processos criativos e processos de ensino reflexões sobre vivências artísticas e escolares em...
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As reflexões contidas nesse escrito partem de uma pergunta levantada por mim no III Fórum Teatro, Formação e Mercado, promovido pelo Programa de Pósgraduação em Artes da Universidade Federal de Minas Gerais. Na conclusão de minha fala realizada na mesa intitulada “Educação Estética e Mercado”, propus como forma de provocar um possível diálogo com a plateia a seguinte questão: como educar para a realização de uma produção simbólica que dialogue efetivamente com a realidade em que ela se insere, a ponto de intervir significativamente nessa mesma realidade? A partir disso, a professora Rita Gusmão, uma das coordenadoras do III Fórum, me devolveu a provocação com a proposta de escrever um artigo para a revista Lamparina sobre a pergunta levantada. Desafio aceito, apresento aqui algumas reflexões em torno da questão.TRANSCRIPT
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Processos cr iat ivos e processos de ensinoreflexões sobre vivências artísticas e escolares e m b u s c a d a p l u r a l i d a d e d o a p r e n d e r
P E D R O N , D e n i s e 1
Resumo: As reflexões contidas nesse escrito partem de uma pergunta levantada por
mim no III Fórum Teatro, Formação e Mercado, promovido pelo Programa de Pós-
graduação em Artes da Universidade Federal de Minas Gerais. Na conclusão de mi-
nha fala realizada na mesa intitulada “Educação Estética e Mercado”, propus como
forma de provocar um possível diálogo com a plateia a seguinte questão: como edu-
car para a realização de uma produção simbólica que dialogue efetivamente com a
realidade em que ela se insere, a ponto de intervir significativamente nessa mesma
realidade? A partir disso, a professora Rita Gusmão, uma das coordenadoras do III
Fórum, me devolveu a provocação com a proposta de escrever um artigo para a re-
vista Lamparina sobre a pergunta levantada. Desafio aceito, apresento aqui algumas
reflexões em torno da questão.
Palavras-chave: Aprendizagem Inventiva. Ensino. Processos Criativos.
Abstract: The reflections contained in this written starting from a question raised by
me in the III Forum Theater, training and market, sponsored by the graduate program
in arts of the Federal University of Minas Gerais. At the conclusion of my speech held
on the table titled “Aesthetic Education and market”, proposed as a way to provoke
a possible dialogue with the audience the question: how to educate for a symbolic
production that dialogue effectively with the reality in which it is inserted, about to
intervene significantly in this same reality? From this, the teacher Rita Gusmão, one
of the coordinators of the III Forum, gave me back the provocation with the proposal
to write an article for the magazine Lamp on the question raised. Challenge accep-
ted, I present here some thoughts around the issue.
Keywords: Inventive Learning. Teaching. Creative processes.
1 Profa. Do Teatro Universitário – EBAP/ UFMG.
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Uma questão, vários questionamentos
Para tanto, parto principalmente das ideias presentes na Pedagogia Profana de Jorge
Larossa (2006) e da noção de aprendizagem inventiva, ou política cognitiva da invenção, tal
como desenvolvida por Virgínia Kastrup (1999). O diálogo com filósofos, que tenho lido ao lon-
go de minha trajetória como professora e pesquisadora, tais como Foucault, Merleau-Ponty e
Agamben, se dará de maneira mais ou menos direta.
É bom esclarecer que a questão que serve de mote para os pensamentos aqui desenvol-
vidos pode ser derivada em diversas outras, por exemplo: qual o papel da escola frente a essa
sociedade repleta de espetacularização e carente de experiência? como tornar o ensino vivo?
No embate entre a criação artística, o ensino de teatro e o mundo, cabe à escola preservar os
saberes ou contaminá-los com as coisas da vida? O que o aluno tem a ensinar à escola? A escola
está disposta a aprender com seus alunos, a transformar-se?
É bem possível que as perguntas aqui colocadas se façam ouvir como ecos, repetidas
aqui e ali, em diferentes variações, que não almejam ouvir respostas de sentido definitivo. Ao
invés de encerrar esses questionamentos, pretendo ao contrário, iniciá-los para que a partir
dessas e de suas próprias inquietações cada professor, desde que disposto, possa se desafiar a
reinventar suas práticas de ensino e suas experiências didáticas, em busca de uma aprendiza-
gem inventiva.
