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PRÉMIO SCÓRPIO DE NARRAÇOM BREVE

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PRÉMIOSCÓRPIO

DENARRAÇOM

BREVE

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A AGAL quijo homenagear Ricardo Carvalho Calero e o seu romance Scórpio no tri-gésimo aniversário da sua publicaçom com a convocatória do Prémio Scórpio de Na-rraçom Breve em novembro de 2017 dentro da série de atividades da Rede Scórpio.

O júri, composto polo Conselho Editorial da Através Editora, decidiu outorgar os se-guintes prémios entre os diferentes participantes: o primeiro prémio a Scórpio revisited, de Carmen Fernández García; e o segundo prémio a O teito do quarto é um ponto a crescer, de Erea Fernández Folgueiras.

Prémio Scórpio de Narraçom Breve

1ª ediçom, dezembro 2017

Este certame recebeu umha ajuda da Deputaçom da Corunha

c Por Scórpio revisited: Carmen Fernández García c Por O teito do quarto é um ponto a crescer: Erea Fernández Folgueiras c Por esta ediçom: AGAL. Associaçom Galega da LínguaSantiago de Compostela (Galiza)[email protected]

Coordenaçom editorial: Xosé Antom SerémDiagramaçom e capas: Miguel DuránCorreçom: Inácio PradaAlgumhas escolhas ortográficas som decisom das autoras

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Índice

Scórpio revisited........................................ 5O teito do quarto é um ponto a crescer... 23

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1º PREMIO

SCÓRPIO REVISITED

CARMEN FERNÁNDEZ GARCÍA

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I

AntóniA

O meu momento chega. Soubem-no justo antes da alva; e agora, quando o sol assoma polo monte de Ancos, este corpo tinge os lençóis com a fonte do seu calor.

Passei a noite tranquila, plena, saboreando umha experiência que nom se pode explicar. Sentim-me esgotada e ao tempo pode-rosa. Durante o parto deixei o estado humano: primeiro tornei-me num animal, a fêmea de qualquer espécie, e depois, atravessando as densidades, fum aquela que contém todas, a Terra mesma. Por trás do remoinho de dor, o meu corpo, a minha matéria, trans-formava-se. E vinham-me à cabeça imagens de montanhas que se abrem e cospem pedras líquidas, imagens de eu enorme, ardente, estourando, como o gigantesco gomar da primeira Árvore, como se eu mesma me virasse de dentro para fora… pondo a entranha no mundo e o mundo na entranha. E depois a explosom, que vem cheia de Luz, pintando as paredes, colocando flores ao redor do quarto… Eis a experiência de teres dado tudo o que és.

Eu já nom som umha mulher, aliás nos últimos anos fum a Lua Cheia; conhecim e gozei e compreendim o que era essa ale-gria de dar e receber farturenta, alegremente. O corpo das mu-lheres tem umha entrada, umha morada e umha saída… para se viverem gloriosas ou sofridas. Assim é.

Eu sabia o que se ia passar e nom me importei; ele fazia-me tremer, fazia-me tremer apenas com olhar-me. Nunca me aconte-cera isso. Tivera um moço e antes já fora a bailes; mas com nen-gum sentim tal. E, ainda que som nova e filha de viúva, conheço bem os homens.

Minha mae era muito de estar com gente, de conviver com os vizinhos. Tinha boas amigas e também bons amigos. Gostava de dias feriados, de jantares de patrom e sempre me levou às roma-

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rias, onde nos juntávamos muitos. Ela queria que valorizasse as pessoas, porque dizia que o mais rico é quem tem família unida e amigos da alma. Sobretudo queria que casasse com um homem bom, por amor.

Para mim foi um grande exemplo. A sua própria solidom su-perou-na pondo vontade, sempre com um sorriso. Da força inte-rior construiu aquele pequeno paraíso humano, feito de cousas singelas e fermosas. Nom lhe foi fácil, jamais deu compreendido esta estranha forma de vida de Ferrol… umha cidade que procu-ra o esplendor ultramarino por um furolho de castelos enquanto vira as costas à Terra em que assenta. E essa distância, ingrata, violenta, face à Terra entra também nas pessoas. Sem saber de tudo quem vens sendo, ninguém confia nem se mostra; por muito que se bater o papo, as cousas verdadeiras ficam caladas, nada se fai para ultrapassar o Silêncio, embora for preciso e se tiver vontade.

Essa maneira de comportar-se pode-se fingir mas quem nom nasce nela nom dá chegado a afazer-se.

Minha mae contava que na aldeia todos eram umha família grande, e tudo se compartilhava: alegrias, dor, carência ou fartura … cada dia umha fazia as cousas que tinha de fazer, simplesmen-te, orgulhando-se de dar o melhor de si.

A ânsia dela era tecer umha rede social estreita e real onde nos sentíssemos sempre parte dalgumha cousa maior. Porque essa era a forma de viver que lhe ensinaram. Com a sua cultura de clam e usando um fino instinto, conseguiu reconhecer as boas persoas de Ferrol, a aboiarem orfas na tona das aparências.

Eu ficava a meio caminho entre a silhueta das montanhas lu-guesas e o perfil dos guinchos ferrolanos: observava-a e aprendia dos dous modelos, um para subsistir e o outro para viver a vida com gosto.

Passados dez anos da nossa vinda ela morreu e chegou umha tristeza imensa que, nem trabalhando arreu me dava acabado. Entom conhecim-no. Tam distinto, tam cortês, com esse ar aven-tureiro… abrigou-me como um cobertor de seda, suave, ligeiro e quentinho... a amargura derreteu-se. Adoecia polo seu alento,

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polo seu sotaque, polo contraste entre o seu conduzir-se público e na intimidade. E sei que ele tivo umha arroutada igual comigo. A gente que fale o que quiger, eu digo que se abeirou apaixonado mas sempre com respeito. Nom me roubou um abraço, falou-me muito primeiro e só logo de meses fijo a sua declaraçom, conti-da, rendida… Que forte é a intensidade do homem, que gostosa quando tu a correspondes! Eu correspondim: o coraçom, o corpo tinham vontade de momentos felizes. Relaxei-me, respirei, amo-lecim, decidim.

