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  • 8/18/2019 Princípios e Perspectivas Da Agroecologia - Francisco Roberto Caporal, Edisio Oliveira de Azevedo (Orgs) - Instituto…

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    PRINCÍPIOS E PERSPECTIVASDA AGROECOLOGIA

    FRANCISCO ROBERTO CAPORALEDISIO OLIVEIRA DE AZEVEDO

    (Orgs.)

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    © 2011 - INSTITUTO FEDERAL DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA DO PARANÁ –EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

    Irineu Mário Colombo

    Reitor

    José Carlos Ciccarino

    Diretor Geral de Educação a Distância

    Ricardo Herrera

    Diretor de Planejamento e Administração EaD - IFPR

    Mércia Freire Rocha Cordeiro Machado

    Diretora de Ensino, Pesquisa e Extensão EaD - IFPR

    Marcelo Camilo PedraNilton Menoncin

    Coordenadores do Governo Federal - SETEC/MEC

    Otávio Bezerra SampaioSilvana dos Santos MoreiraCristina Maria AyrozaSandra Terezinha Urbanetz

    Coordenadores do Instituto Federal do Paraná/EaD

    Ester dos Santos OliveiraFlávia Terezinha Vianna da SilvaTelma Lobo Dias

    Jaime Machado Valente dos Santos

    Revisão Editorial e Diagramação

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    O presente livro é uma coletânea de quatro artigos já disponíveisna literatura, elaborados por Francisco Roberto Caporal, José AntônioCostabeber, Gervásio Paulus e João Carlos Costa Gomes e um artigoinédito do Professor Edisio Oliveira de Azevedo. Os autores vêm, aolongo de muitos anos, defendendo a Agroecologia como referencialteórico para a sustentabilidade da agricultura e como ciência norteadorade suas intervenções no campo prossional.

    O primeiro capítulo trata sobre Epistemologia em Agroecologia.Para os praticantes desta nova ciência é fundamental entender asbases epistemológicas que dão sustentação a este novo paradigma,até mesmo para evitar os reducionismos ou o equivocado uso dapalavra Agroecologia, muitas vezes como se fosse mais um tipo deagricultura. O texto de João Carlos Costa Gomes inicia com umaabordagem histórica sobre a construção da epistemologia da ciência,destacando alguns de seus principais autores, chegando aos debatescontemporâneos sobre ciência, para propor, nalmente, o “pluralismoepistemológico na Agroecologia”, onde destaca a pluralidade decontextos e soluções para a produção e circulação do conhecimentoagrário; os saberes tradicionais como fonte de conhecimentos e práticas válidas, assim como a implicação do contexto social e suas demandascom respeito à produção e circulação deste conhecimento agrário.

    Apresentação

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    No segundo capítulo, o leitor encontrará um texto de autoria deCaporal, Costabeber e Paulus, onde os autores procuram ampliar adimensão dos debates em torno da Agroecologia, mostrando que setrata de uma ciência do campo da complexidade. Partindo da perspectivada ética que requer este novo paradigma, os autores mostram que aAgroecologia é uma matriz disciplinar ou um paradigma que buscasuperar os limites da ciência convencional na medida em que, aocontrário do reducionismo paradigmático que caracteriza a ciêncianormal, a Agroecologia é uma ciência integradora de diferentesconhecimentos. Neste sentido, os autores dão alguns exemplos da

    contribuição de diferentes disciplinas à construção do conhecimentoem Agroecologia, sem perder de vista que suas bases epistemológicasdestacam a importância dos conhecimentos e saberes dos agricultorese camponeses acumulados ao longo dos processos de coevolução doshomens com seus agroecossistemas.

    O terceiro capítulo trata sobre a Agroecologia como um enfoquecientíco necessário para apoiar a transição para agriculturas maissustentáveis. Neste texto o autor recupera elementos da epistemologiaque são fundamentais para o redesenho de agroecossistemas mais

    sustentáveis, destacando, ainda alguns elementos de uma Agroecologiaaplicada, assim como sua importância para a segurança alimentar.O quarto capítulo é uma proposta para o debate acerca da

    construção de um Plano Nacional de Transição Agroecológica. Oautor argumenta que o avanço da transição Agroecológica ± ou seja, aadoção dos princípios e bases epistemológicas da Agroecologia - é oúnico caminho para reduzir os impactos ambientais hoje presentes emnossa sociedade e arma que isto requer um plano e um conjunto depolíticas públicas, sem as quais a transição continuará em sua marcha

    lenta, enquanto o avanço dos danos ambientais e impactos sociaisseguirá em marcha acelerada. Ademais, apresenta alguns dados sobrea dependência agroquímica da agricultura dita moderna, fala sobreproblemas nacionais como a redução da biodiversidade e aumentodas contaminações, alertando para os riscos que o atual modelo deagricultura pode gerar inclusive para a nossa soberania alimentar. Porm, o texto apresenta algumas ideias para iniciar o debate acerca de umplano nacional de transição agroecológica.

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    No quinto capítulo é apresentado um texto para discutir os desaosque a Agroecologia tem para enfrentar e as perspectivas para suaconsolidação enquanto proposta alternativa ao modelo agroquímicoexportador, destacando a necessidade de se ampliar os espaços deformação técnica dos prossionais da Agroecologia. O texto levantaquestionamentos sobre o papel do poder público, das Instituições deensino, pesquisa e extensão e das organizações sociais na defesa de umnovo paradigma para a agricultura brasileira.

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    O Professor Francisco Roberto Caporal, é graduado em Agronomiacom Mestrado em Extensão Rural e Doutorado em Agroecologia,Campesinato e História. Foi diretor substituto e coordenador geralde ATER e educação do Departamento de Assistência Técnica eExtensão Rural (DATER), da Secretaria da Agricultura Familiar,do Ministério do Desenvolvimento Agrário, no período de 2003 a2010. Atualmente é Professor de Extensão Rural na UFRPE. Tem

    livros e artigos publicados sobre Agroecologia, desenvolvimento ruralsustentável, meio ambiente e agricultura familiar. É o atual Presidenteda Associação Brasileira de Agroecologia.

    O Professor Jose Antonio Costabeber, é Engenheiro Agrônomocom Mestrado em Extensão Rural e Doutorado em Agroecologia,Campesinato e História. Foi extensionista rural da EMATER/RS-ASCAR de 1978 a 2009. Atualmente é Professor noDepartamento de Educação Agrícola e Extensão Rural, Coordenadordo Curso de Agronomia da UFSM. Publicou artigos em periódicosespecializados, capítulos de livros e livro Agroecologia, Extensão Rurale Desenvolvimento Rural. É vice-presidente (gestão 2010-2011) daAssociação Brasileira de Agroecologia.

    O Engenheiro Agrônomo Gervasio Paulus é graduado pela UFSMcom Mestrado em Agroecossistemas pela UFSC. Atualmente écoordenador de projetos da Associação Sulina de Crédito e AssistênciaRural. Tem experiência na área de Agronomia, com ênfase emAgroecologia e Agriculturas de Base Ecológica.

    Os autores

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    João Carlos Costa Gomes é graduado em Engenharia Agronômicapela UFPEL com Mestrado em Extensão Rural e Doutorado emAgroecologia e Desenvolvimento Sustentável. É pesquisador daEmpresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária ± EMBRAPA, comatuação em Agroecologia, agricultura familiar, desenvolvimento rural,transferência de tecnologia e gestão de pesquisa, desenvolvimento einovação.

    O Professor Edisio Oliveira de Azevedo é graduado em MedicinaVeterinária com Mestrado e Doutorado em Medicina Veterinária

    Preventiva. É responsável pela disciplina de Extensão Rural daUniversidade Federal de Campina Grande e Professor colaborador docurso de Tecnólogo em Agroecologia do Instituto Federal do Paraná.É coordenador do Núcleo de Extensão e Pesquisa em Agroecologiade Patos ± NEPA e tem experiência com difusão de tecnologias,Agroecologia, agricultura familiar, extensão rural e reforma agrária.

    Tenham todos uma boa leitura.