Criar na incerteza, ensinar na incerteza
Criar é, de certa maneira, estar diante do que ainda não se conhece. Criar é estar diante
do abismo, do incerto, do não premeditado. Criar pressupõe a convivência íntima com uma
“zona de não conhecimento” (AGAMBEN, 2007, p.17). Sendo assim, na medida em que se co-
loca em processo criativo, o artista encara o desconhecido, deixando de lado “a pretensão do
Eu de bastar-se a si mesmo” (AGAMBEN, 2007, p.17) e acolhe a incerteza; incerteza presente
nos questionamentos sobre seu processo criativo e também no questionamento de sua pró-
pria existência como artista criador. Perguntas como: o que quero dizer com a criação dessa
obra? estou me fazendo entender? estou no caminho certo? onde vou chegar com isso? vou
conseguir conviver e produzir em meio a esse caos, em meio a tanta incerteza? – são perguntas
comuns em processos criativos em teatro.
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Se o ato de criação como sugere Agamben (2007, p.19), contém em seu centro um ato de
descriação, o sujeito poderá vivenciar a arte (e o ensino da arte) como processo criativo apenas
quando construir um lugar de aceitação do impasse (da incerteza), não como algo intransponível
e irremediável, mas como uma presença inquietante para a qual é preciso olhar de frente e à qual
não se pode definitivamente varrer para baixo do tapete. Na medida em que acolhe a incerteza e
busca construir um devir criativo na arte (ou na vida) o sujeito se propõe a entrar em contato com
a própria subjetividade, não para se afirmar numa identidade fixa, estabelecida e imutável, mas
para se perceber como ser mutável no processo da vida mesma. Mergulhar na própria subjetivi-
dade é, em parte, ir de encontro ao que se é. E colocar-se disponível para ir de encontro ao que
se é pressupõe a admissão de um não saber, um lugar de desconhecimento do ser em relação a
ele mesmo, uma zona de incerteza que se evidencia na abertura para o outro, entendido como
lugar de alteridade e também de projeção de desejos, e para o mundo, entendido como lugar de
existência e atuação do sujeito.
A maneira como o sujeito se percebe, o modo como ele percebe e considera o outro,
são fatores que interferem diretamente em seus processos criativos e também nas vivências
escolares. E, uma vez que a revelação do mundo se dá ao sujeito pela sua própria experiência
perceptiva, como pontua Merleau-Ponty (2006), a experiência escolar para ser considerada uma
experiência potencialmente criativa precisa se afastar da dimensão funcional de transmissão de
conhecimento presente no binômio ensino/aprendizagem para se aproximar da instância da afe-
tividade e do contato.
Ao pensar o ensino, e principalmente o ensino de arte, como uma experiência poten-
cialmente criativa, é possível pensar, como Kastrup (1999), a aprendizagem como uma prática
de invenção e não de transmissão, o que pressupõe um certo engajamento na disposição para o
desenvolvimento de gestos e fazeres que ao aceitarem o desconhecido não se alienem em si mes-
mos, nem se transformem em meros automatismos escolares-cotidianos. Para Kastrup (2005):
o aprendiz-artista não é aquele que repete mecanicamen-
te uma mesma resposta ou uma regra definida, mas aquele
que é capaz de reinventar-se permanentemente, inventando
simultaneamente novos mundos. A aprendizagem da arte
desenvolve-se numa tensão permanente entre a invenção de
problemas e a solução de problemas. (KASTRUP, 2005, p. 128)
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Nessa perspectiva, fica evidente que a experiência criativa envolve as relações e percep-
ções do eu e não apenas requisitos técnicos e que ensinar e aprender arte não é transmitir uma
informação ou acumular um saber. E é por isso que, quando um aluno é tratado apenas como
corpo a ser instrumentalizado por meio de técnicas artísticas e não como um receptor ativo, cons-
ciente, capaz de produzir significação própria, desconsidera-se qualquer possibilidade criativa de
expressão do sujeito.
