coleções: um estudo dos processos criativos e comunicacionais

Upload: fernando-leipnitz

Post on 01-Mar-2016

12 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

dissertação em comunicação e semiótica

TRANSCRIPT

  • PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO

    PUC SP

    PROGRAMA DE ESTUDOS PS-GRADUADOS EM COMUNICAO

    E SEMITICA COS

    Carolina Pinto Arantes

    Colees: um estudo dos processos criativos e comunicacionais

    MESTRADO EM COMUNICAO E SEMITICA

    So Paulo

    2010

  • PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO

    PUC SP

    PROGRAMA DE ESTUDOS PS-GRADUADOS EM COMUNICAO

    E SEMITICA COS

    Carolina Pinto Arantes

    Colees: um estudo dos processos criativos e comunicacionais

    MESTRADO EM COMUNICAO E SEMITICA

    Dissertao apresentada Banca

    Examinadora da Pontifcia Universidade

    Catlica de So Paulo, como exigncia

    parcial para obteno do ttulo de

    MESTRE em Comunicao e Semitica,

    linha de pesquisa Processos de criao nas

    mdias, sob a orientao da Profa. Dra

    Lucia Isaltina Clemente Leo.

    So Paulo

    2010

  • Banca Examinadora:

    ---------------------------------------------------

    ---------------------------------------------------

    ---------------------------------------------------

  • Agradecimentos

    Expressamos nossos agradecimentos aos que abandonaram por algum tempo suas

    estimadas colees para responder a um impertinente questionrio. Sua participao foi

    fundamental.

    De forma especial, agradecemos:

    banca de qualificao, que nos guiou desde o exame de qualificao;

    Cida, secretria do COS, que nos esclareceu e nos permitiu mais tempo para terminar

    essa dissertao;

    Profa. Dra. Clotilde Perez, que nos encorajou a enfrentarmos o desafio;

    e Profa. Dra. Lucia Leo, que nos orientou, em alguns momentos precisou nos

    tranqilizar, e nos propiciou a oportunidade de concretizarmos este desafio.

    Agradecemos tambm a todos os que de alguma forma contriburam para que essa

    dissertao fosse enriquecida, atravs da indicao de entrevistados, de matrias e outras

    referncias bibliogrficas.

    Finalmente, aos nossos amigos mais prximos e parentes que, com sua pacincia,

    compreenso e carinho, garantiram um ambiente psquico e material que nos permitiu

    produzir intelectualmente.

  • Resumo O ato de colecionar uma atividade antiga entre os seres humanos e, ainda assim, permanece intrigante: mas, afinal, para que e por que colecionamos? Podemos ver no ato de colecionar um processo de criao? Como as colees comunicam? Essa dissertao tem por finalidade investigar os processos criativos e comunicacionais e a lgica que move e permeia os diversos tipos de colees, identificando sua capacidade de produo de sentido. A metodologia baseada em duas fases, que resultaram nos dois captulos da dissertao. O primeiro discorre sobre o contexto do ato de colecionar em termos histricos, desenvolvido atravs de pesquisa bibliogrfica em livros, teses e artigos cientficos que apresentam discusso de temas como colecionismo, objeto de desejo, imaginrio, memria, afetividade, consumo e criao. O objetivo apresentar diferentes abordagens para o conceito de coleo, fundamentas a partir das ideias de vrios autores. O principal Philipp Blom, que constri a histria das colees em seu livro Ter e Manter. As reflexes tambm se apiam nos filsofos Walter Benjamin, que discorre sobre a preservao da histria atravs dos objetos e tambm sobre a ressignificao destes; e Jean Baudrillard, que dedica um captulo s colees em seu livro O sistema dos objetos, em que descreve a diferena entre acmulo e coleo e menciona tambm a superao da morte atravs da posse dos objetos. Por fim, esto sendo utilizados as pesquisas do professor da Universidade de Utah e especialista em consumo, Russell Belk, e os escritos da professora da Universidade de Leicester e presidente do Museums Association, Susan Pearce, que interpretam e inserem as colees na sociedade de consumo atual. A segunda parte da dissertao tem como foco a relao entre processo criativo e a construo das colees, com a finalidade de analisar as colees como instrumento de comunicao. Uma das autoras consultadas a Profa. Dra. Ceclia Salles, que desenvolve um conceito de processo criativo como rede em constante transformao. Esta fase tambm baseada na coleta de dados empricos, frutos de entrevistas realizadas com colecionadores, visando a demonstrar os diversos processos criativos para a montagem e a manuteno das colees. Como resultado, conclui-se que o ato de colecionar pode ser visto como um processo de criao desde quando o colecionador seleciona itens, j que nem todo objeto pode fazer parte de sua coleo. Em um segundo momento, cada colecionador organiza os itens de sua coleo de uma forma nica, independente se pretende ou no apresent-la a terceiros. Essa ordenao revisitada todas as vezes que uma nova pea inserida, quando o espao modificado ou ainda em outras ocasies. Por fim, muitos so os colecionadores que expem suas colees, seja em casa, em eventos especficos ou ainda na internet, gerando, dessa forma, redes sociais que contribuem para a memria das colees e para a afirmao da identidade dos colecionadores. Palavras-chave: comunicao, processos de criao, memria, coleo, consumo.

  • Abstract The act of collecting is an ancient activity between human beings and still remains intriguing: why do we collect? Can we see in the act of collecting a process of creation? How collections communicate? This thesis aim to investigate the creative and communication process and the logic that moves and permeates the various types of collections, identifying its capacity of production. The methodology is based on two phases, which resulted in the two chapters of the dissertation. The first one is about the context of collecting in historical standards, developed through research on books, theses and papers that present discussion of issues such as hoarding, object of desire, imagination, memory, emotion, consumption and creation. The objective is to present different approaches to the concept of collection, from the ideas of several authors. The principal author is Philipp Blom, who builds the story of collections in his book "To Have and Hold". The reflections are also supported in Walter Benjamin, who discusses the preservation of history through objects and also on the ressignification of these, and Jean Baudrillard, who devotes a chapter of his book "The System of Objects" to the collections, which describes the difference between accumulation and collection and also mentions the conquest of death through the possession of objects. Finally, the research of the professor of the University of Utah and consumption expert, Russell Belk, and the writings of the Professor of the University of Leicester and chairman of the Museums Association, Susan Pearce, who interpret and fall collections in the current consumer society are being used. The second part of the dissertation focuses on the relationship between creative process and the building of collections, in order to analyze the collections as a communication tool. One of the authors used is Cecilia Salles, who develops a concept of the creative process as a network in constant transformation. This phase is also based on empirical data collection, result of interviews with collectors in order to demonstrate the various creative processes for assembling and maintaining collections. As a result, we conclude that the act of collecting can be seen as a creation process from when the collector selects items, since not every object may be part of your collection. In a second step, each collector organizes the items from the collection in a unique way, regardless whether or not to present it to others. This ordinance is revisited each time a new piece is inserted, when space is modified or even on other occasions. Finally, there are many collectors who expose their collections, whether at home, at specific events or on the Internet, thus generating, social networks that contribute to the memory of the collections and to affirm the identity of the collectors. Keywords: communication, creative processes, memory, collection, consumption.

  • Sumrio

    INTRODUO ................................................................................................................... 01

    1. O COLECIONISMO ........................................................................................................ 06

    1.1. A coleo e o tempo ...................................................................................................... 10

    1.2. Vida aps a morte ......................................................................................................... 12

    1.3. Colecionar e ser ............................................................................................................. 15

    1.4. Ressignificao ............................................................................................................. 17

    2 O COLECIONADOR-CRIADOR ..................................................................................... 20

    2.1. Selecionando itens ......................................................................................................... 23

    2.2. Ordenar e reordenar ....................................................................................................... 37

    2.3. Colees para comunicar ............................................................................................... 46

    3. CONSIDERAES FINAIS ........................................................................................... 55

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS .................................................................................. 60

    ANEXO 1 ROTEIRO DAS ENTREVISTAS EM PROFUNDIDADE .............................. 64

  • 1 INTRODUO

    Felicidade do colecionador, do indivduo particular! [...] Pois sua mente habitada por fantasmas... O que lhe assegura a relao mais ntima possvel com os objetos que possui: no que esses objetos vivessem nele, ele que vive por meio deles e dentro deles. (WALTER BENJAMIN, 1987)

    O tema central da pesquisa o colecionismo. O ato de colecionar objetos uma

    atividade antiga entre os seres humanos e, ainda assim, permanece intrigante: mas, afinal, para

    que e por que colecionamos? Podemos ver no ato de colecionar um processo de criao?

    Como as colees comunicam? O que comunicam?

    Muitas definies sobre as motivaes do colecionismo foram dadas por diversos

    autores. De acordo com Belk, professor da Universidade de Utah e especialista em consumo,

    colecionar o processo de adquirir e possuir coisas de forma ativa, seletiva e apaixonada.

    Essas coisas so retiradas de sua utilidade ordinria e percebidas como parte de um conjunto

    de objetos ou de experincias (BELK, 1995, p.67). Para ele, o comportamento do

    colecionador diferente do comportamento de uma pessoa que adquire e consome um

    produto comum. Colecionar uma forma de consumir intensa e envolvente. O colecionador

    adquire e possui coisas, no para serem utilizadas na sua forma usual, mas para fazerem parte

    de um conjunto de objetos. O consumo de objetos de uma coleo o prprio processo de

    formao.

    Walter Benjamin afirma que o colecionador, mais que resgatar objetos de suas funes

    originais, coloca-os em outra constelao, cria novas semelhanas. Neste momento, o

    colecionador destri o que se definiria como marco original e coloca o objeto em uma nova

    ordem, como algo extraordinrio: [...] para o colecionador o mundo est presente e, de fato,

    ordenado em cada um de seus objetos. Ordenado, sem dvida, segundo uma configurao

    surpreendente e ininteligvel para o profano (BENJAMIN, 1987, p.94).

    Baudrillard discute o conceito e afirma a importncia da ressignificao dos itens da

    coleo, dizendo que um objeto comum, estritamente prtico, toma um estatuto social: uma

    mquina (BAUDRILLARD, 1997, p.94). J o objeto puro, privado de funo ou abstrado de

    seu uso, toma um estatuto subjetivo: torna-se objeto de coleo (BAUDRILLARD, 1997,

    p.94).