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    Sumário

    Capítulo 1 ±As bases epistemológicas da Agroecologia . . . . . . . . . . . . . 13

    1.1 Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .131.2 Da Filosoa da Ciência TradicionaI à

    Nova Filosoa da Ciência Tradicional . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .14

    1.3 Neopositivismo: Círculo de Viena . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .19

    1.4 Racionalismo Crítico: Karl Popper (1902-1994) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .21

    1.5 A Nova Filosoa da Ciência . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .22

    1.6 Debates contemporâneos sobre a Ciência . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .26

    1.7 Pertinência de um paradigma mais exível na Ciência . . . . . . . . . . . . . . .28

    1.8 A articulação entre conhecimento cientíco e cotidiano . . . . . . . . . . . . . .31

    1.9 Participação dos atores sociais “implicados” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .33

    1.10 O Pluralismo Epistemológico na Agroecologia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .35

    1.11 Como conclusão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .39

    Capítulo 2 ±Agroecologia: matriz disciplinar ou novo paradigma para odesenvolvimento rural sustentável . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 45

    2.1 Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .452.2 A ética na Agroecologia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .472.3 Agroecologia como matriz disciplinar integradora: um novo paradigma . .502.4 Considerações nais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .74

    Capítulo 3 ±Agroecologia: uma nova ciência para apoiar atransição a agriculturas mais sustentáveis . . . . . . . . . . . . . . 83

    3.1 Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .833.2 O que não é Agroecologia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .863.3 O que é Agroecologia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .88

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    3.4 Agriculturas alternativas de base ecológica e

    agriculturas mais sustentáveis . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .953.5 Alguns elementos de uma Agroecologia Aplicada. . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9 93.6 Segurança alimentar e nutricional: com agricultura química? . . . . . . . . . .1053.7 Considerações nais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .109

    Capítulo 4 ±Em defesa de um plano nacional de transiçãoagroecológica: compromisso com as atuais enosso legado para as futuras gerações . . . . . . . . . . . . . . . . .123

    4.1 Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 123

    4.2 Alguns dos problemas da Revolução Verde . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .1254.3 O problema dos venenos agrícolas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .1274.4 A questão dos fertilizantes químicos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .1314.5 A perda de biodiversidade e o desmatamento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .1344.6 Degradação, contaminação e perdas de solo e água . . . . . . . . . . . . . . . 1374.7 A Agroecologia como enfoque cientíco orientador

    da transição agroecológica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1404.8 Elementos para um Plano Nacional de

    Transição Agroecológica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1414.9 Considerações nais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .150

    Capítulo 5 ±D esaos e perspectivas da Agroecologia . . . . . . . . . . . . . . .167

    5.1 Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1675.2 Surgimento das organizações não governamentais,

    o êxodo rural e a agroecologia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .1685.3 As redes de articulação e a comunicação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1715.4 A formação de agroecólogos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .1725.5 A extensão rural como instrumento transformador . . . . . . . . . . . . . . . . . .1755.6 A nova lei de ater . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .177

    5.7 Crédito agrícola e o discurso do agronegócio . . . . . . . . . . . . . . . . 1785.8 Perspectivas da agroecologia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 181

    Referências . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 185Considerações gerais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 187Bibliograa comentada . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 189

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    As bases epistemológicasda Agroecologia

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    As bases epistemológicasda Agroecologia11

    João Carlos Costa Gomes

    1.1 Introdução

    Antes de tentar mapear as bases epistemológicas da Agroecologia,considero importante explicitar o que se entende por epistemologia.Dependendo da corrente de pensamento, o conceito de epistemologia

    pode assumir di erentes signicados. Aqui o conceito epistemologiaé utilizado com o sentido de teoria do conhecimento, englobandotanto o conhecimento cientíco como os saberes cotidianos, no caso,expressados na sabedoria dos agricultores, também é denominadoconhecimento “tradicional”, “local” ou “autóctone”. Este esclarecimentoindica que a análise exclusiva dos conhecimentos cientícos deve carno campo da losoa da ciência.

    A necessidade de estudar as bases epistemológicas da Agroecologia

    é decorrência do que normalmente se denomina crise do paradigmaocidental, na agricultura expressada como a crise do modelo1 Este texto recupera alguns tópicos discutidos com mais pro undidade na tese de doutorado

    do autor “Pluralismo metodológico en la producción y circulación del conocimiento agrario.Fundamentación epistemológica y aproximación empirica a casos del sur de Brasil” (Gomes,1999) e pode ser encontrado em: GOMES, J.C.C. Bases epistemológicas da Agroecologia.In: AQUINO, A. M. de; ASSIS, R. L. de. (Org.). Agrecologia: Princípios e técnicas parauma agricultura orgânica sustentável. Brasília-DF: Embrapa In ormação ecnológica, 2005,p. 71-99. Fonte: http://www.coptec.org.br/biblioteca/Agroecologia/Artigos/bases%20epistemol%F3gicas%20da%20Agroecologia%20-%20Costa%20Gomes.pd

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    produtivista, baseado nos preceitos darevolução verde . Muitosestudiosos consideram a Agroecologia comoo novo paradigma . Paraevitar que se busque a saída para a crise usando as mesmas erramentasresponsáveis por ela, ou seja, para que a base epistemológica na buscade soluções para os problemas contemporâneos, da agricultura emparticular e da ciência em geral, não seja a mesma epistemologia quesustenta o paradigma responsável pelo surgimento de seus problemas,é importante azer-se um mapa, ainda que breve, das característicasdo paradigma em crise, eito através de breve reconstrução crítica dasconcepções teóricas do conhecimento cientíco técnico, permitindouma refexão sobre o progresso da moderna ciência ocidental, evitandoque a busca dasbases epistemológicas da Agroecologia venha seguir porum caminho equivocado.

    1.2 Da Filoso a da Ciência TradicionaI à NovaFiloso a da Ciência Tradicional

    Como Filosoa da Ciência radicional caracteriza-se o surgimento

    do discurso epistemológico moderno, identicando os traços quedeniram a ase pioneira do Modelo Empirista de Ciência: empirismobritânico, racionalismo e positivismo moderno, a partir dos autores maisimportantes desses movimentos, respectivamente Francis Bacon, RenéDescartes e Auguste Comte. De orma sintética, durante os séculos XVI, XVII e XVIII sucederam-se tanto o desenvolvimento da ciênciacomo os intentos de teorizá-la. Aos es orços pioneiros de Copérnico,Kepler e Galileu para instaurar um método experimental e de Baconpara teorizá-lo, oi acrescentada a losoa mecanicista de Descartes,considerada a primeira das correntes losócas da modernidade. Aarmação da autonomia da razão não é exclusiva do racionalismo,mas a partir deste, de todo o pensamento moderno. Mais tarde Humematura o empirismo e Isaac Newton conjuga os descobrimentosdos pioneiros para dar um decisivo giro na losoa natural, onde amatemática deixa de ser o undamento para converter-se em meioauxiliar. No século XIX, Auguste Comte renova o empirismo sob o

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    nome de “positivismo” e, ao mesmo tempo, estabelece os undamentosda sociologia positivista.

    Uma análise histórica sobre esta evolução é importante por doismotivos:

    a. Nem tudo signica o mesmo . As críticas ao processo deconsolidação da ciência moderna e ao modo de apropriaçãode seus resultados, são dirigidas ao “modelo cientícoempírico”, “baconiano”, ao “paradigma cartesiano”, ao“positivismo” ou ao “reducionismo”, desconhecendo queexistem di erenças conceituais e várias re ormulações nessaspropostas, ainda que no seu conjunto representem decisivopapel na consolidação do que se reconhece como “ciência”,“metodologia cientíca”, “paradigma ocidental”.

    b. Caráter progressista das propostas para o que era domi-nante nas épocas em que surgiram . As críticas contem-porâneas associam autores e conceitos com a manutençãodostatus quo e com práticas cientícas conservadoras, não

    obstante a contextualização histórica. A consolidação daciência (e do conhecimento cientíco) era percebida, àépoca, como a melhor estratégia e talvez a única, para nocampo das ideias en rentar o dogmatismo e dominaçãoda igreja, os governos autocráticos e a ordem estabelecida.Não se trata de uma de esa à críticas que são verdadeiras,mas de resgatar o quadro geral de então e o papel críticodesses autores, para o rompimento do que era dominantena época.

    1.2.1 Empirismo britânico: Francis Bacon (1561-1626)

    Em Bacon é central a ideia de domínio sobre a natureza a partir daexperiência e dos sentidos. Seu modelo de ciência tinha como objetivoo conhecimento para o controle sobre a realidade e apropriação danatureza. Bacon era consciente do papel undamental reservado àciência no progresso uturo da humanidade.

