projeto Ético-político do serviço social

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  • 7/24/2019 Projeto tico-poltico Do Servio Social

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    A construo do projeto tico-poltico do Servio SocialJos Paulo Netto

    Servio Social e Sade: Formao e Trabalho Profissional 1

    A Construo do Projeto tico-Poltico do Servio Social

    Por Jos Paulo Netto

    (para Jlia e Lus, distante e perto)

    Introduo

    muito recente datando da segunda metade dos anos noventa do sculo XX odebate sobre o que vem sendo denominado de projeto tico-poltico do Servio Social. O

    carter relativamente novo desta discusso revela-se claramente na escassa documentao

    sobre o tema1.

    No entanto, o objeto deste debate e, sobretudo, a prpria construo deste projeto no

    marco do Servio Social no Brasil tem uma histria que no to recente, iniciada na

    transio da dcada de 1970 de 1980. Este perodo marca um momento importante no

    desenvolvimento do Servio Social no Brasil, vincado especialmente pelo enfrentamento e pela

    denncia do conservadorismo profissional. neste processo de recusa e crtica do

    conservadorismo que se encontram as razes de um projeto profissional novo, precisamente as

    bases do que se est denominandoprojeto tico-poltico.

    O conciso texto que damos a pblico tem por objetivo oferecer elementos que

    contribuam para a compreenso e a implementao desse projeto.

    - Este texto, redigido em 1999 e originalmente publicado no mdulo 1 de Capacitao em Servio Social e Polt icaSocial (Braslia, CFESS/ABEPSS/CEAD/UnB, 1999), constituiu um dos primeiros materiais para a discusso acerca doprojeto tico-poltico do Servio Social brasileiro, sendo posteriormente reeditado em Portugal (Henrquez, org.,2001) e difundido tambm na Amrica Latina (Borgianni, Guerra e Montao, orgs., 2003). Para a presente edio,foram feitas pequenas alteraes formais e uns poucos acrscimos bibliogrficos.

    - Professor titular da Escola de Servio Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

    1Entre os poucos ttulos divulgados nacionalmente, veja-se especialmente Barroco (2004), Boschetti (2004)e Braz (2005).

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    1. Os projetos societrios

    A teoria social crtica (e, com esta designao, referimo-nos tradio marxista) j

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    dinmica da sociedade, como constataram, entre outros, Harvey (1996) e, entre ns, Antunes

    (2001).

    Por isto mesmo, nos projetos societrios (como, alis, em qualquer projeto coletivo) h

    necessariamente uma dimenso poltica, que envolve relaes de poder. claro que esta

    dimenso no pode ser diretamente identificada composicionamentos partidrios, ainda que

    se considere que os partidos polticos sejam instituies indispensveis e insubstituveis para a

    organizao democrtica da vida social no capitalismo contemporneo.

    A experincia histrica demonstra que, tendo sempre em seu ncleo a marca da classesocial a cujos interesses essenciais respondem, os projetos societrios constituem estruturas

    flexveis e cambiantes: incorporam novas demandas e aspiraes, transformam-se e se

    renovam conforme as conjunturas histricas e polticas.

    Enfim, compreende-se, sem grandes dificuldades, que a concorrncia entre diferentes

    projetos societrios um fenmeno prprio da democracia poltica. Num contexto ditatorial, a

    vontade poltica da classe social que exerce o poder poltico vale-se, para a implementao do

    seu projeto societrio, de mecanismos e dispositivos especialmente coercitivos e repressivos.

    somente quando se conquistam e se garantem as liberdades polticas fundamentais (de

    expresso e manifestao do pensamento, de associao, de votar e ser votado etc.) que

    distintos projetos societrios podem confrontar-se e disputar a adeso dos membros da

    sociedade.

    Todavia, tambm a experincia histrica demonstrou que, na ordem do capital, por

    razes econmico-sociais e culturais, mesmo num quadro de democracia poltica, os projetos

    societrios que respondem aos interesses das classes trabalhadoras e subalternas sempre

    dispem de condies menos favorveis para enfrentar os projetos das classes proprietrias e

    politicamente dominantes.

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    2. Os projetos profissionais

    Inscrevem-se no marco dos projetos coletivos aqueles relacionados s profisses

    especificamente as profisses que, reguladas juridicamente, supem uma formao terica

    e/ou tcnico-interventiva, em geral de nvel acadmico superior4.

    Os projetos profissionais apresentam a auto-imagem de uma profisso, elegem os valores

    que a legitimam socialmente, delimitam e priorizam seus objetivos e funes, formulam os

    requisitos (tericos, prticos e institucionais) para o seu exerccio, prescrevem normas para o

    comportamento dos profissionais e estabelecem as bases das suas relaes com os usurios deseus servios, com as outras profisses e com as organizaes e instituies sociais privadas e

    pblicas(inclusive o Estado, a que cabe o reconhecimento jurdico dos estatutos profissionais).