  • 2

    Blom, jornalista e historiador alemo, que analisa a histria e as motivaes para o

    colecionismo em seu livro Ter e Manter, discorre sobre esta mudana de status dos objetos

    de coleo:

    [...] sua inutilidade em relao existncia anterior, na qual tinham um objetivo no contexto das coisas, destaca-se e unifica-os como objetos colecionados, tirados de circulao e presos como borboletas, vistos agora como espcimes [...]. Objetos colecionados perdem seu valor utilitrio (com algumas excees) e adquirem outro, esto imbudos de significado e de qualidades de representao que vo alm de sua situao original. (BLOM, 2003, p.94)

    Colecionar pode tambm ser uma forma de apossar-se do passado, da memria. O

    colecionador acumula registros temporais, registros das aes do tempo, de lugares por onde

    passou; que constituem a sua histria. E registros da vida gravada em cada objeto, pois os

    prprios objetos so carregados de histrias. Conforme Benjamin, a aquisio de um objeto

    no sentido de colecionar seu renascimento e sua conservao tambm o renascimento de

    seu possuidor, a permanncia de suas experincias do passado em seu presente.

    Enfim, levando em conta as diferentes definies de coleo, considera-se colecionar,

    na presente pesquisa, o processo de adquirir e de manter coisas, no para serem utilizadas na

    sua forma usual, mas para serem parte de um conjunto de objetos, ressignificados segundo a

    percepo do colecionador.

    A dissertao tem por finalidade investigar os processos criativos e comunicacionais e

    a lgica que move e permeia os diversos tipos de colees, identificando sua capacidade de

    produo de sentido. A hiptese levantada a de que, mesmo entre colees de um mesmo

    tipo de objeto ou tema, observam-se diferenas nas formas de organizao, exposio e outras

    caractersticas. Sendo assim, a escolha e a ordenao de cada item de uma coleo fazem

    parte de um processo definido por cada colecionador, e que pode ser comparado ao processo

    de criao comunicacional. Para chegar a esta concluso, utilizamos o conceito de processo de

    criao para relacion-lo construo das colees. A inteno no inserir a coleo no

    campo da arte, mas no campo da criao. Paulo Costa, mestre em histria da arte na ECA-

    USP e curador da Fundao Cultural Ema Gordon Klabin, apresenta uma definio de

    colecionismo baseada nas contribuies de Baudrillard, Pomian, Belk e Pearce, que colabora

    bastante com esta proposta:

    O colecionismo um processo criativo que consiste na busca e posse de objetos de maneira seletiva e apaixonada, em que cada objeto destacado de seu uso ordinrio e concebido como um elemento de um conjunto de objetos dotado de

  • 3

    significados a ele atribudos pelo indivduo ou pela sociedade em determinado contexto cultural. (COSTA, 2007, p.20)

    A distino entre coleo e acumulao feita por Baudrillard tambm foi utilizada

    nesta pesquisa. Para o autor, o colecionador no simplesmente um acumulador, mas um

    selecionador, um classificador e um organizador de objetos. O autor discorre sobre o fato da

    ausncia de algum item em uma coleo: quando apenas acumulam-se objetos, no se sente

    falta de um ou de outro item. Em uma coleo, por outro lado, cada componente

    rigorosamente escolhido para fazer ou no parte dela. A ausncia nesse caso tem papel

    fundamental. Ou seja, de certa maneira, a falta, o inacabado, que separa a coleo da pura

    acumulao.

    Marshall, professor, pesquisador e coordenador do ncleo de histria antiga da

    UFRGS, faz um estudo sobre a coleo como linguagem onde afirma que

    [...] o colecionismo desponta como um dos fundamentos culturais de mais profundo enraizamento e de mais amplas conseqncias em toda a trajetria humana. Coletando, nossos ancestrais aprenderam a discernir recursos naturais e a selecionar possibilidades vitais no mundo; desde a pr-histria e a cada nova gerao, conseguimos organizar sons e sinais sob a forma de discurso. [...] A vida urbana o segundo estgio civilizatrio-colecionista, precedido de milhares de anos pelas revolues culturais advindas da tcnica da coleta e da comunicao. (MARSHALL, 2005, p.14)

    Neste estudo o autor discorre tambm sobre a etimologia da palavra colecionar, que

    possuem um nexo semntico com comunicar: do latim collectio, possui em seu ncleo

    semntico a raiz leg, que est entre as poucas que conhecemos do proto-indo-europeu, com

    sentidos ordenadores (MARSHALL, 2005, p.15). No ncleo semntico do colecionismo o

    autor encontra a relao entre pr ordem, raciocinar (logein) e discursar (legein), em que o

    sentido de falar derivado do de coletar: [...] a fala coleo. Coleo de qu? De sinais

    sonoros? De gestos e expresses? De palavras e sentenas? De frmulas e smbolos? De

    memrias e de poderes mgicos? De nmeros e espcimes? (MARSHALL, 2005, p.15).

    O professor enumera ainda uma coleo das diferentes tipos e circunstncias

    colecionistas, representativos de distintas epistemologias e motivaes relacionadas ao ato de

    colecionar: [...] ser que o serial killer possui algum complexo colecionista?, [...] ser que

    a aposta lotrica frequente uma coleo de esperanas?, pergunta o autor. E acrescenta: a

    investigao est certamente no ramo colecionista: juntar evidncias e dar-lhes a coerncia de

    uma narrativa, relacionando o detetive com o colecionador, por exemplo. Uma das

    circunstncias enumeradas por Marshall so os papeleiros que perambulam pelas grandes

  • 4

    cidades com sacolas e outros itens reciclveis: [...] seria colecionar um lenitivo

    reconfortante, assegurador de um grau mnimo de civilidade, sucedneo da morada que j no

    existe mais? (MARSHALL, 2005, pp.17-19).

    Esta dissertao se divide em duas partes. A primeira discorre sobre o contexto do ato

    de colecionar em termos histricos. Esse tpico foi desenvolvido atravs de pesquisa

    bibliogrfica em livros, teses e artigos cientficos que apresentam discusso de temas como

    colecionismo, objeto de desejo, imaginrio, memria, afetividade, consumo e criao. O

    objetivo desta primeira fase apresentar diferentes abordagens para o conceito de coleo. A

    pesquisa se fundamenta a partir das ideias de vrios autores. O principal foi Philipp Blom, que

    constri a histria das colees em seu livro. As reflexes tambm se apiam no filsofo

    alemo Walter Benjamin, que discorre sobre a preservao da histria atravs dos objetos e

    tambm sobre a ressignificao destes. Ou seja, os objetos de uma coleo no so

    simplesmente retirados do cotidiano, mas inseridos em uma nova concepo. No livro O

    sistema dos objetos, o filsofo francs Jean Baudrillard dedica um captulo s colees, em

    que descreve a diferena entre acmulo e coleo e menciona tambm a superao da morte

    atravs da posse dos objetos. Por fim, so utilizados as pesquisas do professor da

    Universidade de Utah e especialista em consumo, Russell Belk, e os escritos da professora da

    Universidade de Leicester e presidente do Museums Association, Susan Pearce, que

    interpretam e inserem as colees na sociedade de consumo atual.

    A segunda parte da dissertao tem como foco a relao entre processo criativo e a

    construo das colees, com a finalidade de analisar as colees como instrumento de

    comunicao. Uma das autoras consultadas foi Ceclia Salles, que desenvolve um conceito de

    processo criativo como rede em constante transformao. Ao abordar a criao artstica em

    seu livro Redes da criao, a autora aponta que em geral questes relativas inovao

    sempre nos levam ao campo da arte e que, por esse motivo, o termo criao normalmente

    questionado quando aplicado aos processos de comunicao social. Ela explica que a viso

    discutida em seu livro a da criao como resultado de trabalho, que abarca o raciocnio

    responsvel pela introduo de ideias novas, que abarca, por sua vez, essa perspectiva de

    transformao (SALLES, 2006, pp.35-36). Em concordncia com as ideias defendidas por

    Salles, possvel ento falar que h criao em um espectro maior dos processos de produo,

    neste caso concretizados nas colees. O entendimento de que todos os objetos de nosso

    interesse seja um romance, uma pea publicitria, uma escultura, um artigo cientfico ou

    jornalstico so, de modo potencial, uma possvel verso daquilo que pode vir a ser ainda

    modificado (SALLES, 2006, p.162) faz com que seja possvel relacionar as colees, que

  • 5

    funcionam como obras inacabadas, ao processo criativo. Nesse caso, a coleo o seu prprio

    processo criativo, a sua construo. Nas diferentes relaes entre obras e processos discutidas

    por Salles, algumas colees funcionariam inclusive como obra que processo, isto , uma

    obra que se transforma. Essas seriam as colees que no tem fim, como colees de moedas,

    selos, carros etc.

    Alm de Salles, Benjamin tambm foi grande referncia do entendimento da coleo

    como processo criativo. O colecionador uma das figuras alegricas utilizadas pelo filsofo

    para pensar a experincia da modernidade. Ele sustenta que o mtodo autntico de tornar

    contemporneos os objetos consiste em conceb-los dentro de nosso prprio espao e isto o

    que faz o colecionador, que separa o objeto de todas as suas funes originrias para que este

    possa se colocar na relao mais ntima concebvel com o que guarda a sua maior afinidade.

    Benjamin utilizou a metodologia do colecionador na sua obra que permaneceu incompleta, O

    Livro das Passagens. O desejo do colecionador de separar objetos de seu uso habitual

    tambm est presente nos fragmentos de Rua de mo nica.

    Alm das teorias sobre processo criativo e comunicao, esta fase da pesquisa est

    baseada na coleta de dados empricos, frutos de entrevistas realizadas com colecionadores,

    visando a demonstrar os diversos processos criativos para a montagem e a manuteno das

    colees. Foram utilizadas como exemplo colees comuns e obras de arte cujos artistas se

    utilizam da acumulao de itens. Algumas das obras citadas fazem parte da coletnea Art

    Making, de Lynne Perrella, colecionadora e artista, que reuniu a obra de 35 artistas em seu

    livro.

  • 6

    1 O COLECIONISMO

    Tantos anos sero gastos pesquisando, estudando, classificando, antes que minha vida esteja garantida, cuidadosamente organizada e rotulada em um local seguro. A ento, com a garantia de nunca morrer, eu finalmente poderei descansar. (CHRISTIAN BOLTANSKY , 1969)1

    A bela citao de Boltansky apresenta uma das grandes motivaes do colecionismo: o

    desejo de permanncia e a garantia da eternidade. Este primeiro captulo pretende apresentar

    algumas das principais razes do colecionar, j que desde os primrdios o Homo Sapiens tem

    o hbito de armazenar objetos.

    Philipp Blom (2003), em seu livro Ter e Manter, explica que, at o sculo XVI,

    colecionar era um privilgio dos prncipes, cujos interesses se concentravam em itens belos e

    preciosos, que aumentavam sua fortuna e seu poder. O autor d como exemplo Tutankamon,

    que colecionava cermicas finas; o fara Amenhotep III, conhecido por sua paixo por

    esmaltes azuis; os tesouros do Templo de Salomo e as obras de arte gregas na Roma antiga.

