Azevedo

Diretor de NegóciosAndré Garcia

Assessores EducacionaisAna Lucia C. F. SoutoDenize M. Munhoz da R. R. de SouzaGilson FaisJorge Lampe Narciso JúniorKátia Mitsuko Z. Braghini Laércio FurquimMaria de Lourdes Rossi Remenche

Assistente de PastoralAna Cristina S. L. Zeferino

Secretária ExecutivaMarilene Duarte da Silva

Auxiliar de BibliotecaPaulo Henrique Machado

Rua Imaculada Conceição, 1155 ‑ 8º andarPrado VelhoCuritiba ‑ PR80215‑901

Coleção CURRÍCULO EM MOVIMENTO

volume 1 Projeto Pedagógico Institucional

volume 2 Projeto Marista para a Educação Infantil

volume 3 Projeto Marista para o Ensino Fundamental

volume 4 Projeto Marista para o Ensino Médio

volume 5 Projeto Marista para Planejamento e Avaliação

volume 6 Projeto Marista para as Matrizes Curriculares

volume 7 Projeto Marista para o Ofício de Aluno

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© Província Marista do Brasil Centro-Sul 2010

AutoresMaria de Lourdes Rossi RemencheNancy de Fátima SilvaDanielle Regina BarrichelloCláudia de LimaArnilde Marta UlerKátia Helena Alves Pereira

Edição e Redação FinalMaria de Lourdes Rossi Remenche

Revisão TécnicaIsabel Cristina Michelan de Azevedo

Direção de Arte e Arte‑finalAndrea Vilela de Almeida

Assessoria EditorialElo Cultural Comunicação

Preparação e Revisão de TextoRosemary Lima

FotosJosé BassitPollyana Devides NabarroAcervo ABEC/UCE

ÍconesSputnik Studio

Agradecimentos ao Grupo de Estudos do Ensino Fundamental

DERC

Maria de Lourdes Rossi RemencheAna Lucia Carneiro F. Souto

DEAS

Soeli Terezinha Pereira

Colégio Marista ArquidiocesanoArnilde Marta UlerRenata Leone TrocolliRonaldo Cardoso AlvesKátia Helena Alves Pereira

Colégio Marista de Brasília IClaudia Santana HondaNancy de Fátima Silva

Colégio Marista de CascavelAnna Karina MenegussiDenise Marcela Martini

Colégio Marista de CriciúmaCláudia de LimaCirlei Martins

Colégio Marista São LuísAdriana Rodrigues dos SantosJaqueline Cristel L. Novello

Colégio Marista de JoaçabaLucivany GazzolaMercedes Luíza Nascimento

Colégio Marista Santa MariaDanielle Regina BarriquelloJosiane T. de Almeida Grillo

Colégio Marista de LondrinaRaquel Calil RuyMaria Regina Gasparini Barone

Colégio Marista de MaringáYandara Sá GomesAna Concheta

Colégio Marista Nossa Senhora da GlóriaZilá Aparecida de Freitas Alves

Colégio Marista ParanaenseAlecy Luciana da Silva VesgerauRoseana Reque Galastri

Colégio Marista de Ponta GrossaRosi de Fátima Gomes Ramos

Colégio Marista de SantosMaria Angelica Touso GarciaSilvia Maria Fernandes Simões

Colégio Marista de Ribeirão PretoFabíola Maria Giovannetti MarquesSandra Carla Schiavetto

Colégio Marista São FranciscoMaria Dolores BaldoLiane DanieleNedes Oliveira

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sumário

Introdução – Entre ideias, delineamentos e ações – o início 10

1. Contextos e atravessamentos: educação na contemporaneidade 16

1.1. Culturas e práticas de significação 22

1.2. Diversidade cultural – espaço de diálogo e confrontos 27

1.3. Identidades – modos de ser sujeitos 34

1.4. Múltiplos olhares sobre o Ensino Fundamental 39

2. Sujeitos do Ensino Fundamental: infâncias, juventudes e docentes 46

2.1. Infâncias – contextos e representações 48

2.2. Juventudes e seus tempos transitórios 58

2.3. Professores e suas identidades profissionais 66

2.4. Infantis, juvenis e professores – representações 76

3. Processo ensino-aprendizagem no Ensino Fundamental – entre saberes e fazeres 90

3.1. Processos construtivos dos saberes 100

3.2. Tempo de passagem – fronteiras desvanecidas 106

3.3. Saberes docentes – fazeres compartilhados 112

3.4. As linguagens e a produção de sentido 121

4. Mapas, dimensões e percursos necessários 144

4.1. Missão e Culturas – a força motriz do Ensino Fundamental Marista 150

4.2. Inter-relação entre Missão e Culturas – dimensões integradas 153

4.3. Entre significados e conceitos estruturantes – articulações necessárias no Ensino Fundamental 159

4.4. Processos de letramento e alfabetização 173

4.5. Organização do trabalho pedagógico no Ensino Fundamental 182

4.6. Relações multidimensionais – o encontro da teoria com a prática 192

5. O presente interpela o futuro... 208

Referências 214

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ENTRE IDEIAS, DELINEAMENTOS

E AÇÕES — O INÍCIO

introdução

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Foi-se o tempo em que podíamos esperar que todos estivessem a bordo. Pelo contrário, precisamos ter a coragem de partir com sentido de urgência

rumo ao futuro, acompanhados por aqueles que estejam realmente dispostos a empreender conosco tal jornada.

(SAMMON, 2008, p. 24)

Para se pensar sobre o segmento do Ensino Fundamental (EF) e traçar perspectivas educacionais futuras, é imprescindível que se olhe para o passado e se analise o presente. Para Sacristán (2000), só é possível cons‑truir o futuro, no sentido de prevê‑lo e de querer que seja um e não outro, por meio dos significados que as imagens do passado e do presen‑te nos oferecem.

A educação, hoje, envolve o confronto simultâneo entre questões psicológicas, sociais, econômicas e culturais, plurais e contraditórias, tendo em vista a busca das formas de liberdade, solidariedade, dignidade e bem‑estar social. Soma‑se a isso o papel constitutivo da cultura em todos os aspectos da vida social. Nesse sentido, Hall (1997) alerta para a importância do reconhecimento da fragmentação de uma identidade fixa e localizada, enfatizando a pulverização das identidades culturais a serem consideradas em práticas pedagógico‑curriculares voltadas à construção de uma sociedade democrática, crítica e participativa.

O EF é espaçotempo de práticas integradoras que exigem aprofunda‑mento sobre os sujeitos que o constituem. Para Morin (2001), a noção de sujeito é extremamente controvertida, pois ao construirmos nossa sub‑jetividade, integramos muito dos objetos à nossa volta, portanto, a noção

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de sujeito inclui outras subjetividades, outros sujeitos. Assim, ser sujeito compreende múltiplos componentes e subjetividades, a existência do acaso, da incerteza, da fragilidade e da afetividade. Diante dessas ques‑tões, os processos educacionais precisam considerar os aspectos inter‑culturais, desejos, afetos e as aspirações desses sujeitos, em uma ação metacognitiva sobre a realidade objetiva.

Entre esses diferentes textos e contextos, o EF Marista vai sendo tecido no conjunto dos componentes curriculares e na Missão Marista. Isso implica uma prática dialógica entre os sujeitos do processo de ensino‑aprendizagem. Nesse sentido, Freire (2003, p. 78) argumenta que o diálogo é um ato de valentia, humildade e liberdade, pois

a existência, porque humana, não pode nutrir‑se de falsas pala‑vras, mas de palavras verdadeiras, com que os homens transfor‑mam o mundo. Existir, humanamente, é pronunciar o mundo, é modificá‑lo. O mundo pronunciado, por sua vez, se volta problematizado aos sujeitos problematizantes, a exigir deles novo pronunciar.

Em um movimento em que o presente interpela o futuro que nele está sendo gerado, o Grupo de Estudos do Ensino Fundamental (GEEF) buscou fundamentação nas recentes pesquisas sobre infâncias, juventu‑des, famílias, culturas, currículos e vários processos que constituem o EF com o objetivo de construir parâmetros que visem, numa perspectiva multidimensional, subsidiar e implementar práticas reflexivas para o segmento.

O Ministério da Educação (MEC) define como função do EF a forma‑ção de cidadãos. Isso implica educar para a democracia, integrando as práticas pedagógicas cotidianas às novas tecnologias e à pluralidade de linguagens que constituem o mundo. Assim, não se pode desvincular a formação das crianças e jovens da singularidade, da autonomia, da liber‑dade e da capacidade de intervir socialmente.

Considerando as questões apresentadas, o GEEF assumiu a tarefa de repensar o EF e construir um documento para nortear e contribuir com práticas significativas para o segmento, considerando Missão, cultura e

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O capítulo 2 aborda as dimensões de ser criança, jovem e professor, quais as representações sobre esses sujeitos ao longo da história e como se posicionam nos cenários escolares, pois, a partir daí, poderemos repensar os conhecimentos e saberes escolarizados e os modos de orga‑nizar os processos escolares.

O capítulo 3 discute os fazeres e saberes significativos ao EF. Nesse sentido, faz uma reflexão sobre a constituição dos saberes no espaço transitório do EF, sobre os saberes docentes e sobre a linguagem, seja como possibilidade de dizer o mundo, seja como expressão.

O capítulo 4 faz uma abordagem direcionada à prática educativa. Por meio de um mapa conceitual, o GEEF objetivou colocar em relevo a organização e dinamicidade do EF, sistematizando e inter‑relacionando significados importantes para o segmento. Nesse capítulo, é discutida ainda a articulação entre as diversas dimensões que estruturaram o pro‑jeto, assim como são delineados os processos de letramento, alfabetiza‑ção e também a prática pedagógica, além de algumas linhas práticas para a ação educativa.

Para finalizar, o capítulo 5 faz interpelações sobre o presente e o futuro, enfatizando que a educação de amanhã depende do que formos capazes de começar a fazer hoje. Ela não virá espontaneamente, é preci‑so trabalhar por ela. O objetivo é lançar‑se à frente, mobilizando os sujeitos do EF em prol de um mundo melhor.

vida em um eixo alinhado ao compromisso social e cultural de gerações inteiras. Isso implica a construção de currículos não discriminatórios e não excludentes, capazes de produzir uma escola que consiga trabalhar e potencializar as diferenças, com todas as complexidades.

Ao considerar a maneira pela qual os sujeitos que constituem o EF produzem e articulam saberes aliados a um compromisso ético e cristão, buscou‑se também estudar e compreender as necessidades e os valores contemporâneos, entendendo o currículo como produtor de identidades e subjetividades. O GEEF considerou também a diversidade, os proces‑sos, as contradições e os conflitos históricos do pensar e do fazer, com‑preendendo o território das intuições, das emoções, das sensibilidades e das exigências sociais.

O GEEF entende que a institucionalização de um discurso que con‑sidere todas essas questões enraizará ações educativas que qualificam a ação de ensinar‑aprender para que, de fato, o processo formativo se desenvolva nos cenários escolares.

No passado, Marcelino Champagnat pensou, planejou e trabalhou para consolidar um Instituto, um espaço para educar crianças e jovens. Ao longo dos tempos, Irmãos e leigos vêm cuidando, construindo e ampliando esse projeto. A cada nova geração, o Instituto sofre influên‑cias das culturas contemporâneas, do pensamento que alimenta as novas teorias e as políticas veiculantes. Entretanto, a semente que nutre o Carisma Marista é preservada e alimentada, responsabilidade de todos os sujeitos que compõem a comunidade Marista e com ela aprendem e ensinam todos os dias ao longo dos tempos.

Com o objetivo de refletir sobre essas questões e delimitar algumas linhas de ação, este livro será estruturado da seguinte forma:

No capítulo 1, serão analisados aspectos relacionados tanto à educa‑ção na contemporaneidade, como os que dizem respeito às culturas, às identidades e à diversidade que constituem esse espaçotempo escolar. Esse capítulo é finalizado pelos múltiplos olhares sobre a cultura marista, as culturas infanto‑juvenis, as identidades multiculturais que, no coletivo do EF, mobilizam e ressignificam as paisagens sociais do segmento.

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CONTEXTOS E ATRAVESSAMENTOS:

EDUCAÇÃO NA CONtEmpOrANEIDADE

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Vivemos uma época de transformações culturais e sociais, incrivelmente abrangen-tes e rápidas. As fronteiras se ampliam e se modificam; antigos valores são ques-

tionados e práticas tradicionais parecem perder sua eficácia [...].

(Água da Rocha, 2007, p. 47)

As interações entre os indivíduos produzem a sociedade, assim como, em contrapartida, a sociedade também produz o indivíduo. Esse é um processo imbricado no sistema organizacional das sociedades, de forma que os produtos e os efeitos são necessários à sua própria produção. É nessa complexidade real e virtual que incoerências e incongruências se instalam no âmbito da educação e do momento vivido.

A contemporaneidade é marcada por uma racionalidade não linear e fragmentada, por uma cultura virtual e por relações de tempo e espaço caracterizadas pela simultaneidade temporal e pela desterritorialização dos lugares (SOARES, 1999). Ao se buscar definir contemporaneidade a fim de conjugá‑la com educação 1, depara‑se com uma tarefa complexa, visto que ao se definir o que é contemporaneidade, o objeto já ficou no tempo passado, pois o contemporâneo existe no tempo acabado de viver; logo, sempre em superação. A educação, como espaço de constru‑ção/reconstrução, vem, desde o conceito da Paideia 2, em um movimen‑to paulatino de adequação e inovação, gerador de novas concepções do ato de educar e de seus fazeres.

O cotidiano se constitui cada vez em mais lugares e se move num emaranhado frenético de informações. Os tempos, espaços e sujeitos

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estão em constante movimento. As mudanças sociais ocorridas ao longo do tempo promoveram demandas, cada vez maiores, pelo direito a ter direitos. A vida digital, nesse contexto, é incontestável e irreversível.

Os sujeitos da escola não estão alheios a essa expansão, ao contrário, suas necessidades sociais e culturais e as relações com o saber descons‑troem certezas pela via do desmonte dos esquemas de legitimação, tra‑duzido por informações que circulam pelas conexões de uma sociedade organicamente conectada.

Nesse movimento sem fim, o conhecimento ganhou uma nova plás‑tica, mais flexível e manipulável, passando a ser compreendido como uma grande aventura em espiral que possui um ponto de partida histó‑rico, mas não um fim. O processo de conhecer realiza movimentos circulares concêntricos ou, melhor dizendo, a descoberta de um princí‑pio, que outrora esclarecia as questões levantadas, gera um novo pensar, na direção de esclarecimentos e indagações ininterruptas. A ação de pensar sobre algo, e dele extrair conceitos e derivar variáveis, encami‑nha questionamentos que evoluirão inexoravelmente para complexida‑des sempre crescentes.

A escola e/ou a educação sempre foram campos de força, muitas vezes contraditórios e antagônicos, construtores de pensamento crítico e interativo e, portanto, provocadores de tensões necessárias ao impulso humano e racional. A contradição está presente no cotidiano, pois, ape‑sar da pressão por melhores resultados por parte da sociedade e das famílias, de estudos na área, de novos currículos, da influência das mí‑ dias e tecnologias, algumas práticas sociais importantes à formação dos sujeitos ainda não estão presentes na escola.

Dialogar com essas novas formas de construção do conhecimento e as experiências que as atravessam requer que o espaçotempo 3 escolar seja um locus de apropriação, produção e ampliação do conhecimento e não apenas de reprodução. Tal construção se dá pela inserção no espaço escolar de questões importantes à formação do sujeito, tais como as concepções de pessoa e de sociedade que desejamos formar, construir e vivenciar.

1 A palavra educação, derivada do latim educatio (instruir, fazer crescer, criar), do verbo educare (conduzir, levar até determinado fim), possui sentido relacionado ao conceito de projetos e de valores em constante proposição. Educação também pode ser compreendida como conjunto de projetos que tem por finalidade desenvolver, no decorrer da existência, determinadas trajetórias. A problemática se instala no momento de definir em que consiste esse desenvolvimento, e decidir quais ações pedagógicas são mais apropriadas ou legitimadas para tal.

2 Conceito que nasceu na Grécia antiga, no século V a.C, para designar o processo educativo que se prolonga por toda a vida, para muito além dos anos escolares.

3 As Escolas Maristas se constituem nos Colégios e Centros Sociais de Educação Básica. São os espaçotempos que operacionalizam e dinamizam os princípios e valores da Educação e da Pedagogia Marista.

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A educação tem papel decisivo na criação de outros mundos possí‑veis, mais justos, produtivos e sustentáveis para todos em um movimen‑to de conscientização capaz de desalienar e desfetichizar 4 e que abre espaço a outros saberes, vozes e fazeres. Educar para outro mundo pos‑sível é educar para a emergência do que ainda não é, o ainda‑não, a utopia, o inédito viável (FREIRE, 2004).

