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 I SIMPÓSIO INTERNACIONAL DO NÚCLEO DE PESQUISA EM PINTURA E ENSINO  NUPPE Instituto de Arte / Universidade Federal de Uberlândia   IARTE/UFU MOVÊNCIAS DA PINTURA ISSN 2316   2279 10 a 13 de setembro de 2012, Uberlândia   MG  Brasil PROCESSO DE FORMAÇÃO ARTÍSTICA E ELABORAÇÃO DE UMA POÉTICA: WILSON FILHO (2007-2012) Wilson Filho Ribeiro de Almeida 1  Resumo:  Nesta comunicação , eu farei, em primeiro lugar, uma apresentaçã o de minha monografia de conclusão do curso de graduação em artes plásticas, intitulada  As superstições que cercam a imagem de Santo Antônio de Pádua , trabalho realizado durante o ano de 2007 e que foi constituído, além da monografia, também pela feitura de uma série de oito pinturas a óleo. Em seguida, apresentarei uma amostra das pinturas que tenho feito desde que concluí o curso de graduação. Por último,  passarei a elaborar alguns apontamentos sobre meu processo de formação artística, que ainda julgo em andamento, procurando esboçar considerações acerca do entendimento que tenho sobre meus objetivos como artista e sobre a elaboração de minha poética, bem como observar a evolução desse entendimento desde a época em que me graduei em artes plásticas até hoje. Palavras-chave: Wilson Filho; formação artística; poética; arte; pintura. Abstract: In this communication, I will first make a presentation of my undergraduate monograph made at the conclusion of the Plastic Arts course, entitled  As superstições que cercam a imagem de Santo Antônio de Pádua (“The Superstitions Surrounding Saint Anthony of Padua’s Image”), work accomplished during the year 2007, which was constituted, besides the monograph, also by the making of a series of eight oil paintings. Then, I will present some paintings I have  been doing since I concluded the undergraduate course. At last, I will start to elaborate some notes on my artistic formation process, which I consider to be still in  progress, seekin g to sketch consideration s about the understa nding I have of my aims as an artist and about my poetics elaboration, as well as to observe this understanding evolution since the period I graduate in Plastic Arts until today. Keywords: Wilson Filho; artistic formation; poetics; art; painting. 1  Mestre em Letras (2010-2012) e bacharel em Artes Plásticas (2003-2007) pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Participa como pesquisador do Grupo de Pesquisa sobre Mídias, Literatura e Outras Artes (GPMLA) e do Núcleo de Pesquisa em Pintura e Ensino (NUPPE). Site: www.wilson- filho.blogspot.com

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Comunicação apresentada por Wilson Filho no Simpósio do NUPPE, 2012

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  • I SIMPSIO INTERNACIONAL DO NCLEO DE PESQUISA EM PINTURA E ENSINO NUPPE Instituto de Arte / Universidade Federal de Uberlndia IARTE/UFU

    MOVNCIAS DA PINTURA ISSN 2316 2279 10 a 13 de setembro de 2012, Uberlndia MG Brasil

    PROCESSO DE FORMAO ARTSTICA E ELABORAO DE UMA POTICA: WILSON FILHO (2007-2012)

    Wilson Filho Ribeiro de Almeida1

    Resumo: Nesta comunicao, eu farei, em primeiro lugar, uma apresentao de minha monografia de concluso do curso de graduao em artes plsticas, intitulada As supersties que cercam a imagem de Santo Antnio de Pdua, trabalho realizado durante o ano de 2007 e que foi constitudo, alm da monografia, tambm pela feitura de uma srie de oito pinturas a leo. Em seguida, apresentarei uma amostra das pinturas que tenho feito desde que conclu o curso de graduao. Por ltimo, passarei a elaborar alguns apontamentos sobre meu processo de formao artstica, que ainda julgo em andamento, procurando esboar consideraes acerca do entendimento que tenho sobre meus objetivos como artista e sobre a elaborao de minha potica, bem como observar a evoluo desse entendimento desde a poca em que me graduei em artes plsticas at hoje. Palavras-chave: Wilson Filho; formao artstica; potica; arte; pintura. Abstract: In this communication, I will first make a presentation of my undergraduate monograph made at the conclusion of the Plastic Arts course, entitled As supersties que cercam a imagem de Santo Antnio de Pdua (The Superstitions Surrounding Saint Anthony of Paduas Image), work accomplished during the year 2007, which was constituted, besides the monograph, also by the making of a series of eight oil paintings. Then, I will present some paintings I have been doing since I concluded the undergraduate course. At last, I will start to elaborate some notes on my artistic formation process, which I consider to be still in progress, seeking to sketch considerations about the understanding I have of my aims as an artist and about my poetics elaboration, as well as to observe this understanding evolution since the period I graduate in Plastic Arts until today. Keywords: Wilson Filho; artistic formation; poetics; art; painting.

    1 Mestre em Letras (2010-2012) e bacharel em Artes Plsticas (2003-2007) pela Universidade Federal de Uberlndia (UFU). Participa como pesquisador do Grupo de Pesquisa sobre Mdias, Literatura e Outras Artes (GPMLA) e do Ncleo de Pesquisa em Pintura e Ensino (NUPPE). Site: www.wilson-filho.blogspot.com

    FonteNotaFonte: http://www.nuppe.art.br/simposio2012/anais/index.html

    link do texto: http://www.nuppe.art.br/simposio2012/anais/PDF/WilsonFilho.pdf

    Acesso em 04 set. 2012

  • MOVNCIAS DA PINTURA ISSN 2316 2279 Uberlndia MG Brasil

    Introduo

    Deram-se meus estudos de ensinos primrio, fundamental e mdio nas

    escolas municipais e estaduais de Capinpolis, MG. Em 2003, aos dezessete anos,

    ingressei no curso de artes plsticas da Universidade Federal de Uberlndia (UFU).