    Tais projetos so construdos por um sujeito coletivo o respectivo corpo (ou categoria)

    profissional, que inclui no apenas os profissionais de campo ou da prtica, mas que deve

    ser pensado como o conjunto dos membros que do efetividade profisso. atravs da sua

    organizao(envolvendo os profissionais, as instituies que os formam, os pesquisadores, os

    docentes e os estudantes da rea, seus organismos corporativos, acadmicos e sindicais etc.)que um corpo profissional elabora o seu projeto. Se considerarmos o Servio Social no Brasil,

    tal organizao compreende o sistema CFESS/CRESS, a ABEPSS, a ENESSO, os sindicatos e as

    demais associaes de assistentes sociais.

    Por outra parte, a experincia scio-profissional comprovou que, para que um projeto

    profissional se afirme na sociedade, ganhe solidez e respeito frente s outras profisses, s

    instituies privadas e pblicas e frente aos usurios dos servios oferecidos pela profisso

    necessrio que ele tenha em sua base um corpo profissional fortemente organizado.

    Os projetos profissionais tambm so estruturas dinmicas, respondendo s alteraes

    no sistema de necessidades sociais sobre o qual a profisso opera, s transformaes

    econmicas, histricas e culturais, ao desenvolvimento terico e prtico da prpria profisso e,

    4 - Sobre o processo de constituio, institucionalizao e/ou organizao dessas profisses, cf., entre outros, Johnson(1972), Larson (1977), Friedson (1986) e Torstendhal e Burrage, eds. (1990).

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    ademais, s mudanas na composio social do corpo profissional. Por tudo isto, os projetos

    profissionais igualmente se renovam, se modificam.

    importante ressaltar que os projetos profissionais tambm tm ineliminveis dimenses

    polticas, seja no sentido amplo (referido s suas relaes com os projetos societrios), seja

    em sentido estrito (referido s perspectivas particulares da profisso). Porm, nem sempre tais

    dimenses so explicitadas, especialmente quando apontam para direes conservadoras ou

    reacionrias. Um dos traos mais caractersticos do conservadorismo consiste na negao das

    dimenses polticas e ideolgicas. No por acaso que o conhecido pensador lusitano

    Antnio Srgio, numa passagem notvel, tenha observado que aquele que diz no gostar de

    poltica, adora praticar poltica conservadora.

    2 1 Projetos profissionais e pluralismo

    O sujeito coletivo que constri o projeto profissional constitui um universo heterogneo:

    os membros do corpo (categoria) profissional so necessariamente indivduos diferentes tm

    origens, situaes, posies e expectativas sociais diversas, condies intelectuais distintas,

    comportamentos e preferncias tericas, ideolgicas e polticas variadas etc. O corpo

    profissional uma unidade no-homognea, uma unidade de diversos; nele esto presentes

    projetos individuais e societrios diversos e, portanto, configura um espao plural do qual

    podem surgir projetos profissionais diferentes.

    Mais exatamente, todo corpo profissional um campo de tenses e de lutas. A

    afirmao e consolidao de um projeto profissional em seu prprio interior no suprime as

    divergncias e contradies. Tal afirmao deve fazer-se mediante o debate, a discusso, apersuaso enfim, pelo confronto de idias e no por mecanismos coercitivos e excludentes.

    Contudo, sempre existiro segmentos profissionais que proporo projetos alternativos; por

    consequncia, mesmo um projeto que conquiste hegemonia nunca ser exclusivo5.

    5 - Sabe-se que a categoria hegemoniafoi especialmente elaborada pelo comunista sardo Antnio Gramsci (Coutinho,1999); para um tratamento didtico da categoria, cf. Simionatto (1995: 37-50).

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    Por isso, a elaborao e a afirmao (ou, se se quiser, a construo e a consolidao) de

    um projeto profissional deve dar-se com a ntida conscincia de que o pluralismo umelemento factual da vida social e da prpria profisso, que deve ser respeitado. Mas este

    respeito, que no deve ser confundido com uma tolerncia liberal para com o ecletismo6, no

    pode inibir a luta de idias. Pelo contrrio, o verdadeiro debate de idias s pode ter como

    terreno adequado o pluralismo que, por sua vez, supe tambm o respeito s hegemonias

    legitimamente conquistadas.

    A ateno a essas questes se mostra mais importante quando se leva em conta a

    relao dos projetos profissionais com os projetos societrios. Embora seja frequente a

    sintonia entre o projeto societrio hegemnico e o projeto hegemnico de um determinado

    corpo profissional, podem ocorrer e ocorrem situaes de conflito e mesmo de contradio

    entre eles. possvel que, em conjunturas precisas, o projeto societrio hegemnico seja

    contestado por projetos profissionais que conquistem hegemonia em seus respectivos corpos

    (esta possibilidade tanto maior quando tais corpos se tornam sensveis aos interesses das

    classes trabalhadoras e subalternas e quanto mais estas classes se afirmem social e

    politicamente). Tais situaes agudizam, no interior desses corpos profissionais, as diferenase divergncias entre os diversos segmentos profissionais que os compem.

    evidente que estas divergncias no podem ser resolvidas somente no marco do

    corpo profissional. Seu direcionamento positivo exige a anlise do movimento social (que o

    movimento das classes e camadas sociais) e o estabelecimento de relaes e alianas com

    outros corpos profissionais e segmentos sociais (aqui includos os usurios dos servios

    profissionais), principalmente aqueles vinculados s classes que dispem de potencial para

    gestar um projeto societrio alternativo ao das classes proprietrias e dominantes.

