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Processo de branqueamento do território e intervenções urbanas na zona
portuária do Rio de Janeiro: A Pequena África como fruto de produções espaciais
no passado e no presente
Autora: Ana Carolina Mauricio de Carvalho
Graduanda em geografia UERJ/FFP
Co-autora: Lisyanne Pereira Ribeiro
Graduanda em geografia UERJ/FFP
Este trabalho é resultado, de uma pesquisa que se encontra em fase inicial, mas
construído coletivamente através do acúmulo das discussões realizadas no NEGRAM
(Núcleo de Estudos e Pesquisas em Geografia, Relações Raciais e Movimentos sociais),
da Faculdade de Formação de Professores da UERJ, situada em São Gonçalo/Rio de
Janeiro.
O objetivo deste artigo é construir um aparato conceitual para entender como o
processo de branqueamento do território se coloca como um conceito chave para
problematizar o impacto que as reformas urbanas realizadas na região portuária da
cidade, tanto no passado quanto no presente, que invisibilizam grupos não
hegemônicos, neste caso, levando a diminuição da história afro-brasileira naquele
espaço.
Quando abordamos projetos de reestruturação urbana na zona portuária, pouco
se discute de que maneira isso altera as narrativas acerca da representação, preservação
da memória e identidade de um local que foi ocupada majoritariamente pela população
negra, nomeada por Heitor dos Prazeres como “Pequena África”, formada na cidade
durante o século XIX. A alusão ao continente africano na toponímia daquele espaço nos
permite concluir a forte relação com a cultura negra construída ao longo dos séculos.
Hoje o Rio de Janeiro se encontra profundamente alterado pelas obras de
reforma urbana que buscam adequar à cidade ao calendário de megaeventos como a
Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016. Assim como no período do governo
Pereira Passos, a região portuária se coloca, mais uma vez, no centro dessas
transformações com as obras do “Projeto Porto Maravilha”, que traz uma nova
concepção de região portuária e também sobre o que é a Pequena África.
I – A ZONA PORTUÁRIA E A FORMAÇÃO DA PEQUENA ÁFRICA
O final do século XVIII foi um período importante no tange a inserção
população negra nos espaços da cidade. A partir de 1888, o Brasil aboliu oficialmente a
escravidão. Neste período, a cidade começa um intenso processo de mudança, que
emerge do início de um novo projeto de sociedade que incluía não só a mudança no
modo de produção, mas também a criação de um projeto societário baseado na
importação de populações europeia, a partir da influência de teorias do darwinismo
social que vinham da própria Europa.
A partir daí, a cidade teve seus espaços modelados e ressignificados. Áreas
proletarizadas se formaram, mostrando como essa nova massa populacional se inseria
de maneira subalternizada nesse novo projeto de cidade. Neste período, formou-se um
enorme contingente populacional negro, que se alocou principalmente na região
portuária. Ali se estabeleceu inúmeras práticas sociais, dando origem a uma série de
elementos e símbolos culturais, que mantinham características vindas dos países de
origem destes negros.
Mesmo indo ao encontro ao um novo modelo de sociedade, estes códigos e
elementos culturais não se perderam: Estavam contidos em seus rituais religiosos, nos
encontros musicais e nas formas de organização. Estas marcas da presença negra no
espaço (SANTOS 2011) ganharam novas formas de representação, que resistia e se
remodelava mesmo após as inúmeras intervenções urbanas que marcaram aquele recorte
espacial.
A zona portuária possui marcas predominantemente negras. Além da bagagem
cultural trazida de seus países de origem, novos elementos surgiram, uma vez que a
cultura trazida é desprendida das formas sociais africanas, foram recriados os meios de
convívio e organização da religião e fora da órbita de controle dos escravagistas, onde é
proibida (MOURA 1995), na tentativa de fazer com que a população negra perdesse
qualquer tipo de vinculo com sua origem, o que poderia facilitar também o controle
sobre esses grupos.