    Aquilo que se pode chamar de minha primeira pintura eu realizei em setembro de

    2004 para a aula de Pintura 1. Tratava-se de um trabalho de 100 x 80 cm, a tinta

    acrlica sobre carto, que representava um homem enchendo a sopro um balo no

    formato do Obelix, personagem das histrias em quadrinhos criadas por Goscinny e

    Uderzo. Para mim, o curso de graduao foi principalmente um processo de

    delimitao entre meu trabalho na produo de histrias em quadrinhos, a que me

    dediquei com empenho at 2006, e meu trabalho no campo das artes plsticas, campo

    do qual eu havia sido quase que totalmente alheio at o meu ingresso na faculdade.

    Conclu a graduao em janeiro de 2008, defendendo a monografia intitulada

    As supersties que cercam a imagem de Santo Antnio de Pdua. No primeiro

    semestre de 2009, matriculei-me como aluno especial no curso de Mestrado em

    Teoria Literria da UFU, passando a ser aluno regular no incio de 2010 e tendo

    defendido a dissertao em fevereiro de 2012. Tive por objeto de estudo no mestrado

    as Leituras Pblicas proferidas no sculo XIX pelo escritor ingls Charles Dickens,

    observando-as sob os aspectos histrico, literrio e teatral. Isso quer dizer que, na

    ps-graduao, eu me afastei das artes plsticas, salvo a exceo de um artigo que

    escrevi acerca do tema da pintura no conto The Oval Portrait, de Edgar Allan Poe.

    Assim, desde 2008, meu desenvolvimento como artista plstico seguiu

    paralelamente aos meus estudos acadmicos, no havendo eu feito praticamente

    nenhum registro escrito a respeito. Seja anterior, seja posteriormente s pinturas, no

    produzi qualquer texto que lhes descrevesse os planos ou que lhes desse uma

    interpretao. Tampouco tenho formulada verbalmente minha potica, que de modo

    algum est totalmente resolvida, pois a considero ainda em processo de delimitao.

    Talvez devido a certa antipatia minha aos casos em que o discurso do artista

    toma propores to desmesuradas que acaba soterrando em palavras a arte visual

    propriamente dita, acabei por escolher um caminho diferente: comear por resolver

  • MOVNCIAS DA PINTURA ISSN 2316 2279 Uberlndia MG Brasil

    prioritariamente os problemas visuais e deixar para depois o desenvolvimento

    conceitual acerca daqueles problemas. Todavia no se deve entender com isso que a

    reflexo terica tenha sido desprezada ou negligenciada, mas apenas que no me

    preocupei em traduzir tal reflexo para o discurso verbal.

    Julgo-me ainda no estgio de formao artstica. Porm agora no mais como

    aluno de uma instituio de ensino e, por conseguinte, sem a obrigao de cumprir as

    exigncias, programas e prazos que tal situao exigiria. Desse modo, venho

    estudando e produzindo em um ritmo lento apenas aquilo que me interessa

    condies que me parecem fundamentais s pretenses que tenho como artista.

    Ultimamente, tive duas oportunidades de ouvir comentrios de profissionais

    das artes visuais a respeito de minhas pinturas (figuras 1 a 7). A primeira foi no dia 2

    de abril de 2011, na ocasio da passagem por Uberlndia de Jlio Martins, curador

    de mapeamento do projeto Rumos Artes Visuais 2011-2013, do Instituto Ita

    Cultural. A segunda oportunidade foi no dia 4 de junho de 2012, em minha

    apresentao ao Ncleo de Pesquisa em Pintura e Ensino (NUPPE), presidido pela

    Profa. Dra. Aninha Duarte.

    Figura 1 Wilson Filho, So Paulo, leo sobre mdf, c. 70 x 60 cm, 2008. Fonte: Acervo particular do artista.

    Figura 2 Wilson Filho, Oxaguian e Oxalufan, pinturas murais a tmpera, c. 150 x 70 cm cada, 2009. Casa de Cultura Graa do Ach, Uberlndia. Fonte: Acervo particular do artista.

  • MOVNCIAS DA PINTURA ISSN 2316 2279 Uberlndia MG Brasil

    Figura 3 Wilson Filho, Barco a vela, leo sobre carto, c. 20 x 18 cm, 2009. Coleo particular. Fonte: Acervo particular do artista.

    Figura 4 Wilson Filho, Bule, caneca, xcara, livro e ma, leo sobre eucatex, c. 25 x 20 cm, 2008. Fonte: Acervo particular do artista.

    Figura 5 Wilson Filho, Flores, carambolas, tomate e roms, leo sobre carto, c. 35 x 25 cm, 2009. Fonte: Acervo particular do artista.

    Figura 6 Wilson Filho, Dptico de So Sebastio, leo sobre madeira, c. 20 x 09 cm cada, 2010. Fonte: Acervo particular do artista.

    Figura 7 Wilson Filho, Saulo Devs (com uma cabea de Scrates), leo sobre tela, c. 75 x 65 cm, 2010. Coleo particular. Fonte: Acervo particular do artista.