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    Bacon parte dos atos empíricos do mundo natural para promovera dúvida crítica com respeito ao saber tradicional; da investigaçãometódica e da classicação sistemática da in ormação, baseada em dadosobjetivos; da rigorosa experimentação e da aplicação essencialmenteprática de todo o conhecimento. O método cientíco representa umconjunto de regras para observar enômenos e in erir conclusões a partirda observação. O método de Bacon era o indutivo, baseado em regrastão simples, que “qualquer que não osse um deciente mental poderiaaprendê-las e aplicá-las”, e também in alíveis “bastava aplicá-las para

    azer avançar a ciência”. A crença acrítica da existência de tal métodoe de que sua aplicação não requer talento nem preparação, representauma espécie de metodolatria, hoje objeto de pesadas críticas.2

    Sete são os princípios denidores da concepção empirista clássicade ciência, presentes a partir de Bacon:

    1. A racionalidade cientíca é vista como auto-subsistentee lacrada em si mesma (autosuciente e echada à trocassimbólicas com outras áreas de investigação);

    2. Na ótica empirista não existe teoria própriamente dita, doplano da observação se passa à generalização, a partir de umnúmero signicativo de casos;

    3. A desconsideração por hipóteses, não levando em conta opapel das antecipações no processo de denição “do que”observar, ignorando que são elas que trans ormam umcampo observacional em campo problemático;

    4. O modelo indutivista de explicação, que é consideradocomo o único capaz de abordar questões empíricas;

    5. As unidades de conhecimento (os dados dos sentidos), tem valor epistêmico próprio (tesis do atomismo metodológico);

    6. O modelo cumulativo de progresso, onde a evolução daciência consiste no crescente desvelar ou gradual reticaçãode erros;

    2 Ver: Bunge (1985) e Oliva (1990), entre outros.

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    7. A tese do poder baseado no saber (que torna o exercício daautoridade intelectual sempre legítimo).

    Além destes, ao negar a existência de sujeito epistêmico (oinvestigador é considerado um mero catalogador de enômenos), oempirismo colocou exagerada importância nas regras metodológicas,ao ponto de chegar a uma espécie de “absolutização normativa”(OLIVA, 1990).

    A concepção baconiana de ciência desconheceu importantesconquistas cientícas e metodológicos de sua época, assimcomo a importância da matemática para a ormulação de leis eteorias cientícas. Supondo que a produção cientíca necessiteda participação de elementos como ciência anterior, observação,hipóteses, matemática e experimento planejado, pode-seconcluir que Bacon desconsiderou três princípios decisivos:1. Formação de hipóteses orientadoras num contexto problemático;2. Expressão matemática dos conteúdos interpretativos; e3. Proposiçãode teorias unicadoras no campo experimental.

    Não se pode negar que Bacon, como um pro eta, vislumbrouque o domínio do homem sobre a natureza dependia da ciência, eque esta deveria se desenvolver através do trabalho em equipe e dapesquisa planicada. O empirismo inaugurado por Bacon acaboutrans ormando-se numa espécie de epistemologia natural, sendo seusprincipais de eitos a tentativa de absolutizar o conjuntural e adaptara racionalidade cientíca a rígidos esquemas losócos. ais de eitosse devem ao pioneirismo no en rentamento aos canones da época e adogmatização de certos princípios losócos.

    1.2.2 Racionalismo: René Descartes (1596-1650)O racionalismo, corrente losóca à que pertence Descartes

    surgiu em oposição a losoa empirista britânica, representada porBacon. Sua contribuição é associada às bases losócas do paradigmaque dominou amplamente a produção cientíca contemporânea, oparadigma “newtoniano-cartesiano” (a Newton é atribuída a base“mecanicista” do paradigma).

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    No racionalismo, os conhecimentos válidos e verdadeiros sobre arealidade são procedentes da razão e não dos sentidos e da experiência.A oposição se re ere a onte do conhecimento e não aos objetos. ComoBacon, Descartes tem claro o objetivo de domínio sobre a natureza,pelo qual era “possível chegar a conhecimentos muito úteis para a vida,encontrando uma losoa prática pela qual o conhecimento da orça eações do ogo, da água, do ar, dos astros, dos céus e dos demais corposque nos rodeiam, permitiriam aproveitá-las para todos os usos paraos quais são próprias, nos tornando donos e possuidores da natureza,dis rutando sem nenhuma pena dos rutos da terra”.

    Descartes parte de princípios gerais para posteriormente utilizara dedução. Em seu Discurso do método, de 1637, az uma análise dométodo, para o qual dene quatro regras universais:1. Não admitircomo verdade nada que não seja evidente;2. Cada diculdade deve serdividida em tantas partes quanto seja possível e necessário para poderresolvê-las;3. Ir sempre do simples ao complexo; 4. Fazer descriçõestão completas e contagens tão gerais, para que se tenha a segurança denão esquecer nada.

    A opção pela dúvida metódica, como ponto de partida, oi levadaa radicalidade, chegando próximo ao ceticismo. Descartes tambémconava no saber como verdade absoluta, expressado com o célebrecogito ergo sun, “penso, logo existo”, admitido como o primeiro princípioda losoa que buscava. A dúvida cartesiana é a pura expressão de umaatitude de desconança e de cautela, exigindo evidência indestrutível,mas principalmente é um método de pesquisa positiva, pois a armaçãoque sobreviva aos ataques da dúvida metódica, levada aos extremos

    do rigor, é a verdade buscada e servirá de sólido undamento para odescobrimento de outras verdades.1.2.3 Positivismo: Auguste Comte (1798-1857)

    Do ponto de vista epistemológico, o conceito de positivismo estámuito relacionado com o modo de entender a natureza do saber e doconhecimento. O conhecimento positivo é proveniente dos sentidos e

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    dene que os “ atos” são os únicos objetos possíveis de conhecimento.O positivismo de Comte, nascido na atmos era cultural da burguesiaindustrial, estabelece uma série de armações com pretensão de verdadee uma teoria da realidade que trata da ruptura da antiga unidade sociale do desajuste e crise da sociedade, como consequências da revolução

    rancesa e da situação criada pela industrialização.Frente a sociedade do antigo regime, baseada em princípios

    teológicos e regida pelos sacerdotes ou teólogos e pelos militares, asociedade industrial se unda sobre a ciência. São os sábios e os cientistas

    os responsáveis pela sua direção espiritual. O desaparecimento de umtipo de sociedade e o surgimento de outra é o que constitui o estadode crise da época de Comte. O processo industrial, com sua ideologia,estava destinado a ser o marco da nova ordem social. O processo deindustrialização implica que o homem não só pode mas tem quetrans ormar a natureza, o que signica a potenciação de uma razãoprática dominadora, atitude assinalada por Bacon e prosseguida pelolema cartesiano: “conhecer para dominar, dominar para apropiar-se”.

    O positivismo assume a é no progresso da ciência como única ormade conhecimento válido. A ciência proporciona um conhecimentopuramente descritivo, que deve estender-se a todos os campos dosaber, incluindo o homem. odo conhecimento para ser autênticodeve ser undado na experiência e toda proposição não vericávelempíricamente deve ser erradicada da ciência. O positivismo oi umaespécie de “puricação” da atividade intelectual (pelo menos para seusde ensores). O rigor, a honestidade, a asséptica prudência dos cientistasé o que o positivismo pretendeu levar a toda atividade intelectual. Mas,

    é inegável, que essa intenção derivou para o reducionismo e exageroscientícos, hoje objeto de críticas.

    1.3 Neopositivismo: Círculo de Viena

    Historicamente, a constituição de uma teoria da ciência comodisciplina losóca autônoma é devida a um grupo de lóso os ecientistas que na década de 20 reuniu-se em Viena. O grupo, conhecido

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    como “Círculo de Viena”, undou uma das mais infuentes e poderosascorrentes losócas e epistemológicas: o neopositivismo, tambémconhecido como empirismo lógico ou positivismo lógico. A autocríticae a honestidade intelectual, características do grupo, impuseram umasérie de revisões e modicações em suas posições ao longo dos anos.

    Durante a década de 1930 a 1940, quando o neopositivismoganhava maior orça, o Círculo de Viena já estava em processo dedissolução. Alguns aceitaram cátedras no exterior, dois aleceram (umassassinado por um discípulo anático), e os outros, apesar de pouca

    atividade política, por seu temperamento crítico e cientíco, tornaram-se suspeitos ante os governos clericais de direita e ainda mais ante osnazistas, obrigando a maioria a ir ao exílio.

    Entre as características mais importantes do neopositivismo estáa intenção de unir o empirismo com a lógica ormal simbólica; atendência antimeta ísica, expressada na questão da vericabilidadedos enunciados como critério de signicância; e o desenvolvimentoda tese da vericação. A intenção do Círculo de Viena oi dotar alosoa com os instrumentos da lógica matemática. Na verdade, ummétodo rigoroso de controle de seus resultados, da mesma maneiraque o desenvolvimento das ciências naturais, na época, estava ligado àmatemática. A completa eliminação da meta ísica era a razão para queo Círculo de Viena estivesse vinculado ao positivismo.

    Este ideal de ciência, utilizado com êxito na ísica, oi propostotambém para as ciências sociais. Era a tese do sicalismo, um programade unicação da ciência que negava a existência de di erença entre asciências naturais e as ciências sociais. Os neopositivistas, seguindo atradição empirista, eram partidários do método indutivo: observaçãode grande número de casos avoráveis, diretamente na realidade, atravésda experiência e da vericação de hipóteses. Entretanto, en rentaramum problema lógico: a acumulação de casos avoráveis não é sucientepara a vericação de modo conclusivo de enunciados ou hipóteses,pois sempre estará aberta a possibilidade de que um único exemplonegativo os re ute. O exemplo clássico desta impossibilidade lógica é o

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    do “cisne negro”; ainda que todos os cisnes conhecidos sejam brancos,sempre existe a possibilidade de que surja um di erente. Isso quer dizerque a busca do conhecimento verdadeiro, objetivo, é algo impossível deser alcançado do ponto de vista lógico.

