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In: SOUZA, Laura de Mello e; FURTADO, Júnia Ferreir a & BICALHO, Maria Fernanda (orgs.). O Governo dos Povos. São
Paulo: Alameda, 2009, p. 519-538.
APARENTE E ESSENCIAL Sobre a representação do poder na Época Moderna
Rodrigo Bentes Monteiro
O problema
No Vocabulario ... de Rafael Bluteau, representação aparece como “a ação de
representar qualquer coisa com ações naturais, ou em pinturas, esculturas, etc em festas,
jogos públicos, procissões, etc.” Também significa “a própria coisa representada.” Trata-se
ainda de um termo forense, quando se representa aquele que não está presente, como o filho
em relação ao pai falecido, na sucessão.1
Mas o verbete no Dictionnaire de l’Ancien Régime dirigido por Lucien Bély alude à
representação do monarca como metáfora. O rei representaria a respublica ao encarnar o
Estado, unindo o corpo político como sua cabeça por sua vontade. O autor do verbete
Lucien Jaume observa a dupla herança medieval desta concepção organicista, baseada na
Igreja como corpo místico do Cristo, mas também no direito das corporações. Vale-se então
da teoria de Hobbes como reutilização dessas idéias em reforço da monarquia absoluta. No
Léviathan, a fórmula to bear the person of exprimiria a função personificadora do
representante régio. Entretanto ela também pode ser aplicada ao sentido de uma assembléia
a decidir pela maioria. O tema seria retomado por Bossuet, para quem, segundo Jaume, o
rei representaria seu povo, mas sem a teoria hobbesiana do contrato, perigosa em relação à
possível vontade dos súditos na deposição do soberano.2
Entre a definição do padre Bluteau - membro da Academia Real de História fundada
por D. João V em 1720, protegido da casa de Ericeira em Portugal e na França, e a
dissertação do dicionário histórico francês, há discrepâncias. O letrado franco-lusitano do
século XVIII não definiu sistemas políticos, apenas mencionou retratos, festividades e
1 Raphael Bluteau. Vocabulario portuguez e latino ... Coimbra: Colégio das Artes da Cia de Jesus, 1712, filme 04, p.264 (CD - Rom. Rio de Janeiro: UERJ, 2000). 2 Lucien Jaume, Représentation. Lucien Bély (Org.). Dictionnaire de L’Ancien Régime. Royaume de France XVIe-XVIIIe siècle. Paris: PUF, 1996, p.1081.
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procissões como representações pictóricas ou teatrais, e o significado jurídico do termo.3
No entanto, o verbete de 1996 é repleto de concepções do poder inspiradas em teóricos,
calcado na historiografia que supôs uma contradição da vida política do Antigo Regime,
relacionada à personificação do poder soberano, mas também às assembléias
representativas: estados gerais, cortes, parlamentos, dietas. Embora observe as diversas
funções de um deputado do Antigo Regime e do governo representativo pós 1789, Jaume
faz a dicotomia entre a representação do poder dos reis – identificada ao absolutismo - e a
dos povos, como gérmen de uma soberania popular ou nacional, que culminaria na
Revolução.4
Uma história por demais certa de suas conclusões, em vista do ocorrido no mundo
contemporâneo. Uma abordagem do problema sem contextualização, ao desconsiderar as
práticas políticas em sua dinâmica relacional à sociedade. Práticas que por vezes punham
em dúvida a existência de um Estado na acepção atual, dissociado de governantes e
governados. Como se sabe, uma nova historiografia política questiona o sistema tradicional
de datação do Estado moderno, ao pretender realizar uma análise menos teleológica. Essa
análise pressupõe a alteridade da vida política no Antigo Regime, ao assumir suas tensões
inerentes, e as descontinuidades entre a letra dos tratados, as encenações simbólicas, e as
práticas. Esta perspectiva - ancorada na história do direito e na antropologia cultural –
concebe como sistema político adequado à época, vários poderes interdependentes, com
3 Poder em Bluteau associa-se a “Ter autoridade (...) Prevalecer (...) Faculdade para mandar. Domínio. Império”, em definição extensa. Já política refere-se a preceitos do bom governo nas cidades, repúblicas, reinos e impérios, “assim para o bem dos que mandam, como dos que obedecem. Esta é propriamente a ciência dos Príncipes, que são os substitutos de Deus no governo do mundo. O fim principal da boa Política não é a prosperidade temporal dos Estados, mas a glória de Deus, na administração da justiça, e observância das suas leis”. Raphael Bluteau. Vocabulario portuguez e latino ..., filme 03, p.563-4 e 576-7. 4 Desprezou assim a evolução semântica do termo représentation, derivada no século XIII do latim repraesentatio, “ação de por sob os olhos”, associando-se a représenter, e mal distinto de présentation. No direito empregou-se a palavra para definir uma prova, desde 1393. Représentation transformou-se em francês médio no substantivo de représenter, a ação de tornar presente ou sensível qualquer coisa por meio de imagem, figura, signo, e por metonímia, este signo, imagem, símbolo ou alegoria. O termo especializou-se para falar do ato artístico, no desenho, pintura, ou escultura. Foi aplicado às efígies de cera nas exéquias principescas no século XV, depois ao falso caixão nos funerais do XVII, além de referir-se ao espetáculo público desde o XVI. No XVII, passou à filosofia para definir a imagem fornecida ao entendimento pelo sentido ou pela memória, sem deixar de significar a ação de desempenhar um papel, as relações de aparato. No meio francês, continuou associado a représenter, designando a ação de ter o lugar de alguém. No direito, o representante age em nome do representado, e os herdeiros do defunto o sucedem. A palavra raramente foi adotada com sentido geral, e apareceu na política para tratar do poder legislativo das assembléias em 1772., Alain Rey (Org.). Le Robert. Dictionnaire historique de la langue Française. Paris: Le Robert, 2000, v.3, p.3191-2.