Eu sabia que haveria um filho e que o filho seria para mim. E quigem isso.

A criança que dorme no meu colo ainda morno é um homem. Deus sabe o que o aguarda. Eu colmei-no de amor enquanto ma-durava no meu ventre. Falei-lhe muito: do dia a dia, das cousas da vida. Falei, como lhe falaria a um homem feito se puidesse, desde a total amizade e sinceridade: das mulheres, do encontro com seu pai, de como escuitar e comunicar-se com umha moça, de como fazê-la feliz, do fácil que é estar perto e do difícil que é conhecer-se, gozar-se. E sobretudo aconselhei-no para nom se deixar cingir por leis humanas pretendidamente celestes. Eu quero bondade e alegria para o meu filho, desde a liberdade, desde a dignidade, desde a autenticidade. Como me ensinou minha mae. O meu cativo sabe-o, mas repito de voz alta para ele agora, cuidando as minhas Palavras, já febles, que som a herança que lhe deixo. Depois volto o olhar à janela por onde entram feixes laranjas de Sol. Deixo o meu filho num colo imóvel e ergo-me cara eles, des-prendendo-me, com lentidom, deste corpo satisfeito que recebeu, acolheu e deu Amor.

O meninho acordou com o frio que a minha pele lhe dá e chora sem parar de chorar. Polas escadas sobe a voz inquieta da Aurélia, a minha cara vizinha, chamando por mim. Ela ainda nom sabe, eu sim: há-de cuidar do meu filho como se for seu. E fico tranquila, ligeira, como um ventinho mareiro, a nadar pola Luz do meu dia infinito.

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II

SAgitário

Amboage, 17 de maio de 1987

Bem-querida Chéli,Figem e refigem milheiros de vezes esta carta, dizendo-che

nela centos de cousas, de um milhom de pontos de vista e de estados. Nom suportava nom ver-te. Mas a tua ausência, tam dura, foi na verdade um presente que agradeço: Solidom deu-me a imagem clara de quem eu som… Entre gente nom resulta nada doado compreender algumhas cousas, Chéli. Como custa ver-se!

Os moços desta época dim que som mais livres do que nós fomos, vem essa liberdade na falta de fronteiras, na euforia de transgredir… Mas no interior de cada ser humano desenvolvem-se sempre os mesmos mitos com diferentes encenaçons. A covar-dia com que nós calamos (os sentimentos, a história, os porquês) fai-nos berrar a eles. Nom som conscientes de que a sua Movida é mais um rosto do nosso Silêncio. E assim geraçom após geraçom, a evoluçom do humano fai-se pesada e lenta.

Reflicto hoje nisto, sentado na Praça onde desenhamos a tra-ma das nossas vidas.

Quando crianças, as palmeiras e araucárias davam umha tré-gua tropical entre a face civil, ilustrada, empreendedora, e a mi-litar, hierárquica, espartana, de Ferrol. Era o recreio cosmopolita daqueles que se afastam da leira. Na infância esta distância adulta entre o real e a hiprogressia sente-se mas nom se partilha. Na altura, com toda a Luz intacta, púnhamos prazer e aventura em cada gesto quotidiano. Vós, as meninhas, fazíades comidas de ervas e flores; nós, os rapazes, brincávamos às batalhas.

Recordo tantas cenas contigo que tenho feito um filme com-pleto. A primeira, num único plano. Na rua Real vemo-nos por

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vez primeira e, enquanto falam pais com pais e maes com maes, tu e mais eu olhamo-nos. Nom lembro exactamente os teus ras-gos, sei que a sua delicadeza me maravilha, o cabelo encaraco-lado brilha-che tanto que parece coberto de pó de fadas, como a nena do conto de Peter Pan. Entom reencontro essa magia que, de um éon remoto, irrompe calorosa, ecoa na minha, e som imen-samente feliz.

Desde aquela estar contigo era o melhor que me acontecia. Para ti, Chéli, eu fazia o papel de amigo, de companheiro, de confidente.… porque antes que mim, desde o começo, estava o Rafael. E, embora ele jamais competiu, achei que apenas me res-tava apresentar a rendiçom; cousa que figem com aparente des-portividade. Era fácil transvestir os ciúmes de admiraçom. O Ra-fael brilhava com luz própria, gerava tal magnetismo natural… Porém nom havia qualquer segredo nele fora o de ser e querer ser umha boa pessoa.

E nós, Chéli, nom o vimos. Nom quigemos ver essa alma pulcra. Tu e eu vivíamos noutras formas. Rafael era dumha di-ferença que adorávamos e que nos incomodava. Sentíamo-nos ansiosos perante, como chamá-lo? o seu esmero existencial? Para nós, moços dessa camada social que vive desapegada da Terra, Rafael era um ideal encarnado; nom nos passava pola cabeça inspirar-nos dele, mudar algumha cousa em nós, evoluirmos… Assim foi que, procurando tacitamente um jeito de acalmar-nos, decidimos logo que o Rafael era um ser sobrenatural e que, como tal, só podíamos comunicarmo-nos com ele desde o servilismo -posicionamento que, aliás, nada nos exigia-, sem permitirmos ao nosso caro amigo umha verdadeira comunhom connosco desde o Coraçom.

Percebes, Chéli, que forma mais feia de condená-lo ao ostra-cismo?

Resultou-nos fácil colocar o Rafael sob umha campânula de vidro: o teu sonho era caçar o avatar, o meu… ser a sua versom humana. Porém, a bonomia, como virtude que é, pede trabalho, nom se apega. Demorei anos em compreendê-lo, em fazer as pa-zes com aquilo. Sei que resulta chocante… mas é a Verdade.

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O mito gomou na adolescência, quando já nom che abondava o seu carinho fraterno. Nessa altura entretínhamo-nos com qua-tro ideias de astrologia do Blanco y Negro. A descriçom dos Scórpio assustou-te e, como para distraíres um mau agoiro, montaste o jogo: Scórpio assumiu os pecados do Rafael, Sagitário e Balança os nossos respectivos, bem conhecidos, por certo. Quanto a Scór-pio, em todo sémi-deus há um ponto fraco, nom há? O dele eram as mulheres. Mas tu sabias, Chéli -o aguilhom do Scórpio pode vir carregado de sinceridade- e, ainda assim, desejavas casar com Rafael por riba de tudo.