    1.4 Racionalismo Crítico: Karl Popper (1902-1994)

    Popper assinala dois problemas à epistemologia: o do conhecimentodo sentido comum e o do conhecimento cientíco. Como alguns lóso os,aceita que o conhecimento cientíco só pode ser uma ampliação doconhecimento do senso comum, mas que a coincidência acaba aí. Poppercentra suas preocupações epistemológicas no desenvolvimento e noaumento do conhecimento cientíco e desenvolve o racionalismo críticoem oposição aos critérios neopositivistas de busca da verdade na ciência.

    Em lugar da impossibilidade lógica de chegar ao conhecimento verdadeiro pela vericação de hipóteses, Popper propõe a alsabilidadecomo opção. Como as incoerências do princípio da indução e asdiversas diculdades da lógica indutiva, o que denominou “problema

    da indução”, eram insuperáveis, propôs a contratação dedutiva deteorias ou método dedutivo de contratação. O método de contrastarcriticamente as hipóteses e de escolher uma entre elas parte daapresentação de hipóteses provisórias. Uma vez apresentada a títuloprovisório uma nova ideia ou hipótese a contratação permite que seextraiam conclusões provisórias sobre elas. Ou seja, o conhecimentoserá sempre provisório, nunca denitivo nem verdadeiro. Dito deoutra maneira, Popper não exige que um sistema cientíco possa serselecionado de uma vez por todas, para sempre, em sentido positivo;mas sim que seja suscetível de seleção em um sentido negativo pormeio de contrastes ou provas empíricas provisórias. Ou ainda, pelaexperiência sempre será possível re utar um sistema cientíco empírico,nunca armá-lo em sentido positivo.

    Para Popper a ciência nunca persegue a ilusória meta de que suasrespostas sejam denitivas. Seu avanço é o de descobrir incessantementeproblemas novos, mais pro undos e mais gerais, e de submeter as

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    respostas (sempre provisórias) a contratações constantemente renovadase cada vez mais rigorosas. E para alcançar este ideal é necessário ugirda “especialização estreita” e da “ é obscurantista” na destreza singulardos especialistas, seus conhecimentos e autoridades pessoais, tão deacordo com a destruição da própria racionalidade.

    A proposta de Popper tem importantes implicações na produção doconhecimento agrário baseado no método indutivo e na experimentaçãorepetitiva como onte de conhecimento válido (em muitos casos,até hoje a experimentação continua sendo o principal instrumento

    metodológico na produção do conhecimento). Pesquisadores,ormados dentro desta tradição metodológica, têm diculdades ementender a provisoriedade do conhecimento, pois oram treinadosno sentido de que o conhecimento obtido experimentalmente esubmetido ao rigor dos testes estatísticos representa a única onte deconhecimento válido. Ou seja, resultados assim obtidos constituem a“verdade”. A diculdade em adotar posturas epistemológicas como ado “ alseamento” de hipóteses permite armar que em muitos casos aprodução do conhecimento agrário ainda encontra-se em uma etapa“pré-popperiana”: só consegue trabalhar com a “certeza”, sendo incapazde conviver com a dúvida ou com o “provisório”.

    1.5 A Nova Filoso a da Ciência

    A Nova Filosoa da Ciência incorpora elementos históricos,contextuais ou compreensivos na explicação da atividade cientíca,rechaçando as teses undamentais do positivismo ou empirismológico: existência de uma base empírica teoricamente neutra;a importância exclusiva do contexto da justicação, onde sãomanejados as técnicas e métodos de pesquisa; e o caráter acumulativodo desenvolvimento cientíco. Os principais autores desta concepçãocompartem, mais ou menos, algumas teses que caracterizam o quese pode chamar ciência “pós-empírica” ou “pós-positivista”:1. Ahistória da ciência é a principal onte de in ormação para construire colocar à prova os modelos sobre a ciência: rente à análise

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    lógica, adquire importância o desenvolvimento histórico para acompreensão do conhecimento cientíco;2. Não existe uma únicamaneira de organizar conceitualmente a experiência. odos os atosestão carregados de teoria;3. As teorias cientícas são construídas eavaliadas sempre em marcos conceituais mais amplos.Pressupostos einteresses denem os espaços para a ação. Os paradigmas, programasde pesquisa, tradições de investigação, domínios ou teorias globais,segundo di erentes autores, operam com signicados similares; 4. Os marcos conceituais mudam e, por isso,buscam-se marcossucientemente pro undos e duradouros;5. O desenvolvimento daciência não é linear nem acumulativo. A ciência não é uma atividadetotalmente autônoma;6. Os modelos de desenvolvimento cientíconão têm base neutra de contratação e a racionalidade cientíca nãopode ser determinada a priori.

    A Nova Filosoa da Ciência estuda as propriedades dosparadigmas, programas,tradições, domínios, etc., unidades de análisesuperiores às teorias cientícas, com a nalidade de explicar a evoluçãodo conhecimento cientíco, cuja ocorrência só tem sentido emcontextos determinados; denidos exatamente por, e no âmbito, de taisunidades estáveis de ordem superior, e que proporcionem a perspectivaconceitual necessária para determinar as questões que devem serpesquisadas, e qual é o conjunto de respostas aceitáveis. Ainda quepossam ser mencionados autores como Imre Lakatos, Paul Feyerabende Larry Laudan, o autor da “nova losoa da ciência” que causou maiorimpacto e “comoção” oi, sem dúvidas, T omas Kuhn.

    Kuhn apresenta uma visão da atividade cientíca, no que se

    re ere principalmente a sua evolução histórica, bastante di erentedas concepções empiristas e racionalistas. Desmonta a ideiade neutralidade na ciência e o caráter ctício dos processos vericacionistas ou alsacionistas, assim como o conjunto de regrassobre o qual estava assentada a racionalidade cientíca e a concepçãode progresso da ciência como atividade essencialmente acumulativa(a ciência varia de uma época para outra). O consenso necessário

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    para que a atividade cientíca tenha êxito está baseado em trêstipos de elementos: o problema a ser resolvido, o tipo de resposta válida e o método admitido como e etivo. A existência desse acordo,assim como a prática e o pensamento dele derivados são o que Kuhndenomina “paradigma”. Quando apreende um paradigma, o cientistaadquire ao mesmo tempo teoria, métodos e normas, quase sempre emuma mescla inseparável.

    A pesquisa tendo por base as rmes convicções e os undamentosadquiridos e reconhecidos pela comunidade cientíca, em umdeterminado paradigma, é denominada”ciência normal”. Nela oscientistas utilizam a maior parte de seu tempo em atividades sob asuposição de que a comunidade cientíca “sabe como é o mundo”,de endendo suas suposições a altos custos, inclusive com a supressãode inovações undamentais, para não colocar em risco ostatus quo e oscompromissos básicos da categoria. Em períodos de ciência normalocorre acumulação de conhecimentos, mas não grandes inovaçõescientícas ou descobrimento de novos enômenos. É produzida uma

    ampliação de conhecimentos sobre atos “reveladores” no âmbitodo próprio paradigma. Este ajuste paradigmático, com requência,ocupa os melhores talentos cientícos de toda uma geração.

    Quando a natureza, de alguma maneira, viola o quadro deexpectativas induzidas pelo paradigma surge o que Kuhn denomina“anomalia”. A identicação de uma anomalia ocorre porque oscientistas conhecem, com precisão, o que se pode esperar dentro doparadigma, ou seja, “quanto mais preciso um paradigma, tanto mais

    sensível será como indicador da anomalia e, por conseguinte, de umaocasião para mudança de paradigma”. Quando a situação anômalapersiste, trans orma-se em crise cientíca, primeiro passo para osurgimento de uma “revolução cientíca”. Dito de outra maneira,a própria ciência normal “prepara o caminho para sua mudança”,ou, uma crise no paradigma é a indicação de que chegou a hora de“redesenhar as erramentas” ou mudar o rumo na atividade.