    Porm, foi na Renascena que a cultura de colecionar realmente desabrochou. At esse

    momento tinha-se como certo que no havia fenmeno natural, nem cultura, nem animal, nem

    sensao, que j no tivesse sido interpretado definitivamente por Aristteles, Plnio, Ccero

    ou Pitgoras. Entretanto, um sculo aps a descoberta da Amrica, novas descobertas

    continuavam a aparecer praticamente todos os dias. O conhecimento explodiu, enquanto os

    horizontes antigos eram ampliados para alm de tudo aquilo que se julgava possvel.

    No Renascimento o conhecimento do mundo tornou-se complexo e o aumento do

    nmero de teorias e modelos acelerou o acmulo de conhecimento por escrito, gerando o

    crescimento do nmero de bibliotecas e de sistemas para visualizar o conhecimento do

    mundo.

    Junto com o crescente esprito cientfico do renascimento na segunda metade do sculo XVI, veio uma grande quantidade de colees que procuravam explorar e representar o mundo como ele parecia quela altura [...] Nessa poca, muitas cidades italianas tinham seus grandes colecionadores: homens como Michele Mercati, em Roma; Francesco Calceolari, em Verona; Carlos Ruzzini, em Veneza; Ulisse Aldrovandi e Ferdinando Cospi, em Bolonha; e Athanasius Kircher, no Vaticano, formaram colees que, classificadas e catalogadas, eram instrumentos

    1 Research and Presentation of All that Remains of My Childhood, 1944-1950, em THE ARCHIVE, 2006, p. 18.

  • 7

    de erudio e consolidao de conhecimentos enciclopdicos. (BLOM, 2003, pp.31-35)

    Foi nessa poca tambm que apareceram os chamados gabinetes de curiosidades,

    colees que se tornaram moda entre os burgueses com a finalidade de ampliar o

    conhecimento do mundo existente no Ocidente. Eram armrios ou cmodos que procuravam

    abarcar todo o conhecimento humano atravs de uma miscelnea de objetos naturais,

    orgnicos e artefatos manufaturados; elementos representativos e significativos da cultura.

    Eram cheios de objetos e criaturas extraordinrias, fora da ordem das coisas.

    Figura 1: Gabinetes de curiosidades: de Ole Worm (1655) e annimo (final do sculo XVII Florena).

    E foi no final do sculo XVII que surgiu uma das maiores colees que a Europa j

    viu: a obra do mdico ingls Sir Hans Sloane (1660-1753). Durante sua carreira, Sloane

    morou na Jamaica e viajou para as ndias Ocidentais e Orientais. Destes lugares ele

    colecionou um pouco de tudo o que era natural: plantas, corais, minerais, terra, conchas,

    animais, insetos, objetos da antiguidade, como vasos, camafeus, selos, instrumentos, urnas,

    medalhas, moedas e livros em geral. Como era um homem mais interessado em medicina do

    que em histria, sua coleo contava tambm com alguns clculos de rins e vescula,

    preparados anatmicos e coisas do gnero.

    Foi to significativa sua coleo que antes de morrer ele a legou a Real Sociedade de

    Londres, que deu incio ao que hoje o British Museum.

    Sloane, diferentemente dos colecionadores de curiosidades renascentistas, rotulava

    cada uma das peas que possua, registrando sua histria, suas peculiaridades, seus antigos

  • 8

    proprietrios e sua aparncia. Ele inclusive contratou assistentes para fazerem um inventrio

    de sua coleo, o que se estendeu por quarenta volumes in-flio.

    Na poca em que Sloane viveu o ato de colecionar sofrera uma brusca mudana de natureza. O Iluminismo e o surgimento das academias conduziram a formas mais metdicas de abordar o mundo material e a formas mais especializadas de colecionar. A ambio de colecionar tudo que fosse digno de nota, natural de Aldrovandi [...], cedera a vez a uma diviso de disciplinas, e dentro delas um novo projeto surgiu: a classificao racional e a descrio completa da natureza e, finalmente, da arte. (BLOM, 2003, p.107)

    Figura 2: Fotografias do British Museum.

    Nos gabinetes de curiosidades o que importava era a maravilha, no sentido de

    estranheza, de cada um dos objetos, uma contestao material das supostas limitaes do

    mundo conhecido. J no sculo XVIII, com a emergente abordagem cientfica da natureza, o

    objetivo era colocar tudo numa ordem de coisas, em seu devido lugar dentro de um grande

    sistema, capaz, pelo menos potencialmente, de absorver tudo que existia na terra e nos cus.

    Mas foi no sculo XIX, com a produo em massa, que as colees comearam a se

    diversificar e aprofundar, quando surgiu a ideia do conjunto completo, da srie inteira. Antes

    desse momento, os colecionadores no podiam ter esperana de alcanar a integralidade.

    Colecionar era, at ento, algo aberto, e sempre haveria outras peas, outros exemplares a

  • 9

    serem encontrados e acrescentados. Mas a produo em massa mudou tudo: algumas colees

    podem ser completadas, podem adquirir um destino lgico.

    Alm disso, a produo em massa permitiu tambm que as pessoas comuns se

    entregassem ao colecionismo. E logo a disponibilidade adquirida apresentou seu lado

    negativo: a perda da autenticidade. Foi ento que a fome do verdadeiro, do nico e do raro

    tornou-se ainda mais forte. Alguns colecionadores comearam a procurar edies limitadas,

    primeiras edies e outros itens que restabeleciam a singularidade. Outros davam as costas

    para o mercado da produo em massa e colecionavam artigos que no eram e no poderiam

    ser produzidos em massa: antiguidades, conchas, borboletas etc.

    Figura 3: Fotografias do British Museum.

  • 10

    1.1 A coleo e o tempo

    O "Teatro de Memria, obra de Giulio Camillo (1480-1544), autor renascentista

    italiano, era o projeto de uma grande enciclopdia do saber. Tratava-se de um anfiteatro

    (inacabado) onde o espectador, desbravando-o, entraria em contato com textos e imagens

    sobre filosofia, literatura, cincias, religies e arte. A estrela desse teatro era a mente humana,

    a memria. Ele teria em seus diversos degraus escaninhos onde estariam os textos e imagens

    afixadas nas paredes. O espectador percorreria livremente por entre o material numa rede

    inesgotvel de relaes, aluses e significaes. A sua maneira e ao seu tempo, Giulio

    Camillo lanou o germe de conceitos to em voga atualmente como a interconexo de campos

    diversos do conhecimento atravs de redes, a arte interativa e a fuso entre o ator, no sentido

    daquele que age, e o espectador.

    Figura 4: Teatro de memria de Giulio Camillo.

    Blom acrescenta: [...] quem possusse esse teatro possuiria o mundo em sua

    totalidade como metfora, como representao mitolgica em centenas de imagens

    alegricas. Segundo ele, Colecionar apossar-se do passado, da memria. O colecionador,

    preocupado com seu futuro, institui novas formas de lembranas e seus respectivos objetos.

  • 11

    uma forma de ampliar possibilidades de memria e de retrabalhar experincias e fantasias

    (BLOM, 2003, p.107).

    Colecionadores de rtulos ou rolhas de vinho, por exemplo, mais do que contribuir

    para a memria social, cientifica e econmica das comunidades, guardam um vestgio

    material de memrias, normalmente relacionadas a momentos etreos, de alegria e de

    satisfao.

    E em praticamente todos os casos a coleo traz uma enorme carga emotiva,

    demonstrando a relao com pessoas queridas ou ainda uma experincia de vida marcante.

    Normalmente ela comea a partir de um hobby e tende a crescer com presentes de amigos e

    de familiares. Desse modo, cada pea acaba tendo uma histria, uma pessoa envolvida. E

    mesmo quando no um presente, cada item da coleo tem uma memria, pois sempre

    fruto de muito esforo por parte do colecionador.

    Dois de cada espcie viro a ti, para os conservares em vida. Essa era a misso de No. [...] Salvar o mundo, ou um mundo, preservar a histria ou o gnio, a santidade ou a inocncia, tocar em algo alm da nossa fortuita existncia um trabalho de amor, um constante ritual, uma face do desejo de ser autntico, de ser humano. (BLOM, 2003, p.201)

    O colecionador acumula registros temporais, registros das aes do tempo, de lugares

    por onde passou; que constituem a sua histria. E registros da vida gravada em cada objeto,

    pois os prprios objetos so carregados de histrias.

    Pode-se pensar em um encontro com um passado que no est em cada objeto da coleo, nem no olhar ou no toque de quem os organiza, mas na fora intensiva que atravessa seus corpos (da coleo e do colecionador) no momento do encontro e que ainda possvel ser sentida e atualizada no presente pelo colecionador. (OLIVEIRA; SIEGMANN e COELHO, 2005, p.5)

    Salles aponta uma das funes das anotaes dos artistas: um modo de fazer durar

    esse instante e driblar o esquecimento. [...] Recorremos a auxlios exteriores a ns mesmos

    para reencontrar nossas lembranas ou simplesmente para dat-las ou localiz-las no tempo

    [...] (SALLES, 2006, p.68).

  • 12

    1.2 Vida aps a morte

    A arte de colecionar diz tambm respeito ao desejo pela vida. uma forma de apossar-

    se do mundo no se possui apenas o objeto, mas todo o emaranhado de significados,

    prticas e vivncias a ele ligadas. Para Benjamin (1987), a aquisio de um objeto seu

    renascimento e sua conservao tambm o renascimento de seu possuidor, a permanncia de

    suas experincias do passado em seu presente. Os objetos que compem uma coleo so

    alegorias do tempo que impedem o esquecimento, metforas que escrevem a histria de uma

    poca ou a histria de seu dono.

    No processo histrico de desenvolvimento humano existem inmeras interferncias

    que evidenciam o aprendizado ligado ao sofrimento e morte. Por esta razo, desde os

    primrdios o Homo Sapiens armazenava imediatamente cada nova inveno bem sucedida,

    no somente na memria fsica, mas tambm atravs do prprio objeto dela resultante.

    Apoiada na psicanlise de base lacaniana, a antroploga e semioticista Clotilde Perez

    apresenta o ser humano como um ser incompleto:

    Ele j se nasce com a certeza de que se vai morrer; ou seja, falvel como sistema biolgico. Vive-se em um contexto contraditrio: deseja-se a completude, mas tem-se a certeza da incompletude. [...] Completude diz respeito ao carter do ser completo, do estar pronto e acabado, sem nenhuma restrio e sem nenhuma carncia. Em suma, a realizao ampla e irrestrita. [...] No parece difcil concluir que essa completude no realmente possvel. (PEREZ, 2003/2004, pp.2-3)

    De acordo com Perez, a busca pela completude pode se dar de diversas formas, como

    atravs da espiritualidade, das relaes afetivas ou do consumo. Porm, no mundo ocidental,

    esta ltima forma a mais presente e intensa: a materializao da busca da completude por

    meio da aquisio de objetos.