Larossa nos lembra que, “como educadores, movemo-nos constantemente nesta tensão
entre a produção e a imposição de uma verdade única e o surgimento de múltiplas verdades”
(BONDÍA, 2002, p.163) e propõe que desconfiemos da verdade para ao invés de afirmarmos um
projeto pedagógico que tenta assegurar a eficácia da produção do conhecimento tenhamos a
oportunidade de “aprender a viver de outro modo, a pensar de outro modo, a falar de outro
modo, a ensinar de outro modo” (BONDÍA, 2002, p.165).
Ensino de teatro como práxis e também como poíesis
Agamben faz a distinção entre poíesis (poieîn, pro-duzir) e práxis (práttein, fazer) da se-
guinte maneira:
Enquanto no centro da práxis estava, como veremos, a ideia
da vontade que se exprime imediatamente na ação, a experi-
ência que estava no centro da poíesis era a pro-dução na pre-
sença, isto é, o fato de que, nela, algo viesse do não ser ao ser,
da ocultação à plena luz da obra. (AGAMBEN, 2012, p.118)
O teatro é por excelência associado à práxis e seu ensino se dá, primordialmente, por
meio de práticas cênicas e corporais constantes, incluindo aí os treinamentos, que visam habilitar
o ator para (atu)ação espontânea ou planejada. Porém a produção artística, vista como atividade
criativa, se encontra em ambas as dimensões, uma vez que ela comporta além do fazer, como
atividade de domínio prático, o elemento de desvelamento, de domínio inventivo, da passagem
do não ser ao ser, presente na poíesis.
Talvez por isso, precisemos levar em conta no âmbito do ensino do teatro, como prática
criativa, tal como nos aponta Bonfitto (2013), o treinamento como modo de existência, ou seja, o
treinamento não apenas como práxis, mas também como poíesis, como possibilidade de abertura
“de um mundo para a existência e ação do homem” (AGAMBEN, 2012, p.119).
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Nas palavras de Bonfitto:
... em contraste com o treinamento como práxis, o treinamen-
to como poíesis não é limitado por sistemas de referência a
priori; ele é gerado pela exploração de materiais, processo
esse que pode levar à criação de procedimentos e elementos
em cada processo criativo. (BONFITTO, 2013, p.167)
Encarada dessa maneira, a noção de treinamento vincula-se à vida, “transborda e vai além
do objetivo de construção de uma obra de arte” (BONFITTO, 2013, p.173). E, com isso, a constru-
ção do conhecimento no âmbito do fazer teatral, e também de seu ensino, vincula-se à modifica-
ção da própria existência e, por conseguinte, à de modificação do mundo pelo homem por meio
da experiência da arte e de seus processos criativos.
Para que possa servir à modificação da própria existência e da realidade social em que se
insere a experiência de ensino precisa atravessar o sujeito, afetando-o, e para tanto precisa neces-
sariamente vincular-se à vida, como já apontou revolucionariamente Paulo Freire.
Por que não discutir com os alunos a realidade concreta a que
se deve associar a disciplina cujo conteúdo se ensina, a rea-
lidade agressiva em que a violência é a constante e a convi-
vência das pessoas com a morte é muito maior do que com
a vida? Por que não estabelecer uma “intimidade” entre os
saberes curriculares fundamentais aos alunos e a experiência
social que eles têm como individuo? (FREIRE, 1996, p.30)
Vale lembrar que para Jorge Larossa, “a experiência é o que nos passa, o que nos acon-
tece, o que nos toca. E não o que passa, o que acontece, o que toca” (BONDIA, 2002, p.21). O
pronome reflexivo vem aqui valorizar o lugar da percepção do próprio sujeito na constituição dos
acontecimentos que vivencia. Assim, podemos dizer que no exercício da produção do conheci-
mento está em questão, entre outras coisas, não apenas o pensar, mas principalmente o pensar-
-se. Muitas vezes afirmamos a importância de fazer de nossos alunos “seres pensantes”, mas nos
esquecemos de que “pensar não é somente ‘raciocinar’ ou ‘calcular’ ou ‘argumentar’, como nos
tem sido ensinado algumas vezes, mas é sobretudo dar sentido ao que somos e ao que nos acon-
tece” (BONDIA, 2002, p.21).