A partir disto, a Pequena África pode ser considerada uma antiga forma de
produção e resistência espacial da população negra, que se caracteriza por um recorte
territorial construindo a partir da ocupação maciça da população negra africana. Desde
então, esse grupo grafou suas territorialidades, como costumes religiosos (o primeiro
terreiro de umbanda criado por Tia Ciata), a música (as primeiras rodas de samba), além
de ser o local de moradia de diversos intelectuais, como Machado de Assis e Heitor dos
Prazeres.
(Retirado da apresentação: “Race & Identity: about the legacy of mega-events in
Rio de Janeiro”, SANTOS 2012)
Entretanto, esta área sofreu diversas transformações, sendo profundamente
alterada por reformas urbanísticas pensadas a partir de um padrão eurocêntrico
arquitetônico, político e societário. Neste contexto, estas transformações se tornam um
projeto político racializado (CORREA 2013), onde as políticas de Estado comandam
não só o padrão de ocupação, mas também as narrativas culturais e de imagem de
determinado território, fruto da colonialidade presente na formação do território
brasileiro.
Com esta discussão, busco compreender o território como o local onde diversas
territorialidades acontecem, sendo estas controladas – e por vezes definida- a partir da
ação do Estado, definida pelas relações poder que ocorrem em diversas escalas, no caso
da região portuária, pela agenda global capitalista e pela forte relação entre o governo
municipal, estadual e federal.
Neste sentido, a primeira grande reforma que buscava atender essa lógica foi
realizado no período de governo do prefeito Pereira Passos. Centenas de negros
residentes nestas áreas foram expulsos para que a então capital federal pudesse se
“branquear” e ganhar um novo status. Observa-se então como estas intervenções
urbanas são recorrentes na formação da cidade do Rio de Janeiro, sempre legitimadas a
partir de um discurso que exalta o avanço em direção a modernização.
II – O BRANQUEAMENTO DO TERRITÓRIO COMO CONCEITO CHAVE
PARA ENTENDER AS TRANSFORMAÇÕES NA ZONA PORTUÁRIA DO RIO
DE JANEIRO
Antes de analisar as três dimensões que compõe o conceito de branqueamento
do território, é necessário salientar que a construção de um ideário de nação, advindo de
um novo momento na história do país, impulsionou a tentativa de tornar o Brasil um
país branco. A importação de mão de obra europeia, medida adotada pelo governo
brasileiro a partir da década de 1850, e mais fortemente a partir dos anos de 1890,
funciona então como um fato importante pra entender o processo de branqueamento do
território que desponta nesta época.
Neste sentido, os indícios de branqueamento aparecem neste espaço através de
grafias (SANTOS 2012) que revelam a existência da presença negra (no passado e no
presente), grafias que, neste caso, aparece nas toponímias dos inúmeros lugares que
englobam a Pequena áfrica, uma vez que grande parte de seu legado arquitetônico foi
devastado pelas diversas reformas urbanas que esta área sofreu. Assim, as Toponímias
se transformam em registros históricos que se confrontam com o discurso da não
existência de outros grupos no território.
A partir destas evidências, podemos considerar este processo de redução da
memória negra na região portuária como fruto da colonialidade engendrada no processo
de formação do país, conduzida por ideais e padrões europeus, tanto arquitetônicos
quanto civilizatórios, que nos induzem a pensar que há somente uma narrativa acerca
dos diversos processos e conflitos que envolveram a formação daquele território.
Então, podemos observar que a colonialidade se constitui enquanto um padrão
de poder que opera em diversas escalas da existência social (QUIJANO 2010),
destacando aqui a cultura e a identidade, que fez (e faz) da Pequena África um lugar de
resistência. Uma vez que estas são cada vez mais apropriadas pelo capitalismo, são
ressignificadas por um projeto hegemônico de território, servindo para legitimar um
novo modelo de cidade: moderna, aberta ao capital estrangeiro e branca.