  • MOVNCIAS DA PINTURA ISSN 2316 2279 Uberlndia MG Brasil

    Ambas as ocasies mostraram-me que a apresentao de minhas pinturas para

    um pblico universitrio da rea de artes visuais no far sentido a menos que elas

    sejam apresentadas em conjunto com uma exposio terica, no acerca das pinturas

    em si, mas acerca de minha concepo de arte e de minha conscincia quanto ao meu

    processo de formao artstica. Minha inteno inicial era esboar aqui algumas

    consideraes a respeito, aproveitando a oportunidade para comear a trazer para o

    papel as questes e problemas que esto me interessando e preocupando no momento

    e a que estou procurando encontrar solues.

    Escrevi o texto. Porm aqueles so problemas e questes para os quais julguei

    necessria a liberdade de tratamento permitida pelo ensaio, gnero literrio que est

    no meio do caminho entre o artigo cientfico e a literatura artstica e em que o

    ensasta procura expor ao leitor o que lhe passa nos pensamentos, escrevendo a partir

    do prprio movimento de formulao das ideias, podendo se servir da narrativa e de

    assuntos e referncias as mais variadas para esclarecer sua linha de raciocnio.

    (GMEZ-MARTNEZ, 1992). Surgiu, ento, a constatao de que aquele texto

    assim construdo levaria a discusses que iriam alm da proposta deste simpsio e

    que ele igualmente poderia gerar mal entendidos para os quais no teramos nem

    tempo, nem espao, nem oportunidade para esclarecer.

    Assim, deixarei isso para outra ocasio e apresentarei a seguir os resumos de

    minhas pesquisas acadmicas, a saber, a monografia de concluso de curso, a

    dissertao de mestrado, e, para no fugir muito do tema do simpsio, o artigo que

    escrevi no mestrado sobre pintura e literatura, a partir da anlise de um conto de

    Edgar Allan Poe.

    O trabalho de concluso de curso - As supersties que cercam a imagem de

    Santo Antnio de Pdua

    Comeo por trazer um resumo do que foi o fechamento da primeira etapa de

    minha formao: a monografia (ALMEIDA, 2007) e as pinturas que compuseram o

    trabalho de concluso do curso de artes plsticas, realizadas durante o ano de 2007.

  • MOVNCIAS DA PINTURA ISSN 2316 2279 Uberlndia MG Brasil

    No primeiro captulo da monografia (ALMEIDA, 2007, pp. 11-29), fiz uma

    breve exposio biogrfica, iconogrfica e iconolgica sobre Santo Antnio de

    Pdua, procurando mostrar quais so os seus principais atributos, isto , as formas

    que lhe representam (um homem jovem com hbito de monge franciscano e cabelo

    tonsurado, segurando um livro, um menino e lrios), como tambm o significado

    simblico desses atributos. Em seguida, pesquisei as supersties populares

    relacionadas devoo a Sto. Antnio, que do ao santo as atribuies de santo

    casamenteiro e de recuperador de objetos perdidos.

    Simultaneamente escrita da monografia, fui produzindo a srie de pinturas

    que fariam parte do trabalho de concluso de curso. A srie foi dividida em um

    polptico (figura 8) e em um trptico (figura 9), pintados a leo sobre tela e sobre

    madeira. Nessa srie, relacionei os atributos de Sto. Antnio a elementos que

    remetem quelas supersties populares.

    No segundo captulo da monografia (ALMEIDA, 2007, pp. 30-46), tratei da

    teoria da arte e dos artistas especficos em que se baseou meu trabalho de pintura.

    Algumas dessas referncias eu j havia considerado antes de realizar as pinturas;

    outras eu percebi apenas depois que o trabalho j estava concludo.

    Figura 8 - Wilson Filho, Polptico de Sto. Antnio Casamenteiro, leo sobre tela e sobre madeira, cerca de 110 x 110 cm, 2007. Fonte: Acervo particular do artista.

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    Figura 9 - Wilson Filho, Trptico de Sto. Antnio dos objetos perdidos, leo sobre tela, cerca de 180 x 260 cm, 2007. Fonte: Acervo particular do artista.

    De modo geral, tomei como referncia a arte dos sculos XVI e XVII. At

    ento, eu sabia da importncia das influncias renascentista e barroca para a minha

    atividade artstica, embora no conseguisse identificar de que modo essas influncias

    a atingiam. Na monografia, comecei a entender o caso a partir da teoria de Heinrich

    Wlfflin a respeito dos estilos daqueles perodos, explicada no livro Conceitos

    fundamentais da Histria da Arte (1989).

    Wlfflin distinguiu o estilo artstico do sculo XVI do estilo do sculo XVII

    por meio de uma anlise formal que se consolidou teoricamente em cinco pares de

    conceitos opostos: linear x pictrico; plano x profundidade; forma aberta x forma

    fechada; pluralidade x unidade; clareza x obscuridade. Assim, a arte do sculo XVI

    seria linear, enquanto que a arte do sculo XVII seria pictrica; o sculo XVI

    privilegiaria o plano, enquanto que o sculo XVII privilegiaria a profundidade, e

    assim por diante.