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    Kuhn considera como “revoluções cientícas” os períodos emque não ocorre acúmulo de novos conhecimentos e que levam a queo antigo paradigma seja substituído completamente ou em parte,por outro novo e incompatível. Nos períodos revolucionários ocorremudança nos compromissos prossionais, provocada pela pressão de“anomalias que subvertem a tradição de práticas cientícas”, dandoinício a pesquisas extraordinárias que conduzem a adoção de umnovo marco re erencial para a atividade cientíca, com reestruturaçãonos “acordos de grupo” da parcela da comunidade que segue o novocaminho. O início da revolução cientíca ocorre à partir da dissidênciade um segmento da comunidade cientíca, às vezes pequeno, quecompreende que o paradigma já não é suciente para a elucidação detodos os temas que o próprio paradigma havia indicado. A situaçãorevolucionária não é consensual. Só é percebida como tal por aquelesque sentem seus paradigmas a etados por ela. Para os observadoresexternos pode parecer apenas que o processo de desenvolvimentocientíco segue, normalmente, seu curso.

    Até aqui tratamos de realizar uma espécie de “desconstruçãoepistemológica” da ciência “convencional”, preparando o caminhopara apontar as bases epistemológicas da Agroecologia. Como estaé uma tare a não acabada, neste texto apresenta-se um recorte dodiscurso de autores contemporâneos que tem tratado do assunto,alguns com mais especicidade. Na construção da epistemologiada Agroecologia tem lugar, inclusive alguns aportes isolados,provenientes da epistemologia e da ciência convencional. Isso signicaque a Agroecologia ainda não pode ser considerada como um novoparadigma, como algo puro e acabado, que represente uma ruptura eque oriente a produção e circulação do conhecimento na agricultura.O que sem dúvida está acontecendo e pode ser notado acilmente, éa explosão de anomalias no interior do paradigma convencional. Aconsolidação da Agroecologia como novo paradigma poderá vir aocorrer, mas depende de es orço intelectual, prática política, ajustesinstitucionais, entre outras coisas. Assim mesmo,espera-se que estetexto possa contribuir na tare a dessa construção.

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    1.6 Debates contemporâneos sobre a Ciência

    Os “debates contemporâneos” sobre a ciência representam umes orço de muitos cientistas na crítica da ciência convencional; naconstrução de alternativas para a própria ciência; e para uma nova

    orma de orientar sua relação com a sociedade, tornando-a maisdemocrática e, portanto, menos excludente. Como estas são propostasque estão na onte de inspiração da Agroecologia, aqui são postas a

    avor da construção da “base epistemológica da Agroecologia”.

    1.6.1 Os Contextos da pesquisa e a pluralidade na CiênciaA análise da ciência não deve permanecer restrita ao campo das

    ideias e interesses, externos à ciência (contexto da descoberta) ou aosatores internos à ciência (contexto da justicação epistemológica).

    A ciência é também uma atividade prática e de intervenção etrans ormação do mundo. Por isso, é necessário considerar pelomenos quatro contextos para a prática cientíca. O primeiro delesé o Contexto do Ensino da Ciência: ainda que não participe da

    atividade cientíca todo o ser humano em sua ase de ormação écon rontado a uma representação pré-constituída sobre a ciência.Neste contexto ocorrem duas ações básicas: ensino e aprendizagem,com domínio absoluto da “ciência normal”. Neste contexto, importama comunicabilidade, a publicidade, o cosmopolitismo. Outro é oContexto da Inovação, onde tem lugar a produção do conhecimentoteórico, empírico e técnico, mas também a construção de arte atos deuso prático, como resultado da aplicação da ciência.

    Neste contexto é diluída a separação entre ciência básica e aplicada.Os critérios que importam na inovação são generalidade, coerência,consistência e validez. O terceiro é o Contexto da Avaliação Cientíca,onde ocorre a aplicação dos métodos e do instrumental analítico e acontratação com outros membros da comunidade cientíca. É nestecontexto que ocorre o “trânsito” entre o experimento e o congresso.São critérios: a evolução do processo cientíco, mas não só, tambémimporta como poderia ter sido, o que pode suscitar uma crise ética

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    e de valores nos cientistas. O último é o Contexto da Aplicação daCiência, onde aparecem a utilidade social e a eciência econômica,geridas pelas políticas públicas de C& e os juízos da sociedade emgeral. A contradição entre conceitos e nalidades contrapostos deveremeter também para a análise da contradição entre a equidade ea justiça social e a produtividade e o lucro, por exemplo. Este é umproblema que a ciência convencional eliminava através de pressupostos

    alsos, como os da neutralidade e da objetividade da ciência.1.6.2 Nova Aliança entre homem e natureza

    A Nova Aliança entre homem e natureza é proposta por Prigogine &Stengers (1994) para a construção de um Novo Diálogo Experimentalque substitua o cienticismo triun ante, a busca da verdade absoluta,permitindo o ressurgimento da dúvida e da incerteza. Para isso serianecessário uma nova interrogação cientíca com a re-descoberta dacomplexidade, que permita passar do determinismo ao pluralismocientíco, da cultura cientíca clássica ao humanismo como re erente.São considerados traços dessa Nova Aliança a re-habilitação da

    desordem e do acaso; a uga do óbvio para a refexão sobre o que édado como certo e natural, mas que na verdade pode ocultar coisas queignoramos ou desconhecemos (ou seja, é preciso ir além da aparênciapara penetrar na essência das coisas e dos enômenos).

    Além disso, a ciência não pode ser válida somente dentro dacomunidade que comparte os critérios de validez, assim como aobjetividade da ciência não é independente do observador que a produz.Qualquer coisa que destrua ou limite a aceitação e a compreensãoda diversidade, desde a presunção da posse da verdade até a “certezaideológica”, destrói ou limita o enômeno social, inclusive o cientíco,que não ocorre sem a aceitação dialógica e dialética do outro e dadi erença. Portanto, esta necessidade de repensar todos os tipos derelações, inclusive no campo da produção do conhecimento cientíco,acaba levando à introdução de novos valores, como a ética e a históriano cotidiano dos cientistas. A este novo quadro re erencial, Maturanae Varela (1996) denominam o conhecimento do conhecimento. O

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    conhecimento sobre o conhecimento é o que nos obriga a manteruma atitude de vigília contra a tentação da certeza, pois ao saber quesabemos não podemos ignorar nem negar o que sabemos.

    1.7 Pertinência de um paradigma maisexível na Ciência

    Este é um tema que tem merecido a atenção de muitos autores.Neste texto estão re erenciados os que têm trabalhado o tema de ormamais aproximada ou mais tangível ao que interessa para o campo daAgroecologia, entre eles Miguel Martínez Miguelez, Boaventura deSousa Santos, Fritjo Capra e Francisco Garrido.1.7.1 As Características do novo paradigma

    Para Martínez Miguelez (1988; 1993) o central no novo paradigmaé a superação das cinco “antinomias undamentais” (contradiçõesinerentes a um conceito) dominantes na ciência ocidental:1. Sujeito-Objeto: no processo cientíco não se pode isolar o processo da

    observação do observador e do observado.2. Linguagem-Realidade:é muito di ícil expressar novas ideias a partir de velhos esquemasou sistemas conceituais.3. Partes- odo: a ciência convencional está

    undada principalmente no estudo das partes, ignorando que o todoé sempre maior que a soma delas. 4. Filosoa-Ciência: os cientistasconvencionais são avessos ao exercício losóco, mas quando umcientista não loso a explicitamente, o az implicitamente e aí o

    az mal.5. Liberdade-Necessidade: é mais cômodo alojar-se em“compartimentos conceituas” aceitos, ugindo da incerteza cognitivaou da dúvida sistemática.

    Quatro são os postulados undamentais para mudar a estrutura eo processo cientíco tradicional.1º. endência à ordem nos sistemasabertos: modelo de compreensão da realidade que explica a tensão natrans ormação. As teorias da bi urcação e das estruturas dissipativas hojesão utilizadas em vários campos, como no estudo do caos do trânsito.