As teorias de ensino e de aprendizagem, as didáticas, as teorias da formação humana interrogam‑se sobre a especificidade de cada tempo humano na formação mental, ética, estética, cultural e identitária. A organização curricular não é indiferente ao protagonismo que os tempos de formação vêm exigindo nas diferentes áreas do conhecimento e na organização dos saberes escolares.

As novas linguagens são, por natureza, também linguagens curricu‑lares produzidas e/ou reproduzidas nas salas de aula das nossas escolas. Ao se abordar e explorar as diferentes culturas e linguagens, está‑se estabelecendo e fortalecendo identidades, consolidadas nos espaços e tempos escolares e culturais.

A educação, nessa perspectiva, propõe‑se a abarcar a complexidade vivida, tocando realidades, confrontando conceitos, dialetizando refle‑xões e abordagens a fim de questionar os currículos praticados e nego‑ciar os sentidos acordados. Desse emaranhado, o objetivo é ver emergir o espaço do todo, do integral, pois os sujeitos precisam da inteireza para aprender e difundir saberes. Os sujeitos desse novo tempo, consumido‑res de mídias que pasteurizam e mimetizam, estão em nossos espaços educacionais, e a Instituição Marista quer estabelecer espaços de escu‑ta, de significação real, assim como construir narrativas e referências com base nas quais os grupos possam discutir suas singularidades de sujeitos integrais.

Diante de tantas questões, impõe‑se o desafio de articular o currí‑culo aos objetivos pedagógicos e às situações didáticas a fim de formar alunos solidários, que pesquisem e se expressem, posicionando‑se dian‑te do mundo. Entendemos que a educação tem papel fundamental na construção de identidades e na autonomia das crianças e jovens.

Implica também incorporar ao currículo escolar novos conhecimen‑tos, novas habilidades, novos valores, novas competências. Isso inclui o reconhecimento e a valorização da diversidade cultural, das identidades dos sujeitos da escola, do respeito ao outro, do exercício do diálogo, que constituem a essência intersubjetiva humana e têm a capacidade de cons‑truir conhecimentos, por meio da própria realidade.

Os contextos contemporâneos provocam reflexões sobre a educa‑ção que queremos, além de produzir ações que, ainda de forma tímida, buscam transformar as estruturas rígidas da educação que ainda temos. Entender a serviço de quem estamos fazendo educação pode ser o caminho para desconstruções importantes e encaminhamento dos pro‑cessos de significação da educação que almejamos. Isso implica, de acordo com Freire (2004), uma práxis inclusiva que visa à produção coletiva, crítica, política, consciente e reflexiva, em um cenário mar‑cado pela valorização do outro, pelo conhecimento da cultura do outro, enfim de outras realidades.

Pensar em educação como fundamental à formação dos sujeitos, como elemento de integração e produção de saberes e culturas é essen‑cial para uma sociedade que deseja entender, rever e construir história com os sujeitos que a compõem. Isso porque as estratégias de ação e interação entre as pessoas são definidas por práticas culturais, ou seja, a cultura é constitutiva dos processos de aprendizagem e educação.

A cultura midiática dita maneiras de ser e viver, ao influenciar, por exemplo, a vida dos sujeitos e as formas de ver o mundo e nele se posi‑cionar. As novas linguagens e as novas culturas, associadas à visão de mundo própria da contemporaneidade, por vezes, parecem destituir a escola como organismo formal, como um lugar de saberes historicamen‑te construídos. Nesse contexto de relações complexas, convivemos com linguagens midiáticas e Teorias da Informação e Comunicação (TICs), que, por si só, são âmbitos geradores de uma pluralidade de linguagens, novos significados e interpretações que deslocam/desarticulam os para‑digmas até agora acordados na sociedade. Essas questões precisam ser consideradas e exploradas no espaçotempo escolar.

4 Para Gadotti (2006), o fetichismo transforma as relações humanas em fenômenos estáticos, como se fossem impossíveis de serem modificados. Fetichizados, só repetimos o já feito, o já dito, o já existente.

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membros de uma sociedade ou de grupos dessa sociedade. Morin (2001) amplia o conceito ao argumentar que a cultura é constituída pelo con‑junto de saberes, fazeres, regras, normas, proibições, estratégias, cren‑ças, ideias, valores, mitos que se transmitem de geração em geração, se reproduzem em cada indivíduo, contribuindo para a existência da socie‑dade e, ainda, mantém a complexidade psicológica e social.

Veiga‑Neto (2004) extrapola o sentido clássico de cultura, utilizando culturas – no plural e com inicial em letra minúscula – para designar qualquer lugar social em que acontecem lutas pela imposição de signifi‑cados, valores e modos de vida, como, também, se constituem subjeti‑vidades e se dão processos de regulação social. A escola, como espaço formado por diversos grupos culturais que apresentam costumes, sabe‑res, valores e crenças diferenciados, precisa estar atenta a esses signifi‑cados que interferem diretamente no processo ensino‑aprendizagem.

Na Instituição Marista, a cultura é concebida como produção huma‑na, material e simbólica, espaçotemporalmente situada, permeada por relações de poder e de produção de sentidos e significados. Dessa forma, a cultura integra e inclui diferentes modos de produzir e significar a vida. Como um processo de construção humana que produz mundos‑ ‑artefatos‑sujeitos e é produzida no complexo das relações cotidianas, efetivando‑se na superação do que é dado como natural. Essa abordagem cultural inclui todos os aspectos sociais e reconhece que os seres huma‑nos existem num mundo criado por eles mesmos (Projeto Educativo Marista, 2010).

Desse modo, ao mesmo tempo que a escola produz e reproduz a cultura na sociedade em que se situa, também produz e reproduz a pró‑pria sociedade. Assim, deduz‑se que o currículo se situa na articulação entre escola e cultura. Apresenta‑se, ainda, como uma amálgama de constituição/transformação da era da informação para a era do conheci‑mento, integrando em conjuntos de conhecimentos, valores e sentidos os saberes aplicados à vida.

No mapa conceitual construído pelo GEEF, as relações e articulações entre os conceitos explicitam a rede de sentidos que permeia o tema:

Aprender a aprender, pensar nas diferentes possibilidades de resolução de problemas/conflitos, intervindo nessas situações, são ações potencia‑lizadas pelo espaçotempo generoso e sensível de fala e de escuta nas Unidades Maristas.

O EF visa proporcionar aos alunos competências, conhecimentos, habilidades, atitudes e valores necessários à sua incorporação aos cená‑rios de hoje e de amanhã. Para tanto, a proposta curricular precisa estar atenta às necessidades das crianças e dos jovens, ao tempo e ao ritmo do processo ensino‑aprendizagem, não se restringindo à apropriação de saberes, mas também à sua mobilização e aplicação.

Na Rede Marista de Colégios e na Rede Marista de Solidariedade, as orientações são fundamentadas nos ideais do fundador, que sustentam a construção de valores para a vida e a formação que harmoniza fé, cultu‑ra e vida. Champagnat sonhou com uma instituição que percorresse tempos e lugares, atualizando‑se constantemente sem perder sua identi‑dade e função evangelizadora no ato de educar. O Ideário Educativo Marista permanece atual nos seus princípios norteadores, uma vez que reflete visão de ser humano, de mundo, de religião e de educação, que são dimensões para além dos tempos, para além da escola. Ao trazer para a educação questões sobre diversidade, equidade, resolução de con‑flitos, desenvolvimento sustentável, mídias, alguns passos estão sendo dados na direção da educação que queremos...

1.1. Culturas e práticas de significação

A cultura consiste em recriar e não em repetir. O homem pode fazê-lo porque tem uma consciência capaz de captar o mundo e transformá-lo.

(FREIRE, 1979, p. 30-31)

O termo cultura, em princípio, nos remete à arte, literatura, música, pintura etc. Entretanto, Giddens (2005), em uma perspectiva sociológi‑ca, vai além e entende que a cultura se refere às formas de vida dos

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O mapa evidencia que a rede conceitual de culturas compõe‑se de múltiplas relações, cada vez mais complexas e interligando todos os pla‑nos e todos os campos do conhecimento. As relações sociais se alimen‑tam e são alimentadas pelas relações entre as representações, as práticas de significação, as produções simbólicas, materiais e humanas, dialogan‑do com a diversidade/diferença e, consequentemente, assumindo um posicionamento de escola inclusiva. As culturas produzem modos de ser sujeitos e significam mundos, artefatos e múltiplas linguagens.

As culturas permeiam a produção de sentidos, as relações sociais e políticas, ou seja, as relações de poder. Não há início e fim, mas um movimento de alimentação e retroalimentação constante. Nesse proces‑so, identidades são construídas e transformadas o tempo todo, pois nele há espaço para o convívio de diferenças, como meios diversos de subje‑tivação múltipla.

A sociedade contemporânea é, inegavelmente, multicultural. Nela, as diferenças de classe social, gênero, etnia, orientação sexual, religião expressam‑se nas diferentes esferas sociais. A promoção da educação multicultural colabora no desenvolvimento da sensibilidade para a plu‑ralidade de valores e universos culturais, que são decorrentes de maior intercâmbio cultural no interior de cada sociedade e entre diferentes sociedades (MOREIRA, 2001).

Por muito tempo, houve o predomínio de um discurso massificador que valorizava a cultura dominante. Muitas vozes foram suprimidas na seleção da cultura escolar. Não é mais possível aceitar uma postura de daltonismo cultural, que, de certo modo, foi alimentada por relações assimétricas, evidenciada pelas desigualdades sociais que dificultaram o arco‑íris cultural presente no mundo. Assim, é necessário que a escola abra espaço ao multiculturalismo, e reconheça, efetivamente, no multi‑culturalismo popular a diversidade de situações, assumindo que a cultu‑ra escolar apresenta, entre outras dificuldades, a escassez de fontes, interpretações limitadas e uma tendência espontânea ao monoculturalis‑mo (MOREIRA; SILVA, 2008).

CulturasMapa Conceitual

Produção de sentidos

Espaçotempo

Diversidade/Diferença

Educação inclusiva

pote

ncia

liza

Relações de poder

Simbólicas

Materiais

Humanas

Produções

podem serpermeiam

Multiculturalismo

favorece

são

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titu

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cons

titu

i

Modos de ser sujeitos

Artefatos Múltiplas linguagens

Mundos

Culturas

permeiam

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dialogam

são situadas no

são

permeiam

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a pensar de forma ampla – lendo, interpretando, opinando, argumentan‑do, afetando e deixando‑se afetar.

Como avançar na superação de processos de escolarização fragmen‑tados e que ainda desconsideram o necessário diálogo com as culturas da comunidade, das famílias, das crianças e dos jovens? Como produzir uma educação plural, que inclua todos os grupos presentes na escola, dialogando com os conhecimentos produzidos historicamente nas uni‑versidades? Como criar interfaces entre saberes e, ao mesmo tempo, produzir outros? Como possibilitar que a escola seja espaço democrático de produção de cultura?

Tais questões só serão elucidadas se a reflexão for ampliada para o mundo cultural, múltiplo, no qual aprender é cada vez menos acumular os conhecimentos dos outros, e sim construir e reconstruir saberes, criando, investigando, sem medo de tentar. Nesse sentido, os estudos culturais podem fundamentar as ações educativas comprometidas com a construção de uma escola coerente com os sujeitos que lá estão e com sua função social. Uma escola fundada na convivência entre identidades múltiplas em plena era do conhecimento, sem negá‑las ou omiti‑las.

1.2. Diversidade cultural –espaço de diálogos e confrontos

A diversidade é expressão de vida e de identidade humana. Vivemos em contextos atravessados diuturnamente por diferenças culturais, resul‑tantes da diversidade. Essas diferenças geram uma multiplicidade de olhares, de valores, de linguagens, de crenças, em um movimento dinâ‑mico em constante processo de renovação, ou seja, a diversidade cultu‑ral é fruto das trocas entre sujeitos, grupos sociais e instituições com base nas diferenças, desigualdades, tensões e conflitos que se caracteri‑zam como um conjunto de opostos, divergentes e contraditórios.

Morin (2001) defende que os sujeitos conhecem, pensam e agem em conformidade com paradigmas inscritos culturalmente neles. Esses

Para se consolidarem, as culturas singulares precisam ter reconhe‑cido seu lugar social. Essas questões ganham mais complexidade no contexto brasileiro, pois somos fruto de um processo colonizador cuja característica fundamental foi a mestiçagem cultural. Uma educação multicultural pressupõe ouvir as vozes silenciadas pelos processos de dominação, trazendo à tona outros e possíveis modos de subjetivação e de compreensão das realidades.

Há, portanto, urgência na aproximação entre as culturas da escola e as culturas de origem das crianças e dos jovens, abrindo espaço às dife‑rentes representações que circulam na escola e em outros espaços de produção, concretizando, dessa forma, um espaço de produção multi‑cultural. Nessa perspectiva, cabe à escola assumir para si a função de promover o encontro entre diferentes formas de ser, pensar, sentir, valo‑rizar e viver, construídas em um marco de tempo e de espaço que dão pertinência e identidade aos sujeitos e grupos sociais (KREUTZ, 1999).

É importante que o professor tenha claro os objetivos e resultados que pretende alcançar na gestão da aula, de forma a possibilitar oportu‑nidades a todos. Tais práticas exigem que a escola assuma sua função social, amplie os processos de gestão e formação reflexivos e críticos a fim de produzir a reorganização curricular para promover o convívio com diferentes realidades culturais, o respeito ao outro, o conhecimen‑to das diferenças e, a partir delas, promover mais aprendizagens, cons‑truindo, assim, redes de apoio mútuo.

As atuais propostas educacionais precisam considerar as múltiplas demandas simbólicas dos sujeitos que são interpelados pelas tecnologias e imersos numa diversidade de discursos produtores de realidades – ao mesmo tempo em que falam sobre a realidade, também a produzem. A escola necessita lidar com as diferenças culturais apresentando respos‑tas às demandas midiáticas, oferecendo outras possibilidades de lidar com o real e com o inefável.

Dessa forma, a cultura assume função preponderante no processo cognitivo, pois, ao situar o sujeito em seu tempo histórico, estabelecen‑do relações, solucionando conflitos e intervindo socialmente, ajuda‑o

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mais, sendo desvelada e enfatizada, visto que é condição fundamental para entender como aprendemos e como compreendemos o mundo e a nós mesmos. Por tudo isso, ela se constitui em importante fator na cons‑trução dos projetos curriculares, tornando a escola um espaço de inclu‑são e coesão social. A cultura de cada sujeito é um apelo à aceitação da do outro, à partilha, à formação integral e à convivência. Enquanto espa-çotempo de relações sociais e, por extensão, de transmissão cultural, a escola precisa buscar novas formas para explorar e elaborar o conheci‑mento no campo da pesquisa e da educação.

A temática da diversidade cultural ganha relevância a partir do momento em que a escola desenvolve um ensino que procura atender a diversidade cultural dos sujeitos que a constituem, interessando‑se por todos os estudantes, desde os mais sensíveis aos pragmáticos, dos com‑petitivos aos colaborativos, dos lentos aos rápidos, dos oriundos de dife‑rentes arranjos familiares.

No espaçotempo escolar, a criança convive com a diversidade quando partilha vivências com aquelas de costumes, valores, dogmas religiosos, visões de mundo, conhecimentos diferentes daqueles que conhece. Existe, porém, um imenso fosso que separa essas questões da prática pedagógica. Verifica‑se um ofuscamento de tais temas no âmbito esco‑lar. Por um lado, existe uma cultura erudita e etnocêntrica 5, que está vinculada aos chamados conteúdos formais e particularmente identifica‑da com a classe dominante. Por outro, detectamos uma cultura popular guetizada, disfarçada nas práticas pedagógico‑curriculares no interior das escolas. Os currículos planejados e desenvolvidos nas salas de aula apresentam uma grande parcialidade no momento de definir a cultura legítima, os conteúdos culturais que valem a pena ser ensinados (TORRES

SANTOMÉ, 1995).Dessa forma, por muito tempo, privilegiou‑se o acesso à cultura

dominante, agregando‑lhe maior valor e visibilidade. A diferença, no entanto, pulsa nas inúmeras salas de aula do país, e na Instituição Marista não é diferente. Tal realidade exige que pensemos em sujeitos reais, com emoções, desejos, valores, medos e que precisam ser considerados e

paradigmas instauram relações que constituem axiomas, determinam conceitos e comandam discursos ou teorias.