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jurisdições próprias, embora admita o rei como protagonista e árbitro formal dos conflitos
existentes.5
Mas há um aspecto pertinente à representação do poder, negligenciado por Jaume, e
evidente na explicação de Bluteau. Este tópico também não se destaca nos recentes estudos
que caracterizam a historiografia política do Antigo Regime, preocupada em desfazer
paradigmas referentes à centralização administrativa nos governos da Época Moderna,
incluindo os impérios ultramarinos. Refiro-me aos retratos, festas, procissões, sermões, e ao
discurso hiperbólico dos tratadistas – alguns deles também juristas - como emblemas deste
universo político e cultural característico e diferente do nosso. Outrora, essas
representações artísticas, teatrais e literárias, utilizadas como manifestações de um
poderoso, foram lidas pela historiografia oitocentista como retratos transparentes da
situação política. Caso referissem ao príncipe, demonstravam seu poder avassalador. Entre
os estudos proferidos nesta linha de identificação direta do discurso – letrado ou cerimonial
– à história, destaca-se a obra de Jacob Burckhardt. Nela, o “Estado como obra de arte”
aparece pintado segundo a sagacidade dos conselhos de Maquiavel, ou a perspectiva de
Brunelleschi e Alberti.6
Mais recentemente, a história cultural escolheu a cultura barroca como tópico da
representação do poder na Época Moderna. A partir de Heinrich Wölfflin, os trabalhos de
Helmut Hatzfeld e José Antonio Maravall repercutiram nas historiografias européia e
latino-americana na segunda metade do século XX. Enquanto Hatzfeld relacionou o
barroco espanhol, o italiano e o classicismo francês, Maravall analisou o barroco como
expressão de uma sociedade conflituosa, manifestando uma cultura diretiva, de massas,
urbana e conservadora, na qual o poder dispunha de elementos de excesso, suspensão,
inacabado, novidade e invenção, como artifícios para emocionar e persuadir multidões.7
5 A título de exemplo Jean Frédéric Schaub, Le temps et l’État: vers un nouveau régime historiographique de l’Ancien Régime Français. Quaderni Fiorentini. Per la storia del pensiero giuridico moderno. Milano: Dott A. Giuffrè, 1996, n.25, p.125-81 e Pedro Cardim, Centralização política e Estado na recente historiografia sobre o Portugal do Antigo Regime. Nação e defesa. Lisboa: Ministério dos Negócios Estrangeiros, 1999, p.129-58. 6, Jacob Burckhardt. A cultura do Renascimento na Itália. Um ensaio. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p.21-107, primeira publicação em 1860. 7, Heinrich Wölfflin. Renascença e Barroco. Estudo sobre a essência do estilo barroco e a sua origem na Itália. São Paulo: Perspectiva, 2005, publicado primeiramente em 1888; Helmut Hatzfeld. Estudos sobre o barroco. São Paulo: Perspectiva, 1988, primeira publicação em 1973 e José Antonio Maravall. La cultura del barroco. Barcelona: Ariel, 1986, primeira edição em 1975.
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Identificada à Espanha dos últimos Habsburgos, a análise de Maravall - e com ela a história
da arte e da arquitetura - foi aplicada ao entendimento das relações entre poder, cultura e
sociedade em Portugal, e nas Américas espanhola e portuguesa. Nesse âmbito, a cultura
barroca foi associada ao poder forte e colonizador da metrópole.8
Entretanto, é difícil conciliar a representação majestática do poder - mesmo com
conflitos e crises sociais – aos novos títulos surgidos na história política. Ao enfatizar
práticas em detrimento de esquemas representativos, essas análises podem duvidar da
imagem e da retórica de um poder soberano, sob suspeita de serem falaciosas, consideradas
mera propaganda monárquica.9
No ultramar americano, a dificuldade em integrar relações políticas do Antigo
Regime e manifestações culturais stricto sensu foi alargada - ao menos na historiografia
brasileira. Na coletânea de estudos que concebe sociedades típicas do Antigo Regime no
império português, mas também diferentes relações entre centro e periferias, poderes
concorrentes e a dispersão do império, há capítulos sobre economias coloniais,
comportamentos administrativos, poderes e hierarquias, analisados de forma procedente a
referenciais europeus, além de tópicos relacionados aos “novos mundos”, como a
missionação e a escravidão. Os paradigmas da representação da sociedade e do poder,
como concepção das relações entre reis e súditos do século XVI ao XVIII, também figuram
na perspectiva de O Antigo Regime nos Trópicos, segundo o arcabouço de Ângela Barreto
Xavier e António Manuel Hespanha, em análise fundamentada na história das instituições.
No entanto, na História de Portugal que concebe vários poderes em relação à “cabeça” do
rei, estão ausentes as festividades, a parenética ou a literatura, manifestações culturais – ou
8 Na arquitetura destaca-se Giulio Carlo Argan. L’Europe des capitales. Genève: Skira, 1964 e História da arte como história da cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1992. Para o caso português Carl. A. Hanson. Economia e sociedade no Portugal barroco. Lisboa: Dom Quixote, 1986 e Rui Bebiano. D. João V. Poder e espetáculo. Aveiro: Livraria Estante, 1987. Em relação aos desdobramentos da cultura barroca no mundo colonial, Angel Rama. A cidade das letras. São Paulo: Brasiliense, 1985, p.23-75 e Affonso Ávila. O lúdico e as projeções do mundo barroco. São Paulo: Perspectiva, 1980. Como exemplo de associação entre cultura barroca e poder colonizador, Rodrigo Bentes Monteiro. O teatro da colonização. A cidade do Rio de Janeiro no tempo do conde de Bobadella (1733-1763). Dissertação de mestrado apresentada ao Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. São Paulo: 1993. 9 Como exemplo da difícil conciliação entre imagens do poder e modos de governar, Jean Frédéric Schaub. La France Espagnole. Les racines hispaniques de l’absolutisme français. Paris: Seuil, 2003. O historiador francês, também especialista no Portugal da união das coroas, considera a influência da literatura e do teatro espanhol do siglo de oro na corte de Luís XIV. Todavia, o conceito de absolutismo aparece dissociado da prática governativa, atrelado apenas à literatura laudatória e à estética barroca. Para Schaub o absolutismo francês é somente a propaganda monárquica; como sistema de governo, ele não teria existido.
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de poder - também não consideradas nos livros que dissertam acerca de poderes e
sociedades sob ingerência lusa no globo imperial, ou sobre Minas Gerais no império
português. Concordo com o uso do termo Antigo Regime para designar aspectos
concernentes à vida social e política na América portuguesa. Por isso mesmo, o estudo do
poder nessa época deve ter em conta a cultura do espetáculo que lhe é tão peculiar.10
Este artigo lembra a semântica original do termo representação, enfrenta sua
polissemia relacionada à vida política e ao poder produzida a posteriori, e coteja a
historiografia pertinente aos âmbitos que costumo visitar - França, Portugal, Brasil -, com
alguns exemplos de pesquisa. É certo que o estudo das fontes aparecerá descontextualizado,
devido às limitações do texto na escolha de vários exemplos. Longe de esgotar questões e
obras, ele visa aproximar o recente debate vivido na historiografia política à história
cultural, e às dimensões simbólicas e psicológicas do fenômeno do poder.11
O estado geral das cortes
Enveredamos assim pelas assembléias representativas. Baseado nos trabalhos de
Roland Mousnier, Denis Richet estuda grupos e movimentos sociais, concedendo atenção à
“representação dos corpos” em variadas formas. Em relação aos estados gerais da França,
entre 1484 e 1615, sua composição obedecia ao princípio da representação das três ordens.
Nesse período algumas províncias conservavam os estados provinciais. Não obstante as
diferenças entre as assembléias de estados, em geral elas tinham funções administrativas e
financeiras. Segundo Richet, os reis não partilhavam sua autoridade. Deduz assim que os
10 João Fragoso, Maria Fernanda Bicalho & Maria de Fátima Silva Gouvêa (Org.). O Antigo Regime nos trópicos. A dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001; Ângela Barreto Xavier & António Manuel Hespanha, A representação da sociedade e do poder. António Manuel Hespanha (Org.), José Mattoso (Dir.). História de Portugal. O Antigo Regime. Lisboa: Estampa, 1993, v.4, p.121-55; Júnia Ferreira Furtado (Org.). Diálogos oceânicos. Minas Gerais e as novas abordagens para uma história do império ultramarino português. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001. Para um resumo da concepção corporativa, ver o artigo de Maria Fernanda Bicalho neste livro. 11 Por cultura entendo a teia de significados em dada sociedade, como desenvolvida em Clifford Geertz. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: Guanabara, 1989. A acepção faz parte dos estudos que revisam a história política tradicional, consagrando o termo cultura política para entendimento da alteridade do mundo político no Antigo Regime, com concepções de poder e sociedade diferentes das atuais. Embora concorde com a compreensão da política como fenômeno cultural no Antigo Regime, discordo que as análises não levem em conta as representações culturais em termos estritos, pois, como as instituições, juristas, parentescos, clientelas e negócios, elas integram o poder naquele mundo diferente do nosso, e como tal influenciam os destinos da política. Mais uma vez, reproduz-se o movimento instaurado no século XIX, isolando-se a política, a administração e o governo dos demais campos de atuação humana.
