tese final 8

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARDOUTORADO EM SADE COLETIVAEM ASSOCIAO AMPLA DE IES (UFC/UECE)

MARIA GABRIELA CURUBETO GODOY

Micropoltica e processos de trabalho de um Centro de Ateno Psicossocial: experincias intersubjetivas dos trabalhadores

FORTALEZA CEAR 2009

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARMARIA GABRIELA CURUBETO GODOY

Micropoltica e processos de trabalho de um Centro de Ateno Psicossocial: experincias intersubjetivas dos trabalhadores

Tese apresentada ao Curso de Doutorado em Sade Coletiva por Associao Ampla de IES (UFC/UECE) como requisito parcial para a obteno do ttulo de Doutora em Sade Coletiva.

Orientadora: Prof. Magalhes Bosi

Dra.

Maria

Lcia

FORTALEZA CEAR 2009

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FICHA CATALOGRFICAG534m Godoy, Maria Gabriela Curubeto Experincias intersubjetivas de trabalho na micropoltica cotidiana de um Centro de Ateno Psicossocial / Maria Gabriela Curubeto Godoy. Fortaleza. 2009. Mimeo. 248 p.

Orientadora: Maria Lcia Bosi Tese de Doutorado Dept o. De Sade Comunitria. Universidade Federal do Cear 1. Sade Mental 2. Servios de Sade Mental 3. Avaliao qualitativa em Sade 4.Trabalho em Sade

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARDOUTORADO EM SADE COLETIVAEM ASSOCIAO AMPLA DE IES (UFC/UECE)

Ttulo da Tese: Micropoltica e processos de trabalho de um Centro de Ateno Psicossocial: experincias intersubjetivas dos trabalhadoresNome da Mestranda: Maria Gabriela Curubeto Godoy Nome da Orientadora: Maria Lcia Magalhes Bosi Tese apresentada ao Curso de Doutorado em Sade Coletiva por Associao Ampla de IES (UFC/UECE) como requisito parcial para a obteno do ttulo de Doutora em Sade Coletiva.

BANCA EXAMINADORA_______________________________________________ Profa. Dra. Maria Lcia Magalhes Bosi (Orientadora e Presidente) _______________________________________________ Profa. Dra. Vldia Jamile dos Santos Juc (1 membro da banca) ________________________________________________ Prof. Dr. Luis Fernando Farah de Tfoli (2 membro da banca) ________________________________________________ Profa. Dra. Maria Salete Bessa Jorge (3 membro da banca) ________________________________________________ Prof. Dr. Ricardo Jos Soares Pontes (4 membro da banca)

Aprovada em: 25/06/2009

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Dedico este trabalho a minha amada av, Lela, que me instigou a curiosidade e com seu amor preencheu a minha infncia, que meu agradecimento a alcance onde quer que esteja. Ao meu companheiro Alcides, com quem compartilho esse amor imenso e intenso que se refina e fortalece ao longo dos anos, agradeo sua solidariedade e pacincia no decorrer deste trabalho. Aos meus amados filhos Gabriel, Moara e Thiago, minha gratido pela pacincia que tiveram no decorrer da elaborao deste trabalho e a minhas dificuldades na gesto de um tempo que deixou de ser compartilhado.

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AGRADECIMENTOSUma tese nada seria se no fossem tantos os que nela esto. Aos trabalhadores do CAPS, que abriram as portas de suas experincias, permitindo-me adentrar e conhecer suas alegrias, tristezas, projetos, dificuldades, desejos e esperanas. Aos meus amigos do Movimento de Sade Mental Comunitria do Bom Jardim, por nutrir-me com seus/nossos sonhos e pelo apoio no decorrer do trabalho. A todos os amigos e colegas da Secretaria Municipal de Sade de Fortaleza, por seus investimentos concretos e afetivos ao buscar construir um sistema municipal de sade mais inclusivo e solidrio. Ao meu amigo Odorico, por sua ousadia e viso, pois ao investir em processos de educao permanente para os trabalhadores, apoiando iniciativas como a do meu doutorado, refora a coerncia de investir nas pessoas para a construo de uma cultura de paz e a mundo melhor. A minha amiga e orientadora, Maria Lcia, que acompanhou paciente e dialogicamente meus deslocamentos, deslocando-se junto comigo, por seu rigor epistemolgico e metodolgico que me serviu de referncia para aprofundar o meu prprio olhar. Ao Colegiado do Doutorado em Cincias Mdicas por nele iniciar este percurso e ao Colegiado do Doutorado em Sade Coletiva, por acolher-me no decorrer deste percurso.

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No h como escapar conscincia do tempo, que nos assola e atia, lanandonos, queiramos ou no, ante o devir.

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RESUMOEsta investigao discorre sobre as experincias intersubjetivas de trabalho situando-as na micropoltica cotidiana de um CAPS que vem reorganizando algumas de suas aes. Buscamos compreender tais experincias articulando-as s posies e disposies dos agentes que as vivenciam, o que nos levou a identificar algumas configuraes relacionais relevantes entre os trabalhadores. Dialogamos com diversos autores que vem abordando a temtica do trabalho em sade no Brasil e em equipes comunitrias de sade mental na literatura estrangeira. A literatura nacional neste campo, caracterizada por uma propositividade importante para a constituio de um iderio sobre o trabalho em sade, apresenta, no entanto, lacunas em relao a estudos empricos que enfoquem ambivalncias e contradies emergentes nos microprocessos cotidianos. Isto nos levou a trilhar uma trajetria alternativa, referenciada no percurso histrico da constituio do trabalho em sade e dos processos de profissionalizao, de maneira a enfocar as interaes estabelecidas entre os trabalhadores considerando as relaes e conflitos interprofissionais, bem como as concepes, dificuldades e limites do trabalho coletivo e multiprofissional em sade mental. Utilizamos um referencial metodolgico fundamentado na hermenutica crtica, de maneira a compreender as experincias intersubjetivas de trabalho nas suas diferentes verses emergentes entre os trabalhadores. Apresentamos uma contextualizao de mbitos scio-histricos, locais e singulares de maneira a inscrever processual e dialeticamente tais experincias, dotando-as de mltiplos sentidos. As experincias intersubjetivas de trabalho so permeadas por ambivalncias e contradies emergentes no cotidiano que representam limites e possibilidades para a constituio de uma nova prxis coletiva entre os trabalhadores. s dimenses ticas e polticas que referenciam o trabalho em sade, devem associar-se dimenses afetivas, por compreender o afeto como uma potncia mobilizadora de disposies e de posies que permitem reconfiguraes em relaes de saber/fazer/poder estabelecidas. PALAVRAS-CHAVE: Servios de Sade Mental; Sade mental.

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ABSTRACTThis reasearch investigates the intersubjective experiences of work in the cotidiane micropolitical processes of a community mental health service. We tried to understand the experiences in articulation to the dispositions and positions of the workers. This process conducted us to the identification of some relevant relational configurations considering the perspective of the workers. We established a dialogue with several authors that investigate the health work in Brazil and the mental health community work in other countries. The national literature presents a propositive tendency that contributes to the elaboration of some principles for the health work. However, new empirical studies are necessary to understand the ambivalences and contraditions that appear in the cotidiane between the health workers. Thus, we decided to study this subject considering the historic process of health work and profissionalization, in order to understand interprofessional interactions and conflicts that affect conceptions and establishe possibilities and restrictionas for the constitution of a collective multiprofessional work in mental health. We used a critical hermeneutic approach presenting the multiple versions of the workers experiences relating them to different contexts. Ambivalences and contradictions are relevant in the intersubjective experiences of work and they represent restrictions and possibilities for the constitution of a new praxis among the workers. Ethical and political dimensions of the health work may be associated to affective dimensions, understanding the affect as a potent agent in the mobilization of positions and dispositions that may conduct to reconfigurations of established relations. KEY WORDS: Mental Health Services; Mental Health.

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APRESENTAOEsta investigao foi fruto de mltiplos deslocamentos de seu objeto e do meu desejo. Foi nessa trajetria truncada de rupturas e descontinuidades que me permiti trilhar atravessamentos possibilitando encontros e distanciamentos ao longo de uma trajetria iniciada na Medicina, que me levou a percorrer outros caminhos, com incurses pela Antropologia da Sade, a Psiquiatria, a Sade Mental e a Sade Coletiva, seguindo minhas tendncias de estabelecer um olhar interdisciplinar sobre questes que me rodeiam. Como todo desvio e atalho representam novas possibilidades de encontro, este trabalho responde a anseios pessoais vivenciados como trabalhadora de sade, contribuindo para investimentos tericos que ampliaram meu olhar. Embora ele seja um pedacinho entre tantas formulaes profcuas j existentes, espero que possa acrescentar algumas contribuies a uma vasta e rica produo de tantos e de tantas com os quais compartilho a esperana de novos modos de ser, estar e conceber o mundo.

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SUMRIO1 INTRODUO ______________________________________________ 12 2 MARCO TERICO 2.1 A Reforma Psiquitrica revisitada ________________________________________________ 222.1.1 O campo da Sade Mental no Brasil _________________________________________ 22 2.1.2 A Reforma Psiquitrica no Brasil ___________________________________________ 23 2.1.3 Modelos de ateno em Sade Mental _______________________________________ 29 2.1.4 O lugar do CAPS em redes territoriais de sade ________________________________ 37 2.1.5 A Reforma Psiquitrica em Fortaleza e o lugar dos CAPS ________________________ 40 2.1.6 Alguns desafios para a Reforma Psiquitrica brasileira __________________________ 51

2.2 O TRABALHO EM SADE _________________________________________ 532.2.1 Algumas concepes sobre o trabalho em sade ________________________________ 53 2.2.2 Do trabalho mdico ao trabalho coletivo e multiprofissional em sade ______________ 59 2.2.3 Trabalho em sade, processos de profissionalizao e autonomia __________________ 63 2.2.4 Algumas contribuies para a micropoltica do trabalho em sade _________________ 71 2.2.5 O trabalho em sade e a tradio das organizaes pblicas no Brasil ______________ 75

2.3 EXPERINCIA E INTERSUBJETIVIDADE NO PROCESSO DE TRABALHO EM SADE ______________________________________________________________ 792.3.1 Experincia e intersubjetividade ____________________________________________ 79

3 METODOLOGIA _______________________________________________ 853.1 ALGUMAS PREMISSAS ____________________________________________ 85 3.2 FUNDAMENTAO EPISTEMOLGICA ___________________________ 86 3.3 CARACTERSTICAS DO ESTUDO __________________________________ 893.3.1 Cenrio do estudo ________________________________________________________ 89 3.3.2 Os informantes do estudo __________________________________________________ 92 3.3.3 Trabalho de campo _______________________________________________________ 93 3.3.4 Construo, processamento e interpretao do material emprico __________________ 95 3.3.5 Processamento e interpretao do material ____________________________________ 98 3.3.6 Aspectos ticos do estudo _________________________________________________ 99

4 CONTEXTO HISTRICO DO CAPS _____________________________ 1004.1 A TRAJETRIA HISTRICA DO CAPS ____________________________ 1004.1.1 A primeira fase do CAPS _______________________________________________ 100 4.1.2 A segunda fase do CAPS ________________________________________________ 102 4.1.3 A terceira fase do CAPS ________________________________________________ 104