Ao discutir educação, Delors et al. (1998) afirma que ela funciona como um veículo transportador de cultura e valores que tem por obje‑tivo estabelecer vínculos sociais, um espaço de socialização que faz da diversidade fator positivo. Nessa perspectiva, a diversidade cultural no espaçotempo escolar existe e acontece de forma natural. Historicamente, contudo, a escola tem dificuldades para lidar com a diversidade e, muitas vezes, as diferenças tornam‑se problemas ao invés de oportunidades para produzir saberes.

É importante destacar que a diversidade não seja considerada como algo a ser atenuado, fazendo com que todos pareçam iguais quando não o são, mas como elemento enriquecedor para o currículo e, por isso, com objetivos específicos que considerem as diferenças, valorizando‑as, fazendo do espaçotempo escolar um lugar para o exercício de uma educa‑ção em que valores e culturas coabitem, respeitando‑se e interagindo.

Figueiredo (2002) afirma que as diferenças nos fazem únicos. As similitudes, no entanto, nos aproximam como sujeitos do grupo social, visto que as semelhanças geram sentimento de pertença, além de forta‑lecer os vínculos com as instituições sociais, com a família, com a esco‑la, com a comunidade, com o grupo de amigos, entre outros. Assim, temos necessidades de identificação e diferenciação que se evidenciam no diálogo e nas trocas interculturais.

No contexto educacional, contudo, a igualdade é um valor funda‑mental que não se esgota no indivíduo, mas se expande em direção a aspectos de natureza política, social e econômica, aproximando os sujei‑tos. Isso não significa negar as diferenças inerentes a cada sujeito. Ser diferente, nessa perspectiva, é viver em condições de poder construir, conjuntamente, processos democráticos em que o intercâmbio se faça de igual para igual, de forma a promover a solidariedade e a dignidade (IMBERNÓN, 2004).

Mantoan (2003) comenta que as diversidades culturais, étnicas, reli‑giosas, sociais, de gênero, ou seja, a diversidade humana está, cada vez

5 Visão de mundo da sociedade branca dominante que se toma por mais importante que as demais.

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de abordagens que privilegiem o nível local, ou seja, as cidades, no âmbi‑to das políticas culturais, bem como ter claro que estamos lidando com a promoção da diversidade em um país que é culturalmente diverso, mas é, sobretudo, socialmente desigual.

A emergência e relevância do estudo dessa temática no campo da educação evidenciam‑se quando os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) para Educação Fundamental no Brasil elegem a pluralidade cultural, como um dos temas curriculares transversais. Fazer a educação na diver‑sidade significa ensinar em um contexto educacional no qual se destacam as diferenças individuais, ampliando e flexibilizando os currículos prati‑cados. Para tanto, a escola pode proporcionar o acesso a diferentes cul‑turas. Isso implica considerar a variedade linguística praticada em sala; as medidas referentes à organização e distribuição dos alunos de acordo com suas diferenças individuais; os conteúdos curriculares; a organiza‑ção e conteúdo dos materiais didáticos; o processo avaliativo etc.

Nessa amálgama intercultural em que nos constituímos, existem centenas de grupos que se organizam em torno da capoeira, do teatro, da dança, da música, do cinema, das comunidades na internet e das fes‑tas, das manifestações religiosas tradicionais, entre muitos outros exem‑plos. Com base nessas ações culturais, constroem‑se sentimentos de identificação e de pertencimento, laços com a comunidade, senso críti‑co, ou seja, são formas de simbolização e defesa na relação com as reali‑dades vigentes.

Do ponto de vista cultural, a diversidade pode ser entendida como construção histórica, cultural e social das diferenças, que são, por sua vez, construídas pelos sujeitos sociais ao longo do processo histórico e cultural, nos processos de integração do homem e da mulher ao meio social e no contexto da cultura das relações de poder. É nesse contexto que os sujeitos constroem suas identidades.

Assim, quando falamos de diversidade cultural, falamos de todas as expressões culturais da nossa diversidade. A partir daí, vemos que é preciso reconstruir ou criar possibilidades de existência para essa diver‑sidade dentro da educação, não de modo superficial e folclórico, pois

ouvidos, pois não podem fundamentar suas aprendizagens apenas nos referenciais alheios. Os estudantes precisam de alguns referenciais que lhes sejam, de fato, próprios e significativos.

Nessa perspectiva, a diversidade sempre esteve presente na escola, nos diferentes ritmos de aprendizagem, no contato com as várias realida‑des sociais e culturais. O reconhecimento e o trabalho com a diferença é fundamental para a construção e o desenvolvimento de processos em que diferentes sujeitos desenvolvem relações mais solidárias e cooperativas.

Para Brotto (2001), a convivência e a diferença são importantes numa relação cooperativa. A vivência compartilhada entre as pessoas, a refle‑xão sobre o diferente e as ações baseadas no diálogo, no consenso e na integração visando a transformações desejadas pelo grupo são os pilares de uma pedagogia cooperativa.

Em uma sociedade dividida, a cultura é o terreno em que por exce‑lência se dá a luta pela manutenção ou superação das divisões sociais. O currículo educacional, por sua vez, é o terreno privilegiado de manifes‑tações desses conflitos que não podem ser vistos como locus de transmis‑são de uma cultura incontestada e unitária, mas como um campo em que se tentará impor tanto a definição particular de cultura da classe ou do grupo dominante quanto seu conteúdo. A educação para a diversida‑de é necessária, mas precisa ser entendida menos como uma atitude de respeito passivo e mais como uma forma de ser e estar no mundo, nem melhor ou pior, simplesmente diferente.

A Convenção sobre a Proteção e a Promoção da Diversidade das Expressões Culturais 6, aprovada pela Unesco em 2007, protege o direi‑to à diferença, partindo do princípio de que a diversidade cultural é um valor universal, e discute o impacto sobre a circulação de bens e servi‑ços culturais e a efetividade sobre proteção e promoção do direito à diversidade. Por essa vertente, o texto explora o desenvolvimento de políticas para tratar das diferenças sociais a fim de dar acesso à expressão da diversidade.

Machado (2008), em consonância com esse posicionamento, afirma que o Brasil precisa investir em dois aspectos fundamentais: a inclusão

6 Aprovada pela Unesco em 2007 e ratificada por 30 países, incluindo o Brasil, a Convenção é um instrumento jurídico internacional, que necessita da mobilização e do debate permanente de todos para produzir alternativas em defesa da promoção e proteção da diversidade.

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isso pode gerar a deformação dos valores culturais. É importante que o contato com as culturas seja feito de forma contextualizada, aprofundan‑do a compreensão de situações reais.

A educação, na linha das concepções de Freire (2003), como ato de conscientização, de problematização de situações e, consequentemente, libertadora, constitui processo pelo qual, na relação sujeito‑objeto, os estudantes adquirem capacidade de captar, de forma crítica, a unidade dialética entre o eu e o objeto. O questionamento dos valores vigentes, o conhecimento dos mecanismos, os conceitos da dominação social, cultural, econômica e política são fundamentais para o desenvolvimento de uma cultura do acolhimento de todos de forma igualitária e de valo‑rização das diferenças (Conferência Mundial Sobre Necessidades Educativas Especiais, 1994).

A prática docente, nesse contexto educacional, precisa favorecer o exame crítico das realidades e contextos, histórico e socialmente cons‑truídos. Necessita, ainda, produzir discursos sensíveis ao poder que lhes permita interagir com outros discursos e formas de ver e estar no mundo, de modo a vivenciar múltiplas experiências e interagir com posições diferentes, favorecendo, dessa forma, a expressão de muitas, complexas e diferentes vozes. Trabalhar com a diversidade não é uma tarefa fácil para o professor, pois exige a compreensão de como ela se manifesta e em que contexto. Integrar questões étnicas significa ampliar a discussão, abrangendo as desigualdades sociais, as diferenças culturais, o direito a ser diferente – renovando, assim, as propostas curriculares, promovendo uma educação mais significativa e democrática.

A proposta de uma educação voltada para a diversidade vem ao encontro dos ideais de Champagnat e nos desafia a estar atentos às dife‑renças econômicas, sociais, culturais e étnicas e a buscar um saber crí‑tico que permita interpretá‑las. O Projeto Marista para o EF, nessa perspectiva, propõe que nossas escolas sejam espaços para o exercício de uma cidadania plural, que produza um campo de força em que diferen‑tes significados possam surgir e interagir. Nessa perspectiva, propomos educar pela e para a solidariedade ao acolher, em nossas escolas, crianças

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e jovens de diferentes contextos, proporcionando a vivência da diversi‑dade, estimulando os estudantes ao diálogo e à interação.

Essas aprendizagens implicam aprender a posicionar‑se de forma a compreender a relatividade de opiniões e escolhas, além do exercício constante do respeito ao outro. Isso porque entendemos a prática com a diversidade cultural como exercício cotidiano que envolve um dinamis‑mo social e econômico capaz de ampliar e descerrar outros olhares e saberes, fundamentais ao desenvolvimento de valores, à criatividade, à inovação e às relações sociais.

1.3. Identidades – modos de ser sujeitos

As mudanças na contemporaneidade ocorrem de forma veloz, produzem ambientes provisórios e variáveis, e transformam as paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia etc. Forquin (1993) comenta que alguma coisa mudou na própria mudança – é a rapidez e a aceleração contínua de seu ritmo, e é também o fato de que ela se tenha tornado um valor enquanto tal e, talvez, um princípio de avaliação das coisas.

Para Hall (1997), as transformações interferem em nossas identida‑des, abalam a ideia que temos de nós mesmos como sujeitos integrados e geram uma fragmentação, dando origem não a uma identidade, mas a identidades, algumas vezes contraditórias ou não resolvidas. Bauman (2005) reconhece a complexidade da temática ao afirmar que a identida‑de é uma ideia inescapavelmente ambígua que pode ser, metaforicamen‑te, descrita como um grito de guerra usado em uma luta defensiva.

Numa abordagem antropológica, identidades são construções que se fazem com atributos culturais, isto é, elas se caracterizam pelo con‑junto de elementos culturais adquiridos pelo sujeito por meio da heran‑ça cultural, conferindo diferenças aos grupos humanos. Assim, as identidades se evidenciam em termos da consciência da diferença e do contraste em relação ao outro. Soma‑se a isso o fato de nosso modo de ser e estar no mundo ser mediado pelo diálogo e pela negociação por

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meio de linguagens plenas de significado e fundamentais à formação de nossa identidade.

A identidade é o processo de construção de significados que se esta‑belece nas relações sociais. Esses significados são aprendidos e ensinados nos grupos e é a cultura que dá sentido àquilo que se aprende. A identi‑dade tem como contexto a historicidade, não é fixa e se transforma conforme as relações vão se estabelecendo nos grupos em um processo de construção. O indivíduo se transforma ao longo da vida, aprende coisas novas, seus gostos mudam, sua forma de pensar se modifica e, com isso, a maneira de perceber o mundo adquire outras formas.

A constatação de que as sociedades contemporâneas são totalidades dinâmicas e evolutivas a partir de si mesmas, que constantemente alte‑ram seus pontos de equilíbrio por forças externas a elas, obriga os sujei‑tos a assumirem, no mesmo ritmo, identidades diferentes em momentos distintos, seja por imperativos de socialização ou de globalização dos meios de comunicação de massa. Taylor (1997) conjuga a individualidade com as relações dialógicas para estabelecer a identidade como aquilo que nós somos, de onde viemos, pois é fonte de sentidos e de experiência.

A identidade do sujeito pós‑moderno, de acordo com Hall (2006), é definida historicamente, formada e transformada continuamente em relação às maneiras pelas quais somos representados e tratados nos sis‑temas culturais em que estamos inseridos. O autor afirma, ainda, que uma identidade totalmente segura, unificada e coerente é uma fantasia, pois uma multiplicidade de identidades pode surgir com base na multi‑plicação dos sistemas de significado e de representação cultural.

Para Castells (2001), identidade é fonte de significado e experiência de um povo, ou seja, é processo de construção de significado baseado em um atributo cultural ou, ainda, conjunto de atributos culturais inter‑ ‑relacionados, que prevalecem sobre outras fontes de significado. Nessa perspectiva, o autor diferencia identidade e papéis desempenhados pelos sujeitos na sociedade. O papel de estudante – ou de professor, mãe, diretor, por exemplo – é definido por regras das instituições e organi‑zações sociais. As identidades, no entanto, são produzidas pelos próprios

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sujeitos sociais e são construídas por meio de processos de individuação, podem também ser formadas por instituições dominantes. Isso ocorre porque os indivíduos internalizam um desejo de construir sua identidade por meio dessas instituições.

Castells (2001) elenca três possibilidades para a construção de identi‑dades: a primeira é a legitimadora, que é introduzida pelas instituições sociais dominantes para expandir e racionalizar sua dominação diante dos atores sociais, que reproduzem e racionalizam as fontes de domina‑ção. A identidade de resistência, a segunda apresentada pelo autor, é cria‑da por atores sociais dominados ou estigmatizados pelas forças de domi‑nação. É marcada pela resistência aos princípios que definem as institui‑ções dominantes e pela formação de comunidades, numa expressão coletiva diante da opressão. Por fim, o autor elenca a identidade de proje-to, criada por atores sociais que produzem uma nova identidade baseada em materiais culturais que estão à disposição, com o objetivo de redefi‑nir sua posição social e transformar as estruturas existentes. Os sujeitos constroem sua identidade com base em um projeto de vida diferenciado, que visa à transformação social como prolongamento dessa identidade.

Na contemporaneidade, as identidades legitimadoras perderam sua força e capacidade de manter um vínculo com a vida e os valores, abrin‑do espaço para as de resistência, que lutam por suas crenças e valores e criam uma identidade comum. Já as identidades de projeto implemen‑tam movimentos e mudanças e desenvolvem‑se pautadas nas identidades de resistência. Nessa linha, Giroux (2003) argumenta que a natureza estratégica e performática da cultura como um terreno da política, com poder para criar mudanças sociais por meio da expansão de identidades, de relações e de arranjos institucionais democráticos, é entendida, mui‑tas vezes, como uma ameaça às configurações estabelecidas de poder.

Embora estabeleçam relações com os estilos de vida locais e relações sociais globalizadas, virtualizadas em comunidades, reorganizando os espaços da vida cotidiana, as mídias se apresentam na sociedade contem‑porânea como mediadoras de uma nova configuração das relações sociais, em que, cada vez mais, as pessoas vivem e interagem em espaços

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separados. A revolução da informação e da comunicação é responsável por novas configurações de relacionamentos, papéis, identidades, redes e comunidades. É a ideia da dinâmica do transitório, impondo‑se sobre o perene (BAUMAN, 2005).

A sociedade da informação pretende ser uma dessas forças que con‑duz à unidade e às modificações de caráter globalizante. As ciências sociais tendem a detectar a globalização como um processo originalmen‑te considerado como a ocidentalização dos valores culturais de nossos tempos. Por outro lado, a globalização exige que as identidades locais assumam características próprias e, ainda que pareça utópico, a socieda‑de da informação também pode ceder espaço para culturas geografica‑mente fora do mundo ocidental ou submissas às regras ocidentais. Nesse debate sobre o global e o local é que se constroem novas identidades.

A globalização pode ser entendida como um processo milenar, ini‑ciado quando o homem primitivo saiu da caverna para juntar‑se a outros e viver em bandos. Na contemporaneidade, isso continua acontecendo quando os sujeitos podem estar em qualquer lugar de forma virtual por meio das tecnologias da comunicação. O processo de globalização ins‑trumentalizado pela troca acelerada da informação por meio das mídias não provoca a homogeneização das culturas e das identidades. Ao con‑trário, antigas identidades sociais e culturais sobrevivem e se multipli‑cam, como as identidades religiosas e étnicas, que representam uma maneira de resistir à introdução de novos modos identitários uniformi‑zantes. Isso acontece porque a própria condição dessas identidades engendra a necessidade de lutar pela sobrevivência e, nessa luta, incluem‑ ‑se os signos que preservam uma identidade própria, diferenciando‑se da cultura dominante.

As considerações tecidas põem em relevo que não é a identidade que define os grupos que desejam uma única religião, crença ou cultura, mas sim o desejo de continuarem vivendo e mantendo viva sua cultura, não por um pertencimento herdado, mas por refletir uma escolha de não se renderem à assimilação, de uma identificação que os situa como sujeitos únicos em um espaçotempo cada vez mais fragmentado. Santos (1999)

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1.4. Múltiplos olhares sobre o Ensino Fundamental

A prática educativa é tudo isso: afetividade, alegria, capacidade científica, domínio técnico a serviço da mudança ou,

lamentavelmente, da permanência do hoje.

(Paulo Freire)

É importante assumir que vivemos tempos de diferenças e que a globa‑lização contesta as identidades fixas que dão estabilidade às instituições sociais. Assim, como reconhecer a mobilidade e volatilidade das identi‑dades, das culturas, dos procedimentos e do fazer pedagógico?