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estados gerais somente aconselhavam o rei, o que implicava mais em deveres que direitos,
embora por vezes expressassem a vontade de certo controle.12
Richet define a participação pela possibilidade de certos grupos exercerem
influência indireta sobre as decisões reais. O princípio que justificava a representatividade
era o da sanior pars, a parte mais sã da sociedade, distinguida por nascimento, função,
riqueza e cultura como notáveis. Desse modo, um fosso separava a representatividade dos
eleitos do Tiers das primeiras ordens. Enquanto a pequena nobreza era representada nas
assembléias, no Tiers esse princípio excluía 9/10 de representados da própria representação.
Em 1614, mais de 3/4 dos representantes do terceiro estado eram oficiais, juridicamente
nobres, ou no caminho para tal. Portanto, disfarçava-se outra hierarquia, e o Tiers era uma
ordem definida pela exclusão. Em seu seio situava-se a fronteira que separava participantes
e excluídos, notáveis e anônimos, elite e massa. Em suma, para Richet participantes e
governantes eram minoria; o sistema excludente gerava traumas políticos, que eclodiriam
com força na Revolução. Sua análise publicada em 1973, embora considere as
ambigüidades do absolutismo, encontra-se amarrada a um sistema definido pelo seu fim.
Pode ser mais rico mergulhar no coração de uma assembléia, esquecendo análises
processuais. O relato de Jean Bodin, deputado por Vermandois, sobre os estados gerais
realizados em Blois em 1576, expressa o ambiente das guerras religiosas na França. Trata-
se de uma narrativa diária das assembléias do terceiro estado e das assembléias gerais, com
os três estados reunidos na presença do rei, da rainha, da rainha-mãe, dos príncipes de
sangue, do conselho privado e do chanceler.13
Destacam-se aspectos do conflito com os reformados. Um deputado de Paris manifestou
na assembléia do terceiro estado posição diferente de Bodin, sobre a procedência de outra
religião cristã no reino. Em meio aos discursos, explicitava-se o debate sobre a questão
religiosa: pela unidade, ou pela paz, como advogava Bodin. Sendo vontade do rei que todos
os súditos se mantivessem católicos, a discussão voltou-se para como se obter a unidade
12 Denis Richet. La France moderne: l’esprit des institutions. Paris: Flammarion, 1973, p.95-105. Cf. também Roland Mousnier. Les institutions de la France sous la monarchie absolue. Société et Etat. Paris: PUF, 1974, t.1, e Les hierarchies sociales. De 1450 a nos jours. Paris: PUF, 1969. 13 Os três estados reuniam-se em separado para debater questões dos deputados do mesmo estado, de outros estados ou encaminhadas pelo rei. Jean Bodin. Relation journaliere de tout ce qui est negotié en l´assemblée generalle des estats, assignez par le Roy en la ville de Blois, en l´an mil cinq cens soixante & seixe. Paris: Martin Gobert & Melchior Mondiere, Libraires à Paris, 1614. Devo essas reflexões ao bolsista de iniciação científica (UFF/CNPq) Wagner Leal Carneiro, que produziu análise criteriosa do documento.
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religiosa, por “doces e santas vias” ou pela guerra. A assembléia do terceiro estado acabou
por decidir uma conciliação entre os deputados Versoris e Bodin: manutenção do
catolicismo oficial, mas visando a paz e o afastamento da guerra contra os huguenotes. Mas
Versoris, como orador do Tiers, omitiu o ponto decidido na assembléia, o trecho que
propunha a unidade religiosa sem guerra. Para alívio dos defensores da paz, nova
assembléia tornou a discutir o artigo da unidade religiosa, a figurar no cahier do terceiro
estado entregue ao rei. De posse dos cahiers généraux dos três estados, o rei deliberou com
seu conselho privado.
Outro tema refere-se à formação da Liga, movimento ultracatólico disputado em seu
comando pelo duque de Guise e pelo rei Henrique III. Percebe-se que a fundação da Liga
em 1576 por Henrique de Guise duvidava dos princípios da monarquia Valois, sob suspeita
de contemporizar com os protestantes. É significativa então a disputa entre o rei e o duque
pela chefia da Liga, com a intenção do soberano em cooptar o movimento que podia
fomentar a rebelião.
A situação das finanças do reino era muito debatida nas assembléias do terceiro estado,
pois era preciso levantar recursos para a guerra. Como vimos, diferentemente das outras
ordens, o terceiro estado optou pela manutenção do catolicismo oficial, mas sem guerra.
Além disso, exigia uma prestação de contas sobre os recursos dos cofres reais. Após intenso
debate, surgiram propostas de recolhimento de quantias para atender ao serviço do rei. O
terceiro estado mostrou-se arredio, alegando impossibilidade de qualquer oferta. O rei
comunicou então às três ordens sua disposição em alienar parte de seu domínio, isto é, do
próprio reino. Essa possibilidade causou polêmica entre os deputados do Tiers. Bodin
manifestou-se contra a idéia do rei. Parece plausível pensar a proposta de Henrique III
como estratégia na obtenção de novos impostos necessários à guerra contra os protestantes.
Parte da narração de Bodin refere-se às missões diplomáticas enviadas aos chefes
reformados. Enquanto Henrique de Navarra acolheu de bom grado os embaixadores do rei
francês, reconhecendo a legitimidade da assembléia, o príncipe de Condé, segundo príncipe
de sangue do reino, recusou-se a receber a mensagem dos “pretensos estados gerais de
Blois”. Foi enviada também uma embaixada ao marechal Damville, chefe dos politiques,
grupo ao qual se filiava Bodin. Damville entendia que as turbulências da França decorriam
dos pecados dos franceses, constituindo um castigo divino. Moderado, reafirmou sua crença
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na fé católica, mas insistiu na coexistência pacífica entre as religiões, lembrando aos
deputados as experiências vividas quando os éditos foram respeitados.
O último ponto diz respeito ao discurso do duque de Montpensier. Enviado ao sul da
França para encontrar o rei de Navarra, impressionou-se com o desespero dos camponeses
na guerra, atirando-se de joelhos ante ele para implorar a paz. Ao retornar à corte,
Montpensier passou a defender a moderação. O discurso feito pelo duque às três ordens
apelava à tolerância e à paz, ecoando entre os deputados do terceiro estado.
