projeto de tese para a qualificacao - final

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Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional Doutorado em Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional Projeto de Tese de Doutorado para a Qualificação Caminhos da democracia: a engenharia da participação na América Latina Candidato: Felipe Addor Orientadora: Ana Clara Torres Ribeiro Banca de Qualificação: Ana Clara Torres Ribeiro Orlando Alves Santos Junior Michel Jean-Marie Thiollent Sidney Lianza 1

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Page 1: Projeto de Tese Para a Qualificacao - Final

Universidade Federal do Rio de Janeiro

Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional

Doutorado em Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional

Projeto de Tese de Doutorado para a Qualificação

Caminhos da democracia: a engenharia da participação na América Latina

Candidato: Felipe Addor

Orientadora: Ana Clara Torres Ribeiro

Banca de Qualificação:

Ana Clara Torres Ribeiro

Orlando Alves Santos Junior

Michel Jean-Marie Thiollent

Sidney Lianza

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Page 2: Projeto de Tese Para a Qualificacao - Final

ÍNDICE1 INTRODUÇÃO........................................................................................................................3

2 CONTEXTO............................................................................................................................5

3 REVISÃO BIBLIOGRÁFICA.....................................................................................................14

3.1 A Teoria da Participação e a Democracia Participativa....................................................16

3.1.1 A Democracia e o Governo Representativo..................................................................16

3.1.2 A Participação na Teoria Democrática..........................................................................25

3.2 Casos de Democracia Participativa.....................................................................................31

3.2.1 Venezuela: os Consejos Comunales..............................................................................35

3.2.2 Equador: o cantón Cotacachi........................................................................................39

4 OBJETIVOS, QUESTÕES, HIPÓTESE.........................................................................................43

5 METODOLOGIA...................................................................................................................45

6 ESTRUTURA............................................................................................................................48

7 CRONOGRAMA....................................................................................................................49

8 BIBLIOGRAFIA......................................................................................................................50

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1 INTRODUÇÃODesde 2004, participo de um projeto do Núcleo de Solidariedade Técnica (SOLTEC/UFRJ)

voltado para o fortalecimento da pesca artesanal no estado do Rio de Janeiro. A Pesquisa-Ação na Cadeia Produtiva da Pesca (PAPESCA/UFRJ) busca promover a participação dos trabalhadores da cadeia produtiva da pesca, desde o planejamento até a execução das ações do projeto.

Apesar de ter como objetivo final contribuir para a melhoria das condições de vida e trabalho para os trabalhadores dessa cadeia produtiva, um dos principais objetivos metodológicos buscado continuamente no andamento do projeto é a formação dos trabalhadores. Uma formação política, voltada para a construção de cidadãos, de lideranças, de atores com maior senso crítico, que tenham conhecimento dos seus direitos e deveres e que encampem as lutas em prol de condições mais adequadas de vida para os pescadores.

Foram alguns anos de projeto e um trabalho constante de diálogo com os trabalhadores. Realizávamos reuniões coletivas com participação de profissionais das mais diversas instituições, tratando de assuntos relevantes para a melhoria da pesca artesanal na região. Num processo gradual e contínuo, notava-se: o crescimento pessoal dos participantes do projeto; o aumento na capacidade argumentativa; a perda da vergonha de falar; a consolidação de uma compreensão mais ampla e complexa da sua realidade.

A articulação da PAPESCA/UFRJ com outros dois projetos (Peixes, Pessoas & Águas e Próvárzea) levou a criação da Rede Solidária da Pesca1 (RSP), que atua em quatro estados: Rio de Janeiro, Minas Gerais, Pará e Amazonas. A base de criação da Rede foi o fortalecimento da articulação entre os trabalhadores da pesca artesanal e da aquicultura familiar em prol do fortalecimento político desses grupos. Ainda mais do que na PAPESCA/UFRJ, a RSP representou um espaço de construção de uma experiência de democracia participativa e de aproximação da população de espaços de decisão política, que visam interferir na construção de políticas públicas e na atuação do Estado. Representou um espaço ainda mais efetivo e amplo de reflexão sobre as possibilidades de atuação política dos trabalhadores. Como reflexo dessa prioridade na construção da cidadania apresento dois fatos: desde sua criação a RSP orienta-se pelo princípio da paridade entre técnicos e comunitários2, ou seja, representantes de ambos os grupos devem estar presentes em todas as etapas de construção da Rede; entre os diversos eixos de atuação da atuação da RSP, foi definido como principal o eixo de “Educação Continuada e Gestão Social”.

Portanto, as experiências das quais participei/participo e a percepção do potencial de transformação que esses processos participativos possuíam/possuem fizeram com que emergisse meu interesse por aprofundar a reflexão sobre o tema das metodologias participativas. Na minha dissertação de mestrado (Addor, 2006), fiz uma análise da trajetória metodológica da PAPESCA/UFRJ, cotejando o diálogo entre a teoria da pesquisa-ação e a prática do projeto, tentando identificar os acertos e equívocos metodológicos, a proximidade e distância entre as duas, ressaltando o quanto as opções metodológicas feitas ao longo do processo tiveram importância para alcançar ou não os objetivos do projeto.

1 Informações no blog da Rede: www.redesolidariadapesca.blogspot.com. 2O termo “comunitários” foi adotado pela Rede, não a partir de uma discussão teórico conceitual,

mas por ser a palavra usada na região norte (Pará e Amazonas) para identificar os trabalhadores da cadeia produtiva da pesca .

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O foco na questão dos processos participativos me instigou a pesquisar mais a fundo processos políticos de tomada de decisão por meio de métodos participativos, não necessariamente restritos a um projeto ou ação. Em princípio, meu foco era desenvolvimento local, por influência da experiência que tive na área da pesca. No entanto, com o aprofundamento da pesquisa bibliográfica e a participação em mesas de discussão, fui alterando essa perspectiva e caminhando em direção ao tema que hoje é o central a minha tese: Democracia Participativa.

Entretanto, vale destacar que ainda me é cara a preocupação com a abrangência local dos espaços participativos, por acreditar que há maior participação direta da população nessas escalas, em comparação a processos de âmbito regional ou nacional, onde necessariamente encontra-se presente a necessidade de eleição/definição de representantes/delegados.

Dentro desse recorte, meu interesse está relacionado à identificação dos fatores que possibilitam a consolidação de processos participativos de tomada de decisão, sejam eles internos ou externos, construídos antes ou durante o desenvolvimento de ações. Portanto, como será indicado à frente, separei dois pontos de vista que servirão de orientação para a análise desejada: primeiro, internamente, trata-se de analisar os métodos e técnicas utilizados para a tomada de decisões coletivas; segundo, a interpretação dos fatores externos (políticos, culturais, econômicos) que interferem na concretização de uma participação mais qualificada e efetiva.

No exercício de análise desses processos, pretendo utilizar minha formação em engenharia de produção, abordando o processo com um todo, analisando seus insumos, seus microprocessos, suas técnicas, seus produtos. Com base na construção de um quadro de referência que articule o processo participativo de tomada de decisão e os seus efeitos práticos, pretendo definir parâmetros para realização de uma análise dos casos.

Com base na literatura e nas discussões a que tive acesso, identifiquei um movimento articulado de reflexão e prática da democracia participativa que, considerando as similitudes históricas e culturais nos caminhos tomados pela construção da democracia, tem como foco a América Latina. Realmente, as semelhanças da trajetória histórico política dos países possibilitam uma análise regional, supranacional, da construção da democracia, contribuindo para uma compreensão de maior amplitude de obstáculos e conquistas no que concerne a participação política.

Por isso, optei por pesquisar três casos de diferentes países da América Latina (Brasil, Equador e Venezuela), que, respeitando e compreendendo as peculiaridades de cada um, possibilitam uma visão complexa das diversas experiências e uma compreensão mais ampla dos movimentos políticos que visam à construção da democracia participativa.

A opção por pesquisar a temática da democracia participativa está calcada também na crença de que esta pode representar um meio de transformação real e profundo da sociedade. Diante das diversas experiências que buscam um mundo melhor, mais justo e menos miserável, que já tive contato, acredito que é através de experiências coletivas de tomada de decisão, de construção de políticas públicas, de definição de uso dos recursos coletivos que podem ocorrer os maiores impactos efetivos na sociedade; impactos que começam no interior das pessoas, para depois serem projetados na prática, na vida de cada localidade, em cada país.

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2 CONTEXTODurante os séculos XIX e XX, ocorreram verdadeiras batalhas em torno da democracia nos

países centrais. Saindo de uma realidade caracterizada pela concentração de poder em mãos de imperadores, reis, czares, experimentou-se a reformulação do modelo político, de forma a que a população tivesse maior capacidade de interferir nos caminhos de desenvolvimento econômico e político cultural do seu país. No entanto, ao longo do tempo, o ideal democrático foi perdendo sua chama e o modelo hegemônico de consolidação da democracia, principalmente no mundo ocidental, restringiu-se ao sufrágio universal, consolidado como uma forma de exercício da democracia, mas sendo a própria democracia. (Manin; Warren; Santos & Avritzer)

A incapacidade do modelo democrático hegemônico de enfrentar os conflitos e de atender às demandas reais de grande parte das populações, fez com que ganhasse força o argumento de que o modelo de democracia representativa baseada apenas no voto não é suficiente para dar conta das complexas demandas sociais que se apresentam com diversas especificidades sócio-territoriais. O modelo hegemônico de democracia distancia os cidadãos da administração dos interesses coletivos e gera: desinteresse pela política; afastamento com relação à construção da democracia; esvaziamento das instituições políticas (como partidos e órgãos do governo representativo: câmara dos deputados; senado); falta de sentimento público.

Diante dessa realidade, proliferam os movimentos que buscam consolidar experiências de participação popular e governos democráticos, como indicam a criação de conselhos, conferências e os orçamentos participativos. Essas práticas tentam trazer o cidadão para a reflexão e a intervenção nas políticas públicas, inserindo-o no processo de tomada de decisão. (Avritzer; Santos & Avritzer; Peruzzotti; Dagnino)

A ampliação da presença da participação popular nas práticas e nos discursos é, sem dúvida, uma importante conquista. No entanto, a sua compreensão e avaliação exige rigor na escolha de conceitos e práticas, tentando evitar que discursos se desloquem do movimento político real, recriando práticas não tão democráticas. É necessário definir de forma mais precisa o que entendemos por participação e como ela pode representar um processo amplo de construção de um espaço para formação de cidadãos e de efetiva transformação das relações sociais (Avritzer, 2009).

Vale ressaltar que os processos decisórios participativos têm diversos objetivos, para além da simples tomada de decisão: consolidação de estratégias de participação; geração e troca de conhecimento; conformação de um tecido social que fortalece a construção coletiva de políticas públicas; capacitação social dos participantes. (Poggiese)

Diversos organismos internacionais, como FMI e Banco Mundial, já assumiram a participação como condição para o financiamento de políticas e projetos. Coloca-se, entretanto, a questão de se o tipo de participação praticado corresponde ao que é defendido na base dos movimentos orientados pela defesa da participação política. (Poggiese; Peruzzotti; Pateman; Borges; Avritzer)

Nesse sentido, torna-se especialmente relevante o aprofundamento da reflexão metodológica da participação política. Deve-se lutar contra o esvaziamento da participação enquanto prática política, como ocorreu com o conceito de democracia. Para que a disseminação da participação nas práticas, discursos, políticas tenha um impacto transformador, é necessário

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adotar definições e princípios metodológicos e políticos que permitam distinguir entre a participação outorgada, orientada, manipulada, e a que possibilita a conquista de cidadania.

HISTÓRIA RECENTE DA CONSTRUÇÃO DA DEMOCRACIA NA AMÉRICA LATINA

A luta pela cidadania e pela democratização do Estado na América Latina está diretamente vinculada à ação dos movimentos sociais na região. Foi a partir da pressão dos operários, das populações tradicionais, dos camponeses que a conquista cidadã foi se dando ao longo do tempo (GARCEZ, 2002). Exemplo maior desse fato são as lutas contra os regimes ditatoriais em toda a região.

Esse contexto difundido de regimes autoritários militares leva ao surgimento de novos movimentos sociais e de novas bandeiras nos movimentos já existentes, consolidando uma outra complexidade de conflito no campo político latinoamericano, conforme defende Maria do Carmo Albuquerque:

“Entre los años 70 y los años 90, el enfrentamiento con violentas dictaduras militares, la lucha contra el autoritarismo, la construcción de la democracia, la lucha por los derechos, la reinvindicación de políticas públicas democráticas, pasan a ocupar, en estos países, un nuevo rol central en la acción de los movimientos sociales y de una nueva sociedad civil.” (ALBUQUERQUE, 2002:237)

Até a década de 1970, imperava nos movimentos sociais o paradigma marxista do conflito operário, da luta de classes, da tomada do Estado. Seus principais representantes eram os operários e os camponeses. No entanto, o novo contexto levou ao surgimento de um outro protótipo de luta social. Abandonando os recortes do campo econômico dados pelo paradigma anterior, o novo movimento baseia-se na questão política do aprofundamento da democracia. Mudam-se os conceitos, e não se deseja mais tomar o Estado, mas transformá-lo de forma que a população possa interferir no seu cotidiano, nas sua prática.

“Si a comienzos de siglo el movimiento social estuvo impregnado por una propuesta de transformación social centrada en el cambio del modo de producción económico y en una forma de organización centralizada y homogénea de los movimientos sociales (especialmente el movimiento sindical, campesino y estudiantil), las dictaduras y la derrota del 'socialismo real' parecen marcar una profunda modificación de esta matriz discursiva originada en la izquierda marxista y centrada en el cambio del 'modo de producción' capitalista. A los actores sociales 'tradicionales' se les suma los 'nuevos' actores que problematizan nuevos temas, luchan contra otras exclusiones y de a poco introducen un nuevo discurso centrado en la ampliación de los derechos ciudadanos. Se inicia la construcción de una nueva cultura centrada en los derechos y la participación” (ALBUQUERQUE, 2002:241).

O movimento de redemocratização ocorrido na América Latina, somado às experiências de democratização no leste europeu no fim da União Soviética e na África após processos de independência e guerra civil, faz parte do que ficou conhecido como a “terceira onda de democratização”3, como coloca Ciska Raventós:

3“Tras la primera ola expansiva de la democracia, desatada por las revoluciones norte-americana y francesa, y la segunda ola de las primeras décadas de el siglo XX, asistiríamos en las últimas décadas a un visible avance a escala mundial de las instituciones democráticas. (Caetano, 2006a:249)

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"Los años ochenta registraron una amplia expansión de la democracia electoral en todo el mundo. Las corrientes cominantes de las Ciencias Sociales designaron a este cambio como la 'tercera ola de democratización' (...) El principal hito de la transición hacia la democracia era la institucionalización de elecciones libres e competitivas, y en menor medida por la existencia de derechos políticos y civiles básicos. (…) el gobierno democrático era un mal menor, preferible a las dictaduras que se hallaban en un processo de declinación" (Raventós, 2008:13)

Portanto, partindo de sistemas políticos ditatoriais, autoritários ou colonialistas, nos três casos citados, América Latina, leste europeu e África, ocorre uma forte ruptura com a realidade anterior, trazendo à tona um novo debate, uma nova proposta de funcionamento político que traz outra configuração para os embates políticos nesses países, conforme reiteram Gerardo Caetano:

“La recuperación de la democracia y su posterior consolidación en varios países de América del Sur durante los años ochenta (Argentina, Brasil, Chile, Paraguay y Uruguay), los procesos de pacificación en América Central y el derrumbe del llamado socialismo real en los países de Europa del Este hace poco más de diez años, abrieron un nuevo cauce en la expansión universal de las ideas y prácticas democráticas." (Caetano, 2006a:249);

e Mario Garcez:

“en la actualidad, el cierre del ciclo de los 'estados de bienestar', el derrumbe del campo socialista y el fin de los regímenes autoritarios en América Latina han puesto en el centro de todos los debates políticos la cuestión de la democracia y la ciudadanía” (GARCEZ, 2002:10)

Entretanto, essa “terceira onda da democracia” ocorre em um contexto mundial em que instaurava-se, por força dos países centrais, um novo modelo econômico e político nos países em desenvolvimento. Consequentemente, o novo processo de democratização vem com uma base de princípios, valores e abrangência diferente do que era conhecido como democracia algumas décadas antes. O conceito de democracia carregava uma bagagem mais ampla, não restrito ao âmbito político, mas que caminhava ao lado da justiça social, da distribuição de riqueza.