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    2º. Metacomunicação da linguagem: é impossível captar a realidadea partir de uma abordagem única. A expressão não-verbal, às vezes,consegue explicar o inexplicável.3º. Princípio da complementariedade:não explicar nada a partir de preconceitos ou de uma única visão demundo. O sujeito deve assumir protagonismo em sua dimensãohistórica. 4º. A superação do sentido restrito da comprovação empírica:o procedimento rigoroso, sistemático e crítico permite compreenderum mundo em transição. Para Martinez Miguelez à academiacompete indicar como viver na incerteza sem cair na paralização ou

    no imobilismo da dúvida. Os ambientes acadêmicos não podem carentre a “con usão epistemológica” e a “ eliz ingenuidade”.1.7.2 Transição para uma Ciência pós-moderna

    Sousa Santos (1995a; 1995b) critica a separação entre sujeitoepistêmico e sujeito empírico, propondo a segunda rupturaepistemológica. Para ele quatro são as características desta ruptura,que por seus e eitos, representaria também uma transição na ciência.1. Deixou de ter sentido a distinção entre ciências sociais e ciênciasnaturais, todo o conhecimento cientíco natural é cientíco social.2. odo o conhecimento é local e total; constitui-se a partir da pluralidademetodológica; e sua pauta é temática em lugar de disciplinar.3. odoo conhecimento é também auto-conhecimento. É necessário conhecerpara saber viver e não só para sobreviver. 4. odo o conhecimentocientíco deve constituir-se em conhecimento comum, dialogandocom outras ormas de saber e deixando-se interpenetrar por elas. Adupla ruptura epistemológica proposta por Sousa Santos pretende umaciência prudente e um sentido comum esclarecido, dando lugar a outra

    orma de conhecimento e a uma nova conguração para o saber, quesendo prático não deixa de ser esclarecido e que sendo sábio não deixade ser democraticamente distribuído. Ou seja: inclui a relação entrea ciência e a sociedade como um componente da atividade cientíca,ainda que complexa3

    3 Vale lembrar que para T omas Khun a “verdade” na ciência deveria dizer respeito somente àcomunidade cientíca.

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    1.7.3 Paradigma ecológico

    O conceito de paradigma ecológico, proposto por Capra (1992) vaialém dos conceitos sistêmico ou holista, que podem ser aplicados, porexemplo, a uma bicicleta. O paradigma ecológico en atiza a vida, omundo em que vivemos e as relações que nele existem. Implica uma visão além do mero ambientalismo, transcende a estrutura cientícae requer nova base losóca e ética. Capra amplia o conceito deparadigma de Khun, da ciência para o âmbito da sociedade, passandoa representar um conjunto de valores, conceitos, percepções epráticas compartidos socialmente e determinando a própria ormade organização da sociedade. Para este autor, se a ciência osse maisdemocrática, refetiria melhor a necessidade e a vontade da sociedade,implicando, por exemplo, em mais recursos para a ecologia e menospara a biologia molecular e a engenharia genética.

    Os critérios do novo paradigma, segundo Capra devemcontemplar:1º. Da parte ao todo: as propriedades das partessó podem ser compreendidas a partir da dinâmica do conjunto.

    2º. Da estrutura ao processo: cada estrutura é considerada comomani estação de um processo subjacente, não sendo a interação entreas estruturas o que gera os processos.3º. Da ciência objetiva à ciência“epistemológica”: a observação é dependente do observador, portantoas descrições cientícas não são objetivas, independentes do processode conhecimento. 4º. Do pontual à rede: o conhecimento deve serrepresentado como uma rede de relações sem hierarquia, e não comoconstrução de leis e princípios explicados individualmente.5º. Da verdade ao conhecimento aproximado: os cientistas devem substituira busca da verdade absoluta e da certeza por descrições aproximadase limitadas da realidade (neste ponto, Capra revela aproximação àepistemologia proposta por Popper).

    Para Garrido Peña (1996), o novo paradigma é anti-totalitário, aoabdicar do exclusivismo e da hegemonia, é pluralista; é dialógico, aopretender recuperar o diálogo como reconhecimento da di erença; étermodinâmico, ao aceitar as relações entre ordem e desordem, entre

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    o caos e o erro. ambém é ractal, o que supõe cosmovisão pluralista,di usa, dinâmica, gradualista e não-linear da natureza e do real. Alémdisso, é pós-tecnológico, onde o essencial no modo técnico é o modoe não a técnica em si. Isso signica recuperar a essência da técnica,liberando o modo da servidão tecnocrática. Longe de ser anti-técnico,o paradigma ecológico é um modo emancipatório da evolução daracionalidade técnico-instrumental para uma racionalidade baseada noser humano (o que representa a própria humanização da técnica, tematambém abordado por Habermas, 1994).

    1.8 A articulação entre conhecimento cientí co ecotidiano

    1.8.1 Epistemologia Natural

    Na discussão sobre a pertinência de um paradigma mais fexível naciência, um tema que tem merecido atenção crescente é a articulaçãodos conhecimentos cientícos com os saberes cotidianos. Neste campo,a importância da estrutura dos conhecimentos tradicionais, levando emconta a relação do homem com a natureza sem promover degradaçãoambiental, e a validez destes conhecimentos na construção deprogramas de desenvolvimento sustentável são vistas como alternativasimportantes e inclusive como base de sustentação para a pesquisa emAgroecologia. Entretanto, a articulação de conhecimentos oriundos debases epistemológicas di erentes não é assim uma coisa tão ácil, aindaque às vezes pareça demasiadamente óbvia.

    Em primeiro lugar é necessário caracterizar a di erença entre oconhecimento “letrado” e o conhecimento “cotidiano”, lembrando queo conhecimento letrado é um produto do que se caracteriza como“atividade cientíca”, obtido geralmente através do experimento e quecircula através de um “texto”. Já o conhecimento cotidiano é produtotanto da acumulação pessoal como do acúmulo das sucessivas gerações,e sua circulação depende diretamente da memória e da sabedoria.Iturra (1993) denomina a esta orma de produção e de circulação de

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    conhecimentos como epistemologia natural, o que signica que estesconhecimentos ou saberes cotidianos são dotados de valor epistêmicoe de grande importância para a própria produção de conhecimentocientíco. Grosso modo, se poderia dizer que na ciência predomina osaber; na sabedoria o conhecer.

    O conhecimento tradicional, na agricultura amiliar, depende dereprodução em dois sentidos: do surgimento de novas pessoas e doaprendizado sobre o modo de reprodução que as caracteriza. Ou seja,sua circulação depende do contato direto entre os atores sociais, num

    contexto histórico e cultural. Fenômenos como êxodo ou diáspora,quando ocorrem, provocam também uma ruptura, ao interrompero ciclo. Isso também é o que temo corrido pelo processo de invasãocultural e lavagem cerebral, impostas pela ideologia da civilizaçãourbana industrial, baseada em duas premissas alsas: superioridadedos técnicos e pesquisadores sobre a cultura rural (atrasada) e a ideiade que a ciência representa a única orma de conhecimento válido,trans ormada em ideologia e mecanismo de dominação.

    A utilização do conhecimento proveniente da epistemologia naturalé explicada por oledo (1992, 1993) através dos conceitos de corpus,ou repertório de símbolos, conceitos e percepções sobre a natureza,e práxis, conjunto de operações práticas utilizadas na apropriaçãomaterial da natureza. Assim o corpus está contido tanto na memóriade um agricultor individualmente como de uma geração e circula poracúmulo histórico. Já a práxis é a prática cotidiana que tem permitidoaos agricultores, como grupo social, sobreviver através do tempo.Portanto, a epistemologia natural é constituída de corpus e de práxis

    (da sabedoria dos agricultores).1.8.2 Epistemologia Evolucionista

    O conceito de coevolução indica que os sistemas naturais evoluemem resposta às pressões culturais e tendendo a refetir valores, visão demundo e organização social das populações de um determinado local.Por outro lado, o sistema social evolui na seleção de possibilidades,

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    respeitando o ecossistema e refetindo estabilidade no manejo dasopções o erecidas pelo sistema natural. Este conceito oi ormulado porRichard Norgaard (1995), que também propôs, talvez pela primeira vez, as premissas epistemológicas para a Agroecologia.

    Para ele são seis essas premissas:1. Os sistemas sociais e ecológicostem potencial agrícola.2. Este potencial oi captado pelos agricultorestradicionais através de um processo de prova e erro, seleção naturale aprendizagem cultural. 3. Os sistemas sociais e ecológicoscoevolucionaram cada um mantendo dependência e“feedback’’

    com relação ao outro, o que gera uma dependência estrutural. Oconhecimento incorporado nas culturas tradicionais estimula eregula o“feedback’’ do sistema social para o ecossistema. 4. A naturezado potencial dos sistemas sociais e biológicos podem ser melhorcompreendidas usando o atual estoque de conhecimentos cientícos,o que permite compreender como as culturas agrícolas tradicionaiscaptaram e utilizaram este potencial.5. O conhecimento cientícoobjetivo, o conhecimento desenvolvido nos sistemas tradicionais, oconhecimento e alguns “inputs’’ desenvolvidos pela ciência agrícolamoderna e as experiências e tecnologias geradas por instituiçõesagrícolas convencionais podem ser combinados para melhorarsignicativamente ambos ecossistemas, o tradicional e o moderno. 6.O desenvolvimento agrícola através da Agroecologia manterá maisopções ecológicas e culturais para o uturo e trará menores e eitosperniciosos para a cultura e o meio ambiente do que a tecnologiaagrícola moderna por si só.

    1.9 Participação dos atores sociais “implicados”

    1.9.1 Epistemologia Política

    A constatação de que a ciência normal, no sentido de T omasKhun, não resolveu os problemas da “modernidade” (ao contrário,em alguns casos, é justamente este modelo de ciência que está nabase dos problemas), levou Funtowicz e Ravetz (1993; 1996) a

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    desenvolverem o conceito de ciência pós-normal. A ciência pós-normal não pretende neutralidade ética nem ignora as consequênciaspolíticas do uso da ciência na sociedade moderna, como de endemempiristas, racionalistas e positivistas. Simplesmente pretende umtipo de “ciência com la gente”.