    Os objetos manifestam certo grau de prazer individual e de satisfao social. E as

    pessoas definem-se muito mais por meio de suas relaes com os objetos do que por valores

    mais profundos. Segundo Perez, possvel classificar os objetos tendo em conta as relaes e

    as situaes que se estabelecem com ele. Assim, o objeto-prazer pode tornar-se objeto mgico

    ou fetiche. As peas de coleo so exemplos disso.

    O desejo da completude como a fome: pode ser satisfeita por algum momento, mas

    logo depois volta. De acordo com Frana, referindo-se a Freud, [...] a realizao do desejo

    humano tem o estatuto de ser parcial, porque jamais saciada, tornando-se uma busca

  • 13

    insistente e repetitiva (FRANA, 1997, p.99). Quando se adquire uma caneta Mont Blanc

    modelo Ramss, por exemplo, fica-se satisfeito por algum tempo. Como o objeto de desejo

    pura iluso, pois nunca verdadeiramente atingido, cria-se a cada momento novos objetos

    para se desejar.

    A conquista secundada pela desiluso e pela necessidade de novas conquistas. Estvamos enganados, diz uma voz dentro de ns, no era isso afinal, enquanto j identificamos tudo o que falta em nossa vida em um objeto ainda fora do nosso crculo mgico. Deve ser ele. O objeto mais importante de uma coleo o objeto seguinte. A posse talvez seja capaz de nos proteger da necessidade de encarar o mundo sem defesa, mas s a prxima conquista trar satisfao. (BLOM, 2003, pp.181-182)

    Ceclia Salles tambm descreve esse movimento entre o artista em relao sua obra:

    a criao um projeto que est sempre em estado de construo, suprindo as necessidades e

    os desejos do artista, sempre em renovao. O sentimento de que aquilo que se procura no

    nunca plenamente alcanado leva a uma busca constante que se prolonga, que dura

    (SALLES, 2006, p.59).

    O objetivo de completar a coleo simboliza o alcanar a completude. Ao mesmo

    tempo, existe um temor no fato de se conseguir completar a coleo: isto significa o fim da

    vida. O ato de colecionar revela um desejo de permanncia, almeja a imortalidade. Ningum

    guarda sem inteno, ningum conserva para relegar ao esquecimento (MARQUES e

    SILVEIRA, 2005, p.4).

    A obra A exumao do mastodonte, de Charles Peale (1741-1827), colecionador e

    retratista, imortalizou uma cena que ocorreu de fato na poca: a descoberta do mastodonte foi

    uma sensao nos crculos cientficos, como prova de que as espcies podem desaparecer, fato

    que fortaleceu as ideias sobre evoluo natural. No quadro, o prprio Peale aparece

    supervisionando a exposio dos ossos do mastodonte sob ameaa de uma tempestade. Uma

    roda ambulante puxa uma corrente de baldes para tirar gua de um buraco, tudo em um clima

    de urgncia. As pessoas pintadas ao redor dele so seus amigos e parentes. Todos so

    surpreendidos na grande expectativa do momento: a recuperao de algo que se acreditava

    perdido h muito tempo (ou inexistente).

  • 14

    Figura 5: A exumao do mastodonte, apud BLOM, 2003, p.113.

    Como muitas pessoas exibidas na tela j tinham morrido na poca da exumao, elas

    tambm estavam sendo, dessa forma, recuperadas. Essa era a inteno de Peale: assegurar

    uma forma de permanncia e de imortalidade. Suas preocupaes ilustram a aguda e

    angustiosa conscincia da mortalidade, da passagem inexorvel do tempo e de tudo que

    amava.

    este medo da necessidade de olvido, da morte como o total estranho que ningum pode conhecer sem ser levado por ele, que fomenta a necessidade de colecionar, de criar a permanncia, de tratar a terra do cemitrio, um vasto campo de urnas sepulcrais passadas, como um repositrio de tesouros e milagres. (BLOM, 2003, p.217)

    Para Baudrillard A coleo representa o perptuo reincio de um ciclo dirigido onde o

    homem se entrega a cada instante e com absoluta segurana [...] ao jogo do nascimento e da

    morte (BAUDRILLARD, 2008, p.103). O objeto significa nossa prpria morte, mas

    superada pelo fato de o possuirmos.

    Para o socilogo, a funo fundamental da coleo a de solucionar o tempo real em

    uma dimenso sistemtica, j que, antes de tudo, ela um passatempo, no sentido literal do

    termo, pois que simplesmente o abole:

    O que o homem encontra nos objetos no a garantia de sobreviver, a de viver a partir de ento continuamente em uma forma cclica e controlada o processo de sua existncia e de ultrapassar assim simbolicamente esta existncia real cujo acontecimento irreversvel lhe escapa (BAUDRILLARD, 2008, pp.104-105).

  • 15

    1.3 Colecionar e ser

    Em sua teorizao sobre identidade e consumo, Belk (1988) afirma que os indivduos

    podem ser compreendidos a partir do exame das suas posses. O termo extended self est

    relacionado a tudo o que consideramos como nossos. O autor faz a distino entre self (eu) e

    self estendido (meu). Segundo ele, diversos objetos podem ser apropriados ao self, tais como:

    posses pessoais; pessoas; lugares; posses de grupos. Ademais, na medida em que essas posses

    auxiliam na formao ou na expresso de parte do self do consumidor, elas fazem parte do seu

    self estendido. Isso instaura uma ntima relao entre consumo e identidade.

    No caso do colecionador, boa parte de sua identidade construda, expressada ou

    reforada por meio do consumo de uma categoria especfica de objetos. E, pelo tempo,

    energia e dinheiro gastos em uma coleo, natural que ela seja tida como mais importante na

    constituio do self do indivduo do que outros objetos de consumo isolados. Alm disso, o

    esforo empregado para montar a coleo demonstra por si s que o colecionador colocou

    uma parte de si mesmo na coleo.

    Para Baudrillard, a coleo feita de uma sucesso de termos, mas seu termo final a

    pessoa do colecionador (BAUDRILLARD, 2008, p.99). Segundo ele, o colecionador sempre

    coleciona a si mesmo e, qualquer que seja a abertura de uma coleo, h nela sempre um

    elemento irredutvel de no-relao com o mundo. Mesmo quando a coleo faz discurso aos

    outros, sempre primeiro discurso a si mesmo. Sendo assim, o colecionador no somente o

    que se v nele, mas tambm o que se v nos objetos que possui. Ele confere a si mesmo os

    significados que confere aos seus objetos. Ou seja, a coleo pode dizer coisas a respeito do

    colecionador, um retrato da sua personalidade. O colecionador constri ideias e conceitos

    sobre si mesmo com base na sua coleo.

    Costa tambm menciona essa questo, fazendo uma analogia da coleo com o auto-

    retrato, [...] onde o colecionador, mesmo que de maneira fragmentada e incompleta, cria a

    imagem que gostaria que os outros tivessem de si e que, por outro lado, o reconforta como

    imagem de si mesmo (COSTA, 2007, p.25).

    Alis, essa preocupao em formar uma imagem de si prprio, no necessariamente a

    imagem real, mas sim a ideal e desejada, est bastante relacionada tambm ao fato de o

    colecionador querer ser lembrado dessa forma (imaginada) para a eternidade, como j foi

    descrito no subcaptulo anterior (vida aps a morte).

  • 16

    Alm disso, se o colecionador possui uma coleo maior, ou nica ou mais completa

    do que a de outros, isso faz com que ele aumente sua reputao tanto para si mesmo, como

    para os outros colecionadores e para o pblico. Isto : a coleo no apenas fala do prprio

    colecionador, mas tambm utilizada por ele como smbolo de poder e de status, nem que

    seja em uma pequena comunidade ou grupo de pessoas.

    Figura 6: Coleo de Francesco Calceolari, apud BLOM, 2003, p.54.

    Blom faz uma interessante analogia acerca de uma das esttuas da coleo do

    renascentista Francesco Calceolari, que descreve essa sensao de poder que o colecionador

    tem ao adquirir e ao possuir determinadas peas: Atlas, o carregador do mundo, simboliza a

    prpria ambio da coleo de ser um microcosmo de tudo o que passvel de ser conhecido,

    tudo o que ele sustenta nos ombros [...] (BLOM, 2003, p.55).

    Esta questo do poder tambm mencionada por Belk, quando cita que O

    colecionador como criador de sua coleo assume o papel de possessor, controlador, e s

    vezes salvador dos objetos coletados (BELK, 1995, p.70). O autor acrescenta que essa

    sensao como se o colecionador controlasse um pequeno mundo.

  • 17

    1.4 Ressignificao

    De acordo com Belk o comportamento do colecionador diferente do comportamento

    de uma pessoa que adquire e consume um produto comum. Para ele, possuir e colecionar so

    conceitos mais amplos do que os conceitos de comprar e de consumir. Isto porque o

    colecionador busca itens especficos, ou seja, ele estabelece critrios na sua busca por itens

    colecionveis.

    Alm disso, na maior parte das colees, os itens no so utilizados para o fim a que

    foram originalmente fabricados. Assim acontece, como por exemplo, nas colees de

    medalhas, moedas, canecas, bonecas, bichos de pelcias, relgios etc. O colecionador move-

    se para decompor os objetos, para criar um significado outro, diferente de seus objetivos

    originais e, com isso, resgat-lo do fluxo incessante das mercadorias.

    Baudrillard escreve que todo objeto tem duas funes: uma ser utilizado, e a outra

    ser possudo. Estas duas funes encontram-se na razo inversa uma da outra. E acrescenta:

    O objeto estritamente prtico toma um estatuto social: uma mquina. Ao contrrio, o objeto

    puro, privado de funo ou abstrado de seu uso, toma um estatuto estritamente subjetivo:

    torna-se objeto de coleo (BAUDRILLARD, 2008, p.94). Quando um objeto no mais

    especificado por sua funo, passa a ser qualificado pelo indivduo, no caso, pelo

    colecionador.

    Blom menciona tambm esse no-consumo dos objetos de uma coleo:

    Tudo o que colecionamos, seja o que for, precisamos matar, literalmente no caso de borboletas e besouros, metaforicamente no caso de outros objetos, que so tirados de seu ambiente, de suas funes e de sua circulao de costume, e postos num ambiente artificial, despidos de sua antiga utilidade, transformados em objetos de uma ordem diferente, mortos para o mundo. [...] Ao mesmo tempo, esses objetos adquirem uma nova vida, como parte de um organismo, como parte da imagem duplicada do colecionador, entidades que fazem suas prprias exigncias, criam suas prprias regras e transpiram seu prprio poder. Como relquias, so mortos, e apesar disso muito vivos na mente do crente, do colecionador, do devoto. Sendo assim, formam uma ponte entre nosso mundo limitado e outro, infinitamente mais rico, da histria, da arte, do carisma, do sagrado um mundo de suprema autenticidade e, portanto uma utopia profundamente romntica. (BLOM, 2003, p.177)

    Segundo Belk, um dos aspectos que indicam a transformao de um objeto profano em

    sagrado o espao onde guardada a coleo: independente de onde este lugar, ele torna-se

    sagrado. Pode haver inclusive um ritual, um horrio especial para se manusear a coleo e na

  • 18

    maior parte das vezes ningum pode entrar neste local sem a permisso do colecionador.