Ruy Mauro Marini, numa crítica à compreensão restrita do conceito, articula democracia a questões como soberania e justiça social, e defende que: "a luta pela democracia é a luta contra a dominação e a exploração de muitos por uns poucos, é a luta por uma ordem social tendente à justiça e à igualdade, é, em suma, ali onde se torna mais definida a luta pelo socialismo" (MARINI, 2008:11)

O contexto político mundial em que se retoma o desejo democrático propõe/impõe uma separação do econômico-social e do político. O modelo do sistema neoliberal tira do Estado o papel de provedor da democracia social. Caduca a proposta do Estado de bem-estar social, há uma precarização das condições de trabalho e o aumento da pobreza em função da queda do nível de salários e do desemprego. Como afirma Raventós, esse sistema, hegemônico nos países em desenvolvimento a partir da década de 80,:

"... supone una definición estrictamente 'política' de la democracia, en contraste con las teorias que predominaron en las décadas precedentes. En estas últimas, la democracia era vista como posible sólo cuando se cumpliám algunas precondiciones sociales: se requeria de un cierto nível de ingreso, distribución de riqueza, integración nacional u homogeneidad cultural (...) la cuestión social y distributiva se aisló del debate de la democratización" (Raventós, 2008:14)

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É o que Hubert Grammont qualifica como um novo processo, não previsto nem pelos politólogos e nem pelos economistas, “que consiste en tener más democracia política com menos justicia social (…). En otras palabras, la democracia llegó a América Latina cuando la política perdió su capacidad de influir sobre la economía para definir el reparto de la riqueza nacional" (GRAMMONT, 2006:12)

Ou seja, apesar de o movimento democratizante instaurar-se na região, ele está presente apenas no âmbito político, do Estado, que distancia-se do seu papel de promover a democracia e a justiça social. O Estado afasta-se dos campos econômicos e sociais, tornando-se nesses campos, no melhor dos casos, um regulador das relações, como acusa Emir Sader:

“Na América Latina (…), o neoliberalismo transformou-se na ideologia oficial das 'novas democracias', que passaram a ser julgadas pela maior ou menor presença do Estado na economia, por uma mercado de trabalho mais ou menos regulado, pela abertura maior ou menor da economia (…) Reformar o Estado deixou de ser sinônimo de sua democratização para ser confundido com a redução de suas funções reguladoras” (SADER, 2002:652)

Portanto, o capitalismo neoliberal, ao contrário do que defendem alguns autores (WOOD, 2003), não é incompatível com a democracia, porque esta, em sua nova concepção, é reduzida ao campo político; a injustiça e a desigualdade social que vem junto com o sistema capitalista neoliberal não tem uma contradição com a nova concepção democrática, restrita à igualdade dos direitos políticos. Como afirma Boaventura de Sousa Santos :

"la tensión entre capitalismo y democracia desapareció, porque la democracia empezó a ser un régimen que en vez de producir redistribución social la destruye. (…) Mi primer diagnóstico radical de nuestra situación presente a nivel mundial es que vivimos en sociedades politicamente democráticas pero socialmente fascistas" (SANTOS, B.S., 2006:75-76).

De qualquer forma, é importante registrar a luta democrática encampada por diversos movimentos sociais latino-americanos que perduram até os dias de hoje. Sem dúvida, há uma grande conquista com o fim dos regimes autoritários. Porém, é preciso analisar também como deu-se esse processo, considerando o mosaico de forças que havia, inclusive dentro dos movimentos pró-democratização.

Por exemplo, apesar de a redemocratização ter como sua base de luta as massas, o povo, os movimentos sociais, há uma assimilação de todo o processo de luta e de construção democrática por parte das elites, que usurpam daqueles o direito de definir os novos rumos democráticos dos países. Dessa forma, o sangue profundamente democrático que corria nas veias do movimento democratizante é trocado por outro, amenizador de conflitos, que constrói uma transição suave, uma redemocratização dissimulada, que traz uma nova hegemonia de outras classes dirigentes, como afirma Marini nesses dois trechos:

“O êxito obtido [pela burguesia] nessa empreitada favoreceu o caráter pacífico da transição à democracia e permitiu que a criação da nova institucionalidade se fizesse num contexto de relativa continuidade, orientando-se para o estabelecimento de um pacto social que, envolvendo as massas populares, voltasse a conferir legitimidade ao sistema de dominação e ao Estado" (MARINI, 2008:21).

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“A burguesia assumiu as aspirações populares e as devolveu, diluindo-as, deformando-as, para oferecer reformas liberais ali onde começavam a colocar-se exigências de participação, democracia e socialismo" (idem:25)

Mario Garcez defende que esse processo de amenização dos conflitos e de manutenção de uma classe dirigente, ou seja, de uma transição negociada, é consequência da construção política histórica do continente: “se puede afirmar que los países del Cono Sur comparten un pasado autoritario monárquico (tanto español como português), regímenes oligárquicos post-independendia, así como disímiles procesos de democratización en el siglo XX...” (GARCEZ, 2002:10).

Com essa resolução negociada, o movimento de redemocratização e de aprofundamento dos princípios democráticos, como cidadania, participação popular, democracia direta são amenizados. Formalmente, são implantados sistemas democráticos, com sufrágio universal e direito irrestrito de participação (voto). Os partidos políticos aparecem como as instituições basais da democracia e é recorrente o discurso acerca da igualdade política, dos direitos políticos.

No entanto, ficam reflexos dessa redemocratização negociada que sobrevivem até hoje. Raventós destaca algumas omissões no novo sistema democrático como: a atenção limitada dada aos meios de regulação das finanças eleitorais e ao acesso equitativo aos meios de comunicação; o descaso em relação aos direitos efetivos de participação cidadã; a quase inexistente transparência política e prestação de contas por parte dos governantes (Raventós, 2008:14). Como efeito perverso, a nova democracia instaurada após os regimes militares configura-se como uma cidadania de baixa intensidade, fraca, em função, entre outras coisas, “de los reiterados cuestionamentos a las formas políticas tradicionales y el sistema de partidos, la corrupción, o por la apatía creciente de vastos sectores ciudadanos” (GARCEZ, 2002:27).

Portanto, a mediação feita pelas elites traduziu-se em diversos resquícios autoritários que ainda encontramos em nosso sistema político, particularmente na relação entre Sociedade Civil e Estado. As negociações entre as forças democratizantes e as conservadores deixaram uma herança forte através de uma cultura política autoritária, personalista, e que impõe uma série de dificuldades para consolidação das instituições democráticas (ARASHIRO, 2002).

As transições de regimes ditatoriais para novas democracias, por outro lado, culminou, na maior parte dos países, em uma revisão constitucional que visava fortalecer as bases da redemocratização e atender a demandas colocadas pela sociedade civil. Diversas alterações foram feitas, a partir da experiências de longos e negros períodos ditatoriais, de forma a buscar a aproximação entre sociedade e Estado.

Podemos citar, primeiro, as mudanças político-administrativas e institucionais, importantes na definição da nova realidade democrática. Consolida-se uma tendência de descentralização do poder político-administrativo, dando maior autonomia e força aos governos locais, o que poderia representar um fortalecimento da participação popular na localidades, mas na maioria das vezes foi um instrumento para corroborar a força das elites locais, que privatizam o Estado ao seu benefício. Garcez afirma:

“Por su parte, los procesos de descentralización de los Estados han avanzado sin que ello se traduzca necesariamente en procesos sustantivos de democratización en el ámbito local. Existen experiencias

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relevantes y significativas en cuanto a la participación y aceso a la toma de decisiones, como es el caso de los 'presupuestos participativos' en Brasil, pero también están presentes la inercia, las resistencias burocráticas o la aparición de prácticas clientelísticas que han ganado espacio a nivel local” (GARCEZ, 2002:28).

O segundo ponto importante de alteração constitucional, que abriu uma brecha para o aprofundamento da democracia, foi a inserção da participação popular no governo como um direito do cidadão. Para além dos outros direitos trazidos de antes dos período autoritários, a participação é inserida, de acordo com a demanda de diversos movimentos sociais, como forma de consolidar e legitimar os governos.

"desde 1988 casi todos los países de América del Sur tuvieron procesos de elaboración de nuevas constituciones (...). Hevia observa que en la mayoría de las nuevas constituciones el principio de participación ciudadana ha sido incorporado directa o indirectamente, siendo los casos más explíticos y extensos los de Venezuela y Nicaragua" (Dagnino et alli, 2008:51)

Entretanto, a criação de espaços participativos é um começo, mas distancia-se muito da construção de uma cultura política participativa e propositiva na sociedade. A herança dos anos de chumbo pesa sobre a prática cidadã da população, que percebe-se distante e desconfia (muitas vezes com razão) dos espaços públicos de participação criados pelo Estado. Como alerta Albuquerque:

“La histórica falta de credibilidad que marca, aunque de modo desigual, a las instituciones estatales en América Latina, su vínculo con intereses privados de las elites, su distanciamiento de compromisos públicos y sociales, provocan una desconfianza en los actores sociales populares en relación a los nuevos espacios de diálogo y negociación” (ALBUQUERQUE, 2002:248).

De qualquer forma, não se pode diminuir as conquistas democráticas obtidas no período da redemocratização e que continuam se ampliando e consolidando. Inserido no novo paradigma de luta dos movimentos sociais latino-americanos, constrói-se um projeto de transformação que coloca a cidadania e a participação como elementos motores para a consolidação democrática.

Deseja-se potencializar a capacidade de interferência na construção de políticas públicas, o fortalecimento das mobilizações locais em prol de espaços de democracia direta que não apenas contribuam para a definição de ações e de uso de recursos de forma mais eficiente e justa, mas que, com a mesma importância, contribuam para a formação de cidadãos ativos, reflexivos, que compreendam sua realidade e sejam capazes de ter uma visão crítica sobre a sociedade, o Estado e na sua relação com ambos.

Um dos desafios para a consolidação desse projeto é a disseminação de uma compreensão democrática dos seus conceitos chave: cidadania, participação, democracia participativa.

No processo de transição democrática, quando a elite assume à frente do negociação, ela também cria um “projeto de democracia”. Contrapondo-se ao anterior, apresenta-se um projeto neoliberal (Dagnino et alli, 2008) que busca esvaziar o aprofundamento da democracia. Utilizando-se de um discurso semelhante mas de princípios diferentes, esse projeto está articulado com a proposta de desmantelamento do Estado, e, por isso, baseia-se na construção de um “Terceiro

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Setor”, que seria complementar a Estado e Mercado e que aos poucos vai assumindo a função social antes destinada ao Estado (GARCEZ,2002).

Conforme esclarecem Evelina Dagnino, Alberto Olvera e Aldo Panfichi, o projeto neoliberal de democracia traduz-se em:

"la reducción de terrenos, sujetos, temas y procesos considerados como constituidores de la política. (...) La sustitución del término sociedad civil por el de tercer sector, al lado del mercado y del Estado, indica la nueva función y designa el intento de retirar de la sociedad civil su papel como constitutiva del terreno de la política, ahora otra vez condensado en la sociedad política. Autodenominado como apolítico, el tercer sector refuerza una concepción estatista del poder y de la política" (DAGNINO et alli, 2008:52).

A similaridade dos discursos entre os dois projetos mascara a visceral distinção que há entre ambos e esconde as propostas efetivas de transformação do projeto que teve os movimentos sociais como berço. Constitui-se, assim, o que Dagnino (apud Dagnino et alli, 2008) classificou de “confluência perversa”, que é:

"el encuentro entre los proyectos democratizantes que se constituyeron en el período de la resistencia contra los regímenes autoritarios y continuaron en la búsqueda de avance democrático, y de otro los proyectos neoliberales que se instalaron, con diferentes ritmos y cronologías, a partir del final de la década de ochenta. La perversidad se localizaría en el hecho de que, apuntando en direcciones opuestas y hasta antagónicas, ambos conjuntos de proyectos utilizan un discurso común.(...) se basan en las mismas referencia: la construcción de ciudadanía, la participación y la propia idea de sociedade civil" (Dagnino et alli, 2008:34).

Albuquerque também identifica essa faceta cruel da proximidade superficial entre as duas propostas de projetos para a democracia, e denuncia um “'secuestro' liberal del significado de participación y de democracia” (Albuquerque, 2002:249):

“Contra una ciudadanía ampliada y política, se propone una ciudadanía limitada al consumo; contra la participación con control social sobre el Estado, se propone una participación filantrópica y sustitutiva de las responsabilidades sociales del Estado, contra la radicalización de la democracia, vemos experiencias de democracias de baja intensidad.” (idem:254).

Em suma, apesar dos obstáculos históricos colocados seja pelas ditaduras, seja pela imposição de modelos econômicos e políticos desfavoráveis, há uma onda democratizante na América Latina que vem construindo uma plataforma de debate e uma gama de experiências que podem fortalecer e aprofundar a democracia na região.

Um dos desafios para esse movimento está em consolidar uma reflexão sobre as experiências de democracia participativa que propicie construir uma proposta de projeto alternativo articulado para a região, como colocou Ruy Mauro Marini:

"Eis o desafio que se oferece para a esquerda latino-americana e que, se bem respondido, a levará a triunfar onde outros fracassaram: formular um projeto alternativo ao simulacro de democracia que está em curso. (...) No marco desse projeto, democracia e socialismo reassumirão seu verdadeiro significado, que faz de uma a contrapartida necessária do outro, e se constituirão não apenas em

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visão prospectiva de uma ordem social desejada, mas também, e sobretudo, em expressão programática daquilo que inspira os homens em sua vida de todos os dias" (Marini, 2008:28);

Gerardo Caetano, seguindo a mesma linha propositiva, denotou que a construção de “nuevos pactos de ciudadanía, capaces de refundar las lógicas democráticas y los canales de participación política de cara a las exigencias de este tiempo de los cambios, constituye uno de los mayores desafíos actuales para los sistemas políticos del continente.” (CAETANO, 2006a:245).

Raventós defendeu que a construção de tal projeto alternativo “requiere que avancemos desde el estudio de la democracia (en tanto régimen institucional específico) hacia el estudio de los procesos de democratización" (Raventós, 2008:15).

Considerando os perigos e contratempos da confluência perversa, Albuquerque destacou como objetivo a consolidação de conceitos chave como participação, cidadania, para que não sejam desqualificados e despolitizados pelo projeto neoliberal.

“La disputa de significados sobre los conceptos de ciudadanía, participación y democracia es el centro de los desafios que nos dejan extremamente perplejos en los años que vivimos” (ALBUQUERQUE, 2002:254)

Na tese aqui apresentada, estudarei experiências de democracias participativas em três países latino-americanos: Brasil, Venezuela e Equador. Estando todos inseridos no contexto amplo descrito acima, cada um possui suas peculiaridades históricas e processos sociopolíticos distintos que propiciaram a emergências das experiências que pretendo estudar.

No Brasil, os espaços de democracia participativa começaram a ganhar força a partir da Constituição de 1988, quando são criados diversos conselhos: educação, saúde, criança e adolescente. Uma das experiências mais estudadas e referenciadas é a dos orçamentos participativos, particularmente o caso de Porto Alegre. Potencializada a partir do governo do Partido dos Trabalhadores, a experiência constituiu-se como caso exemplar de participação efetiva da população na definição de parte do orçamento público, e foi modelo para diversas tentativas similares no país e no exterior. A consolidação de espaços de participação deu um salto de intensidade com o governo Lula, que promoveu um grande número de conferências, nas mais diversas temáticas, para debate, definição e aprovação de políticas públicas.

Na Venezuela, as inovações participativas começaram a ganhar corpo ainda no início da década de 1990, em nível local e regional, por iniciativa de alguns governos de esquerda, como resposta à crise do sistema político e do estado de deterioração dos serviços públicos nas áreas urbanas do país (López Maya, 2008). Mas o movimento ganhou maior intensidade a partir da eleição de Hugo Chavez; primeiro, com as difundidas misiones, que estimulavam a mobilização popular para sanar diversas carências das comunidades; e, mais recentemente, com os consejos comunales, com os quais se pretende estimular a participação em decisões políticas acerca do uso dos recursos públicos destinados a cada localidade. O caso dos consejos comunales da Venezuela ainda não deu origem a uma bibliografia significativa por sua criação ser recente (2006).

No Equador, os primeiros espasmos de democracia participativa nascem de um movimento mais amplo de reivindicação dos direitos civis e políticos da população indígena e de ampliação da presença indígena na esfera política. Como um dos expoentes desse movimento, destaca-se a

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experiência de democracia participativa no “cantón” Cotacachi, no norte do país, iniciada em 1996, com a eleição de Auki Tituaña para prefeito. Essa experiência tem sido reconhecida como um dos casos mais efetivos de participação popular. Cotacachi torna-se uma experiência de fundamental importância particularmente porque a democracia participativa tem permitido o fortalecimento identitário das populações indígenas.

As diferentes histórias de construção de cada uma das experiências de democracia participativa obrigam a recusa de análises orientadas apenas por critérios de quantificação de seus resultados. A compreensão das origens, obstáculos e resultados de cada um dos casos separadamente pode contribuir para uma reflexão mais consolidada acerca da gênese dessas experiências, de seu potencial de transformação de realidade locais e de renovação das culturas políticas.

Embora seja extensa a bibliografia sobre as experiências de democracia participativa na América Latina, ainda é tímido o esforço de realizar análises que articulem os casos estudados, em direção à identificação de formas alternativas de realização da democracia. Faz-se mister a construção de uma visão transversal dessas experiências, que permita ver as similaridades e diferenças de suas origens, de seus princípios e de seu potencial de transformação das relações sociais.