Depois somou-se Merche e figemos a Guerra a três bandas. Bom vintage de 1910… perfeito para armar, fazer e sofrer guer-ras. Quem de nós tivo a ética de desertar? Nengum. Demasiado perdidos, mui longe de nós propios… O Rafael nunca tomou par-te, viveu-na apenas porque nos amava. Mais tarde perdeu a vida, também sem conviçom, num outro campo de batalha fratricida, igual de ermo e alheio: o combate de ideias que, completamente faltos de cordura, os espanhóis levamos a ato.

Em abril de 1939 estávamos já em Cuba quando nos inteirá-mos da sua morte. Merche e eu nom tínhamos qualquer contato contigo mas um familiar do mestre de Narom, que estava emi-grado, véu-nolo contar. No momento, Merche saiu precipitada-mente do salom e eu, logo de despedir aquele senhor, topei-na na cozinha, a chorar a mares.

Nom sei como che falar nisto, Chéli. Ser é simples, mas custa um mundo.

Rafael morreu. Tu ficaste com a meninha, nom sei se choraste.Sagitário sofreu o estigma de Quirom, desterrado de si.Scórpio deu-me umha filha… a única que tenho.Digo-cho em Paz, Chéli. E também o sinto muito, porque enquanto escrevo, enquanto

te imagino sentada a ler palavra após palavra, sei que somos ve-lhos e frágeis, que tudo o que nom quigemos ver nem ouvir, que tudo o que calamos anos e anos e anos, circula cada dia, obsessivo e tragicómico como um filme de Harold Lloyd, diante da cons-ciência. E dói.

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Minha Chéli, esse Silêncio submisso somos nós que o mante-mos. Ninguém mais nos amordaça já. Aquele mundo morreu e está soterrado. Neste joga a nossa descendência, cadaquém o seu cenário, o mesmo jogo da Vida. Mas todos temos direito a conhe-cer a Verdade da nossa.

Eu pido-che hoje, humildemente, Perdom, por tê-la deixado passar sem dizer-che que te amo.

Teu,Jorge

III

PeixeS

Sentada na salinha da Casa, abro, como tantas outras vezes, o álbum verde de couro velho:

Na primeira página, a mais antiga foto de bodas: o enigmáti-co bisavô inglês, colhido do braço da mae da mae da minha mae, umha diminuta moura sob o imaculado véu de noiva. Os olhos claros dele perdem-se, quiçá sonhando umhas costas que nunca conheceu, lembrando outras aonde nom voltou. Dim que era dis-tinto e cortês. E amador de lugares exóticos. Talvez por isso prefe-riu esquecer a fiancée de Arundell e casar à moda católica na igreja de Sam Francisco, da Terceira Ordem, como um ferrolano mais.

A bisavó Encarna e ele tivérom três filhas, que frequentavam o clube britânico mas que nunca aprenderam a falar bem o idio-ma do pai, um pouco por timidez, por nom as considerarem tam chónis em Amboage. Foi admirado e, no entanto, ficou estrangei-ramente desconhecido para o resto: um pouco à parte de todos, mentado como requinte da nossa linhagem. É sabido que, quan-do os verdadeiros vínculos nom estám feitos, a fantasia genética borda de afectos figurados relaçons que, no real, nunca existirom. Eu, assim, penso, influenciada polas sagas de Júvia, que o meu bisavô, Harry James Fallon, era um aventureiro de bom coraçom.

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Enquanto vou passando páginas, chega a minha tia Amalita, com o café bem preto, como gostam nos portos atlânticos, e pom-se a tecer um novo tapete de croché para o respaldo deste sofá. A casa dos avós é um museu à Arte Nova que ela cuida com primor e dedica à memória de umha ferrolanidade cujos vestígios se diluem nestes dias de 2017. Fazia tempo que nom vinha, que nom sen-tia ranger estes soalhos polidos, que me faltava o aroma do café torrefacto e dos móveis encerados, que nom via os retratos de família, procurando-me, como quando era cativa, a mim própria na história dos demais.

Entre tantas imagens, pequenas, esvaídas, novamente topo aquelas fotos exquisitas, umha à beira da outra: Na primeira, o meu bisavô Harry, apoiado elegantemente no guarda-chuva fechado. frente ao Arsenal, como se estivesse ai por acaso, ao lado, umha mulher de feiçons mui claras, mui gale-gas. Na segunda, um meninho loiro abrindo ao mundo olhinhos transparentes. Nem a mulher nem o meninho se imitam com mais nengum rosto do álbum familiar. Estas duas fotos sempre fôrom um mistério.

Lembro que, quando a minha prima Paula e eu perguntáva-mos por elas, diziam-nos que eram dumha parente de Sussex e do filho que figeram escala em Ferrol, com o barco, caminho da América. A mim isto nunca me quadrou. A moça da foto é, sim, mui loira mas, como digem, com um gesto completamente gale-go… E pergunto outra vez à tia Amalita, com o desembaraço que agora me dam os anos. Ela suspira, sem nengumha mitomania familiar nem qualquer preceito católico que proteger já, deixa o labor na sua saquinha, alisa o avental do vao para baixo, acomo-da a xícara num coxim que pousa no colo e fala, começando por contar o que, com mais ou menos pormenor, era sabido:

O bisavô Harry vinhera destinado para Ferrol como enge-nheiro da Vickers, na Construtora, e dirigia umha das secçons técnicas a cargo dos novos acouraçados. Chegou em 1909. Ao pouco tempo conheceu a bisavó Encarna num cotilhom do Jofre e pugérom-se de noivos. Finalizado o contrato, os técnicos ingle-ses haveriam de voltar ao Reino Unido, alguns mesmo já marcha-

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ram antes, por mor da Guerra. Mas os bisavôs casaram de con-tado; ele permaneceu em Ferrol por ter formado família, e ficou vencelhado aos estaleiros toda a sua vida. Logo duns anos deixou a produçom e passou a subministros. Ai tratou muitos comercian-tes e foi familiarizando-se deste jeito com a way-of-life ferrolá.