Encontramos nos cenários escolares, especialmente no segmento do EF, identidades maleáveis, diversidade de culturas, saberes e fazeres par‑ticulares, e sujeitos dispostos a produzir narrativas próprias ao construí‑ rem e inventarem lugares sociais. É um espaçotempo em que significa‑mos, aprendemos, enquanto ensinamos e ressignificamos.

Dentre as indagações e inquietações que envolvem o segmento, a questão do respeito às diferenças, do multiculturalismo que se expressa nos espaços educacionais é emergente e necessita renovar alguns para‑digmas/práticas sob o signo da diversidade. Uma escola que considera e explora as diferenças culturais e individuais é uma escola que respeita, valoriza e inclui sua comunidade educativa. Tal abordagem reconhece as diferenças e, a partir delas, realiza a gestão da aprendizagem.

O EF é responsável por aprendizagens fundamentais e teve, por muito tempo, identidade baseada na hierarquia acadêmica, alocando questões de relevância para os processos escolarizantes de base. Ao revi‑sitar as bases do segmento, identifica‑se que algumas realidades/apren‑dizagens necessitam ser significadas. Por isso, é importante focar os objetivos delineados, sob pena de se perder as intencionalidades previs‑tas para o EF nas Unidades Maristas e, até mesmo, na sociedade.

As diferentes realidades dos sujeitos evidenciam que não é possível separar a educação do meio social, pois ela deriva das demandas do meio, assim como também as provoca. Nessa perspectiva, interessa‑nos a

sintetiza essa questão ao afirmar que temos direito à igualdade, quando a diferença nos inferioriza, e direito à diferença, quando a igualdade nos descaracteriza.

A diferença, nessa perspectiva, é fundamental para o multicultura‑lismo e está no centro das discussões sobre identidade, pois é fruto de processo social e histórico e constitui, simultaneamente, um resultado ao considerar o passado e privilegiar o processo que resultou em dife‑rença, mas também uma condição transitória ao privilegiar a continui‑dade da dinâmica que constituirá uma configuração posterior (SEMPRINI,

1999). Assim, a identidade relaciona‑se à diferença à medida que separa uma identidade da outra, reconhecendo outras identidades.

No campo educacional, a escola tem uma complexa tarefa de traba‑lhar com as identidades, pois lida com a identidade individual de cada aluno, com a própria identidade coletiva, além da identidade que lhe é atribuída publicamente como parte do coletivo (FISCHMANN, 2002). A organização do currículo escolar, nesse sentido, precisa considerar que a diferença é inerente ao sujeito, que possui necessidades e caracte‑rísticas próprias com as quais enfrenta as experiências da aprendizagem planejadas para ele.

Educar para e dentro da diversidade e diferença implica outro olhar sobre os processos e práticas educacionais, sobre a constituição dos cur‑rículos e as relações da comunidade educativa. Ao buscarmos solucionar os conflitos, relacionamo‑nos, questionamos, investigamos e produzi‑mos conhecimento e cultura.

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A educação Marista tem compromisso com a formação de sujeitos para a vida, com visão crítica, política e social. Sabemos que boa parte desse processo se organiza e se consolida no período do EF, assim como constatamos que esse percurso tem influência direta da política cultu‑ral, permeada pelas relações de poder e pelos interesses que, historica‑mente, se comprometem com a produção de determinadas identidades e subjetividades e com a exclusão das diferenças.

O EF é espaçotempo privilegiado para se estabelecer o diálogo entre as diversas culturas, abrindo espaço para o pluralismo cultural brasilei‑ro. Tal perspectiva multicultural possibilita a ampla visão da realidade.

Isso não significa simplificação ou ausência de critérios para os dife‑rentes níveis de aprendizagem. Ao contrário, exigirá outras dinâmicas na gestão da aula e nas atividades desenvolvidas fora do ambiente escolar, na organização do espaço e do tempo escolar em diferentes formatos, de forma a extrapolar o discurso retórico, abrindo espaço para o diálogo, a dialetização, a mediação de diferentes pontos de vista, a dedução, a indução, entre outras possibilidades. Requer, ainda, a busca e incorpo‑ração de outros agentes sociais de divulgação de saber e culturas, de forma a ampliar o repertório cultural e promover a apropriação cultural efetiva e não apenas a reprodução mimética de uma versão dominante.

Roldão (2007) defende que tomar a diversidade como paradigma organizador implica uma evolução na prática de ensinar, ou seja, um desempenho de natureza solidamente profissional que se construa num saber próprio e na rejeição de uma prática pedagógica marcada por com‑ponentes de funcionalismo e/ou de tecnicidade essencialmente. Alarcão (2001), em consonância com essa afirmação, defende que tal prática exige profissionais comprometidos com a melhora real dos processos, que possam, queiram e saibam fazê‑lo, em constante análise, avaliação e ajustes dos modos como organizamos o ensino e as aprendizagens de nossos diferentes alunos.

Importante se faz entender esse movimento, pois a diferença assim posta pode, no contexto do EF, ser tanto uma oportunidade quanto uma dificuldade. É uma oportunidade porque os embates entre os diversos

capacidade criativa dos sujeitos, a visão de mundo, de enfrentamento das adversidades, do inusitado, de exploração e produção do inédito viável.

A relação entre cultura e diversidade deve ser entendida como decorrente de diferentes contextos e modelos histórico e politicamente construídos. A articulação entre cultura e diversidade parte da integra‑ção das dimensões humanizadora e educativa, coletiva e política, produ‑tiva e econômica. Segundo Barros (2008), cultura, diversidade e desen‑volvimento devem ser lidos criticamente, pois a diversidade é expressão das diferenças que se tencionam dinamicamente e, ao mesmo tempo, se articulam, se afetando, de forma que tudo pode estar ligado a tudo.

É nesse contexto de cultura globalizada, de identidades voláteis e de sujeitos multiculturais, que a educação abre o campo social e político para a produtividade e a polissemia, para a indeterminação, para a mul‑tiplicidade e a disseminação do processo de significação e de produção de sentido.

Culturas, saberes e fazeres são conteúdos velozmente transforma‑dos em currículos. Segundo Apple (2001), pedagogia democrática e currículo se instauram por meio de diferentes posicionamentos sociais e repertórios culturais nas salas de aula, assim como as relações de poder entre eles. A construção de um currículo que atenda diferentes culturas é uma necessidade. Nesse sentido (Brasil, 1997), os PCN desta‑cam a importância de se saber discutir pluralidade com base nas dife‑renças dos próprios alunos.

Nos sistemas escolares, questões de diversidade cultural e identida‑des, muitas vezes, não são levadas em consideração nas práticas pedagó‑gicas. Vários olhares no espaço escolar poderão nos demonstrar por que tais questões têm sido negligenciadas. O professor, muitas vezes, muni‑do apenas de quadro e giz, torna‑se reprodutor de um discurso domi‑nante que nem mesmo ele percebe. Sobre essa questão, Sacristán (1995)

lembra‑nos de que o professorado atual é fruto de modelos de socializa‑ção profissional que lhe exigiam atenção à formulação de objetivos e metodologias, não considerando objeto de sua incumbência a seleção de conteúdos culturais.

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Oportunidades – Relaciona-se ao meio familiar e social de origem.

Não se trata apenas de nível sociocultural, há também o envolvimen-

to, a sensibilidade, o estabelecimento de limites por parte das famí-

lias. A educação familiar é um fator importante na formação do

sujeito, no desenvolvimento da criticidade, da ética e reflete direta-

mente no processo escolar. A criança e o jovem necessitam estabele-

cer com seus familiares e outros adultos relações equilibradas e afe-

tivas decorrentes da construção de limites e vínculos. A educação

voltada para a diversidade demanda um grande desafio por parte de

toda a comunidade educativa, pois requer atenção às diferenças eco-

nômicas, sociais, políticas, raciais e culturais, propiciando o caminhar

para o domínio de um saber crítico que permita interpretá-las.

Atentar para as realidades plurais no segmento do EF implica consi‑derar que todos aprendem de acordo com suas possibilidades/potencia‑lidades. Para isso, precisamos explorar os conflitos cognitivos pelo ensino de competências, habilidades e conteúdos curriculares, em um processo de autorregulação ativa, relacionando o novo ao já apropriado. Atividades que favoreçam a autoestima, a flexibilidade curricular, a superação da cultura do individualismo, assim como a criação de espa‑ços para convivência potencializarão essa prática e fortalecerão as rela‑ções entre professores, estudantes e comunidade educativa, ou seja, é uma opção política, social, cultural e ética.

Tal prática requer outro olhar sobre os sujeitos e seus contextos, requer uma visão sistêmica do processo ensino‑aprendizagem de modo a se instalar um diálogo entre o saber e a aprendizagem, promovendo a emancipação do sujeito. Demanda, ainda, uma pedagogia baseada em princípios de equidade, de modo que o estudante se sinta em um ambiente de respeito. Esse complexo movimento prescinde de esforço para que possamos compreender as dinâmicas que perpassam e diferen‑ciam o segmento.

As narrativas até aqui construídas com os sujeitos reais e sociais são e continuarão sendo legítimas, já que são próprias de povos e de socie‑dades dialéticas. Não podemos negar o aparecimento de possibilidades diferentes, velozes, midiáticas de se construir conhecimentos e outras

grupos e sujeitos propiciam momentos de convivência com outras for‑mas de ver e significar que se expressam nas culturas e na história; ajudando‑nos a compreendê‑las e a desenvolver empatia por elas; enten‑dendo que lidar com a diversidade é exercício cultural.

Ao mesmo tempo, a diferença pode ser uma dificuldade em termos educacionais porque pode provocar conflitos e compreensões equivoca‑das, pois certas diferenças estão imbuídas de marcas de poder que nos dividem, assim como podem revelar significados que estão além do limi‑te da linguagem e de nossa capacidade de compreender. Esses fatores, muitas vezes, se contrapõem a outros valores e objetivos educacionais e produzem posicionamentos mais conservadores nos ambientes escola‑res, favorecendo a organização em torno de grupos mais homogêneos a fim de atenuar algumas tensões causadas pelas diferenças.

No dia a dia do EF, o professor depara‑se, constantemente, com uma ampla diversidade de sujeitos em sala de aula, visto que as crianças e jovens são diferentes uns dos outros em muitas dimensões, por exemplo:

Estilo – Envolvem as características pessoais que interferem na

aprendizagem, nas relações sociais e estão ligadas a aspectos orgâni-

cos, cognitivos, emocionais e sociais. Os sujeitos possuem caracterís-

ticas próprias. Os diversos contextos culturais e as variadas circuns-

tâncias criam as suas próprias possibilidades e desafios diante da

realidade, como interpretá-la e representá-la, criando significado

sobre o mundo que os rodeia e sobre si mesmo, a fim de se ver,

se compreender e se valorizar.

Idade – Durante a infância, um ano ou apenas meses significam

níveis e ritmos diferentes de desenvolvimento. Constituídos por

determinantes biológicos e por concepções culturais, os sujeitos vão

construindo as diferentes temporalidades. Conhecê-las e respeitá-las

permite aos educadores estabelecer relações equilibradas, para que

haja uma educação inclusiva.

Capacidades – O desenvolvimento das capacidades motoras, inte-

lectuais, comunicativas, entre outras, se dá de forma individualizada

e gradual. É preciso exercitar essas capacidades em um movimento

contínuo.

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dinâmicas. As TICs, como linguagem contemporânea de comunicação, potencializam o uso da tecnologia a favor das culturas. Por meio da tec‑nologia da informação e da comunicação, acessada livremente e/ou disponibilizada aos sujeitos, é possível favorecer o processo ensino‑ ‑aprendizagem, realizar movimentos convergentes e continuados.

Entendemos que qualquer criança e jovem, independentemente de suas diferenças, partilham características comuns ao momento vivido, isto é, precisam de afeto, de interação e comunicação, de compreensão, de motivação, de orientação, entre outras. Uma escola inclusiva, que considere a diversidade como uma oportunidade para a formação e a ampliação das aprendizagens, não é uma utopia e também não pode ser realizada de forma individual. É necessário que a comunidade educativa se mobilize e trabalhe em conjunto.

No cotidiano do EF, buscamos desenvolver o pensamento analítico e crítico das crianças e jovens por meio dos valores, dos conhecimentos conceituais procedimentais e atitudinais que envolvem o aprender a viver em um mundo cada vez mais interconectado, diversificado e plu‑ral, propenso ao choque de culturas, ao confronto de visões do senso comum e às escalas de valores. Brincar, criar, explorar, imaginar, inves‑tigar, inventar e descobrir, nesses cenários, devem permear as práticas educativas do segmento.

Essa construção acontece no terreno fértil da cultura Marista, das culturas infanto‑juvenis, das identidades multiculturais que, no coletivo, mobilizam e ressignificam as paisagens sociais de tal forma que concei‑tos, procedimentos e atitudes, mediados por sujeitos mais experientes – aqui identificados como professores –, instrumentalizam crianças e jovens, que experimentam um jeito próprio de fazer educação.

A Missão Educativa Marista propõe sua contemporaneidade perma‑nente e nos remete a reflexões, retomadas e reorganizações responsá‑veis. Assim, a Pedagogia Marista propõe outras formas de fazer educa‑ção ao apresentar projetos educativos fundamentados nos ideais de Champagnat, que mobilizam os educadores em torno de processos for‑mativos que consideram o pluralismo e a coletividade e, consequente‑mente, se constitui em espaço de afirmação de identidades culturais.

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SUJEITOS DO ENSINO FUNDAMENTAL:

INFÂNCIAS, JUVENtUDES E DOCENtES

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Falar de sujeito, para Foucault (2004), é falar de modos de subjetivação, de como se instituiu um “conhecimento de si”, da longa história de fazer do sujeito um objeto de conhecimento pelo homem, dos processos que fixam identidades, mantêm‑nas ou as transforma.

2.1. Infâncias – contextos e representações

Somos, desde o início de nossas vidas, seres plurais cujo intelecto e razão misturam‑se com o sonho e o imaginário. A infância faz parte de uma categoria geracional, marcada pela diversidade, pelas culturas e pelas identidades. A compreensão dessa categoria está intimamente ligada ao lugar social que a criança ocupa na relação com o outro, especialmente com os adultos.

As culturas infantis da contemporaneidade não são iguais às culturas infantis do passado, pois se manifestam e se estruturam em outro espa- çotempo, com outros valores e realidades. São produzidas por crianças de variados espaços e tempos que vivem suas experiências de maneira sin‑gular, assim, a infância é uma experiência heterogênea, marcada pela diversidade cultural e pelas diferenças sociais. Um olhar mais aprofun‑dado sobre o tema revela que a infância é um legado da modernidade, produzido pelo Ocidente e se constitui em uma noção historicamente construída e determinada pelo contexto. Para compreender melhor as infâncias e nela alocar os sujeitos‑crianças, faz‑se necessário conhecer

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os diferentes momentos históricos, observar a intencionalidade da cons‑trução desse conceito.

Os inúmeros saberes que orientaram a construção das representa‑ções de infância/criança sofreram influência das áreas do conhecimento ao longo dos séculos. Isso pode ser observado nos textos da Antiguidade clássica e da Idade Média, principalmente a partir do século XVII. Na Europa, a produção de estudos sobre infância ampliou a compreensão de aspectos ligados à saúde, ao direito e, especialmente, à pedagogia. Esses conhecimentos favoreceram a formação e escolarização das crianças.

Já entre os gregos havia um sentimento de infância, uma represen‑tação circunscrita naquele tempo histórico, um período em que as crianças aprendiam sobre as culturas e os saberes próprios do seu povo. Na Grécia antiga, tanto o escravo quanto a criança eram considerados sujeitos sem autonomia ou possibilidade de individualização, necessitan‑do, portanto, de alguém que os conduzisse. Embora não aplicassem pena de reclusão às crianças, como faziam com os escravos, muitas atitudes em relação aos escravos eram praticadas com as crianças.

A sociedade ocidental, influenciada por diferentes questões sociais, pelo pensamento cristão e cultural, foi construindo um ideário de infân‑cia para ser aplicado às crianças. A sociedade romana entendia a criança de forma frágil, sagrada e de poder conferido aos pais. Os infantis eram vistos como dádivas, como recompensas para os adultos, pois os sucede‑riam prodigamente.

Durante a Idade Média, o conceito de criança instalado era de que os infantis necessitavam de tutela. Com influência de pensadores como Santo Agostinho, a infância começa a ser entendida como marca do pecado original, com o ônus que isso representava. Nessa perspectiva, a criança precisava ser reprimida porque já nascera corrompida pelo pecado. Tal compreensão justificava correções por meio de palmatória, varas, entre outros castigos.