Embora a América Latina esteja à frente do mundo na busca pela construção de novas formas de democracia efetivamente inclusivas, para que as experiências em curso se consolidem e difundam, é preciso entendê-las não apenas enquanto ações localizadas e isoladas, mas como um movimento de questionamento do modelo de democracia existente atualmente, baseado em princípios e valores que precisam ser revistos, atualizados ou ultrapassados.

Orientado pela preocupação metodológica de não criar modelos ou colocar amarras nas experiências de democracia participativa, pretendo contribuir na consolidação de uma visão articulada das experiências de democracia participativa da região. Com isso, tento colaborar no enfrentamento de uma questão recorrentemente apresentada pelos estudiosos (Avritzer): a falta de uma teoria da participação e da democracia participativa.

Acredito que a consolidação de uma perspectiva mais ampla do movimento pela participação popular na política e a construção de uma teoria, construída a partir da prática, da democracia participativa e da participação são os próximos passos a serem dados para o aprofundamento da democracia, de forma sólida e disseminada, na América Latina.

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3 REVISÃO BIBLIOGRÁFICA

“Es natural que los sectores dominantes se la [a rebelião do coro] nieguem o se la concedan

bajo condiciones que la invalidan. Lo que sería lamentable es que la izquierda

persistiese en hacer lo mismo, instalada en la certeza de su discurso verdadero”

José Nun – La rebelión del coro

Apresento abaixo uma revisão de literatura sobre os avanços da reflexão e das práticas de democracia participativa indispensável à definição do foco da tese e dos métodos a serem utilizados na pesquisa de campo.

Inicio por um dos conceitos chave para a tese, que é o de políticas públicas. Entendo políticas públicas como ações construídas coletivamente por diversas instituições, do primeiro, segundo e terceiro setor, que têm como objetivo a melhoria das condições de vida da população de uma determinada região. Seu objetivo não é resolver de forma pontual e local um ou mais problemas, mas consolidar um eixo de atuação que articule recursos (econômicos, naturais, humanos, políticos, culturais) em direção ao alcance de mudanças efetivas. Utilizo o adjetivo “pública”, em primeiro lugar, para aproximar o conceito do que em inglês é definido por policy, distante do conceito geral de política, politics.

Segundo, por entender que as políticas públicas visam a esfera pública, isto é, não tem como foco um local, um grupo ou uma área específica; distinguindo-se, portanto, de políticas estritamente empresariais, econômicas, sociais e unicamente governamentais. Estas podem estar inseridas em uma política pública; mas uma política pública não deve se restringir a uma dessas áreas e, sim, possuir uma abrangência maior. As políticas públicas não contam, necessariamente, com a presença do governo, podendo ser articuladas por organizações da sociedade civil, universidades e empresas. Sem embargo, a participação do governo municipal, estadual ou federal, seja pela sua capacidade de mobilização de recursos, seja pela agilização do diálogo com a população, contribui para a legitimação e a concretização dessas políticas.

Um aspecto relevante no processo de construção de políticas públicas é a possibilidade de ampliação dos processos de formação política, isto é, das formas de atuação no espaço público da localidade e região. Através da criação de espaços democráticos de debate e decisão acerca dos problemas e de sua possível solução, pode-se estimular a educação política e influencia na própria percepção da cidadania noutras localidades.

É nessa direção que alguns autores, baseados sobretudo em orientação de Habermas, valorizam o conceito de esfera pública.

Conforme afirma Habermas (apud Nun, 1989), pode-se reconhecer a existência de uma esfera pública a partir de transformações ocorridas no século XIII na Europa, quando tem início a substituição do Estado absolutista para um Estado secularizado, que traz a racionalidade como base de sua constituição. É a época em que o Iluminismo começa a se construir como uma “filosofia da

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consciência”, em oposição àquele Estado (Nun, 1989:27). Como afirma o autor: “la fe, la tradición o el status del emisor fueron dejando de ser credenciales suficientes para que una definición de la realidad social ingresara con éxito a la discusión pública.”

Compunha-se, assim, uma “arena de debate político”, que desvinculava a participação de uma pessoa de sua posição social, e “la gente se puso a hablar de política, más allá de sus asuntos comunales”. Segundo Nun (1989:31), para Habermas a esfera pública representa:

un sector de la vida social en que un agregado político de personas privadas razona y debate publicamente. Se trata, en otras palabras, de la emergencia histórica de la denominada ‘opinión pública’: se multiplicaban los foros de discusión de asuntos de interés general (...), que buscaban mediar la división creciente entre el estado y la sociedade civil.”

Tenório (2005) ampliou o conceito apresentado por Habermas, trazendo aspectos importantes do seu funcionamento democrático como a igualdade de direitos e a não-violência:

“O conceito de esfera pública pressupõe igualdade de direitos individuais (sociais, políticos e civis) e discussão de problemas, sem violência ou qualquer outro tipo de coação, por meio de autoridade negociada entre os participantes do debate. Portanto, a esfera pública é o espaço intersubjetivo, comunicativo, no qual as pessoas tematizam as suas inquietações por meio do entendimento mútuo”. (TENÓRIO, 2005:155) [grifos do autor]

A constituição desse espaço de reflexão coletiva, na percepção de Habermas, representa uma nova potencialidade na experiência política dos países europeus, abrindo caminho para a igualdade no que concerne a reivindicação de direitos de cidadania: participação nas decisões políticas do Estado e redução do princípio de autoridade frente ao “gobierno de la razón”. Mas Nun (1989:31), apoiando-se em Habermas e Pizzorno, afirma que essa potencialidade nunca se confirmou completamente, o que originou uma sociedade que reforça o sistema político desigual e projetos de “autodeterminación racional” fixados de acordo com os interesses da burguesia.

A transição para um Estado de base racional e a incipiente constituição de espaços políticos de discussão tendem a gerar um movimento de contínua e tensa aproximação entre o poder estatal e a população, ou entre Estado e Sociedade Civil. Essa esferas correspondem ao que Gramsci (1968:10) define como os dois grandes “planos superestruturais”: sociedade civil, “o conjunto de organismos chamados comumente de ‘privados’”; sociedade política, que “corresponde à função de ‘hegemonia’ que o grupo dominante exerce em toda a sociedade e àquela de ‘domínio direto’ ou de comando, que se expressa no Estado e no governo ‘jurídico’”.

No entanto, apesar de uma potencial aproximação entre esses dois grandes planos superestruturais, o Estado moderno, como afirma Touraine (1996:57), aumenta cada vez mais sua distância em relação à sociedade civil. O fato de o Estado ter assumido o papel de defensor dos interesses das classes dominantes, através da atuação de uma classe dirigente, exigiu, para manutenção do status quo, seu afastamento da população em geral, como Engels afirmou, segundo Macciochi (1977:159): “Engels afirmou claramente que o Estado é realmente ‘um poder de classe’, mas ao mesmo tempo é ‘uma força surgida da sociedade, que se colocou acima dela, mantendo-se cada vez mais distante dela’”.

Nesse contexto, torna-se pertinente a reflexão sobre o processo de construção da democracia no mundo ocidental e das alternativas de desenvolvimento democrático que podem reduzir a distância entre “sociedade civil” e “sociedade política”, ou, como queria Gramsci, para que haja a “reabsorção da sociedade política pela sociedade civil” (apud Macchiocci, 1977:181).

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3.1 A Teoria da Participação e a Democracia Participativa

3.1.1 A Democracia e o Governo Representativo

A história de consolidação do governo representativo foi sendo construída a partir do modelo estatal de cada época e das demandas e pressões sociais desdobradas na relação entre Estado e sociedade. Ao contrário do que se pode supor pela realidade contemporânea, sistema representativo e democracia são conceitos que nasceram em lugares e épocas diferentes, não tendo, inicialmente, qualquer relação (Manin, 1997; Pitkin, 2004).

Hanna Pitkin destacou as diferentes origens históricas desses conceitos. A democracia, apesar de a prática ser anterior, foi cunhado como conceito pela primeira vez pelos gregos, com base na democracia ateniense, conquistada por luta popular, e que era “direta e participativa a um nível surpreendente”, não havendo nenhuma relação com representação, para a qual não existia uma palavra em sua língua (PITKIN, 2004: 337; tradução livre nossa).

Segunda a autora, representação, enquanto prática política, vem de um período mais moderno, não estando ligada a experiências de governo democrático. Pitkin deu o exemplo da Inglaterra, onde o rei precisava de delegados de cada localidade para garantir o recolhimento de impostos, ou seja, era um posto de controle imposto pelo governo central. Foi com o tempo que os representantes começaram a se sentir parte das populações locais, colocando condições e negociando com o rei; e a função de delegado foi deixando de ser um cargo, um ônus, para ser um direito da população (PITKIN, 2004:337).

Bernard Manin reforça a análise de Pitkin afirmando que: “what we call representative democracy has its origins in a system of institutions (…) that was in no way initially perceived as a form of democracy or of government by the people”4 (Manin, 1997:1). O autor defende que houve uma mudança de percepção e de posicionamento do modelo de governo representativo: “In the late eighteenth century, then, a government organized along representative lines was seen as differing radically from democracy, whereas today it passes for a form thereof”5 (idem:4).

Foram as disputas entre reis e parlamentos no século XVII que geraram a guerra civil na Inglaterra e as subsequentes revoluções democráticas do final do século XVIII, que deram origem à aproximação entre democracia e representação, ou o que é conhecido por democracia ocidental (Pitkin; Bobbio). O movimento democrata desafiou duas assunções medievais: que Deus destinava a cada pessoa seu lugar na hierarquia sagrada; e que o reino era um território cujo domínio pertencia ao rei e à aristocracia fundiária. (PITKIN, 2004:337-8)

Portanto, as revoluções buscavam enfrentar uma histórica construção divina/imperial dos governos existentes desde a Idade Média, trazendo um ideal democrático em que a população teria o poder de construir o Estado para servi-la. No entanto, seja por dificuldades de colocar em prática o novo ideário, seja pelas pesadas heranças do sistema anterior, o aprofundamento da democracia, isto é, da interferência popular no governo, foi cerceado por obstáculos.

4 “O que chamamos de democracia representativa tem sua origem em um sistema de instituições (...) que de forma alguma era percebido, inicialmente, como uma forma de democracia ou de governo pelo povo” – tradução livre nossa (TLN).

5 “No final do século XVIII, um governo organizado através de formas representativas era visto radicalmente diferente de democracia, enquanto hoje é visto como uma forma de democracia” – TLN.

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Pitkin (2004:338) levantou a hipótese de que o fato desse ressurgimento da democracia ter ocorrido em grandes Estados-Nações, e não em pequenos Estados-Cidades (city-states), onde a prática não-democrática da representação já estava solidificada, impediu que um processo profundo de democratização fosse levado a cabo: “Extend the suffrage, and democracy would be enabled by representation”6 PITKIN (2004:338).

A autora conclui que a representação, ao invés de ter sido articulada à democracia, foi utilizada como ferramenta para conter o ímpeto democrático e para controlar as classes mais baixas:

“Despite repeated efforts to democratize the representative system, the predominant result has been that representation has supplanted democracy instead of serving it. Our governors have become self-perpetuating elite that rules – or rather, administers – passive or privatized masses of people. The representatives act not as agents of the people but simply instead of them”7 (Pitkin, 2004:339).

Outro fator importante, destacado por diversos autores, é o despreparo da população para a atuação política democrática. Acostumadas a governos autoritários, centralizadores, não se poderia esperar que as pessoas, antes servos obedientes, se tornassem automaticamente cidadãos ativos e conscientes de seu papel frente ao Estado e na construção de um governo democrático.

Entretanto, Dewey criticou os autores que atribuem à população a responsabilidade pela falta de empenho na democratização da experiência política, já que isso dependeria de um processo de formação:

“... it is absurd to convert this legal liberation into dogma which alleges that release from old oppressions confers upon those emancipated the intellectual and moral qualities which fit them for sharing in regulation of affairs of state. The essential fallacy of the democratic creed, it is urged, is the notion that a historic movement which effected an important and desirable release from restrictions is either a source or a proof of capacity in those thus emancipated to rule, when in fact there is no factor common in the two things.”8 (DEWEY, 1954:204)

Em função desses fatores, Pitkin afirmou que o governo representativo (a democracia representativa) tornou-se um substituto do auto-governo popular e não seu ativador, corespondendo, de fato, a um governo oligárquico (Pitkin, 2004:340). A autora não se opõe, no entanto, à representação per se. Cita Alexis de Tocqueville para afirmar que: “Genuinely democratic representation is possible, she held, where centralized, large-scale, necessarily abstract representative system is based in a lively, participatory, concrete direct democracy at local level” 9

6 “Amplie-se o sufrágio, e a democracia seria viabilizada pela representação” – TLN.7 “Apesar dos repetidos esforços para democratizar o sistema representativo, o resultado

predominante foi que a representação suplantou a democracia ao invés de servi-la. Nossos governantes tornaram-se elites autoperpetuadoras que comandam – ou melhor, administram – massas passivas ou privatizadas. Os representantes agem não como agentes das pessoas mas em seu lugar” – TLN.

8 “… é um absurdo converter essa liberação legal em um dogma que alega que a liberdade de antigas opressões garante aos emancipados as qualidades morais e intelectuais necessárias para o compartilhamento das decisões de âmbito estatal. A falácia essencial da crença democrática é a noção de que um movimento histórico que permitiu uma emancipação importante e desejável representa uma fonte ou prova de capacidade de governar dos emancipados, quando, na verdade, não há fator comum entre as duas coisas” – TLN.

9 “Representação genuinamente democrática é possível, ela argumenta, onde o sistema representativo centralizado, de grande escala, necessariamente abstrato é baseado em uma democracia

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(Pitkin, 2004:340). Para Pitkin, é a democracia direta local que sustenta uma real democracia representativa na escala nacional.

1ª movimento10: Democratização por eleição

Em suma, os movimentos democratizantes iniciados no século XVIII corresponderam a uma primeira onda de transformação: o movimento democrático por via eleitoral. O caminho traçado desde então, em vistas à democratização do Estado, teve como eixo principal um único método de participação ampla: o sufrágio universal. Assim, a luta democrática até poucas décadas atrás esteve atrelada à ampliação do universo de votantes, a partir da conquista do direito ao voto para os pobres, mulheres, analfabetos.

Como afirmou Bobbio:

“Quando se diz que no século passado ocorreu em alguns países um contínuo processo de democratização quer-se dizer que o número dos indivíduos com direito ao voto sofreu um progressivo alargamento.” (1986:19);

e também Manin:

“During the nineteenth and early twentieth centuries, one trend dominated the development of representative institutions: the extension of the right to vote, which eventually culminated in universal suffrage. Another transformation also took place: wealth requirements for representatives disappeared. These two changes gave rise to the belief that representation was progressing toward popular government”11 (MANIN, 1997: 132)

Warren mostra o quão recentes são as conquistas democráticas reais, mesmo quando nos restringimos ao ato de votar. O autor afirmou que se considerar como democráticos os Estados que possuem (1) sufrágio universal, (2) sistema político de competição multipartidária, e (3) movimento de oposição com chances legítimas de ganhar ou participar do poder, em 1900 não havia realmente nenhuma democracia no mundo. Esse número sobe para 22 de um total de 154 países em 1950, e 119 de um total de 192 países em 2000 (Warren, 2002:677). O mesmo autor afirmou que: “Articulated most clearly by realist and elite theorists of democracy such as Joseph Schumpeter, ..., democracy became identified with de facto existence of competitive elections ”12 (idem:678).

Wanderley Guilherme dos Santos também destaca a lentidão do processo de construção democrática e do quão recentes são os intentos de sua universalização. Registrou que a Nova

direta viva, participativa, concreta a nível local” – TLN.10Gostaria de destacar que o que estou identificando neste trabalho como “movimento” não tem

relação direta com as “ondas democráticas” definidas nas ciências sociais e citadas anteriormente. Dentro da minha classificação, além dos dois movimento conviverem atualmente, o 1o está presente nas três “ondas”, enquanto que o 2o, democrático participativo, se faz presente com significância apenas na “terceira onda”, e mesmo assim com menor espaço que o 1o movimento.

11 “Durante os séculos XIX e início do XX, uma tendência dominava o desenvolvimento das instituições representativas: a extensão ao direito de votar, que eventualmente culminava no sufrágio universal. Outra transformação também ocorreu: desapareceram as exigências econômicas para representantes. Essas duas mudanças levaram à crença de que representação estava caminhando na direção de um governo popular” – TLN.

12 “Articulado mais claramente por teóricos da democracia realistas e elitistas como Joseph Schumpeter,..., democracia tornou-se identificada com a existência de facto de eleições competitivas” - TLN

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Zelândia, em 1893, e a Austrália, em 1901, foram os países onde “pela primeira vez na história das organizações políticas consagrou-se a idéia de que todos os membros de uma comunidade são iguais perante as leis, entre as quais as leis eleitorais não figuram como exceção” (2007:13). 13

Portanto, ao longo do tempo, cada vez mais o conceito e a prática de democracia, originados da participação política direta na política ateniense, foram se restringindo à dinâmica de eleições periódicas para definição dos representantes. Voltando à etimologia da palavra (demos = povo; cratos = poder, Estado), é como se o poder do povo agora fosse definido como o direito de votar periodicamente. Essa perspectiva, atrelada ao movimento homogeneizador típico da atual globalização capitalista, foi assumindo um aspecto universal e hegemônico.