    H que se observar que esta coliso, este enfrentamento de projetos profissionais com

    o projeto societrio hegemnico tem limites numa sociedade capitalista. Exceto se se quiser

    esterilizar no messianismo (cuja anttese o fatalismo)7, at mesmo um projeto profissional

    6 - A questo extremamente polmica do pluralismo e sua degradao terica (no ecletismo) e poltica (no liberalismo)foi abordada sob forma diferente por Coutinho, in Vv. Aa. (1991: 5-17) e por Tonet (1997: 203-237).

    7 -Messianismoe fatalismoforam estudados por Iamamoto (1992: 114-116).

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    crtico e avanado deve ter em conta tais limites, cujas linhas mais evidentes se expressam nas

    condies institucionais do mercado de trabalho8.

    2 2 Projeto profissional: diversidade de componentes e Cdigo de tica

    Da caracterizao de projeto profissional acima apresentada, infere-se que ele envolve

    uma srie de componentes distintos: uma imagem ideal da profisso, os valores que a

    legitimam, sua funo social e seus objetivos, conhecimentos tericos, saberes interventivos,

    normas, prticas etc. So vrias, portanto, as dimenses de um projeto profissional, que deve

    articul-las coerentemente.

    Esta articulao imprescindvel para a hegemonia de um projeto profissional

    complexa e no se realiza num curto espao de tempo. Ela exige recursos poltico-

    organizativos (j vimos a importncia da organizao do corpo profissional), processos de

    debate e elaborao, investigaes terico-prticas (inclusive a anlise da relao entre

    conhecimentos e formas de interveno) etc.

    Por outra parte, considerando o pluralismo profissional, o projeto hegemnico de um

    determinado corpo profissional supe umpactoentre seus membros: uma espcie de acordo

    sobre aqueles aspectos que, no projeto, so imperativos e aqueles que so indicativos.

    Imperativos so os componentes compulsrios, obrigatrios para todos os que exercem a

    profisso (estes componentes, em geral, so objeto de regulao jurdico-estatal); indicativos

    so aqueles em torno dos quais no h um consenso mnimo que garanta seu cumprimento

    rigoroso e idntico por todos os membros do corpo profissional. Se pensamos no Servio

    Social no Brasil, recordamos como componentes imperativos a formao acadmica, tal comoreconhecida pelo Ministrio da Educao (isto , em instituies de nvel superior credenciadas

    e segundo padres curriculares minimamente determinados), e a inscrio na respectiva

    organizao profissional(CRESS).

    8 - No possvel discutir aqui o mercado de trabalhodos assistentes sociais que, ultimamente, tem sido objeto deespecial ateno; para aproximaes distintas, cf. Netto (1996: 115-126) e Iamamoto (1998).

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    Entretanto, mesmo acerca de componentes reconhecidamente imperativos registram-se

    divergncias. Um exemplo eloquente relaciona-se aos Cdigos de tica das profisses: apesarde serem um componente imperativo do exerccio profissional (inclusive, na maioria dos

    casos, com fora legal), so comuns os debates e as discrepncias acerca de alguns de seus

    princpios e implicaes e isto constitui outro indicador das disputas e tenses que se

    processam no interior dos corpos profissionais (no nos referimos, aqui, s violaes dos

    Cdigos, mas s contestaes de princpios e normas que eles consagram).

    Esta remisso aos Cdigos de tica importante no tratamento dos componentes dos

    projetos profissionais para esclarecer dois aspectos relevantes. O primeiro refere-se ao fato de

    que os projetos profissionais requerem sempre uma fundamentao de valores de natureza

    explicitamente tica porm, esta fundamentao, sendo posta nos Cdigos, no se esgota

    neles, isto : a valorao tica atravessa o projeto profissional como um todo, no constituindo

    um mero segmento particular dele.

    O segundo diz respeito a que os elementos ticos de um projeto profissional no se

    limitam a normativas morais e/ou prescries de direitos e deveres: eles envolvem, ademais,as opes tericas, ideolgicas e polticas dos profissionais por isto mesmo, a

    contempornea designao de projetos profissionais como tico-polticos revela toda a sua

    razo de ser: uma indicao tica s adquire efetividade histrico-concreta quando se

    combina com uma direo poltico-profissional.

    3. condio poltica da construo do novo projeto profissional do Servio Social e seusoutros componentes

    Na introduo deste texto assinalamos que se o debate acerca doprojeto tico-poltico,

    nestes termos, muito recente, a sua histria remonta transio dos anos setenta aos oitenta

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    do sculo passado. Com efeito, foi naqueles anos que aprimeira condiopara a construo

    deste novo projeto se viabilizou: a recusa e a crtica ao conservadorismoprofissional9.

    claro que a denncia do conservadorismo do Servio Social no surgiu repentinamente

    na verdade, desde a segunda metade dos anos sessenta (quando o Movimento de

    Reconceituao10, que fez estremecer o Servio Social na Amrica Latina, deu seus primeiros

    passos), aquele conservadorismo j era objeto de problematizao. O trnsito dos anos

    setenta aos oitenta, porm, situou esta problematizao num nvel diferente na escala em que

    coincidiu com a crise da ditadura brasileira, exercida, desde 1 de abril de 1964, por uma

    tecnoburocracia civil sob tutela militar a servio do grande capital11.