Tia Amalita vai debulhando cronologicamente as lérias que eu ouvira muitas vezes. O que ninguém antes me digera era que, entre essas persoas que Harry conheceu, estava umha costureira de Canido, que fazia roupa de trabalho para os operários, resis-tente, a mui bom preço. Disque era espilida, trabalhadora, dis-posta, bonita, e que sabia desenvolver-se bem no trato com os en-carregados… ainda que, com Mr. Fallon, o director de compras, seique nom o fijo tam adequadamente.

Nem Encarna, nem qualquer persoa do seu círculo soubo nunca da existência da Antónia.

A casualidade quijo que, anos mais tarde, após a morte de Harry, um companheiro de escritório, que conhecia bem de per-to a história da Antónia, encontrasse a foto dela ordenando os documentos numha antiga secretária. Tia Amalita contrai o bico ao lembrar como dom Francisco aparecera aflito umha tarde de temporal, deixando o guarda-chuva aberto a escorregar cuncas no patamar de fora e entrando apuradíssimo com o chapéu a pin-gar. Fechara-se logo com a bisavó nesta mesma sala, e nem café pediram nem o candil prenderam. A tia Amalita, mui meninha, assustara-se de ouvir a mae a soluçar atrás dos vidros esmerilados. A minha avó abraçou-na e a elas duas a tia Madalena, que chega-va nesse momento de aulas de piano. Resultou que, afinal, o pai inglês nem fora tam distinto nem tam cortês.

Mas isso ficava para sempre calado entre as paredes da Casa.Contudo, a Lei divina era a que era, e tal se havia de cumprir

num fogar de senhoras cristás, chamadas a honrarem os defun-tos próprios bem como os sémi-próprios. E, para que assim fosse e afim de manterem limpa a consciência da Família, abondava, simplesmente, com Encarna incluir no álbum verde mais duas fotos.

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IV

rebecA

Eu perguntei algumha vez mas deixei de perguntar porque ele nom gostava. O meu avô nunca falava daqueles anos; na ver-dade, apenas me contava cousas que o faziam feliz. Também me ensinava cançons populares galegas, cubanas, francesas… todas as que sabia. Eu amava-o. Era um grande avô.

Os sábados de manhá levava-me polo centro, seguindo um circuito ritual que adorávamos. Na minha imaginaçom eu via-o mudar o fato/fado de senhor -cinzento cardigám seda Aqua-Velva- pola sua farda escolar. Assim, de maos dadas, andando a chouto, chegávamos aos nossos cantos mágicos: a loja das guaca-maias, que lhe lembrava àquela de móveis da sua infância onde um papagaio velho, já ferrolao, se balançava exoticamente entre armários de espelho e mesas de caoba; o alfarrabista, ele à pro-cura de livros galegos enquanto eu passava páginas de revistas velhas da velha Europa; os postos de sumos, sucos gelados e águas de frutas do Malecón... e depois o passeio em lancha até o Farol, para olharmos fite a fite o Atlântico, por ver se enxergávamos, sete mil quilómetros para além e algumha ilha polo meio, a sua beira leste.

Afinal desses anos de que nom falávamos, houvo em Espanha umha guerra em que a meu avô lhe morreu tudo: amigos, pro-jectos, mitos e sonhos. A realidade bateu-lhe na face igual que o estoque dumha espingarda, e fijo-se, de repente e por necessida-de, cubano com a alma na brêtema. Quase foi feliz naquela Ilha, disque os galegos nos adaptamos a tudo. Mas só quase, porque a ferida da vida anterior nom dava fechado, porque, como me dizia às vezes, Rebeca, mija, nom se pode enterrar um morto que nom morreu.

Depois as cousas em Espanha mudárom e voltamos. Passa-ram 36 anos.

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Eu crescim em Ferrol num momento especial. A cidade era pequena e compacta com um denso tráfego humano; nela con-centrava-se umha quantidade impensável de gente de todas as origens hispânicas, sobretudo militares. Morávamos, ao ritmo das cornetas do quartel de infantaria, num apartamento novo da praça de Canido com toda a fachada de galeria. De nena os uniformes impressionavam-me muito, gostava do boato e alguns dias merendava sentada às janelas observando o treino dos quin-tos. Contudo, ao longo dos anos a presença militar foi perdendo força e solenidade; o meu avô dizia que a sociedade confiava em si própria… às vezes emocionava-se. Ainda lembro o dia em que o acompanhei a votar pola Constituiçom. Essa manhá amanhe-ceu com cara de neno, os regos da fronte menos marcados; pujo umhas calças de pana que nunca lhe vira e umha trenka com-prida. Só lhe faltava o cachecol para parecer um dos amigos de minha mae. Tinha tal ar de festa que pedim ir com ele. O colégio eleitoral estava no Liceu Masculino. Esse dia, cheio de gente, de acenos satisfeitos e de sorrisos comedidos, mal se viam soldados pola rua, apenas polícias, que tinham um aquel de soldados civis. Havia umha coreografia dinâmica mas prudente, a gente estava concentrada no ato e a mao do meu avô bombeava calor. Vivim agarrada a ele um feliz momento histórico.

Momento histórico é aquele que ultrapassa os cabeçalhos dos jornais, é umha vivência real e experimentada. Como essa mes-ma, em 1978, quando eu ainda nom era umha moça. Presenciei, privilegiada, essa criaçom colectiva: os sonhos de muitas e muitas persoas plasmavam-se na construçom dum cenário novo para o País, onde só podia haver Luz, cores e prosperidade. De facto, nos anos posteriores regou-nos umha cascata de estupendas no-vidades de que eu me nutrim. Entre elas, duas que se passárom na escola: desembarcárom os rapazes e, ao tempo, começamos a aprender galego. A minha relaçom com a língua, portanto, sem-pre estivo ligada ao bom convívio entre sexos.