Boaventura de Souza Santos e Leonardo Avritzer trouxeram à tona o processo político que levou a essa homogeneização do modelo democrático:

“Nos anos 60, se, por um lado, o modelo hegemônico de democracia, a democracia liberal, parecia destinado a ficar confinado, como prática democrática, a um pequeno recanto do mundo, por outro lado, fora da Europa ocidental e da América do Norte existiam outras práticas políticas que reivindicavam o status democrático e o faziam à luz de critérios autônomos e distintos dos que subjaziam à democracia liberal. Entretanto, à medida que essas práticas políticas alternativas foram perdendo força e credibilidade, foi-se impondo o modelo de democracia liberal como modelo único e universal, e a sua consagração foi consumada pelo Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional ao transformá-lo em condição política para a concessão de empréstimos e ajuda financeira” (2005: 71-72).

Os mesmos autores destacaram que a concepção hegemônica de democracia, imposta após as duas guerras mundiais, “implicou em uma restrição das formas de participação e soberania ampliadas em favor de um consenso em torno de um procedimento eleitoral para formação de governos” (idem:39). Instaura-se, assim, um processo contínuo de perda da demodiversidade; “Por demodiversidade entendemos a coexistência pacífica ou conflituosa de diferentes modelos e práticas democráticas” (idem:71).

Santos e Avritzer (idem:41) destacaram que os principais elementos da concepção hegemônica de democracia são: contradição entre mobilização e institucionalização; valorização da apatia política; concentração do debate democrático na questão dos desenhos eleitorais; o pluralismo como forma de incorporação partidária e competição entre elites; e “a solução minimalista para o problema da participação pela via da discussão das escalas e da complexidade”.

José Nun, numa análise política das décadas de 1960 a 1980, conclui que um dos obstáculos para um maior avanço da democracia participativa nos países latinoamericanos decorrem, contraditoriamente, do esforço para reestabelecer a democracia representativa frente aos governos autoritários militares existentes. A luta contra governos ditatoriais em prol do objetivo mais amplo de democratização levou a uma naturalização do modelo representativo como princípio inexorável de uma vida coletiva democrática (Nun, 1989:63).

13 Vale comentar outro destaque de Santos: no Brasil da Primeira República (1891-1930), “o comparecimento às urnas foi, durante todo o período, inferior a 4% da população, exceto na eleição de 1930, quando atingiu o espantoso recorde de 5,6% dos habitantes, ainda abaixo dos 10% alcançados pelo Império, em meados do século XIX”. E que o país tornou-se plenamente democrático apenas em 1985, com a permissão de votos aos analfabetos.

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Mais recentemente, no entanto, dissemina-se o argumento de que o modelo de democracia representativa baseado apenas no voto (que alguns autores denominam de democracia eleitoral) não é suficiente para dar conta das complexas demandas sociais que se apresentam com diversas especificidades regionais/locais: origem étnica; habilidades profissionais; prioridades coletivas; construção histórica da cidadania.

Como colocaram Santos e Avritzer:

“... torna-se cada vez mais claro que as burocracias centralizadas não têm condição de agregar ou lidar com o conjunto das informações necessárias para a execução de políticas complexas nas áreas social, ambiental ou cultural (Sabel ET AL., 1999). Aí residiria o motivo da re-inserção no debate democrático dos assim chamados ‘arranjos participativos’” (idem:48).

Mais do que isso, muitos autores são taxativos em afirmar que o modelo hegemônico de democracia na atualidade, ao invés de aproximar, distancia os cidadãos do Estado.

Wanderley Guilherme dos Santos, com base em diversas pesquisas, traz à tona sua preocupação com o enfraquecimento do compromisso político dos cidadãos frente ao atual sistema:

“Recente volume trazendo contribuições de diversos especialistas, depois de avaliar os resultados das investigações sobre o eleitorado e seu comportamento dos anos 50 aos anos 90 do século passado, lista certas conclusões preocupantes. Estariam em declínio a identificação com os partidos, a capacidade destes em mobilizar o eleitorado, a coerência do voto ao longo do tempo, a taxa de comparecimento às eleições, o interesse da sociedade pela política, manifestada pela redução sistemática do número de candidatos aos postos eletivos, além de algumas outras tendências de menor relevância – participação na vida partidária, em campanhas eleitorais e, não sem alguma relevância, grau de informação política. Apropriadamente, definem o momento histórico como o de partidos sem partidários, referindo-se, os especialistas, ao que designam por democracias industriais avançadas...” (Santos, 2007: 34).

O que também foi afirmado por Pateman:

“Os dados obtidos em amplas investigações empíricas sobre atitudes e comportamentos políticos, realizadas na maioria dos países ocidentais nos últimos vinte ou trinta anos, revelaram que a característica mais notável da maior parte dos cidadãos, principalmente os de grupos de condição sócio-econômica baixa, é uma falta de interesse generalizada em política e por atividades políticas” (Pateman, 1992:11).

Santos e Avritzer classificam a crise da democracia liberal como uma dupla patologia: “a patologia da participação, sobretudo em visto do aumento dramático do absenteísmo; e a patologia da representação, o fato de os cidadãos se considerarem cada vez menos representados por aqueles que elegeram” (2005:42).

Constata-se a existência de um processo de de distanciamento da população frente às discussões políticas do Estado, o que acentua a concentração do poder nas mãos de um pequeno grupo de pessoas, que manda e desmanda no governo. É o que Benjamin Bishin (2009) denomina “tirania da minoria”. Segundo o autor, a falta de interesse da grande maioria da população fomenta

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uma tirania em que as minorias que detém as características valorizadas no sistema político atual tomam decisões em nome de toda a população.

O autor afirmou, criticando o modelo de governo atual:

“Democracy is characterized by its emphasis on the values of popular sovereignty, the idea that the majority should rule, liberalism, the idea that all people are equal, and liberty. A system in which minorities prevail over majorities appears inconsistent with these values”14. (Bishin, 2009:4).

Ciska Raventós é ainda mais categórica na afirmação sobre o autoritarismo em que pode cair esse modelo democrático:

"De hecho, cuando las elecciones no están enraizadas en prácticas que garanticen la libre competencia, una amplia participación ciudadana y la construción de la representación política, a menudo se convierten en una fachada de regímenes que son, en la práctica, autoritarios" (Raventós, 2008:16).

Em suma, o produto final das revoluções democráticas iniciadas no século XVIII é um governo representativo cujo cerne democratizante está na realização de eleições periódicas para seleção dos representantes do povo. Diversos autores questionam se o processo democrático atual de escolha de representantes possibilitou que os cidadãos, com o aprendizado ao longo do tempo, pudessem cada vez mais escolher os candidatos que realmente apresentassem as melhores habilidades de governo e que atendessem às demandas da sociedade como um todo.

Bobbio concluiu que uma das promessas da democracia até hoje não cumpridas é a educação para a cidadania. Segundo o autor, o longo período de construção democrática não foi suficiente para, conforme muitos defendiam, que a população aprendesse com a prática democrática a escolher seus representantes. Pelo contrário, :

“Nos regimes democráticos, como o italiano, onde a porcentagem dos votantes é ainda muito alta (embora diminua a cada eleição), existem boas razões para se acreditar que esteja em diminuição o voto de opinião e em aumento o voto de permuta [voto di scambio], o voto, para usar a terminologia asséptica dos political scientists, orientado para os output, ou, para usar uma terminologia mais crua mas talvez menos mistificadora, o voto clientelar, fundado (frequentemente de maneira ilusória) sobre o do ut des (apoio político em troca de favores pessoais).” (BOBBIO, 1986:33)

Não são as habilidades de governar ou de definir políticas que orientam a escolha dos representantes, mas uma série de outros fatores como o poder econômico, o acesso à mídia. Manin afirma:

“The public scene is increasingly dominated by media specialists, polling experts, and journalists, in which it is hard to see a typical reflection of society. Politicians generally attain power because of their media talents, not because they resemble their constituents socially or are close to them. The gap

14 “Democracia é caracterizada pela sua ênfase nos valores da soberania popular, a idéia de que a maioria deveria governar, liberalismo, a idéia de que todos são iguais, e liberdade. Um sistema em que minorias prevalecem sobre maiorias parece inconsistente com esses valores” – TLN.

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between government and society, between representatives and represented, appears to be widening”15 (MANIN, 1997: 193).

Também Cristovam Buarque criticou o sistema atual e ressaltou a crise que atinge o uso dos instrumentos democráticos:

“Até a democracia vem perdendo o uso de seus instrumentos, pois ficou apropriada pelos partidos, pela mídia, por grupos de pressão. O melhor exemplo dessa privatização está no alto custo das campanhas políticas, e no seu financiamento por grupos econômicos. A prática democrática se fez por um emaranhado de interesses que levam, quase que necessariamente, à corrupção. O ritual da participação social fica restrito; o povo fica excluído; as decisões são tomadas por poucos; as informações são divulgadas por uma mídia apropriada por grupos econômicos e até pelos governos. Os partidos se apropriam da atividade política, a mídia escolhe os candidatos a serem prestigiados; mesmo os eleitores veem a democracia como meio de obter alguma vantagem pessoal. A participação cívica fica restrita às intermediações da mídia, dos partidos, das corporações que se apropriam dos meios de participação política. A política democrática apropriada deixa de ser usada para a orientação da sociedade e se limita à distribuição das propriedades” (BUARQUE, 2010:7).

Enfim, o que se encontra no sistema “democrático” representativo atual refere-se a uma transição das elites dominantes; uma mudança de mãos da tomada de decisão, que desloca-se das mãos dos senhores feudais, das famílias reais, para os grandes empresários capitalistas. Como acusa Dewey:

“The oligarchy which now dominates is that of an economic class. It claims to rule, not in virtue of birth and hereditary status, but in virtue of ability in management and of the burden of social responsibilities which it carries, in virtue of the position which superior abilities have conferred upon it. (...) It may be argued that the democratic movement was essentially transitional. It marked the passage from feudal institutions to industrialism, and was coincident with transfer of power from landed proprietors, allied to churchly authorities, to captains of industry…”16 (Dewey, 1954:203-204)

2ª Movimento: Democratização por participação

O sentimento de falta de legitimidade do modelo de governo representativo vem acompanhado de uma nova tendência de transformação: a tendência democrática participativa. Alastram-se movimentos que lutam por experiências que efetivamente busquem garantir e ampliar a participação popular em governos democráticos. Experiências de Conselhos, Conferências, Orçamentos participativos, consultivos ou deliberativos, se apresentam como uma nova forma de

15 “O cenário público é crescentemente dominado por especialistas da mídia, especialistas em eleições e jornalistas, nos quais dificilmente se identifica uma reflexão de sociedade. Políticos em geral obtêm poder por causa dos seus talentos midiáticos, não porque eles se assemelham ou são próximos aos seus eleitores. A lacuna entre governo e sociedade, entre representantes e representados, parece estar se ampliando” – TLN.

16 “A oligarquia que agora domina é a da classe econômica. Ela reivindica governar, não em virtude de nascimento ou status hereditário, mas graças à habilidade no gerenciamento e ao peso das responsabilidades sociais que carrega, em função da posição que habilidades superiores lhe conferiram (...) Pode ser afirmado que o movimento democrático foi essencialmente transicional. Marcou a passagem das instituições feudais para o industrialismo, e foi coincidente com a transferência de poder dos proprietários de terra, aliados a autoridades eclesiásticas, a capitães de indústria...” – TLN.

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trazer o cidadão para a reflexão sobre as ações governamentais e de inseri-lo no processo de tomada de decisão.

Enquanto o primeiro movimento de aprofundamento democrático através do voto possuía um caráter quantitativo, de ampliar o número dos que interferem no Estado, o atual movimento defende uma bandeira mais qualitativa, dirigida ao aprimoramento das formas de influência da população na construção do Estado, na definição de políticas públicas, na priorização orçamentária. Procura-se criar espaços diferentes de participação efetiva e cotidiana na administração pública.

Busca-se, ainda, ampliar os espaços de debate e reflexão coletiva. Comprovou-se, empiricamente, a insuficiência do conhecimento detido por técnicos/especialistas para a correta definição das ações do governo. Deve-se, agora, ouvir as pessoas que vivem cada realidade, para que a partir dos seus conhecimentos e de sua experiência somados aos conhecimentos científicos/técnicos, sejam reconhecidas as reais necessidades coletivas e as políticas dirigidas ao seu atendimento. Como afirmou Dewey: “The man who wears the shoe knows best that it pinches and where it pinches, even if the expert shoemaker is the best judge of how the trouble is to be remedied.”17 (Dewey, 1954:207)

Como ainda ressaltou Santos, o debate e a reflexão coletivas são as bases indispensáveis para um processo democrático efetivo: “O código de procedimentos democráticos se apoia em algumas crenças, entre elas a de que, inexistindo a onisciência humana, o método mais indicado para aumentar a probabilidade de que se adote uma boa política vem a ser o confronto de opiniões e de argumentos” (Santos, 2007:8). O mesmo autor criticou a visão quantitativa da democracia, ou seja, de que o sufrágio universal seja suficiente para garantir um sistema democrático: “O senso comum compartilha com os ideólogos a ilusão de que o número assegura a qualidade de uma opinião, mas não há conexão necessária entre uma coisa e outra” (ibidem).

Segundo Leonardo Avritzer, o recente movimento de luta pela ampliação da participação política, teve origem em duas frentes: “os chamados novos movimentos sociais na Europa e Estados Unidos....”; e “os movimentos durante a democratização do leste europeu e da América Latina” (Avritzer, 2009: 6 – tradução livre nossa). Nos dois casos, os debates ligados à cidadania, à interferência popular nas ações governamentais encontram-se presentes.

Nesse contexto, a maior participação popular vem sendo levantada como bandeira por muitos movimentos sociais, apresentando-se como uma batalha contra a qual torna-se difícil a resistência por parte dos setores conservadores. Afinal, qual argumento utilizar para dizer que o povo não pode participar do governo?

Entretanto, surgem falácias acionadas em direção à redução da intensidade dessa participação: o povo não tem competência para discutir questões públicas mais amplas; os processos participativos são caros e demorados; os representantes têm a capacidade de identificar quais são as necessidades de seus representados; a complexidade da sociedade contemporânea inviabiliza processos democráticos participativos.

Benjamin Goldfrank analisou alguns casos de experiências participativas na América Latina, e traz à tona a discussão sobre a validade e os benefícios da participação para os governos e a

17 “O homem que usa o sapato sabe melhor se ele aperta e onde ele aperta, mesmo que o sapateiro seja o melhor juiz para dizer como o problema deve ser remediado” – TLN.

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população. O autor criticou os autores que alegam que maior participação popular levará a diversos obstáculos no que concerne à governabilidade. Afirmou que os autores que levantam essa questão

“… argue that too much participation leads to inefficiency, ungovernability, and citizen frustration. These thinkers believe that government should be the province of an educated elite, and that, as Huntington argued, a ‘surge of participatory democracy’ weakens government by overloading the system with demands and making it impossible to govern effectively”18 (Goldfrank, 1998:16).

Em um levantamento de pesquisas feitas sobre os efeitos de experiências de participação local em diversos países, Goldfrank destaca os diversos benefícios obtidos:

“They [os pesquisadores por ele estudados] found that decentralized participation in their cities yielded higher levels of government responsiveness, honesty, and legitimacy (or the public perception of these items), led to greater sense of community and tolerance among citizens, defused hostility among groups in the city; and did not create gridlock, increase conflict, introduce racial or economic biases into policymaking, or lead to frustration and disenchantment with government”19 (ibidem)

Mas, cabe destacar que mesmo alguns defensores da democracia representativa se dedicam a deixar claro que democracia representativa é diferente de democracia eleitoral, isto é, no modelo representativo devem ser diversos e variados os espaços de interferência da população no governo, não devendo a atuação cidadã estar limitada ao voto periódico.

Como afirmou Peruzzotti, defensora do modelo representativo: “The idea of representation as a particular type of bond forces us to establish a conceptual link between participation and representation. Participation should not be thought of as a threat nor as an alternative to representation but rather as a prerequisite of good representative government”20 (Peruzzotti, 2008:16).

Alguns autores afirmam que o modelo de democracia participativa deve substituir a democracia representativa, e outros afirmam que a democracia participativa deve complementar o modelo atual, que não dá conta das demandas sociais. Mas, independente da vertente considerada, discute-se hoje quais são as possibilidades de participação popular nos governos e quais são os benefícios para a resolução da crise do atual sistema político hegemônico.

