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Projeto tico-Poltico do Servio Social e sua Relao com a Reforma Sanitria: elementos para o debate Maria Ins Souza Bravo e Maurlio Castro de Matos

Projeto tico-Poltico do Servio Social e sua Relao com a Reforma Sanitria: elementos para o debate1Por Maria Ins Souza Bravo e Maurlio Castro de Matos

ApresentaoO artigo fruto de reflexes sobre as caractersticas do Servio Social brasileiro na sade e quais os desafios que a atualidade apresenta para os profissionais da rea. Visa contribuir para o fortalecimento dos projetos tico-poltico profissional do Servio Social e da reforma sanitria. Est estruturado em quatro partes. Na primeira e segunda so desenvolvidas anlises panormicas sobre a trajetria histrica do Servio Social, sendo que na primeira abordado o perodo de 1930 a 1979 e, na segunda, os anos 80 e 90. A terceira parte tem por objetivo desenvolver uma reflexo sobre os desafios postos na atualidade para o Servio Social na rea da sade e, para tanto, busca uma interlocuo com alguns autores da rea que refletiram sobre o tema. Por fim, na ltima parte do artigo, so apresentadas algumas questes e proposies sobre o Servio Social na Sade, tomando como referncia e no por acaso os princpios fundamentais do atual cdigo de tica dos assistentes sociais.

1. Panorama Servio Social no perodo de 1930 a 1979Neste item ser enfocado o surgimento do Servio Social a partir das influncias sciohistricas da poca.

1 - Texto revisto, e sintetizado, tendo por referncia o artigo publicado pelos autores na coletnea Sade e Servio Social, em 2004. - Assistente Social. Doutora em Servio Social (PUC/SP). Professora aposentada da UFRJ. Professora Adjunta da Faculdade de Servio Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Coordenadora do projeto Polticas pblicas de sade: o potencial dos conselhos do Rio de Janeiro. - Assistente Social. Mestre em Servio Social (UFRJ). Doutorando em Servio Social (PUC/SP). Professor Assistente da UERJ e Integrante do Projeto de Pesquisa e Extenso Polticas Pblicas de Sade: O Potencial dos Conselhos do Rio de Janeiro

Servio Social e Sade: Formao e Trabalho Profissional

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O surgimento e o desenvolvimento do Servio Social no perodo de 30 a 64, bem como a ao profissional na rea da sade, mostram algumas evidncias significativas2. A conjuntura de 30 a 45 caracteriza o surgimento da profisso no Brasil, com influncia europia e a rea da sade no foi a que concentrou maior quantitativo de profissionais, apesar de algumas Escolas terem surgido motivadas por demandas do setor. A formao profissional tambm se pautou, desde o seu incio, em algumas disciplinas relacionadas Sade. A expanso do Servio Social no pas, entretanto, ocorre a partir de 1945, relacionada com as exigncias e necessidades de aprofundamento do capitalismo no Brasil e s mudanas que ocorreram no panorama internacional, em funo do trmino da 2 Guerra Mundial. Nesta dcada, a ao profissional na Sade tambm se amplia, transformando-se no setor que mais vem absorvendo os assistentes sociais. A influncia norte-americana na profisso substituiu a europia, que marcou a conjuntura anterior, tanto no nvel da formao profissional com alterao curricular como nas instituies prestadoras de servios. O marco desta mudana de influncia situa-se no Congresso Interamericano de Servio Social realizado em 1941, em Atlantic City (EUA). Posteriormente, foram criados diversos mecanismos de interao mais efetiva, como o oferecimento de bolsas aos profissionais brasileiros e a criao de entidades.organizativas. Os assistentes sociais brasileiros comearam a defender que o ensino e a profisso nos Estados Unidos haviam atingido um grau mais elevado de sistematizao; ademais, ali, na ao profissional, o julgamento moral com relao populao cliente substitudo por uma anlise de cunho psicolgico. Uma indagao merece ser destacada em funo do objeto deste artigo: Por que o Servio Social na rea de Sade transforma-se no principal campo de absoro profissional? Alm das condies gerais que determinaram a ampliao profissional nesta conjuntura, o novo conceito de Sade, elaborado em 1948, enfocando os aspectos biopsicossociais, determinou a requisio de outros profissionais para atuar no setor, entre eles o assistente

2 - Ser utilizada nesta anlise as questes apontadas na tese de Doutorado de Bravo (1991).