Do galego sabia algumha cousa polo meu avô; porém, ins-talados no Ferrol, a língua continuou a ser um rumor longínquo que mui de quando em vez eu ouvia pola rua ou nalgum evento

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do Ateneu. Em Ferrol-Ferrol o uso do galego resultava tam raro como o papagaio que ainda se balançava na montra do Cantom (bom, o meu avô dizia que nom podia ser exactamente o mesmo, mas um descendente mui próximo). O galego era assim: umha cousa velha e doutro mundo, atraente mas asustadora. Eis a mis-tura de desgosto e prazer, de vergonha e intimidade, de cousa que nom acabas de compreender mas a que nom te podes resistir, que me produziu a língua galega.

O mesminho que quando aparecérom os rapazes nas salas de aulas.

Bem pensado, dalgum jeito vinhemos morar num país novo em certas cousas e vetusto noutras. A língua pertencia ao grupo das velhas, porque a nossa cidade a esquecera. Jogar futebol com os rapazes era das novas, porque desde que se inventara o des-porto nunca antes acontecera. Mas eles e nós estávamos em geral contentes com a situaçom; fora as primeiras semanas, vivemos a nossa reuniom com total naturalidade. Seria porque, como umha vez ouvim numha conversa de maes, na Galiza sempre houvera corredoiras… para além de, moinhos e lavadeiros, eiras e palhei-ros, como testemunhavam as cançons do meu avô. Mas, apesar dessa renovaçom atmosférica que ia chegando, o Ferrol da altura era como um meninho abandonado num orfanato que, pouco orgulhoso da sua genética, passava rápido e em silêncio sobre o passado, enquanto procurava umha justificaçom heroica para o seu destino presente que nom dava encontrado.

Isto era um pouco o que acontecia ao avô Jorge nos últimos anos. Aparentemente via-lo motivado e ativo, participava na vida cultural da cidade. Mas de portas para dentro nom acabava de acougar. A avó Merche e Mamá levavam bem os seus humores mutantes, faziam constantes piadas sobre ele. Eu nom, eu irrita-va-me, colhim-lhe xenreira. Porque era a persoa que mais queria, porque eu confiava nele e ele em mim nom… tam hermético, tam silencioso, tam inalcançável… como aquelas vezes em que eu, sendo umha nena, lhe perguntava polos anos da sua mocida-de.

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V

SAlgueiro

Hoje, 5 de Março, bem antes do equinócio, entrou a prima-vera em Compostela: as árvores centenárias e o Concelho ofe-recem-me todo um espéctaculo de flores acabadas de abrolhar. Desde fai sete anos, em frente da Alameda, contemplo a passa-gem das estaçons, cada vez mais coloridas por causa desta chu-va de fotons que bate continuamente sobre todos os elementos. Os astrónomos sabem que entramos na Primavera do Sol logo dum longo Inverno de treze mil anos. Mas esses ciclos cósmicos já eram conhecidos polos Druídas, a umha e outra beira do nosso oceano Atlante.

Quando era novo e passeava sob as ponlas dos carvalhos de Santa Susana com Scórpio e Sagitário, o sol alumava têpedo, tí-mido, como umha lâmpada de filamento de sessenta vátios. Hoje é um potente foco que pom em evidência até o mais escondido e fai distinguir claramente as nuanças infinitas nas cores. Estes dias o branco é tam branco que estende o seu espectro inquebrantável às quatro esquinas do Céu… aos pensamentos, aos rostos, às pa-lavras e acçons. Tudo se vê diáfano.

No rádio dos táxis a cantora Guadi Galego convida a “deixar-se levar pola luz que desmonta as ideias”. Essa é a Luz de que falo.

Hoje a nossa quadrilha dos Ss ficaria deslumbrada. Nós nas-cemos, crescemos e morremos num mundo baseado nas ideias, algumhas azuis, outras vermelhas, todas apontando cara um mesmo destino de progresso ilimitado… falsa, logo, a sua poli-cromia: umha caixa de Alpino de doze cores que, ao se juntarem por vontade ou por acaso, só conseguírom dar o tom da borra-lha, de cousa inerte, de água podre. As ideias podiam, de seu, ser mesmo brilhantes… mas delas ao acto, de pensá-las a fazê-las

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realidade, havia todo um caminho de desfiguraçom. Isso bem o sei eu. Porque nom se pode construir um mundo ideal se nom és um homem (ou mulher) íntegro, que se conhece e se vê de frente, que é consciente dos seus erros e decide melhorar onde cumpre, humildemente, que reconhece a todos os seus irmaos e, com res-peito, acompanha os seus processos.

Sob esta Luz imensa só vale já a Verdade. Eu aplaudo a que-da do véu; fica, por fim, descoberta a nossa real história. Com a chegada da Primavera solar ganhei, ganhamos, umha total liber-dade para proclamar, fazendo bom siso, a nossa mensagem alta, clara e dignamente, através das vozes, e sobretudo dos atos, destes netos e netas de alma que, sinceros, me venhem cumprimentar, que estreitam a minha mao. Elas e eles, estirpe de Bre-Oghám, difundem, com todas as letras justas, a Verdade que outros des-cobrimos e abraçamos um século atrás; que eu próprio estudei, fundamentei e transmitim nas aulas, nas palestras, nos artigos e entrevistas. E dou as Graças a todas aquelas pessoas que hoje plasmam na matéria essas ideias, a realidade que eu imaginei para Nós.

Ao final da vida, eu também quigem dar a entender a Ver-dade da minha geraçom num romance que finalmente escrevim com a excusa de Scórpio, explicar o porquê e para que desse caminho triste, que muitos figemos. Quigem dar voz ao silêncio, às cousas que calamos. Porque toda vida humana tem um sentido e é mui duro nom se exprimir direito por salvares a tua, nom che-gar a ser quem és, agarrar-te à tona das cousas para poder conti-nuar. De moços éramos lenha verde. De adultos fomos soturnos; alguns, como eu, sem querê-lo … porque tínhamos o cupom da dor cheio, como de metais pesados cumulados, como de metra-lha… porque a dor dificulta ver com claridade, com os olhos bem abertos sobre sim, deixar de julgar o outro, as circunstâncias, para decidir alquimizar internamente aquilo que for preciso.