No vivo relato de Bodin, percebe-se a incerteza da situação, entre as perspectivas
divergentes dos deputados. O Tiers aparece de forma heterogênea e conflitante. A questão
da Liga também evidencia os poderes concorrentes no reino, que culminariam na morte do
duque de Guise em 1588 e no regicídio de 1589. Por sua vez a inalienabilidade dos
domínios régios, considerada por Mousnier lei fundamental da monarquia francesa, foi
usada como moeda no debate político pelo próprio soberano. As missões diplomáticas
expressam que aquela reunião não se bastava, sendo necessário consultar outros poderosos
além do rei. Por fim, o episódio do duque que mudou de posição demonstra o peso das
trajetórias individuais e o oscilar das atitudes. Sobretudo, percebe-se a parcialidade do
relato de um vaidoso Bodin, a valorizar seus pontos de vista e preferências. Longe de uma
força oposta à monarquia, os estados gerais representavam o conjunto heterogêneo daqueles
poucos que podiam se fazer representar. Nessa reunião, entre outros, brilhou o próprio
Bodin, contra ou a favor do rei, por sua atuação e pela narrativa construída em sua função.14
No caso português, Pedro Cardim estudou as cortes no século XVII como expressões de
uma sociedade corporativa. Naquele ambiente político de matriz ético-católica, marcado
pela pluralidade jurisdicional, as cortes aludiam à sociedade como aglomerado de estados e
corpos sociais. Ademais, os três estados falavam de sua reunião como um tribunal, com
vocabulário forense. Os conflitos ocorriam quando um dos corpos via sua jurisdição
desrespeitada. O monarca então governava respeitando os particularismos, sem tocar nos
equilíbrios sociais. Desse modo Cardim alude à metáfora da sociedade com contornos
14 Rodrigo Bentes Monteiro, A república de Jean Bodin: uma interpretação do universo político francês durante as guerras de religião. Tempo. Departamento de História da Universidade Federal Fluminense. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2003, v.8, n.15, p.161-77, e Família, soberania e monarquias na república de Jean Bodin. Maria Fernanda Bicalho & Vera Maria Lúcia do Amaral Ferlini (Org.). Modos de governar. Idéias e práticas políticas no império português séculos XVI a XIX. São Paulo: Alameda, 2005, p.221-38.
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humanos na representação da sociedade do Antigo Regime, exemplificada por Hespanha e
Xavier.15
Nesse sentido, os direitos particulares não eram incompatíveis ao “bem comum”,
argumento neo-escolástico invocado pelos que sentiam seus direitos ameaçados. Trata-se
de um governo conservador, distante do atual sistema parlamentar fundado na vontade livre
do indivíduo e na contemporânea acepção da representação. A convocação das cortes pelo
rei bom e justo era episódica e irregular, e sua função era mais consultiva, hábito inspirado
na administração clerical. Não obstante, alguns criticavam o excessivo número de pessoas
nas reuniões, as despesas da convocação, a lentidão das decisões. Ministros régios também
não apreciavam a imprevisibilidade dos resultados. Esses aspectos podem ter influenciado a
inexistência de cortes em Portugal no século XVIII.
Ao explorar a semântica do termo representação, Cardim alude ao clima
transcendental da fórmula “este é o meu corpo”, proferida por Cristo sobre a hóstia
consagrada. Esse mistério teria gerado uma atmosfera de respeito e medo em torno da
divindade e seu representante, inspirando obediência. Os reis então transferiram esse
misticismo divino para a monarquia secular. Na representação da divindade, do corpo
social ou da monarquia, redobrava-se a presença na exibição de caracteres da entidade
representada. O poder da imagem estava assim a serviço da dominação, intensificando
laços entre rei e vassalos. Mas também se acreditava que as cortes representavam o reino;
de modo misterioso toda a sociedade estaria presente na sessão, como união mística dos
vários corpos, mediante seus representantes. Para o historiador português, a pluralidade de
significados de representar relacionava-se aos diversos sentimentos existentes nas cortes,
porque eram plurais os pertencimentos àquele ordenamento político.16
Sobre a composição dos “três estados”, Cardim observa que nobres e clérigos
participavam das cortes como senhores de vassalos, enquanto procuradores falavam em
nome de uma cidade, vila ou região. Mas muitos prelados também enviavam procuradores,
substitutos de sua presença física. Apenas parte da aristocracia tinha assento em cortes. Os
titulares compunham a maior parte deste grupo, os demais lugares preenchidos por oficiais
15 Pedro Cardim. Cortes e cultura política no Portugal do Antigo Regime. Lisboa: Cosmos, 1998, p.17-50. 16 “Representar” denotava ainda uma realidade jurídica. O conceito foi criado na Roma antiga para designar a representação familiar. Na esfera doméstica aparecem os vocábulos procurator e proctor para aquele que “representa” um membro da família. Nesse contexto surge a noção do pater famílias a representar os interesses familiares. No século XVII havia ecos dessa matriz doméstica no ambiente jurídico. Ibidem, p.33-6.
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da casa real, do exército, ministros da câmara de Lisboa e oficiais de tribunais superiores. O
braço da nobreza era assim reduzido, convocado e não eleito, caracterizado pelo grupo que
protagonizava a política palaciana. O braço do povo era formado por mais de duzentos
procuradores de cem localidades, dois para cada cidade e vila com assento em cortes,
configurando uma territorialidade da representação do espaço político.17 Nesses eventos
com aproximadamente quatrocentas pessoas, reunidas onde o rei as convocou, a seleção
dos procuradores vinculava-se a oligarquias locais. Devido aos custos, um indivíduo podia
ir a várias cortes como procurador, e por vezes representar mais de uma cidade. De acordo
com as clientelas, a distribuição de honras e privilégios antes das cortes era comum, como
recompensas por serviços prestados.
Mas os Autos de cortes e levantamentos ao throno dos príncipes e reys de Portugal,
compilados por Diogo Barbosa Machado em meados do século XVIII, impressionam pela
simbiose entre juramentos e aclamações dos príncipes e reis de Portugal, e as assembléias
de cortes. Agrupados em dois tomos na grande coleção de opúsculos, os folhetos abrangem,
no primeiro tomo, desde as falsas atas das cortes de Lamego, até o juramento de Felipe III
de Portugal, IV de Espanha. Há folhetos que apenas respondem capítulos apresentados por
procuradores de cidades e vilas no reinado de D. João III, ou tratam do compromisso de D.
Felipe I em preservar direitos dos portugueses, em Tomar. Nos documentos com narrativas
cerimoniais, alguns textos abordam somente as cortes, e outros narram levantamentos e
juramentos de reis e príncipes sucessores. No entanto, as duas cerimônias ocorriam em
datas muito próximas, gerando identificação comum entre os eventos, não raro com
descrições publicadas em conjunto.18
Vários motivos justificavam a convocação de cortes, como o suposto desejo de
renúncia da regente Catarina de Áustria, ou a necessidade de aumentar tributos para a
defesa no tempo de D. Sebastião. É importante ressaltar um padrão nas celebrações, com
descrições minuciosas sobre o espaço, decorações e lugares de cada participante, 17 Além do reino, outras cidades insulares e ultramarinas tiveram participação irregular nas cortes: Angra, Goa, Salvador e Maranhão. A importância dos concelhos e das câmaras ultramarinas na administração portuguesa alude a outro uso da representação, como requerimento de algo a uma autoridade, mormente o poder soberano. Maria Fernanda Bicalho, As representações da câmara do Rio de Janeiro ao monarca e as demonstrações de lealdade dos súditos coloniais. séculos XVII-XVIII. Alberto Vieira (Org.). O município no mundo português. Funchal: Centro de Estudos de História do Atlântico, 1998, p.523-43. 18 Diogo Barbosa Machado (Org.). Autos e cortes e levantamentos ao throno dos príncipes e reys de Portugal. Lisboa: s.n.t., t.1. O estagiário da Biblioteca Nacional – Rio de Janeiro Gustavo Kelly de Almeida realizou fichamento competente desta documentação, impossível de ser citada separadamente.