4.2 O PROCESSO DE REORGANIZAO DAS AES DO CAPS _________ 1064.2.1 Reviso da situao dos usurios cadastrados no CAPS _________________________ 106 4.2.2 Reorganizao e diversificao das atividades no CAPS ________________________ 108 4.2.3 Integrao profissional no CAPS ___________________________________________ 109 4.2.4 Articulao de uma atuao mais territorial __________________________________ 109 4.2.5 Reorganizao das listas de espera para acolhimento e triagem ___________________ 110

4.3 DISCURSOS QUE FUNDAMENTAM O PROCESSO DE REORGANIZAO DAS AES DO CAPS___________________________________________________ 111

5 ALGUMAS INTERPRETAES POSSVEIS DE DIMENSES MICROPOLTICAS EMERGENTES NO CAPS ________________________ 1175.1 ESPAOS COLETIVOS INTRA-INSTITUCIONAIS: REUNIES DE EQUIPE 117 5.2 INTEGRAO INTERPROFISSIONAL _____________________________ 132

115.2.1 Os Processos de trabalho integrados no CAPS ________________________________ 132

5.3 EXPERINCIAS INTERSUBJETIVAS E CONFIGURAES RELACIONAIS EMERGENTES NO CAPS ________________________________________________ 138 5.4 OS TRABALHADORES ENVOLVIDOS NO PROJETO COLETIVO DO CAPS __________________________________________________________________ 1415.4.1 Compreenses emergentes sobre o envolvimento entre os trabalhadores ___________ 143 5.4.2 Algumas caractersticas relevantes e recorrentes entre os trabalhadores mais envolvidos ______________________________________________________________________________ 148 5.4.3. Algumas distines entre os trabalhadores mais envolvidos _____________________ 155

5.5. PROFISSIONAIS PSI ___________________________________________ 1635.5.1 O uso do jaleco _______________________________________________________ 166 5.5.1 Principais aspectos identificados entre os profissionais psi _____________________ 170

5.6. OS PSIQUIATRAS ________________________________________________ 1725.6.1 Breve descrio do trabalho mdico no CAPS ________________________________ 172 5.6.2. A carga horria dos mdicos ______________________________________________ 175 5.6.3. A pouca integrao dos mdicos _________________________________________ 180 5.6.4. A pouca integrao na perspectiva dos mdicos ____________________________ 181 5.6.5 A pouca integrao na perspectiva de outros profissionais _____________________ 186 5.6.6. Ambivalncias, contradies e o processo de trabalho mdico ___________________ 193 5.6.7 Principais aspectos identificados entre os psiquiatras __________________________ 207

5.7 OS TRABALHADORES DE NVEL MDIO NO CAPS _________________ 2095.7.1 Principais aspectos identificados entre os trabalhadores de apoio _________________ 218

6. CONSIDERAES FINAIS _____________________________________ 222 REFERNCIAS _________________________________________________ 225ANEXO A _________________________________________________________________ 238 ANEXO B _________________________________________________________________ 239 APENDICE 1 ______________________________________________________________ 240 APNDICE 2_______________________________________________________________ 241

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INTRODUOEsta investigao busca compreender experincias intersubjetivas de trabalho

situando-as na micropoltica cotidiana1 emergente em um Centro de Ateno Psicossocial (CAPS) que vem reorganizando algumas de suas aes. Pretendemos, assim, contextualizar tais experincias intersubjetivas considerando as posies ocupadas pelos trabalhadores, de maneira a identificar algumas configuraes relacionais vigentes nos microprocessos de trabalho. Compreendemos a subjetividade tambm como intersubjetividade (GADAMER, 1999, 2007), pelo fato de a primeira no estar restrita apenas a uma dimenso individual, j que tambm permeia e circula por territrios2 existenciais e relacionais coletivos (GUATTARI, 1991). Diversos autores apontam para a importncia de deslocamentos que possibilitem novos enfoques sobre a temtica do trabalho em sade, destacando a necessidade de considerar a subjetividade dos trabalhadores nos microprocessos cotidianos que envolvem a produo do cuidado3 (CAMPOS, 2000a; FRANCO, 2006; MERHY, 1997, 2003, 2007a). Contudo, a incorporao de dimenses subjetivas / intersubjetivas nos estudos que abordam o trabalho no campo da Sade Coletiva relativamente recente no Brasil, tendo predominado inicialmente estudos inspirados em referenciais sociolgicos e filosficos oriundos do materialismo histrico e dialtico, com nfase nos aspectos macrossociais referentes a essa temtica. Investigaes clssicas sobre o trabalho mdico (DONNANGELO, 1975) e sobre os processos de trabalho em sade (MENDES GONALVES, 1994), constituram assim, uma tradio importante no Brasil. Embora inspirados tambm nessa tradio, outros autores do campo da Sade Coletiva tm estabelecido novos dilogos, interessando-se por aspectos micropolticos e1

Adotamos o conceito de cotidiano de Agnes Heller (HELLER, 1994), que compreende a vida cotidiana como o conjunto de atividades que caracterizam as reprodues particulares a partir das quais se cria a possibilidade de reproduo social. Para Heller na vida cotidiana que se produzem as relaes sociais entre os homens.2

Para GUATTARI & ROLNIK (2005:388) o territrio pode ser relativo a espaos vividos e existenciais, sendo sinnimo de apropriao subjetiva, de subjetivao fechada sobre si mesma (...) que pode desterritorializar-se, abrir-se em linhas de fuga. A reterritorializao consiste em uma tentativa de recomposio de um territrio engajado em um processo desterritorializante.3

Compreendemos aqui o cuidado como categoria ontolgico-existencial que relaciona as prticas de sade construo dos projetos existenciais humanos (AYRES, 2004). O cuidado vincula-se diretamente integralidade em sade, transcendendo o mbito tcnico do atendimento embora se expresse na materialidade das relaes interpessoais propiciadas pelas prticas de sade.

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subjetivos relacionados ao tema (MERHY, 1997, 2007a, 2007b; CECILIO, 1999; CAMPOS, 2000a; FRANCO, 2006; entre outros). Ao enfatizar a importncia de dimenses micropolticas do trabalho em sade, tais autores dialogam com diversas vertentes, utilizando referenciais oriundos da anlise institucional4 e da esquizoanlise5, dentre outras, destacando justamente a necessidade de resgatar o lugar do sujeito no processo de produo do cuidado em sade. Paralelamente, as investigaes situadas no intercruzamento entre Sade Mental e Sade do Trabalhador fundamentam-se em diferentes referenciais (RAMMINGER, 2008). Tais estudos focalizam: processos de trabalho e suas prticas (OLIVEIRA & ALESSI, 2005a, 2005b; BICHAFF, 2006; FIGUEIREDO, 2007; MELO & FUREGATO, 2008; dentre outros); o sofrimento psquico dos trabalhadores (FERRER, 2007); a satisfao e o estresse no trabalho em sade mental (REBOUAS et. al., 2007, 2008; RIGOTTO et. al., 2008); as vivncias dos trabalhadores sob perspectivas fenomenolgicas e hermenuticas (GARCIA & JORGE, 2007; SCHNEIDER, 2007; SILVA, 2007); os modos de subjetivao dos trabalhadores de Sade Mental (NARDI & RAMMINGER, 2007); as concepes dos trabalhadores sobre a produo de servios em sade mental (CAMPOS & SOARES, 2003); as dimenses polticas do trabalho em sade mental (HONORATO & PINHEIRO, 2008); o risco como positividade no trabalho em sade mental (ANDRADE, 2007; bem como a satisfao de trabalhadores de CAPS (GUIMARES, 2007), dentre outros. Contudo, so escassos os estudos que aprofundam interaes estabelecidas no cotidiano entre os trabalhadores de Sade Mental (ABUHAB et al., 2005). J a temtica referente ao trabalho em equipe de sade vem sendo abordada por autores como: CANOLETTI (2008), que fez um detalhado estudo de reviso; por PEDUZZI (2001), que realizou uma investigao terica e emprica em diferentes equipes de sade; por BOLDANI (2007), que tambm realizou um estudo emprico sobre o tema; e por diversos autores que prope algumas premissas tericas de base tico-poltica para o

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A Anlise Institucional se constituiu a partir de um conjunto de disciplinas e movimentos que ocorreram na sociedade francesa, a partir dos anos 40 e 50, sendo um campo de conhecimento formado a partir da psicanlise, das cincias sociais, e da filosofia. Articula um instrumental de anlise e interveno em instituies, visando potencializar grupos e comunidades para processos de mudana.5

A esquizoanlise, baseada na filosofia da diferena de Deleuze e Guattari trata-se de uma anlise, sempre parcial e provisria do processo de produo do mundo atravs dos arranjamentos que incidem num certo contexto. Inspirada nas pesquisas sobre a psicose, parte de uma crtica psicanlise denegando a eficcia transferncia e interpretao (GUATTARI & ROLNIK, 2005).

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trabalho em sade, como LOPES et al. (2007), GOMES et al. (2007), BARROS & BARROS (2007) e HONORATO & PINHEIRO (2008), entre outros. Estudos mais especficos sobre esta temtica no campo da Sade Mental adotam diversos enfoques. Dentre eles encontramos: a leitura institucionalista sobre um Ncleo de Apoio Psicossocial de Santos (NAPS) de KODA & FERNANDES (2004); o estudo sobre o trabalho em equipe em um CAPS III de ABUHAB et. al. (2005); e o estudo de MILHOMEM (2007) sobre as condies e relaes de trabalho nos CAPS de Cuiab. Entretanto, no encontramos estudos enfocando as interferncias dos processos de profissionalizao abordados pela Sociologia do Trabalho e suas expresses na micropoltica do trabalho em equipe de sade. A isso tambm se adicionam lacunas empricas em relao a propostas operacionais para a anlise da micropoltica cotidiana das relaes e dos processos de trabalho vigentes nos servios de sade. Embora referenciais advindos da Psicologia do Trabalho apresentam grande influncia de vertentes funcionalistas ligadas s Teorias das Organizaes, outras leituras tambm podem contribuir para a compreenso das experincias dos trabalhadores e da micropoltica cotidiana estabelecida nos servios de sade. Com esse intuito, pretendemos explorar algumas das lacunas acima apontadas, incorporando contribuies oriundas de vertentes sociolgicas inspiradas em Pierre Bourdieu e Norbert Elias, autores interessados no estudo das interaes sociais, bem como vertentes da Sociologia do Trabalho, que enfocam os processos de profissionalizao. A partir desses referenciais pretendemos delinear uma possvel contextualizao de dimenses singulares emergentes no CAPS investigado, de maneira a situar as experincias intersubjetivas de trabalho e as configuraes relacionais6 que as ativam e tambm so ativadas por elas considerando questes scio-histricas que repercutem no cotidiano dos servios de sade e de seus trabalhadores. Embora nesta investigao estejamos enfocando os trabalhadores envolvidos diretamente com o cuidado, reconhecemos a importncia de outros agentes, como usurios e gestores estes ltimos tambm trabalhadores considerando que todos eles so importantes para o processo de produo social de sade (MERHY, 2003). H, porm, distines entre eles, relacionadas aos objetivos visados, aos recursos

O conceito de configurao proposto por Norbert Elias ser apresentado em detalhes no marco terico deste estudo (ELIAS, 1999, 2000).