Rafael vivia com essa consciência. E eu acabei compreenden-do que o único mistério que tinha era vontade e trabalho interno para ser umha pessoa boa, fiel a si própria, para cumprir a sua missom de vida e chegar a morrer feliz, satisfeito. Eu fum teste-munha disto, porque sei como viveu e como morreu.

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Pola minha banda, dediquei a vida a recolher com o máximo respeito e dignidade as cachiças dos conhecimentos que os meus mestres me ensinárom antes da Guerra, e que o que véu após dela nom conseguiu remover, porque, como croios de seixo, nas-cem e renascem da matriz mineral da Terra. Afanado neste labor, acreditei na irmandade de outros, acreditei em estratégias zen de saber-estar, aceitar e agir com prudência. Confundim, benevo-lente de mais, mediocridade com inocência. Tapei falhas alheias e próprias… por medo, por covardia, por auto-engano e, abofé, o tempo fijo-mo vir de volta e fum completamente traído.

Scórpio, meu amigo, eu sei que tu nunca terias calado ou, de fazê-lo (porque como eu foste um ser humano), terias rectificado, terias procurado as respostas, com espírito crítico e lealdade para contigo, sempre dentro da ética… Como tu, nós também podía-mos ter sido autênticos.

Chegou um momento em que a vida mo pujo claro e aceitei ver, usando o livre alvedrio, consciente das consequências. Já nom importava nada fora de mim. Importava era a minha dignidade e ser leal á Galiza, nom à ideia, mas a essa realidade brilhante que somos como povo, quando ativamos, desde o Coraçom, os nossos verdadeiros dons. Galiza, velho mundo sábio, natural, ilustrado na terra, no céu, no mar, nas arvóres e animais, no Além e no Aquém, na solidariedade, no Trabalho Sagrado, feliz, na gene-rosidade de compartilharmos, de cantarmos juntos, na acçom de Graças à Vida. Eu reconhecim-te, caro amigo, inspirei-me em ti. E finalmente falei, velho já mas contundente. E a minha voz, que vinha dos meus precursores, incitou a dos seguintes.

Hoje, enquanto fico calado, imortalizado em bronze o meu aceno convivial, contemplando com um meio sorriso a primavera da Terra, há muitas vozes já que falam desse mundo verdadeiro que foi, que é e que será. Como velho homem de letras gostaria de ler um romance que falasse disto tudo. Mas quem pensa em escrever a história de um mundo agora que agoniza toda umha civilizaçom?

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2º PREMIO

O TEITO DO QUARTO É UM PONTO A CRESCER

EREA FERNÁNDEZ FOLGUEIRAS

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LX

chéli

Como cada dia desde aquele ouço o telefone soar. Ouço a sua única consequência, cada dia repetida nos choros da Aurélia. O teito do quarto é um ponto azul, mas nom é noite. Já ninguém me chama de noite. Desde o dia aquele. Pela cortina insiste em atravessar o sol. A luz: branca, dura, afilada. Atendo, fala a Mer-che. Desempenha as tarefas da manhã. Tarefa primeira a de me erguer. Segunda a de me dar folgos. Terceira a de chamar pola Aurélia, como está, como dormiu ou comeu. Si estou a atendé-la. Dormiu a noite toda, digo. Digo que dorme ainda. Polas respostas arrasto anos que nom figem. Invento fatiga. Vale-me pra desviar o assunto da pena. Nom sinto pena, às vezes invento também. Lanço-a contra o amor que já esquecim.

Aquela noite, quando o telefone soou, a voz da Merche era distinta. Tremia. Entraram-lhe na casa, levaram-lhe seu homem para o interrogar. Mui assustada véu onda nós. Saímos no carro de meu pai, forçamos a liberdade do Jorge. Três anos passaram disto. Scórpio vinha de marchar. Aquela noite a Merche trouxo o medo e abriu-me quanto o medo traz atrás. Cheguei à casa. Cho-rei. Era a primeira vez desde que Scórpio marchara. Retrocede. Era a primeira de todas as vezes, a minha vez única. Aquela noite, cos olhos a arder, vim um ponto azul que brilhava na parede do quarto. Olhei largamente pra ele. No ponto imaginei Aurélia sem pai. Entom chorei pelo pai. Chorei entom porque o pai me falta-va, e também chorei as outras vezes que faltou.

Chorei meses, semanas, anos. Notícias de Santiago. Nomes de mulher. Cartas breves. A brevidade toda. A espera.

Três anos há da noite aquela. Scórpio vinha de marchar. Au-rélia vinha de nascer. Aurélia cresce por horas pra lhe dar peso ao passar delas, dessas horas, polos dias. A só cousa que ganhei

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foi uma agudíssima percepçom do tempo. Olho para o tempo se suceder como quem vê um filme. O tempo sucede como pontos de luz. Às vezes, como aquela noite, vejo os pontos projectados na parede do quarto. Avançam em fila, saltam sobre si, fusionam-se. Outras vezes os pontos aparecem fora no céu, som mais brancos e fam diferentes debuxos. Como as estrelas. Como pássaros a se formar, a se afastar e retornar, a se espaçar no ar, retardando, a recuperar depois densidade e ritmo. Cedo na manhá, antes do te-lefonema da Merche, eu olhava um enorme ponto de núcleo azul. Estava no teito. Crescia polas bordas e ficava roxo, laranja, ama-relo. Era como olhar pro lume por baixo. Polo ponto era que o dia nom entrava. E entom a Merche chamou. Hei de ir coa nena, digo, está a chorar. Nom chorava. Bem, bem, vai. Adeus: adeus.