    A resistncia ditadura, conduzida no plano legal por uma frente de oposio

    hegemonizada por segmentos burgueses descontentes, ganhou profundidade e qualidade

    novas quando, na segunda metade dos anos setenta, a classe trabalhadora se reinseriu na

    cena poltica, por meio da mobilizao dos operrios mtalo-mecnicos do cinturo industrial

    de So Paulo (o ABC paulista). A partir de ento, a ditadura que promovera a

    modernizaoconservadorado pas contra os interesses da massa da populao, valendo-se,inclusive, do terrorismo de Estado foi levada, de derrota em derrota, negociao com a

    qual, culminando na eleio indireta de Tancredo Neves (1985), concluiu seu ciclo desastroso.

    A primeira metade dos anos oitenta assistiu irrupo, na superfcie da vida social

    brasileira, de demandas democrticas e populares reprimidas por largo tempo. A mobilizao

    dos trabalhadores urbanos, com o renascimento combativo da sua organizao sindical; a

    tomada de conscincia dos trabalhadores rurais e a revitalizao das suas entidades

    representativas; o ingresso, tambm na cena poltica, de movimentos de cunho popular (porexemplo, associaes de moradores) e democrtico (estudantes, mulheres, minorias etc.); a

    9 - Para uma anlise detalhada desta recusa e desta crtica, cf. especialmente Netto (1998: 115-308) e Iamamoto(1992: 17-39).

    10 - Acerca do Movimento de Reconceituao, alm do texto de Netto citado na nota 9, cf. tambm Faleiros (1987) eSilva e Silva, inSilva e Silva, coord. (1995: 71-96). Para um balano da Reconceituao, quarenta anos depois de suaecloso, cf. Alayn, org. (2005); alguns dos textos a coligidos foram publicados em Servio Social & Sociedade (S.Paulo, Cortez, n 84, 2005).

    11 - Um estudo cuidadoso da ditadura o de Ianni (1981); uma viso panormica do processo ditatorial encontra-seem Moreira Alves (1987); uma anlise histrico-sistemtica est resumida em Netto (1998: 15-112).

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    dinmica da vida cultural, com a reativao do protagonismo de setores intelectuais; a

    reafirmao de uma opo democrtica por segmentos da Igreja catlica e a consolidao dopapel progressista desempenhado por instituies como a Ordem dos Advogados do Brasil

    (OAB) e a Associao Brasileira de Imprensa (ABI) tudo isso ps na agenda da sociedade

    brasileira a exigncia de profundas transformaes polticas e sociais.

    neste contexto que o histrico conservadorismodo Servio Social brasileiro12, , tantas

    vezes reciclado e metamorfoseado, confrontou-se pela primeira vez com uma conjuntura em

    que a sua dominncia no corpo profissional (que, sofrendo as incidncias do modelo

    econmico da ditadura, comea a reconhecer-se como inserido no conjunto das camadas

    trabalhadoras) podia ser contestada uma vez que, no corpo profissional, repercutiam as

    exigncias polticas e sociais postas na ordem do dia pela ruptura do regime ditatorial.

    A luta pela democracia na sociedade brasileira, encontrando eco no corpo profissional,

    criou o quadro necessrio para romper com o quase monoplio do conservadorismo no

    Servio Social: no processo da derrota da ditadura se inscreveu a primeira condio a

    condio poltica para a constituio de um novo projeto profissional.

    Como todo universo heterogneo, o corpo profissional no se comportou de modo

    idntico. Mas as suas vanguardas, na efervescncia democrtica, mobilizaram-se ativamente

    na contestao poltica desde o III Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais (1979,

    conhecido como o Congresso da virada), os segmentos mais dinmicos do corpo

    profissional vincularam-se ao movimento dos trabalhadores e, rompendo com a dominncia

    do conservadorismo, conseguiram instaurar na profisso opluralismo poltico, que acabou por

    redimensionar amplamente no s a organizao profissional (dando vida nova, porexemplo, a entidades como a ABESS depois renomeada ABEPSS e, posteriormente, ao

    12 - Trata-se mesmo de um histricoconservadorismo, radicado na profisso desde o seu surgimento entre ns.Recorde-se o que escreveu o melhor analista do surgimento do Servio Social no Brasil, resumindo a particularidadeda relao da profisso com o bloco catlico: a constituio do Servio Social instaurou uma forma de intervenoideolgica que se baseia no assistencialismo como suporte de uma atuao cujos efeitos so essencialmente polticos:o enquadramento das populaes pobres e carentes, o que engloba o conjunto das classes exploradas. No podetambm ser desligado do contexto mais amplo em que se situa a posio poltica assumida e desenvolvida peloconjunto do bloco catlico: a estreita aliana com o fascismo nacional, o constituir-se num polarizador da opinio de

    direita atravs da defesa de um programa profundamente conservador, a luta constante e encarniada contra osocialismo, a defesa intransigente das relaes sociais vigentes (Carvalho, inIamamoto e Carvalho, 1983: 221-222).