Santos e Avritzer reconheceram duas formas de interação entre o atual modelo de democracia representativa e a crescente proposta democrática participativa: a coexistência, que

18 “... argumentam que muita participação leva à ineficiência, ingovernabilidade, e frustração dos cidadãos. Esses pensadores acreditam que o governo deveria será a província de uma elite educada, e que, como afirmou Huntington, uma ‘onda de democracia participativa’ enfraquece o governo por sobrecarregar o sistema com demandas e tornando impossível governar efetivamente” – TLN.

19 “Eles [os pesquisadores estudados] constataram que a participação descentralizada em suas cidades permitiu maiores níveis de sensibilidade, honestidade e legitimidade do governo (ou a percepção da população dessas questões), levou a um maior senso de comunidade e tolerância entre os cidadãos, neutralizou hostilidade entre grupos na cidade; e não gerou uma pane no sistema, não aumentou conflitos, não introduziu tendenciosidades raciais ou econômicas na definição de políticas, não levou à frustração ou desencantamento com o governo” – TLN.

20 “A idéia de representação como uma forma particular de vínculo nos força a estabelecer uma ligação conceitual entre participação e representação. Participação não deveria ser pensado como uma ameaça ou uma alternativa à representação mas preferencialmente como um pré-requisito de um bom governo representativo” – TLN.

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implica a convivência em diversos níveis e formas, “A democracia representativa em nível nacional (...) coexiste com a democracia participativa em nível local, acentuando determinadas características participativas já existentes em algumas democracias dos países centrais” (2005:75); e a complementaridade, numa articulação mais profunda, que “pressupõe o reconhecimento pelo governo de que o procedimentalismo participativo, as formas públicas de monitoramento dos governos e os processos de deliberação pública podem substituir parte do processo de representação e deliberação tais como concebidos no modelo hegemônico de democracia”.

Na prática, encontram-se as duas formas de articulação entre democracia representativa e democracia participativa, havendo, no entanto, predominância da coexistência, exatamente por esse tipo de relação representar uma menor transformação nas formas de reprodução do sistema político e, consequentemente, por ser mais facilmente aceito nos governos representativos tradicionais.

3.1.2 A Participação na Teoria Democrática

O papel da participação nas teorias da democracia

Há muito tempo, a participação é um ponto debatido pela teoria democrática. Oscilando entre as diferentes opiniões, desde os teóricos mais adeptos a sistemas participativos aos que defendem que a participação excessiva traz instabilidades ao sistema democrático, há um longo debate sobre como a população deveria interagir com os espaços de tomada de decisão.

Carole Pateman, em sua obra Participação e Teoria Democrática (1992), fez uma revisão de alguns autores que compõem o cerne da reflexão sobre a teoria democrática e analisa como esses autores tratam a participação.

A autora iniciou seu livro com uma análise da crítica de Joseph Schumpeter à denominada teoria clássica da democracia, formulada no livro Capitalismo, socialismo e democracia (1943). Segundo a autora, o ponto vital da teoria da democracia de Schumpeter é “a competição dos que potencialmente tomam as decisões pelo voto do povo”, sendo que a participação “não tem um papel especial ou central”. (Pateman, 1992:13-14).

A partir dessa análise, a autora selecionou os trabalhos mais recentes de quatro autores, Berelson, Dahl, Sartori e Eckstein, que possuem em Schumpeter uma referência e estão inseridos no que denomina de teoria contemporânea da democracia, e avaliando como a participação popular é considerada na construção teórica de democracia por esses autores.

Berelson, identicamente, não confere à participação um lugar de destaque em sua teoria democrática e “segundo esse ponto de vista, pode-se perceber que os altos níveis de participação e interesse são exigidos apenas de uma minoria de cidadãos e que, além disso, a apatia e o desinteresse da maioria cumprem papel importante na manutenção da estabilidade do sistema tomado como um todo” (idem:17).

Dahl defende a ampliação do número de minorias que influenciam nas decisões políticas, como forma de aprofundar a democracia. No entanto, afirma que os grupos de “condição socioeconômica baixa” apresentam com maior frequência posturas autoritárias. Portanto, o aumento da participação política levaria esses grupos ao centro do processo e “o consenso a

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respeito das normas pode declinar”, isto é, “um aumento da taxa de participação, portanto, poderia representar um perigo para a estabilidade do sistema democrático” (idem:20).

Com relação a Sartori, Pateman afirma que: “O medo de que a participação ativa da população no processo político leve direto ao totalitarismo permeia todo o discurso de Sartori. O povo, diz ele, deve ‘reagir’, ele não ‘age ; isto é, deve reagir às iniciativas e políticas das elites rivais.” (idem: 21).

Finalmente, analisando a concepção de Eckstein, a autora afirma que “A conclusão da teoria de Eckstein – que pode ser encarada como paradoxal, uma vez que se trata de uma teoria da democracia – é que, para um sistema democrático estável, a estrutura de autoridade do governo nacional não precisa ser, necessariamente, pelo menos ‘de modo puro’, democrática” (idem:24).

Construindo uma visão desse conjunto de autores, Pateman busca sistematizar alguns elementos que compõem a teoria contemporânea da democracia:

“Nessa teoria, a ‘democracia’ vincula-se a um método político ou uma série de arranjos institucionais a nível nacional. O elemento democrático característico do método é a competição entre os líderes (elite) pelos votos do povo, em eleições periódicas e livre. (...) A ‘igualdade política’, na teoria, refere-se ao sufrágio universal e à existência de igualdade de oportunidades de acesso aos canais de influência sobre os líderes. Finalmente, ‘participação’, no que diz respeito à maioria, constitui a participação na escolha daqueles que tomam as decisões. (...) São necessárias certas condições para conservar a estabilidade do sistema. O nível de participação da maioria não deveria crescer acima do mínimo necessário a fim de manter o método democrático (máquina eleitoral) funcionando.” (idem:24-25)

Em seguida, a autora analisou os teóricos que comporiam a denominada teoria clássica da democracia, cujos integrantes, entretanto, separa em dois grupos.

Primeiro, considera as obras de Bentham e James Mill que apresentam uma compreensão da participação como uma função de proteção dos cidadãos: “assegurava proteção aos interesses privados de cada cidadão (sendo o interesse universal uma mera soma de interesses individuais)” (idem:32). Defenderiam, assim, a participação popular através do voto e nos espaços de debate por postularem que as “classes numerosas” defendem o interesse universal, o que permite reconhecer o caráter democrático de suas teorias. No entanto, esses autores possuem uma visão de participação muito próxima da dos teóricos da teoria contemporânea da democracia, destacando-a centralmente como um dispositivo de proteção.

Por outro lado, Pateman colocou em outra categoria John Stuart Mill e Rousseau. Para esses autores, a participação popular nos processos de tomada de decisão possui uma função mais abrangente, surgindo como prática fundamental para “o estabelecimento e manutenção do Estado democrático” (idem:33)

A autora reconhece em Rousseau o “teórico por excelência da participação”, demonstrando que, em sua teoria, a participação não se limita a um papel protetor. Tem um potencial de transformação sobre as pessoas que participam, alimentando e fortalecendo o sistema democrático vigente e também garantindo uma “inter-relação contínua entre o funcionamento das instituições e as qualidades e atitudes psicológicas dos indivíduos que interagem dentro delas” (idem: 35).

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Na visão de Rousseau, a participação, enquanto forma de garantir a democracia do Estado, acontece na tomada de decisão, e ele concorda que ela também possui uma função de proteção. No entanto, “a função central da participação na teoria de Rousseau é educativa, considerando-se o termo ‘educação’ em seu sentido mais amplo” (idem:38).

Seguindo a mesma linha, Ben Goldfrank fez um voo sobre as diferentes formas contemporâneas de se ver a participação, identificando três correntes políticas. O autor articulou a questão da participação a um movimento recente de descentralização administrativa e identifica a existência de hipóteses em conflito na análise da relação entre esses dois aspectos. Foram identificadas as seguintes correntes: Desenvolvimentistas, Democratizantes, Centralistas (Goldfrank, 1998:8).

Para o primeiro grupo, segundo o autor (ibidem), a participação está ligada a uma representação dos cidadãos como fornecedores de informações para que especialistas possam melhorar o desenho das políticas públicas. Não há, portanto, uma compreensão ou a defesa da participação popular enquanto forma de compartilhamento do processo de tomada de decisão, enquanto possibilidade de dar maior poder de controle e interferência à população, mas sim a percepção de que os cidadãos podem contribuir fornecendo dados para o aprimoramento do diagnóstico da situação, para que a mesma minoria decida com base em uma análise mais próxima da realidade.

Estudiosos com uma abordagem mais democratizante reconhecem a descentralização administrativa como uma oportunidade de ampliar a participação popular no Estado. A leitura da participação não está restrita ao fornecimento de informações, mas é destacada principalmente como possibilidade de interferência direta na tomada de decisão, estando a população integrada ao processo de definição do desenho, da implementação e do controle das políticas. (idem:9)

Os centralistas, finalmente, não percebem benefícios democráticos na descentralização. Criticam a ideia de que os níveis inferiores de governo (prefeituras) estão mais próximos da população, constituindo esferas mais apropriadas ao encorajamento da participação. Destacam o risco de que as elites locais aumentem seu domínio com a descentralização administrativa (ibidem).

Diante da longa reflexão já construída acerca da participação popular, parece ser relevante, no atual período histórico, o aprofundamento metodológico dessa reflexão. Tem sido difundidas experiências que conclamam a participação popular e se autodenominam de democracia participativa. No entanto, considerando o movimento inicial de defesa da participação enquanto princípio democratizante, qual tipo de participação estamos defendendo? Quais são as condições que podem transformar um espaço participativo de tomada de decisão em um efetivo momento de aprofundamento da democracia, de fortalecimento da democracia?

Necessidade de aprofundamento do conceito participação

Domina o ambiente político hegemônico atual o discurso sobre a necessidade de ampliação da participação. O que, por um lado, pode ser reconhecido como uma conquista, por outro, abre espaço para uma utilização descontextualizada e/ou despolitizada do conceito de participação. A disseminação acrítica do conceito traz à tona, portanto, a necessidade de um aprofundamento do debate em torno do que pode ser reconhecido como efetiva participação.

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Quando a bandeira política da participação foi levantada por movimentos sociais que lutam pela transformação do modelo democrático vigente, a participação estava atrelada a um processo amplo de construção de um espaço para a formação de cidadãos. Os processos decisórios participativos teriam objetivos mais amplos do que a simples tomada de decisão acerca de uma política.

Conforme colocou Poggiese (2009), os processos participativos são como “obras multipropósito”, e devem ter como produtos:

− a consolidação de estratégias de participação cidadã;

− a geração e troca de conhecimento entre os participantes;

− a conformação de um tecido social que fortaleça a construção coletiva das políticas públicas, estabelecendo laços de amizade, confiança e solidariedade;

− a capacitação social dos participantes, possibilitando a reprodução da cultura/lógica participativa;

− a solução de um ou mais problemas do grupo social envolvido.

Além disso, a participação efetiva da população exige precondições indispensáveis, que se não forem consideradas representarão um entrave a qualquer tentativa democratizante, conforme afirmou Boaventura:

"Por ejemplo, tres condiciones son fundamentales para poder participar: tienes que tener su supervivencia garantizada, porque si estás muriendo de hambre no vas a participar; tienes que tener un mínimo de libertad para que no haya una amenaza cuando vas a votar; y finalmente tienes que tener acesso a la información." (SANTOS, B.S., 2006:79)

Portanto, para que as experiências de democracia participativa possam ter os efeitos esperados, deve haver uma reflexão prévia e rigorosa sobre o tipo de participação, diante da ampla gama de concepções possíveis de participação. É preciso aprofundar o conceito participação política, ou seja, o tipo de participação necessário em um espaço público de tomada de decisão, na maioria das vezes governamental. Como conclama Peruzzoti: “A comprehensive theory of representation cannot be built by turning its back to a participation theory. Nor can be constructed around a single model of participation. The concept of participation needs to be disaggregated in order to be reconstructed within the frame of mediated politics”21 (Peruzzotti, 2008: 38).

Com a disseminação do princípio da participação, há o risco cada vez maior de que o conceito seja utilizado como forma de legitimação de práticas não democráticas. Um exemplo disso são as audiências públicas feitas pelas empresas de petróleo na Bacia de Campos, RJ, onde a participação, na maioria das vezes, encontra-se limitada à escuta da exposição feita por técnicos/engenheiros, que apresentam gráficos, estatísticas, mapas. A população é motivada a participar em função dos lanches servidos e brindes distribuídos no evento (BRONZ, 2005; WALTER, 2004).

21 “Uma teoria compreensiva da representação não pode ser elaborada virando as costas para a teoria da participação. Nem pode ser construída em torno de um modelo único de participação. O conceito de participação precisa ser desagregado para ser reconstruído no âmbito das políticas mediadas” – TLN.

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Santos e Avritzer analisaram resultados obtidos em estudos de caso, realizados em diversos países, sobre possíveis espaços de democracia participativa (Santos, 2005), identificando, em muitos deles, como em Portugal, Moçambique ou Brasil, casos em que a bandeira da participação serve apenas para reforçar a dominação dos atores hegemônicos (2005:60).

Da mesma forma, conforme antes dito, diversos organismos internacionais assumiram a participação como condição para o financiamento de políticas e projetos. FMI, Banco Mundial condicionam a aprovação de financiamentos à existência de participação popular. No entanto, questiona-se se o tipo de participação desenvolvido realmente corresponde ao que é defendido na base dos movimentos pró-participação.

André Borges, em estudo sobre a agenda do Banco Mundial, destaca o uso desconfigurado da participação:

“... vale ressaltar que a retórica do Banco Mundial sobre descentralização e participação se caracteriza pelo uso de metáforas de mercado e de conceitos econômicos. A descentralização é descrita como uma forma de “adequar a oferta de serviços às preferências individuais”, e o empowerment, como a habilitação dos cidadãos para “demandar e garantir a boa performance”. Essa abordagem restringe o significado e a amplitude da participação dos cidadãos nesta abordagem de modo a não afetar a racionalidade dos princípios de mercado introduzidos pelas reformas técnicas do Banco – ajuste fiscal, desregulamentação de mercados e privatização, uma vez que tais princípios são considerados tão inquestionáveis quanto a lei da gravidade” (BORGES, 2003: 133-134).

Carole Pateman também destaca esse risco de perda dos princípios básicos de uma participação real:

“O uso generalizado do termo [participação] nos meios de comunicação de massa parecia indicar que qualquer conteúdo preciso ou significativo praticamente desaparecera; ‘participação’ era empregada por diferentes pessoas para se referirem a uma grande variedade de situações.(...) .. a recente intensificação dos movimentos em prol de uma participação maior coloca uma questão crucial para a teoria política: qual o lugar da ‘participação’ numa teoria da democracia moderna e viável?” (Pateman, 1992:9).

Nessa mesma direção, Avritzer defendeu a necessidade de aprofundamento da reflexão sobre a participação, os espaços participativos e seus impactos reais: “participation is being sponsored today by many actors with different purposes: for some of them participation means empowering social actors; for others it means sharing control over decision-making processes or implementing a new conception of democracy. A common thread, however, is that none of the actors has yet developed a way to evaluate whether participation leads to its presumed results” (Avritzer, 2009: 2-3). O autor reforça, ainda, a necessidade da reflexão teórica da participação: “none of the authors provides a comprehensive theory of participation or proposes a theory of participatory institutions” (Avritzer, 2009:3).

Na ausência de aprofundamento teórico, a utilização instrumental e não democrática da participação pode ser articulada a uma visão, como entre os autores que Pateman denominou de teóricos contemporâneos da democracia, em que a participação massiva da população na política é algo que pode gerar instabilidade na democracia vigente atualmente. Segundo esses autores, “a visão ‘clássica’ do homem democrático constitui uma ilusão sem fundamento e que um aumento da

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participação política dos atuais não-participantes poderia abalar a estabilidade do sistema democrático” (Pateman, 1992:11). “Em suma, a participação limitada e a apatia têm uma função positiva no conjunto do sistema ao amortecer o choque das discordâncias, dos ajustes, das mudanças” (idem:16).

Também Bishin, em seu livro Tirania da Minoria, demonstra como o desinteresse e o distanciamento do cidadão comum do campo político possibilitam que uma minoria (intensa, como ele classifica) torne-se responsável pela tomada de decisão acerca das políticas públicas, inclusive, por vezes, selecionando opções contrárias ao desejo majoritário. O autor afirma que

“An intense minority, whether a special-interest or citizens’ group, can exploit the apathy and ignorance of the average citizen to pursue policy that is contrary to the majority’s interest. Indeed, political scientists have documented how politicians have become expert at obscuring the nature of policy and its traceability to – and, hence, their responsibility for – policy that might have adverse consequences or be wildly unpopular (e.g., Arnold 1990)”22 (Bishin, 2009:158)

Diante dessa complexidade, entendo que é condição sine qua non, para a construção de um caminho para a real democratização do Estado, um aprofundamento da reflexão sobre as formas de participação que aparecem como reais alternativas democráticas ao modelo de governo representativo ocidental tradicional. Nessa reflexão, destaco a importância do debate acerca da metodologia da participação.