    Alm dessa teoria, a elaborao das imagens baseou-se tambm em

    referncias a artistas especficos. Reconheci reminiscncias de Giotto, Duccio e

    Chardin (ALMEIDA, 2007, p. 38) e citaes formais, como tambm influncias de

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    modo geral, de Da Vinci, Michelangelo, El Greco, Caravaggio, Velzquez e Goya

    (ALMEIDA, 2007, pp. 39-46). Ainda observei, com respeito montagem dos dois

    grupos de pintura, referncia ao formato tradicional de retbulo, usado por pintores

    como Jan van Eyck e Roger van der Weyden (ALMEIDA, 2007, pp. 50-54).

    A seguir, fiz minha inicial tentativa no sentido de delimitar uma concepo de

    arte e entender meus objetivos como artista, embora concentrando-me nos objetivos

    daquele trabalho especfico. Defini este ltimo como registro e crtica dos costumes

    (ALMEIDA, 2007, p. 48) e procurei compreender a concepo de Aristteles de arte

    como imitao, tentando observar, tambm a partir da potica aristotlica, as

    diferenas de modo e efeito dessa imitao na tragdia e na comdia (ALMEIDA,

    2007, pp. 48-49).

    Por fim, apresentei uma interpretao de cada um dos dois grupos de pintura

    que eu havia feito. Conforme ressaltei no final do terceiro captulo da monografia,

    alguns pontos dessas interpretaes surgiram antes ou durante o processo de

    execuo, enquanto outros surgiram apenas depois que o trabalho j estava concludo

    (ALMEIDA, 2007, p. 63). Assim encerrei a graduao em artes plsticas.

    A dissertao de mestrado - O autor em cena: as Leituras Pblicas de A

    Christmas Carol, de Charles Dickens

    Minha dissertao (ALMEIDA, 2012) teve por objeto de estudo a novela A

    Christmas Carol, do escritor ingls Charles Dickens (1812 - +1870), em especial o

    que se refere sua apresentao nas Leituras Pblicas de Dickens, espetculos em

    que, no palco, o autor lia trechos de seus livros. O objetivo foi observar o processo de

    transformao da novela para as performances de Leituras Pblicas.

    Dickens realizou a adaptao do texto para o palco por meio de anotaes

    manuscritas feitas em uma edio impressa do texto original (figura 10). Esse

    volume (o qual chamei, em portugus, de Roteiro de Leitura) era usado como guia

    para os ensaios e para as performances. Tive acesso ao Roteiro por meio do fac-

    smile do manuscrito, editado por Philip Collins no livro A Christmas Carol: the

  • MOVNCIAS DA PINTURA ISSN 2316 2279 Uberlndia MG Brasil

    Public Reading Version: A Facsimile of the Authors Prompt-copy (DICKENS,

    1971).

    Figura 10 Pginas 18 e 19 do Roteiro de Leitura de A Christmas Carol. (DICKENS, 1971, pp. 18-19).

    Inicialmente publicada em 1843, a novela A Christmas Carol j constava no

    repertrio da primeira Leitura Pblica do autor, realizada, em 1853, com o intuito de

    arrecadar fundos para caridade. Cinco anos mais tarde, Dickens passou a se

    apresentar profissionalmente, numa carreira que durou doze anos. Seu repertrio

    contou com dezesseis itens, sendo A Christmas Carol um dos preferidos do autor e

    do pblico.

    Tal repertrio era cuidadosamente adaptado para o palco. Dickens no apenas

    lia o contedo, mas interpretava cada personagem, buscando criar uma variedade de

    vozes, gestos e emoes (figura 11). Ao todo, ele se apresentou por volta de 470

    vezes, na Inglaterra, na Irlanda, na Esccia, em Paris e nos Estados Unidos. Item

    mais longo do repertrio,2 A Christmas Carol foi lida em no menos que 127

    performances, fazendo parte da ltima Leitura do autor, em 1870.

    2 Nas primeiras apresentaes de 1853, feitas para caridade, a Leitura Pblica de A Christmas Carol chegou a durar mais de trs horas. Passando a se apresentar profissionalmente, Dickens foi aos poucos

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    Figura 11 A ltima leitura do Sr. Charles Dickens Fonte: Acesso em: 18 fev. 2011.

    Assim, justificou-se a pesquisa acerca das Leituras Pblicas de Dickens, por

    se tratarem de um aspecto considervel da carreira do autor ingls, que despendia

    grande trabalho e cuidado em sua preparao, consciente de que deveria desenvolver

    adequaes que valorizassem seus escritos naquele suporte. A obra especfica que

    escolhi para estudar, isto , A Christmas Carol, 3 era uma das atraes principais dos

    espetculos alm de ser, at hoje, uma das histrias mais conhecidas do escritor,

    possuindo grande nmero de adaptaes e releituras.

    Inicialmente, fiz uma contextualizao histrica das Leituras Pblicas de

    Dickens, procurando entender quais aspectos daquele contexto lhes favoreceram a

    boa acolhida e tornaram-lhes possvel a realizao; a saber, o aumento da

    produtividade na edio de livros e jornais e a forma fragmentada de publicao

    (folhetim), que, respectivamente, aumentaram o pblico leitor e o interesse desse

    pblico pelos autores. Tambm importante foi a experincia teatral de Dickens, que

    lhe deu os conhecimentos necessrios para a montagem de um espetculo.

    reduzindo-lhe a durao, de maneira que, nos ltimos anos, a Leitura de A Christmas Carol durava cerca de oitenta minutos. Mas, mesmo ento, era o item mais longo do repertrio. 3 A novela A Christmas Carol conhecida no Brasil com os ttulos: Cano de Natal; Um Cntico de Natal; Um Conto de Natal; O Natal do Senhor Scrooge; dentre outros.