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social. Este conceito surge de organismos internacionais, vinculado ao agravamento das condies de sade da populao, principalmente dos pases perifricos, e teve diversos desdobramentos. Um deles foi a nfase no trabalho em equipe multidisciplinar soluo racionalizadora encontrada que permitiu: suprir a falta de profissionais com a utilizao de pessoal auxiliar em diversos nveis; ampliar a abordagem em Sade, introduzindo contedos preventivistas e educativos; e criar programas prioritrios com segmentos da populao, dada a inviabilidade de universalizar a ateno mdica e social. O assistente social consolidou uma tarefa educativa com interveno normativa no modo de vida da clientela, com relao aos hbitos de higiene e sade, e atuou nos programas prioritrios estabelecidos pelas normatizaes da poltica de sade. Outro fator importante refere-se consolidao da Poltica Nacional de Sade no pas com ampliao dos gastos com a assistncia mdica, pela previdncia social. Esta assistncia, por no ser universal, gerou uma contradio entre a demanda e o seu carter excludente e seletivo. O assistente social vai atuar nos hospitais colocando-se entre a instituio e a populao, a fim de viabilizar o acesso dos usurios aos servios e benefcios. Para tanto, o profissional utiliza-se das seguintes aes: planto, triagem ou seleo, encaminhamento, concesso de benefcios e orientao previdenciria. Os benefcios passaram a ser custeados total ou parcialmente pelos prprios beneficirios. Na lgica da estruturao de tais servios, no h o componente distributivista, mas existe a preocupao de favorecer o capital. O conceito que passa a reger os programas assistenciais o salrio social indireto, que incorpora ao salrio vrios servios que a coletividade paga ao trabalhador, com vistas utilizao futura. O piso salarial rebaixado medida que engloba os demais benefcios e o trabalhador paga os servios pelas dedues salariais diretas, pela elevao do custo de vida, com a contribuio dos empregadores transferida para os preos dos produtos e atravs dos impostos e taxas recolhidos pelo poder pblico (Iamamoto e Carvalho, 1982). As propostas racionalizadoras na Sade, que surgem a partir da dcada de 50 principalmente nos Estados Unidos, como a medicina integral, a medicina preventiva e seus desdobramentos a partir de 60, como a medicina comunitria no tiveramServio Social e Sade: Formao e Trabalho Profissional 3

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repercusso no trabalho dos assistentes sociais na sade no Brasil. Os profissionais mantiveram como locus central de sua ao os hospitais e ambulatrios, apesar de os Centros de Sade, segundo Costa (1986), serem criados a partir de meados da dcada de 20. Neles, os servios bsicos eram a higiene pr-natal, infantil, pr-escolar, tuberculose, verminose, laboratrio e as atividades tinham como proposta fundamental introjetar na populao educao sanitria por intermdio de educadores de higiene, professores instrudos em assuntos sanitrios, como tambm testar formas especficas de descentralizao do trabalho sanitrio nas grandes cidades. Os centros de sade contavam, para o desenvolvimento de suas atividades, com mdicos, enfermeiras e visitadoras. Os assistentes sociais no foram absorvidos neste espao seno muito mais tarde, em 1975. A esta constatao cabe a pergunta: Por que os assistentes sociais na sade priorizaram suas aes no nvel curativo e hospitalar? Para responder a questo, levantam-se algumas hipteses. A exigncia do momento concentrava-se na ampliao da assistncia mdica hospitalar e os profissionais eram importantes para lidar com a contradio entre a demanda e o seu carter excludente e seletivo. Nos centros de sade, os visitadores conseguiam desenvolver as atividades que poderiam ser absorvidas pelo assistente social. Outro componente relaciona-se pouca penetrao da ideologia desenvolvimentista no trabalho profissional na sade. Uma ao que considera-se importante para os assistentes sociais a viabilizao da participao popular nas instituies e programas de sade. Esta atividade entretanto, s teve maior repercusso na profisso nos trabalhos de Desenvolvimento de Comunidade (DC). O Servio Social Mdico, como era denominado, no atuava com procedimentos e tcnicas do DC e sim, prioritariamente, com o Servio Social de Casos, orientao inclusive da Associao Americana de Hospitais e da Associao Americana de Assistentes Mdico-Sociais3. A participao s era visualizada na dimenso individual, ou seja, o engajamento do cliente no tratamento. O Servio Social sofreu profundas transformaes, no ps 1964, que tiveram rebatimento no trabalho do assistente social na rea da sade.

3 - Esta Associao publicou em 1949 algumas diretrizes a serem aplicadas pelos assistentes sociais nos hospitais, nas clnicas e nos sanatrios.

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A profisso, do seu desenvolvimento at os anos 60, no teve polmica de relevo que ameaasse o bloco hegemnico conservador que dominou tanto a produo do conhecimento como as entidades organizativas4 e o trabalho profissional. Alguns assistentes sociais com posies progressistas questionavam a direo do Servio Social, mas no tiveram condio de alter-la. Nos anos 60, esta situao comeou a se modificar, surgindo um debate na profisso questionando o seu conservadorismo. Essa discusso no surgiu de forma isolada, mas com respaldo das questes levantadas pelas cincias sociais e humanas, principalmente em torno da temtica do desenvolvimento e de suas repercusses na Amrica Latina5. Esse processo de crtica foi abortado pelo golpe militar de 1964, com a neutralizao dos protagonistas scio-polticos comprometidos com a democratizao da sociedade e do Estado (Bravo, 1996). A modernizao conservadora implantada no pas exigiu a renovao do Servio Social, face s novas estratgias de controle e represso da classe trabalhadora efetivadas pelo Estado e pelo grande capital, bem como para o atendimento das novas demandas submetidas racionalidade burocrtica. O principal veculo responsvel pela elaborao terica do Servio Social, no perodo de 1965 a 1975, foi o Centro Brasileiro de Cooperao e Intercmbio em Servios Sociais (CBCISS). Este difundiu a perspectiva modernizadora no sentido de adequar a profisso s exigncias postas pelos processos scio-polticos emergentes no ps 1964 (Netto, 1996). Esta perspectiva teve como ncleo central a tematizao do Servio Social como integrador no processo de desenvolvimento, com aportes extrados do estrutural-funcionalismo norteamericano, sem questionar a ordem scio-poltica e sim, com a preocupao de inserir a profisso numa moldura terica e metodolgica.

