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Prof. Valter A. Bezerra Historiografia e Filosofia das Ciências e Matemática Pós-Graduação em Ensino, História e Filosofia das Ciências e Matemática - UFABC Foto: Douglas H. Orton

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Prof. Valter A. Bezerra Historiografia e Filosofia das Ciências e Matemática

Pós-Graduação em Ensino, História e Filosofia das Ciências e Matemática - UFABC

Foto: Douglas H. Orton

O que torna uma investigação especificamente filosófica?

Não é apenas o fato de discutir as “grandes questões” — pois constatamos que isso a arte e a literatura também fazem.

A especificidade da Filosofia também não reside apenas o fato de pensar de modo sistemático — pois isso a ciência, a teoria literária e o direito, por exemplo, também fazem.

«Um filósofo é, entre outras coisas, alguém que procura encontrar repostas para [as “grandes questões”]. Parte da atividade dos filósofos profissionais consiste em ir além da sensação [algo frustrante] de que se trata de questões importantes, com repostas que seriam também importantes, e trazer tais questões para o âmbito da atividade racional. [...] Parte da tarefa do filósofo é justamente tomar as “grandes questões” e transformá-las em questões acerca das quais se pode pensar [de maneira sistemática] — e então, passar a pensar sobre elas. [...] Talvez seja mais frutífero pensar na filosofia enquanto disciplina como distinguindo-se pelo seu método, mais do que pelo seu assunto [subject matter]. É, na melhor das hipóteses, extremamente difícil — senão impossível — dar uma descrição sucinta daquilo que a filosofia estuda.» [Jay F. Rosenberg — The Practice of Philosophy: A Handbook for Beginners (2nd ed.), p. 6. Englewood Cliffs, NJ: Prentice-Hall, 1984.]

«As ciências visam construir modelos abstratos dos fenômenos. [...] A filosofia, ao contrário, nunca chegou a propor verdadeiros modelos dos fenômenos, pela simples razão de que este não pode ser o seu objetivo. [...] A filosofia, contrariamente às diversas ciências, também não pretende explicar fatos. [...] Não se poderia, com certeza, exigir das ciências uma definição universal de ‘fato’. [...] Desejamos, aqui, só sublinhar o contraste, quanto a este ponto, com a perspectiva dos filósofos, para quem a questão “O que é, em geral, um fato?” é, ao contrário, um verdadeiro e fundamental problema. [...] Mesmo que um filósofo chegue a elucidar, a seu modo, a noção de ‘fato’, não terá contudo determinado nenhum fato que pudesse explorar, à maneira do cientista. Assim, pode-se dizer que a filosofia não tem objeto, por menos que se tenha a preocupação de dar a esta palavra um alcance racionalmente rigoroso, embora bastante amplo, para ser aplicado ao mesmo tempo aos objetos do senso comum e aos objetos da ciência. A crença, muito difundida em geral, de que “a filosofia fala de tudo” é perfeitamente correta, no fundo: o campo de aplicação de seu exercício é, com efeito, o conjunto da experiência humana. Mas a filosofia não poderia tratar esta experiência como um mosaico de diferentes classes de fatos, que lhe caberia definir e explicar, colocando-se num nível de generalidade superior ao das ciências.» [Gilles-Gaston Granger, Por um conhecimento filosófico (1989), pp. 13-14]

Filosofia

Disciplinas com referência factual

Realidade

(Incluindo: ciências naturais, ciências interpretativas...)

(Teorizada, impregnada de conceitos)

«A razão jamais se refere diretamente a um objeto, mas unicamente ao entendimento e através dele ao seu próprio uso empírico; portanto, não produz conceitos (de objetos), mas apenas os ordena e dá-lhes aquela unidade que podem ter na máxima extensão possível, a qual não é absolutamente considerada pelo entendimento, que se ocupa só com a conexão pela qual por toda parte as séries das condições são produzidas segundo conceitos. Logo, a razão propriamente tem por objeto só o entendimento e o seu emprego adequado; e assim como o entendimento reúne o múltiplo no objeto mediante conceitos, a razão por sua vez reúne o múltiplo dos conceitos mediante idéias ao pôr uma certa unidade coletiva como objetivo das ações do entendimento, que do contrário só se ocupam com uma unidade distributiva.» [Kant, Crítica da Razão Pura, B 671, trad. bras. Rohden-Moosburger, in: Os Pensadores – Kant (I), p. 319]»

Uma forma de conhecimento que: É capaz de ser reflexiva; É capaz de problematizar e redefinir seu próprio objeto de

estudo; Só possui relação no máximo indireta com os fenômenos; Assume sempre uma atitude crítica, no sentido de

investigação dos fundamentos e pressupostos; Vale-se de um método caracterizado pela formulação e

análise de conceitos e de argumentos; Nesse processo, revisita várias das “grandes questões” da

existência, porém reformulando-as e recontextualizando-as segundo sua abordagem peculiar;

Aborda essas questões transformando-as em problemas de são suscetíveis de investigação sistemática.