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mobilizados e s posies ocupadas, sendo os trabalhadores mais envolvidos na produo do cuidado aqueles que operam tecnologias em sade estabelecendo microprocessos de trabalho orientados tanto para a produo do cuidado quanto para a sua prpria produo/reproduo enquanto sujeitos (CAMPOS, 2000a; MERHY, 2003). Os trabalhadores so, ento, fundamentais para a materializao de prticas de sade que podem produzir ou no novos agenciamentos7 no cuidado em sade. No entanto, reiteramos que, ao enfocar os trabalhadores, no pretendemos desconsiderar outros atores como os usurios e gestores, desde j assinalando a importncia de outros estudos que possam lhes dar a merecida ateno. Segundo FRANCO (2006), o trabalho em sade constitui-se a partir de uma micropoltica8, ou seja, um agir cotidiano e relacional dos sujeitos entre si e com os cenrios nos quais esto inseridos, que apresenta caractersticas rizomticas9. Diversos tipos de encontros entre os prprios trabalhadores, e destes com os usurios, desencadeiam fluxos operativos, polticos, comunicacionais, simblicos e subjetivos que formam uma intrincada rede de relaes, constituindo o trabalho em sade (FRANCO, 2006). Embora em seu texto FRANCO (2006) no explicite sua noo de encontro, tomamos como referncia Martin Buber (1974), que compreende o encontro como um evento relacional inquietante e indispensvel, que acontece como episdio singular. Para BUBER (1974:18) relao reciprocidade, atuao recproca entre o EU e o TU. O instante atual e plenamente presente, d-se somente quando existe presena, encontro relao. (...) Presena no algo fugaz e passageiro, mas o que aguarda e permanece dentro de ns. Objeto no durao, mas estagnao, parada, interrupo,

O agenciamento uma noo mais ampla do que as de estrutura, sistema, forma, processo, montagem, etc. Um agenciamento comporta componentes heterogneos, tanto de ordem biolgica, quanto social, maqunica, gnosiolgica, imaginria. (GUATTARI & ROLNIK, 2005:381).8

Para Guattari (GUATTARI & ROLNIK, 2005: 149) a micropoltica trata-se da questo da "analtica das formaes do desejo no campo social".9

FRANCO (2006) retoma o conceito de rizoma de DELEUZE & GUATTARI (1995), autores cuja proposta filosfica pretende constituir uma teoria das multiplicidades, superando dicotomias e oposies binrias como consciente e inconsciente, natureza e histria, corpo e alma. Seu conceito de rizoma uma crtica ao modelo arborescente de hierarquia da rvore-raiz predominante em muitas correntes de pensamento. Na perspectiva rizomtica os conceitos no esto hierarquizados a um centro de poder ou de referncia aos quais os outros conceitos deveriam se remeter. O rizoma sempre relacional, intersticial, surge no entre lugares, atravs de um plat de intensidades (...) (DELEUZE & GUATTARI, 1995: 12). O rizoma possibilita mltiplas conexes e agenciamentos que produzem novas formaes relacionais sobre as quais vai emergindo o meio social onde se est inserido.

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enrijecimento, desvinculao, ausncia de relao, ausncia de presena. O essencial vivido na presena, s objetividades no passado (...), o EU se realiza na relao com o TU; tomando EU que digo TU (BUBER, 1974: 13-14). Contudo, BUBER tambm admite que a presentificao contnua sob a forma da relao EU- TU no possvel, alternando-se com a objetificao EU- ISSO. O pensamento deste autor leva-nos a questionar, entretanto, sobre os riscos da predominncia do EU-ISSO nas relaes estabelecidas no cotidiano dos servios de sade e entre os prprios trabalhadores. Por outro lado, MERHY (2007a) atenta para a possibilidade de encontros violentos, caracterizados pela dominao, pela excluso e pela interdio. Os encontros fazem parte das dimenses micropolticas cotidianas e subjetivas do trabalho em sade, sendo constituintes do que SILVA & FONSECA (2005) denominam de determinantes singulares do processo de trabalho, relacionados a um coletivo institucional (OURY, 1986 apud SILVA & FONSECA, 2005: 442), que diz respeito ao que "permanece e se enraza nos indivduos envolvidos por uma dinmica institucional [...] algo deste imperativo coletivo que tambm poderia exercer-se de modo a solapar, a obliterar ou simplesmente dilapidar as vontades em jogo num espao institucional". Para essas autoras, o processo de trabalho em sade mental tambm seria composto por outros 2 determinantes: 1) estruturais (princpios e diretrizes do SUS e da Reforma Psiquitrica, leis, normas e regulamentaes da sade e sade mental); e 2) particulares (funo do servio na rede local de ateno, dispositivos de interdependncia ou colaborao das aes no sistema de sade). Alm disso, um conjunto de aspectos scio-histricos vinculados a questes gerais, conjunturais e contextuais, tambm contribuem para condicionar / determinar possveis

desdobramentos dos processos de trabalho em sade. Deste modo, o trabalho em sade mental nos CAPS se descortina ante um panorama multifacetado. no palco relacional cotidiano que emergem as tenses entre novos e velhos modos de produo de subjetividade, novas e velhas formas de relao com a alteridade e o desafio de lidar com paradoxos de mltiplas ordens. Alm disso, embates atuais inseridos em um contexto de agudizao de tendncias neoliberais tambm afetam o mundo do trabalho e, conseqentemente, os trabalhadores de servios pblicos de sade mental. Diante desse panorama, as mudanas vigentes na produo de cuidados em

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sade mental no Brasil podem ser caracterizadas como transicionais10. Experincias que se pretendem inovadoras11 e convocam os trabalhadores em sade mental a realizar deslocamentos assumindo novos agenciamentos implicam em lidar com as contradies, ambigidades e ambivalncias pessoais e coletivas emergentes em seus processos de trabalho. No caso do trabalho em sade mental, deslocar a experincia de excluso social da loucura exige, sobretudo, desconstruir os manicmios mentais12 (PELBART, 1991) e os desejos de manicmio (ALVERGA & DIMENSTEIN, 2006) passveis de reproduo em diversos territrios concretos e subjetivos, inclusive, no territrio cotidiano de dispositivos psicossociais que se pretendam inovadores no campo da sade mental, como o caso dos CAPS. Assim, a Reforma Psiquitrica Brasileira depara-se, na atualidade, com diversos desafios, entre eles, o de favorecer a constituio de um trabalho multiprofissional coletivo e integrado, que possibilite uma atuao territorial e intersetorial (BEZERRA JNIOR, 2007). Contudo, dispositivos psicossociais de cuidado como os CAPS, agregam trabalhadores portadores de diferentes concepes e prticas, no sendo, portanto, surpreendente a coexistncia de modelos de ateno, por vezes antagnicos13 em um mesmo estabelecimento de sade (NUNES, 2008). So os trabalhadores os que se deparam ante o desafio cotidiano de implementar novas perspectivas, convivendo em equipes multiprofissionais das quais se pretende10

CAMPOS & BARROS (2000) destacam a coexistncia de diferentes modelos de ateno influenciando as aes dos trabalhadores de um mesmo servio. Para estas autoras, a viso de mundo dos profissionais ser determinante para a escolha do que tomaro como objeto e finalidade de sua atuao.11

Baseados em Boaventura Santos, PINHEIRO & MATTOS (2006:13-14) concebem a idia de inovao como as tenses, rupturas e transio com o paradigma institudo. Estes autores definem as inovaes como um conjunto de saberes e praticas social e historicamente construdas, num dado espao-tempo, no plano molecular ou seja, nas relaes/interaes entre sujeitos em suas prticas no cotidiano das instituies, com as quais se comporia o solo epistmico dos planos micro e macropolticos.12

PELBART (1991) distingue o louco (personagem social discriminado, excludo e recluso) da loucura (desrazo). O louco seria um personagem criado no sculo XVII, recebendo a incumbncia de encarnar em seu corpo a desrazo. Ao exclu-lo da sociedade visava-se excluso da loucura, que para Pelbart seria uma dimenso essencial de nossa cultura. Assim, a desconstruo da experincia manicomial passa pela necessidade de desconstruir os manicmios mentais e subjetivos de maneira a permitir um novo exerccio do pensar e das prticas sociais, uma nova forma de relacionar-se com o Acaso, como Desconhecido, com a Fora e com a Runa. (PELBART, 1991:136)13

Grosso modo, segundo COSTA-ROSA (2000) e COSTA-ROSA et al. (2003), encontramos como tipificao ideal os modelos de ateno asilar e psicossocial, considerados antagnicos. Contudo, existem diversas nuances possveis entre ambos. Esta discusso ser detalhada posteriormente no marco terico deste estudo.

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uma atuao integrada que apresenta mltiplas possibilidades e percalos em sua efetivao. Alm disso, diversos interesses, disputas e assimetrias de poder constitudos historicamente na diviso do trabalho coletivo em sade exigem reposicionamentos subjetivos mais profundos e escolhas que talvez nem todos os envolvidos percebam ou queiram efetuar. Assumir a construo de novos agenciamentos exige identificar e lidar com provveis capturas, criando novas linhas de fuga, desterritorializaes e

reterritorializaes (GUATTARI & ROLNIK, 2005) que, por vezes, colocam os trabalhadores ante o olho do furaco14 (MERHY, 2007b). Cabe assim, averiguar como os prprios trabalhadores compreendem esse lugar de protagonismo15 atribudo aos mesmos no mbito do SUS, destacado em polticas oficiais como a Poltica Nacional de Humanizao (BRASIL, 2006). Dar voz aos trabalhadores, por serem operadores16 fundamentais desse processo, possibilita compreender alguns desdobramentos, possibilidades, limites e desafios que esto colocados para a consolidao do SUS e da Reforma Psiquitrica brasileira. Diante do exposto, esta investigao aborda as experincias intersubjetivas de trabalho em um CAPS situado em um contexto municipal de ampliao e organizao da rede de sade em Fortaleza, cujos porta-vozes assumem seu alinhamento ao iderio do SUS e da Reforma Psiquitrica (ANDRADE et al., 2007). Nesse sentido, abordar o tema do trabalho em sade visa compreender para transformar (CLOT, 2006),

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O olho do furaco foi o termo utilizado por alguns mdicos para caracterizar seu trabalho no Programa Sade da Famlia (PSF) de So Paulo ao ter que lidar com condies de trabalho precrias associadas a novas demandas e a formas transicionais de organizao de seus processos de trabalho CAPOZZOLO (2003). MERHY (2007b) retoma esta expresso ao analisar a experincia dos trabalhadores de CAPS.15

Termo encampado pela Poltica Nacional de Humanizao (BRASIL, 2006: 47), definido como sendo a idia de que a ao, a interlocuo e a atitude dos sujeitos ocupa lugar central nos acontecimentos. GOHN (2005:9) distingue os protagonistas dos atores ao retomar o sentido etimolgico grego, onde o protagonista era o lutador principal de um torneio e posteriormente o personagem principal de uma pea de teatro. Desse modo, os protagonistas se distinguem como atores principais de determinados processos sociais que congregam outros diferentes tipos de atores.16

O termo operadores utilizado por ROTELLI et al. (1990) se refere aos trabalhadores comprometidos com mudanas tico-polticas na produo de cuidado em sade mental.