4 - A primeira entidade da categoria dos assistentes sociais foi criada em 1940 e foi a Associao Brasileira de Assistentes Sociais (ABAS) que tinha sees em quase todos os estados brasileiros. A Associao de ensino (ABESS) foi criada em 1946. As demais entidades surgiram a partir de meados dos anos 50 e 60 e foram: associaes profissionais e sindicatos e o Conselho Federal de Assistentes Sociais, em 1962. 5 - Na Amrica Latina, a crtica ao Servio Social se explicita com o movimento de reconceituao a partir de 1965, cujo eixo do debate centrava-se na contestao do Servio Social importado com prticas assistenciais e ajustadoras.

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O Servio Social na sade vai receber as influncias da modernizao que se operou no mbito das polticas sociais, sedimentando sua ao na prtica curativa, principalmente na assistncia mdica previdenciria maior empregador dos profissionais. Foram enfatizadas as tcnicas de interveno, a burocratizao das atividades, a psicologizao das relaes sociais e a concesso de benefcios. Foi utilizada uma terminologia mais sofisticada e coerente com o modelo poltico-econmico implantado no pas (Bravo, 1996). Na distenso poltica, 1974-1979, o Servio Social na sade no se alterou, apesar do processo organizativo da categoria, do aparecimento de outras direes para a profisso, do aprofundamento terico dos docentes e do movimento mais geral da sociedade. O trabalho profissional continuou orientado pela vertente modernizadora. As produes tericas, apesar de restritas na rea, tambm no romperam com essa direo. Ressalta-se como exceo essa tendncia um artigo publicado na Revista Servio Social e Sociedade, por Nicoletti (1979), que enfoca a planificao em sade e a participao comunitria6, abordando questes presentes no debate do movimento sanitrio (Bravo, 1996).

2. As alteraes no Servio Social nos anos 80 e 90A dcada de 1980, Brasil, foi um perodo de grande mobilizao poltica, como tambm de aprofundamento da crise econmica que se evidenciou na ditadura militar7. Nessa conjuntura h um movimento significativo na sade coletiva, que tambm ocorre no Servio Social, de ampliao do debate terico e a incorporao de algumas temticas como o Estado e as polticas sociais fundamentadas no marxismo. O movimento sanitrio, que vem sendo construdo desde os meados dos anos 70, conseguiu avanar na elaborao de propostas de fortalecimento do setor pblico em

6 - A revista Servio Social e Sociedade uma publicao da Cortez Editora. Sua primeira edio de 1979, a seguinte j data de 1980. 7 - Apesar de entre 1979 e 1985 o pas ter sido presidido pelo General Figueiredo, esta gesto diferenciou-se dos governos militares anteriores, j que neste perodo ficou evidenciada a incapacidade da ditadura continuar como tal frente articulao e mobilizao de setores da sociedade civil, principalmente do movimento popular, e o acmulo de foras da resistncia democrtica(Netto, 1996).

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oposio ao modelo de privilegiamento do produtor privado, tendo como marco a 8 Conferncia Nacional de Sade, realizada em 1986, em Braslia. No que tange ao modelo de proteo social, a Constituio Federal de 1988 uma das mais progressistas, onde a Sade, conjuntamente com a Assistncia Social e a Previdncia Social integra a Seguridade Social. sade coube cinco artigos (Art. 196 - 200) e nestes est inscrito que esta um direito de todos e dever do Estado, e a integrao dos servios de sade de forma regionalizada e hierrquica, constituindo um sistema nico. evidente que esta conquista no foi dada, na medida em que no processo constituinte foi visvel a polarizao da discusso da sade em dois blocos antagnicos: um formado pela Federao Brasileira de Hospitais (FBH) e pela Associao das indstrias farmacuticas (internacionais) que defendia a privatizao dos servios de sade, e outro denominado Plenria Nacional da Sade, que defendia os ideais da Reforma Sanitria, que podem ser resumidos como: a democratizao do acesso, a universalidade das aes e a descentralizao com controle social8. A premissa bsica a compreenso de que a sade um direito de todos e um dever do Estado. A vitria das proposies da reforma sanitria deveu-se a eficcia da Plenria, via sua capacidade tcnica, presso sobre os constituintes e mobilizao da sociedade, e Emenda Popular assinada por cinqenta mil eleitores e cento e sessenta e sete entidades (Teixeira, 1989; Bravo, 1996). Uma questo importante de ser clareada identificar qual a preocupao da categoria dos assistentes sociais nesse momento. Sem dvida, o Servio Social est recebendo influncias desta conjuntura, (de crise do Estado brasileiro, de falncia da ateno sade e do movimento de ruptura com a poltica de sade vigente e construo de uma reforma sanitria brasileira) mas, por outro lado, est passando por um processo interno de reviso, de negao do Servio Social Tradicional, havendo, assim, uma intensa disputa pela nova direo a ser dada profisso.