Iniciadas em meados do século XIX, as políticas de branqueamento faziam parte
da construção de um projeto iniciado pelas elites brasileiras, buscando a consolidação
de um país que apagava de sua história um passado negro, através de ações jurídicas
e/ou simbólicas. O branqueamento da população surge como um projeto político com
foco no controle populacional, que incluiu, entre alternativas, a entrada de imigrantes
europeus sob pretexto de trabalho nas lavouras de café e posteriormente, na indústria,
justificada por uma suposta experiência destes imigrantes com estes dois trabalhos, o
que não correspondia a realidade, principalmente no segundo caso.
Estas políticas (e estratégias) se materializam através de ordenamentos como:
“imigrações financiadas em detrimento da condição de vida do negro,
desterritorialização de grupos não brancos, produção de não existência nas diversas
narrativas e discursos acerca dos territórios” (CORREA, 2013, P. 130), formando parte
das dimensões de análise do branqueamento do território, que pode ser compreendido
através do (i) branqueamento da ocupação, (ii) branqueamento da imagem e (iii)
branqueamento cultural.
O branqueamento da ocupação neste caso, entre outros fatores, está
intrisicamente ligado ao caráter econômico. Com a função estratégica da região
portuária, de entrada e saída de mercadorias, o solo daquela área passa a ter um valor
diferenciado do restante da cidade. Podemos destacar também que, como a porta de
entrada da cidade em séculos passados, a imagem de uma população negra vivendo de
maneira insalubre, bem como com os ares de uma cidade com arquitetura colonial,
impulsionaram as reformas no governo de Pereira Passos.
Dessa maneira, o componente racial constituía um elemento de desvalorização
daquele espaço, que passa a buscar um referencial europeu, na tentativa de eliminar
todos os elementos que lembrassem a ocupação pela população negra, ainda que os
discursos hegemônicos procurassem mascarar as intencionalidades que mascaravam a
concepção de um novo modelo de cidade.
O período que compreendeu a gestão do então prefeito foi marcado por inúmeras
remoções, ABREU (1997) fala em “cerca de duas ou três mil casas, com famílias
numerosas” (p. 59), que compreendia majoritariamente a população negra.Vale ressaltar
que este quantitativo de pessoas removidas só na região portuária, no século XIX,
representava um impacto muito grande. Isso imprimiu naquele espaço um padrão de
brancura que invisibilizou, e em alguns casos apagou efetivamente, o histórico da
presença negra. Os poucos trabalhos bibliográficos existentes nos permitem ver como a
ancestralidade negra é ocultada quando confrontada com outras narrativas.
Hoje a revitalização também aparece com um sentido econômico, mas
mascarada pelo discurso da revitalização de áreas obsoletas, que se sustenta a partir da
ideia de “vazio demográfico”. O discurso de vazio demográfico já foi fortemente usado
para legitimar a importação de mão de obra europeia para colonizar o Brasil em outrora,
e hoje é reutilizada para justificar as remoções que ocorrem na região portuária.
Neste sentido observamos surgir com muito mais intensidade no atual projeto de
urbanização da zona portuária o branqueamento da imagem e o branqueamento cultural
do território, impulsionado pela releitura de um passado negro nesta área, com a criação
do “Circuito Histórico e Arqueológico da Celebração da Herança Africana”.
Devido a inúmeros tensionamentos feitos pelo Movimento Negro, que já vinha
reivindicando que aquela área fosse oficialmente reconhecida como patrimônio cultural
da cidade, junto ao atual prefeito Eduardo Paes, fez com lugares históricos da presença
negra na região portuária culminassem na criação dos seis pontos do circuito,
apresentados na imagem abaixo:
(Fonte: http://portomaravilha.com.br/circuito/)
Neste sentido, podemos ver claramente como a política de branqueamento da
imagem e o branqueamento cultural se intercruzam, e atuam apagando efetivamente ou
não algumas narrativas. Ao analisar o mapa da zona portuária do início do século XIX e
hoje, podemos ver como há uma significativa redução territorial da Pequena África, e
como fragmentos da história negra cidade se perderam, e outros foram ressignificados.