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entendendo a transformao na perspectiva de emancipao17. Tomamos assim, como questo norteadora desta investigao: Como podem ser compreendidas as experincias intersubjetivas de trabalho face micropoltica cotidiana emergente no CAPS investigado, considerando a perspectiva dos trabalhadores? Adotando a concepo de intersubjetividade de Gadamer e uma concepo de experincia inspirada em Husserl, compreendemos esta ltima como modo essencial de estar no mundo e de ser-com-outros, estando necessariamente vinculada ao seu contexto social (ALVES et al., 1999). Por outro lado, a experincia inclui dimenses pr-reflexivas, no objetivveis e intangveis, no sendo possvel apreend-la completamente em um processo de investigao (ALVES et al., 1999). Embora a experincia inclua dimenses instransponveis para a linguagem, consideramos possvel e vivel compreender algumas das suas dimenses de modo a construir verses de sentido - sempre transitrias - que tambm refletem nossa leitura crtica enquanto sujeito epistmico da investigao. Ao adotar esta posio, assumimos o limite de saber que estaremos apreendendo apenas algumas interpretaes e reinterpretaes a respeito das experincias dos trabalhadores. Contudo, tais interpretaes e reinterpretaes tambm possibilitam o deslocamento da experincia em direo linguagem e, deste modo, em um para alm da subjetividade (GADAMER, 2007: 27). Em termos metodolgicos e interpretativos, adotamos um referencial fundamentado na hermenutica de Hans Georg Gadamer. Tal escolha referenda possibilidades de ir alm de uma compreenso meramente fenomnica da experincia, permitindo situ-la junto a uma conjuno de condies que a circunscrevem e delineiam, dotando-a de sentido. No decorrer deste trabalho, aprofundaremos o dilogo com a literatura no captulo do marco terico, apresentando o estado da arte a partir de textos oriundos de autores nacionais e internacionais que se debruam sobre a temtica do trabalho em17 17

Emancipao aqui entendida como "... um conjunto de lutas processuais, sem fim definido" SANTOS (1999: 277). Mas com um sentido poltico que toma como norte a ampliao e o aprofundamento das lutas democrticas em todos os espaos estruturais da prtica social.... Exige assim, uma nova cidadania que se "constitui na obrigao poltica vertical entre os cidados e o Estado, como na obrigao poltica horizontal entre cidados (SANTOS, 1999:277), revalorizando "o principio da comunidade, conjugado idia de igualdade sem mesmidade, idia de autonomia e idia de solidariedade". (SANTOS, 1999:278)

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sade, sobre servios comunitrios em sade mental e sobre a micropoltica do trabalho em sade, apresentando interldios com os campos da Sade Coletiva e da Sade Mental no Brasil. O marco terico deste estudo revisitar inicialmente o campo da sade mental no Brasil, de maneira a discutir criticamente o processo de Reforma Psiquitrica e o lugar dos CAPS na rede de sade. Apresentaremos algumas propostas referentes aos modelos de ateno em sade mental, seguindo-se uma breve reconstituio da Reforma Psiquitrica em Fortaleza, municpio que sedia o CAPS investigado. Finalizaremos esta primeira parte do marco terico expondo alguns desafios contemporneos para o processo de Reforma Psiquitrica. Subseqentemente discutiremos algumas concepes e perspectivas sciohistricas do trabalho em sade, passando pelos processos de profissionalizao em sade demarcando categorias como: autonomia profissional, interprofissionalidade, interdisciplinaridade, ncleo profissional e campo interprofissional. Na seqncia

apresentaremos uma leitura sobre a micropoltica do trabalho em sade utilizando referenciais oriundos de Pierre Bourdieu e Norbert Elias. Finalizaremos esta segunda parte do marco terico apresentando algumas caractersticas sobre os trabalhadores e os servios pblicos no Brasil, pelo fato desta temtica apresentar dilemas com os quais o trabalho no SUS tambm se depara. Passaremos, ento, para a terceira parte do marco terico apresentando a noo de experincia intersubjetiva em Husserl e de intersubjetividade em Gadamer, de maneira a articular a micropoltica do trabalho em sade com dimenses intersubjetivas subjetivas que sero retomadas na exposio de nossos principais achados. O captulo da metodologia apresentar detalhamentos de nosso percurso, e, na seqncia, apresentaremos os achados dialogando com a literatura, de maneira a construir algumas verses de sentido possveis para a temtica escolhida.

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1.1 OBJETIVOCompreender, na perspectiva dos trabalhadores, as experincias intersubjetivas de trabalho contextualizadas na micropoltica cotidiana de um CAPS que vem passando por um processo de reorganizao de suas aes, situado em um municpio de grande porte no Nordeste do Brasil.

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2 MARCO TERICO2.1 A Reforma Psiquitrica revisitadaNeste tpico apresentaremos uma leitura crtica sobre a Reforma Psiquitrica no Brasil tecendo brevemente sua trajetria histrica. Discutiremos sobre os modelos ateno em Sade Mental e, na seqncia, realizaremos uma anlise sobre a reforma Psiquitrica em Fortaleza dialogando com a literatura, para finalmente expor algumas tendncias atuais que instigam o processo de Reforma Psiquitrica em direo a novos desafios.

2.1.1 O campo da Sade Mental no Brasil Utilizar o termo sade mental incita-nos a algumas reflexes. Limitaes de ordem etimolgica - que evidenciam certa ciso cartesiana corpo-mente, e limitaes histricas - pela emergncia do referido termo em associao a vertentes congruentes com a adaptao e normatizao como forma de lidar com o desvio e a loucura (GUINSBERG, 2004), poderiam induzir-nos a restringir a sua utilizao. No entanto, segundo AMARANTE (2007), a sade mental no Brasil vincula-se a um campo ou rea de conhecimento e de atuao tcnica no mbito das polticas pblicas de Sade. Essa idia instiga-nos inicialmente a problematizar a noo de campo, pouco explorada pelo referido autor. Reportando-nos a BOURDIEU (1996), consideramos a concepo de campo como um espao social cujos atores apresentam disposies, posies e interaes em torno da deteno de certo tipo de capital (simblico, econmico, poltico e outros). Tal perspectiva tambm reitera a pluralidade e complexidade vigente no campo da Sade Mental observada por AMARANTE (2007). Este campo conjuga, assim, comunidades cientficas - representativas de diversos saberes disciplinares, bem como comunidades praxiolgicas - representativas de conhecimentos prticos e de uma ao poltica. Tal conjugao produz, como uma de suas possveis expresses, a institucionalizao de determinadas propostas atravs da formulao de polticas pblicas de Sade Mental. Ao estabelecer interlocues entre o campo da Sade mental e o da Sade

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Coletiva, lembramos que para PAIM & ALMEIDA FILHO (1998) e CAMPOS (2000b) este ltimo campo representaria a conjugao de um campo cientfico e um movimento ideolgico em aberto. Contudo, parece-nos que ltimo componente enunciado pelos mereceria, a nosso ver, maior discusso. Tanto a Sade Mental quanto a Sade Coletiva se configuram enquanto campos interdisciplinares, com pretenses transdisciplinares18 (PAIM & ALMEIDA FILHO, 1998; CAMPOS, 2000b), por incorporar e articular saberes e prticas oriundos de diversos campos do conhecimento, dentre eles, as disciplinas cientficas. Apesar das convergncias entre esses campos no que tange a dimenses coletivas presentes em ambos, a clnica individual um componente fundamental no campo da Sade Mental. Contudo, a clnica psicossocial conjuga arranjos tecnolgicos individuais e coletivos, alm de ser perpassada por aspectos tico-polticos (BEZERRA JUNIOR, 2001) que se aproximam da noo de clnica ampliada referendada por autores da Sade Coletiva como CAMPOS (2003) e autores que tem investido em aproximaes entre a Sade Coletiva e a Sade mental, como ONOCKO CAMPOS (2001). 2.1.2 A Reforma Psiquitrica no Brasil Revisitar a Reforma Psiquitrica instiga-nos a uma releitura crtica de um projeto coletivo que inspirou experincias muito heterogneas. Caberia, ento, falar em reformas no plural, engendradas a partir de um iderio impregnado pela influncia da Psiquiatria Democrtica Italiana e sua proposta tico-poltica de desinstitucionalizao19. O processo de Reforma Psiquitrica engendrou um acmulo discursivo e uma ao poltica que inspirou experincias pioneiras no pas. Essas reformas

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Grosso modo, a interdisciplinaridade pressupe uma articulao entre diversas disciplinas e torno de um problema comum, enquanto a transdisciplinaridade representa o borramento das fronteiras disciplinares (FURTADO, 2007).19

Termo surgido nos Estados Unidos durante o governo Kennedy, a desinstitucionalizao assumiu diversos significados. No preventivismo designava a desospitalizao vinculada a medidas racionaisadministrativas de reduo de leitos um reestruturao da assistncia pblica concomitante. Na experincia italiana, o termo retoma seu sentido original de desmontagem e profunda transformao do modo de existncia concreta da instituio. Para os italianos, a desinstitucionalizao do preventivismo, e da psiquiatria de setor e institucional trata-se de uma Psiquiatria Reformada, que permite a coexistncia e complementaridade entre servios territoriais e hospitais psiquitricos, acarretando a psiquiatrizao de problemas sociais, o abandono de alguns pacientes e a cronificao de outros, com a criao de um circuito psiquitrico de transinstitucionalizao (internao temporria e recorrente dos novos tipos de crnicos) (ROTTELI et al., 1990).

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materializaram prticas que reinterpretaram o iderio original, instituindo processos locais singulares, compostos de mltiplos atores a partir dos quais surgiram, segundo BRAGA CAMPOS (2001) diferentes modelagens de reformas. Uma delas, mais focalizada, foi a do CAPS Luiz da Rocha Cerqueira, criado em 1987 em So Paulo, primeiro dispositivo cuja proposta clnica se fundamentava em uma prtica centrada na vida cotidiana da instituio e do usurio, de modo a permitir o estabelecimento de uma rede de sociabilidade capaz de fazer emergir a instncia teraputica (LUZIO & LABBATE, 2006). A partir da experincia desse CAPS surgiu tambm a Associao Franco Basaglia, composta por usurios e familiares (LUZIO & LABBATE, 2006). Posteriormente, o municpio de So Paulo organizou uma rede de assistncia em sade mental integrando as unidades de ateno bsica, ambulatrios, hospitais-dia e alguns hospitais gerais, bem como criou centros de convivncia e cooperativas (LOPES, 1999). Paralelamente, o municpio de Campinas tambm articulou uma rede de sade mental vinculada rede de ateno bsica e demais servios do SUS. No entanto, para BRAGA CAMPOS (2000), Campinas representou uma proposta hbrida de reforma, por assumir a co-gesto de um hospital psiquitrico. Esta autora considera que tanto So Paulo quanto Campinas apresentaram certa influncia preventivista na organizao da assistncia sade mental, por situar a rede de ateno bsica de sade como porta-de-entrada dos servios de sade mental e referendar uma concepo de sade-doena fundamentada na Histria Natural da Doena. Entretanto, LUZIO & LABBATE (2006) sugerem que ao se estabelecer a ateno bsica como porta-de-entrada havia tambm o intuito de ampliar o acesso e a cobertura em relao aos problemas de sade mental da populao. J o municpio de Santos desenvolveu a experincia brasileira radicalmente mais prxima da proposta italiana. Alm disso, Santos foi precursor na articulao de um processo de reforma envolvendo a criao de uma rede de ateno psicossocial territorializada, capilarizada e intersetorial. Da interveno e fechamento da Casa de Sade Anchieta surgiram os NAPS (Ncleos de Apoio psicossocial) e uma srie de dispositivos intersetoriais atuantes no campo da ateno psicossocial (LANCETTI, 1991). Essa experincia seminal ainda inspira novas geraes de trabalhadores, por sua potncia mobilizadora e pela paixo com que narrada por vrios daqueles que a vivenciaram.