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principalmente os próximos ao rei. Isso não impedia conflitos de precedência, quando, por
exemplo, D. Antonio beijou a mão de D. Sebastião antes do duque de Bragança. Entretanto,
o tema da sucessão régia é recorrente. Na vacância do trono pelo rei ausente em 1578, um
folheto expressa inquietação pelos juramentos de D. João, duque de Bragança, e de D.
Antonio, prior do Crato. Ante a necessidade de Felipe I ausentar-se de Portugal, o opúsculo
narra o juramento do cardeal arquiduque Alberto de Áustria para governar o reino. Outro
documento trata das cortes de Lisboa em 1619, com os juramentos de D. Felipe II e de seu
filho como legítimo sucessor da coroa lusa. Era costume jurar-se na ocasião do
levantamento ao trono, mas como o monarca estava distante ... Justificava-se então a
demora da visita do rei de Espanha a Portugal, defendendo–se que o Habsburgo sabia o
momento certo de conceder a grandiosa mercê aos súditos portugueses: poder vê–lo. Além
da metáfora corporal, a idéia de harmonia entre rei-pai e súditos-filhos era muito
desenvolvida. O soberano – presente ou futuro – também era esposo do reino, ou pastor das
fiéis ovelhas. Os vassalos por sua vez apareciam como membros da respublica, que
transferia seu poder ao rei. Nesse sentido, o rei seria o sol e a república a lua, a receber seus
raios.
O segundo tomo compilado pelo abade de Sever apresenta documentos entre os
reinados de D. João IV e D. José I. Os cerimoniais não apresentam diferenças em relação
aos anteriores, exceto pelas celebrações na capela real, e pela participação do povo nos
levantamentos e juramentos de D. Afonso VI, D. João V e D. José I. Entre vinte e seis
folhetos, onze pertencem ao reinado de D. João IV. Neles os Felipes são vistos
pejorativamente, enquanto o Bragança é descrito como legítimo herdeiro da coroa, natural
do reino, pai dos vassalos, redentor da pátria humilhada e subjugada a Castela. A defesa era
reforçada com argumentos providencialistas: em 1640, a restituição do trono aos Braganças
seria uma misericórdia divina pelos pecados dos portugueses, ou comprovava a profecia
comunicada a Afonso Henriques no Campo de Ourique. D. João IV seria ainda o
encoberto, demonstrando o misticismo que envolvia o novo rei.19
Nas várias cortes convocadas por este monarca, destaca-se a necessidade de tributos
para defender o reino na guerra com Castela, diversos dos opressores impostos castelhanos.
A imagem do rei que ouve os súditos nas cortes, aliviando-os dessa contribuição, é
19 Ibidem, t.2.
12
freqüente. Nas cortes de 1641 lembrou-se também que o estado dos povos participou da
reunião junto aos outros dois estados do reino, diferente do ocorrido na aclamação de D.
João IV. Todavia, o Assento feito em cortes ... na aclamação de D. João IV possui como
ponto principal a justificativa da legítima sucessão deste rei. Nessa questão a duquesa de
Bragança, na morte do rei cardeal D. Henrique, devia ter assumido o trono por ser filha
legítima do infante D. Duarte, representando–o em linha varonil, melhor que Felipe II de
Espanha, que representava uma infanta portuguesa.
Entre os opúsculos, outro momento forte situa-se na regência do príncipe D. Pedro.
Nas cortes de 1668 realizadas em dois atos, em janeiro reconhecia–se o infante como
príncipe sucessor da coroa na morte de D. Afonso VI, caso este não tivesse filhos legítimos.
Nos discursos exaltava–se um príncipe perfeito - D. Pedro – e o uso da eleição para
príncipes que não eram sucessores naturais do reino, à maneira dos imperadores romanos.
Já em junho, as cortes chamavam atenção para o fim da guerra entre Portugal e Castela, que
transmitia felicidade e confiança ao reino, por conseguinte em D. Pedro.20 Em vários
folhetos, D. Afonso através de alvarás manifestava impedimentos para exercer o governo
do reino. Em 1674 novamente há sincronia entre o juramento da infanta D. Isabel Luisa
Josefa como sucessora da coroa, e as cortes. A infanta já fora jurada ao nascer, e recebia
assim um segundo juramento. Tal fato evidencia a preocupação de D. Pedro em formalizar
a sucessão, tensão evidente nos juramento e levantamento de D. João V, quando todos os
infantes mais novos juraram fidelidade ao novo rei, até mesmo os de pouca idade.
Como vimos, a proximidade entre cortes e juramentos de príncipes e reis
portugueses, desde o fim do reinado de D. Sebastião, fez com que muitos registros fossem
publicados conjuntamente, resultando na fusão temática em dois volumes da coleção de
opúsculos de Barbosa Machado no século XVIII. Mas a junção de temas e publicações
também indica a delicadeza da questão sucessória para a monarquia portuguesa, em
especial sob a égide Bragança - o que não acontecia na França -, e por isso as cortes eram
convocadas. Por sua vez os tributos e a guerra eram temas comuns aos estados gerais e
autos de cortes contemplados, fortes elementos propulsores de assembléias. Mais uma vez,
nesses casos as assembléias representativas ajudavam o rei a governar, sentido bastante
20 Para uma discussão sobre as cortes de 1668, em análise que concebe os discursos políticos como representações, Ângela Barreto Xavier. ‘El Rei aonde póde, & não aonde quer’. Razões da política no Portugal seiscentista. Lisboa: Colibri, 1998.
13
diferente das cortes de 1820. Todavia, mais que no relato de Bodin, percebe-se neste
conjunto documental a indistinção entre descrições cerimoniais e ações políticas, o que
configurava poderes e suas relações mediante desempenhos rituais e seus inevitáveis
conflitos.