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    CFESS) como, sobretudo, conseguiram inseri-la, de modo indito, no marco do movimento

    dos trabalhadores brasileiros, como ficou constatado na anlise de Abramides e Cabral(1995).

    A luta contra a ditadura e a conquista da democracia poltica possibilitaram o

    rebatimento, no interior do corpo profissional, da disputa entre projetos societrios diferentes,

    que se confrontavam no movimento das classes sociais. As aspiraes democrticas e

    populares, irradiadas a partir dos interesses dos trabalhadores, foram incorporadas e at

    intensificadas pelas vanguardas do Servio Social. Pela primeira vez, no interior do corpo

    profissional, repercutiam projetos societrios distintos daqueles que respondiam aos interesses

    das classes e setores dominantes. desnecessrio dizer que esta repercusso no foi idlica:

    envolveu fortes polmicas e diferenciaes no corpo profissional o que, por outra parte,

    uma saudvel implicao da luta de idias.

    Tal repercusso foi favorecida, ademais, pelas modificaes ocorridas no prprio corpo

    profissional (seu aumento quantitativo, a presena crescente de membros provenientes dasnovas camadas mdias urbanas etc.). No entanto, para a constituio de um novo projeto

    profissional, a condio poltica, primeira e necessria, no suficiente outros componentes

    deveriam comparecer para que ele tomasse forma.

    3 1 Outros componentes do novo projeto

    Ainda nos anos setenta, quando, como resultado da Reforma Universitria imposta pela

    ditadura, o Servio Social legitimou-se no mbito acadmico, surgiram os cursos de ps-graduao (primeiro os mestrados e depois, nos anos oitenta, os doutorados; tambm foram

    fomentadas as especializaes).

    nos espaos da ps-graduao, cujos primeiros frutos se recolhem no trnsito dos

    anos setenta aos oitenta, que, no Brasil, se inicia e, nos anos seguintes, se consolida a

    produo de conhecimentos a partir da rea de Servio Social ento, o corpo profissional

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    comeou a operar a sua acumulao terica. Um balano desta produo13 mostra que,

    apesar de muito desigual, ela engendrou uma massa crtica considervel, que permitiu profisso estabelecer uma interlocuo fecunda com as cincias sociais e, sobretudo, revelar

    quadros intelectuais respeitados no conjunto do corpo profissional e, tambm, em outras

    reas do saber.

    Observe-se que a expresso massa crtica refere-se ao conjunto de conhecimentos

    produzidos e acumulados por uma determinada cincia, disciplina ou rea do saber. O

    Servio Social umaprofisso uma especializao do trabalho coletivo, no marco da diviso

    scio-tcnica do trabalho -, com estatuto jurdico reconhecido (Lei 8.669, de 17 de junho de

    1993); enquanto profisso, no uma cincia nem dispe de teoria prpria; mas o fato de

    ser uma profisso no impede que seus agentes realizem estudos, investigaes, pesquisas

    etc. e que produzam conhecimentos de natureza terica, incorporveis pelas cincias sociais e

    humanas. Assim, enquanto profisso, o Servio Social pode se constituir, e se constituiu nos

    ltimos anos, como uma rea de produo de conhecimentos, apoiada inclusive por agncias

    pblicas de fomento pesquisa (como, por exemplo, o Conselho Nacional de

    Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico/CNPq).

    Na acumulao terica operada pelo Servio Social notvel o fato de, naquilo que

    ela teve e tem de maior relevncia, incorporar matrizes tericas e metodolgicas compatveis

    com a ruptura com o conservadorismo profissional nela se empregaram abertamente

    vertentes crticas, destacadamente as inspiradas na tradio marxista. Isto significa que,

    tambm no plano da produo de conhecimentos, instaurou-se um pluralismo que permitiu a

    incidncia, nos referenciais cognitivos dos assistentes sociais, de concepes tericas e

    metodolgicas sintonizadas com os projetos societrios das massas trabalhadoras (ou seja: de

    concepes tericas e metodolgicas capazes de propiciar a crtica radical das relaes

    econmicas e sociais vigentes). quebra do quase monoplio do conservadorismo poltico na

    13 - Para a produo at finais dos anos noventa, cf. o trabalho de N. Kameyama, in Cadernos Abess dedicado aDiretrizes curriculares e pesquisa em Servio Social (1998). Dados mais recentes foram analisados por M. V.

    Iamamoto e apresentados no Encontro Nacional de Pesquisadores em Servio Social/ENPESS, realizado em PortoAlegre, novembro de 2004.

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    profisso seguiu-se a quebra do quase monoplio do seu conservadorismo terico e

    metodolgico.

    Concomitantemente e este componente atravessar os anos oitenta e permanecer

    na agenda profissional ao largo da dcada seguinte -, ganhou peso o debate sobre a

    formao profissional: a reforma curricular de 1982 foi precedida e sucedida por amplas e

    produtivas discusses, fortemente estimuladas pela antiga ABESS14.