    Na resolução de problemas complexos, não basta superar asincertezas cognitivas. A elas somam-se às incertezas éticas derivadasdos valores confitivos da sociedade. O manejo da incerteza pode tomaro caminho da Incerteza écnica, que pode ser resolvida pela “ciência

    normal”, ou ciência aplicada, da Incerteza Metodológica, quando seintroduzem aspectos de valor e depois se trabalha tecnicamente,como,por exemplo, nas consultorias de prossionais experts; e da IncertezaEpistemológica, quando a incerteza é essencialmente ignorância:pensamos que as coisas são assim, ou aceitamos acriticamente quesejam assim, embora possam ser completamente di erentes.

    Este é o campo da ciência pós-normal. Nele, é necessário, sobretudo,evitar a Falsa Certeza, como no caso dos agrotóxicos, onde se supunhaque seguir as indicações técnicas do abricante era suciente para ouso seguro. Agora, muito tempo depois, oram descobertos os e eitoscolaterais, lentos mas letais. A ciência pós-normal é recomendada parase sair do reducionismo dominante nas “comunidades restringidas depares”, levando a tomada de decisão para o âmbito das “comunidadesestendidas de pares”, através do debate mais amplo com toda a sociedade.Ou seja, promovendo democratização na produção e circulação doconhecimento, exatamente como pretendido na Agroecologia.1.9.2 Epistemologia da Participação

    Um dos temas de endidos no âmbito da transição paradigmática e quepode ser incluído no espectro da base epistemológica da Agroecologia,é a participação dos atores sociais implicados. Sinteticamente, apartir de Campos (1990), pode-se armar que:1. A oposição entreconhecimentos cientíco e tradicional e participação é alaciosa. Oproblema reside em esclarecer as condições epistêmico-metodológicas,

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    que permitam a integração de saberes de orma não-subordinada.2.A incorporação de modos de conhecimento baseados na experiência,não considerados de orma passiva, permite superar problemasmetodológicos, teóricos e técnicos, provocados pela mediação “racionalcientíca”, que normalmente tende a ltrar ou adaptar os outrosconhecimentos a seus esquemas, empobrecendo-os.3. A participaçãonão é “somente um método”, ainda que seja verdade que seus maissérios problemas ocorram no plano epistemológico. eorizar e ir para aprática são coisas inseparáveis. 4. Os diversos tipos de conhecimentosnão têm atributos especícos que os tornem superiores ou in erioresuns aos outros. odos os conhecimentos estão inseridos na realidadecomplexa, contraditória e diversa, constantemente sob intervençãodo ser humano.5. A tomada de posição rente à realidade estudadaé inseparável da prática cientíca, portanto, a neutralidade axiológicaé uma alácia. O desao na ciência não é negar ou eliminar posiçõescomprometidas, mas manter vigilância para evitar que as posiçõesindividuais interram impropriamente no processo do conhecimento.6. A articulação crítica entre o conhecimento cientíco e os saberes

    populares, historicamente cindidos e às vezes antagônicos, implica emen rentar a alienação e a ignorância que se alojam na cultura populare as distorções e reducionismo do conhecimento cientíco. Não sepode admitir nem o conhecimento cientíco como instrumento dedominação nem a valorização condescendente e paternalista do saberpopular.7. A articulação entre teoria e prática deve ocorrer sem quea primeira conduz a retilínea e mecanicamente à segunda nem que asegunda represente um critério mecanicista de verdade. oda a teoriadeve ser o aspecto consciente da prática e toda prática deve ser objetode elaboração crítica.1.10 O Pluralismo Epistemológico na Agroecologia

    A partir da reconstrução crítica de algumas concepções teóricassobre o conhecimento, resgatam-se alguns elementos que permitem

    undamentar a proposta de um pluralismo metodológico para aprodução do conhecimento agrário, como parte da base epistemológica

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    da Agroecologia. A re erência ao método, pelo uso do adjetivo“metodológico”, tem um sentido amplo, não só relativo às técnicas depesquisa, ainda que também se rera a elas. O pluralismo que se propõepara o método também aponta em várias direções e não só a uma. Com aexpressão pluralismo metodológico nos estamos re erindo aos seguintesaspectos: pluralidade de contextos e soluções para a produção e circulaçãodo conhecimento agrário; abertura aos conhecimentos e técnicasagrícolas tradicionais como onte de conhecimentos e práticas válidas;implicação do contexto social e suas demandas na produção e circulaçãodo conhecimento agrário; e combinação de técnicas de pesquisa variadas,quantitativas e qualitativas, numa perspectiva interdisciplinar.

    Para a tentativa de construção de um marco geral para o pluralismometodológico e epistemológico se destacam alguns elementos econcepções teóricas. Algumas delas estão diretamente relacionadas comas questões sociais, ambientais, econômicas, técnicas ou metodológicasque envolvem a produção e circulação do conhecimento agrário oua convivência e relação entre o ser humano e a natureza. Outras sãode conteúdo mais teórico. Sem dúvida, para aqueles que exercemsuas atividades no campo da Ciência e da ecnologia, não será di ícilestabelecer a conexão com suas próprias práticas, ainda que alguns sesituem, pela própria infuência do paradigma dominante, distanciadosda refexão teórica.

    Heisenberg e Bachelard já haviam apontado a ação especíca queo observador exerce sobre o objeto de sua observação. Na ciênciacontemporânea, esta posição ganha corpo. Habermas (1994), propõesair da pretendida relação asséptica entre o sujeito da observação (o

    pesquisador) e o objeto investigado, para uma relação intersubjetiva,entre sujeitos que dialogam no processo da produção do conhecimento,trazendo a ciência para este mundo em que as coisas acontecem: omundo da vida dos homens, onde a relação entre iguais deveria ser

    undamentada pela ação comunicativa entre os sujeitos. E, como nãoexiste o conhecimento desinteressado, é necessário situar o observador-pesquisador dentro e em relação com a sociedade, explicitando qual oseu papel como ator social.

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    Neste sentido, as contribuições de Kuhn, ainda que de grandeinteresse para a compreensão da organização da prática cientíca epara a explicação do desenvolvimento da ciência, são limitadas, pornão terem mencionado o papel dos cientistas na organização dasociedade. Diversos autores en atizam a atividade dos cientistas e opapel que desempenham como atores em papéis relevantes para asmudanças sociais ou para a manutenção da ordem dominante. Hojeem dia, é impossível desconsiderar que saber é poder e que a ciência éuma categoria que tanto pode estar a serviço da construção de sujeitossociais como da sua exclusão.

    No paradigma em construção, é necessário esquecer a busca daobjetividade e da neutralidade como pretenderam os positivistas, emseus di erentes matizes. Sob a infuência do positivismo, os sociólogose os teóricos da ciência tem debatido a questão da objetividade doconhecimento a partir do modelo das ciências naturais, que exigeobservação quantitativa dos enômenos e privilegia a indução naconstrução das teorias.

    Nessa perspectiva, o momento da investigação não é problematizadoem sua dimensão social, sendo considerado como simples registrodos dados e garantia da neutra objetividade. Contra essa ilusão, énecessário destacar que os métodos e técnicas de investigação, juntocom os conceitos e teorias, são os instrumentos de produção doconhecimento concreto, e a eleição de um determinado conjuntode instrumentos ou métodos assegura de antemão os resultados aserem obtidos. Ou seja, no mesmo marco geral da crise da ciência(e da sociedade) moderna, está inserida a crise dos undamentos da

    moderna ciência. Não só objetividade, coerência lógica e neutralidadesão criticadas epistemologicamente. A relação da ciência com outrasormas de conhecimento e a seletividade na apropriação dos resultados

    cientícos e tecnológicos são temas que tem merecido a atenção demuitos cientistas.

    Cada dia está mais di ícil o acesso aos resultados de pesquisa, commais consequências práticas, de orma democrática, dado o interesse

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    econômico trás das demandas, por um lado, e a vigência de uma ordempolítico-institucional, que redundou no encapsulamento burocráticodas instituições, por outro. Então a “mudança de paradigma” devecaminhar na direção da abertura para a democracia participativacomo orma de superar a assimetria social entre incluídos e excluídos,ensejando oportunidade para a reconstrução de sujeitos sociais,onde tensões e confitos podem coexistir com a participação e coma diversidade. Entretanto, como aponta Bachelard (1977; 1996), senão há pergunta não há conhecimento, ou seja, perguntas não eitaspodem permanecer para sempre sem resposta. Portanto, se uns têma prerrogativa de perguntar e outros não, as respostas produzidas noprocesso de geração de conhecimento para eles estarão dirigidas.Sousa Santos arma: assumir epistemologicamente a verdade socialda ciência signica submetê-la a crítica dentro e ora da comunidadecientíca, evitando que os resultados sejam apropriados somente pelosdetentores do poder.