Essa concepção influenciou a pedagogia até o final do século XVII, nas suas formas de educar a criança. Nesse contexto, os pais eram orien‑tados a castigar e repreender ostensivamente seus pequenos. Os tutores

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deveriam tratar as crianças de maneira pouco afetiva a fim de reprimir sua natureza maligna. É a partir desse século que a infância passa a ser um instrumento social de fato, sendo institucionalizada e escolarizada para atender à necessidade do momento sócio‑histórico‑cultural vivido. Ao buscar a origem das representações de infância, constata‑se que, até o século XIII, há poucos registros históricos. Essa ausência revela o pouco espaço destinado à infância no período.

Por um longo período da Idade Média, as crianças foram considera‑das um simulacro dos adultos. No cotidiano infantil, eram trajadas como homens e mulheres adultas, participavam de jogos e ofícios sem critérios determinados por idade. O Brasil Colônia sofreu influências desse pen‑samento, o que fortaleceu a proposta pedagógica jesuítica, difundindo a educação com teor religioso, que refletia o movimento da Reforma e Contra‑Reforma da Europa na Colônia.

Por volta do século XIX e início do século XX, acentuou‑se a tenta‑tiva de sistematizar e organizar a educabilidade da criança. Surgiram propostas de se construir saberes na sociedade ocidental, reveladores da representação social de infância. Esse período marca o início do percur‑so de ressignificação da concepção de infância, marcado pela ideia de organização pedagógica na escolarização, agregando significado, desse modo, ao jeito de existir infantil.

Desse contexto, emerge o reconhecimento da existência da criança como objeto de afeto e conhecimento. O percurso, a partir daí, mostra uma representação associada ao pensamento burguês e pouco real. Embasar o conceito de infância no ideário liberal não levava em conside‑ração as construções históricas e as articulações com as relações sociais.

A partir do século XIX, sob a influência das teorias da Psicologia e das Ciências Médicas, a criança começa a ser entendida como um ser biológico, que passa por fases e estágios de desenvolvimento, nos aspec‑tos cognitivos, afetivos e biológicos.

Com as discussões e decisões pautadas no ideal da democracia, no contexto do século XX, a criança é entendida como indivíduo com direi‑tos particulares, restritos à proteção no que se refere aos cuidados e

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necessidades básicas. Castro (2001) observa que as crianças sempre foram compreendidas como “menores” que necessitam ser tuteladas e normatizadas para, mais tarde, se tornarem adultos adaptados.

Esse movimento acabou por desencadear políticas públicas e atendi‑mentos à pequena infância voltados ao assistencialismo descontextuali‑zado e burocrático. A criança, como sujeito de direito, é figura recente na universalização dos direitos humanos. O pressuposto do direito para todos põe em relevo as pesquisas que envolvem a infância e os desdobra‑mentos coadjuvantes a ela, concebendo‑a como tempo legítimo das crianças pequenas que passam a experienciar direitos de fato.

A criança como sujeito de direitos é figura recente na universaliza‑ção dos direitos sociais. Esse pressuposto do direito para todos é mais evidenciado na contemporaneidade, sobretudo na segunda metade do século XX, que, ao dar luz às pesquisas envolvendo a infância e os des‑dobramentos coadjuvantes a ela, passa a entender a infância como um tempo legítimo das crianças pequenas experienciarem direitos de fato.

Desse movimento, surgem legislações próprias de proteção à infân‑cia e à criança, que passa a ser considerada cidadã em uma sociedade paradoxalmente desigual. Assim, no contexto internacional, se estabe‑lece a Declaração Internacional dos Direitos da Criança, em 1959, a Convenção Internacional dos Direitos da Criança, em 1989 e, no con‑texto brasileiro, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) – lei de 1990 que regulamenta o art. 227 da Constituição Federal de 1988 e que atribui à criança e ao adolescente prioridade absoluta no atendimento aos seus direitos como cidadãos brasileiros.

O ECA dispõe sobre a proteção integral e garante às crianças e aos adolescentes reconhecimento como sujeitos de direitos para além dos direitos fundamentais inerentes a todos os cidadãos, pois são considera‑dos pessoas em condição peculiar de desenvolvimento físico, mental, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade (BRASIL,

1990). Trata‑se, pois, de uma cidadania particular que impõe mudanças, pois as crianças e adolescentes passam a ser vistos como cidadãos do presente, pelas possibilidades que têm hoje a partir de suas experiências

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pois são sujeitos que pensam sobre a vida e suas intercorrências, são competentes, articulam hipóteses, ideias e formas de explicar o mundo à sua volta e espera dele atitudes coerentes para com ela.

A cultura, em todas as suas expressões, nas visões de mundo alarga‑das e plurais, é forte aliada dos processos formativos desse novo tempo de ver e entender o universo infantil e sua complexidade. A cultura abarca a sociedade, e também a escola, a educação, a infância, a família e a criança. A criança não necessariamente encontra real significado nas representações socioculturais para ela construídas, isto é, o protagonis‑mo lhe é ainda impessoal.

As diferentes visões da infância partilham a ideia de que a criança é sujeito social e histórico, inserido na cultura de seu tempo de maneira imbricada, pois, ao mesmo tempo que se serve dela para ser e se desen‑volver, produz cultura pelo modo como vive esse período da vida.

Por tudo isso, podemos afirmar que a infância presente em nossas escolas não habita o passado, muito menos o futuro, mas o aqui, este lugar sócio‑histórico‑cultural. Nesse complexo contexto, as crianças crescem e os adultos têm compromisso e responsabilidade política de lhes proporcionarem universos adequados ao desenvolvimento, à cons‑trução de autonomia, à produção de linguagens próprias e identidades singulares.

As crianças nascem e crescem em universos em constante transfor‑mação. Os saberes e a formação dessas crianças passam por mudanças paradoxais de paradigmas e de formas de significar e ressignificar esses sujeitos, principalmente no tocante às características expressas nas manifestações de afeto, cultura e envolvimento social. Ao constituir‑se sujeito, a criança tem no adulto mais experiente a referência para suas construções, sociais, culturais e afetivas, em um movimento de parce‑ria. Daí a necessidade de se pensar como se dá a palavra e a escuta a esse sujeito em processo de desenvolvimento. A escola e a família têm, nesse aspecto, seus campos de atuação, que, se não forem convergentes e intencionais, correm o risco de se perderem no imbricado de papéis de coorientadores dos processos formativos.

cotidianas. O ECA institui, portanto, uma nova determinação, em que os direitos desses sujeitos suscitam responsabilidades para a família, a sociedade e o Estado, convocando a todos para o cumprimento da lei.

As crianças e os adolescentes são marcados pelo transitório e singu‑lar em um constante processo de criação e transformação em suas vidas, reagindo às mudanças sociais como sujeitos de ação. Questões como gênero e etnia, por exemplo, por muito tempo evitadas nos cenários escolares, precisam ser exploradas devido à sua relevância nas culturas infantis. As representações que ontem demarcavam o feminino ou o masculino nas brincadeiras e fazeres de criança, hoje transitam de forma menos identitária e mais livre. Isso não significa que estigmas e precon‑ceitos desapareceram, mas o movimento tende a aproximar olhares e suavizar estereótipos.

A contemporaneidade é povoada por crianças que sofrem a influência das culturas vigentes, principalmente das mídias, e ressignificam os mo‑ dos de ser criança. Elas vivem, muitas vezes, na contramão dos próprios direitos ao experienciarem culturas alheias à sua realidade, esvaziada de significado e pouco apropriada a seu tempo. É uma infância que antecipa o mundo adulto ao consumir uma infinidade de produtos e são sobrepu‑jadas em um período em que estão constituindo suas identidades de gênero, de etnia e de pertencimento a um grupo que produz cultura.

O poder de atração das imagens em movimento, dos efeitos da tec‑nologia e da suspensão da realidade fascina as crianças e promove outras formas de afetos, desejos, necessidades e satisfação, ainda que virtual‑mente. Os contextos culturais gerados pelas mídias, cada vez mais inte‑rativas e sedutoras, os processos afetivos, sociais, motores e cognitivo‑ ‑linguísticos mobilizam outros saberes e fazeres e influem na constitui‑ção das identidades infantis.

Malaguzzi (2001) defende que a criança possui uma centena de lin‑guagens, pois nasce com muitas possibilidades e com muitas expressões e potencialidades que estimulam uma à outra, mas que o sistema educa‑cional pode facilmente privá‑la dessas linguagens. As ideias de Malaguzzi destacam a importância de darmos voz às crianças, levando‑as a sério,

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intelectualmente de acordo com seus mecanismos de funcionamento. Ela integra um grupo sociocultural determinado, que lhe fornece material cultural e com o qual vai interagir na sua vida cotidiana – que engloba desde objetos concretos até conceitos, ideias, valores, concep‑ções sobre o mundo e sobre a própria experiência –, bem como modos privilegiados de operar sobre esse material.

Durante seu desenvolvimento, a criança realiza várias atividades de natureza biológica e cultural, que produzem, naturalmente, suportes para as aprendizagens escolares que vão acontecer na educação básica (LIMA, 2004). As práticas culturais da infância promovem o desenvolvi‑mento desse período, assim como a ampliação da função simbólica, da percepção, da atenção, da apropriação dos artefatos culturais.

Para Sarmento; Pinto (1997), ao se considerar a criança como ator social, é preciso reconhecer sua capacidade de produção simbólica e a constituição de suas representações e crenças em sistemas organizados, ou seja, em culturas de infância, de modo a revelar a existência de uma epistemologia infantil. Dessa afirmação, infere‑se que a infância é um período com características próprias, diverso da adolescência, da juven‑tude e da idade adulta.

Em virtude dessa compreensão, nos espaços maristas de formação, os limites e possibilidades da escola interagem com a organização fami‑liar, com conflitos e contradições que percorrem o caminho da educa‑ção. Coerentes com nosso ideário, empreendemos esforços conjuntos para contribuir com a formação de uma criança capaz, solidária, prota‑gonista e construtora de linguagens e identidades próprias.

Para concretizar esse ideal, buscamos oferecer ambientes significati‑vos e experiências solidárias, abrindo espaço para o exercício constante do desafio, da comunicação e da investigação. Nosso posicionamento baseia‑se na crença de que uma criança que compartilha de uma infância que transpõe tempos do passado e do presente resiste aos modismos sem negá‑los, ressignifica e constrói junto todos os dias a experiência da civi‑lidade, da autonomia, da assertividade, do posicionamento crítico e com‑prometido, enfim do sentimento de pertença aos ideais de Champagnat.

Como as representações sociais da criança desta contemporaneidade são afetadas por questões sócio‑histórico‑culturais próprias deste tempo, é importante observar que a cultura midiática influencia fortemente as culturas escolares. É possível observar fatos surpreendentes nas crianças de convívio próximo, por exemplo, as formas próprias de se relacionar e de significar as brincadeiras e os objetos do brincar. Existe um novo jeito de representar e dar significado a esses âmbitos, bem como ocorre com o papel do outro na brincadeira.

A escola é um espaçotempo de apropriação das culturas do nosso tempo. Ao longo dos tempos, a escola foi contribuindo para a constru‑ção de diferentes representações infantis, nos diferentes momentos his‑tórico‑culturais. Paradigmas foram criados, outros foram desconstruí‑dos e outros ainda ressignificados no interior da cultura vigente e da escola que a reproduz e a constrói. Porém, os saberes próprios e a inten‑cionalidade escolar permanecem inalterados.

Perguntar quem é a criança que está em nossas escolas pode ajudar a compreendê‑la: como a criança se relaciona com o mundo social e físico? Como constitui sua identidade? Como constrói o conhecimento? Quais seus desejos e medos? O que as motiva? O que elas valorizam? Um olhar pelas Unidades Maristas oferece algumas pistas. Professores e alunos, educadores e educandos procuram conviver neste espaçotempo um tanto midiático, um tanto real e um tanto virtual. São sujeitos em construção que se relacionam e, juntos, promovem novas aprendiza‑gens, novas relações e novas combinações. Nesse movimento contínuo, professores e alunos estudam e se formam novamente, influenciando o conceito de criança e de infância.

A Província Marista Brasil Centro‑Sul (PMBCS) concebe a infância como período privilegiado, em que as crianças constroem, por meio de linguagens próprias, referenciais e visão de mundo nas suas mais diversas expressões. Dessa concepção, depreendemos que a criança possui potencialidades, é ativamente engajada com o mundo, apta para aprender e não pede nem precisa da permissão do adulto para isso. É uma criança que, quando chega à escola, tem conhecimento e opera

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A inclusão de crianças de seis anos no EF requer respeito às caracte‑rísticas físicas, sociais, psicológicas e cognitivas da idade, assim como sua integração efetiva ao sistema educativo, promovendo, dessa forma, a aprendizagem. A construção de um documento norteador de práticas mais reflexivas para o EF da Rede Marista de Colégios e da Rede Marista de Solidariedade baseia‑se na compreensão da infância como tempo de crianças aprendizes, competentes para questionar, interpretar, construir teorias, ou seja, produtoras de cultura e conhecimento e sujeitos de direito e de fato.

Este documento alinha‑se às Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Básica, que preconizam princípios claros no trabalho peda‑gógico junto às crianças e jovens, dialogicamente identificados com o ideário Marista para este segmento. São eles: princípios éticos da auto‑nomia, da responsabilidade, da solidariedade e do respeito ao bem comum; princípios políticos dos direitos e deveres da cidadania, do exercício da criticidade e do respeito à ordem democrática; princípios estéticos da sensibilidade, da criatividade e da diversidade de manifesta‑ções artísticas e culturais.

Dessa forma, buscamos contribuir para a formação de crianças que são, a um só tempo, produzidas numa cultura e produtoras de culturas, rompendo a visão da criança como um vir a ser. Crianças que ressigni‑ficam, todos os dias, a infância e o futuro, e revelam o jeito das crianças, de hoje, de ontem, de todos os dias, como uma conquista inalienável dos sujeitos ao democratizar as relações entre adultos e crianças.

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2.2. Juventudes e seus tempos transitórios

A juventude tem papel importante na sociedade. É considerada um tempo privilegiado para as relações em grupo, pois existem experiências que refletem em buscas, encontros e desencontros, inseguranças, curio‑sidades, medos, indefinições, mudanças, crises e crescimentos. Libânio (2004) comenta que essa diferença entre jovens e adultos é mais marcada nas sociedades tradicionais e se torna mais confusa na atual realidade.

O conceito de juventude se delineou a partir do século XX, entre as duas grandes Guerras Mundiais (1914‑1918 e 1939‑1945). Nesse intervalo histórico, podemos apontar algumas metamorfoses nos significados e experiências mais gerais da juventude, que deixa de ser apenas tutelada por técnicas pedagógicas com base científica e objetiva para se tornar, também, problemática, nos grupos delinquentes, ou politicamente radi‑cal. O século XX anunciou uma eclosão de significados, vivências e subculturas jovens. Essa juventude influenciou e se deixou influenciar por instituições recentes da modernização – cultura de massa, indústria cultural, cultura do lazer, cultura do consumo etc.

Ariés (1981) ressalta o caráter histórico da juventude, destacando que ela só passou a ser uma fase socialmente distinta, no decorrer do desen‑volvimento da sociedade moderna ocidental, mediante a progressiva instituição de um espaço separado de preparação para a vida adulta, à medida que acontecia a polarização da vida social e o desaparecimento da antiga sociabilidade coletiva.

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No século XX, expressões como delinquentes, excêntricos, contestado-res, rebeldes, revolucionários, protagonistas de desordens e violências, movi-mentos alternativos e transgressores passam a ser agregadas ao conceito de juventude. Percebe‑se a necessidade ideológica de distinguir os jovens “bons” dos “maus”, isto é, aqueles que serão rapidamente inseridos nos parâmetros institucionais e aqueles que serão rechaçados.

A partir dos anos 1980, novas questões começaram a definir a con‑dição juvenil e novos espaços de vivência e atuação ganharam significa‑dos, tais como milhares de lugares de diversão e difusão cultural, nos mais diversos níveis aquisitivos, inclusive a própria rua. O apelo consu‑mista, a falta de oportunidades tanto no estudo como no trabalho, as dificuldades familiares e uma infinidade de razões levou uma pequena parcela da juventude à organização de uma ideologia contracultural. Era a constituição de uma linguagem coletiva de grupos, tribos, bandos e gangues a anunciar no espaço social uma possibilidade de identidade. Se a juventude é edificada sob os signos de rebeldia, contestação, excen‑tricidade e efemeridade, cabe dizer que esses signos têm um valor ideo‑lógico especial dentro de cada cultura, de cada período histórico e em relação aos sujeitos envolvidos.

Na contemporaneidade, a juventude passa a ser identificada por lin‑guagens, produtos, “marcas” criadas pelas mídias, que determinam o estilo de vida, o consumismo e explicitam características. Libânio (2004) adverte que a sociedade fixa/marca os jovens pelas suas caracte‑rísticas econômicas, políticas e, sobretudo, culturais. Os jovens assimi‑lam esses elementos numa relação interativa.