Poderes em representação
Participar da cerimônia significava aceitar seu lugar na hierarquia social. Desta
forma Pedro Cardim une os objetivos deste artigo, ao comentar a bibliografia conhecida
sobre a sociedade de corte, com análises de imagens do poder e estudos do cerimonial, e
sua repercussão na historiografia política do século XX, relacionando-a ao seu objeto de
estudo.21
Desnecessário expor conteúdos de obras seminais como as de Marc Bloch, Ernst
Kantorowicz, Norbert Elias, Michel Foucault, Clifford Geertz, Louis Marin e Pierre
Bourdieu, algumas delas interdisciplinares, para a análise da representação do poder
soberano na Época Moderna.22 Elas inspiraram vários trabalhos e muito debate. Na
consideração do poder régio de forma unívoca e espetacular, destaca-se a difusão dos livros
de Ralph Giesey, Peter Burke e Jean-Marie Apostolidès.23 Contudo, devemos considerar o
quanto esses autores deixam escapar em seus estudos conflitos políticos inerentes à
montagem de um cerimonial, as clientelas nos bastidores do poder ou mesmo as disputas
entre personalidades rivais, como é evidente nos episódios que envolvem Nicolas Fouquet e
Luís XIV.24
21 Pedro Cardim. Cortes e cultura política no Portugal do Antigo Regime ..., p.51-92. 22 Marc Bloch. Os reis taumaturgos. O caráter sobrenatural do poder régio. França e Inglaterra. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, primeira edição de 1924; Ernst Kantorowicz. Os dois corpos do rei. Um estudo sobre teologia política medieval. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, primeira edição de 1957; Norbert Elias. A sociedade de corte. Lisboa: Estampa, 1987, primeira edição de 1969; Michel Foucault. As palavras e as coisas. Uma arqueologia das ciências humanas. São Paulo: Martins Fontes, 2002, primeira edição de 1966; Clifford Geertz. Negara. O Estado teatro no século XIX. Lisboa / Rio de Janeiro: Difel / Bertrand Brasil, 1991, primeira edição de 1980; Louis Marin. Le portrait du roi. Paris: Les Éditions de Minuit, 1981 e Pierre Bourdieu. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003, primeira edição de 1989. 23 Jean-Marie Apostolidès. O rei-máquina. Espetáculo e política no tempo de Luís XIV. Rio de Janeiro / Brasília: José Olympio / Edunb, 1993, primeira edição de 1981; Ralph Giesey. Le roi ne meurt jamais. Les obsèques royales dans la France de la Renaissance. Paris: Flammarion, 1987 e Peter Burke. A fabricação do rei. A construção da imagem pública de Luís XIV. Rio de Janeiro: Zahar, 1994, primeira edição de 1992. 24 O neo-cerimonialismo de Giesey foi criticado por Alain Boureau em seu estudo meticuloso do funeral de Carlos VIII em 1498. Alain Boureau. Le simple corps du roi. L’impossible sacralité des souverains français XVe-XVIIIe siècle. Paris: Les Éditions de Paris, 1988. Embora deixem claro que suas abordagens priorizam a produção de imagens em torno da Luís XIV – ícone da representação do poder na Época Moderna –, Apostolidès e Burke negligenciam a história de artistas, patronos e clientelas, as ambigüidades da representação, e os episódios concernentes à ascensão e queda do superintendente de finanças Fouquet, seu
14
Com efeito, alguns autores procuram discutir a hipérbole de imagens e os modelos
teóricos, ao conceder maior atenção ao corpo físico do soberano, problematizar arcabouços
conceituais, ou lidar com o texto literário como um objeto histórico.25 Roger Chartier busca
perceber o público leitor na França do Antigo Regime, e assim avança na compreensão de
vínculos entre textos e contextos, problematizando a documentação e a cultura política.26
Todavia, como notou Alain Boureau, a idéia de uma história construída pela linguagem, ao
lado das estruturas da realidade, não fez ainda um caminho sólido na atual historiografia,
dividida entre o estudo do “real” que descarta a película da linguagem, e a análise das
imagens deste real, abandonada aos “especialistas da distorção”.27
É o momento então de encaminharmos essas questões na análise de outro evento e
seu registro, que passo a relatar em forma sumariada. Em 1747, Antonio Isidoro da Fonseca
publicou em sua segunda tipografia instalada no Rio de Janeiro a relação da entrada do
novo bispo D. Fr. Antonio do Desterro Malheiro na cidade. Nomeado para esta diocese, o
beneditino D. Fr. Antonio já fora bispo em Angola por sete anos, e chegava então de
Luanda. O autor da Relação da entrada ... Luís Antonio Rosado da Cunha, juiz de fora da
cidade, descreveu o “alvoroço dos povos” na recepção do prelado. Ante a demora da
embarcação que traria o novo bispo ao porto, o governador da capitania Gomes Freire de
Andrada preparou um iate, e nele fez embarcar José Fernandes Alpoim - cavaleiro da
Ordem de Cristo e oficial de várias patentes - e uma comitiva para procurar o bispo perdido
pelas ilhas, segundo boatos que corriam na cidade. Não encontrando o navio, Alpoim
retornou. Mas na segunda feira ao meio dia, a fortaleza de Santa Cruz sinalizou a chegada
de D. Fr. Antonio à baía, e logo o governador embarcou no escaler acompanhado de
tenentes generais para cumprimentar o bispo. Enquanto isso, ao fundo da Ilha das Cobras, o
apego ao belo e ao fausto, em relação à história pessoal do soberano, contexto que não me parece ser de menor importância. Paul Morand. Fouquet, ou le soleil offusqué. Paris: Gallimard, 1961; Daniel Dessert. Fouquet. Paris: Fayard, 1987. 25 Sergio Bertelli. Il corpo del re. Sacralità del potere nell’Europa medievale e moderna. Firenze: Ponte Alle Grazie, 1995; Agostino Paravicini Bagliani. Le corps du pape. Paris: Seuil, 1997; Emmanuel Le Roy Ladurie. Saint-Simon ou o sistema da corte. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004; Alcir Pécora. Teatro do sacramento. A unidade teológico-retórico-política dos sermões de Antonio Vieira. São Paulo / Campinas: Edusp / Unicamp, 1994. 26 Roger Chartier. A história cultural. Entre práticas e representações. Lisboa / Rio de Janeiro: Difel / Bertrand Brasil, 1990, p.189-229, e Leituras e leitores na França do Antigo Regime. São Paulo: Unesp, 2004. Cf. também Michèle Fogel. Les cérémonies de l’information dans la France du XVIe au XVIII siècle. Paris: Fayard, 1989. 27 Alain Boureau. Histoires d’un historien Kantorowicz. Paris: Gallimard, 1990, p.118. Cf. também Rodrigo Bentes Monteiro, Crítica monumental. Tempo ..., 2005, v.10, n.19, p.201-5.
15
“povo” corria às praias ao som das salvas de tiros, além das autoridades episcopais,
ministros, prelados e “nobreza”. Todos a esperar D. Fr. Antonio, que se recolheu no
mosteiro de São Bento, onde permaneceu alguns dias recebendo parabéns dos fiéis.28
Em onze de Dezembro, representou-se a ópera Felinto Exaltado, com a assistência
do bispo, governador, mestres de campo, ministros, religiosos e “nobreza”, convidados pelo
juiz de fora. O evento foi finalizado com um púcaro de água. Fatigado pela viagem, o bispo
preferiu descansar antes de fazer sua entrada na cidade, tomando remédio indicado pelos
médicos para conter a indisposição de um “difluxo” que o oprimiu no mar. Para sua entrada
foram construídos sete arcos, o primeiro ao fim da Ladeira de São Bento, de onde o bispo
entraria na catedral. Os “homens de negócio” colaboraram no empreendimento,
incentivados pelo ouvidor.
Oito dias antes o bispo participou ao governo, câmara e cabido da cidade que em
primeiro de janeiro faria sua entrada. Os clérigos e confrarias foram avisados que
estivessem às duas horas da tarde no mosteiro, acompanhando em procissão D. Fr. Antonio
à catedral. Neste dia de manhã os arcos já estavam enfeitados, bem como as ruas e janelas,
com tapeçarias e flores, tudo preparado por ordem da câmara. O governador ordenou que
terços pagos margeassem as ruas com seus mestres de campo, auxiliares e cavaleiros, assim
nomeados no documento. Às três horas Gomes Freire de Andrada saiu da Casa do Governo
em um rico paquebote acompanhado de uma esquadra, em direção ao mosteiro. Depois de
cumprimentar o bispo montado a cavalo, junto aos tenentes generais e oficiais, o
governador desceu para verificar as ruas e a soldadesca. Depois entrou no mosteiro,
seguindo D. Fr. Antonio.