    Todos os esforos foram dirigidos no sentido de adequar a formao profissional, em

    nvel de graduao, s novas condies postas seja pelo enfrentamento, num marcodemocrtico, da questo social exponenciada pela ditadura, seja pelas exigncias

    intelectuais que a massa crtica em crescimento poderia atender.

    Em poucas palavras, entrou na agenda do Servio Social a questo de redimensionar o

    ensino com vistas formao de um profissional capaz de responder, com eficcia e

    competncia, s demandas tradicionais e s demandas emergentes na sociedade brasileira

    em suma, a construo de um novo perfil profissional. O exame da rica documentao

    produzida no perodo (por exemplo, Carvalho et alii, 1984 e Carvalho, in ABESS, 1993)

    mostra a pertinncia do debate ento em curso para os dias atuais. Por outra parte, a verdade

    histrica exige que se assinale o papel de vanguarda que, poca, foi desempenhado pela

    Faculdade de Servio Social da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, formulando

    uma pioneira e exitosa proposta de reviso curricular, que constituiu uma referncia nacional

    (Yazbek, org., 1984).

    neste processo que foram ressignificadas modalidades prtico-interventivas

    tradicionais e emergindo novas reas e campos de interveno, com o que se veio

    configurando, numa dinmica que est em curso at hoje, um alargamento da prtica

    profissional, crescentemente legitimado seja pela produo de conhecimentos que a partir

    dela se elaboram, seja pelo reconhecimento do exerccio profissional por parte dos usurios.

    14 - Recorde-se que a Associao Brasileira de Ensino de Servio Social (ABESS), e seu organismo acadmico, oCentro de Documentao e Pesquisa em Polticas Sociais e Servio Social/CEDEPSS, criado em 1987, tiveram seu

    formato institucional redimensionado em 1998, surgindo ento a Associao Brasileira de Ensino e Pesquisa emServio Social (ABEPSS).

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    A construo do projeto tico-poltico do Servio SocialJos Paulo Netto

    Servio Social e Sade: Formao e Trabalho Profissional 14

    Este movimento no se deve unicamente requalificao da prtica profissional

    (graas acumulao de massa crtica e ao redimensionamento da formao), mas, tambme sobretudo, conquista de direitos cvicos e sociais que acompanhou a restaurao

    democrtica na sociedade brasileira assim, por exemplo, prticas interventivas com

    determinadas categorias sociais (crianas, adolescentes, idosos etc.) s se puderam viabilizar

    institucionalmente porque receberam respaldo jurdico-legal15.

    Em sntese, foram estes os principais componentes que, a partir da quebra do quase

    monoplio do conservadorismo na profisso, se conjugaram para propiciar a construo do

    projeto tico-poltico do Servio Socialno Brasil. Como se pode inferir desta argumentao,

    tais componentes foram se gestando ao longo dos anos oitenta e esto em processamento at

    hoje.

    Ainda nos anos oitenta, as vanguardas profissionais procuraram consolidar estas

    conquistas com a formulao de um novo Cdigo de tica Profissional, institudo em 198616.

    At ento, o debate da tica no Servio Social no era um tema privilegiado na sequncia

    do Cdigo de 1986, e aps a sua reviso, concluda em 1993, que este tema ganhar relevosignificativo, de que ser mostra expressiva a pesquisa de Barroco (2001), precedida de uma

    discusso cuja documentao foi relativamente parca (Bonetti et alii, 1996 e Iamamoto, 1998:

    140-148).

    A reduzida acumulao no terreno da reflexo tica comprometeu o Cdigo de

    198617. Seus indiscutveis avanos, que o tornaram um marco na histria do Servio Social no

    Brasil, se concretizaram no domnio da dimenso poltica (recorde-se, uma vez mais, que o

    polticoextrapola amplamente opartidrio), coroando o rompimento com o conservadorismona explicitao frontal do compromisso profissionalcom a massa da populao brasileira, a

    classe trabalhadora. Entretanto, outras dimenses ticas e profissionais no foram

    suficientemente aclaradas, o que obrigou, em pouco tempo, sua reviso.

    15 - Recorde-se o Estatuto da Criana e do Adolescente e a Poltica Nacional do Idoso.

    16 - Os cdigos anteriores foram os de 1947, de 1965 e de 1975.

    17 - Para elementos crticos acerca do Cdigo de 1986, cf. as observaes de Barroco e Vinagre Silva, inBonetti et alii(1996: 118-122 e 137-144).

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    Servio Social e Sade: Formao e Trabalho Profissional 15

    Nesta reviso, que deu forma ao Cdigo hoje vigente, as unilateralidades e limites de

    1986 foram superadas e, de fato, o novo Cdigo incorporou tanto a acumulao tericarealizada nos ltimos vinte anos pelo corpo profissional quanto os novos elementos trazidos

    ao debate tico pela urgncia da prpria reviso. Neste sentido, o Cdigo de tica Profissional

    de 1993 um momento basilar do processo de construo do projeto tico-poltico do Servio

    Social no Brasil18.