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O iderio da Reforma Psiquitrica comeou a se delinear em um tempo de lutas e sonhos coletivos. Aos sonhos permitido transitar por onde lhes aprouver. E mesmo sonhos coletivos, formulados por diversos sonhadores, sofrem algumas capturas ao transmutar-se em polticas e prticas histrica e socialmente situadas. De maneira que a institucionalizao do processo de Reforma Psiquitrica brasileira no escapa a essa dialtica de qualquer processo social, gerando hiatos entre um iderio e sua materializao nas prticas. Sendo um processo complexo que envolve diversos atores, a institucionalizao gradual do iderio da Reforma teve a influncia de diversas vertentes na formulao das polticas nacionais de Sade Mental. De maneira que so diversos os campos discursivos que inspiram a proposta oficial de Reforma Psiquitrica, gerando algumas contradies que pretendemos subseqentemente explorar. Para NARDI & RAMMINGER (2007) h trs discursos vinculados a diferentes regimes de verdade historicamente institudos no mbito da sade mental, gerando distintas formas de cuidado e interveno sobre a loucura. Estes autores identificam um discurso religioso, que concebe o cuidado da loucura como caridade; um discurso psiquitrico, que adota uma leitura cientfica sobre o cuidado da loucura; e um discurso da Reforma, que inscreve esse cuidado no mbito social e na discusso sobre direitos humanos e cidadania. Contudo, esses mesmos autores admitem que o discurso da Reforma no monoltico, sendo composto de diversas vertentes. Estas se inspiram em diferentes pressupostos epistemolgicos, tcnicos e tico-polticos, de maneira que parece haver um discurso que inspira o que aqui denominamos de iderio da Reforma, vinculado vertente italiana de desinstitucionalizao (AMARANTE, 1996, 1998); assim como um discurso oficial de sade mental, de carter hbrido, oriundo de diversas vertentes reformistas, havendo dentre elas importante e sutil influncia do preventivismo (BORGES, 2007). H tambm discursos psiquitricos reatualizados, inspirados em vertentes neo-organicistas com penetrao sutil, mas constante, induzindo a reconfigurao de concepes e prticas veiculadas por trabalhadores e usurios,

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inclusive, de novos servios de Sade Mental20 (AGUIAR, 2004). Assim, embora a Psiquiatria Democrtica Italiana tenha sido a grande inspiradora do principal movimento social e poltico da Reforma o Movimento Nacional da Luta Antimanicomial, ao apontar influncias de vertentes preventivistas21 na conduo sutil da poltica oficial de assistncia psiquitrica brasileira, BORGES (2007) indiretamente se aproxima de IMPAGLIASSO (2005), que reitera uma possvel captura das polticas de Sade Mental ao assinalar sua contradio com princpios do SUS. Esta ltima autora questiona a nfase priorizao de portadores de transtornos mentais graves e persistentes vigente no discurso, nas aes e nas estratgias das polticas oficiais de Sade Mental. Para ela, tal nfase contradiz o discurso inclusivo e integral do SUS, pautado pela preocupao em atender a diversos problemas psicossociais da populao. Nessa perspectiva, problemas psicossociais situados fora do espectro dos transtornos graves e persistentes priorizados pela poltica oficial no estariam sendo contemplados em termos de sua resoluo. Essa priorizao seleciona a demanda a partir da oferta, e, caso no atenda outros problemas psicossociais, engendra uma focalizao das aes em torno de grupos especficos da populao, alinhando-se perspectiva preventivista de priorizao, ao relegar o cuidado do restante da populao. Outra via de aproximao com o preventivismo, que convive muito bem com vertentes organicistas, d-se pela reaproximao do atual objeto da Psiquiatria - o transtorno mental tambm presente nos enunciados oficiais. Embora uma defesa possvel dessa priorizao possa pautar-se pela idia de eqidade, justificando-se pela maior vulnerabilidade de pessoas com problemas psicossociais graves estarem sujeitas a cuidados excludentes em hospitais psiquitricos,20

Vale ressaltar que as vertentes organicistas e biolgicas da Psiquiatria contempornea convivem e coexistem muito bem com propostas de Psiquiatria Reformada, como as que caracterizam , para ROTELLI et al. (1990) modelos de reforma psiquitrica efetivados, por exemplo nos EUA cujas bases se fundamentaram a Psiquiatria Preventiva e Comunitria-, e na Frana como a psiquiatria de setor e institucional. Para ROTELLI (1990) a Psiquiatria Reformada se caracteriza pela coexistncia e complementaridade entre servios territoriais e hospitais psiquitricos, com a psiquiatrizao de problemas sociais, e com a criao de um circuito psiquitrico que abandona alguns pacientes e cronifica novos problemas, como os vinculados drogadio.21

As crticas psiquiatria preventiva e comunitria norte-americanas enfocam sua lgica economicista, que visa racionalizao de recursos e defende polticas focalizadas. Nessa perspectiva surge uma priorizao baseada na seleo de problemas segundo o perfil de oferta dos servios e de critrios tcnicos; e uma hierarquizao dos servios e aes segundo nveis de complexidade que dificultam a continuidade do cuidado e do vinculo com os usurios.

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mesmo assim, a priorizao acaba gerando uma tenso permanente com o princpio da integralidade. Tal tenso tenderia a ser minimizada com a implementao de aes e dispositivos articulados em arranjos organizacionais pautados por uma coresponsabilizao (como o apoio matricial), a partir dos quais seria possvel acolher e cuidar diversos tipos de demandas e necessidades psicossociais da populao. Contudo, para superar essa captura preventivista, caberia realinhar as polticas oficiais de Sade Mental de maneira a ampliar o dilogo com outras polticas sensveis a questes do campo psicossocial, entre elas, a Poltica Nacional de Humanizao (PNH) e a Poltica de Educao Permanente do SUS. No entanto, as polticas oficiais geralmente expressam a institucionalizao de experincias previamente realizadas. Ou seja, na constituio histrica do SUS, primeiro acontecem as experincias e posteriormente estas so institucionalizadas atravs de marcos jurdico-normativos, burocrticos e financeiros que permitem sua replicao e propagao. Um exemplo de captura relacionado a esse processo de institucionalizao oficial de determinadas experincias trata-se da sntese hbrida que gerou os CAPS na portaria GM 224/1992(AMARANTE & TORRE, 2001). Fruto da fuso de duas experincias epistemolgica, operacional e politicamente distintas - os NAPS de Santos e o CAPS de So Paulo - o surgimento dos CAPS/NAPS ilustra o exerccio burocrticonormativo e homogeneizador que tem caracterizado a produo infraconstitucional do SUS. Por outro lado, esse processo tambm expressa uma sntese possvel de dissensos dentro do prprio movimento da Reforma Psiquitrica, tendo como decorrncia o surgimento ao longo da dcada de 90 de inmeras experincias distintas unificadas sob o mesmo nome fantasia NAPS/CAPS (SANTOS, 1997). Apesar desse vis da portaria SAS 224/1992, tanto esta quanto o relatrio final da II CNSM reiteravam a importncia de criar uma rede de diversos dispositivos articulados alm dos CAPS/NAPS que acabou no vigorando na induo financeira estabelecida pela poltica oficial de Sade Mental. Alm disso, essa portaria tampouco garantiu a entrada da Reforma Psiquitrica na agenda estatal, justamente pela falta de linhas de financiamento especificas para a rea, embora a portaria SNAS 189/1991 j tivesse includo o pagamento de procedimentos de Sade Mental realizados fora de hospitais psiquitricos na tabela SIH/SUS. Esse perodo, situado entre 1990 a 1996, foi denominado por BORGES (2007)

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de momento germinativo da poltica oficial da reforma, caracterizado por uma tendncia de desospitalizao e de organizao da assistncia hospitalar. Foi, entretanto, na virada do sculo, atravs de uma conjuno de fatores como: a aprovao da Lei 10.216, a III Conferncia de Sade Mental e a portaria GM 336/2002, que se consolidou a entrada da Sade Mental na agenda do SUS, com uma ntida induo na expanso do CAPS como dispositivo central da poltica oficial de Sade Mental. Uma nova regulamentao dos CAPS vinculada garantia de linhas de financiamento especficas extra-teto regulamentou estes servios, estabelecendo uma nova tipologia que subdividiu os CAPS em 3 tipos, considerando o perfil dos problemas atendidos e as faixas etrias CAPS adulto, CAPS infantil e CAPS para problemas de lcool e Drogas; e as reas de cobertura populacional - CAPS tipo I, CAPS tipo II e CAPS tipo III (maiores detalhes sobre os tipos de CAPS constam no ANEXO II). Essa induo financeira possibilitou o crescimento exponencial do nmero de CAPS no Brasil, que passou de 197 em 1997 para 1326 no final de 2008. Outras estratgias, programas e polticas voltados para a desospitalizao e a reduo de leitos psiquitricos tambm foram sendo encampados pela poltica oficial de Sade Mental. Entre eles o Programa de Volta para Casa, os Servios Residenciais Teraputicos e a reorientao da assistncia hospitalar. Paralelamente surgiram aes voltadas para a reinsero social e laboral de usurios e a adoo da estratgia de reduo de danos como poltica oficial. Por outro lado, outras reas como a Ateno Bsica tm criado novos dispositivos como os Ncleos de Apoio Sade da Famlia (NASF), incorporando profissionais e aes de apoio matricial em Sade Mental. Uma singularidade no processo de Reforma Psiquitrica brasileira trata-se do fato de que o mesmo ocorreu simultnea e convergentemente com a criao de um sistema nacional e pblico de sade. Isso vem acarretando a aproximao com outras reas da sade implicando em novos desafios para o campo da Sade Mental, tanto por possibilitar maior permeabilidade de suas fronteiras, quanto por certo risco de diluio e perda de suas especificidades. Essa aproximao e incorporao do processo de Reforma Psiquitrica pelo SUS suscita a busca de pontos de convergncia que permitam superar a tendncia centralizadora do cuidado de Sade Mental nos CAPS, de maneira a incluir o cuidado de outros problemas psicossociais em uma rede de sade capilarizada, inclusiva,