    Mesmo para fazer a limpeza dos itens, o colecionador mesmo a faz, com receio que de que

    outra pessoa quebre alguma pea ou a coloque fora de seu lugar. Os termos sagrado e

    profano utilizados por Belk no esto sendo utilizados aqui no senso religioso. Por

    profano o autor entende o mundano, o ordinrio, o comum, enquanto o sagrado seria o

    extraordinrio, o especial, capaz de gerar referncia. Para Benjamin, o profano o

    ordenamento e a esquematizao das coisas comumente aceitas mais ou menos como a ordem

    em um glossrio fraseolgico natural (BENJAMIN, 2006, p.94).

    No caso das colees, o colecionador singulariza um item quando o remove do reino

    profano, indiferenciado e comoditizado e ritualmente o transforma em um objeto pessoal e

    socialmente significante.

    Viagens a outro mundo, um mundo habitado apenas pela imaginao do colecionador e que ao mesmo tempo tambm parte de outro reino, seja memria ou imaginao, beleza ou gnio, so a promessa de todo armrio de colecionador, do espao fechado no qual ele se refugia e onde demiurgo e rbitro supremo, decidindo sobre admisses e expulses, ordem e arranjo, valor e beleza. (BLOM, 2003, p.195)

    uma relao muito prxima que o artista tem com o seu escritrio, o local onde

    trabalha e produz suas obras: [...] alguns chegam a mencionar a dificuldade de receber visitas

    que, de certa forma, representam uma espcie de invaso. interessante observar que mesmo

    quando esse sentimento no exposto, fala-se em uma ocupao ritualstica (SALLES, 2006,

    p.58).

    Outra questo relacionada ao sagrado o fato de os itens da coleo no estarem

    venda, pois o colecionador em geral no o acha correto. Blom afirma que objetos

    colecionados [...] tem para o colecionador um valor que somente outros colecionadores so

    capazes de compreender. [...] Alguns itens apenas tem valor em certos crculos, cujas regras e

    cujo conhecimento so profundamente secretos, compartilhados por poucos (BLOM, 2003,

    p.195). E acrescenta que, como o objeto de coleo perdeu seu valor como objeto de uso, seu

    valor [...] s pode estar, se no na utilidade, no significado; significam algo, representam

    algo, provocam associaes que os torna valiosos aos olhos do colecionador. [...] No o que

    eles so, mas o que eles representam. [...] (BLOM, 2003, p.196).

    Afinal, no todo e qualquer objeto que pode fazer parte de uma coleo, ele

    cuidadosamente escolhido para entrar nesse conjunto de objetos, para tornar-se sagrado.

    Nancy Anderson (PERRELLA, 2007, p.9), artista e colecionadora, cita que seu trabalho e sua

  • 19

    coleo esto diretamente interligados, um no pode existir sem o outro; e registra seu

    manifesto:

    Fique atento ao milagre da vida nos objetos do dia-a-dia, nos lugares onde voc os encontra, e nas pessoas que voc encontra no caminho. Atravs da coleo, combinao e conexo, o ordinrio se transformar em extraordinrio. (PERRELLA, 2007, p.9)

    importante notar que os objetos de uma coleo no so simplesmente retirados do

    cotidiano, mas so inseridos em uma nova concepo. E sobre essa tnue e essencial

    distino que se trata o prximo captulo, quando inserimos a formao da coleo no campo

    da criao.

  • 20

    2 O COLECIONADOR-CRIADOR

    A coleo a soma de uma srie de decises, chances, acidentes, caprichos e outras instncias do acaso. (JOSHUA BAER, colecionador e artista)2

    Ceclia Salles, em seu livro, parte do conceito de criao como rede em processo,

    destacando como caracterstica desta a dinamicidade e o inacabamento.

    Estamos falando aqui do inacabamento intrnseco a todos os processos, em outras palavras, o inacabamento que olha para todos os objetos de nosso interesse seja um romance, uma pea publicitria, uma escultura, um artigo cientfico ou jornalstico so, de modo potencial, uma possvel verso daquilo que pode vir a ser ainda modificado. (SALLES, 2006, p.162)

    Considerando o objeto de interesse, as colees, o objetivo nesta dissertao o de

    relacionar estes conceitos atribudos criao artstica ao processo de formao das colees.

    A coleo um processo dinmico, j que flexvel, no fixo, sim mvel. Mesmo quando de

    um mesmo tipo de item ou de tema, as colees so sempre diferentes umas das outras, pois

    so inmeras as adies, os deslocamentos e as possibilidades de organizao, de exposio e

    de armazenamento. Alm disso, muitas colees podem ser consideradas processos

    inacabados, desde que exista a possibilidade de continuidade e de modificao, e

    considerando inclusive a questo da incompletude, j descrita no captulo anterior. Salles,

    refletindo sobre a criao artstica, menciona tambm que

    Tomando a continuidade do processo e a incompletude que lhe inerente, h sempre uma diferena entre aquilo que se concretiza e o projeto do artista que est para ser realizado. [...] A busca, no fluxo da continuidade, sempre incompleta e o prprio projeto que envolve a produo das obras, em sua variao contnua, muda ao longo do tempo. [...] A relao entre o que se tem e o que se quer reverte-se em contnuos gestos aproximativos adequaes que buscam a sempre inatingvel completude. (SALLES, 2006, pp.20-21)

    Nas diferentes relaes entre obras e processos discutidas por Ceclia Salles, a coleo

    funcionaria como uma obra que processo, isto , uma obra que se transforma, pois ela o

    seu prprio processo de formao; no o j feito, mas o fazer-se constantemente. O arquiteto

    2 apud PERRELLA, 2007, p.160

  • 21

    e mestre em histria da arte pela USP, Paulo de Freitas Costa, no apenas relaciona

    colecionismo com processo criativo, como o define desta forma:

    O colecionismo um processo criativo que consiste na busca e posse de objetos de maneira seletiva e apaixonada, em que cada objeto destacado de seu uso ordinrio e concebido como um elemento de um conjunto de objetos dotado de significados a ele atribudos pelo indivduo ou pela sociedade em determinado contexto cultural. (COSTA, 2007, p.20)

    Stewart (1984)3 avana ainda mais nesse sentido, descrevendo a coleo como uma

    forma de arte, assim como a brincadeira:

    A coleo uma forma de arte como o brincar, uma forma que envolve a ressignificao dos objetos dentro de um mundo de ateno e manipulao de contexto. Como outras formas de arte, sua funo no a restaurao do contexto de origem, mas sim a criao de um novo contexto, de uma forma metafrica [...]. (STEWART, 1984, p.5)

    Pode-se fazer uma analogia entre a coleo e a esttica labirntica descrita no livro A

    Esttica do Labirinto, da pesquisadora e tambm orientadora desta dissertao, Lcia Leo

    (2002). A coleo, assim como o labirinto, est presente em vrias pocas da humanidade e o

    seu sentido pode ser variado: pode demonstrar poder; ou um desafio, um jogo; ou ainda ser

    um divertimento, um hobby. Por esta razo, ambos so signos de complexidade.

    Jorge Vieira discorre sobre a possibilidade da organizao gerada a partir do conceito

    de entropia, a partir das ideias de Atlan (1992) 4:

    [...] nos deparamos com uma realidade organizada, acima de qualquer critrio de ordem; irregular e por vezes imprevisvel, alm de qualquer nvel de periodicidade ou simetria; e acima de tudo, complexa. [...] O universo complexo um sistema cuja entropia nem nula (redundncia total) e nem mxima (redundncia nula) (VIEIRA, 2006, p.2).

    Leo cita o labirinto como o caos ordenado, de uma estrutura complexa que requer

    um tremendo esforo para ser decifrada (LEO, 2002, p.35). A descrio vale tambm para

    o colecionismo, afinal, a maior parte das colees parece ser organizada ao acaso, mas, ao nos

    aprofundarmos em cada uma delas, possvel encontrar uma ordenao complexa em sua

    estrutura. Ou seja, a coleo rodeada por contradies, incorporando a ordem e o caos.

    3 Em PEARCE (1994, pp.226-227): STEWART, S. On Longing: Narratives of the Miniature, the Gigantic, the Souvenir, the Collection. Baltimore and London, John Hopkins University Press, 1984. 4 Em VIEIRA (2006, p.2): ATLAN, H. Entre o Cristal e a Fumaa. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor Ltda., 1992.

  • 22

    Alm disso, o colecionador utiliza-se de dois tipos de olhar para exercer a ordenao.

    Um dos seus olhares o olhar global, que organiza a coleo como um todo. O outro o olhar

    local, que observa os detalhes da coleo. Ou seja, se por um lado o colecionador acumula e

    arquiva, de outro lado, com o excesso de informao, ele tende a fazer um recorte lgico da

    sua coleo. E sabemos que o processo criativo se define tambm pela proposio de novas

    relaes entre elementos e informaes j existentes.

    Belk menciona que A escolha e a montagem dos objetos para formar uma coleo so

    aparentemente atos de auto-expresso criativa que nos dizem algo sobre o colecionador

    (BELK, 1995, p.89). Para compreender a coleo e a sua formao como processo criativo,

    este segundo captulo discorrer sobre os atos de selecionar e de ordenar itens exercidos pelo

    colecionador. Alm da referncia bibliogrfica, muitas das afirmaes esto baseadas em

    casos reais, cujos colecionadores foram entrevistados para esta pesquisa. Sero tambm

    utilizadas obras de artistas plsticos cujo trabalho pressupe a acumulao de itens para a

    exemplificao dos aspectos a serem abordados. Afinal, de acordo com Perrella, [...]

    independentemente de os objetos coletados serem efetivamente utilizados em obras de arte ou

    apenas servirem de inspirao, a sincronicidade entre o artista e o objeto inegvel

    (PERRELLA, 2007, p.7). Segundo a autora, esses artistas colecionam objetos h bastante

    tempo para saber que esta uma maneira infalvel de despertar novas ideias. E esta tambm

    uma das suas maneiras favoritas de gerao de ideias: trazer suas colees e relquias para o

    estdio e trabalhar com eles em instalaes temporrias.

    Atravs da metodologia de pesquisa qualitativa, foram realizadas 20 entrevistas em

    profundidade com diferentes colecionadores (amostra no representativa). O objetivo desta

    fase emprica do trabalho, mais do que tentar entender motivaes do colecionismo e o seu

    produto, foi o de compreender a experincia e o processo de colecionar, incluindo os aspectos

    de seleo e de ordenao das peas. Alguns dados dos entrevistados foram posteriormente

    coletados atravs da Internet e complementados com informaes encontradas em clubes de

    colecionadores e fruns e sites virtuais sobre o tema. No foi dado foco em nenhum tipo

    especifico de coleo, j que a proposta era de compreender o colecionar em geral, como

    fenmeno.