O branqueamento da cultura também pode ser observado através da elitização de
áreas de lazer ocupada majoritariamente pela população negra. Com a refuncionalização
dos antigos espaços influenciados pelas intervenções, tem-se a mudança no perfil racial
do público da região, que passa a ser ocupado de maneira intensa pela população
branca, já que a refuncionalização é acompanhada de aumento do custo de vida, que
acaba inviabilizando grupos que não possuem condições financeiras de frequentar
espaços ancestralmente ocupados.
Hoje, o referencial do que é a Pequena África se resume os pontos que se
encontram no Circuito da Celebração da Herança Africana, resultado do forte impacto
que esses projetos hegemônicos exercem na configuração espacial da zona portuária.
Essa nova leitura, externa, do que é a cultura negra naquela área, não abarca toda a
multiplicidade de territorialidades presentes, levando ao apagamento efetivo de códigos
negros naquela área, ou a uma reconstrução da história negra “sob a lógica eurocêntrica
de territórios não brancos” (p. 131, CORREA).
Entretanto não devemos esquecer que muitas são as problemáticas que envolvem
a criação desse circuito, uma vez que toda criação de políticas culturais e patrimoniais
envolvem diversos embates e negociações entre atores hegemônicos e sociais, que
disputam quais narrativas estarão presente, em um projeto de cidade que ao mesmo
tempo em que traz certa visibilização, se apropria dessa cultura e faz dela fonte de
capital.
III – A PEQUENA ÁFRICA COMO FRUTO DO BRANQUEAMENTO DO
ESPAÇO E DO PRESENTE
O discurso da modernização está diretamente relacionado com a formação da
cidade do Rio de Janeiro, e ao longo da história podemos observar que há momentos em
que é possível ver com mais facilidade o branqueamento da ocupação, em outros o
branqueamento da imagem e o cultural, entretanto é fundamental entender como estas
três dimensões se articulam, nos permitindo entender diversos processos mascarados
por um projeto político.
Desde então, o branqueamento da população surge como uma tentativa de
apagar da história do país o passado escravocrata e a presença da população negra
através do incentivo à mestiçagem. O ato de trazer a população branca europeia para o
Brasil tinha o intuito não só o branqueamento fenotípico, mas também de outras
representações que buscam invisibilizar a presença de outros grupos no espaço.
Muito se discute a intencionalidade das esferas governamentais na implantação
do Circuito da Celebração Africana. Até que ponto este circuito, criado em um contexto
de megaeventos, onde a cidade se prepara para receber turistas foi apropriado e serve a
lógica de mercantilização da cultura negra, e até onde ele serve como uma tentativa de
um movimento social, neste caso o Movimento Negro, de tornar a cultura afrobrasileira
visível naquele espaço.
Neste sentido a Pequena África é resultado de inúmeras intervenções físicas e
simbólicas, que tanto no passado quanto no presente, atuando de forma a remodelar e
ressignificar seu espaço. Fazer um paralelo de mudanças na zona portuária é contar a
história da Pequena África a partir de diferentes ações governamentais em diferentes
períodos da história, ora negando a existência de um passado negro, ora participando de
políticas de incentivo de valorização a cultura negra.
Estas complexidades que envolvem a preservação da identidade da população,
dentro de uma nova lógica de mercantilização da cultura e de um projeto de cidade que
prioriza cada vez mais a especulação imobiliária e as parcerias entre o setor público e o
capital privado, nos coloca no desafio de pensar e buscar caminhos de ler e entender o
espaço urbanos como um somatório de processos do passado, mas que possuem forte
influência no presente,que através de certas narrativas, que legitimam processos de
remoções e violências contra populações não brancas.
Bibliografia:
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CORRÊA, Gabriel Siqueira. Narrativas raciais como narrativas geográficas: uma leitura
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