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integrada e integral composta por diversos pautados por um cuidado orientado ticopoliticamente em direo a uma perspectiva psicossocial. 2.1.3 Modelos de ateno22 em Sade Mental Diversos autores do campo da Sade Coletiva apresentam formulaes sobre os modelos de ateno ou modelos assistenciais (PAIM, 2002; MERHY, 1997, 1998; CAMPOS, 1992; SCHRAIBER, 1990) afirmando que estes representam um iderio scio-historicamente situado e orientam os sistemas de sade. No caso brasileiro, o SUS apresenta princpios e proposies que defendem a emergncia de dada conscincia sanitria, a participao cidad e a vinculao da sade com lutas polticas e sociais mais amplas (PAIM, 1997). Para MERHY (1998), um modelo de ateno se refere aos modos como a sociedade e o Estado desenvolvem e utilizam tecnologias para produzir e distribuir aes de sade. Estes modelos se materializam e conformam nos micro-espaos e no cotidiano dos servios, expressando-se por um conjunto de processos de trabalho e de prticas de sade. A anlise destes modelos deve levar em considerao os seguintes aspectos: as concepes de sade em vigor, os saberes/instrumentos/trabalhadores que esto envolvidos, e as disputas presentes no contexto scio-histrico (MERHY, 1998). Nessa mesma linha, PAIM (2002: 374) concebe que o modelo de ateno uma dada forma de combinar tcnicas e tecnologias para resolver problemas de sade e atender necessidades de sade individuais e coletivas. Este autor tambm ressalta que os modelos de ateno no se constituem enquanto um padro. Eles representam uma racionalidade, uma razo de ser, ou seja, uma lgica orientada para a ao. PAIM (2002:338) identifica 3 concepes de modelos assistenciais ou modelos de ateno, correspondendo a: (1) uma noo genrica oficial, que enfatiza a organizao de servios, a gesto e o planejamento (em documentos oficiais); 2) uma22

Neste texto optamos por utilizar o termo modelo de ateno em detrimento de modelo assistencial, apesar dos mesmos serem tomados como sinnimos por autores que discutem o tema (PAIM, 2002). Para CANDEIAS (1992) a substituio do termo assistncia pelo termo ateno partiu de uma leitura ideolgica sobre a passividade dos usurios reportada ao termo assistncia no condizente com novas aes no campo da Sade Pblica. Pretendeu-se com o novo termo, delimitar novas aes mais adequadas ao novo iderio discursivo. Fazemos, entretanto, uma ressalva a essa questo lembrando, inclusive, dos marcos jurdicos do SUS, nos quais a noo de assistncia incorporada e representa um dos componentes da noo de ateno, visto esta ltima englobar a promoo, a proteo, e a recuperao (assistncia e a reabilitao) em sade (Lei 8080/1990).

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noo mais ampla, que reconhece intermediaes entre o tcnico e o poltico (em Gasto Campos Wagner); 3) uma noo mais precisa, delimitada pela dimenso tcnica das prticas de sade (em Lilia Schraiber). Para CAMPOS (1992) os modelos de ateno se inscrevem em um movimento que nunca se completa, em um processo produtor de aes de afirmao deliberadas que deve manter dispositivos crticos, tambm produtores de negatividade, de maneira a garantir a abertura para a mudana, a projeo para o devir. Considerando que as

tcnicas e tecnologias esto relacionadas a questes sociais mais amplas, os modelos de ateno possuem um triplo carter administrativo, tcnico e poltico (MERHY, 2003). PAIM (2002) assinala que os modelos de ateno hegemnicos e os alternativos expressam determinados interesses e se inscrevem em determinados contextos histricos que favorecem sua emergncia. Modelos hegemnicos e alternativos tambm apresentam distines referentes a aspectos tais como: seus propsitos em relao alterao nos problemas de sade; seus mtodos e processos de trabalho predominantes; e suas formas de organizao e gesto dos servios (PAIM, 2002). Alm disso, para CAMPOS (2000a), os modelos alternativos devem pressupor uma produo de cuidado centrada nos usurios, mas tambm devem considerar a realizao dos trabalhadores. Essa centralidade no usurio deve ser compreendida no apenas como a resoluo de seus problemas mais imediatos, mas o estmulo sua maior participao e protagonismo na reflexo e ao sobre a sade como direito e responsabilidade de todos. Pressupe o desenvolvimento de uma conscincia sanitria que permita ampliar suas concepes de mundo e seu envolvimento na busca por uma sociedade mais justa e democrtica (CAMPOS, 2000a). Diversas convergncias podem ser estabelecidas entre as concepes dos autores acima apresentados. Todos eles assinalam que um modelo de ateno deve ser orientado por um iderio discursivo tico-poltico, operacionalizando-se a partir de processos de trabalho e tecnologias que materializam prticas de cuidado visando justamente aproximar-se do iderio proposto. Entre os diversos autores tambm h distintas caracterizaes de modelos tradicionalmente hegemnicos. PAIM (2002) designa esse modelo hegemnico de mdico assistencial-privatista, contextualizando-o em relao conformao das polticas pblicas do Brasil. Esse modelo teria suas origens no Brasil a partir da

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assistncia filantrpica e da medicina liberal, no sendo representativo apenas do setor privado, pois tambm se reproduz no setor pblico. Caracteriza-se por ser centrado na demanda espontnea ou numa oferta de servios dependente da lgica de mercado, sendo um ato produzido institucionalmente, mas operado individualmente na consulta direta do mdico.Outros autores como SVIO & GULJOR (2004), assinalam variaes dentro do que

denominam de modelo mdico hegemnico, tais como os dispositivos assistenciais ambulatoriais, visto estes ficarem circunscritos a aes pautadas exclusivamente em consultas mdicas ou psicolgicas respaldadas teoricamente no paradigma racionalista problema-soluo, tomando como objeto de cuidado a doena mental (SVIO & GULJOR, 2004: 222). O modelo mdico hegemnico se fundamenta teoricamente na racionalidade mdica moderna, que inspirou o modelo biomdico e o modelo psiquitrico tradicionais. Estes operam com uma concepo reducionista de sade e loucura, adotando uma viso mecnica e cindida entre corpo e mente, e ambos estabelecem o hospital como seu cenrio primordial de prticas, estendendo-se aos ambulatrios mdicos. Neste modelo o processo de trabalho em sade centralizado na figura do mdico e os demais profissionais entram como co-adjuvantes. O modelo asilar ou psiquitrico tradicional representa um equivalente deste modelo mdico hegemnico no campo da sade mental. Entretanto, conforme o momento histrico, distintos modelos de ateno podem vigorar, conforme demonstra ALVES (2001) ao fazer uma caracterizao histrica dos distintos modelos de ateno em sade mental (Quadro1).

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Quadro 1 Modelos de Ateno Psiquitrica. Perodo Pressupostos Preventivismo At os anos 70 Especializao Especializao Anos 70 80 Setorizao Racionalidade Regionalizao Anos 80 90 Hierarquizao Intensidade Territrio Diversificao Anos 90 Complexidade Inverso Tendncia no ano 2000 Cidade saudvelFonte: ALVES (2001:167-168).

Servio Simplificado Hospcios Hospcios ou Ambulatrios Especializados Porta de entrada Rede servios regionais Referncia / contra-referncia Responsveis regionais nico / integral Rede social Modelo PSF / PACS Sem servio Internao domiciliar

Para ALVES (2001), os modelos de ateno em sade mental devem contemplar a integralidade em suas dimenses ideolgicas e tcnicas. A integralidade em sade mental considerada um operador terico e prtico fundamental, situando-se como horizonte tico e poltico a ser buscado na construo de novos modelos de ateno (MNGIA & MURAMOTO, 2006). A integralidade compreendida assim, no apenas como uma diretriz, mas como bandeira de lutas e imagem-objetivo (MATTOS, 2001), devendo ser buscada em cada ao desencadeada pelo sistema de sade em qualquer mbito, local ou global, individual ou coletivo. Para isso, torna-se necessrio transformar as tecnologias empregadas, a organizao dos servios, os processos de trabalho em sade, a formao dos profissionais e as relaes estabelecidas entre profissionais de sade e usurios (MNGIA & MURAMOTO, 2006). Retomando SARACENO (2001), ALVES (2001) considera que a integralidade est associada qualidade em sade mental, vinculando esta noo de acessibilidade, composta por trs (3) fatores (SARACENO, 2001): a) Geografia (local; fluxo virio; barreiras fsicas ou outras); b) Turnos de funcionamento (servio nico ou integrado); c) Menu de programas (assistncia; reinsero; lazer; hospitalidade; trabalho). A discusso da qualidade em sade mental complexa e contempla outras dimenses alm daquelas vinculadas qualidade formal, propostas por SARACENO (2001) e apresentadas por ALVES (2001). Para BARRETO (2005) pressupe tambm a necessidade de aprofundamento de conceitos amplamente utilizados como cidadania e autonomia.

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J no campo da Sade Coletiva autores como BOSI & UCHIMURA (2007) tambm aprofundam a discusso sobre a qualidade articulando-a com a questo da subjetividade e da humanizao. As autoras referendam a qualidade como termo polissmico de carter multidimensional que origina novos construtos, abrangendo dimenses objetivas e subjetivas de fenmenos complexos como a sade. Isto implica reconhecer e considerar os processos simblicos e as prticas discursivas valorizando a percepo dos atores envolvidos. Outro autor, COSTA-ROSA prope uma sistematizao de modelos de ateno antagnicos a partir de alguns analisadores que distinguem um paradigma23 asilar de outro psicossocial. Como analisadores teramos, ento (COSTA-ROSA, 2000: 143): ((1) a definio de um objeto e dos meios terico-tcnicos de interveno, o que inclui as formas de diviso de trabalho interprofissional; 2) as formas de organizao dos dispositivos institucionais; 3) as modalidades de relacionamento com os usurios e a populao; 4) as implicaes ticas dos efeitos de suas prticas em termos jurdicos, tericos, tcnicos e ideolgicos.. Esses analisadores se aproximam daqueles propostos por TEIXEIRA et al. (1998), para quem qualquer modelo de ateno precisa ser composto por: Sujeito, Objeto, Meios de Trabalho e Formas de Organizao. No quadro 2 detalhamos os analisadores propostos por COSTA-ROSA (2000) COSTA-ROSA et al. (2003), distinguindo dois modos de ateno em sade mental que nos parecem representar duas polaridades entre as quais muitas nuances so possveis.

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Em outro texto, YASU & COSTA-ROSA (2008:27) explicitam sua concepo de paradigma como a agregao dos diferentes vetores das pulsaes tanto em termos de ao instituinte quanto de resistncias do institudo no campo da Sade Mental. Discordamos de uma utilizao to ampla do termo paradigma, cujo significado encontra-se, para PAIM & ALMEIDA-FILHO (1998) relativamente estabelecido na filosofia da cincia. Embora Thomas Kuhn tenha utilizado diversas definies para este termo, utilizamos uma das suas concepes de paradigma, definido como toda uma estrutura conceitual e operacional de que dispe uma determinada comunidade cientfica no exerccio de sua atividade (KUHN, 2000).

34 Quadro 2 Principais caractersticas dos modelos de ateno asilar e psicossocial MODO ASILAR MODO PSICOSSOCIAL OBJETO DE TRABALHO Doena/Transtorno Mental Sofrimento/ Existncia Recursos multiprofissionais Recursos multiprofissionais Diviso tradicional e Integrao dos processos de trabalho fragmentada do trabalho em Centralidade no usurio sade Meios de Tcnico de referncia (funo Mdico-centrado trabalho intercessora e facilitao de vnculos) Medicao e controle Conjunto amplo de dispositivos de disciplinar como principais reintegrao sociocultural instrumentos de trabalho Cenrio de Hospital Psiquitrico Servios territoriais abertos prticas Organogramas piramidais ou Organograma horizontal Organizao verticais Diferenciao entre poder decisrio e de institucional Amlgama entre poder coordenao (relaes intradecisrio e de coordenao nfase participao popular institucionais) Estratificaes de poder e saber Horizontalizao das relaes de poder Instituio como locus depositrio da clientela potencial Espaos de interlocuo horizontais Suporte transferencial compatvel com a Relacionamento Interdio de espaos aos usurios e populao em geral singularidade com a clientela Interdio do dilogo Reproduo de relaes intersubjetivas verticais Subjetivao da queixa Cura Desospitalizao Finalidade Desmedicalizao Implicao subjetiva e scio-cultural Efeitos teraputicos e Supresso sintomtica Reposicionamento subjetivo ticos (fins Cronificao Reinsero scio-cultural polticos e socioculturais)Adaptado de COSTA-ROSA (2000) e COSTA-ROSA et al. (2003).