  • 23

    2.1 Selecionando itens

    Baudrillard, em O Sistema dos Objetos, distingue o conceito de coleo (colligere:

    escolher e reunir) do de acumulao, que para ele um estado inferior, relacionado ao simples

    amontoamento ou armazenamento de objetos e coisas. Para ele, a coleo emerge para a

    cultura: [...] visa objetos diferenciados que tem frequentemente valor de troca, que so

    tambm objetos de conservao, de comrcio, de ritual social, de exibio talvez mesmo

    fonte de benefcios (BAUDRILLARD, 2008, p.111). Paralelamente, Ceclia Salles destaca a

    diferena entre a cultura e o acmulo de informaes:

    Retomando a viso macro da cultura, Jerusa Pires Ferreira5 ressalta que para Lotman a cultura no um depsito de informaes; um mecanismo organizado, de modo extremamente complexo, que conserva as informaes, elaborando continuamente os procedimentos mais vantajosos e compatveis. Recebe as coisas novas, codifica e decodifica mensagens, traduzindo-as para um outro sistema de signos. (SALLES, 2006, p.69)

    Assim como a cultura no um depsito de informaes, mas se utiliza das

    informaes como matria-prima para sua existncia; a coleo tambm no simplesmente

    acmulo de itens, mas passa por este processo para chegar a sua finalidade. Ou seja, na

    coleo o processo de acumulao existe, mas este vem seguido de seletividade.

    Belk faz uma interessante analogia acerca desta questo, apontando o mtodo como a

    principal diferenciao entre coleo e acmulo:

    Quando o co faz um depsito de ossos sem carne, ele como o colecionador que mantm coisas porque so obsoletas. Um selo usado para um homem o que um osso sem carne para um co: mas o colecionador de selos vai mais longe do que o co, j que prefere um selo antigo do que um novo, enquanto nenhum co preferiria um osso sem carne a um com carne. No colecionador humano existe mais mtodo. [...] (BELK, 1995, p.67) 6

    Costa acrescenta que uma coleo , antes de mais nada, uma construo criada pelo

    prprio colecionador a partir de suas escolhas, mesmo que sejam, em parte, escolhas

    inconscientes (COSTA, 2007, p.24). Dentro desse pensamento, o colecionador deixa de ser

    simplesmente um capitalista acumulador e passa a ser um criador, que possui mtodo e

    seleciona. 5 FERREIRA, J. P. Armadilhas da memria. So Paulo, Ateli Editoral, 2003. 6 Citado em: JOHNSTON, S., Introduction, in Collecting: the passionate pastime, Susanna Johnston e Tim Beddow. New York, Harper & Row, pp.13-15, 1986.

  • 24

    Susan Lenart-Kazmer (PERRELLA, 2007, p.145), artista que utiliza objetos

    colecionveis em suas obras, preocupa-se com o valor intrnseco de cada objeto, e, por esse

    motivo, faz questo de apontar que, nesse sentido, colecionar muito diferente de adquirir

    coisas como se fossem moeda: [...] meu trabalho como artista pegar o objeto encontrado e

    apresent-lo de uma forma nova e inesperada (PERRELLA, 2007, p.145).

    Benjamin sustenta inclusive que o colecionismo diametralmente oposto categoria

    de consumo, pois o colecionador, ao despojar cada objeto individual de toda a propriedade

    ou condio de mera possesso, remete o objeto a uma constelao histrica criada por ele

    prprio, revelando conexes entre coisas que guardam correspondncias (PERRONE e

    ENGELMAN, 2005, p.4).

    Dentre as entrevistas realizadas com colecionadores, observou-se uma parcela que no

    possui uma seleo de itens muito criteriosa, basta apenas que eles faam parte de um tema,

    formato, cor especficos para fazerem parte da coleo. No por isso, estes colecionadores

    podem ser considerados pouco envolvidos com sua coleo. Em geral, a principal necessidade

    deste tipo de colecionador parece ser abarcar tudo o que est relacionado ao tema de sua

    coleo, como se ele no quisesse perder nada, como se pudesse abraar o seu pequeno

    mundo.

    Emilio, possuidor de 1387 camisas de futebol, considera-se completamente envolvido

    com sua coleo (10 em uma escala de 1 a 10), e alega: Qualquer camisa de time de futebol,

    profissional ou amador, eu quero ter. Essa citao poderia ser muito prxima a de um

    simples acumulador de objetos, no fossem os objetos de sua coleo itens diferenciados

    (muitas das camisas dele so raras e outras tantas esto autografadas pelos jogadores),

    conservados como obras de arte (ele lava todas as camisas a vcuo e as armazena dentro de

    sacos plsticos) e organizados de uma forma especial, como se estivessem sempre prontos a

    serem mostrados a algum.

  • 25

    Figura 7: Coleo de Emilio camisas de futebol.

    Ulysses, colecionador de aproximadamente 180 itens com o tema pinguim, cita que

    todo objeto que seja um pinguim merece fazer parte de sua coleo: Precisa ser um pinguim,

    mas pode ser de chocolate, porcelana, metal, vidro, [...]. Srgio, um conhecido colecionador

    de itens com o tema girafas, chama este tipo de coleo de pancolecionismo, onde vale

    tudo, a coleo uma srie de peas que se relacionam entre si s por serem do mesmo tema.

    Figura 8: Parte da coleo de Srgio girafas (foto retirada do site www.girafamania.com.br).

  • 26

    Essa seleo pouco criteriosa de itens bastante comum especialmente em colees

    temticas e tambm no caso de muitos artistas-colecionadores. Lynn Whipple (PERRELLA,

    2007, p.47) admite que consideraes prticas no fazem parte de seu processo de coleta,

    preferindo apenas acumular coisas que as fascinam, como as fotografias antigas. J o afeto de

    Jane Wynn (PERRELLA, 2007, pp.28-29) para com os coelhos levou-a a comear uma

    coleo de brinquedos antigos e figuras de cermica que parece se multiplicar

    espontaneamente. Para Perrella (2007), colees de objetos de uma mesma cor, por exemplo,

    podem ser utilizadas para o estmulo das ideias.

    Figura 9: Obras de Lynn Whipple (PERRELLA, 2007, p.47).

  • 27

    Figura 10: Coelhos de Jane Wynn e a obra Shrine for Saint Melangell (PERRELLA, 2007, pp.28-29).

    Figura 11: Coleo de Lynne Perrella (PERRELLA, 2007, p.149).

    Lisa Kaus (PERRELLA, 2007, p.48) cita que depende de suas diferentes colees para

    ter possibilidades ilimitadas e motivao para expandir sua arte, que fortemente influenciada

    por seus achados, em particular, tudo o que brilha. Ela declara que raramente tem em mente

    um destino especfico quando encontra as coisas que coleciona e tambm que, para ela, os

    verdadeiros artistas mixed-media nascem colecionadores. Susan Lenart-Kazmer (PERRELLA,

  • 28

    2007, p.145) assume que seu processo de seleo de itens simples: O amor aos objetos vem

    em primeiro lugar e no h absolutamente nenhum outro critrio para a coleta (PERRELLA,

    2007, p.145). James Michael Starr (PERRELLA, 2007, p.91) declara algo prximo:

    A grande maioria dos objetos que eu coleciono so coisas que eu acredito que posso usar, mas no necessariamente acabo usando. Eu tenho estantes e caixas de coisas inutilizadas h anos. Eu evito comear com uma ideia ou conceito selecionando apenas os objetos certos. Pelo contrrio, eu seleciono objetos que eu acho que so bonitos, coloco-os na prateleira, e depois volto a eles mais tarde. (PERRELLA, 2007, p.91)

    O que se percebe na maior parte das colees que existe um processo de seleo,

    mesmo que simples. Uma das provas disso o fato de que pouqussimos colecionadores esto

    dispostos a ganhar peas de outras pessoas, j que provavelmente essas pessoas no

    acertariam o presente uma vez que no conhecem as caractersticas necessrias para que o

    objeto faa parte de sua coleo. Belk (1995) explica que isso ocorre porque, nessas situaes,

    o colecionador privado do controle seletivo que normalmente exercido a cada objeto que

    entra na coleo. O autor cita que, para que as coisas sejam percebidas como um conjunto,

    deve haver uma distino sobre o que e o que no apropriado para a sua incluso na

    coleo.

    Os objetos so escolhidos, selecionados e classificados como resposta s afeces surgidas no encontro do sujeito com as qualidades intrnsecas de cada objeto, os seus elementos singulares e a histria que os compem. Embora da mesma natureza, eles diferem em relao a si mesmos e na relao com o prprio colecionador. [...] (OLIVEIRA, SIEGMANN E COELHO, 2005, p.7)

    Salles discorre sobre o processo de seleo pelo qual o artista passa para se pensar a

    criao artstica:

    O ato de escolher ou de decidir , por vezes, acompanhado de reflexes, justificativas e surgimento de critrios. [...] Diante de tantas possibilidades e de potencialidade de novas possibilidades surgirem, o trabalho de criao se d em meio a inmeras recusas e aceitaes, que envolvem muitas escolhas. (SALLES, 2006, p.76)

    Para Perrella, a compulso de colecionar gera a urgncia de criar. Segundo ela, o

    potencial de cada objeto forte e o papel do artista reconhecer este potencial. E no essa a

    funo do colecionador quando ele escolhe alguns itens para entrar em sua coleo e recusa

    outros?

  • 29

    Glauco, colecionador de aproximadamente 300 revistas em quadrinhos, seleciona seus

    exemplares da seguinte forma: Prefiro histrias que possuam incio, meio e fim. [...]

    Geralmente so histrias especiais, ou encontros de editoras diferentes, algo fora do comum.

    No sou colecionador de itens mensais ou continuados. A fala de Glauco muito prxima da

    de muitos dos colecionadores entrevistados: poucos conseguem descrever os critrios

    especficos de escolha de algum item, mas sabem explicar com detalhes o porqu de alguma

    pea no poder entrar em sua coleo.

    Isso talvez ocorra por conta da especializao que em geral as colees tendem a ter,

    argumentada por Belk (2005). De acordo com ele, na medida em que as colees aumentam,

    os colecionadores passam a se tornar um connaisseur do assunto referente ao que est sendo

    colecionado. Isso faz com que eles tenham que ser selecionadores ainda mais exigentes, ou

    seja, nem todo objeto agora pode fazer parte de sua coleo.