8 - A categoria controle social significa a participao da sociedade civil na elaborao, implantao e fiscalizao das polticas pblicas, onde se compreende que o pblico deve ser expresso do conjunto das necessidades apresentadas pelos diferentes segmentos da sociedade.

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O processo de renovao do Servio Social no Brasil est articulado s questes colocadas pela realidade da poca, mas por ter sido um movimento de reviso interna, no foi realizado um nexo direto com outros debates, tambm relevantes, que buscavam a construo de prticas democrticas, como o movimento pela reforma sanitria. Na nossa anlise, esses so os sinalizadores para o descompasso da profisso com a luta pela assistncia pblica na sade (Bravo, 1996). No entanto, importante identificar como se deu a relao do Servio Social com o Movimento da Reforma Sanitria, na dcada de 1980. impossvel falar do Servio Social sem se referenciar aos anos 80. Esta dcada fundamental para o entendimento da profisso hoje, pois significa o incio da maturidade da tendncia atualmente hegemnica na academia e nas entidades representativas da categoria - inteno de ruptura - e, com isso, a interlocuo real com a tradio marxista. No entanto, os profissionais desta vertente se inserem, na sua maioria, nas Universidades, onde dentro do processo de renovao da profisso, pouco efetivamente intervm nos servios. (Netto, 1993 e Bravo, 1996). Se o Servio Social cresceu na busca de uma fundamentao e consolidao terica, poucas mudanas consegue apresentar na interveno. Sem dvida, para se avanar hoje na profisso, se faz necessrio recuperar as lacunas da dcada de 80. E a interveno uma prioridade, pois poucas alteraes trouxeram os ventos da vertente inteno de ruptura para o cotidiano dos servios. Este fato rebate na atuao do Servio Social na rea da sade - o maior campo de trabalho. Num balano do Servio Social na rea da Sade dos anos 80, mesmo com todas essas lacunas no fazer profissional, observa-se uma mudana de posies, a saber: a postura crtica dos trabalhos em sade apresentados nos Congressos Brasileiros de Assistentes Sociais de 85 e 89; a apresentao de alguns trabalhos nos Congressos Brasileiros de Sade Coletiva; a proposta de interveno formulada pela Associao Brasileira de Ensino de Servio Social (ABESS), Associao Nacional dos Assistentes Sociais (ANAS) e Conselho Federal de Assistentes

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Sociais (CFAS) para o Servio Social do INAMPS; e a articulao do CFAS com outros conselhos federais da rea da sade9 (Bravo, 1996). Os avanos apontados so considerados insuficientes pois, o Servio Social na rea da sade chega dcada de 1990 ainda com uma incipiente alterao da prtica institucional; continua enquanto categoria desarticulado do Movimento da Reforma Sanitria e com isso, sem nenhuma explcita e organizada ocupao na mquina do Estado pelos setores progressistas da profisso (como estava sendo o encaminhamento da Reforma Sanitria); e insuficiente produo sobre as demandas postas prtica em sade (Bravo, 1996). Para analisar o Servio Social nos anos 90, faz-se necessrio ter em mente ser este o perodo de implantao e xito ideolgico do projeto neoliberal no pas, do qual o governo de Fernando Collor de Mello foi o primeiro a tentar implement-lo. Numa anlise que j realizamos desta dcada (Matos, 2000; Bravo e Matos, 2001) afirmamos que no Brasil existem duas inflexes que so fundamentais. A primeira o plano real e a segunda a contra-reforma do Estado defendida pelo governo FHC e seus intelectuais. O projeto poltico econmico consolidado no Brasil, nos anos 90, projeto neoliberal, confronta-se com o projeto profissional hegemnico no Servio Social10, tecido desde a dcada de 80 e com o projeto da reforma sanitria. A partir das contradies evidenciadas surgem algumas questes: Como numa realidade poltico-conjuntural adversa, construir e concretizar uma prtica que garanta um Estado participativo, formulador de polticas sociais equnimes, universais, no discriminatrias? Como ficam o Servio Social e os defensores da reforma sanitria nesta trincheira? Nas proposies referentes poltica de sade, o projeto da reforma sanitria questionado e consolida-se na segunda metade dos anos 90, o projeto de sade articulado ao mercado ou privatista. Este ltimo, pautado na poltica de ajuste, tem como tendncias a

9 - ANAS Associao Nacional dos Assistentes Sociais, entidade atualmente desativada, que congregava os Sindicatos de Assistentes Sociais do pas. CFAS Conselho Federal de Assistentes Sociais, denominado desde 1993 como Conselho Federal de Servio Social (CFESS). ABESS Associao Brasileira de Ensino de Servio Social, designada desde 1997 como Associao Brasileira de Ensino e Pesquisa em Servio Social (ABEPSS). 10 - Pelo que j foi explicitado nesse texto, o projeto hegemnico profissional no Servio Social em seus principais formuladores nas entidades da categoria e na academia.