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Entendo que a consideração do estudante como sujeito pensante passa pela aprendiza-
gem e pelo exercício de outras lógicas de relação interpessoal – lógicas afetivas – que valorizem o
sujeito em história, suas capacidades, suas limitações e também seu potencial de proposição de
mudanças para a realidade em que se insere.
Porém, é preciso perguntar ainda, estará a escola disposta a aprender com seus alunos?
A transformar-se? A abrir mão de certos procedimentos tidos como eficazes para encarar luga-
res – não seguros – de experimentar novos modos de fazer, novos modos de ser? O que é mais
importante: a quem ensinamos ou o que ensinamos?
Ao considerar o lugar de onde vem o aluno e sua potência de construção de subjetividades
o professor abre mão de imperativos programáticos e negocia o que e o como ensinar.
Ao compreendermos que a educação não se dá somente atra-
vés de processos escolares, ampliamos nossa percepção de
que a escola e seus conteúdos devem se apresentar em rela-
ção direta a todos os âmbitos da experiência social e pessoal
que circundam os sujeitos escolares. (SOARES, 2013, p.20)
A relação do aluno com o mundo pode funcionar também como um diálogo mediado pela
escola. Quando a escola proporciona a seus alunos o contato com palestras, peças e festivais de
teatro, permite a eles vivenciar a arte ou o saber sobre a arte e construir a partir dessas vivências
outras – não diretamente escolares – seu próprio saber (e fazer) artístico.
A partir da leitura de Winnicott, o professor e psicanalista Gilberto Safra afirma que o
ser pode ser espelhado pelos objetos da cultura: “o indivíduo pode encontrar o estilo de seu self
presentificado por um objeto, por uma coisa” (SAFRA, 1996, p.144). Porém para que o sujeito
reconheça algo de si no mundo simbólico é necessário que ele reconheça a si mesmo no objeto
assinalado pela experiência estética. E “para encontrar o objeto estético que recupere seu sen-
so de ser” (SAFRA, 1996, p.150) o sujeito precisa “contar com uma relação onde isso possa ser
compartilhado”.
Se a escola proporciona e media a construção do saber que se dá no diálogo com diferen-
tes experiências artísticas, ela possibilita ao estudante produzir uma visão subjetiva, e ao mesmo
tempo crítica, de si mesmo, da arte e da realidade que o rodeia. Essa capacidade de contaminação
entre a escola e o mundo é determinante para que o ensino continue vivo e para que a escola
tenha condições de ser não apenas um conjunto de matérias a serem cursadas, num horário a
ser cumprido. As relações de construção de um saber partilhado só acontecem se nos dispomos
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todos – professores e alunos – envolvidos no processo de ensino-aprendizagem a ter a humildade
necessária de aprender todos os dias. Com planejamentos bem feitos, é claro, mas não imutáveis;
com conteúdos definidos, mas nem tanto; com espaços para os questionamentos dos e com os
estudantes, pois “o self é lugar de encontros” (SAFRA, idem).
Quando voltamos nosso olhar para o self, temos de enfocar
o acontecer humano por meio da materialidade do mundo.
Nessa perspectiva, cada objeto tem importância em si. Não
porque, simplesmente, signifique algo, mas porque abre uma
possibilidade de ser no mundo com outros homens. (SAFRA In
CATAFESA, 1996, p.144)
E é no espaço potencial (WINNICOTT, 1975) da experiência criativa, que podemos exercer
de maneira legítima, considerando desejos e sonhos, nossos modos de ser, na arte, no ensino, e
na vida.
Escola, desejo e subjetivação
É a experimentação corpo-mundo que impulsiona o querer expressar-se. Essa contami-
nação é potente para produzir o que José Gil (2013), chama “vontade de arte”. Para o filósofo o
artista capta forças tanto do “mundo da vida” quanto da “história da arte” para criar. E, ainda para
Gil, é do desejo de expressar-se que advém a coragem para criar o novo.
Ao mesmo tempo em que pode impulsionar o processo criativo, sendo uma “condição a
priori para a criação dos objetos do mundo” (SAFATLE, 2006, p.73), o desejo é um lugar que não
dominamos, um lugar escorregadio, que, muitas vezes, faz fronteira com o desconhecido.