    Essa especializao tambm notada na maior parte das entrevistas realizadas. Denis,

    um dos maiores colecionadores de discos em vinil do Brasil, conta que no incio ele ouvia e

    colecionava discos que seus irmos mais velhos lhe apresentavam, mas com o passar do

    tempo descobriu que Aquelas bandas que estavam lanando LPs nos anos 80 j haviam

    lanado discos muito melhores nos anos 70. A partir da, percebendo que a sonoridade dos

    anos 70 lhe agradava mais, ele passou a selecionar os itens de sua coleo, deixando cada vez

    mais os discos dos anos 80 de lado e se aprofundando nos anos 70. E continua: Conforme ia

    me aprofundando mais, acabei descobrindo os anos 60. Estava ento iniciando minha

    verdadeira paixo.

    De acordo com Joanna Pierotti (PERRELLA, 2007, p.123), na arte que se utiliza de

    objetos colecionveis o processo de seleo comea com o artista construindo um ninho de

    materiais possveis, que se adequam ao ambiente da montagem, que inclusive podem at

    acabar no fazendo parte da obra concluda. Segundo a artista e colecionadora, nesta fase

    inicial do processo de acumulao de objetos, todas as possibilidades so consideradas, at

    que ento haja a especializao, a seleo mais criteriosa de que itens realmente faro parte da

    obra.

    O processo de seleo de itens bastante importante para a artista Jac Leirner, que

    desde 1995 coleciona objetos comuns do cotidiano, reunindo-os em sries e atribuindo-lhes

    nova ordem e significados. A artista elege itens ligados ao universo do consumo, como

    sacolas plsticas, maos de cigarros, cdulas de dinheiro, passagens areas e adesivos, e os

    insere no circuito artstico. Uma de suas obras uma grande coleo de sacolas de museus,

    referindo-se mercantilizao do espao da arte.

  • 30

    Figura 12: 144 Museum Bags sacolas de museu (LEIRNER, Saint Clair Cemins Supercuia, 2006)

    Figura 13: Os Cem-roda notas de dinheiro e ao inox (LEIRNER, Coleo Marcantonio Vilaa, 1986)

    Ilya Kabakov, artista nascido na Ucrnia em 1933 e radicado nos USA, realizou mais

    de uma dezena de instalaes, vrias delas com temtica relacionada ao ato de colecionar.

    Suas mais conhecidas instalaes, In the Closet (2000), The Man Who Flew Into Space

    From His Apartment (1985), The Man Who Never Threw Anything Away (1988),

    discutem o gesto de acumular como percurso antropolgico e narrativo.

  • 31

    Figura 14: The Man Who Flew Into Space From His Apartment posteres (KABAKOV, Museu de Arte

    Moderna de Paris, 1968-1996)

    Segundo Vsquez Rocca, o colecionismo est presente nas instalaes de Kabakov

    como elemento fundamental para a discusso sobre memria, imagem e narrativa. O autor

    discorre sobre a sndrome de Digenes, comportamento obsessivo em que o indivduo no

    consegue se desfazer de nenhum objeto e tende a ficar recluso em seu lar. Kabakov recria o

    prazer sufocante marcado por esta sndrome em seu conceitual "The Man Who Never

    Threw Anything Away (1988). Na instalao experimenta-se a sensao deste colecionador

    de lixo.

    Figura 15: The Man Who Never Threw Anything Away (KABAKOV, 1994)

  • 32

    Em sua obra 16 Ropes, de 1984, apresentada na Bienal de Moscou, o artista rene

    vrios objetos, como rtulos de cerveja, embrulho de cigarro, tapete, pedaos de papel,

    pendurados em cordas, como num varal de roupas. O varal como um arquivo, um banco de

    dados espacial, onde se registram memrias.

    Figura 16: 16 Ropes (KABAKOV, Moscou, 1984)

    Judi Riesch (PERRELLA, 2007, p.40) agrupa itens de madre-prola e peas de prata e

    ouro velho, como colheres de beb, pedaos de jias, correntes, fivelas, dedais, para inspirar

    seus trabalhos de arte.

    Figura 17: Obras de Judi Riesch: Mother of Pearl e Silver Belle (PERRELLA, 2007, pp .40 e 43).

  • 33

    Laurie Zuckerman (PERRELLA, 2007, pp.84-85) acumula chaves, moedas e outros

    materiais efmeros que encontra para montar seus jarros. Cada elemento considerado por

    seu potencial de acrscimo narrativa de cada um dos jarros. A pea Behind the 8 Ball

    apresenta um humor sombrio e preocupante, e, ainda que inclua relquias de diversas pocas,

    faz referncia s tradies histricas das mulheres vitorianas e rituais de luto. J o jarro The

    Partys Over refere-se esmagadora decadncia da infncia.

    Figura 18: Jarros de Laurie Zuckerman (PERRELLA, 2007, pp.84-85).

    Nachmanovitch aponta que o processo de reviso (ou seleo), ou seja, de reformar a

    obra inicial para que resulte num todo perfeito, pode parecer uma tirania da forma, mas na

    verdade o oposto: medida que a forma vai refinando o sentimento, [a obra] torna-se cada

    vez melhor, cada vez mais fiel ao sentimento inominvel que a sua fonte original

    (NACHMANOVITCH, 2003, p.104). E cita assim o escultor que elimina os excessos e d

    polimento pedra e o pintor que recobre a imagem inicial com camadas e camadas de

    revises enriquecedoras.

    [...] o corte efetuado num universo complexo e mltiplo (objetos especficos de uma determinada regio ou de um determinado tamanho ou material etc.), o suporte e o material para o acondicionamento e exposio da coleo ou a forma como o objeto foi adquirido pelo colecionador (doao, aquisio ou presente) so elementos diversos e coexistentes no colecionismo, assim como na arte, na qual a preparao da tela, o trao do pelo do pincel fazem evidentemente parte da sensao, e muitas outras coisas antes de tudo isso. [...] (OLIVEIRA, SIEGMANN E COELHO, 2005, p.7).

  • 34

    Em seu livro, Salles cita o processo de seleo e posterior especializao dos itens

    colecionveis do artista Henry Moore:

    O que o atraa nas pedras era o efeito da natureza sobre elas e o princpio de oposio entre as elevaes e depresses. Depois dessa coleta, comeou a perceber que um trabalho perde interesse se tem seus componentes de tamanhos similares; ento, passou a colocar formas pequenas com grandes, aumentando umas e diminuindo outras. (SALLES, 2006, pp.57-58)

    Alm do aspecto de re-selecionar peas, consequente da especializao que a coleo

    gera, existe tambm a questo da ausncia de algum item em uma coleo, apontada por

    Baudrillard. O autor menciona que, quando existe apenas acumulao de objetos, no se sente

    falta de um ou de outro item, j que no h regra para a entrada de objetos neste caso. Mas, ao

    contrrio, em uma coleo, onde cada componente rigorosamente escolhido para fazer ou

    no parte dela, a ausncia tem papel fundamental. Tanto quanto por sua complexidade

    cultural, pela falta, pelo inacabado que a coleo se separa da pura acumulao

    (BAUDRILLARD, 2008, p.112).

    Essa afirmao confirma-se tambm nos dados oferecidos por alguns dos

    entrevistados. Alexandre, possuidor de cerca de 500 revistas Placar, considera a compra dos

    itens de sua coleo um desafio, pois ao longo de sua histria a revista publicou escudinhos

    para botes e psteres, e estes costumam ser difceis de se encontrar com a revista.

    neste contexto que entram as edies especiais e os itens raros e limitados que fazem

    parte do universo das colees. Especialmente quando a coleo j existe a um tempo

    razovel ou quando o colecionador considera que j possui todas ou quase todas as peas

    essenciais, comea ento a busca por um item mais complexo, mais difcil de encontrar.

    Denis, o colecionador de vinis, explica que alguns mercados, como nos EUA e na

    Inglaterra, ainda produzem LPs e que muitas dessas edies so extremamente caras,

    chegando a custar 10 mil dlares cada uma: Algumas dessas edies chegam a ser lanadas

    em quantidades limitadas ou numeradas de 1000 a 500 cpias. E completa: Quanto mais

    raro, mais interessante se torna. Quando descreve a sensao de quando encontra um desses

    itens para inserir em sua coleo, Denis responde: [...] simplesmente esqueo esse detalhe.

    como se o dinheiro no tivesse valor.

  • 35

    Figura 19: Edies de vinis raros Coleo de Denis.

    Figura 20: Camisa rara do Napoli 1988, usada pelo atacante Careca Coleo de Emilio.

    Para Baudrillard a posse de um objeto autntico traduz-se na obsesso pela certeza: a

    origem da obra, de sua data, de seu autor, de sua assinatura. O simples fato de que o objeto

    tenha pertencido a algum clebre, poderoso, confere-lhe valor (BAUDRILLARD, 2008,

    p.85). De acordo com Belk, a raridade valorizada porque para o ser humano no suficiente

    ter sucesso se todos tambm o tiverem. Esse desejo pela singularidade que todo ser humano

    possui tambm se reflete nas colees.

    Um aspecto interessante que acaba envolvendo o processo de seleo de itens da

    coleo o tempo que o colecionador gasta pensando nela, mesmo sem estar manipulando-a.

    Salles, descrevendo a preparao da obra de arte, tambm cita essa questo, de que ao se falar

    [...] em tempo da construo, deve-se lembrar tambm da preparao, que no se d somente

  • 36

    nas diversas tentativas de obras, mas tambm no pensar a obra, nas pesquisas, nas anotaes e

    na obteno de conhecimento de diferentes modos (SALLES, 2006, p.60). O mesmo se d

    com o colecionador, quando este garimpa, pensa em possibilidades e recria espaos ao

    selecionar e organizar sua coleo.

    Este ltimo passo, a organizao, um processo obrigatrio em todas as colees,

    conforme veremos a seguir.

  • 37

    2.2 Ordenar e reordenar

    Construir uma coleo significa estilhaar o continuum temporal dos objetos e, com

    isso, ajudar a abrir ngulos novos de conhecimento.

    A quebra do continuum, o estabelecimento da descontinuidade, quebram a dominao do fluxo e so capazes de estabelecer e acionar sinais de alarme e coleo torna-se uma espcie de estrada-texto que podemos sobrevoar. [...] A coleo torna-se uma estrada atravs da selva interior, cada vez mais densa. A nova ordem dos objetos torna-se capaz de abrir perspectivas do eu, que por si s ele no conseguiria enxergar. A coleo pode ser entendida, nessa perspectiva, como uma escrita adivinhatria, um modo de decifrar o conhecimento que est por vir. (PERRONE e ENGELMAN, 2005, p.6)

    De acordo com Benjamin (2006), o colecionador est entregue ao princpio da

    montagem ao reunir fragmentos em uma nova configurao da experincia. O autor pensa a

    ideia de montagem a partir da vrias acepes: a surrealista, a do teatro pico de Brecht, a

    jornalstica e a cinematogrfica. Tomando o conceito cinematogrfico como exemplificao

    da montagem descrita por Benjamin, o cinema realiza o princpio da fragmentao: os

    elementos isolados no significam nada, o sentido nasce de uma combinatria seguindo uma

    nova lei. O olhar resultante desta montagem, desta nova ordem, capaz de conquistar novas

    esferas de percepo. O colecionador imprime um ritmo outro aos objetos, um compasso

    diferente em nova configurao e aspira transformao de nossa percepo acrescentando

    novas peas ou estabelecendo novos lugares para peas j dadas.