A sua voz nunca mais foi a de quando lhe levaram o Jorge. Três anos há. Scórpio vinha de marchar, mas nom morrera. Mor-reria tempo depois. Madame Rafael Martínez Pinheiro. Há uns meses trouxeram um envelope à casa. Confio em que esta missiva chegará. Assinava Guilherme Maluquer, eu desconhecia. Madame, é-me indizivelmente doloroso. Desconhecia eu tal nome. Nom atormentá-la mais. Percorri com medo cada linha. Se trata do falecimento do seu, do meu, do querido e inolvidável Rafael. Apurei palavras, confirmei temores. Fum adiante e atrás no escrito. Fica da senhora. Fiquei olhando para o papel. Um ponto azul e roxo crescia-lhe do cen-tro para as bordas. Afectíssimo. Tudo tornara-se negro, era como se o queimasse. O 16 de março último. Barcelona. Ocorreu. Era como se queimasse a letra toda. A minha mais sincera condolência. Olhava a sua expansom, por trás de mim alguém falava. Nom me permitem. Nom ouvia nada. Maiores precisons. Apenas essas palavras na cabe-ça, coma traídas de mui atrás. Com grande afliçom. Palavras traídas e um ponto no papel. Afectíssimo, seguro, servidor. Um ponto. Guilherme Maluquer.

Ao momento vinhera a Merche. Passou a tarde na casa. O dia depois telefonou. Perguntou pela Aurélia e por mim. Como está-vamos. Como ela dormira ou comera. Se já acordara. Se acor-dara eu. Bem, dorme ainda. Dormiu a noite toda. Cada manhá. Estamos bem. Nom sinto a pena requerida. E do amor: marchou-me ao lhe marchar a condiçom.

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LXI

chéli

Nom marcharam os sonhos. Vai um exemplo. Caminhamos pola praia de mãos dadas. Aparece uma rocha na areia e tu te soltas de mim. Eu baixo o olhar, no lugar da rocha vejo a Aurélia. Abaixo-me para dar prova. Tu olhas para mim do outro lado. Por trás passa qualquer cousa, poderia ser um cavalo, mas nom chego a ver. O seu movimento repete-se como um eco na linha do mar. Entom a rocha estoupa. Uma nuvem de areia turva a minha visom. Ao se despejar o ar busco por ti. O sol é um ponto mui branco que cresce por diante dum ponto mui negro. Vê-se polas bordas. Olho para diante e no teu lugar vejo a Aurélia. Baixo os olhos de novo, arredor da rocha vejo o teu corpo deitado. A nena dá em chorar e eu corro acougá-la. Tu nom te moves, respiras forte, rítmico. Pareces dormir, abraçado à pedra de braços e per-nas. Pego na mão da Aurélia. A mão dela torna-se grande, tam grande como a tua. Juntas avançamos pola beira-mar. Ela guia-me praia adiante, decidida. Nom vejo o final, no último que vejo a areia é a mesma cousa que o céu. A cada tanto volto a cabeça para recuperar o teu corpo. Olho uma vez. Outra vez olho, mais outra. Olho ainda outra. Na seguinte nom distingo nada. Areia no ar denso. Qualquer cousa que atravessa, outra vez, alá longe. Move os contornos da paisagem e continua, mui rápido. Como um cavalo. Como um enorme insecto. A Aurélia chora. Eu vejo o correr da besta repetido na linha do céu.

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LXII

eugéniA

Um ponto branco no branco céu da cidade. Ensancha e es-toupa. Vejo o hotel de arriba, nada escuto, apenas qualquer cou-sa a zoar. Como se estivesse num helicóptero. O hotel está em ruínas, mas o quarto fica intacto. Apenas o teito perdeu, para eu poder vê-lo. Achego-me. O teu corpo está virado para um lado sobre a cama, na mão tés um objecto que recupera a nossa infân-cia. Uma caixa. Outro ponto branco estoupa, sacode-me. Agora o corpo é dele, deitado no piso, igualinho que daquela. Alguma cousa se move mui rápido no ar, como um aviom minúsculo ou um animal. Petam na porta. Agora no quarto apenas estou eu. Atendo. Apareces tu coa caixa na mão. Pecho. Por riba, o buraco mostra o céu. O céu é uma ameaça. Petam outra vez, vou abrir.

Nom há porta. Apenas tu, e a caixa, baixo da soleira.Ergo-me: ouço que alguém bate na minha. Ao abrir vejo um

homem. O rosto é-me familiar. Presenta-se: Salgueiro, lembra? Um dos amigos de sua irmá, eh..., da universidade. Há muito tempo já. Eu assinto. Ele di que lamenta a minha perda. Pergun-to-lhe o que fai na minha casa e responde que está à procura de noticias. Que vinha de chegar à Galiza. Que se calhar eu saberia do acontecimento, eh... trágico..., da tragédia, polo comandante. Que naquela altura ele nom tinha maneira de me avisar. Polo co-mandante soubem, sim. Deitei as palavras nele como quem deita uma desgraça. Passou muito tempo daquilo, digo; diga-me o que quer ou marche, faga o favor.

–Verá, Eugénia –oscila. –Eu morava em Barcelona quando aconteceu... Verá, eh... Nom sei se você conhece os particulares daquelas horas. O que pensará você do final da sua irmá... –Nada tenho eu que pensar a respeito. –Bem, eh... Escute. Eu vim aqui para lhe dizer do Scórpio, de Rafael, que ele era casado, que era

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pai... Bem, igual que sua irmá, que também casara, certo? En-tom, eh, de seguro você nom pensa do encontro que...; bom: com certeza considerou adequada uma, eh..., discreçom. Vim aqui para me assegurar; pola dor da família, já compreende. –Olhe, digo, eu nom sou amiga do drama. Nom me interessa a foto final. Faga-me o favor de sair da minha casa. –Desculpe, Eugénia, se-nhora... Nom queria despertar-lhe dor nenguma. Eu... Verá. Eu também nom devo nada a esta história, caiu-me em cima como uma pedra, como... como um compromisso coa época. Nem eu mesmo compreendo, verá...

–D’acordo, olhe... Passe. Ofereço-lhe um café.Salgueiro entrou na casa e sentamos no banco da cozinha.