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    Num segundo momento, entendendo o conceito de performance de Paul

    Zumthor, analisei as Leituras Pblicas de A Christmas Carol, observando-as com

    respeito a dois aspectos: o textual e o performtico. Desse modo, procurei tanto

    perceber o processo de adaptao do texto, pela anlise do manuscrito, quanto formar

    uma ideia dos aspectos cnicos das Leituras Pblicas, por meio de registros de

    espectadores que as testemunharam.

    O artigo - Comparao entre as linguagens da literatura e da pintura no conto

    The Oval Portrait, de Edgar Allan Poe

    Escrevi esse artigo em 2010 para a aula de Literatura Comparada do

    mestrado. No campo dos estudos literrios, a Literatura Comparada uma disciplina

    que lida com a comparao entre literaturas de nacionalidades diferentes, ou ento

    entre a literatura e outras artes, procurando analis-las de modo a descobrir

    referncias, equivalncias, influncias e divergncias.

    No meu artigo, tentei fazer um exerccio comparativo entre as artes da

    literatura e da pintura, pela anlise do conto The Oval Portrait (O Retrato Oval -

    1845) de Edgar Allan Poe, entendendo essa obra como um Knstlerroman.

    (ALMEIDA, 2011, p. 350). Na definio de Solange Ribeiro de Oliveira, o termo

    Knstlerroman refere-se a qualquer narrativa onde uma figura de artista ou uma

    obra de arte (real ou fictcia) desempenhe funo estruturadora essencial, e, por

    extenso, obras literrias onde se procure um equivalente estilstico calcado em

    outras artes [...]. (OLIVEIRA, 1993, p. 5).

    Em The Oval Portrait, uma pintura fictcia e a figura do artista que a criou

    desempenham importante papel estruturador. O narrador do conto, ferido e na

    companhia de seu criado, invade um castelo, aparentemente recm-abandonado, a

    fim de passar a noite ali. Instalam-se em um dos menores aposentos, em que, ao lado

    de trofus herldicos e tapearias, pendem um incomum nmero de pinturas

    modernas. Interessado, o narrador passa o tempo contemplando os quadros e lendo

    um pequeno livro, encontrado sobre um travesseiro, que os descreve e critica. Assim,

  • MOVNCIAS DA PINTURA ISSN 2316 2279 Uberlndia MG Brasil

    passa longo tempo. Ao mudar a posio do candelabro num certo momento, a luz

    ilumina um nicho que at ento estivera oculto pela sombra. Ali est uma pintura que

    havia passado despercebida e que captura sua ateno: um retrato de uma jovem

    moa. Segue-se extenso trecho, em que o quadro descrito e o narrador comenta

    suas impresses. Aps o momento de meditao, ele retorna o candelabro posio

    anterior, devolvendo, novamente, a pintura sombra, e procura, no livro, a pgina

    que a comenta. Pelas anotaes encontradas, ele descobre a histria do artista, da

    modelo e do processo de feitura do retrato. So as palavras do livro de notas que

    fecham o conto, informando que a retratada era uma jovem cheia de alegria e beleza,

    casada com o pintor. Feliz, ela amava todas as coisas exceto a Arte, sua rival, que a

    privava da companhia do amado esposo. Por isso, era-lhe terrvel ouvir o marido

    falar de seu desejo de retrat-la. Apesar disso, obediente e humilde, ela posou

    durante longos perodos no estdio do artista, enquanto ele, mergulhado em sua arte,

    um tanto enlouquecido pela obsesso da tarefa, no percebia que da jovem esposa

    pouco em pouco as energias enfraqueciam. Aps o ltimo retoque na obra-prima,

    espantado com a impresso de vida que saa da pintura, o artista teve uma surpresa: a

    modelo estava morta. (ALMEIDA, 2011, p. 351).

    Primeiramente, a partir do que foi possvel deduzir das palavras do conto,

    procurei trazer esclarecimentos acerca da pintura fictcia descrita (o retrato oval),

    bem como do ambiente em que ela se encontra exposta, tentando, desse modo,

    fornecer pontos de apoio imaginao do leitor para visualizar as imagens presentes

    no texto de Poe e tambm algumas possibilidades de interpretao. Eis o modo como

    o narrador descreve a pintura:

    O retrato, j o disse, era o de uma jovem. Uma mera cabea e ombros, feitos maneira denominada tecnicamente de vinheta, muito ao estilo das cabeas favoritas de Sully. Os braos, o busto e as pontas dos radiantes cabelos se dissolviam imperceptivelmente na vaga mas profunda sombra que formava o fundo do conjunto. A moldura era oval, ricamente dourada e filigranada mourisca. (POE, O retrato oval).4

    4 The portrait, I have already said, was that of a young girl. It was a mere head and shoulders, done in what is technically termed a vignette manner; much in the style of the favorite heads of Sully. The arms, the bosom, and even the ends of the radiant hair melted imperceptibly into the vague yet deep shadow which formed the back-ground of the whole. The frame was oval, richly gilded and filigreed in Moresque. (POE, The Oval Portrait).