    3 2 A estrutura bsica do novo projeto profissional

    no trnsito dos anos oitenta aos noventa do sculo XX que o projeto tico-poltico do

    Servio Social no Brasil se configurou em sua estrutura bsica19 e, qualificando-a como

    bsica, queremos assinalar o seu carter aberto: mantendo seus eixos fundamentais, ela

    suficientemente flexvel para, sem se descaracterizar, incorporar novas questes, assimilar

    problemticas diversas, enfrentar novos desafios. Em suma, trata-se de um projeto que

    tambm um processo, em contnuo desdobramento. Um exemplo do seu carter aberto,

    com a manuteno dos seus eixos fundamentais, pode ser encontrado nas discusses acerca

    da formao profissional, produzidas com as modificaes advindas da vigncia da Lei deDiretrizes e Bases da Educao Nacional/LDBEN (Lei n 9394, de 20 de dezembro de 1996):

    as orientaes propostas por representantes do corpo profissional (cf. ABESS, 1997 e 1998)

    ratificam a direo da formao nos termos do projeto tico-poltico.

    Esquematicamente, este projeto tem em seu ncleo o reconhecimento da liberdade

    como valor central a liberdade concebida historicamente, como possibilidade de escolha

    entre alternativas concretas; da um compromisso com a autonomia, a emancipao e a plena

    expanso dos indivduos sociais. Conseqentemente, este projeto profissional se vincula a um

    projeto societrio que prope a construo de uma nova ordem social, sem

    explorao/dominao de classe, etnia e gnero. A partir destas opes que o fundamentam,

    tal projeto afirma a defesa intransigente dos direitos humanos e o repdio do arbtrio e dos

    18 - te cdigo foi institudo pela Resoluo do CFESS n 273/93, de 13 de maro de 1993 e publicado no DirioOficial da Unio n 60, de 30 de maro de 1993, seo 1, pp. 4004-4007.

    19 - ra sintetizar esta estrutura bsica, recorreremos documentao produzida pelo corpo profissional nos anosoitenta e noventa, citada parcialmente nas referncias bibliogrficas oferecidas ao final deste texto.

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    Servio Social e Sade: Formao e Trabalho Profissional 16

    preconceitos, contemplando positivamente o pluralismo, tanto na sociedade como no exerccio

    profissional.

    A dimenso poltica do projeto claramente enunciada: ele se posiciona a favor da

    equidadee da justia social, na perspectiva da universalizaodo acesso a bens e a servios

    relativos s polticas e programas sociais; a ampliao e a consolidao da cidadania so

    explicitamente postas como garantia dos direitos civis, polticos e sociais das classes

    trabalhadoras. Correspondentemente, o projeto se declara radicalmente democrtico

    considerada a democratizao como socializao da participao poltica e socializao da

    riqueza socialmente produzida.

    Do ponto de vista estritamente profissional, o projeto implica o compromisso com a

    competncia, que s pode ter como base o aperfeioamento intelectualdo assistente social.

    Da a nfase numa formao acadmica qualificada, fundada em concepes terico-

    metodolgicas crticas e slidas, capazes de viabilizar uma anlise concreta da realidade

    social formao que deve abrir a via preocupao com a (auto)formao permanentee

    estimular uma constantepreocupao investigativa.

    Em especial, o projeto prioriza uma nova relao com os usurios dos servios

    oferecidos pelos assistentes sociais: seu componente elementar o compromisso com a

    qualidade dos servios prestados populao, a includa a publicidade dos recursos

    institucionais, instrumento indispensvel para a sua democratizao e universalizao e,

    sobretudo, para abrir as decises institucionais participao dos usurios.

    Enfim, o projeto assinala claramente que o desempenho tico-poltico dos assistentes

    sociais s se potencializar se o corpo profissional articular-se com os segmentos de outras

    categorias profissionais que compartilham de propostas similares e, notadamente, com os

    movimentos que se solidarizam com a luta geral dos trabalhadores.

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    Servio Social e Sade: Formao e Trabalho Profissional 17

    4. A conquista da hegemonia

    Pode-se afirmar que este projeto tico-poltico, fundamentado terica e

    metodologicamente, conquistou hegemonia no Servio Social, no Brasil, na dcada de

    noventa do sculo XX.

    Esta constatao, no entanto, no significa afirmar que tal projeto esteja consumado ou

    que seja o nico existente no corpo profissional. Por uma parte, ainda no se desenvolveram

    suficientemente as suas possibilidades por exemplo, no domnio dos indicativos para a

    orientao de modalidades de prticas profissionais; neste terreno, ainda h muito por fazer-se. Por outra parte, a ruptura com o quase monoplio do conservadorismo no Servio Social

    no suprimiu tendncias conservadoras ou neoconservadoras e, como se viu acima, a

    heterogeneidade prpria dos corpos profissionais propicia, em condies de democracia

    poltica, a existncia e a concorrncia entre projetos diferentes.