No campo da Sade Mental, a efetivao cotidiana de novos modelos de ateno depende, sobretudo, de tecnologias leves24 - constitudas por relaes intercessoras, que se efetivam atravs do encontro, do dilogo, do acolhimento e so realizadas atravs do trabalho vivo em ato. H tambm tecnologias leve-duras - que abrangem os saberes tcnicos estruturados (MERHY, 1997). Ou seja, mais do que o espao fsico onde acontecem as prticas, so as relaes e as prprias prticas os aspectos que garantem a efetivao de um novo modelo de ateno.24

A concepo de tecnologia aplicada no apenas a instrumentos e maquinaria, mas tambm ao conhecimento em sade, aos saberes e fazeres em sade, ee tributaria do pensamento de Ricardo Bruno Mendes Gonalves, que adota dois conceitos neste sentido: tecnologias materiais para mquinas e instrumentos, e tecnologias no materiais, para o conhecimento tcnico (MENDES GONALVES, 1994). Seguindo esta linha, MERHY (1997) apresentou uma proposta de classificao que subdivide as tecnologias em materiais ou duras e no materiais (leves e leve-duras).

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Assim, podemos encontrar servios extra-hospitalares desenvolvendo prticas predominantemente asilares. LOBOSQUE (1997) tambm alerta a este respeito e sugere os princpios da singularidade, do limite e da articulao para nortear uma clnica antimanicomial. O princpio da singularidade convoca a interpelar e convidar o sujeito a sustentar tal singularidade com um estilo que seu (LOBOSQUE, 1997:22), sem precisar exclu-lo do convvio social. O princpio do limite trata da possibilidade de reinventar os limites, de buscar o traado de um contorno e no de processar uma excluso. Este princpio convida a cultura a conviver com certa falta de cabimento, de maneira a fazer caber o louco na cultura. Intervenes antimanicomiais podem recorrer a formas de conteno de graus variados, utilizando a medicao, a internao eventual, a assistncia em um servio de sade mental, desde que no o faam pelo vis da autoridade, mas pelo delineamento de um contorno sem proceder a uma excluso LOBOSQUE, 1997). O princpio da articulao introduz uma reflexo crtica sobre a sociedade em que vivemos, estimulando parcerias com segmentos alinhados ao combate a diversos dispositivos de excluso LOBOSQUE (1997: 24). Assim, a clnica tem o desafio de estabelecer uma interlocuo interdisciplinar, atenta s descobertas de diferentes disciplinas sem confundir-se ou subordinar-se a elas. Contudo, o principio da articulao no se limita a uma dimenso epistemolgica, nem se reduz a uma interlocuo no plano terico. Deve preocupar-se tambm em modificar questes pblicas indispensveis para garantir um trabalho em uma perspectiva antimanicomial. Os aportes de LOBOSQUE (1997) confluem com aspectos propostos nos analisadores dos modelos de ateno de COSTA-ROSA (2000), autor retomado por NUNES et al.(2008), que realizaram um estudo etnogrfico sobre um CAPS na Bahia verificando a coexistncia de diferentes modelos de cuidado implementados por diferentes grupos de trabalhadores. Nesse estudo, os autores publicizam achados voltados para os propsitos e resultados das aes produzidas nos servios de sade, havendo pouca nfase a respeito dos processos de trabalho e dos processos de gesto. Entre os modelos concorrentes por eles observados esto: 1) Um Modelo biomdico humanizado", com nfase na psicopatologia, em um cuidado assistencialista e, por vezes, tutelar, com uma postura pedaggica que prioriza uma mudana de comportamentos, objetivando torn-los compatveis com a reinsero social. Neste modelo se encontram

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aes bem intencionadas, embora geralmente normalizadoras e pouco crticas. 2) Um "Modelo psicossocial com nfase na instituio", associado a uma concepo mais psicossocial de cuidado e em uma prtica institucional pouco orientada para as aes territoriais. Os agentes deste modelo tm uma influncia mais pronunciada da clnica psicanaltica e uma preocupao com mudanas no fazer teraputico, embora estas paream estar mais adscritas a uma esfera terico-tcnica. Segundo NUNES et al. (2008) este modelo parece mais prximo da psicoterapia institucional francesa, priorizando as mudanas intra-institucionais. 3) Um "Modelo psicossocial com nfase no territrio" ou Modelo territorializado", que valoriza os aspectos sociais do adoecimento, no concebendo um cuidado em sade mental desvinculado do mbito familiar e comunitrio. Alem disso, os agentes deste modelo parecem preocupados com a esfera poltico-jurdica do mesmo. Este modelo aproxima-se do italiano, com nfase anti-institucional, pautando-se na reinsero social do doente mental. Ainda segundo NUNES et al. (2008), os agentes dos trs modelos reconhecem a importncia de incluir outros atores no processo de cuidado e valorizam o formato aberto da instituio. Contudo, os agentes dos modelos mdico humanizado e psicossocial com nfase na instituio parecem perceber as mudanas j adquiridas como conquistas, expressando menor inquietao e insatisfao com a limitao espacial/territorial do projeto. Essa caracterizao de NUNES et al. (2008) interessante por reafirmar a existncia de diversos grupos de agentes e diferentes projetos co-existentes em um mesmo estabelecimento. Alm disso, os autores ressaltam que a tipologia de modelos acima apresentada deve ser tomada como os "tipos ideais" weberianos, embora tais modelos no signifiquem uma reduo do processo vigente no CAPS a determinadas polaridades. Os autores sugerem a existncia de vantagens e desvantagens nos pontos de vista expressos por cada um dos grupos de agentes de tais modelos. Alm disso, eles tambm mencionam a existncia de um dinamismo entre os agentes de um mesmo grupo e tambm intergrupos. Como tipologias, os modelos de ateno e de cuidado representam uma

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abstrao, servindo para apontar algumas tendncias, lgicas e culturas organizacionais vigentes nos servios de sade. No cabe assim, a pretenso de buscar modelos puros, que no se materializam nas prticas, visto a configurao de novos modelos ocorrer processualmente, permitindo justamente a coexistncia de modelos e praticas permeados de a ambigidade, a ambivalncia e contradio. Vale lembrar tambm, que as propostas de modelos de ateno so reconfiguradas a partir de prticas e processos de trabalho e de cuidado atravessados por relaes intersubjetivas estabelecidas no cotidiano dos servios, perpassadas por diferentes interesses que ajudam a entrelaar as tramas das tendncias que se expressam nos servios de sade. Esses modelos de ateno tambm esto vinculados a mutaes scio-histricas que deslocam o lugar dos CAPS medida que estes se articulam a novas redes territoriais de sade ainda em constituio. 2.1.4 O lugar do CAPS em redes territoriais de sade O que um lugar, seno uma possibilidade? Um lugar no est necessariamente dado, mas pode ser fugaz, mutvel, oscilante, fluido. Ao abordar o lugar do CAPS em redes territoriais de sade no o fazemos de maneira pr-determinada, assumindo rigidamente um determinado lugar. Pelo contrrio, acreditamos que um lugar uma construo, um devir que se espacializa em territrios fsicos, sociais, existenciais e simblicos. Da, para pensar o lugar do CAPS, seria necessrio percorrer os lugares que ele j ocupou situando-os historicamente, de maneira a esboar os que porventura se pretende que ele venha a ocupar. E pensar em rede de sade pensar em uma trama que entrelaa fluxos que sustentam novas possibilidades de cuidado e potncia de vida. Ento, retomando o lugar oficial inicialmente institudo para o CAPS, lembramos da portaria 224GM/1992, que incorporou os CAPS/NAPS junto a uma srie de outros dispositivos na poltica de Sade Mental. Proposto como um dispositivo relevante entre outros, o CAPS passou a ocupar um lugar estratgico caracterizado por

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uma centralidade no sentido de atrair diversos fluxos e assumir atribuies25 que, em uma proposta de atuao em rede, talvez devessem ser compartilhadas com outros dispositivos. Lembramos, entretanto, que essa concepo do CAPS como dispositivo estratgico da Reforma (BRASIL, 2004) centralizando diversas atribuies e responsabilidades surgiu em um contexto histrico no qual eram inexistentes ou incipientes outros dispositivos e servios de sade territoriais na maioria dos municpios. Ante o vazio inicialmente existente, visto a Reforma Psiquitrica ter sido simultnea construo do SUS, talvez fosse de se esperar que os dispositivos emergentes passassem a assumir incumbncias bastante amplas, como o caso dos CAPS. Contudo, outros dispositivos ainda precisam ser contemplados para garantir avanos na transversalizao da Sade mental. Assim, entre os desafios atuais continua a necessidade de manter a expanso de CAPS e, simultaneamente, criar novas estratgias e aes entrelaando fios e fluxos na configurao de redes de sade que possivelmente iro deslocar os CAPS de seu lugar inicialmente ocupado. Nesse deslocamento cabe problematizar o prprio conceito de CAPS ante as mudanas macrossociais contemporneas. Em sua anlise documental, TRALDI (2006) destaca que os CAPS no escapam s mesmas contradies de carter mais geral, que atravessam diversas esferas de regulao social e de reproduo da vida. Sob a aparente superfcie discursiva, os CAPS operam os mesmos mecanismos de manuteno dos modos de reproduo da vida que favorecem e do sustentao ao capitalismo, assim como permitem o surgimento de artifcios que tentam ocultar esses processos. Embora a crtica desta autora seja pertinente, parece evidente que o CAPS enquanto instituio social no escapa lgica predominante na sociedade, nem s25

O CAPS deve: atender em regime de ateno diria; gerenciar projetos teraputicos oferecendo cuidado clnico eficiente e personalizado; promover a insero social dos usurios atravs de aes intersetoriais; organizar a rede de servios de sade mental de seu territrio; dar suporte e supervisionar a ateno sade mental na rede bsica, PSF, PACS (Programa de Agentes Comunitrios de Sade); regular a porta de entrada da rede de assistncia em sade mental da sua rea; coordenar junto com o gestor local as atividades de superviso de unidades hospitalares psiquitricas que atuem no seu territrio; manter atualizada a lista dos pacientes de sua regio que utilizam medicamentos para a sade mental (BRASIL, 2004: 13). Alm disso, o sucesso do acolhimento da crise essencial para o cumprimento dos objetivos de um CAPS, que de atender aos transtornos psquicos graves e evitar as internaes (BRASIL, 2004: 17). Maiores detalhes sobre a composio da equipe dos CAPS constam no ANEXO I.