  • MOVNCIAS DA PINTURA ISSN 2316 2279 Uberlndia MG Brasil

    Apresentei alguns esclarecimentos sobre a referncia moldura do retrato e,

    depois, tomei como ponto de partida a meno que o narrador faz a um artista real

    em sua descrio da pintura: o pintor ingls Thomas Sully (1783 - +1873), que fez

    carreira principalmente na Philadelphia, Estados Unidos. Conforme justifiquei no

    artigo, essa comparao, feita pelo prprio narrador, autoriza e incentiva o leitor a

    associar o retrato oval obra do pintor ingls. (ALMEIDA, 2011, p. 357). Sully era

    conhecido de Poe, talvez os dois fossem at amigos, o que me sugeriu a hiptese de

    que o escritor tenha usado a obra daquele pintor como modelo para criar a descrio

    da pintura do conto.

    A partir de duas obras de Sully (figuras 12 e 13), expliquei o que seria uma

    execuo maneira de vinheta (vignette manner), que quando, numa imagem, a

    figura no tem seus limites interrompidos pela borda do suporte, mas vai se

    desvanecendo em gradao. (TURNER, 1996, v. 32, p. 501).

    Figura 12 Thomas Sully: Rainha Victoria. Fonte: . Acesso em 22 jan. 2010.

    Figura 13 Thomas Sully: Blanch com pena vermelha. Fonte: . Acesso em: 22 jan. 2010.

    Sobretudo, notei as semelhanas entre a pintura do conto e o retrato que se v

    na figura 14, pintado por Thomas Sully. Acredita-se que essa pintura seja o retrato de

    Viginia Clemm, a esposa de Edgar Allan Poe, morta ainda na juventude (assim como

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    a personagem do conto), o que leva possibilidade de que a descrio do retrato oval

    possa ter sido um pouco baseada nessa obra especfica.5

    Figura 14 - Thomas Sully: Retrato de Virginia Clemm Poe. Fonte: . Acesso em: 14 out. 2010.

    Partindo da teoria de Heinrich Wlfflin, com que eu j havia trabalhado na

    monografia, apliquei seus conceitos na observao das pinturas de Sully, de maneira

    a entender de qual dos dois estilos elas estavam mais prximas: do estilo clssico ou

    do anticlssico. Usando os conceitos de Wlfflin, observei principalmente trs

    caractersticas do estilo anticlssico nas trs pinturas de Sully que apresentei como

    exemplos para se compreender o retrato oval (figuras 12, 13 e 14): o pictrico,6 a

    unidade7 e a obscuridade.8

    5 Todavia, tanto a autoria da pintura como a identidade da modelo ainda so discutidas. Ver mais detalhes no endereo: . Acesso em 14 out. 2010. preciso notar, tambm, que essa pintura no corresponde totalmente descrio do conto, pois no est executada maneira de vinheta e a figura no tem os braos e o busto mergulhados na sombra. 6 Na caracterstica pictrica, o quadro dominado por luzes e sombras, no de maneira propriamente ilimitada, mas sem que as margens [das figuras] sejam enfatizadas. Apenas esporadicamente aparece um segmento de contorno tangvel. Ele deixou de ser um guia uniformemente seguro atravs do conjunto das formas. (WLFFLIN, 1989, p. 22). 7 Na caracterstica da unidade, os artistas atm-se a um motivo principal, ao qual subordinam tudo o mais. [...] do todo transformado em um fluxo nico emergem formas isoladas de carter absolutamente dominante, mas de maneira tal que, mesmo preservando a sua funo diretriz, essas

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    Num segundo momento, entrei na comparao entre as artes, buscando

    verificar as semelhanas e divergncias estilsticas entre a estrutura do conto e a

    pintura nele representada. Para isso, tentei encontrar equivalncias entre os conceitos

    da teoria de Wlfflin e conceitos de duas teorias da narrativa: em primeiro lugar,

    observei os focos narrativos do conto, baseando-me na tipologia do narrador

    desenvolvida por Norman Friedman; em segundo lugar, observei a ambientao do

    conto, baseando-me na tipologia de Osman Lins.

    Eu havia encontrado um incentivo para analisar um texto literrio a partir da

    teoria de Wlfflin na leitura de alguns trechos do livro Literatura e Artes Visuais

    (1982), de Mrio Praz, segundo o qual essa era uma ideia que j havia ocorrido a

    Helmut A. Hatzfeld, cujas palavras finais em Literature through Art, A New

    Approach to French Literature foram as de que, em seu livro, tentou ele aplicar os

    princpios de Wlfflin ao campo da literatura, o qual inseparvel da arte. (PRAZ,

    1982, pp. 18-19). Entretanto, apesar dessa inteno, o livro de Hatzfeld apresentou

    antes um repertrio de temas do que um paralelismo entre as vrias artes. Mrio Praz

    alerta que

    [...] s temos o direito de falar de correspondncias, de fato, nos casos onde haja intenes expressivas comparveis e poticas comparveis, de par com meios tcnicos correlatos. Com demasiada freqncia contenta-se o Prof. Hatzfeld em descobrir paralelos puramente temticos, pelo que o seu livro vem a ser uma adaptao aproximada de textos literrios a pinturas contemporneas, coisa que tem sido feita sempre. (PRAZ, 1982, p. 19).