Significado de juventudes

Ao buscarmos o significado de juventude, constatamos que, desde a Grécia antiga até os dias de hoje, o termo é entendido como período de passagem entre a infância e a vida adulta. Encontramos também, com certa frequência, o enquadramento de sujeitos a uma determinada faixa etária, com análise de características próprias desse tempo. Carrano

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(2000) argumenta que as idades não possuem um caráter universal. A noção de infância, juventude e vida adulta é resultante da história e varia segundo as formações humanas. Os estudos antropológicos nos mostram que os sentidos dos relacionamentos entre as gerações se dis‑tinguem nos tempos e espaços das sociedades.

Os estudos de Ariés (1981) revelam que a infância e a juventude, como fases socialmente distintas, foram se constituindo no desenvolvi‑mento da sociedade ocidental através da progressiva instituição de um espaço separado de preparação para a vida adulta. Com o processo da revolução tecnológica e a globalização, crianças e jovens também estão associados ao individualismo e ao pragmatismo e identificados com os novos consumidores da indústria cultural.

Em um estudo mais atento sobre o tema, constata‑se que o signifi‑cado da condição juvenil liga‑se, diretamente, ao mundo cultural e social, em que os jovens vivenciam as próprias experiências, seja no meio familiar, na escola, no trabalho, nas interações com os pares, seja nas dinâmicas sociais. Os jovens se constituem protagonistas e compe‑tentes por meio de experiências interativas ao compartilhar valores, crenças, desafios, desilusões, projetos, construções e desconstruções.

Os termos adolescência e juventude podem gerar confusão na com‑ preensão. Muitos empregam um pelo outro, sem distinção, superpon‑do‑os em alguns momentos. Optar por um termo ou outro requer algumas considerações e uma revisão das diferentes concepções existen‑tes em torno desses conceitos. Para definir o período de transição entre o ingresso na sociedade e a maturidade, são usados termos como puber-dade, adolescência e juventude. Cada termo se refere a um tipo de trans‑formação sofrida pelo indivíduo em fases distintas da vida. A concepção de puberdade advém das ciências médicas e faz menção à transformação no corpo da criança em amadurecimento. Oriundo da psicologia, da psicanálise e da pedagogia, o termo adolescência refere‑se às mudanças na personalidade, na mente ou no comportamento dos sujeitos. A sociolo‑gia trabalha com juventude, compreendendo o intervalo entre as funções sociais da infância e as funções sociais do homem adulto.

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A juventude, para Groppo (2000), é uma concepção, uma represen‑tação ou criação simbólica, produzida pelos grupos sociais ou pelos próprios sujeitos tidos como jovens, para significar comportamentos e atitudes a ela atribuídos.

A educação tem compromisso com a formação integral dos sujeitos, abarcando aspectos acadêmicos, sociais, culturais e políticos. Nessa perspectiva, optamos por empregar, no decorrer do texto, o termo juventude, pois nos remete ao reconhecimento dos jovens como atores dinâmicos da sociedade e com potencialidades para responder aos desa‑fios impostos pelas inovações e rápidas transformações. Optamos tam‑bém pelo termo no plural, pois não temos uma juventude, mas várias, de acordo com os contextos culturais e as situações sociais.

As transformações

Vivemos mudanças estruturais intensas e rápidas, que vêm transforman‑do as sociedades e pondo em discussão uma série de paradigmas. São novas acomodações que implicarão novos comportamentos, novas toma‑das de atitude e assim sucessivamente, num movimento contínuo. Essas transformações alteram nossas identidades pessoais, ao gerar um des‑centramento do sujeito.

Desde a relação com o brinquedo, o shopping e os outros sujeitos, existe um ser em ebulição, em transformação. Alguns em silêncio e quietude, outros em total fervor barulhento. Entre os muitos questiona‑mentos que perpassam esse período, os sujeitos vivenciam experiências e tentam se diferenciar, além de buscar identidade junto aos variados grupos sociais.

As características do mundo contemporâneo influenciam na cons‑trução da subjetividade dos jovens. Vivemos a era da revolução tecnoló‑gica, que aproxima distâncias, agiliza processos, aprimora mecanismos e impõe ritmos de vida em que relações se estabelecem no âmbito do instantâneo, do imediato e do acelerado. O consumismo invade o espa‑ço social. A interação virtual apresenta‑se como mais uma possibilidade

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Os jovens precisam realizar escolhas, revisar a própria identidade, pen‑sar sobre aspectos relativos à sexualidade, buscar autonomia e desenvol‑ver competências variadas. Eles fazem, gradativamente, o luto da infân‑cia e assumem, progressivamente, as responsabilidades pelas suas esco‑lhas. A fase de transição vai assim se constituindo. Essa migração do comportamento infantil para o adulto não é linear, o que, com frequên‑cia, provoca contradições sucessivas nas manifestações de conduta e flutuações de humor. É possível ver ora o jovem procedendo como criança, ora como adulto.

É importante pensar que somos sujeitos temporais, culturais e his‑tóricos, ou seja, só existimos nesse contexto. Se buscarmos paralelos e comparações do jovem que fomos, da criança do passado, com o jovem/criança desta contemporaneidade, não encontraremos pontos de conta‑to. O jovem, contudo, experiencia os conflitos que já foram vivencia‑dos pelo adulto. Assim, o mais experiente pode contribuir na ressigni‑ficação dos sentidos e, por vezes, na desconstrução de mitos socialmen‑te construídos. Muito provavelmente o jovem Marcelino Champagnat experimentou sentimentos e conflitos antagônicos e se baseou nessas experiências para idealizar uma missão. Como podemos ajudar os jovens? Como orientamos sujeitos em desenvolvimento a lidarem com conflitos? Esses questionamentos encontram amparo nos exemplos de Champagnat, que nos ensina que para bem educar é preciso amar nos‑sos alunos.

As culturas juvenis

Infâncias e juventudes são constituídas como representações de grupos sociais, elaboradas no contexto histórico‑ideológico‑social. Os contex‑tos influenciam o modo de ser, pensar e se comportar dos jovens na sociedade, que, cada vez mais, têm acesso a um universo mais amplo e sem fronteiras. Essa expansão global se torna facilmente assimilável pela juventude, que se apropria rapidamente das culturas midiáticas e suas linguagens.

no estabelecimento de laços e vínculos, configurando‑se como um novo campo de manifestação de conflitos e identificações.

A identidade se constrói ao longo do tempo sócio‑histórico, por meio de processos sociais, coletivos, em dialéticas constantes, permanecendo incompleta. Os conteúdos dos diferentes tempos são tecidos sociais ricos de referenciais que, de forma direta e indireta, constituem novas identi‑dades. Trata‑se de um processo dialético, ora harmonioso, ora marcado por tensões e conflitos, cujas experiências juvenis se legitimam dentro da dinâmica sociocultural em que está inserida a juventude.

A construção da identidade depende das interações estabelecidas, bem como das condições disponíveis. É característica do período juvenil e associa‑se a condições individuais, familiares, sociais, culturais e histó‑ricas. Nesse período, costuma ocorrer o reconhecimento de si mesmo, quando o jovem, aos poucos, percebe as próprias características. Após esse reconhecimento, ele passa a se perceber na coletividade, no grupo social e começa a compartilhar situações de coletivo. As contradições e oposições são tensões necessárias e presentes nesse processo de subjetiva‑ção. A construção da identidade é pessoal e social, acontecendo de forma interativa e dinâmica, por meio de trocas entre os sujeitos e o meio em que estão inseridos. As modificações do sujeito e do meio são mútuas.

Nesse contexto, as transformações corporais, carregadas de emo‑ções intensas, conviverão com uma reorganização pessoal e social por parte daquele que abandona o mundo infantil em direção ao adulto. Os sujeitos passam por crises em relação ao corpo, aos valores e às escolhas. As contestações, rebeldias, inquietações e transgressões revelam postu‑ras de ataque, como uma forma de defesa dessa nova identidade em construção, e expressam, ainda, dois movimentos essenciais do sujeito: como metabolizar psiquicamente as mudanças do real do corpo, advin‑das da eclosão da sexualidade, e responder, a partir de outro lugar, às exigências sociais (BARONE, 1998).

As transformações ocorridas no corpo influenciam os sentimentos, as escolhas, as tomadas de atitude e, principalmente, o surgimento de dúvi‑das, indagações e a crescente necessidade de afirmação e emancipação.

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A cultura juvenil de consumo é, a um só tempo, tribal e universal. A sociedade contemporânea trabalha com o pressuposto de que os jovens são um grupo social à parte, com estilos de vida próprios, que podem usufruir de vários benefícios da vida adulta sem assumir responsabilidades.

A força da cultura do consumo, forte elemento em torno do qual são construídas as identidades sociais, delimita diferenças entre estilos de vida construídos com base no consumismo, que geralmente valoriza a ideia de ser jovem, pois, ao mesmo tempo que a juventude é consumi‑dora ávida, representa também um estilo de vida dinâmico, vigoroso e livre em comparação aos outros sujeitos. Assim, o que se observa é que a infância e, primordialmente, a juventude, deixou de ser um estágio definido e temporal de existência para tornar‑se um conjunto de atitu‑des. Ao prometer liberdade e muitas novidades, o mercado institui a própria juventude como fonte primeira de todos os valores.

Na juventude, o corpo está cheio de vigor e de expressividade. Sobre ele, recai uma mensagem de interlocução constante, pois é um meio eficiente de comunicação. As experiências partilhadas pelos jovens con‑temporâneos são intensamente permeadas por linguagens fragmentadas, imagens multimídia, textos cifrados e multiplicidade de posturas. Soma‑‑se a isso outras modalidades de comportamento praticados pelos jovens nas redes sociais, assim como outras formas de construir relacionamen‑tos, trocar experiências, assimilar valores e manipular suas identidades por meio de comunidades on-line, jogos em rede e, até mesmo, por mensagens instantâneas.

De acordo com Abramo (2001), a condição juvenil passou por trans‑formações nas últimas décadas, alargou‑se no tempo e no espaço social, ganhando contornos próprios. Deixou de ser um momento breve de passagem, não sendo mais definida, exclusivamente, pela condição estu‑dantil, mas por uma série de movimentos de inserção em diversos planos da vida social, inclusive no mundo do trabalho, na vida afetiva/sexual, na produção cultural, na participação social etc.

Nesses processos de ressignificação, é imperativo o reconhecimento da polifonia e da multiplicidade de juventudes e de suas formas de

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construir significados. Isso requer que a escola seja um espaço de forma‑ção e informação, em que o processo ensino‑aprendizagem favoreça a inserção do estudante no dia a dia das questões sociais marcantes e em um universo cultural ampliado.

Formar para a vida significa formar para o desenvolvimento afetivo, cognitivo, biológico, criativo, ético e estético de cada sujeito. Implica formar para a realização e consolidação de projetos sociais, culturais e políticos, porque neles há, também, uma maneira de expressar a vida, já que tais projetos são as metas e os sonhos coletivos de comunidades específicas.

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2.3. Professores e suas identidades profissionais

[...] a pessoa responsabiliza-se pelo seu crescimento espiritual e intelectual na comunidade e com a comunidade. O exercício da autonomia, do respeito e acolhida ao outro, do diálogo e abertura para a diversidade é o primeiro passo para o teste-

munho de comunhão e solidariedade.

(PLANO, 2006, p. 37)

Conhecer o professor, quem é esse profissional, sua formação básica, o desenvolvimento de sua carreira profissional é fundamental, pois, como apresenta Mizukami (1996), o professor é um dos principais ato‑res do processo ensino‑aprendizagem e o responsável pela organização do trabalho pedagógico. Ele é o principal mediador e remediador entre o conhecimento produzido ao longo da história da humanidade e os estudantes.

A palavra professor tem em sua etmologia o sentido de professar ou ensinar uma ciência, uma arte, uma técnica, uma especialidade. É, no entanto, na profissão que o professor se define, pois o ensino é parte fundamental de sua identidade, que está envolta ao contexto sócio‑his‑tórico‑cultural, determinante de sua função social. Fazendo uma apro‑ximação com o sentido da palavra professor, podemos dizer que ser pro‑fessor refere‑se a uma atividade especializada, cuja principal função é ensinar determinados conhecimentos, habilidades e competências.

Partindo do pressuposto de que toda profissão designa uma identi‑dade específica, logo existe uma identidade profissional do professor. Quando se fala em crise da identidade profissional do professor, faz‑se referência a uma crise que atinge o jeito de ser professor. A formação específica, a determinação de espaços qualificados para a ação de formar professores para o exercício de suas funções está ligada à institucionali‑zação da instrução pública no mundo moderno, ou seja, à implementa‑ção das ideias liberais de secularização e extensão do ensino primário a todas as camadas da população.

Os movimentos da Reforma e Contra‑Reforma, ao darem os pri‑meiros passos para a posterior socialização da educação, contemplaram

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iniciativas pertinentes à formação de professores. Mas somente com a Revolução Francesa concretiza‑se a ideia de uma Escola Normal a cargo do Estado, destinada a formar professores leigos, ideia essa que encon‑traria condições favoráveis no século XIX, quando, paralelamente à consolidação dos Estados Nacionais e à implantação dos sistemas públi‑cos de ensino, multiplicaram‑se as Escolas Normais.

No Brasil, os primeiros cursos de formação de professores remonta ao tempo do Império, em meados de 1772. A partir de 1827, iniciam‑se os exames de seleção para os primeiros professores brasileiros. Nesse contexto, são criadas as primeiras Escolas Normais, com o início da car‑reira de magistério, muito influenciadas ainda pelo contexto europeu.

Marcadas desde sua origem por uma formação destinada ao público feminino, as Escolas Normais associavam a atividade de ensinar a uma concepção de dom e de vocação tipicamente femininas e, em consequên‑ cia, construíram uma representação fortemente missionária para o magistério. Atualmente, porém, tanto no campo sociológico como no educacional, os estudos sobre dom e vocação se multiplicam sistematica‑mente e evidenciam que não se pode mais reduzi‑los às ideias de dispo‑sição inata, de aptidão natural, de dádiva divina ou de graça, que reme‑tem aos sentimentos de generosidade, desprendimento e sacrifício.

As Escolas Normais construíram um perfil de professor baseado em virtudes espirituais e morais e estimularam uma prática pedagógica pautada em valores humanistas e cívicos. Tais virtudes e valores defini‑ram – simbólica e concretamente – a chamada “tradição normalista”, que se refletiu na legislação educacional e, por muito tempo, nos planos de educação e nas ações promovidas pelas esferas administrativas dos sistemas de ensino.

Assim, o papel do professor foi se constituindo e por sua vez conso‑lidando as Escolas Normais, que faziam sua formação e, paulatinamen‑te, foram ficando insuficientes no exercício de formação dos professores. Os cursos de licenciatura e de pedagogia trouxeram outros olhares, ampliaram e aprofundaram a área de estudo. Os contextos se tornaram mais plurais e inclusivos, as representações desses sujeitos foram se

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Nessa perspectiva, para o exercício da ação docente faz‑se necessária a formação científica e pedagógica, ou seja, embasamento. Imbernón (2004) defende que a especificidade da profissão docente está no conhe‑cimento pedagógico. Martins (1998) coaduna com essa afirmação ao argumentar que a formação do professor exige a capacidade de compre‑ender o processo de ensino em suas múltiplas determinações. Para isso, o docente precisa ter claros os fundamentos filosóficos, sociológicos, políticos, ideológicos e pedagógicos do processo de ensino. A formação científica, por sua vez, deve considerar como o conhecimento é construí‑ do, agregando valor epistêmico à prática em um movimento de observa‑ção, análise, experimentação, avaliação e sistematização de saberes.

Cada vez mais, o professor vem assumindo o papel de mediador de um saber coletivo, ensinando os alunos a aprender e a relacionar entre si diver‑sas informações enquanto refinam a criticidade. O saber docente, desse modo, é formado pela prática e pelas teorias da educação, que, de acordo com Pimenta (2002), têm papel fundamental na formação dos professores, pois dota‑os de variados pontos de vista para uma ação contextualizada, oferecendo perspectivas de análise em relação aos contextos históricos, sociais, culturais, organizacionais e a si próprios como profissionais.

Essa articulação de saberes práticos e teóricos gera um movimento de ressignificação, pois os saberes advindos de ambos os campos de conhecimento se complementam e acabam por possibilitar ao professor o entendimento das restrições impostas pela prática institucional e his‑tórico‑social ao ensino.