Como declarou John Dewey, no seu trabalho The Public and its Problems (publicado em espanhol sob o título La opinión pública e sus problemas), “The essential need, in other words, is the improvement of the methods and conditions of debate, discussion and persuasion. That is the problem of the public”23 (Dewey, 1954:208) [grifo do autor].

Nun defendeu a ampliação democrática como método para a formulação de políticas e a tomada de decisões no âmbito estatal, mas destaca a importância que deve ser atribuída à reflexão da democracia “como una forma de vida, como un modo cotidiano de relación entre hombres y mujeres que orienta y que regula al conjunto de las actividades de una comunidad” (1989:61).

O autor contrasta, com base em Burdeau, o que seria conhecido por democracia governada (“gobernada”) e democracia governante (“gobernante”):

“En el primer caso, la participación popular tiene reservado un papel secundario y basicamente defensivo: de manera periódica, la ley convoca al pueblo para que decida cuál de las minorías potencialmente dirigentes debe gobernarlo; y, una vez cumplido este acto, lo disuelve como tal (...) Diferente es el caso de la democracia gobernante, que busca maximizar la participación directa del pueblo en la formulación de políticas y en la toma de decisiones y no exclusivamente en la elección de quienes van a tener a su cargo estas tareas” (ibidem).

Independente da perspectiva teórica, o que parece ser uma conclusão quase unânime entre os que defendem estratégias democráticas alternativas é que os processos que promovam a real

22 “Uma minoria intensa, quer seja um grupo de interesse especial ou de cidadãos, pode explorar a apatia e ignorância do cidadão comum para perseguir políticas contrárias ao interesse da maioria. De fato, cientistas políticos documentaram como políticos tornaram-se especialistas em obscurecer a natureza das políticas e sua trajetória para – e, consequentemente, sua responsabilidade por – políticas que podem ter consequências adversas ou ser extremamente impopulares.” – TLN.

23 “A necessidade essencial, em outras palavras, é a melhoria dos métodos e condições de debate, discussão e persuasão. Esse é o problema do público” – TLN.

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participação da sociedade civil, com sua consequente formação e crescimento político, tendem a entrar diretamente em choque com a atual classe dominante nos países capitalistas.

Grüner (1999:258) nos lembra da teoria de Toni Negri, demonstra a natureza desse conflito entre participação popular e elite política, com base em dois conceitos de poder. O poder constituinte (“constituyente”) das massas, “que se encuentra en el origen fundacional de toda polis de la modernidad”, e o poder constituído, “que nada quiere saber de ese origen, puesto que tal reconocimiento conduciría a la posibilidad de un permanente proceso de re-fundación, subersivo de la posibilidad misma de la dominación”.

Segundo Nun (1989:129), há, no modelo de democracia hegemônico, um “confisco contínuo” dos possíveis espaços de participação, sendo eles utilizados para reforçar o poder das elites que já governam. O autor destaca a afirmação de Sartori, que diz, sem rodeios (“sin ambages”), que “una vez establecido un sistema democrático es importante que el ideal democrático mismo se minimice; y ello porque, más allá del voto, la participación popular se vuelve una amenaza para la estabilidad del régimen” (idem:107)

Portanto, defendemos aqui a necessidade de construir uma maior compreensão e de alargar a reflexão das transformações na experiência política orientadas pelo ideário de democracia participativa na América Latina.

3.2 Casos de Democracia ParticipativaBuscar a aproximação de Sociedade e Estado é um dos grandes desafios da política

contemporânea, ainda mais considerando a complexidade do mundo atual: Estados com territórios enormes, por vezes ultramarinos, com populações que passam de um bilhão de pessoas; grupos com diferentes origens étnicas, geográficas e culturais que dividem o mesmo território político; presença de empresas privadas multinacionais que interferem diretamente, e descontroladamente, na economia, na cultura e na política; conflitos de interesse entre população, elites políticas locais, elites políticas nacionais, elites econômicas mundiais.

Identificam-se tentativas, denominadas de democracia participativa, de espaços de participação popular que lutam por essa aproximação. Por outro lado, são percebidas práticas que se vendem como democratizantes, mas que se aproveitam do discurso da participação para conquistar força política, recursos, sem realmente promover mudanças que amenizem a crise do modelo representativo atual, vide exemplo do Banco Mundial citado anteriormente.

Portanto, proponho o aprofundamento da reflexão metodológica da participação, conservando-a uma práxis que estabeleça uma troca direta e constante com a realidade. Trata-se de uma análise da práxis da democracia participativa, que examine as possibilidades reais de democratização trazidas pela participação.

Não pretendo construir instrumentos analíticos que, arbitrariamente e de forma descontextualizada, definam se um processo é participativo ou não; mas, é inevitável avançarmos no debate do conceito aceito de participação. Os diferentes contextos históricopolíticos e realidades socioeconômicas e culturais invalidam qualquer tentativa de padronização e criação de modelos, ainda mais quando tratamos de processos que contam com intensa interferência das populações locais.

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Para tanto, é importante fazer uma análise das experiências recentes que compõem o movimento de democratização do Estado através da participação. É necessário criar categorias de análise que permitam identificar em que sentido os processos participativos têm representado uma mudança real no sistema político vigente. Se a luta por espaços democráticos participativos encampa uma série de mudanças profundas na esfera política, faz-se mister aprofundar a reflexão do conceito “participação”, para que não se afirme a percepção vazia e superficial do conceito de participação e não se apague seu ímpeto transformador inicial, como ocorreu com o conceito de democracia.

Immanuel Wallerstein (apud Santos & Avritzer, 2005:39) questionou como a democracia transformou-se de “uma aspiração revolucionária no século XIX a um slogan adotado universalmente mas vazio de conteúdo no século XX”. Da mesma forma, é preciso resistir ao risco de que a participação popular no Estado se transforme de uma aspiração revolucionária no século XX em um slogan universal e inócuo no século XXI.

Ainda é incipiente a bibliografia que articula experiências de democracia participativa em desenvolvimento na América Latina. Boaventura de Souza Santos, no livro Democratizar a Democracia, apresenta numerosas experiências, relatadas por diferentes autores, que nem sempre expressam uma participação efetivamente democrática.

Benjamim Goldfrank também aproxima-se dessa abordagem quando, a partir de uma mesma base analítica, compara casos diferentes de participação. O autor utiliza três experiências em sua análise: Montevidéu, Caracas e Porto Alegre. Definindo uma série de critérios de sucesso para as experiências participativas, busca identificar quais experiências são mais ou menos exitosas, tentando analisar os seus impactos políticos. Portanto, o objetivo de Goldfrank é fazer uma avaliação dos impactos dessas experiências, mais do que tentar compreender os processos que possibilitaram sua concretização e continuidade .

Sem querer afirmar a existência de modelos ideais de democracia participativa, o objetivo maior de estudar três casos diferentes é tentar identificar características que facilitaram ou que dificultaram a sua concretização. Não é o intuito do projeto criar critérios que definam, de forma descontextualizada, se um processo é mais participativo que o outro, mas analisar essas experiências de forma a encontrar os elementos que foram fundamentais em sua gênese e para a sua continuidade.

Como afirmou José Nun, não há um modelo a ser seguido para a construção de uma sociedade mais justa. Tanto o modelo de democracia a ser implantado como o caminho a ser seguido serão diferentes de acordo com as realidades históricas, políticas e culturais de cada país ou localidade. Nesse sentido, o autor afirmou:

“... nunca hubo un modelo de revolución burguesa, desde que el desarrollo del capitalismo ha tomado formas marcadamente diferentes según los países. Y si no ha habido uniformidad en los modos de dominación, tampoco ha podido haberla en la manera en que se fueron configurando en cada sitio los múltiples niveles de lucha contra esa dominación.” (1989:19)

Portanto, para que seja possível fazer uma análise articulada das experiências participativas, torna-se fundamental a compreensão dos contextos histórico-político-econômicos-culturais.

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Essa análise dos casos não busca, identicamente, assumir como parâmetro ou modelo um ou outro caso, um ou outro processo. No entanto, há o objetivo de valorizar essas experiências enquanto possibilidades reais de transformação. Por vezes, há uma tendência dos setores de esquerda de desqualificar quaisquer tentativas de mudança que, em algum momento ou em algum aspecto, não sejam a construção abstrata ideal de um processo de transformação. Como se diz na linguagem popular, é a mania de jogar fora a criança junto com a água suja do banho. A concepção deste projeto é oposta. Mesmo sabendo que há problemas, idiossincrasias, contradições, acredito ser importante estudar, analisar, compreender os caminhos alternativos que se tem tentado construir para que sejam alcançadas propostas de transformação próximas da realidade.

Outra postura comum nas correntes de esquerda é o descaso com experiências de âmbito local e setorial, que não representam prontamente uma mudança estrutural da sociedade. Nun (1989:55) criticou o que denomina de etapismo imobilizador, que seria uma postura de pessoas que aspiram chegar ao socialismo mas pensam que a consolidação atual de um sistema democrático, em oposição ao regime autoritário militar anterior, exige que se adie sine die essa aspiração. Para o autor argentino, o processo de redemocratização pelo qual passaram/passam os países latinoamericanos já conforma um campo fértil para iniciar a inserção da lógica democrática socialista nas práticas sociais.

Nun afirma que não se pode esperar acontecer “el gran cambio revolucionario” para que se comece a construir outra sociedade, outra democracia. Para ele, inclusive, muitos movimentos dos países do sul já estão rompendo o violento silêncio imposto pelas elites dominantes e “pedindo a palavra” (idem:22). Sua posição é que, mesmo que haja contradições e imperfeições nas experiências democráticas alternativas, é a partir da prática que se caminha para uma mudança no sistema político vigente, como mostram este trecho:

“es indudable que los actuales esfuerzos democratizantes se ensamblan con elementos autoritarios que redefinen su significado; pero sería tan ingenuo empeñarse en idealizar estos procesos de transición como prematuro sostener que las únicas alternativas actualmente disponibles para estos países son la dictadura o la revolución violenta” (idem:104)

Ademais, a experiência desses espaços participativos, mesmo que careçam de aprimoramento para que esteja garantida a sua efetividade política, é valiosa no sentido de formação da consciência política dos seus participantes. Nun reforça essa visão em duas afirmações apoiadas no marxismo:

“... el pensamiento de Marx coincide con el de Platón: para ambos, la auténtica garantía de una sociedad justa no resulta tanto de un sistema institucional específico como de la educación política de quienes la formen” (1989:13);

“... para Marx la conciencia es siempre un emergente de la praxis, de la actividad social de transformación del mundo” (idem:29)

Macciochi, em A favor de Gramsci, recuperou elementos centrais da teoria política gramsciana. Pela sua experiência pessoal, a autora se utiliza dessa teoria para analisar a Revolução Chinesa, liderada por Mao Tsé-Tung. Macciochi ressaltou a importância da educação cultural e política da população como condição sine qua non para a concretização das transformações sociais, no sentido da defesa realizada por Gramsci da formação dos intelectuais orgânicos da classe proletária:

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“A conquista histórica de Mao, enquanto revolucionário, foi haver tentado estabelecer instituições coletivas de base, estreitamente ligadas ao contexto do povoado, mas igualmente caracterizadas por uma transformação das relações de classe” (Macciocchi, 1977:168);

“pela primeira vez desde o surgimento de um Estado socialista a revolução irrompeu na superestrutura, criando centenas de milhões de seus ‘próprios’ intelectuais, isto é, homens com uma visão do mundo totalmente nova, homens que trabalham com a cabeça e com os braços, afastando assim qualquer risco de formação de uma nova casta burocrática ou privilegiada” (idem:170).

Nun ainda se posiciona mais à frente quando esclarece que a busca por uma democracia governante pode evitar que uma “utopia concreta” se converta em uma “utopia abstrata”. Assim, seria preciso considerar que

“la educación democrática no puede ser un dato previo a la participación sino su consecuencia: sólo a través de una participación real, entendida en sentido amplio, es posible que el pueblo haga el aprendizaje efectivo de su autonomía, gane confianza en sus fuerzas y adquiera control sobre el curso de su vida y de las circunstancias que la condicionan (...) ... hay una relación directa entre la participación y el sentido de la propia eficacia política” (Nun, 1989:61)

Macciocchi (1977:182) também destaca a necessidade da revolução nas ideias, nas práticas e na mente como pré-requisito para que ocorra uma mudança estrutural real:

“Em última análise, toda a concepção gramsciana do partido e do Estado revolucionário conduz fatalmente a essa conclusão: os problemas da hegemonia-ditadura permanecem sem solução no contexto de uma democracia proletária, enquanto o partido que se apossa ou que se apossou do poder não houver cumprido sua missão, que consiste em realizar a ‘revolução intelectual e moral’ da maioria das massas”.

Portanto, além da própria efetividade prática dos processos participativos, torna-se importante a análise da formação política dos participantes.

Nesse sentido, será importante para minha pesquisa a compreensão dos métodos utilizados nos processos participativos de tomadas de decisão. Para uma participação efetiva e qualificada das pessoas não é suficiente que sejam todas colocados em um espaço e discutam. Uma preparação anterior é fundamental. A compreensão do processos, as possibilidade de participação e interferência, o conhecimento da realidade para poder intervir são condições necessárias para que os participantes de uma tomada de decisão possam influenciar realmente. Além disso, é essencial o uso de métodos que permitam o direito de voz a todos participantes, que não polarizem a discussão ou mascarem conflitos.

Portanto, nas experiências da democracia participativa, precisarei analisar esse desenvolvimento metodológico que caminha junto à execução das ações.

Estudarei na minha pesquisa de tese três casos. Dois já estão definidos: os Consejos Comunales em Caracas, Venezuela; a experiência de governo participativo consolidada em Cotacachi, norte do Equador.

O terceiro será um caso brasileiro, que será definido em momento mais adequado com base em duas pesquisas. Primeiro, na pesquisa sobre poder local no Brasil. Tendo como base uma revisão bibliográfica e a entrevista com estudiosos e assessores de experiências afins à democracia participativa, pretendo passar pela reflexão sobre a descentralização político-administrativa, as novas institucionalidades democráticas locais, as experimentações democráticas. Desejo conhecer melhor as diversas práticas de novas experimentações políticas no país para que, diante de um

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leque mais amplo de possibilidades, eu possa definir qual o caso brasileiro mais adequado e concernente para esta pesquisa.

Além disso, o conhecimento aprofundado dos casos a serem estudados na Venezuela e Equador será um importante subsídio para contribuir na escolha do caso brasileiro, que deve possuir características próximas dos outros dois. Busco, dessa forma, contrapor-me à prática comum de partir da realidade local que já existe aqui para fazer a análise. Compreendendo detalhadamente duas experiências que configuram-se como exitosas e contínuas em dois países da América Latina, acredito que poderei qualificar melhor minha análise sobre a prática da democracia participativa no Brasil para, aí sim, definir o(s) caso(s) a serem pesquisados aqui, assim como a base analítica que será utilizada nesse estudo.

A seguir, faço uma breve apresentação dos dois casos escolhidos.

O caso dos Consejos Comunales, na Venezuela, possui maior detalhamento e reflexão por ter sido extraído de um trabalho de disciplina em que pude aprofundar o assunto. Como ainda não tive a oportunidade de desenvolver uma pesquisa bibliográfica sobre o caso de Cotacachi, faço uma sucinta apresentação do caso utilizando como referência única um texto de Santiago Ortiz.

3.2.1 Venezuela: os Consejos Comunales

História recente da participação política na Venezuela

Desde o início do século XX até hoje, o petróleo foi o principal responsável pela receita do Estado venezuelano. Com esse recurso, consolida-se a partir de 1958, quando se instaura o regime do Ponto Fixo (Punto Fijo), um processo de desenvolvimento estável, com forte investimento em indústrias básicas, infra-estrutura, educação e saúde, num modelo caracterizado por Lander (2007) como socialdemocrata e desenvolvimentista. A alta renda advinda do petróleo possibilitava a manutenção, pelo Estado, de uma sociedade com condições de vida em constante melhoria. O autor (2007:67) alertou para a complexidade gerada por essa centralidade estatal:

“Esta centralidad del Estado tiene efectos ambíguos desde el punto de vista de la conformación de una cultura política democrática. Si bien, por un lado, limita la autonomia de la sociedad frente al Estado, por outra parte va consolidando uma cultura de derechos entre amplios sectores de la población que opera como barrera defensiva cuando se inician, años después, las reformas neoliberales”

Mais tarde, com a crise de petróleo e a onda neoliberal que passou a vigorar a partir da década de 1980, foi sendo reduzida a capacidade do Estado de atender às demandas formuladas pela população. Em resposta à queda de representatividade dos principais partidos políticos de então (Acción Democrática e o partido cristão COPEI) são instituídas, em 1984, mudanças que promovem uma descentralização político-administrativa, entre elas a eleição por voto universal, secreto e direto de governadores e prefeitos (antes os mesmos eram indicados pelo presidente).