Às quatro horas da tarde o “Senado” saiu da câmara com o estandarte,
acompanhando os “cidadãos” para a entrada. Com vestes episcopais, D. Fr. Antonio
esperou os vereadores na porta do mosteiro, ministrando-lhes a benção. Oito cidadãos
seguraram então as varas do pálio. E assim partiu a procissão, com o auxílio do irmão do
bispo, “fidalgo da Casa de Sua Majestade”, e de outros insignes nos paramentos da lustrosa
entrada. Ao longo do percurso, os sete arcos são descritos por Rosado da Cunha em sua
28 Luís Antonio Rosado da Cunha, Relação da entrada que fez o excelentíssimo e reverendíssimo senhor D. Fr. Antonio do Desterro Malheiro, bispo do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Segunda Oficina de Antonio Isidoro da Fonseca, 1747. Diogo Barbosa Machado (Org.). Elogios oratorios e poéticos dos cardeaes, arcebispos, bispos e prelados portuguezes. Lisboa: s.n.t., t. II, p.196-206.
16
grandiosidade e riqueza de decoração, com seda, franjas e galões de prata, e vários motivos
mitológicos. Ao fim do cortejo via-se a insígnia mitral, e as armas dos Malheiros e
Reimões, da casa de sua “Excelência Reverendíssima” na província do Minho, vila de
Viana.
Chegou enfim o bispo à catedral, esperado pelo deão, que de joelhos entregou-lhe o
aspersório. Preparado o turíbulo, o bispo foi levado ao altar, onde fez uma oração. Entoou-
se então o Te Deum, e cumpriram-se os ritos eclesiásticos. Na determinação do mestre de
cerimônias, Gomes Freire de Andrada foi conduzido ao bispo para receber a benção e beijar
o anel episcopal, seguido pelo cabido, ministros, “Senado”, “pessoas nobres”, religiosos e
clericais. Já despido dos hábitos pontificais, o bispo pôs-se a caminho de seu “Palácio” ao
som de mais salvas ordenadas por Gomes Freire. Como a distância era grande, D. Fr.
Antonio foi de liteira, ladeado pelo governador capitão general e demais oficiais. Alguns
acompanharam o cortejo em carruagens. À noite houve luminárias e repiques de sinos,
“com que a cidade aplaudia esta apetecida entrada de sua Excelência Reverendíssima.”
Há muitas maneiras de explorar este documento. Um tópico possível seria abordar o
significado dos espaços da cidade neste século XVIII, entre a Baía da Guanabara, as
fortalezas de Santa Cruz e da Ilha das Cobras, a Casa dos Governadores – hoje Paço
Imperial -, o mosteiro de São Bento, a Sé que constantemente mudava de igreja, e o paço
episcopal – mais conhecido como Casa do Bispo. Nesse contexto a atuação dos
engenheiros militares era expressiva, mormente a de José Fernandes Alpoim na edificação
da Casa dos Governadores em 1743, do Aqueduto da Carioca, da nova alfândega e
provavelmente da Casa do Bispo. Espaços simbólicos que denotavam o crescimento do Rio
de Janeiro.29
Não menos importante seria detalhar a situação administrativa, por exemplo na
instituição do cargo de juiz de fora na cidade em 1696. Na história desta câmara municipal,
observo a utilização imprópria no documento do termo Senado, só permitido pela coroa em
1757 após desavenças com o tribunal da Relação, instalado no Rio em 1751. Maria
Fernanda Bicalho por sua vez explica que, naquele mundo, cidadãos eram os que
desempenhavam ou tinham desempenhado cargos administrativos nas câmaras, incluindo
29 Nireu Cavalcanti. O Rio de Janeiro setecentista. A vida e a construção da cidade da invasão francesa até a chegada da corte. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.
17
seus descendentes, vinculando-se portanto a uma sociedade de honras e privilégios. Esses
aspectos evidenciam a importância da lógica do prestígio – e da representação do poder –
na Época Moderna.30
Nesse âmbito exercia-se o governo de Gomes Freire de Andrada na capitania de
1733 a 1763, abrangendo boa parte do meridiano da América portuguesa no período,
evidenciando seu perfil militar. De modo sucinto, a atuação de Gomes Freire no
recrutamento para a guerra no sul indispôs freqüentemente o governo da capitania do Rio
de Janeiro aos privilégios adquiridos pelos membros da câmara, em princípio isentos do
serviço. Por outro lado, a aliança entre o governador e os novos homens de negócio também
gerava conflitos com a câmara, relacionados à nova posição do Rio no império português,
mas também às configurações assumidas pelas elites locais e regionais. Nesse sentido, João
Fragoso chama atenção para a dinâmica interna daquela sociedade colonial, verificando
disputas de poder que fazem mais complexas as relações entre o reino e a América
portuguesa. Parece plausível assim pensar a própria câmara do Rio em seus conflitos
internos, envolvendo diferentes clientelas, que nesse momento atingiam outras capitanias
do centro-sul, mormente pelo incremento da mineração.31
No ambiente fluminense que se projetava para o interior da América mas também
para o Atlântico, chegava o novo bispo vindo de Angola. Na esteira do que foi analisado
em termos econômicos no século XVII por Luiz Felipe de Alencastro, Maria de Fátima
Gouvêa menciona a circulação de eclesiásticos pelos diferentes bispados ultramarinos
portugueses. Desse modo as conexões administrativas entre Brasil e Angola são observadas
nas trajetórias de alguns bispos no século XVIII, entre eles D. Fr. Antonio do Desterro,
30 Rodrigo Bentes Monteiro. O teatro da colonização ..., p.44-6. Maria Fernanda Bicalho. A cidade e o império. O Rio de Janeiro no século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p.322-36, e O que significava ser cidadão nos tempos coloniais. Martha Abreu & Rachel Soihet (Org.). Ensino de história. Conceitos, temáticas e metodologia. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003, p.139-51. 31 Maria Fernanda Bicalho. A cidade e o império ...; Antonio Carlos Jucá de Sampaio. Na encruzilhada do império. Hierarquias sociais e conjunturas econômicas no Rio de Janeiro (c.1650-c.1750). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003. João Fragoso, Potentados coloniais e circuitos imperiais: notas sobre uma nobreza da terra, supracapitanias, no Setecentos. Nuno G. F. Monteiro; Pedro Cardim & Mafalda Soares da Cunha (Org.). Optima Pars. Elites ibero-americanas do Antigo Regime. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2005, p.133-68. Concordo com a análise do historiador no referente às estratégias de ascensão social próprias do Antigo Regime na América portuguesa. A meu ver, o uso do termo “nobreza da terra”, tal como empregado por determinadas elites coloniais, não implica estatura equivalente a um nobre reinol, mesmo considerando-se a fluidez das fronteiras da nobreza lusa no século XVIII. Como vimos, a câmara do Rio intitulava-se senado sem usufruir esse reconhecimento de instâncias superiores. No entanto, mais uma vez estamos ante o fenômeno da representação do poder, quando parecia ser importante essa auto-intitulação para obtenção de prestígio.