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conteno dos gastos com a racionalizao da oferta e a descentralizao com iseno de responsabilidade do poder central. Ao Estado cabe garantir um mnimo aos que no podem pagar, ficando para o setor privado o atendimento aos cidados consumidores. Como principais caractersticas destaca-se: o carter focalizado para atender as populaes vulnerveis, a desconcentrao dos servios e o questionamento da universalidade do acesso. A partir do exposto, identificou-se, j nos anos 90, que os dois projetos polticos em disputa na rea da sade, o projeto privatista e o projeto da reforma sanitria apresentaram diferentes requisies para o Servio Social11 (Bravo, 1998). O projeto privatista requisitou, e vem requisitando, ao assistente social, entre outras demandas: seleo scio-econmica dos usurios, atuao psico-social atravs de aconselhamento, ao fiscalizatria aos usurios dos planos de sade, assistencialismo atravs da ideologia do favor e predomnio de prticas individuais. Entretanto, o projeto da reforma sanitria vem apresentando como demandas que o assistente social trabalhe as seguintes questes: busca de democratizao do acesso as unidades e aos servios de sade, atendimento humanizado, estratgias de interao da instituio de sade com a realidade, interdisciplinaridade, nfase nas abordagens grupais, acesso democrtico s informaes e estmulo a participao cidad.

3. A recente produo do Servio Social sobre a rea da Sade12Visando compreender de que maneira o Servio Social vem buscando produzir conhecimento e estratgias sobre a rea da sade, que neste item sero utilizadas referncias bibliogrficas que buscaram pensar e/ou intervir no Servio Social na sade, a

11 - Como ser afirmado adiante, tal disputa, e em conseqncia, as requisies para a profisso continuam presentes. 12 - Este item resultado parcial de pesquisa desenvolvida pelos autores acerca da produo do conhecimento do Servio Social sobre a rea da sade.

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partir da realidade do final dos anos 90. A anlise vai partir de trs dimenses da profisso: a acadmica, a poltica e o trabalho profissional nas instituies13. No aspecto acadmico, tomar-se- como referncia a dissertao de mestrado de Matos (2000)14. A indagao consiste em identificar qual o raio de influncia do projeto da reforma sanitria e do projeto tico-poltico do Servio Social no trabalho dos assistentes sociais da sade. A busca desta resposta poderia ser realizada por diferentes caminhos. Optou-se por investigar o debate profissional. Assim, que esse debate foi compreendido atravs da apreenso da reflexo escrita e, para tanto, foram pesquisados os artigos publicados na revista de maior circulao na rea Servio Social e Sociedade , bem como as comunicaes apresentadas no mais importante congresso da categoria os Congressos Brasileiros de Assistentes Sociais. Pode-se afirmar que, na maioria, o debate do Servio Social na Sade vem acompanhado de uma referncia ao projeto da reforma sanitria e ao projeto tico-poltico profissional, por mais que, muitas das vezes, no explicitamente. Entretanto, ficou patente a dificuldade da maioria em realizar pelo menos o que est posto na sistematizao escrita um trabalho que no cotidiano esteja norteado pelo projeto tico-poltico profissional e o da reforma sanitria. Ao contrrio, foram os trabalhos que no realizavam reflexes sobre o cotidiano, os que conseguiam obter tal articulao. No aspecto poltico, ser resgatada aqui a contribuio de Souza (2001)15, em sua dissertao de mestrado sobre a contribuio poltica e profissional dos Assistentes Sociais aos Conselhos de sade16, bem como ser realizada uma anlise do relatrio final da gesto 1999-2002 do CFESS (Conselho Federal de Servio Social).

13 - Tem-se por suposto que todas as dimenses da profisso tm relao com a poltica, pois no h neutralidade. Essa diviso apenas didtica. 14 - Uma verso condensada da parte da dissertao aqui abordada foi publicada em forma de artigo. Ver Matos (2003). 15 - Parte destas idias est presente no artigo construdo pela autora, em conjunto com Bravo. Ver Bravo e Souza (2002). 16 - Os conselhos de sade so fruns deliberativos, compostos por gestores, trabalhadores e usurios, so regulamentados nacionalmente atravs da Lei 8.142/90 e pela Resoluo 33 do Conselho Nacional de Sade, 1993.