    Salles menciona que o conceito de rede parece ser indispensvel para abranger

    caractersticas dos processos de criao, [...] tais como: simultaneidade de aes, ausncia de

    hierarquia e intenso estabelecimento de nexos. (SALLES, 2006, p.17). A autora cita Musso7

    e Morin8 para caracterizar as redes de criao, ressaltando o elemento interatividade, que

    mantm as redes em contnua expanso.

    [...] necessidade de pensar a criao como rede de conexes, cuja densidade est estreitamente ligada multiplicidade das relaes que a mantm. No caso do processo de construo de uma obra, podemos falar que, ao longo desse percurso, a rede ganha complexidade medida que novas relaes vo sendo estabelecidas. (SALLES, 2006, p.17)

    7 MUSSO, P. A filosofia da rede. PARENTE, A. (org.) Tramas da rede. Porto Alegre, Sulina, 2004. 8 MORIN, E. O mtodo 1: a natureza da natureza. Porto Alegre, Sulina, 2002.

  • 38

    De um modo geral, poderamos observar essas inferncias [responsveis pela gerao de novas ideias ou possibilidades de obras] sob o ponto de vista da transformao (ou transformaes) que opera(m), comportamento ou a natureza dos elementos envolvidos. Essas modificaes nos levam a um novo campo semntico que nos parece ser de grande importncia: dar nova forma, ou feio; tornar diferente do que era; mudar, alterar, modificar, transfigurar, converter, metamorfosear. (SALLES, 2006, p.34)

    Descrevendo essa nova relao entre os elementos de uma obra, Salles ainda

    argumenta: Os elementos selecionados j existiam, a inovao est no modo como so

    colocados juntos, ou seja, na maneira como so transformados. A inovao da inferncia se

    encontra na singularidade da transformao [...] (SALLES, 2006, p.35). Essa singularidade

    de formas de ordenao tambm encontrada entre as diversas colees.

    Perrella (2007) afirma que existe uma parte intrnseca coleo que a de se

    visualizar formas de se dispor os itens e, atravs das entrevistas realizadas, pode-se perceber

    que todo colecionador ordena, de forma consciente ou no, os objetos de sua coleo.

    Tomando como exemplo os colecionadores entrevistados, pode-se destacar

    singularidades entre trs colees de um mesmo tipo de item. Alexandre, possuidor de cerca

    de 700 objetos do filme Star Wars, ordena as peas nas prateleiras seguindo a ordem

    cronolgica dos filmes e de suas cenas.

    Figura 21: Parte da coleo de Alexandre Star Wars.

  • 39

    J Luis, colecionador de 200 objetos e veculos do desenho animado Comandos em

    Ao, divide a coleo em veculos e em figuras de ao.

    Figura 22: Coleo de Luis Figuras e veculos dos Comandos em Ao.

    Wanderlei, colecionador de itens do desenho animado Transformers, tambm tende a

    fazer uma primeira separao da coleo; no caso, em personagens do bem e em viles no

    desenho, e diz: Mudo direto, pois adoro criar cenas de batalha e, como eles so

    transformveis, isso me d muitas possibilidades.

    Atravs desses exemplos de colecionadores de itens de filmes ou de desenhos,

    observa-se que, apesar de os objetos colecionados serem semelhantes, suas formas de

    ordenao so diferentes entre si. Stewart (1998)9 aponta que a organizao espacial da

    coleo depende da criao do indivduo que a est percebendo e apreendendo. De acordo

    com a autora, o espao da coleo uma interao complexa entre o expor e o esconder e a

    organizao e o caos.

    Saladino acrescenta:

    [...] Considero as colees como discursos que expressam ideias, textos capazes de instituir uma verdade, a do prprio narrador, e que, mesmo assim, permitem distintas leituras, ressemantizaes e reapropriaes por parte dos sujeitos. A reconstruo da memria dos prprios processos de memria da coleo possibilita melhor compreender a sua lgica. Por isso, necessrio ir alm do acervo e tenta entender o seu criador, o colecionador, na sua humanidade e no seu contexto, enfim, analisar o responsvel pelo texto (SALADINO, 2009, p.90).

    9 Em PEARCE (1994, pp.255-256): STEWART, S. On Longing: Narratives of the Miniature, the Gigantic, the Souvenir, the Collection. Baltimore and London, John Hopkins University Press, 1984.

  • 40

    Alm disso, existe nas colees a possibilidade de reordenao das peas, o que ocorre

    todas as vezes que um novo item entra na coleo e, em alguns casos, quando o colecionador

    resolve passar o tempo com sua coleo, admirando-a e, consequentemente, manuseando-a.

    O colecionador Alexandre afirma que gosta de montar cenas do filme e, sobre a

    insero de uma nova pea em sua coleo, menciona: Faz parte de um ritual rearranjar os

    outros itens para arrumar um lugar pro novo item, ou seja, preparar o quarto para receb-lo.

    Seria uma forma de dar boas-vindas!. Wanderlei diz que sempre reorganiza sua coleo, j

    que cria cenas de batalha entre os personagens do desenho, e que quando um novo item entra

    em sua coleo, ele sente Prazer em olhar como ele fica junto com os outros [...], vendo qual

    o melhor jeito de deix-lo com o grupo.

    Ao reinscrever objetos, imagens ou outros elementos em uma nova ordem sensvel, abrem-se perspectivas e possibilidades que impulsionam novas buscas, relaes transversais que podem ser renovadas a cada visita coleo. Alm de serem ampliadas a cada nova aquisio, considerando que a incluso de elementos exige uma reorganizao dos componentes e o estabelecimento de outras e novas relaes entre eles, a cada consulta ao arquivo um novo olhar reinveste os documentos com novas significaes. (POLIDORO, 2009, p.3)

    Nesse momento adentramos outro aspecto tambm muito importante em se tratando da

    coleo e de sua organizao, que o espao reservado para ela. J vimos anteriormente que

    esse espao tende a ser sacralizado pelo colecionador, que no deixa qualquer pessoa entrar

    sem sua autorizao e que, em alguns casos, serve quase como um templo, onde o

    colecionador guarda o seu tesouro. Salles descreve o espao criado pelo artista para que ele

    produza sua obra da seguinte forma:

    Assim como os interesses e buscas do artista se modificam, os escritrios se transformam. Espao , sob esse ponto de vista, transitrio; no sentido de estar sempre se constituindo em funo do que est sendo feito e do que se quer fazer. [...] Novas organizaes so, muitas vezes, associadas a buscas renovadas. [...] A mudana do espao envolve necessidade de adaptaes do artista. As mudanas so, s vezes, at provocadas na esperana, consciente ou no, de novas buscas. (SALLES, 2006, pp.54-56)

    Isso ocorre tambm com o ato de colecionar, que [...] se d pela inteno de montar e

    completar um universo; todavia, prescreve a necessidade de se criar espaos vazios para

    manter a possibilidade de atualizao do imemorial (OLIVEIRA, SIEGMANN e COELHO,

    2005, p.7). Pomian (1990)10 insere o espao inclusive em sua definio de coleo um

    conjunto [...] de objetos naturais ou artificiais, mantidos temporria ou definitivamente fora 10 Em PEARCE (1994, p. 162): POMIAN, K. Collectors and Curiosities. Oxford, Polity, 1990.

  • 41

    do circuito econmico, protegido de forma especial em recintos adaptados especificamente

    para esse efeito e colocado em exposio.

    Muitos so os colecionadores entrevistados que pensam em mudar a coleo de espao

    quando esta ficar maior ou que no passado j guardaram a coleo em um espao menor que o

    atual. Wanderlei, o colecionador de peas de Transformers, guardava a coleo em cima de

    uma cmoda do quarto por falta de opo. Depois, conseguiu colocar prateleiras no quarto e

    acredita que agora sim sua coleo est em um local digno de seu merecimento.

    Figura 23: Coleo de Wanderlei antes e aps a reforma de seu quarto.

    Alexandre, o colecionador de itens do tema Star Wars, conta que antes do casamento

    sua coleo tinha que se adaptar s estantes da casa de seus pais. Depois que mudou de casa

    ele ficou cerca de 4 meses planejando os mveis e as estantes: Medi tudo, fiz e refiz o

    projeto arquitetnico do quarto, e hoje estou satisfeito com o resultado. A manuteno do

    quarto bastante rgida: Costumo tranc-lo quando h visitas ou quando estou viajando, a

    faxineira no o limpa [...]. Lacro a maioria dos itens com plstico para afastar o p e ponho

    bloqueadores de sol nas janelas quando fico afastado por muito tempo.

    E a situao mencionada por Alexandre no rara, muitos colecionadores aproveitam

    o momento de mudana de residncia para replanejar um novo espao, normalmente maior,

    para sua coleo. Denis, o colecionador de discos de vinil, explica que no comeo seus LPs

    ficavam armazenados em um lugar comum que havia no apartamento de seus pais, onde

    ficavam os discos de todos que ali moravam. Quando seus pais mudaram de apartamento, ele

    conseguiu separar os seus prprios itens em um armrio. Mas foi apenas mais tarde, quando

  • 42

    Denis finalmente construiu sua prpria casa, que ele reservou um mezanino s para armazenar

    seus discos, como ele sempre quis. E longe de qualquer umidade, acrescenta.

    Emilio, o colecionador de camisas de futebol, admite que no incio no pretendia ter

    uma coleo to grande como a que tem hoje e ento as guardava em uma gaveta. Mas, como

    a coleo cresceu bastante, ele montou um closet especial, antimofo, para armazen-las e,

    ainda assim, muitas de suas camisas ficam ensacadas.

    Figura 24: Coleo de Noelle copos e souvenires.

    Noelle, colecionadora de copos dos diferentes pases que j visitou, aproveitou a

    mudana de casa para pedir a um marceneiro que fizesse um armrio especialmente para sua

    ainda pequena coleo. Ulysses, o colecionador de pinguins, costumava coloc-los todos em

    cima da geladeira de sua casa. Mas logo que fez uma reforma em sua cozinha, construiu um

    armrio com luz embutida para acomod-los, que, de acordo com ele, D um toque todo

    especial coleo e decorao.

    A ttulo de exemplo, podemos tambm citar Arthur Bispo do Rosrio (1911-1989),

    que foi diagnosticado como esquizofrnico-paranoico e, ao longo de anos, durante sua

    interna