Acalmou o seu gesto e começou a contar-me. Que era consciente da pena que eu devia sentir, que ele continuava mui afetado por ter perdido Scórpio. Mesmo se nom eram íntimos. Contou-me da estranha implicaçom dele. Falou-me da universidade. Do ro-mance a meio escrever. Dixo que já nom gostava dos romances, que nom estavam os tempos para escrever... Para romances, pre-cisamente. Que quem sabe se por isso assumiu outra funçom na história. Nom escrever, mas... Fazer-lhe um final. Acalmar-lhe a dor prescindível. –A dor do relato, compreende?–. Pensei que isso era já fazer romance. O derradeiro gesto do escritor. Compromis-so brando e enfeitado. Vir-me falar da Júlia e do Scórpio, a tantos anos de Santiago. A tantos meses das suas mortes. Vir falar da esposa do Scórpio, considerá-la variável de uma trama. Uma dor a evitar ou a conter. A acalmar-lhe, dizia. Que já tivera dabondo.

–Nom sim?Sim. Ficamos calados. A luz branca dos sonhos instala-se no

meu recordo. Um compromisso coa época. Aparece a Júlia baixo a porta. O corpo do Scórpio deitado no piso, deitado na cama depois. Tantos anos atrás. Como me reconfortava entom a sua seriedade. O seu silêncio e o meu. E como depois tudo se atrope-lara. Violência chama violência. Júlia na porta, outra, a mesma. Scórpio a sair do quarto, nós a marchar de Santiago. Ela volta cos pais e eu mudo de cidade. Depois: nada. Que namorou dum militar soube pola carta em que me informava do casamento. A

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seguinte assinava seu homem. Comunicando a morte. Júlia mar-chara com ele a qualquer cidade do sul. Mas morrera em Barce-lona. No bombardeio dum hotel. Junto do capitám Rafael Mar-tínez Pinheiro. Rafael Martínez: Scórpio? Sentim calor, mareo. Uma luz branca cresceume nos olhos e foi para trás ocupando a minha cabeça toda. A dor da mulher do Scórpio. Nom da Júlia. A rapaça de que tanto ouvira em Santiago, a sua moça de sempre,

-Célia. A Chéli.A Chéli. Salgueiro deu-se a missom de mirar por ela. Da mor-

te da Júlia eu nom falei com ninguém. Depois dela já nom tinha família de que me desprender. Nunca voltei a Santiago. Nom vim Júlia nem conhecim o seu comandante. Este homem, Salgueiro, também anda a remendar o meu relato. Nom toda a história que escreve é a da Chéli. Saberá? Saberá que nom é a do Scórpio em absoluto?

LXIII

SAlgueiro

Voltei para a Galiza entrado o 40. Havia um ano que cruzara a fronteira francesa, entom convencido de que a minha viagem era num sentido e apenas num. Aventurei-me. Nom era fácil pa-rar acá. Nom sabia mesmo se quereria parar, quando chegasse. Sabia, sim, o que vinhera fazer. Queria fazê-lo? Há tempo que despedim a lógica das apetências. Imagino o preciso momento em que erguim a mão para lhe dizer: vai. Vivim a história de Scórpio como uma premoniçom. Em mui novo fiquei pendendo dele. Seguim os seus passos, lim os seus livros. A sua vida opaca, a porta pechada. Nengum rumor pudo deitar a sua imagem. A in-tegridade, a inteligência. A imagem de Scórpio passava por cima dele igual que o alcume lhe pisoteava o nome. Inventei a perso-nagem? Nom! Descrevim! A sua ficçom já estava posta. Escrever dele era como levar um diário. Apenas devia orientar o foco, e... Era... Era fazer uma crónica.

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Quando o encontrei em Barcelona cria ter zafado dele. Do que ele representava. A vocaçom? Já nom queria escrever, ou bem pensava: nom som tempos de meramente observar. Mudara a minha causa. No momento pensei que tomara a minha causa. Scórpio também, aparentemente. Chegara a capitám. Ao sabê-lo na cidade pensei se continuaria a fazer poemas. Escrever poe-mas ainda era pior do que escrever romances. Pensei no romance por primeira vez nesses anos. As suas paginas me passaram por diante; iam rápido mas puidem pegar em certas frases e palavras. Quanto havia que nom parava nelas? Era impróprio escrever? Azaña, a Presidência, a República tirara de mim. Tempo nom me fora. Porém houvo quem puido acompassar. Estiveram es-ses brigadistas, por exemplo. O Orwell como nós em Barcelona. Descreviam Espanha como uma guerra da Europa. Uma guerra mundial contra o imperialismo. Uma toma de posiçom. Há lín-gua capaz de dizer isto? Há forma para tal compromisso? Rescre-ve a guerra a pergunta polo estilo?

Soubem dos encontros de Scórpio e Castelao em Madrid. Mi-litar e deputado. Falariam eles da escritura? A minha vocaçom marchara ao me separar de Scórpio, e ao morrer ele retornava. Quando vim o seu corpo junto da Cleo no hotel sentim que qual-quer cousa me prendera. Sucedeu assim. Uma mão entra. Depo-sita-me uma pedra no ventre. Por trás dos meus olhos instala luzes variáveis. No romance, uma épica.

No bombardeio compreendim que parte da minha vida pas-sava por trabalhar na dele. De quê maneira, desconheço. Acordo cada noite assustado; nos pesadelos as explosões transformam-se em pontos negros de luz. Luz negra brilhante. Assumo que som recordatórios. Imagino buracos no espaço a engolir toda a maté-ria. Vim à Galiza para me ocupar de quem rodearam Scórpio. Se isto me sair bem poderei decidir se fico ou marcho para o exílio. Se calhar ter regressado já é uma escritura. De onde tirei este compromisso? É meu? Em que consiste? Que ninguém no Ferrol saiba da Cleo no hotel: isto, por exemplo, me concerne. Pechar uma possibilidade e inventar outra: por exemplo, que o Scórpio morreu só. A mulher que vive atrás desta porta há-me descobrir

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se é possível. Fazer ou nom fazer parte do relato. Passou o tempo, intervir é mais complexo. Intervir é já escrever? É impróprio? De quem é a dor que eu acalmo? Que relato contarei depois? Aguar-do. Finalmente ela abre. Boa tarde, senhora. Salgueiro, lembra?

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