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Souza (2001) estudou todo o material sobre controle social na sade publicado no mbito do Servio Social, bem como as comunicaes apresentadas nos congressos da categoria, na dcada de 90. Tambm aproveitou a realizao do Encontro Estadual de Seguridade Social, realizado em 2000, no Rio de Janeiro, com uma presena de 800 participantes e aplicou um questionrio para os assistentes sociais presentes. O resultado a que a autora chegou nos informa uma tendncia otimista do Servio Social, j que h uma preocupao com o controle social da poltica de sade e o potencial de contribuio que a profisso pode proporcionar. Sobre a concepo dos conselhos, presente nos trabalhos escritos pelos assistentes sociais ou no resultado dos questionrios, a autora identificou duas tendncias: o otimismo utpico e o pessimismo realista (com duas sub-tendncias: conselho como espao de cooptao ou conselho como um espao tenso e contraditrio, mas com potencial democratizante). Apesar do resultado otimista, Souza (2001) apresenta algumas preocupaes: poucos trabalhos de assessoria aos conselhos desenvolvidos por assistentes sociais, pouca participao dos assistentes sociais de unidades de sade nos conselhos e uma incidncia pequena (uma assistente social) participante de conselho com uma concepo de sade voltada para o mercado. O Conselho Federal de Servio Social sem dvida a entidade nacional de representao desta categoria. Assim sendo, examinar as suas frentes de ao poltica identificar qual tem sido a bandeira organizativa desta profisso. Um dos eixos de suas frentes foi Trabalho, direitos e democracia: a resistncia ao neoliberalismo, onde reafirmada a defesa das polticas pblicas, sendo o compromisso com a seguridade social pblica uma estratgia central. Para tanto, essa luta no se d de uma maneira endgena e sim, em articulao com outros trabalhadores, onde os espaos de controle social so fundamentais. Da, pode-se observar que no perodo que o relatrio cobre (1999-2002), o CFESS participou de diversos espaos: do Conselho Nacional de Sade CNS (representando o conjunto dos trabalhadores da sade), bem como da 11 Conferncia Nacional de Sade, do II Encontro Nacional de Conselheiros de Sade, da Plenria Nacional de Sade, da Plenria NacionalServio Social e Sade: Formao e Trabalho Profissional 12

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dos Conselhos de Sade e das Conferncias Nacionais de Vigilncia Sanitria e de Sade Mental. O CFESS na arena da sade, tal qual nas outras reas das polticas sociais pblicas, possui reconhecimento enquanto entidade que tem como estratgia o fortalecimento da poltica pblica, na perspectiva da democratizao do Estado e da sociedade brasileira. Durante o perodo que o relatrio abraa, cabe destacar a interveno da entidade no debate sobre a Norma Operacional Bsica sobre Recursos Humanos (NOB-RH); sobre o impacto dos cursos seqenciais (que a Lei de Diretrizes e Bases da Educao prope) na rea da sade; o aprofundamento da questo da humanizao e acessibilidade no CNS; a interveno, em conjunto com outras entidades, para a legalizao dos cursos de residncia para os profissionais no mdicos; a discusso sobre a relevncia do assistente social na composio das equipes do PSF (Programa de Sade da Famlia), enquanto estratgia de melhoria da qualidade do atendimento e no por uma questo corporativista (o que culminou com a aprovao de uma moo sobre esse ponto na 11 Conferncia Nacional de Sade) e o incentivo qualificao da atuao do Assistente Social na rea, no qual o documento Assistente Social: trabalhador da sade um exemplo. Portanto, fazendo um paralelo entre as concluses de Souza (2001) e o relatrio do CFESS, pode-se considerar que, na atualidade, tem-se uma entidade forte e combativa na defesa das polticas pblicas, incluso s da sade. Entretanto, esta realidade e predisposio de luta nos espaos de controle social (no qual os Conselhos so estratgicos) ainda no foram apropriadas pelos Assistentes Sociais e nem incorporadas como atividade integrante do seu trabalho. No aspecto do trabalho desenvolvido nos servios a tese de doutorado de Vasconcelos (1999)17 e a dissertao de mestrado de Costa (1998)18 que apresentam as ferramentas para anlise. Vasconcelos (1999) entrevistou 78 assistentes sociais que trabalham na rede de sade do municpio do Rio de Janeiro e concluiu que h uma diferena muito grande entre a

17 - Publicado em forma de livro no ano de 2002. Ver Vasconcelos (2002). 18 - Uma verso condensada da parte da dissertao aqui abordada foi publicada em forma de artigo. Ver Costa (2000).

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inteno e discurso dos Assistentes Sociais com o trabalho desenvolvido. Pois, os assistentes sociais verbalizam um compromisso com a populao usuria, mas no o conseguem transform-lo em prtica concreta. Assim, identificou que estes profissionais ainda reforam os objetivos da instituio e no os do projeto tico-poltico da profisso. Costa (1998) realizou um estudo com o objetivo de identificar o porque de apesar do Servio Social ser a quarta maior categoria no mbito do SUS, os seus profissionais reiteram um discurso de impreciso da profisso e de desqualificao tcnica na rea da sade. Assim, tomou como universo de sua pesquisa os servios pblicos de sade de Natal (RN). A autora parte do princpio de que s se pode pensar o trabalho dos assistentes sociais, tomando como marco de anlise o trabalho coletivo em sade. A partir da, Costa (1998) afirma que a legitimidade do Servio Social na sade se d pelo avesso, pois esta profisso vem tendo sua utilidade nas contradies fundamentais da poltica de sade. Mas, isto no vem sendo encarado pelos profissionais de Servio Social como trabalho, da a impreciso discursada pelos mesmos. Obviamente, a autora acredita na possibilidade de uma outra ao do Servio Social na rea da sade, mas considera que a superao do modelo mdico hegemnico, com vistas a efetivao do projeto da reforma sanitria, essencial para a reconstruo dos processos de trabalho em sade, onde se insere o trabalho dos Assistentes Sociais. Observa-se, tanto nas dissertaes de Matos (2000), de Souza (2001) e de Costa (1998) e na tese de doutoramento de Vasconcelos (1999) que o desafio em comum identificado pelos autores a necessidade de se consolidar a ruptura com o Servio Social tradicional, para tanto se faz necessrio fortalecer o projeto de inteno de ruptura, responsvel pela construo do atual projeto tico-poltico profissional e, em especial, avan-lo para os servios, para o cotidiano de trabalho do assistente social.