    Portanto, a consideração do social e do humano na ciência e naprodução do conhecimento não pode car como mera abstração.Signica alar de pessoas que vivem e so rem todas as consequênciasdos processos que tem sido motivo de crítica por di erentes autores aolongo deste texto. odavia não só alar de relações sociais e ambientaisexcludentes, mas é preciso tentar mudar a situação de maneira aproduzir ciência no “mundo da vida” com e para a “comunidadeestendida de pares” (viabilizando a participação da sociedade, de ormaampla), o que também requer introduzir a questão da ética nas pautasdas instituições para que seu comportamento não permaneça como odas “torres de marm”, comandadas por “comunidades restringidas depares” (o reduzido grupo que decide o que e o como, uns validando oque azer dos outros), impregnadas de discursos do tipo “a tecnologiaque serve para o grande também serve para o pequeno”, ou “técnica epolítica são coisas independentes”.

    Feitas estas considerações, é possível caracterizar as linhas geraispara o pluralismo na ciência, na metodologia ou na epistemologia, queajudam a indicar o caminho para a construção das bases epistemológicas

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    na produção e circulação do conhecimento na Agroecologia. Apluralidade de perspectivas epistemológicas e metodológicas nãopretende a supremacia de categorias sociais ou ormas de conhecimento,não pretende abolir os especialistas e a ciência rigorosa; nem idealiza o“popular” como onte de toda a bondade e sabedoria.

    Uma proposta plural deverá caminhar para pautas temáticasem lugar das disciplinares, reconhecendo que existem alternativasteóricas na produção do conhecimento e a opção por uma delas nãoé determinação de critérios internos à própria ciência, mas opção dos

    pesquisadores. O pluralismo não representa anarquismo ou ecletismometodológico. Sua intenção é a de introduzir objetivos sociais na refexãoepistemológica e metodológica, e objetivos teóricos na refexão sociale política. O pluralismo na ciência é compatível com uma perspectivamais humanista e democrática, contemplando a possibilidade dacoexistência de matrizes epistêmicas dentro de mesmas coordenadassociais e históricas.

    1.11 Como conclusão

    Em resumo, os caminhos teóricos até agora traçados indicam que opluralismo na produção do conhecimento, como base epistemológicapara a Agroecologia, deve contribuir para superar a ideia de supremaciadas ciências naturais sobre as ciências sociais proposta no sicalismo eo caminho da especialização, como única orma capaz de promover odesenvolvimento na ciência. É necessário adotar não só ações de tipointerdisciplinar ou transdisciplinares como também promover o dialógode saberes, articulando os conhecimentos cientíco e “tradicional”.Ou seja, é preciso superar a concepção de ciência como onte únicado conhecimento válido, pois os conhecimentos produzidos pela“epistemologia natural” também representam importante alternativa narecuperação e manutenção dos recursos naturais ou na construção dasustentabilidade, em suas várias dimensões. Em lugar do conhecimentoque permita o domínio da natureza, deve ser introduzida a cooperação(ou, de novo, o diálogo), entre cientistas, cidadãos e natureza.

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    A produção do conhecimento deve ser considerada maiscomo domínio de refexão do que de prática, ajudando a superar oreducionismo ainda dominante, a ideia da asséptica, mas inexistente,da neutralidade dos pesquisadores e a alsa concepção de objetividadena ciência. Além disso, a ideia de que a aplicação rigorosa “do método”,por si só, garante o êxito da atividade cientíca é alsa. Não existeeste tal conjunto de regras in alíveis: o bom pesquisador qualicao método e não contrário. ambém é preciso ir além da prática da“ciência normal”, na qual energia e tempo são gastos na pesquisa doque “já sabemos”. É necessário pesquisar o desconhecido, ainda queisso implique mudanças paradigmáticas (no sentido de Kuhn).

    As concepções dominantes na ciência tradicional também devemser superadas coma adoção e consolidação de novas posturas teórico-conceituais-metodológicas, relacionadas com as mudanças que estãoocorrendo na ciência e na sociedade. A tendência à captação viciadae seletiva da realidade, condicionada por verdades que trazemoscom nossas tradições sociais, culturais, ideológicas, institucionaisou cientícas, é incompatível com a prática pluralista e com ademocratização de conhecimentos.

    É necessário evitar tanto o otimismo tecnológico como ocatastrosmo e propor alternativas que contemplem a equidade e a justiça social, além da sustentabilidade. É necessário admitir quetodo conhecimento, como construção social, é interessado e estáimpregnado por questões éticas e ideológicas. Em lugar de consensocientíco excludente é necessário abrir-se e conviver com o confito ecom a diversidade como atores que contribuem para a consolidação de

    processos participativos e democráticos.A base epistemológica da Agroecologia não deverá estar apoiada nem

    no simples rechaço nem na ingênua adoração da ciência: é rechaço docienticismo e instrumento para promover uma ciência comprometidacom a sociedade e com suas necessidades. Esta base, construída a partirdo pluralismo metodológico e epistemológico, não signica abolir oprocedimento rigoroso, sistemático e crítico, nem muito menos levar a

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    uma produção de conhecimento de segunda categoria. As mudanças naciência, como desenhadas neste texto, são dependentes de especialistase de instrumentos de pesquisa sosticados. Isso, entretanto, não supõea liberdade absoluta do pesquisador. A ciência, como outras atividades,deve ser submetida a algum tipo de controle pela sociedade.

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    A construção do conhecimento, assim como o desenvolvimentode tecnologias para apoiar uma transição agroecológia, exige uma

    compreensão adequada da epistemologia da Agroecologia. Trata-se daconstrução de um novo paradigma capaz de superar a ciência normal.Assim, a pluralidade epistemológica da Agroecologia, que a diferenciada ciência convencional, situa-se numa nova visão das relações homem-natureza e busca sua concretude numa articulação que contemple não sóa questão ecológica, senão que também as bases de uma epistemologianatural e evolucionista. Do mesmo modo, se amplia e se fortalece nocampo da complexidade na medida em que inclui uma epistemologiapolítica e da participação distintos atores no processo de construçãodo conhecimento.

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    Agroecologia: matriz disciplinar

    ou novo paradigma para odesenvolvimento rural sustentável

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    Agroecologia: matriz disciplinarou novo paradigma para o

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    Francisco Roberto Caporal José Antônio Costabeber

    Gervásio Paulus

    2.1 Introdução

    A Agroecologia vem se constituindo na ciência basilar de um novo

    paradigma de desenvolvimento rural, que tem sido construído aolongo das últimas décadas. Isto ocorre, entre outras razões, porque aAgroecologia se apresenta como uma matriz disciplinar5 integradora,totalizante, holística, capaz de apreender e aplicar conhecimentosgerados em di erentes disciplinas cientícas, como veremos maisadiante, de maneira que passou a ser o principal en oque cientíco danossa época, quando o objetivo é a transição dos atuais modelos de4 Este texto oi publicado em 2006 e pode ser acessado em: http://www.agroeco.org/socla/

    archivospd /Agroecologia%20%20Novo%20Paradigma%2002052006-ltima%20Verso1.pd

    5 Ver Sevilla Guzmán y Woodgate (2002).

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    Capítulo 2 – Agroecologia: matriz disciplinar ou novo paradigma parao desenvolvimento rural sustentável

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    desenvolvimento rural e de agricultura insustentáveis para estilos dedesenvolvimento rural e de agricultura sustentáveis6.

    Ademais, como ciência integradora a Agroecologia reconhece e senutre dos saberes, conhecimentos e experiências dos agricultores(as),dos povos indígenas, dos povos da oresta, dos pescadores(as), dascomunidades quilombolas, bem como dos demais atores sociaisenvolvidos em processos de desenvolvimento rural, incorporando opotencial endógeno, isto é, presente no “local”. No en oque agroecológicoo potencial endógeno constitui um elemento undamental e ponto de

    partida de qualquer projeto de transição agroecológica, na medidaem que auxilia na aprendizagem sobre os atores socioculturais eagroecossistêmicos que constituem as bases estratégicas de qualqueriniciativa de desenvolvimento rural ou de desenho de agroecossistemasque visem alcançar patamares crescentes de sustentabilidade.

    Nesta perspectiva, pode-se armar que a Agroecologia se constituinum paradigma capaz de contribuir para o en rentamento da crisesocioambiental da nossa época. Uma crise que, para alguns autores, é,no undo, a própria crise do processo civilizatório. Diante dessa crise,os problemas ambientais assumiram um status que ultrapassa o estágioda contestação contra a extinção de espécies ou a avor da proteçãoambiental, para trans ormar-se “numa crítica radical do tipo decivi