Inicia-se um processo de redução do papel do Estado na economia, com a privatização de indústrias de setores estratégicos (como o de comunicação) e a abertura do setor petrolífero ao capital estrangeiro. Aderindo à diretriz do Estado mínimo, são diminuídos os gastos sociais e os investimentos em educação e saúde. Essas reformas aprofundaram a desigualdade e a exclusão sociais e a crise política, tendo como ponto nevrálgico o Caracazo, levante popular ocorrido em 1989 em oposição às medidas neoliberais, que representa o primeiro aparecimento político de

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Hugo Chávez (Lander, 2007:68). López Maya (2006) destacou a importância desse primeiro levante da história política contemporânea da Venezuela:

“El El gobierno de Chávez es mucho más que el gobierno y mucho más que una crisis económica y un colapso de un sistema de partidos. Es el resultado de la gente que salió a la calle desde 1989 con el Caracazo y que todavía no regresa a sus casas, tratando de construir el cambio social en Venezuela.”

Depois de um golpe fracassado para depor o presidente Carlos Andrés Pérez, em 1982, Hugo Chávez, fortalecido pela situação de extrema pobreza e de instabilidade política do país, é eleito presidente em 1998. O governo Chávez começa mudanças significativas na estrutura do país, baseadas, através do macro processo denominado movimento bolivariano, em propostas particularmente inovadoras no meio político.

“Los espacios abiertos por el gobierno de Hugo Chávez desde 1999 para impulsar La participación popular en la gestión pública, constituyen parte central de su proyecto nacional revolucionario. Entre 1999 y 2007, período del primer mandato presidencial, estuvieron contenidas en lo que se identificó como el proyecto ‘bolivariano’ o de democracia ‘participativa y protagónica’. Más recientemente se inscriben en la idea del ‘socialismo del siglo XXI’ que el Presidente viene impulsando como orientación de su segundo gobierno” (López Maya, 2008:1)

O projeto de democracia do Governo Chávez

Como relatou López Maya (2008:1), as inovações participativas começaram a ganhar corpo na Venezuela ainda no início da década de 1990, em nível local e regional, por iniciativa de alguns governos de esquerda, em resposta à crise do sistema político venezuelano e da deterioração dos serviços públicos nas áreas urbanas do país. No entanto, esse cenário de transformação da estrutura política venezuelana transforma-se em um projeto nacional com a vitória de Chávez.

Em 1999, é promulgada a Constitución de la República Bolivariana de Venezuela, em que são questionados os limites do modelo da democracia representativa e são introduzidas diversas modalidades de participação que buscam o aprofundamento da democracia, mas sem substituir as instâncias representativas. Além do direito ao sufrágio universal, os cidadãos conquistam, na Constituição, o direito à participação no processo de “formación, ejecución, y control de la gestión pública” (López Maya, 2008:8).

A autora afirmou que, o projeto bolivariano, na sua busca pelo aprofundamento da democracia, tem como objetivos principais: propiciar relações mais próximas e horizontais entre Estado e sociedade e estimular a articulação de distintos conhecimentos sobre as questões relacionadas aos problemas dos serviços urbanos, possibilitando um diagnóstico mais preciso dos problemas sociais e uma construção mais adequada das soluções (López Maya, 2008:15).

Lander (2007:71), por outro lado, afirma que as iniciativas de criação de espaços participativos na gestão local são reforçadas pela situação em que se encontravam as estruturas desse nível de governo, que, num processo de desvalorização, apresentavam baixos salários, pouco prestígio, muita corrupção, formação profissional limitada, estando fortemente contaminadas por práticas clientelistas. O autor dá o exemplo da experiência das missões para políticas sociais, originadas a partir do projeto Bairro Adentro, que ofereciam um atendimento de saúde preventivo nas comunidades, em contraposição ao modelo curativo-hospitalar existente. As principais virtudes das missões eram a sua capacidade de sobrepor os obstáculos burocráticos para a execução das

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ações e o fato de promoverem processos organizativos, nas comunidades, relacionadas ao seu planejamento e execução.

Foram diversos os espaços democráticos fortalecidos ou criados ao longo do primeiro governo (1999-2007) de Chávez. López Maya (2008) destaca algumas experiências participativas como:

1 Mesa Técnica de Água (MTA): grupo técnico de trabalho que envolve funcionários do governo municipal, técnicos e pessoas da comunidade com o objetivo de resolver os problemas de acesso à água potável. Foi originado em iniciativas locais no período pré-chavista e que, a partir de 1999, ganhou o estímulo da empresa pública de fornecimento de água Hidrocapital;

2 Organización Comunitaria Autogestionaria (OCA): inspirada nas experiências de consórcios sociais anteriores, as OCAs são um espaço de gestão territorial com o objetivo de promover a revitalização das comunidades. São geridas pela comunidade e recebem recursos públicos com os quais contratam apoio técnico e realizam melhorias no espaço físico local;

3 Comités de Tierra Urbana (CTU): surgiu com o início do processo de regularização da propriedade nos bairros pobres, em 2002, mas seu fortalecimento se deu independente da ação do governo, em função da crise política que se deu no período seguinte. Esses comitês, que tinham uma abrangência não maior que 200 famílias, buscavam reconstruir a história da comunidade e elaborar mapas com a representação de seu território;

4 Círculos Bolivarianos (CB): criados por Chávez em 2000, tinham o objetivo de organizar o movimento popular de apoio ao presidente e eram dedicados ao estímulo à organização e à participação popular, levando informação sobre os programas sociais do governo às comunidades. Tiveram papel importante entre 2002 e 2004, como fontes de apoio a Chávez no momento de crise e golpe contra o governo bolivariano. Depois, enfraqueceram-se.

Em sua pesquisa com diversas lideranças participantes desses espaços, a autora ressalta alguns obstáculos para a disseminação dos valores democráticos propostos, tais como: a participação escassa da grande maioria da população, havendo uma concentração do poder centralização sempre nos mesmos líderes, em geral porque as pessoas ainda desconfiam das iniciativas governamentais, ou pelo proveito privado que algumas lideranças tiram desses espaços; a falta de tempo e de remuneração para o trabalho comunitário; a vinculação partidária que alguns desses espaços adquirem.

No início de 2006, Chávez institucionalizou um novo espaço de participação popular: os Consejos Comunales (CC). Os CC foram fortemente difundidos, e no final do ano já eram considerados pelo presidente, quando já reeleito para o mandato 2007-2013, como um dos cinco motores para a transformação do país a caminho do socialismo do século XXI24 (Lander, 2007:78).

Os Conselhos Comunais – Consejos Comunales

A Ley de Consejos Comunales foi institucionalizada em abril de 2006, e define os CC como

24 Lander (2007:78) elenca os cinco motores ressaltados por Chávez para a transformação: “la Ley

Habilitante; la reforma socialista de la Constitución; la educación popular; uma ‘nueva geometria del poder’; y

‘la explosión revolucionaria del poder comunal, los Consejos Comunales’”.

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“instancias de participación, articulación e integración entre las diversas organizaciones comunitárias, grupos sociales y los ciudadanos y ciudadanas, que permiten al pueblo organizado ejercer directamente la gestión de las políticas públicas y proyectos orientados a responder a las necesidades y aspiraciones de una sociedad de equidad y justicia social” (apud López Maya, 2008:24)

Portanto, os CC foram espaços criados a partir de uma iniciativa governamental de mobilização de pequenos grupos locais, com uma abrangência máxima de 400 famílias (de 200 a 400 famílias nas cidades, a partir de 20 na área rural e 10 nas comunidades indígenas), com o intuito de inserir a população na gestão das políticas de cada local. Os conselhos, ao seguirem os passos de formalização definidos na lei, dão acesso a recursos públicos para serem investidos nas localidades. Os CC precisam ser cadastrados na Comisión Local Presidencial del Poder Popular, vinculada ao governo federal.

Na mesma lei dos CC, foi criado um Fondo Nacional de los Consejos Comunales, cujos diretores são nomeados pelo Presidente da República e que busca financiar projetos comunitários, sociais e produtivos.

Para López Maya (2008), a implementação dos conselhos é reflexo de uma recentralização do poder iniciada por Chávez. Segundo a autora, apesar da participação popular, os CC estão conceitualmente pensados como parte do Estado, com plena dependência da Presidência da República. Como ressaltou Lander (2007:77):

“Los Consejos Comunales están claramente concebidos como un by pass de los niveles estaduales y municipales, y el establecimiento de una institucionalidad paralela que, sin la mediación de esas instancias del Estado, establece una relación directa entre la organización en el ámbito comunitario (los Consejos Comunales) y la Presidencia de la Republica”.

A formulação dos CC foi incluída na reforma constitucional proposta pelo Presidente em 2007. Entrariam na Constituição como parte dos espaços de afirmação do Poder Popular, estabelecendo uma clara competição com a divisão político-administrativa tradicional do Estado venezuelano. No entanto, a proposta foi derrotada no referendo popular de dezembro de 2007, o que deixou o conselho numa situação instável (López Maya, 2008). Apesar de sua grande difusão pelo país, os CC não foram institucionalizados como parte da estrutura político-administrativa estatal venezuelana.

O curto período de vivência e as escassas pesquisas desenvolvidas acerca da experiência da gestão pública local por intermédio dos CC impedem uma análise mais aprofundada do seu funcionamento e, principalmente, de seus resultados em relação à efetividade das políticas públicas construídas e ao envolvimento da população.

López Maya (2008) reforça que são diversas as experiências ocorridas no âmbito dos CC, e sua vitalidade varia de acordo com a região e as tradições de mobilização e participação política das comunidades. De qualquer forma, podem ser destacadas algumas dificuldades e limitações reconhecidas por Lander (2007) e López Maya (2008), refletindo uma análise ainda superficial do processo:

• A intensidade da dinâmica de imposição de CC pelo governo chavista resultou em diversos desvios do objetivo inicial desses espaços de servir como um “instrumento para la transformación de los sectores populares en un sujeto popular empoderado, ‘socialista’” (López Maya, 2008:25). Muitos foram criados sem o cumprimento das normas legais,

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outros foram induzidos e manipulados por funcionários públicos ou criados apenas para atrair o dinheiro público, sem participação efetiva;

• Há queixa de muitos líderes comunitários da longa burocracia para a legalização de CC;

• A motivação para a criação dos CC ainda é muito vinculada à possibilidade de receber recursos do governo e à delegação do poder, o que, em muitos casos, constrói espaços marcados pelo clientelismo e pelo seu aproveitamento privado;

• O grande número de CC em cada região faz com que frequentemente os conselhos não consigam nenhum apoio oficial. Em muitos lugares, os recursos chegam, mas sem o apoio necessário ao uso adequado dos mesmos;

• A escala dos CC não permite que se tomem decisões para influir nos aspectos mais amplos e gerais da sociedade, ou nas políticas regionais ou nacionais. E mesmo localmente, o limite de 400 famílias pode ser uma barreira para o enfrentamento de problemas mais complexos;

• Há, em alguns casos, uma sobreposição de funções dos CC com o poder local, dificultando a articulação das atividades e por vezes enfraquecendo processos participativos já em andamento.

Lander (2007) destaca que muitas das reformas políticas que estão em andamento no país não resultam de um planejamento da estrutura político-administrativa que se quer constituir, mas de

“decisiones tomadas en los diferentes momentos de las confrontaciones políticas producidas en estos años y de las respuestas coyunturales, a veces improvisadas, que se han venido dando en búsqueda de adecuar las estructuras estatales a las exigencias de las políticas públicas y los cambios que se propone realizar el gobierno”.

Por conseguinte, não está claro o papel que se espera que os CC cumpram na gestão pública do país. Enquanto alguns funcionários chavistas afirmam que a nova estrutura não substituirá os governos estaduais e municipais atuais, outros afirmam que a partir dos CC pretende-se construir uma nova estrutura política na Venezuela. Reforçam esta última tese as iniciativas relacionadas a espaços de agregação dos CC, impulsionados em vários estados e na capital, como os chamados Gobiernos Comunales, ou comunas, que agregam 10 CC de uma região.

Como propôs Cardenal (2006): “Hay quienes ven a la revolución como un estado dentro del Estado, y es porque dadas las circunstancias de Venezuela no podia ser de outro modo”

3.2.2 Equador: o cantón Cotacachi

Surgida a partir de um movimento mais amplo de reivindicação dos direitos civis e políticos da população indígena e de ampliação da presença indígena na política, a experiência de democracia participativa em Cotacachi se consolida a partir de 1996, com a eleição de Auki Tituaña à prefeitura, e vai se constituindo como um dos casos mais efetivos e reconhecidos de participação popular. Cotacachi torna-se uma experiência fundamental particularmente pela articulação que constrói da democracia participativa com o fortalecimento e valorização das populações indígenas.

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Histórico recente da região

Cotacachi é uma região andina ao norte do Equador. Até poucas décadas atrás, sua estrutura fundiária era extremamente concentrada, como o resto do país. Os povos indígenas viviam submetidos a múltiplas forma de dominação como, por exemplo, ter que trabalhar de graça aos proprietário de terra em troca de poder usar “'las tierras del patrón' para el pastoreo de los animales, el uso de la leña o el agua” (Ortiz, 2004:134). Essa dominação estende-se a práticas da igreja, da polícia e dos governos locais.

Num país em que o acesso à educação pelos povos indígenas era muito restrito, alguns indígenas começaram a ter acesso à escola e tornar-se estimuladores de debates em torno dos seus direitos: água potável, educação, terras. Iniciou-se um processo de formação de grupos nas comunidades que articularam-se e formaram a Federação das Comunas, em 1977, que logo depois denominou-se Unión de Organizaciones Campesinas e Indígenas de Cotacachi, UNORCAC. Os conflitos ampliaram-se e o movimento indígena da região foi se fortalecendo, unindo-se à Federación Nacional de Organizaciones Campesinas, FENOC (atual FENOCIN) (Ortiz, 2004:135).

As organizações indígenas seguem se fortalecendo nos anos 1980, possuindo como eixos centrais de atuação a educação, sendo uma das lutas a conquista da educação bilíngue, e a cultura, buscando resgatar as festas e os rituais tradicionais. Nos anos 1990, ganha destaque o desenvolvimento rural, com políticas voltadas para a produção agrícola e pecuária, para a preservação das fontes de água e do meioambiente.

Mudanças na produção rural de Cotacachi fizeram com que os indígenas camponeses ganhassem força política da região: “En síntesis, los indígenas vivieron un proceso desde lo micro comunal a lo cantonal en aspectos como el control de los recursos naturales, la canalización de la obra pública y los servicios, la gestión de programas de desarrollo, la extensión de las redes organizativas y las alianzas sociales e incluso la participación política” (ORTIZ, 2004:137).

Produto das mudanças no meio rural e dos impactos das políticas neoliberais no país, em 1990, há o primeiro levante nacional do movimento indígena equatoriano. As seguidas lutas do movimento fizeram os indígenas ganharem força política a nível nacional, tendo como ápice as conquistas em relação a direitos coletivos inseridas na Constituição de 1998 (Ortiz, 2004:138).

O caso do cantón Cotacachi

A experiência de Cotacachi configura-se um dos principais exemplos do fortalecimento político dos povos indígenas. Em 1996, Auki Tituaña vence as eleições para prefeito e propõe como eixo central do seu governo o impulso da democracia participativa e da planejamento local.

Em sua gestão, cria-se a Asamblea Cantonal, que “se convirtió en el máximo organismo de consulta y representación de la sociedad civil de Cotacachi, reuniéndose sistemáticamente cada año con la participación de 300 organizaciones sociales, instituciones, iglesias, grupos de mujeres, juntas parroquiales y fundaciones” (Ortiz, 2004:139). Nesses espaços eram debatidos os diversos temas reelevantes para a realidade local.

Foi desenvolvido um Plan de Desarrollo Local, que, somado à assembleia, representaram os dois pilares do governos participativo de Tituaña. A Asamblea também teve papel importante no fortalecimento da organização social local, pois muitos grupos e comunidades que antes não

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possuíam uma articulação começaram a agrupar-se em vistas a poder participar das Asamblea e reivindicar direitos.

Um princípio das assembleias é o consenso. Tornou-se prática nas assembleias a busca do consenso nos debates, buscando a construção de decisões concertadas entre os participantes, e não decisões por maioria. Essa prática alimenta a cultura política da participação, conforme destacou Ortiz: “De allí que en la Asamblea se da mucha importância a escuchar las diversas opiniones y tolerar las discrepancias, en una práctica de cultura cívica en donde los actores se construyen como ciudadanos democráticos que pueden interactuar con los demás” (ORTIZ, 2004: 145).

A partir das assembleias foram formados comitês ligados a temas específicos, que tornaram-se permanentes e ficaram responsáveis pelos eixos do plano de desenvolvimento local: saúde, mulher, educação, turismo e meioambiente. Esses comitês são “instancias responsables de ejecutar las decisiones de la Asamblea, hacer propuestas, tomar iniciativas y ejecutar proyecto en sus áreas de gestión”(Ortiz, 2004:145)

Participam das reuniões anuais da Asamblea entre 500 e 700 participantes, que representam organizações e/ou locais. Na representação de cada local, o critério básico não é o número de habitantes, mas a existência de organizações sociais. A presença feminina no processo é forte, representando entre 30 e 40% do total de participantes.