4. Desafios postos na Atualidade para o Servio Social na SadeAo analisar a trajetria do Servio Social na rea da sade e, principalmente nos anos 90, identifica-se que alguns desafios ainda esto postos na atualidade.

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A eleio de Lus Incio Lula da Silva, em 2002, para a presidncia da repblica, foi o resultado da reao da populao brasileira s medidas implantadas no perodo anterior. No seu programa de governo, a sade entendida como um direito fundamental e h o compromisso em garantir o acesso universal, equnime e integral s aes e servios de sade. O Ministrio da Sade tem apontado como principais desafios: a incorporao da agenda tico-poltica da Reforma Sanitria; a construo de novos modelos de fazer sade com base na integralidade, a intersetorialidade e a atuao em equipe; o estabelecimento da cooperao entre ensino-gesto-ateno; controle social e a supresso dos modelos assistenciais verticais e voltados somente para a assistncia mdica. Como principais diretrizes para a atual gesto so destacadas: a ampliao do atendimento no SUS, de modo especial na ateno bsica; o combate s endemias; e a melhoria do acesso aos medicamentos. Algumas estratgias tambm tm sido ressaltadas para viabilizao dos objetivos e metas a serem alcanados, cabendo destacar: a poltica de educao para o SUS (mudana na prtica e formao); a capacitao continuada de conselheiros de sade; o acesso informao; a nfase na educao para sade; a ampliao das contrataes de agentes comunitrios de sade e a efetivao de outras contrataes (auxiliar e tcnico de saneamento, agentes de vigilncia sanitria e agentes de sade mental); e o fortalecimento do Programa de Sade da Famlia, transformando os plos de capacitao especficos em capacitao de recursos humanos. A anlise que se faz, por conseguinte, aps esses anos de governo que a poltica macroeconmica do governo anterior foi mantida. As polticas sociais continuam fragmentadas e subordinadas a lgica econmica. Nessa setorizao, a concepo de seguridade social no foi valorizada. A partir do exposto, considera-se que, na atualidade, os dois projetos existentes na sade, referidos anteriormente, ainda esto em disputa: o projeto da reforma sanitria x o projeto privatista. O atual governo ora fortalece o primeiro projeto e ora mantm a focalizao e o desfinanciamento, caractersticas do segundo . O Servio Social no passa ao largo desta tenso. Ao mesmo tempo em que a dcada de 1990 marcada pela hegemonia da tendncia inteno de ruptura e , no por acaso, oServio Social e Sade: Formao e Trabalho Profissional 15

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Servio Social uma profisso, j em sua maioridade intelectual; tambm, nesta mesma dcada, que se identifica a ofensiva conservadora a esta tendncia. A crtica tendncia inteno de ruptura no se apresenta como antimarxista e sim afirmando que o marxismo no apresenta respostas para o conjunto dos desafios postos a profisso pela contemporaneidade. Segundo Netto (1996a), as crticas apresentam em comum o fato de apontarem como problemas o dogmatismo, quando de fato trata-se de ortodoxia, e os equvocos da tradio marxista, quando na realidade tratar-se-ia de possveis lacunas desta tradio no mbito do Servio Social. Na sade, onde esse embate claramente se expressa, a crtica ao projeto hegemnico da profisso passa pela reatualizao do discurso da ciso entre o estudo terico e a interveno, pela descrena da possibilidade da existncia de polticas pblicas e, sobretudo, na suposta necessidade da construo de um saber especfico na rea da sade, que caminha tanto para a negao da formao original em Servio Social ou deslancha para um trato exclusivo de estudos na perspectiva da diviso clssica da prtica mdica. Sobre o ltimo eixo assinalado, cabe aqui apresentar trs expresses. A primeira a constatao de que ainda existe na categoria segmentos de profissionais que, ao realizarem a formao em sade pblica, passam a no se identificar mais como assistentes sociais, recuperando uma auto-apresentao de sanitaristas. A segunda tendncia, na atualidade com mais vigor, a de resgatar no exerccio profissional um privilegiamento da interveno no mbito das tenses produzidas subjetivamente pelos sujeitos e tem sido autodenominada pelos seus executores como Servio Social Clnico. E por fim, percebe-se gradativamente o discurso da necessidade da criao de entidades ou da realizao de fruns de capacitao e debates dedicados a importncia da produo do conhecimento sobre o Servio Social nas diferentes reas de especializao da prtica mdica. Sobre esses pontos, cabem algumas reflexes. O problema no reside no fato dos profissionais de Servio Social buscarem estudos na rea da sade. O dilema se faz presente quando este profissional, devido aos mritos de sua competncia, passa exercer outras atividades (direo de unidades de sade, controle dos dados epidemiolgicos e etc.), e no mais as identifica como as de um Assistente Social. Assim, o profissional recupera por vezesServio Social e Sade: Formao e Trabalho Profissional 16