Esse processo de formação contínua consiste em descobrir, organi‑zar, fundamentar, revisar e construir a teoria de acordo com a realidade particular de cada docente ou de cada grupo de docentes, assim como da instituição em que estão inseridos. A formação ininterrupta trará ao professor a incorporação de conhecimentos profissionais que lhe permi‑tirão criar processos próprios e autônomos de intervenção, além de proporcionar competências para capacitá‑los a modificar as tarefas edu‑cativas continuamente, em uma tentativa de adaptação à diversidade e ao contexto dos alunos (IMBERNÓN, 2004).

forjando em cotidianos educacionais em permanente mudança e cons‑trução de novas competências.

A assunção de um posicionamento profissional é indispensável à realização pessoal e à legitimidade de outras competências docentes, de forma a superar uma relação missionária com o magistério e exigir um movimento de formação por parte do professor. Para a Instituição Marista, a profissionalidade docente é entendida como fundamental e diz respeito aos comportamentos, conhecimentos, competências, atitu‑des e valores maristas que constituem a especificidade de ser professor em nossos Colégios e Centros Socias.

Aprender a ensinar, a ser professor, é um processo contínuo, confor‑me Mizukami (1996), e não um estágio final estabelecido a priori. Inicia‑‑se antes mesmo do ingresso em um curso preparatório, desde o come‑ço da escolarização. É com o início das atividades em sala de aula que essas aprendizagens tornam‑se gestos concretos, materializando‑se em ações, que serão fruto de novas aprendizagens diante das situações com‑plexas que constituem esse cenário.

A escola é espaço de formação para crianças, jovens e também para professores. Silva (2003) considera que, nas experiências vividas durante a história de escolarização, há vestígios de um habitus professoral consti‑tuído por meio da realização do ensino escolarizado. Essas experiências vividas pelo sujeito no processo de tornar‑se professor é um elemento importante para a prática de sua atividade.

A atuação do professor abrange uma área complexa, repleta de desa‑fios, com caráter interativo e situado que lhe imprime uma dinâmica relacional com os alunos, com os conteúdos, com o saber, com os cole‑gas, com a comunidade e, até mesmo, com as crescentes demandas que surgem a cada dia. Assim, sua dimensão profissional lhe confere saberes relativos ao coletivo social, e não apenas saberes acadêmicos, racionais, factuais, teóricos ou experenciais. Sua atuação consiste em gerir a infor‑mação disponível e adequá‑la estrategicamente ao contexto da situação formativa em que cada instante se situa sem perder de vista os objetivos traçados (ALARCÃO, 1998).

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A formação inicial de professores para o EF requer, em princípio, a aquisição de determinadas habilidades, mínimas e indispensáveis, tanto para o desenvolvimento da identidade do profissional da educação como para a construção de sua prática pedagógica.

No contexto do segmento EF, a lei separa o segmento em anos inicias – primeiro ao quinto – e anos finais – sexto ao nono. Na prática das escolas, essa separação se estende também ao grupo de professores, segmentando‑os em dois grupos distintos, bem como suas identidades e seus processos formativos, iniciais e em serviço. Essa linha divisória invisível entre professores do mesmo segmento que partilham objetivos e práticas é prejudicial ao processo ensino‑aprendizagem.

No segmento do EF, o professor precisa se relacionar, de forma afe‑tiva, com infâncias e juventudes. É um mediador entre sujeitos, conhe‑cimentos e aprendizagens, sua ação se pauta nas relações humanas, o que implica um trabalho pedagógico mais próximo das crianças e jovens, em que o professor fala com esses estudantes e não para eles. No desenvolvi‑mento do seu trabalho, a escuta, o diálogo e a ação são essenciais, pois quando as crianças e jovens chegam à sala de aula, trazem a expectativa do que vão fazer, pois se aprende fazendo, refletindo sobre a ação, ela‑borando sínteses durante o percurso das aprendizagens. Professores como facilitadores da aprendizagem e como pesquisadores das experiên‑cias de aprendizagem de seus alunos são vistos como parceiros e orien‑tadores na aprendizagem.

O professor, em suma, exerce atividade profissional de natureza pública, que tem dimensão coletiva, pessoal e afetiva, implicando, simultaneamente, autonomia e responsabilidade. A Instituição Marista, atenta aos processos que envolvem as representações e identidades dos sujeitos da educação, deseja fortalecer e aproximar processos e sujeitos a fim de colaborar para a formação de protagonistas da ação de ensinar e aprender, e sabe que tal tarefa passa pelos professores, parte essencial da comunidade escolar.

Nesse sentido, o trabalho desenvolvido pelos professores da Insti‑ tuição Marista pressupõe atuação na comunidade escolar/educacional

O professor não pode ser objeto passivo de sua formação nem sujei‑to solitário desta. Ele constitui‑se como sujeito de sua formação, ao mesmo tempo que assume o papel de agente de formação de seus pares (ESTRELA, 2002). Nos anos finais do EF, no entanto, é comum haver uma fragmentação dos saberes, dos tempos, dos espaços, o que acaba por gerar uma individualização do trabalho docente, em uma atuação inde‑pendente e, muitas vezes, isolada do grupo. Uma prática em conjunto, na qual os professores se apoiem e se estimulem mutuamente, tornando a escola, efetivamente, um espaço de aprendizagem coletiva e interdis‑ciplinar, poderia mudar tal situação, pois promoveria o comprometi‑mento, a troca de experiências de modo a produzir interação entre os pares, em um movimento cíclico de ação–reflexão–ação.

Cornell (1997) apresenta outra compreensão da profissão docente, tanto no sentido ontológico – no âmbito do ser professor –, quanto do epistemológico – ligado aos saberes docentes – ao argumentar que ser professor não é apenas possuir conhecimentos específicos e o controle da aula; exige mais, pois é preciso estabelecer relações humanas com as pessoas a quem se ensina – aprender é um processo humano e social árduo, e podemos dizer o mesmo de ensinar.

A autonomia do professor vai se consolidando à medida que adquire autonomia intelectual, alcançada por meio da pesquisa, ou seja, da pro‑dução de conhecimento. Os professores necessitam construir uma rela‑ção diferenciada em relação aos saberes, passando de meros transmisso‑res a produtores. Para tanto, a atualização da prática pedagógica se faz por meio do estudo, do próprio engajamento num processo de formação continuada. Nesse sentido, Freire (2004) afirma que não há ensino sem pesquisa e pesquisa sem ensino. Para o autor:

Esses que‑fazeres se encontram um no corpo do outro. Enquanto ensino, continuo buscando, reprocurando. Ensino porque busco, porque indaguei, porque indago e me indago. Pesquiso para constatar, constatando, intervenho, intervindo educo e me educo. Pesquiso para conhecer o que ainda não conheço e comunicar ou anunciar a novidade (FREIRE, 2004, p. 29).

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de forma presente e articulada, entendendo que seu ofício, além da docência, envolve produção de conhecimento pedagógico. Isso implica uma atuação profissional mais que técnica, uma atuação intelectual e política, pois é na inquietude, no movimento indagatório, e investigati‑vo, na busca incessante pelo outro e por outras formas de significar que surgem as oportunidades para mediar o saber, o não saber, enfim, o conhecimento.

Em sua formação, o professor aprende quando encontra espaço para que sua experiência se converta em fonte de saber, que vá além da ação imediata e projete‑se em uma atividade que o ajude a aprender consigo mesmo e, sobretudo, que o comprometa, ou seja, quando se sente auto‑rizado e envolvido para continuar aprendendo e assumindo sua profissão como desafio e compromisso. Sancho & Hernandez (2006) argumentam que o questionamento sobre suas experiências significativas permitem aos professores não apenas se constituírem como autores, mas aprende‑rem consigo mesmo e com os outros.

Dessas aprendizagens, advém o conhecimento que se aplica na prá‑xis. Ao se sentir realmente envolvido, a possibilidade de o sujeito ser abre‑se à reflexão, enquanto a prática converte‑se em experiência refle‑tida e vivida. Sancho & Hernandez (idem) enfatizam que aprender não é uma experiência que olha somente para o ser, pois também se projeta em uma posição política que supõe reconhecer‑se com capacidade de autoria. Morgado (2006) adverte, entretanto, que a prática docente exige que os professores se empenhem em um processo de desenvolvimento contínuo, que permite acompanhar, compreender ou mesmo antecipar as mudanças. Esse processo não pode, na visão do autor, se limitar à experiência, sob pena de limitar o desenvolvimento profissional.

É fundamental que os educadores maristas estejam abertos a proje‑tos curriculares que atendam às concepções de ensino‑aprendizagem que sustentam nossa prática. Isso implica estudo, negociação, reflexão, parceria, permanente atitude de investigação e troca de experiências sobre o fazer na escola e na sala de aula, possibilitando, assim, elaborar novas possibilidades e transpô‑las para a prática a fim de construir

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alternativas e intervenções pedagógicas favoráveis à aprendizagem dos alunos. O trabalho em equipe é fundamental na construção desse pro‑cesso, e as parcerias estabelecidas precisam respeitar o ponto de vista do outro, por isso elas não podem acontecer apenas por afinidades, mas também por competências.

A identidade profissional e social desses professores vem sofrendo transformações significativas, ajustando intenções, proposições, inten‑cionalidades profissionais e sociais. O professor deixou de ser visto como um difusor de conhecimentos para se tornar um dos principais parceiros de um saber coletivo ou, ainda, um facilitador das situações de aprendi‑zagem, permitindo aos estudantes participarem nessa construção.

O trabalho docente passou por um deslocamento, pois não se res‑tringe a ensinar um componente curricular, mas a ajudar as crianças e os jovens a descobrirem outros sentidos possíveis, significando o mundo à sua volta. A convergência e colaboração de vários campos do saber emergem de práticas interdisciplinares que ajudam a entender e partici‑par do mundo contemporâneo. Para isso, os professores precisam domi‑nar e utilizar diferentes linguagens, códigos e instrumentos, com o intuito de formar homens e mulheres multiletrados, capazes de dimen‑sionar os problemas e as propostas das ciências, das culturas, das tecno‑logias e das políticas. Nesse sentido, Morin (2001) ressalta que o maior desafio dos professores é o de modificar o próprio pensamento, de modo a fazer frente à crescente complexidade, à rapidez das mudanças e à imprevisibilidade que caracterizam o mundo, obrigando‑os a reconside‑rar a organização do conhecimento, a derrubar barreiras tradicionais entre os componentes curriculares e a conceber uma forma para reunir o que, até agora, tem estado separado.

A ação docente, por tudo isso, requer uma atitude de despojamento, cada vez mais necessária à contemporaneidade. A humildade e a modés‑tia, juntamente com a simplicidade, representadas por três violetas, caracterizam o coração da espiritualidade Marista. Torres (1995) argu‑menta que ser professor é ensinar mais com aquilo que somos do que com aquilo que sabemos. O professor, nessa perspectiva, precisa

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assumir uma postura ética e a prática de virtudes básicas, como humil‑dade e coragem – aquela fundamental ao reconhecimento de seus limi‑tes e, esta, à constante busca pela superação, em um movimento contí‑nuo de investigação de problemas da prática pedagógica. Professores dispostos a serem também aprendizes ajudarão seus alunos a aprender.

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2.4. Infantis, juvenis e professores – representações

As rápidas mudanças que permeiam a contemporaneidade produzem efeitos diversos que afetam os sujeitos. Essas transformações criam a necessidade de lidarmos continuamente com as variações, as inovações tecnológicas, as diversas mídias e a cultura de consumo. Nesse contexto, a educação é palco de movimentos e acomodações, pois é processo em curso. Compreender e interagir com as formas de ver e estar no mundo de crianças e jovens, assim como lidar com suas emoções, seus afetos e sentimentos é fundamental. Não podemos negá‑los ou reduzi‑los, mas conciliá‑los, na medida do possível, à objetividade, à lucidez e ao espíri‑to crítico que a escola intenciona desenvolver.

A fidelidade ao Carisma Marista e o educar do jeito de Maria impli‑cam atenção constante às necessidades dos sujeitos e ao universo com‑plexo e multicultural em que estão inseridos. Para compreender as representações de professores e estudantes do EF, aplicamos um questio‑nário a uma amostragem de professores e de alunos do 4o e 8o anos. O questionário explorou as diferenças existentes entre os segmentos Educação Infantil/Ensino Fundamental (EI/EF) e Ensino Fundamental/Ensino Médio (EF/EM), assim como aspectos relevantes para essa fase de formação tanto para os alunos quanto para os professores, e ainda a des‑crição da ação docente por parte dos entrevistados.

Olhares discentes e suas representações

Os alunos dos anos iniciais do EF, ao registrarem suas observações sobre as diferenças em relação à EI, veem o EF como espaçotempo para amplia‑ção das aprendizagens e reforçam a ideia de formalidade, sistematização e exigência específicas. Os estudantes apresentam como diferenças exis‑tentes entre a EI e o EF a configuração dos ambientes, como espaço para brincar, para leitura e escrita, e a organização do tempo.

O brincar no segmento da EI é uma forma de representar e signi‑ ficar o mundo. É uma atividade essencial à formação da identidade,

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da inteligência e da personalidade da criança e constitui as bases para a aquisição da escrita como instrumento cultural complexo. Por exemplo, na prática pedagógica cotidiana, as crianças percebem apenas o brincar na EI, mas os professores precisam ir além, construindo e organizando saberes por meio de atividades lúdicas. No EF, as crianças não se referem mais ao brincar, mas à maior complexidade dos conteúdos escolares e à sistematização dos fazeres, e isso é expresso pelas palavras provas, mate-riais, tarefas, disciplinas. Essa mudança de referencial evidencia que não há um movimento de continuidade gradativo dos fazeres, mas uma rup‑tura entre a prática dos dois segmentos:

Pra mim, existem as diferenças em valores, pois o Ensino Fundamental cultiva a amizade, o valor de estudar nessa escola e nos prepara para o futuro. Já na Educação Infantil é mais na brincadeira, [...] ao contrário do Ensino Fundamental não nos prepara tanto.

(Aluno G)

No Ensino Fundamental I aprendi a ler e a fazer histórias e na Educação Infantil eu só brincava e a professora ensinava a desenhar, e uma das brincadeiras era ir ao parquinho. Agora temos mais provas e mais materiais, também temos Educação Física.

(Aluno M)

Na Educação Infantil eles não aprenderam a ler e nem a escrever, eles aprendem coisas mais fáceis, e no Ensino Fundamental nós já fomos alfabetizados e aprendemos coisas mais difíceis.

(Aluno J)

Na Educação Infantil nós estamos aprendendo ainda... no Ensino Fundamental temos mais responsabilidades e desen-volvemos muito mais.

(Aluno N)

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Em minha opinião a maior diferença é que antigamente, na Educação Infantil, nós não tínhamos nem um pouco de noção do mundo, por falta de alfabetização, já hoje é bem diferen-te: temos provas e testes literais.

(Aluno H)

Constatamos, ainda, o reconhecimento, por parte dos alunos, do valor social da alfabetização e do letramento, revelando uma noção ampliada de mundo, associada ao tempo escolar. Há uma valorização dos níveis escolares ascendentes como mais focados na construção de “noções”. Analisar as representações sobre provas e testes literais é exercício complexo, pois o peso desses instrumentos pode ocupar o imaginário das crianças e remetê‑las a legitimar tais momentos como espaços de saberes escolares com status de mais importantes. Isso por‑que o EF habita no imaginário dos sujeitos como espaçotempo de apren‑dizagens formais. O fato de a EI não ter foco na alfabetização nem desencadear processos escolarizantes formais, matiza as representa‑ções dos estudantes, isto é, se não se aprende ler ou escrever, pouco ou nada se aprende.

A compreensão de que a EI possui práticas distintas do EF é constan‑te nas representações; por exemplo, o predomínio do trabalho oral na EI e a inserção sistemática da escrita no EF. A ideia de período prepara‑tório para o segmento seguinte é recorrente nas representações:

Há muitas diferenças entre a Educação Infantil e o Ensino Fundamental, por exemplo: na Educação Infantil nós come-çamos a aprender a amizade, o respeito, os números, letras, e a ler, e no Ensino Fundamental aprendemos a nos organi-zar, matérias novas, conteúdos de Matemática, Português, História, Ciências, Geografia e Ensino Religioso. Na Educação Infantil nós vamos ficar atentos às aulas para aprender, mas diferente do Ensino Fundamental, nós preci-samos ficar mais atentos e levar a sério para conseguir pas-sar de ano e aprender, pois o que você aprende com certeza vai cair no Ensino Médio e em qualquer vestibular.

(Aluno K)

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A compreensão do ofício de aluno e as responsabilidades que ele traz começam a aparecer nos anos iniciais do EF, assim como uma postura crítica sobre as próprias potencialidades e dificuldades. Verifica‑se tam‑bém uma preocupação com os resultados ao se eleger o boletim como um aspecto significativo dessa diferença. Essa é uma representação que as crianças constroem por influência do discurso de familiares e profes‑sores e que remete à função certificatória da avaliação:

No Ensino Fundamental tem boletim.(Aluno A)

Na Educação Infantil as atividades são diferentes, não tem boletim, já no Ensino Fundamental 1 começa a escrever e a ler, é diferente.