Pode-se ainda conceber inúmeras áreas do tipo “Filosofia de (X)”, tais como: Filosofia do Direito Filosofia da História Filosofia da Matemática Filosofia da Lógica Filosofia da Química Filosofia da Tecnologia... Note-se que “Metafísica”, aqui, não significa especulação ou devaneio. Por “Metafísica” entende-se aqui Ontologia, significando: O estudo sistemático dos pressupostos gerais acerca das entidades e processos que são postulados pelas teorias e/ou outras representações que versam acerca de um determinado domínio de investigação.

«O conhecimento científico exige e suscita um metaconhecimento que o examina, descreve, critica ou fundamenta, mas que não poderia, sem impostura, pretender-se inteiramente científico; é, ao mesmo tempo, lógica e filosofia da ciência. A filosofia, ao contrário, qualquer que seja seu ponto de apoio primeiro, exige e suscita um reconhecimento de si mesma, que se deve admitir como homogêneo a ela. O operador “filosofar”, de modo semelhante aos operadores idempotentes da álgebra, por mais que seja reiterado, não produz nada diverso de si mesmo.» [Gilles-Gaston Granger, Por um conhecimento filosófico, pp. 10-11. Trad. por Constança M. Cesar e Lucy M. Cesar. Campinas, SP: Papirus, 1989.]

Estudo sistemático da natureza, condições de possibilidade, validade, limites e estrutura do conhecimento, em suas várias formas. Exemplos de questões tipicamente epistemológicas: • Como é possível conhecer o mundo exterior (se é que é possível)? • Em que consiste o conhecimento? • Como o conhecimento está relacionado com a crença? • Como são justificadas as nossas crenças? • Qual é o papel da percepção, da memória e do testemunho no

conhecimento? • A fonte e/ou árbitro do conhecimento está na razão, na experiên-

cia, ou em algum outro elemento, ou combinação de elementos? • De que maneira a trama do conhecimento está interligada?

• A própria Epistemologia é um conhecimento de que tipo? • A construção do conhecimento ocorre segundo processos bem

definidos, e está sujeita a métodos? • Há algo que não se pode conhecer?

Um sistema de estruturas abstratas, que por sua vez utilizam conceitos (os quais são usados para formular idéias)... ...visando formular representações de certos aspectos (i.e. não todos os aspectos possíveis ou imagináveis) de determinados domínios da realidade (i.e. não de toda a realidade, mas regiões dela)... ...que sejam testáveis e empiricamente adequadas (i.e. dêem conta dos fenômenos)... ...apesar de serem inevitavelmente indiretas (i.e. mediadas por várias “camadas”, sem acesso às “coisas em si”) e falíveis (i.e. sujeitas a erros)... ...e tentando atender a diversos valores cognitivos.

Que valores cognitivos são esses? Na época atual, dentre os principais, podemos mencionar: Obrigatoriamente:

• Testabilidade • Adequação empírica

Preferencialmente:

• Coerência • Simplicidade • Abrangência • Precisão • Rigor • Formalização • Poder preditivo • Poder explicativo • Capacidade de solução de problemas • Aplicabilidade tecnológica • Compatibilidade com outros

conhecimentos aceitos • etc...

(...) conceitos (...) Conceitos Sistema conceitual Conceitos (...) Relação com a realidade Mediação / Construção / Interpretação REALIDADE [SEMPRE MEDIADA] DOMÍNIO A CONJUNTO DE ASPECTOS α CONJUNTO DE ASPECTOS γ CONJUNTO DE ASPECTOS β DOMÍNIO B

Segundo o filósofo Larry Laudan: «... se aceitarmos a proposta desenvolvida neste ensaio, e adotarmos o enfoque segundo o qual a ciência é um sistema de investigação para a solução de problemas; se adotarmos o ponto de vista segundo o qual o progresso científico consiste na solução de um número crescente de problemas importantes; se aceitarmos a proposta de que a racionalidade consiste em fazer escolhas que maximizem o progresso da ciência, então poderemos ser capazes de mostrar se (e, caso afirmativo, em que medida) a ciência em geral, e as ciências específicas em particular, constituem um sistema racional e progressivo… [continua]