O plano de desenvolvimento, além de ser uma importante ferramenta de planejamento, também tem efeitos positivos na cultura política local: “El Plan, se ha convertido en un elemento importante en la vida de Cotacachi, no solo porque le da una racionalidad a la administración municipal, sino porque se ha convertido en un instrumento importante de aglutinación y organización de los actores.” (Ortiz, 2004:148)

Todo esse processo tem fortalecido não apenas a identidade dos povos indígenas, mas também a identidade territorial da população. Cada vez mais, formam-se ”actores políticos territorializados”, que possuem um comprometimento com o desenvolvimento de Cotacachi.

O acompanhamento da execução do Plan de Desarrollo Local se dá por reuniões bimestrais do Comité de Desarollo Cantonal , e, anualmente, há a prestação de contas da gestão municipal e dos comitês temáticos na Asamblea (Ortiz, 2004:149).

Conquistas e desafios

Segundo Ortiz, não existe até hoje uma avaliação global da experiência de Cotacachi, embora haja estudos que abordam aspectos parciais. Ortiz concentra sua análise em quatro aspectos: a situação atual dos atores; a relação com o município; a redistribuição de poder; e os resultados para o desenvolvimento local (Ortiz, 2004:154).

Ortiz afirmou que o processo contribuiu para fortalecer o tecido social local, assim como criar novas organizações comunitárias. Houve um fortalecimento da identidade e cultura locais, bem como um aprofundamento da cidadania:

“la consolidación de actores ciudadanos que saben ejercer sus derechos, que están informados y asociados, que tienen más claros sus objetivos mediante planes y proyectos, que tienen mayor identidad y mayor capacidad de gestión de sus asuntos” (Ortiz, 2004:156)

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Além disso, o processo de democracia participativa construído possui uma relação fluida com o sistema de democracia representativa vigente, apesar de existirem alguns conflitos entre as instituições dos diferentes sistemas (Ortiz, 2004:157).

Há uma efetiva redistribuição de poder, o que é um reflexo da maior interferência da população na gestão local:

“Los sectores indígenas y mestizos urbanos y de Intag han logrado mayor organización y presencia en los espacios de gestión y decisión. Hay una presencia consolidada de los sectores sociales que antes tuvieron un papel marginal en la Municipalidad.”(Ortiz, 2004:157)

Quanto aos resultados efetivos de melhoria da qualidade de vida da população, o autor informa que não é possível chegar a conclusões assertivas pela falta de dados. Entretanto, Ortiz identificou que há áreas em que a melhoria é percebida claramente, como os serviços básicos de responsabilidade da prefeitura. Entretanto, outras áreas, que possuem maior dependências da estrutura econômica e das política públicas nacionais, tiveram suas condições deterioradas: a educação; o desemprego; a produção agrícola.

Ortiz defendeu que um dos desafios da democracia participativa em Cotacachi é o estabelecimento de um sistema de monitoramento das ações, que permita acompanhar os impactos das ações. Ademais, faz-se necessário conformar planos de desenvolvimento organizacional e financeiro que contribuam para a sustentabilidade econômica e institucional do Plan de Desarrollo Local (Ortiz: 160). Outro entrave a ser enfrentado é a articulação das políticas das diferentes escalas, principalmente a local (cantonal) e a regional.

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4 OBJETIVOS, QUESTÕES, HIPÓTESEObjetivo Geral

Contribuir para a afirmação/emergência de um conceito de Democracia Participativa que resista às definições reducionistas das experiências concretas de reinvenção da democracia que estão em curso na América Latina. Em outras palavras, pretendo ajudar no esclarecimento de um conceito de Democracia Participativa que espelhe as experiências em andamento na América Latina.

Objetivos Específicos:

− Realizar uma revisão de literatura sobre a construção da democracia participativa na América Latina;

− Construir um instrumento de análise que permita analisar as experiências de democracia participativa, qualificando os conceitos de participação qualificada/efetiva que uso neste projeto;

− Desenvolver as noções de engenharia política e engenharia da participação a partir da análise dos processos participativos de tomada de decisão;

− Identificar os fatores internos e externos que contribuíram para a consolidação da experiências de democracia participativa pesquisadas;

− Com base nas pesquisas bibliográficas e de campo, pressionar a definição do caso brasileiro mais atinente à tese.

As experiências de desenvolvimento da democracia participativa na América Latina representam um fenômeno inovador na prática política da região e, por isso, apresentam uma série de aspectos de ruptura e continuidade de interesse para a pesquisa acadêmica. Faz-se mister, portanto, definir da melhor forma possível sob quais prismas pretendo analisar os casos pretendidos.

A partir das lacunas antes reconhecidas, a tese buscará aprofundar a reflexão das bases metodológicas da participação, isto é, desconstruir um conceito amplo e vazio de participação que vige no campo político atual, visando à construção de um conceito mais rígido e articulado com processos efetivos de transformação do ambiente democrático.

Por outro lado, para a compreensão da gênese dos fenômenos que serão estudadas, penso ser importante entender os elementos históricos, políticos, econômicos, culturais, sociais que contribuíram para o surgimento e consolidação dessas experiências. Ademais do processo em si, será considerado o contexto que permitiu que as ações tivessem efetividade e legitimidade diante da população.

Sendo assim, duas questões parecem ser centrais para o desenvolvimento da pesquisa:

• Quais são os fatores que contribuem para a participação qualificada das pessoas em processos participativos de tomada de decisão acerca de políticas públicas?

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• Como se articulam as técnicas de forma a tornar o processo de produção das decisões políticas participativo e qualificado?

Ambas questões são amplas e não espero respondê-las plenamente ao final da tese. Pretendo, no entanto, com base na revisão bibliográfica e na experiência de análise dos casos, trazer elementos que ajudem no seu tratamento, sem estar fechado nos casos estudados, procurando contribuir para a compreensão do processo político de construção da democracia participativa na América Latina.

Mais especificamente em relação à análise dos casos, que servirá de base para o tratamento das questões centrais, identifico algumas questões a serem refletidas para cada caso:

• Como é construído o método (a engenharia) de participação nessas experiências, isto é, como é o funcionamento do processo e quais são os elementos que o sustentam?

• Como se dá a relação entre a democracia representativa e participativa no contexto institucional do local/país?

• Quais são os aspectos singulares da história política de cada localidade que podem ser reconhecidos nos processos participativos de tomada de decisão?

• Quais atividades de formação foram previstas/realizadas para promover a participação qualificada da população?

• Em que sentido a história local da construção da cidadania, da relação Estado-Sociedade, interfere na concretização da democracia participativa?

Pressupostos:

A análise reflete o ponto de vista construído pelo observador. Nesse sentido, torna-se importante explicitar os pressupostos que estão sendo por mim considerados e que estimulam a realização da pesquisa:

• O modelo de democracia representativa vigente não é suficiente para atender às demandas sociais;

• O aumento da participação é indispensável à conquista da cidadania e a consolidação da democracia;

HipóteseMinha hipótese central é que existem alguns elementos fundamentais para a concretização

de processos efetivamente participativos, inclusivos, deliberativos que podem ser identificados nas várias experiências. Apesar das diferenças históricas, culturais, sociais, econômicas, políticas presentes em cada localidade, é possível identificar elementos passíveis de generalização na construção/reinvenção da democracia.

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5 METODOLOGIAA pesquisa que desenvolverei na tese de doutorado tem como princípio de fundo valorizar

experiências de democracia participativa que ora são desenvolvidas na América Latina. Entendendo que cada uma dessas experiências apresentam fraquezas, contradições, idiossincrasias, acredito que nelas há elementos que são importantes serem destacados para que possamos construir a compreensão ampla sobre o movimento de democratização que vem ocorrendo na região e para definirmos melhor em que se baseiam os conceitos de participação e democracia participativa encampados pelo projeto democrático participativo.

Apoio-me, para tanto, na defesa da Sociologia das Emergências, destacada por Boaventura de Sousa Santos, que defende que façamos um ampliação do presente, através da abertura para a inclusão de mais experiências em nossas utopias, visando à conformação de :

“utopías realistas, suficientemente utópicas para desafiar a la realidade que existe, pero realistas para no ser descartadas fácilmente. Intentaremos ver cuálos son los señales, pistas, latencias, posibilidades que existen en el presente que son señales del futuro, que son posibilidades emergentes y que son 'descredibilizadas' porque son embriones, porque son cosas no muy visibles. No se trata de un futuro abstracto, es un futuro del cual tenemos pistas y señales; tenemos gente involucrada, dedicando su vida - muriendo muchas veces - por esas iniciativas. La Sociología de las Emergencias es la que nos permite abandonar esa idea de un futuro sin límites y reemplazarla por la de un futuro concreto, basado en estas emergencias: por ahí vamos construyendo el futuro.” (Santos, B. de S., 2006:30)

A primeira etapa da pesquisa será realizar uma revisão bibliográfica que dê o pano de fundo para análise das experiências. A ideia é buscar reconstruir a dinâmica histórica de construção dos contextos em que as experiências do Equador e da Venezuela foram concebidas e executadas. Buscaremos detalhar as conjunturas de evolução econômica, social e político-institucional dos países e das regiões em que encontram-se os casos.

Compreendemos que o patamar de cidadania em que encontram-se tais fenômenos de democracia participativa são resultado, e não origem, de processos históricos longos, como destacou Raventós: "El mayor nivel de igualdad política que existe en algunos países en comparación con otros es el resultado de prolongados procesos históricos, y no punto de partida" (Raventós, 2008:16).

Portanto, faz-se mister compreender a sociedade em que estes processos estão ocorrendo, os atores políticos que contribuíram para sua construção, a cultura política que se construiu para servir de base a essas práticas.

Similarmente, faremos uma revisão bibliográfica do histórico brasileiro. Mesmo não tendo definido o caso a ser estudado, a reconstrução do processo histórico de construção da cidadania no Brasil contribuirá para identificar similitudes com os outros casos e peculiaridades, e inclusive identificar os movimentos que podem ter levado à construção de experiências de democracia participativa.

Em seguida, pretendo construir a metodologia que será utilizada para a análise dos casos. Essa análise apresentará uma dupla face: primeiro, o contexto de formação cidadã e política que fornece o pano de fundo para os espaços de democracia participativa; segundo, a questão da metodologia participativa construída nas experiências, o que estou cunhando de engenharia da participação .

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A criação de espaços participativos de tomada de decisão não é o suficiente para a concretização de uma democracia profundamente participativa. São inúmeros ás instâncias criadas que cunham-se participativas, mas que na realidade servem apenas como legitimidade de uma prática autoritária, como já exemplifiquei antes. Albuquerque dá destaque a isso, destacando que “la iniciativa estatal de construir espacios participativos no garantiza que puedan tornarse públicos y democráticos, Nuestros estudios señalan la importancia de una sociedad civil democrática y fuerte que pueda ocupar estos nuevos espacios de poder y participación.” (ALBUQUERQUE, 2002:253).

Assim, a primeira faceta da minha pesquisa de campo estará na compreensão da formação cultural política que está por trás do nascimento desses fenômenos, e que permeia sua prática. Nesse sentido, é importante analisar, por exemplo: as organizações sociais e instituições políticas existentes e sua integração à democracia participativa; o tipo de cultura política veiculada nos espaços; em que profundidade trata-se da questão democrática; o quanto os processos estão aberto à inserção de novas questões colocadas democraticamente; se estimula inovações institucionais; se aceita-se transcender da esfera local para outras esferas; envolve grupos geralmente segregados dos espaços políticos, como mulheres, idosos; busca a formação de cidadãos críticos e lideranças; qual a influência que os aspectos econômicos e políticos externos têm na prática do processo; a cultura da transparência na execução de políticas e gastos; a influência do Estado no processo; a efetividade dos impactos das políticas definidas participativamente, se há uma reconhecimento das desigualdades e uma leitura de território.

A segunda faceta desse estudo será a compreensão da própria metodologia participativa, enquanto conjunto de métodos, utilizada. Para tanto, deverei pesquisar questões ligadas a: a estratégia de convocação das reuniões; a representatividade presente; a definição dos locais de reunião; o acesso à informação pelos participantes; os métodos de apresentação; o tempo e a distribuição das falas entre os participantes; o retorno da informação, das decisões, para a população em geral; a linguagem e os rituais utilizados; a valorização do conhecimento popular

Esse segundo eixo contribuirá para a construção da noção de engenharia política que pretendo trabalhar. Compreendendo que há uma dinâmica de funcionamento dos espaços participativos de tomada de decisão, pretendo identificar os fatores que servem de base para esses espaços de forma a construir um entendimento do processo como um todo, dos efeitos que cada variável pode ter, das condições necessárias de execução do fenômeno para buscar-se atingir tais objetivos.

Assim, esses serão os dois eixos de análise dos casos e para os quais pretendo levantar sinais, elementos que indiquem um direcionamento convergente do movimento da participação política e da democracia participativa na América Latina.

Em seguida, iniciarei a análise dos casos: Consejos Comunales, em Caracas, Venezuela; e Cotacachi, no Equador. Para ambos será utilizada uma metodologia similar, descrita abaixo.

Primeiro, ainda no Brasil, farei um levantamento de dados secundários com os materiais que estejam acessíveis à distância.

Após o trabalho aqui, estamos prevendo uma visita em torno de dois meses em cada um dos países. Quando em campo, a primeira atividade será a de buscar outras fontes de dados secundários que complementem o trabalho feito a partir do Brasil. Esses documentos podem ser tanto artigos, livros, teses publicados sobre os casos, quanto documentos produzidos ao longo do processo participativo, como atas, relatórios, registros audiovisuais, políticas elaboradas.

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Uma segunda fonte de informação nos locais serão as lideranças, participantes dos processos, políticos que acompanharam as atividades, estudiosos e a população em geral do território abrangido pelo espaço de decisão participativo.

Finalmente, quando possível, tentaremos fazer uma observação direta das instâncias coletivas de decisão, podendo construir, assim, a partir da minha experiências e da minha visão a análise dos casos. No entanto, sabemos que essa oportunidade não é garantida e dependerá de um anuência da população local e da coincidência entre o cronograma das reuniões com meu cronograma de pesquisa.

Para cada caso será feito um relatório analítico.Minha expectativa é que o levantamento bibliográfico sobre a história da construção da

cidadania no Brasil, incluindo aí a pesquisa sobre a consolidação de ações de poder popular e de participação democrática, adicionado da compreensão aprofundada dos dois casos citados contribuirão para pressionar a definição do(s) caso(s) brasileiro. Dessa forma, ao invés de partir das bases que temos no Brasil para daí articular com outros, pretendo apreender exemplos concretos de democracia participativa que estão ocorrendo fora do país para que essa visão me permita ter maior capacidade e liberdade de análise crítica do(s) caso(s) brasileiro(s). Além disso, para essa definição utilizarei entrevistas com estudiosos sobre a democracia no Brasil, e com instituições de renome na temática como as organizações não governamentais Instituto Pólis (SP) e FASE (RJ).

Quando definido, a mesma metodologia de análise utilizada nos casos equatoriano e venezuelano servirá para o caso brasileiro.

Finalmente, tendo realizado um percurso analítico de cada caso com base em uma mesma ferramenta de pesquisa, buscarei articular essas diferentes experiências na busca pela identificação de similaridades, em relação aos dois eixos considerados, que contribuam no entendimento e conceituação de um movimento concreto de consolidação da democracia participativa na América Latina.

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6 ESTRUTURA 1 Introdução

2 Metodologia

3 Revisão bibliográfica – A teoria da participação e a democracia participativa

3.1 A Democracia e o Governo Representativo

3.2 A Participação na Teoria Democrática

3.3 A qualificação dos conceitos participação e democracia participativa

4 A história de construção da democracia na América Latina

4.1 A origem das lutas dos movimentos sociais na América Latina

4.2 A luta contra os regimes ditatoriais

4.3 O cenário de redemocratização

4.4 Os projetos de democracia em disputa

5 Estudos de Caso

5.1 Construção da ferramenta de análise dos casos;

5.1.1 Bases para análise do contexto/formação política;

5.1.2 Bases para análise da metodologia da participação

5.2 Os Consejos Comunales, Venezuela

5.2.1 Descrição

5.2.1.1 História recente de construção da democracia na Venezuela;

5.2.1.2 Contexto histórico do caso

5.2.1.3 Detalhamento do fenômeno do processo participativo

5.2.2 Análise

5.2.2.1 Estudo dos fatores externos (contexto/formação política)

5.2.2.2 Estudo dos elementos da metodologia da participação

5.2.3 Conclusões

5.3 O cantón Cotacachi, Equador (subitens iguais ao anterior)

5.4 O(s) caso(s) brasileiro(s)

5.4.1 A escolha do(s) caso(s) (outros subitens iguais aos anteriores)

6 Análise conjunta dos casos estudados

6.1 Elementos do contexto/formação política

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6.2 Elementos da metodologia da participação

6.3 A democracia participativa e a participação na América Latina

7 Conclusões

8 Bibliografia

7 CRONOGRAMA

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