    A soluo que encontrei para resolver essa dificuldade foi justamente

    encontrar equivalentes tericos antes de partir para a comparao entre o estilo da

    pintura fictcia que descrita no conto de Poe e o estilo literrio do prprio conto,

    procurando aquelas comparveis intenes expressivas, poticas e tcnicas

    mencionadas por Praz.

    formas no significam para os olhos algo que possa ser considerado parte ou destacado do todo. (WLFFLIN, 1989, p. 171). 8 Na caracterstica da obscuridade, a beleza j no reside na clareza perfeitamente tangvel, mas passa a existir nas formas que, em si, possuem algo de intangvel e parecem escapar sempre ao observador. O interesse pela forma claramente moldada cede lugar ao interesse pela imagem ilimitada e dinmica. [...] o artista busca o carter expressivo na imagem fortuita. (WLFFLIN, 1989, p. 219).

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    Assim, aceitando a hiptese de que Edgar Allan Poe tinha em mente o

    retrato de sua esposa, ou alguma outra obra de Thomas Sully, ao compor a descrio

    do retrato oval, imprimindo, nela, as caractersticas anticlssicas j comentadas,

    procurei constatar se tais caractersticas estariam presentes tambm no estilo e na

    estrutura do conto (ALMEIDA, 2011, p. 366). Mas sem esquecer o alerta de Mrio

    Praz, de que O fato de um poeta ter um pintor presente ao esprito durante a

    composio de seu poema no implica necessariamente uma similaridade entre

    potica e estilo. (PRAZ, 1982, p. 13).

    A narrativa do conto The Oval Portrait visivelmente dividida em duas

    partes: a primeira, que narra a descoberta do retrato oval no castelo abandonado,

    contada por um narrador protagonista em primeira pessoa, personagem interno

    narrativa e que viveu os acontecimentos descritos (ALMEIDA, 2011, p. 366),

    ficando, por isso, limitado s informaes a que sua percepo teve acesso; a

    segunda parte, que conta a histria do pintor e do processo de feitura do retrato oval,

    narrada por um narrador onisciente e neutro em terceira pessoa, que aquele que

    tem acesso a tudo e cujo conhecimento abarca todos os tempos e lugares, atos e

    caractersticas externos, at mesmo os pensamentos das personagens (ALMEIDA,

    2011, p. 367).

    No obstante, notei que ambas as partes tinham em comum certa impreciso

    narrativa, em que muitos detalhes eram deixados sem explicao: o motivo porque o

    narrador estava ferido, o motivo porque o castelo estava abandonado, quem era o

    autor do livro de notas, a poca em que aconteceram os fatos, os detalhes acerca do

    pintor e sua esposa etc. (ALMEIDA, 2011, pp. 366-367). Conforme escreveu Maria

    Antnia Lima, Edgar Allan Poe, expondo um ponto de vista romntico que se

    afirma contra a regra neoclssica do sculo XVIII de que tudo deveria ser claramente

    e distintamente expresso, acredita que se deve evitar a expresso directa e que

    muito deve ser deixado imaginao (LIMA, 2005, p. 186). Essa caracterstica

    pode ser considerada como equivalente ao conceito wolffliniano de obscuridade,

    aproximando-se, portanto, do estilo anticlssico do retrato oval.

    Por outro lado, conclu que a estruturao do conto em duas partes

    perfeitamente distintas, em que est bem claro o limite onde acaba uma e comea a

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    outra, como tambm o fato de essas partes no serem completamente dependentes,

    esto mais prximos das caractersticas clssicas da linearidade e da pluralidade.

    (ALMEIDA, 2011, p. 367).

    Quanto ambientao do conto, observei-a a partir da tipologia de Osman

    Lins, conforme organizada por Antonio Dimas no livro Espao e romance. Numa

    narrativa, a ambientao o modo com que a narrao apresenta o espao em que se

    passa a histria narrada. The Oval Portrait apresenta o tipo de ambientao

    chamada por Osman Lins de ambientao oblqua ou dissimulada, que

    [...] a mais difcil de se perceber, uma vez que nem se trunca o fluxo narrativo com o fito de se abrir uma clareira ornamental e nem se delega a um personagem a responsabilidade de nos transmitir, direta ou indiretamente, o setting em que se insere. [...] a ambientao dissimulada exige a personagem ativa, o que faz com que se crie uma harmonizao altamente satisfatria entre o espao e a ao (Lins, 83), num processo de colaborao recproca, cujos liames s sero espreitados pela perspiccia de um leitor paciente e educado. Como se trata de uma fuso de componentes de natureza variada, esse tipo de ambientao requer redobrada ateno do leitor, que a ela emprestar uma carga de significados muitas vezes insuspeitos. Bem distante do carter despudorado da ambientao franca, na dissimulada imiscuem-se e interpenetram-se seres e coisas que somente a leitura demorada poder separar, hierarquizar e avaliar. (DIMAS, [198-], p. 26).

    A ambientao dissimulada, em vez de vir em um pargrafo que seja

    claramente uma descrio do espao (como acontece com os outros dois tipos de

    ambientao), na verdade vem misturada com a narrao das aes das personagens.