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contradies nela vigentes. Neste sentido, no surpreende que alguns estudos sobre prticas e processos de trabalho nos CAPS encontrem contradies de outras ordens, como a reproduo de uma lgica asilar que pretensamente deveria estar superada, associada reproduo de um modelo ambulatorial mdico-centrado que se contrape a perspectivas psicossociais de cuidado (OLIVEIRA & ALESSI, 2005a, 2005b; ALVERGA & DIMENSTEIN, 2006; BICHAFF, 2006; SILVEIRA et al., 2007; LEO & BARROS, 2008; YASUI & COSTA-ROSA, 2008). Contudo, a superao de determinados modelos de ateno no se garante apenas a partir de mudanas espaciais vinculadas ao local onde se efetua o cuidado (LOBOSQUE, 1997), sendo necessrio problematizar os conflitos e contradies que expressam a internalizao de manicmios mentais (PELBART, 1991) que criam novos desejos de manicmio vigentes tanto nos trabalhadores de sade mental quanto na sociedade em geral (ALVERGA & DIMENSTEIN, 2006). Neste sentido, os CAPS representam manicmios. Embora haja dificuldades na instituio de prticas orientadas por perspectivas psicossociais em muitos CAPS, cabe reiterar que mudanas de concepes e prticas so graduais. Cabe, no entanto, tentar reforar determinadas tendncias, criando vetores a partir dos quais as contradies e ambivalncias possam ser utilizadas como ponto de partida para o surgimento de uma prxis mais prxima do iderio que tenta inspir-la. Essa processualidade dialtica tm sido constatada por estudos sobre os CAPS que apontam mudanas graduais nas concepes e vivncias dos trabalhadores (GARCIA & JORGE, 2006; FIGUEIREDO, 2007; SCHNEIDER et al., 2007). Por outro lado, diversas questes externas aos CAPS, relacionadas organizao da rede local de sade na qual os CAPS esto inseridos, contribuem para reforar um modelo ambulatorial que se pretende superar. Para ZAMBENEDETTI & PERRONE (2008), os fluxos frgeis e a fragmentao do trabalho dentro da dentro da rede de sade tambm podem afetar o cuidado em sade mental, gerando descontinuidade dos tratamentos e uma possibilidade importante (dentre outras) para a superao dos

desresponsabilizao profissional. Isto se reflete na adequao dos servios substitutivos ao SUS e nos efeitos ambguos do modo como as estratgias de construo e articulao da rede so efetivadas.

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A sobrecarga de demanda e a cobertura de grandes reas de abrangncia populacional tambm afetam o lugar do CAPS no territrio e na rede de sade, dificultando, por vezes, a possibilidades de efetuar um cuidado mais singular (PONTES et al., 1995; JORGE, 2007; SILVEIRA et al., 2007). Alm disso, questes gerais, relacionadas s condies de trabalho e ao tipo de vnculo empregatcio ao qual os trabalhadores esto submetidos tambm interferem nestes dispositivos, afetando o vnculo e a capacidade de (MILHOMEM, 2007). Embora as questes acima apontadas sejam importantes na configurao dos modelos de ateno emergentes nos CAPS, podendo condicionar e/ou determinar os lugares do CAPS em redes territoriais de sade, no pretendermos esgotar aqui essa discusso. Apenas tentamos apontar para a complexidade do panorama que situa os CAPS como dispositivos instigados a lidar com a transio entre modelos de ateno por vezes antagnicos, de maneira a elaborar novas tendncias e snteses para os discursos que neles coexistem e os atravessam. Assim, muitos so os lugares possveis para os CAPS, dentre estes, o de uma perspectiva de atuao rizomtica, intersticial, descentrada e plural, capilarizando tecnologias e prticas ativadoras e ativadas por muitos outros dispositivos articulados em uma rede de sade constituda por sujeitos dinamizadores que aceitem novos riscos e desafios na constituio de uma estratgia de ateno psicossocial. Apresentamos a seguir, uma breve leitura crtica que reconstitui o processo de Reforma Psiquitrica em Fortaleza. 2.1.5 A Reforma Psiquitrica em Fortaleza e o lugar dos CAPS Embora o estado do Cear seja considerado o precursor na interiorizao dos CAPS no Brasil, Fortaleza iniciou tardiamente seu processo de Reforma Psiquitrica. Essa demora em relao ao interior foi semelhante de outras capitais, podendo ser atribuda tanto concentrao de hospitais psiquitricos e maior resistncia de seus proprietrios em relao reforma (SAMPAIO & SANTOS, 1996; PONTES & FRAGA, 1997; ROSA, 2006), quanto falta de vontade poltica ao longo de vrias gestes municipais. Historicamente a assistncia psiquitrica de Fortaleza se fundamentou na responsabilizao dos trabalhadores de sade mental

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instituio asilar, sendo congruente com as polticas de sade do Brasil que vigoraram at a emergncia/criao do SUS (FRAGA & SILVA, 1994). No incio do processo colonial, desde 1603 at 1886, o Cear no contava com nenhum tipo de assistncia psiquitrica. Os loucos circulavam pelas ruas, sendo presos na cadeia ou acolhidos em movimentos messinicos. Inaugurado em 1886, o Asilo dos Alienados So Vicente de Paula vinculado Santa Casa de Misericrdia de Fortaleza foi o primeiro hospital psiquitrico do estado. Em 1938 o Dr. Vandick Pontes, professor de Neurologia da Universidade Federal do Cear funda o primeiro hospital particular do Nordeste, a Casa de Sade So Gerardo. Mais de 20 anos depois se segue a inaugurao do primeiro (e nico) hospital psiquitrico pblico do estado, o Hospital de Sade Mental de Messejana (HSMM), em 1962. Somavam-se assim, trs hospitais psiquitricos de pequeno porte, de carter asilar, criados tardiamente em relao aos modelos originais nos quais se inspiraram. A seguir outros seis (6) hospitais psiquitricos privados conveniados com a Previdncia Social foram criados, seguindo a lgica que caracterizou a poltica de sade no decorrer da Ditadura Militar (ROSA, 2006). Dois destes hospitais estavam situados no interior, havendo tambm um Manicmio Judicirio em um municpio vizinho a Fortaleza. Com isto, a capital do estado passou a concentrar a maioria dos leitos psiquitricos do Estado. Nas dcadas de 70 e 80 do sculo passado ocorreram tambm experincias ambulatoriais e treinamento em Psiquiatria via o Programa Integrado de Sade Mental (PISAM), derivadas de influncias norte-americanas como a Mental Health Law. Paralelamente a esses processos surgiu uma linha autnoma do Movimento Brasileiro de Reforma Psiquitrica e uma experincia de reforma do HSMM. Em 1991 criado o primeiro CAPS do estado, no municpio de Iguatu, e em 1993 aprovada a da Lei Estadual de Reforma Psiquitrica (Lei 12.151/1993). Tambm em 1993 a Secretaria Municipal de Sade de Fortaleza cria a Comisso Municipal de Reforma Psiquitrica, que apresenta um plano para implantar nove (9) CAPS em dois anos (SAMPAIO et al., 1998). Nesse perodo surgem dois hospitais-dia no municpio, um privado e outro pblico, praticamente sem causar impacto na desospitalizao. Segundo SAMPAIO et al. (1998), o trip da ao poltica da Reforma Psiquitrica nos municpios do interior do Cear foi constitudo por movimentos sociais

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vinculados a ncleos do Movimento da Luta Antimanicomial, s Comisses Municipais de Sade Mental e s Leis Orgnicas Municipais que introduziram os princpios da Reforma Psiquitrica. O primeiro CAPS de Fortaleza surgiu somente em 1998, 7 anos aps o primeiro CAPS do Estado, quando j existiam sete (7) CAPS em municpios do interior. Ligado a uma instituio de ensino em convnio com o municpio, este CAPS surgiu muito mais pela presso de um grupo pr-reforma vinculado a tal instituio e Comisso Municipal de Reforma Psiquitrica, do que pela vontade poltica dos gestores da poca. Diferente dos demais, este CAPS manteve historicamente maior vnculo com a instituio de ensino do que com a Secretaria Municipal de Sade, contando desde seus primrdios com trabalhadores cedidos por um hospital vinculado referida instituio. O municpio assumiu o aluguel de uma casa que sediava o servio, mas no garantiu recursos materiais, nem mais trabalhadores, o que sujeitou os trabalhadores da poca a pssimas condies de trabalho. Este momento inicial no chegou a representar a assuno de um processo de Reforma Psiquitrica por parte da gesto do municpio. Esse primeiro CAPS no contava com o suporte de outros servios, e rapidamente inchou ao ter que atender qualquer tipo de demanda em sade mental da populao de todo o municpio e das circunvizinhanas. O servio conduziu-se assim, em direo a uma lgica mais ambulatorial mdico-centrada, sem uma base territorial definida, com grande sobrecarga de demanda. Passados 3 anos, foram criados mais dois CAPS em 2001, estes totalmente vinculados ao municpio. O surgimento destes CAPS tambm se deu mais por presso de movimentos sociais e pela comisso municipal de Reforma Psiquitrica, em um momento subseqente grande repercusso da morte de Damio Ximenes, paciente internado na Casa de Repouso Guararapes, em Sobral. Contudo, a Reforma Psiquitrica continuava fora da agenda poltica municipal, contando com uma coordenao de Sade Mental vinculada ateno bsica que era praticamente inoperante. Isto deixou a organizao de cada CAPS sob a responsabilidade nica de seus prprios trabalhadores, muitos deles inexperientes. Cada um destes servios funcionava de uma maneira distinta e administrativamente estavam mais vinculados cada qual sua regional, sem nenhum tipo de integrao entre os

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mesmos. Apesar da entrada dos tcnicos nesses CAPS ter ocorrido via concurso pblico, apenas os psiquiatras e psiclogos sabiam e tinham optado por trabalhar em CAPS. Os demais profissionais fizeram um concurso geral para suas categorias, sendo que vrios deles no pensavam na sade mental como sua primeira escolha. Alm disso, as equipes no contavam com superviso clnico-institucional. Essas questes no diferem do descrito por OLIVEIRA & ALESSI (2005) sobre o processo de seleo e superviso de trabalhadores nos CAPS de Cuiab. Quanto aos trabalhadores de apoio, na sua maioria terceirizados, a via de acesso atravs de influncia poltica era a regra, o que tambm ocorria em relao indicao das coordenaes dos dois novos CAPS. Nesse ltimo aspecto o CAPS mais antigo conseguiu se preservar neste aspecto, devido a seu vnculo anterior com a instituio de ensino. Contando com trs (3) CAPS em uma cidade de cerca de 2 milhes de habitantes, cada servio ficou responsvel por duas (2) regionais do municpio, abrangendo uma populao entre 500.000 a 800.000 habitantes. Seguindo trajetria similar do CAPS mais antigo, os 2 novos CAPS rapidamente incharam, tendendo tambm para uma lgica mais ambulatorial, sem aes territoriais. Diversas questes contriburam para reforar essas tendncias ambulatoriais, entre elas: a grande demanda reprimida associada a reas de abrangncia muito populosas; a inexistncia de uma rede assistencial de sade (SILVEIRA et al., 2006); e as dificuldades de organizao interna dos servios, que se conjugavam ao despreparo (tcnico, poltico e administrativo) das equipes. Nesse contexto, os servios tambm se voltaram para o atendimento de pessoas com problemas leves e moderados, obtendo pouqussi