(Aluno B)

A constituição do ofício de aluno vai sendo elaborada por meio da apropriação e valorização da leitura e da escrita, pelas estratégias e enca‑minhamentos dados pelo professor, pela responsabilidade com as tarefas e pelo reconhecimento da autoridade do professor. O trabalho com as dimensões social, acadêmica e pessoal do ofício de aluno 7 é evidenciado pelo respeito e civilidade nas relações:

Aprender, ter educação, respeito, construir novas amizades, curtir a vida, ter organização, estudar muito para passar de ano, ajudar a professora quando precisar e estar com os amigos nos melhores e piores momentos.

(Aluno D)

Saber elaborar respostas completas, respeitar a professora.(Aluno F)

Fazer os temas 8, prestar atenção, ler, estudar mais, não brincar durante as aulas, trabalhar em grupo.

(Aluno K)

7 Para aprofundar o assunto, consulte o Projeto Marista para o Ofício de Aluno, 2010.

8 As tarefas, nos anos iniciais, são valorizadas pelos alunos, pois favorecem a sistematização dos estudos e ampliam as aprendizagens. Para potencializarmos esse trabalho, é fundamental que as atividades estejam articuladas com a prática de sala de aula, qualificando e ampliando as aprendizagens. Dessa forma, essa valorização não se esvairá no transcorrer do EF.

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É importante que os professores invistam continuamente na amplia‑ção e no aprofundamento das habilidades e competências que consti‑tuem o ofício de aluno, pois elas precisam ser ensinadas e vivenciadas no espaçotempo escolar do EF. Nessa perspectiva, a Matriz do DAPS 9 organi‑za objetivos, conteúdos, habilidades, competências e fazeres necessários a esse trabalho.

As questões curriculares formais pesam na valoração do segmento. O fato de os estudantes terem aulas de componentes curriculares demarcados, com instrumentos avaliativos, colabora para legitimar o processo de ensino‑aprendizagem aos olhos da criança. Vale ressaltar a importância que os alunos agregam ao número de componentes curri‑culares e ao volume de conteúdos, estabelecendo uma relação direta entre volume e qualificação do conhecimento.

No Ensino Fundamental temos mais deveres, mas também há mais direitos.

Deveres: trazer o dever de casa todo dia, fazer uma bela participação na aula e não fazer anarquia.

Direitos: temos mais liberdade no recreio, e quando aluga-mos o kit de leitura temos mais liberdade de escolha.

(Aluno M)

A formação para a cidadania, os valores e as orientações da Instituição Marista favorecem a incorporação de direitos e deveres para os sujeitos, que possuem liberdade, mas também responsabilidades a serem cumpridas. A qualidade das práticas e os valores maristas fazem parte das representações. As crianças e os jovens traduzem em palavras e atitudes a atenção ao ato do cuidar e o amor ao trabalho, dimensões indissociáveis em nossa pedagogia. A Missão Marista de evangelizar por meio da educação revela‑se diferencial valorizado pelos estudantes:

O ensinamento, as amizades, as orações, as músicas que aprendemos na acolhida, cantamos o Hino Nacional todas as sextas-feiras e também, principalmente, a aprendizagem com os conteúdos de Matemática, Português, Ciências,

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História, Geografia e Ensino Religioso, com livros e registros no caderno. Muito Bom!

(Aluno D)

No Ensino Fundamental nós fazemos a Primeira Comunhão, que é importante, e além disso estamos nos preparando para o Ensino Médio.

(Aluno C)

A formação pessoal possui referências que ajudam a significar a pró‑pria vida. A Primeira Comunhão estabelece um marcador afetivo e espiritual, associado ao momento escolar vivido. O trabalho da Pastoral é reconhecido e valorizado tanto no que diz respeito aos aspectos mais amplos como nos específicos. Nessa perspectiva, o segmento revela‑se como espaço de ampliação das relações sociais. Os alunos reconhecem o valor social da educação Marista.

As novas amizades e descobertas. O Ensino fundamental abre portas para crianças com novos interesses e esportes. É uma experiência muito educativa, com novas amizades, inte-resses e descobertas. Traz ensinamento de organização, Paz, respeito e religião.

(Aluno F)

A compreensão do ensino que é dado (que não é pouco), nos ensina as matérias mais importantes como: Matemática e Português, e nos ensina a dividir, a ser responsáveis e a importância de um ensino bom como do Marista.

(Aluno M)

Estudar muito, ter bons amigos, fazer uma bela prova, ter respeito com os colegas, e ser respeitado por todos.

(Aluno P)

A cultura Marista vai, nesse movimento de interação e desenvolvi‑mento das dimensões acadêmica, pessoal e social, construindo vínculos no processo educacional. Destacam‑se também a importância de outras

9 Matriz de Desenvolvimento Acadêmico, Pessoal e Social da Província Marista Brasil Centro-Sul (PMBCS).

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práticas, como experiências e estudos de meio, revelando uma preocu‑pação voltada aos contextos e significados e às práticas investigativas.

[...] o aprendizado mais utilizado nas nossas matérias não está só nos livros e cadernos.

(Aluno D)

Os alunos dos anos finais do EF, ao responderem às questões sobre as diferenças em relação ao EM, destacam que o EM exige maior autono‑mia e responsabilidade e compreendem o segmento do EM como espaço- tempo de amadurecimento intelectual e humano. Esse desenvolvimento é inerente ao trabalho educacional, ou seja, é fruto do desenvolvimento do sujeito:

As diferenças entre o EF e o EM é que no EM há mais dificul-dades, você tem que ter muita responsabilidade e se cuidar sozinho.

(Aluno E)

A diferença é que no Ensino Médio você vai ficar mais respon-sável, pois você está mais madura, e no EF você está bem no início do amadurecimento.

(Aluno F)

Os alunos vivem esta fase final do EF como um pré‑EM. Destacam que é a última instância para compreender o ofício de aluno, pois no EM não haverá mais tempo para isso. Os alunos diferenciam seus estudos do EM ao enfatizarem maior complexidade dos conteúdos trabalhados, prá‑tica docente diferenciada e uso mais frequente da tecnologia. Consideram também que o nível de exigência será maior no EM. O caráter prepara‑tório para o vestibular e para um futuro profissional são preocupações recorrentes.

Sim. O Ensino Médio contém um estudo para a sua profissão, já é para os maiores de 14,15 anos por aí. Lá também tem um espaço enorme, bonito, com amizades, professores ou profes-soras experientes e com livros de boa qualidade. O Ensino Fundamental é para crianças de 7, 8 e 9 anos, mas também

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tem muitas amizades, espaço enorme para as crianças corre-rem, brincarem, lancharem [...] O conteúdo é muito bom, os livros também, os professores são legais e ensinam muito bem.

(Aluno R)

Importante é estudar bastante, passar de ano, e mandar bem no Ensino Médio...

(Aluno S)

Verifica‑se que os alunos dos anos finais do EF parecem já viver no EM. Essa é uma prática que acontece em alguns países; por exemplo, no Canadá, os 8o e 9o anos são considerados EM. Embora isso não seja oficial no Brasil, há uma aproximação percebida e vivenciada pelos alunos. Isso, talvez, se deva ao fato de o EM representar uma transformação de ambiente que marca uma mudança de fase, que remete a um “rito de passagem” desejado pelos jovens.

Em suas respostas, os alunos incluem reflexões sobre o ofício do professor, tentando estabelecer relações de reciprocidade entre o ensi‑nar e o aprender. As representações revelam o reconhecimento do valor da relação pedagógica, de aulas planejadas que respondam às necessida‑des deles e do uso, por parte dos professores, das tecnologias educacio‑nais que potencializem o processo de ensino‑aprendizagem:

O educador deve saber educar desde o início ao fim, compre-endendo os alunos, deve ser mais cobrado e elaborar traba-lhos e deveres de casa. Os alunos devem se comprometer mais, tendo mais hábito de estudos diariamente. Respeitar a todos e fazer atividades práticas e teóricas (alunos e profes-sores).

(Aluno P)

No Ensino Fundamental é importante que os professores usem os recursos como computadores e laboratórios para melhor aprendizagem dos alunos.

(Aluno N)

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Promover em suas práticas pedagógicas o desenvolvimento integral do aluno em todos os aspectos [...].

(Professor F)

Há uma proposta diferenciada que, a meu ver, proporciona uma perspectiva integral, deliberando aos jovens e crianças que percebam e assumam os desafios gerados pela sociedade.

(Professor G)

[...] construir um espaço educativo, onde ocorra uma educa-ção integral [...].

(Professor H)

[...] Ensino Fundamental se propõe a oferecer uma formação inicial sólida e corrente ao educando [...].

(Professor I)

As representações explicitam a emergência de pensarmos nos modos de organização dos espaços e dos tempos para garantirmos uma sólida formação integral dos alunos. Isso evidencia a preocupação do professor com uma prática diferenciada que seja significativa para os alunos.

Ao se discutir desenvolvimento, destaca‑se a inclusão dos ritmos diferenciados e dos significados que os processos escolares no EF podem proporcionar. Tal observação evidencia o olhar à diferença e à diversida‑de que constitui a sala de aula 10:

[...] desenvolvimento é um processo contínuo, construído e reconstruído continuamente dentro de um processo. É neste processo que deve ocorrer uma importante apropriação e construção dos conhecimentos ressignificados, relações, per-manências e transformações, sempre levando em conta o tempo e ritmos de cada um.

(Professor H)

As crianças são vistas como sujeitos produtores de cultura que têm muito a contribuir com o processo de ensino‑aprendizagem. Verificamos uma ênfase na aprendizagem dos alunos com os professores, mas também desses com seus alunos, pois as crianças possuem repertório cultural

A análise das representações revela que o EF é espaçotempo de conso‑lidação de afetos e intenções, marcado pelo início dos processos de escolarização e por uma visão hierárquica dos anos subsequentes, em uma perspectiva de estudo para o futuro. Essa análise nos interessa, pois, à medida que os alunos compreendem as etapas apenas como pre‑paratórias para a seguinte, corremos o risco de a justificativa para o estudo estar sempre no amanhã, mas sabemos que cada segmento se justifica por si só, em um movimento de convergência de ações simultâ‑neas, gradativas e complementares.

Essas representações explicitam também a importância da escuta ao enfatizarem que crianças e jovens têm muito a nos dizer sobre esse mundo que se descortina e constrói inteirezas visíveis. Desse modo, é necessário que analisemos essas representações, considerando o espaço transitório vivido pelos sujeitos, criança e jovem, em prol de uma peda‑gogia integradora.

Olhares docentes e suas representações

Os professores evidenciam em suas respostas que o EF é espaçotempo preparatório não só para o EM, mas para os modos de ser sujeito no mundo, para assumir e enfrentar posteriormente os desafios gerados pela sociedade. A expressão integral que aparece nas representações, ora se refere ao desenvolvimento do estudante, ora se refere ao que se ofe‑rece a ele no EF.

Quanto ao desenvolvimento do estudante, a preocupação com a educação integral está relacionada às diferentes dimensões humanas (intelectual, emocional, social etc.) e às competências necessárias para viver em comunidade:

Os conhecimentos essenciais adquiridos são indispensáveis para o seu desenvolvimento integral e servirão de base fun-damental para o exercício do Ensino Médio.

(Professor E)

10 Ver o capítulo 1, que discute essa temática.

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que contribui com o trabalho do professor, gerando outras percepções e fazeres:

[...] Levando em consideração que as crianças são cidadãs que produzem cultura, que têm poder de imaginação, de criação, e que nós, professores, podemos ver o mundo do ponto de vista das crianças e também aprender com elas.

Para os professores, a proposta do EF sustenta‑se na valorização do conhecimento, no potencial aprendente dos estudantes e no desenvolvi‑mento de um perfil investigativo e crítico. Os professores reconhecem a curiosidade investigativa dos alunos em querer saber mais e o poder do saber. Diante desse querer, como as aulas precisam ser organizadas? Os professores, em uma postura crítica, questionam as próprias práticas pedagógicas:

Tal segmento é a oferta de um terreno fértil de saberes, des-cobertas e possibilidades. É o convite à busca e à pesquisa espontânea. E digo espontânea no sentido do “querer saber”, “do querer ir além”, tendo consciência do “poder saber” (eu posso saber!), consciência do poder que há no saber e do poder individual e coletivo que pode ser exercido sobre o saber.

(Professor A)

A formação contínua é identificada como responsabilidade do pro‑fessor. O aprimoramento contínuo mostra‑se como uma dinâmica que potencializa a ação docente no EF. Os professores se colocam como aprendentes no processo e enfatizam a ação docente permeada pelas relações, com práticas fundamentadas na interação. A formação conti‑nuada em serviço, a reflexão na ação, a pesquisa do professor sobre sua própria prática são explicitadas no discurso dos professores.

Ser professor do Ensino Fundamental exige compreensão teórico-prática, responsabilidade com o ensino e com a for-mação do aluno, considerando paralelamente a responsabili-dade em gerir a própria formação.

(Professor K)

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Ação docente como fruto de reflexão, onde teoria e o dia a dia escolar do aluno são as bases para a reflexão, gerando novas práticas, novos questionamentos.

(Professor C)

A ação docente é compartilhada e também objeto de estudo, professor é também aprendente.

(Professor B)

O EF é entendido como espaço para a sistematização do conheci‑mento, com ênfase nas atividades cotidianas escolares. Sobre a ação docente no segmento, destaca‑se a qualificação das intervenções peda‑gógicas, gerando a formação de uma autonomia intelectual nos alunos. O professor assume a posição de mediador das aprendizagens, pois é aquele que faz da intencionalidade um planejar sistematizado e flexível. Compromisso, planejamento e improviso são expressões usadas na reflexão sobre a ação docente no EF.

O professor é um mediador que aproxima a realidade social e cultural das necessidades que cada aluno apresenta no cotidiano da sala de aula.

(Professor J)

A mediação é um movimento de tensão entre diferentes elementos, como os saberes e intenções de professores e alunos, as demandas sociais, as exigências institucionais etc., por isso é importante resgatar as diferentes perspectivas, problematizá‑las e sistematizá‑las para que as aprendizagens de alunos e professores aconteçam:

Compromisso com a aprendizagem! É a coordenação de con-dições “pensadas”, planejadas, mas com a tranquilidade para lidar com as questões inesperadas e segurança para saber improvisar.

(Professor C)

Os professores destacam que o EF volta‑se a uma preocupação acadê‑mica, permeada pelo desenvolvimento de uma autonomia intelectual, e à formação pessoal associada à compreensão de que todo conhecimento

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pode ser compartilhado e construído a partir de experiências pessoais. É importante ressaltar que a experiência só se transforma em conheci‑mento se for analisada criticamente pelo próprio professor ou por seus pares. O professor que interpela sua prática assume a sua própria reali‑dade escolar como um objeto de pesquisa, de reflexão e de análise. Nesse sentido, a experiência por si só não é formadora, pois pode ser uma mera repetição, uma rotina. Não é a experiência que é formadora, mas sim a reflexão ou a pesquisa sobre ela (NÓVOA, 2001).

[...] pensar e repensar as relações entre os indivíduos e o conhecimento adquirido, com algo que constitui uma das experiências mais genuínas dos seres humanos: transformar seus pensamentos em um sistema de signos e significados que podem ser compartilhados por outros. Ensiná-los a dialogar, contextualizar e ampliar conhecimentos.

(Professor D)

Sobre a ação docente nos anos finais do EF, os professores exploram o contexto plural, o “nós” no processo educacional, compartilhando com os outros sujeitos do segmento a responsabilidade pela ação. O trabalho colaborativo é fundamental ao processo de ensino‑aprendi‑zagem, pois potencializa o trabalho interdisciplinar, ampliando os signi‑ficados para todos os envolvidos, além de fortalecer os vínculos no grupo.

Precisa ser uma equipe coesa, que compartilhe os mesmos ideais.

(Professor J)

Composta por uma equipe atuante, engajada e que busca novas formas de aprimoramento.

(Professor B)

Os olhares de professores e estudantes do EF suscitam leituras importantes sobre atuações, esperanças e desesperanças no cotidiano do segmento. Os professores compreendem suas atuações junto aos estu‑dantes de forma parceira e mediadora. A ação docente representada vai ao encontro da compreensão dos estudantes ao enfatizar processos

escolarizantes formais, que contribuem para a formação acadêmica, pessoal e social dos alunos, e significam os processos escolares. Mas, acima de tudo, reflete o comprometimento, a postura crítica e a força do profissional docente.