O sujeito só deseja na medida em que experimenta o próprio
Outro como desejante, como sítio de um desejo insondável,
como se um desejo opaco estivesse emanando dele. O outro
não só se dirige a mim com um desejo enigmático; ele tam-
bém me confronta com o fato de que eu mesmo não sei o que
realmente quero, do enigma de meu próprio desejo. (ZIZEK,
2010, p.55)
Há na escola espaço para o desejo ou para o enigma do desejo? Para que esses espaços se
abram, o que preside as relações no âmbito do ensino e também da criação artística precisa estar
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longe das formas hegemônicas de interação entre os sujeitos e perto de um movimento que se
rearranja a todo tempo.
Larossa (2006, p.165) utiliza os adjetivos “frágil” e “atenta” para falar de uma relação
pedagógica humana. Quem sabe, se aumentando a atenção e admitindo a fragilidade professo-
res e alunos possam ao invés de reiterar a “homogeneidade do saber”, fabricar a “pluralidade
do aprender” e “construir uma comunidade que não é a do consenso, mas sim a da amizade”
(LAROSSA, 2006, p.144).
Em contraposição, Foucault sublinha o processo de disciplinarização presente na educa-
ção como “maneira política de manter ou modificar a apropriação dos discursos com os saberes
e os poderes que eles comportam” (CASTRO, 2009, p.134). No entanto, o filósofo trabalha ainda
o elemento dinâmico dos modos de subjetivação, presente em certas formas morais regidas por
códigos de comportamento, que podem ajudar a ampliar a compreensão da noção de ensino. Os
modos de subjetivação podem ser definidos como “formas de atividade sobre si mesmo” e em
sua dinâmica estão presentes:
as formas de relação consigo mesmo, as técnicas e os proce-
dimentos mediante os quais se elabora essa relação, os exer-
cícios pelos quais o sujeito se constitui como objeto de conhe-
cimento, as práticas que permitem ao sujeito transformar seu
próprio ser. (CASTRO, 2009, p.409)
Sendo assim, resta saber se a escola pode alcançar o lugar de uma produção desejante,
de um vetor de subjetivação, abrindo espaço para o surgimento do cuidado de si, da vontade de
potencia de transformação do próprio sujeito e do mundo, de uma força produtiva construída fora
do lugar da tirania, do mando incondicional, ou da reação automática à demanda do simples cum-
primento de tarefas. A questão se torna, aqui, pensar a prática didática e as vivências escolares
como exercício de singularidades, de modo a daí emergirem lugares de subjetivação. Trata-se, en-
tão de ensinar não o que se sabe, mas de partilhar o desafio de aprender junto, de experimentar;
afirmando a coragem de lançar-se no desconhecido.
O que cada estudante vai vivenciar e apreender no processo de ensino-aprendizagem sai
do domínio do professor. Esperamos, muitas vezes, habitar o lugar idealizado da concordância e
procuramos como professores construir o consenso. Com isso, deixamos de lado o questionamen-
to, a incerteza, a dúvida, tão caros aos processos criativos. Seria, então, o ensino, e principalmen-
te, o ensino de arte uma prática do dissenso? Uma prática que precisa o tempo todo estar dis-
posta a “resistir à domesticação ética do próximo” (ZIZEK, 2010, p.56), fazendo emergir do aluno
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um desejo não alienado no desejo do professor, e enfatizando sua possibilidade de expressar “a
positividade de seus afetos em um objeto que circulará no tecido social” (SAFATLE, 2006, p.95).
Numa escola de arte é tarefa difícil e ao mesmo tempo prazerosa ajudar o aluno a des-
cobrir e criar novos meios de expressão, possibilitar ao sujeito-artista a descoberta de uma voz
que se afirma no mundo e se faz ouvir por meio da arte, afinal o self é corpo, “é gesto, é ação,
é acontecimento no mundo” (SAFRA, 2004, p.144). Isso exige, como já apontado, um mergulho
em treinamentos, mas também em modos de subjetivação, em modos de existência. Quando
ensinarmos nossos alunos a “produzirem a si mesmos e não coisas que os escravizem” (DEBORD),
então, estaremos ensinando-os a serem artistas.
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Referências Bibliográficas
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