… Talvez algumas pessoas considerem demasiado alto o preço que temos que pagar por essa abordagem, pois ela implica que nós podemos ver-nos endossando, como progressivas e racionais, teorias que acabem se revelando falsas (pressupondo, é claro, que consigamos estabelecer definitivamente quando uma teoria qualquer é falsa). Porém essa conclusão não é motivo para decepção. Já existe a suspeita de que a maioria das teorias científicas passadas sejam falsas; parece haver todos os motivos para esperar que as atuais teorias da ciência venham a ter a mesma sorte. Porém a presumida falsidade das teorias científicas e tradições de pesquisa não torna a ciência irracional nem não-progressiva. O modelo que está sendo discutido aqui proporciona um meio de mostrar como, mesmo admitindo que todas as teorias da ciência podem ser falsas, a ciência pode, não obstante, se revelar um empreendimento valioso e intelectualmente significativo.» [LAUDAN, Larry. Progress and Its Problems: Towards a Theory of Scientific Growth, p. 126. Londres: Routledge & Kegan Paul, 1977. Trad. do inglês por V. A. Bezerra.]

Um pouco de etimologia: Método é methodos em grego, que vem de meta (além de, ao lado de) + hodos (caminho) Então podemos traduzir methodos literalmente como caminho sistemático ou curso sistemático. Ou também podemos pensar no meta grego como aquilo que jaz “além” da trajetória, esperando, como um “alvo”, “objetivo”, como “meta” mesmo. Em inglês seria pursuit, following after — Em português, temos as idéias de buscar um alvo, perseguir um objetivo, prospeção, caminho para chegar a um fim.

Então, se a ciência tem certos caminhos, trajetos, são os métodos que garantem que esses caminhos não sejam aleatórios, fortuitos. Métodos fazem parte do próprio corpo de conhecimento científico, assim como os conceitos, teorias, princípios, práticas. A analogia feita por Platão com o “caminho para a cidade de Larissa”, no diálogo Mênon. Pode-se chegar a um destino por acaso, ou valendo-se de um aitias logismos (encadeamento de razões).

Metodologia = methodos + logia (estudo) é a disciplina que faz o estudo dos métodos. (Note que, freqüentemente, especialmente em textos não-filosóficos, o termo “metodologia” é usado como sinônimo de “método”). Teoria dos métodos (ou metodologia): Conjunto de teses metacientíficas, formando um sistema coerente, que possibilita a interpretação, a análise sistemática e crítica dos métodos, e dos seus pressupostos. A metodologia é tanto o estudo do conhecimento científico (uma “metadisciplina”, em certo sentido) como também uma forma de conhecimento em si mesma.

(a) Existe uma “unidade de método” entre as diversas ciências (b) O método da ciência é fixo e historicamente imutável (c) As regras metodológicas podem (devem) ser justificadas de maneira totalmente a priori (d) As regras metodológicas possibilitam um procedimento de decisão algorítmico para selecionar as melhores teorias

Teses usuais sobre a metodologia científica que serão contestadas por Larry Laudan em “Methodology’s prospects” (In: Fine & Machamer [eds], PSA 1986 - Volume Two, Philosophy of Science Association, 1987.

(a’) O método científico é plural, não é único nem monolítico

(b’) O método científico é historicamente mutável e não possui necessariamente um núcleo invariante (c’) As regras metodológicas não possuem um caráter a priori

(d’) As regras metodológicas não conseguem tornar as decisões científicas algorítmicas

Em vez disso, Laudan irá propor as seguintes teses gerais em seu modelo de metodologia científica:

Um modelo “simbiótico” para a relação entre teorias científicas e metodologias (Laudan, Science and Hypothesis: Historical Essays on Scientific Methdology, 1981) (1) As contribuições importantes para o desenvolvimento da metodologia científica vieram pelo menos tanto dos cientistas quanto dos filósofos. (2) As epistemologias foram “parasíticas” em relação às metodologias. As idéias metodológicas dos cientistas foram freqüentemente a fonte de teorias epistemológicas de destaque, mais do que o contrário. (3) O papel do filósofo da ciência em geral teve caráter mais descritivo, explicativo e legitimador do que prescritivo e normativo. Seu objetivo era tornar explícito o que já estava implícito nas “melhores teorias”, não reformar as práticas científicas. (4) A aceitação ou rejeição das metodologias foi determinada mais pela capacidade ou incapacidade dessas metodologias de legitimar e racionalizar as teorias científicas preferidas do que por seus méritos epistemológicos.