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impensadamente uma concepo de que fazer Servio Social exercer apenas o conjunto de aes que historicamente lhe dirigido na diviso do trabalho coletivo em sade. Este consiste apenas na ao direta com os usurios, o que Netto (1990) denomina de execuo terminal da poltica social. As novas demandas colocadas como gesto, assessoria e a pesquisa como transversal ao trabalho profissional que esto explicitadas na Lei de Regulamentao da Profisso (1993) e nas Diretrizes Curriculares, aprovadas pela ABEPSS (1996), na maioria das vezes, no so consideradas. Uma outra questo a tentativa de obscurecer a funo social da profisso na diviso social e tcnica do trabalho, pois o problema no est no domnio de teorias que abordam o campo psi ou sobre doenas, mas sim quando este profissional se distancia, no cotidiano de seu trabalho profissional, do objetivo da profisso, que na rea da sade passa pela compreenso dos aspectos sociais, econmicos, culturais que interferem no processo sadedoena e a busca de estratgias para o enfrentamento destas questes. O exerccio profissional do assistente social no se reduz a ao exclusiva sobre as questes subjetivas vividas pelo usurio e nem pela defesa de uma suposta particularidade entre o trabalho desenvolvido pelos assistentes sociais nas diferentes especialidades da medicina. Esta ltima perspectiva, fragmenta a ao do assistente social na sade e refora a concepo de especializao nas diversas patologias mdicas, situao que tem sido colocada pelas demais profisses de sade como necessria de superao. As novas diretrizes das diversas profisses tm ressaltado a importncia de formar trabalhadores de sade para o Sistema nico de Sade com viso generalista e no fragmentada. O trabalho do assistente social na sade deve ter como eixo central a busca criativa e incessante da incorporao dos conhecimentos e das novas requisies profisso, articulados aos princpios dos projetos da reforma sanitria e tico-poltico do Servio Social. sempre na referncia a estes dois projetos que se poder ter a compreenso se o profissional est de fato dando respostas qualificadas as necessidades apresentadas pelos usurios. Assim, compreende-se que cabe ao Servio Social numa ao necessariamente articulada com outros segmentos que defendem o aprofundamento do Sistema nico de Sade (SUS) formular estratgias que busquem reforar ou criar experincias nos servios deServio Social e Sade: Formao e Trabalho Profissional 17

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sade que efetivem o direito social sade, atentando que o trabalho do assistente social na sade que queira ter como norte o projeto-tico poltico profissional tem que, necessariamente, estar articulado ao projeto da reforma sanitria (Matos, 2003). Considerase que o nosso cdigo de tica apresenta ferramentas fundantes para o trabalho dos Assistentes Sociais na sade. Destaca-se entre seus onze (11) princpios fundamentais: Defesa intransigente dos direitos humanos e recusa do arbtrio e do autoritarismo; Posicionamento em favor da equidade e justia social, que assegure universalidade de acesso aos bens e servios relativos aos programas e polticas sociais, bem como sua gesto democrtica; Articulao com os movimentos de outras categorias profissionais que partilhem dos princpios deste cdigo e com a luta geral dos trabalhadores; Compromisso com a qualidade dos servios prestados populao e com o aprimoramento intelectual, na perspectiva da competncia profissional.

Ou seja, pensar hoje uma atuao competente e crtica do Servio Social na rea da sade, ao nosso ver, : Estar articulado e sintonizado ao movimento dos trabalhadores e de usurios que lutam pela real efetivao do SUS; Facilitar o acesso de todo e qualquer usurio aos servios de sade da Instituio, bem como de forma compromissada e criativa no submeter a operacionalizao de seu trabalho aos rearranjos propostos pelos governos que descaracterizam a proposta original do SUS de direito, ou seja, contido no projeto de Reforma Sanitria; Tentar construir e/ou efetivar, conjuntamente com outros trabalhadores da sade, espaos nas unidades que garantam a participao popular e dos funcionrios nas decises a serem tomadas;

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Elaborar e participar de projetos de educao permanente, buscar assessoria tcnica e sistematizar o trabalho desenvolvido, bem como estar atento sobre a possibilidade de investigaes sobre temticas relacionadas sade. Enfim, no existem frmulas prontas na construo de um projeto democrtico e a sua defesa no deve ser exclusividade apenas de uma categoria profissional. Por outro lado, no se pode ficar acuado frente aos obstculos que se apresentam na atualidade e nem desconsiderar que h um leque de pequenas, mas no menos importantes, atividades e alternativas a serem desenvolvidas pelos profissionais de Servio Social. Mais do que nunca, os assistentes sociais esto desafiados a encarar a defesa da democracia, das polticas pblicas e consubstanciar um trabalho no cotidiano e na articulao com outros sujeitos que partilhem destes princpios que faa frente ao projeto neoliberal, j que este macula direitos e conquistas defendidos pelos seus fruns e pelas legislaes normativas da profisso. nas palavras leves da poesia, que se encontra a dimenso do desafio: Quebrando pedras, plantando flores (Cora Coralina).

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