    Todavia, inconteste que, na segunda metade dos anos noventa, este projeto

    conquistou a hegemonia no interior do corpo profissional. Contriburam para esta conquista

    dois elementos de ordem diversa, que a vontade poltico-organizativa das vanguardasprofissionais soube articular numa definida direo social estratgica.

    O primeiro foi o crescente envolvimento de segmentos cada vez maiores do corpo

    profissional nos fruns, nos espaos de discusso e nos eventos profissionais bem como a

    multiplicao e descentralizao desses fruns, espaos e eventos. Tal envolvimento se

    registrou nos vrios Congressos Brasileiros de Assistentes Sociais e em seus encontros

    regionais preparatrios, nas convenes nacionais e nas oficinas regionais da ABESS, nos

    encontros de pesquisadores promovidos pelo CEDEPSS, nos encontros regionais e nos

    seminrios nacionais patrocinados pelo sistema CFESS/CRESS etc.

    O segundo consistiu no fato de que as linhas fundamentais deste projeto esto

    sintonizadas com tendncias significativas do movimento da sociedade brasileira (do

    movimento das classes sociais). Estas linhas no derivaram do desejo ou da vontade subjetiva

    de meia dzia de assistentes sociais envolvidos na militncia cvica e/ou poltica; elas

    expressaram, processadas numa perspectiva profissional e refratadas no interior da categoria,

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    Servio Social e Sade: Formao e Trabalho Profissional 18

    demandas e aspiraes da massa dos trabalhadores brasileiros. Numa palavra: este projeto

    profissional vinculou-se a um projeto societrio que, antagnico ao das classes proprietrias eexploradoras, tem razes efetivas na vida social.

    Neste sentido, a construo deste projeto profissional acompanhou a curva ascendente

    do movimento democrtico e popular que, progressista e positivamente, tensionou a

    sociedade brasileira entre a derrota da ditadura e a promulgao da Constituio de 1988 (

    que Ulisses Guimares chamou de Constituio Cidad) um movimento democrtico e

    popular que, inclusive apresentando-se como alternativa nacional de governo nas eleies

    presidenciais de 1989, forou uma rpida redefinio do projeto democrtico das classes

    proprietrias.

    4 1 A hegemonia ameaada

    Enquanto o movimento democrtico e popular brasileiro avanava e, vinculado a ele, o

    Servio Social construa o seu projeto tico-poltico -, transformaes substantivas marcavam a

    passagem do sistema capitalista a um novo estgio e, concomitantemente, uma crise social

    planetria irrompia no trnsito dos anos oitenta aos noventa.

    Na sociedade brasileira, as incidncias dessa crise operam fortemente nos anos noventa.

    Especialmente a partir de 1995, quando os representantes do grande capital passaram a

    ocupar mais diretamente as instncias de deciso poltica, as prticas poltico-econmicas

    inspiradas no neoliberalismo e a sua culturaviram-se amplamente disseminadas no conjunto

    da sociedade. No curso daquela dcada, a grande burguesia brasileira (que cresceu

    sombra da proteo estatal da ditadura) reciclou rapidamente seu projeto societrio,tornando-se, ento, defensora do neoliberalismo.

    desnecessria qualquer argumentao detalhada para verificar o antagonismo entre o

    projeto tico-poltico que ganhou hegemonia no Servio Social e a ofensiva neoliberal que,

    tambm no Brasil, em nome da racionalizao, da modernidade, dos valores do Primeiro

    Mundo etc., vem promovendo (ao arrepio da Constituio de 1988) a liquidao de direitos

    sociais (denunciados como privilgios), a privatizao do Estado, o sucateamento dos

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    Servio Social e Sade: Formao e Trabalho Profissional 19

    servios pblicos e a implementao sistemtica de uma poltica macro-econmica que

    penaliza a massa da populao.

    Assim, a cruzada antidemocrtica do grande capital, expressa na cultura do

    neoliberalismo cruzada entre ns capitaneada por setores poltico-partidrios auto-

    intitulados social-democratas e, mais recentemente, por setores que outrora se reivindicaram

    de esquerda -, uma ameaa real implementao do projeto profissional do Servio

    Social. Do ponto de vista neoliberal, defender e implementar este projeto tico-poltico sinal

    de atraso, de andar na contra-mo da histria.

    evidente que a preservao e o aprofundamento deste projeto, nas condies atuais,

    que parecem e so to adversas, dependem da vontade majoritria do corpo profissional

    porm no s dela: tambm dependem vitalmente do fortalecimento do movimento

    democrtico e popular, to pressionado e constrangido nos ltimos anos.

    Mas, na medida em que, no Brasil, tornam-se visveis e sensveis os resultados do

    projeto societrio inspirado no neoliberalismo privatizao do Estado, desnacionalizao da

    economia, desemprego, desproteo social, concentrao exponenciada da riqueza etc. -,

    nesta mesma medida fica claro que o projeto tico-poltico do Servio Social tem futuro. E tem

    futuro porque aponta precisamente ao combate (tico, terico, ideolgico, poltico e prtico-

    social) ao neoliberalismo, de modo a preservar e atualizar os valores que, enquanto projeto

    profissional, o informam e o tornam solidrio ao projeto de sociedade que interessa massa

    da populao.

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