    Observe-se como se nos apresenta o espao em The Oval Portrait:

    O chteau em que meu criado se aventurara a forar entrada, em vez de me deixar, em minha desesperadora condio de ferido, passar uma noite ao relento, era um daqueles amontoados de soturnidade e grandeza misturadas que por muito tempo carranquearam entre os Apeninos, tanto na realidade quanto na imaginao da Sra. Radcliffe. Ao que tudo indicava, fora abandonado havia pouco e temporariamente. Acomodamo-nos num dos quartos menores e menos suntuosamente mobiliados, que ficava num remoto torreo do edifcio. Sua decorao era rica, porm esfarrapada e antiga. As paredes estavam forradas com tapearias e ornadas com diversos e multiformes trofus herldicos, juntamente com um nmero inusual de espirituosas pinturas modernas em molduras de ricos arabescos dourados. Por essas pinturas, que pendiam das paredes no s de suas principais superfcies, mas de muitos recessos que a arquitetura bizarra do

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    chteau fez necessrios; por essas pinturas meu delrio incipiente, talvez, fizera-me tomar interesse profundo; de modo que ordenei a Pedro fechar os pesados postigos do quarto visto que j era noite acender as chamas de um alto candelabro que se encontrava cabeceira de minha cama e abrir amplamente as cortinas franjadas de veludo negro que a envolviam. (POE, O retrato oval, grifos meus).9

    A apresentao do espao vem interligada com as aes das personagens: elas

    entram no castelo e se estabelecem em um dos aposentos, o narrador toma interesse

    pelas pinturas, ordena ao criado que feche as venezianas etc. Conclu, ento, que esse

    tipo de ambientao um equivalente literrio do estilo anticlssico: a suavizao

    dos limites entre enredo e ambientao leva caracterstica pictrica; essa

    suavizao de limites faz com que sejam inseparveis a ao e a descrio do espao,

    o que leva caracterstica da unidade; por fim, cheguei caracterstica da

    obscuridade ao observar que o espao no se revela totalmente de uma vez, mas vai

    aparecendo aos poucos, conforme o narrador movimenta o candelabro, sua nica

    fonte de luz, que no consegue iluminar o quarto inteiramente. (ALMEIDA, 2011,

    p. 370).

    Assim procedi comparao entre as artes da literatura e da pintura, primeiro

    comparando a descrio do retrato oval com algumas obras de Thomas Sully, de

    modo a deduzir algo do estilo da pintura do conto; depois comparando esse estilo

    pictrico com o estilo narrativo de The Oval Portrait, coordenando essa

    comparao com a analogia entre teorias da narrativa e da pintura. Sem esquecer,

    entretanto, que uma analogia como essa sempre requer que se considere as

    semelhanas relevando um pouco as diferenas. 9 THE chateau into which my valet had ventured to make forcible entrance, rather than permit me, in my desperately wounded condition, to pass a night in the open air, was one of those piles of commingled gloom and grandeur which have so long frowned among the Appennines, not less in fact than in the fancy of Mrs. Radcliffe. To all appearance it had been temporarily and very lately abandoned. We established ourselves in one of the smallest and least sumptuously furnished apartments. It lay in a remote turret of the building. Its decorations were rich, yet tattered and antique. Its walls were hung with tapestry and bedecked with manifold and multiform armorial trophies, together with an unusually great number of very spirited modern paintings in frames of rich golden arabesque. In these paintings, which depended from the walls not only in their main surfaces, but in very many nooks which the bizarre architecture of the chateau rendered necessary -- in these paintings my incipient delirium, perhaps, had caused me to take deep interest; so that I bade Pedro to close the heavy shutters of the room -- since it was already night to light the tongues of a tall candelabrum which stood by the head of my bed -- and to throw open far and wide the fringed curtains of black velvet which enveloped the bed itself. (POE, The Oval Portrait, grifos meus).

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    Referncias ALMEIDA, Wilson Filho Ribeiro de. As supersties que cercam a imagem de Santo Antnio de Pdua. Monografia (Graduao em Artes Plsticas) Faculdade de Artes, Filosofia e Cincias Sociais. Universidade Federal de Uberlndia. Uberlndia, 2007. ______. Comparao entre as linguagens da literatura e da pintura no conto The Oval Portrait, de Edgar Allan Poe. Revista Travessias, vol. 5, n. 1, 2011. pp. 350-373. Disponvel em: . Acesso em: 29 ago. 2012. ______. O autor em cena: as Leituras Pblicas de A Christmas Carol, de Charles Dickens. Dissertao (Ps-graduao em Letras) Programa de Ps-graduao em Letras, Curso de Mestrado em Teoria Literria. Universidade Federal de Uberlndia. Uberlndia, 2012. DICKENS, Charles. A Christmas Carol: the Public Reading Version: A Facsimile of the Authors Prompt-copy. Edition, introduction and notes by Philip Collins. New York: The New York Public Library, 1971. DIMAS, Antonio. 2. Rumo aos conceitos. In: ______. Espao e Romance. 2. ed. Srie Princpios. [S.l.]: tica, [198-]. pp. 19-32. GMEZ-MARTNEZ, Jos Luiz. Teora del ensayo. Mxico: Universidad Nacional Autnoma de Mxico, 1992. LIMA, Maria Antnia. The Oval Portait (1842): Retrato de um artista perverso. In: Homenagens: Viagens pela palavra. Lisboa: Universidade Aberta, 2005, p. 185-194. Disponvel em: . Acesso em: 29 jan. 2010. OLIVEIRA, Solange Ribeiro de. Literatura e Artes Plsticas: O KNSTLERROMAN na fico contempornea. Ouro Preto: UFOP, 1993. POE, Edgar Allan. O retrato oval. Traduo de Marcelo Bueno de Paula. Disponvel em: . Acesso em 14 mai. 2010 ______. The Oval Portrait. Disponvel em: . Acesso em 04 jan. 2010. PRAZ, Mrio. Literatura e Artes Visuais. So Paulo: Cultrix, 1982.

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