18
bispo de Angola entre 1738 e 1746, e do Rio entre 1747 e 1773, governando inclusive a
capitania interinamente em 1763 na morte do conde de Bobadela, Gomes Freire de
Andrada. Sobre o episcopado no império português setecentista, Caio Boschi detalha os
perfis e o trânsito desses bispos ultramarinos, em maioria de origem portuguesa, que não
circulavam apenas entre províncias, mas também em direção ao reino.32
Espaços e obras, instituições, privilégios e cargos, guerras e economias, governos e
redes. Entretanto, é preciso enfatizar a indistinção entre o cerimonial de entrada do bispo na
cidade, e os poderes apenas esboçados por menções a análises da vida social no Rio do
tempo de Gomes Freire. Não há como proceder uma investigação detalhada sobre
personagens participantes da cerimônia, suas trajetórias e relações. Contudo, importa
compreender que a chegada de D. Fr. Antonio proporcionava o momento para que se
evidenciassem os poderes na cidade.
Desta forma percebe-se no documento certa disputa entre os protagonistas da
descrição, mormente o governador da capitania e os cidadãos membros da câmara,
tradicionalmente responsável pelos festejos. O governador capitão-general destacava-se
associado ao aspecto militar, com tenentes, mestres de campo, cavaleiros, auxiliares, terços
e soldados, fortalezas, salvas de tiros e esquadras. Já os cidadãos aparecem em harmonia ao
povo, na organização do evento com arcos, ruas e janelas enfeitadas, e segurando ainda o
pálio que protegia e dignificava o bispo. O autor da Relação ... era o juiz de fora da cidade
Rosado da Cunha, elemento crucial nas delicadas relações entre a câmara e o poder régio.
O terceiro elemento desta tríade de poderes era representado pelo bispo, liderando os
clérigos. Nessa circunstância D. Fr. Antonio significava o novo, disputado pelos outros
poderes, capaz de lhes conferir legitimidade, ainda mais por sua função sacramental. Por
isso sua entrada devia ser aparatosa – sendo até atrasada -, não apenas pelo poder que
representava, mas pelos outros que como ele dialogavam.
A existência de um mestre de cerimônias a regular precedências na missa denota a
importância do momento ritual. Por sua vez a apresentação da ópera no mosteiro, e a
32 Luiz Felipe de Alencastro. O trato dos viventes. Formação do Brasil no Atlântico sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000; Maria de Fátima Gouvêa, Poder político e administração na formação do complexo atlântico português (1645-1808). João Fragoso, Maria Fernanda Bicalho & Maria de Fátima Gouvêa (Org.). O Antigo Regime nos trópicos ..., p.300; e Caio Boschi, Episcopado e inquisição. Francisco Bethencourt & Kirti Chaudhuri (Org.). História da expansão portuguesa. O Brasil na balança do império (1697-1808). Lisboa: Círculo de Leitores, 1998, v.III, p.372-95.
19
decoração dos arcos na entrada, mesmo modestas em relação a outras festividades na
América portuguesa, merecem estudos que considerem as alegorias e temas escolhidos. Na
descrição, sinais distintivos também foram proferidos em relação aos homens de negócio
que custearam os arcos, e aos membros da nobreza, presentes na ópera e na missa.
Devemos questionar em que medida essas classificações eram coincidentes ou não a grupos
e indivíduos já mencionados. Em todo caso, o povo – designação para os sem privilégios e
fora da política - foi relatado de forma passiva, acompanhando autoridades e demais
insignes. Desconfiemos também desta percepção, mais relacionada aos emissores do
documento do que ao contexto tumultuado de uma cidade setecentista sujeita a perigos
externos e internos.33
Mas o principal responsável pela informação da cerimônia de entrada do bispo foi
Antonio Isidoro da Fonseca, que instalou sua segunda gráfica no Rio em 1747. Conhecido
em Lisboa por suas impressões, seu estabelecimento na cidade é curioso. Já se cogitou para
ele uma origem cristã-nova, fazendo-o fugir da Inquisição. O tipógrafo justificaria depois
sua vinda pelos maus negócios que tinha em Lisboa. Há também a hipótese – não
excludente - do seu favorecimento por Gomes Freire, protetor das letras. Além da Relação
da entrada ..., Isidoro da Fonseca imprimiu dois trabalhos no Rio: um conjunto de versos
encomiásticos, epigramas e sonetos dedicados ao bispo - também existente na coleção
Barbosa Machado -, e uma tese do jesuíta Francisco de Faria, impressa em seda e com tipos
diversos, itálicos e enfeites, revelando destreza técnica. Todavia, quando se soube em
Lisboa que a relação dos festejos da entrada do bispo foi impressa no Rio, D. João V
baixou uma provisão em julho de 1747 para fechar a tipografia, apreender o material e
remeter tudo ao reino, pois os textos seriam ilegais sem as licenças da Inquisição e do
Conselho Ultramarino. Com efeito, as únicas autorizações que constam da Relação ... são
do próprio D. Fr. Antonio, e de Cristóvão Cordeiro, talvez um padre ou familiar da
Inquisição. De volta a Portugal, Isidoro da Fonseca ainda pediria em 1750 para retornar ao
Rio e instalar nova tipografia. Mas isso lhe foi negado.34
33 Roger Chartier, A história cultural ...; Maria Fernanda Bicalho, A cidade e o império ..., p.257-98. 34 Saíram de seus prelos o tomo I da Bibliotheca Lusitana de Diogo Barbosa Machado, além de obras de D. José Barbosa – pregador oficial da corte e irmão de Diogo -, Manoel Severim de Faria, e Antonio José da Silva, o judeu, entre outras. Rubens Borba de Moraes. O bibliófilo aprendiz. Prosa de um velho colecionador ... Brasília / Rio de Janeiro: Briquet de Lemos / Casa da Palavra, 2005, p.151-63; Laurence Hallewell. O livro no Brasil (sua história). São Paulo: Edusp, 1985, p.1-23 e Alberto Dines, Aventuras e desventuras de Antônio
20
Os vínculos que uniam o tipógrafo ao governador, ao bispo e ao juiz de fora, e até
mesmo aos irmãos Barbosa Machado, são merecedores de estudos mais cuidadosos.
Todavia, importa considerar a importância da atuação deste tipógrafo nos poderes
representados em torno do bispo, no contexto de maior projeção da cidade no século XVIII,
bem de acordo à civilização da escrita definida por Fernando Bouza Álvarez. Desse modo,
a escrita e sua divulgação, como fenômenos típicos da Época Moderna, são diretamente
associadas ao poder, multiplicando sua presença. Resta saber se, em torno da cerimônia da
informação que caracterizou a entrada episcopal, nas relações entre Antonio Isidoro e o
provável protetor Gomes Freire, o autor Rosado da Cunha e o beneditino Malheiro, havia
prevalência de alguma parte, ou antes, sintonia de interesses entre elas.35
Esta pode ser a pista para um aspecto por vezes negligenciado, ao se conceder muita
atenção a conflitos e tensões, compondo assim uma imagem também distorcida da história,
e nesse âmbito, da colonização. A cerimônia da entrada de D. Fr. Antonio em sua Relação
... também deixa entrever idéias de harmonia e ordem, na qual os habitantes da cidade, em
especial os poderosos, beneficiavam-se da aura mística que revestia naquele momento o
bispo, ritual em que os fundos religioso e laico se confundiam. Uma sociedade marcada
pela teatralidade, de um tempo em que o cerimonial era parte da política. Uma
representação de poderes plurais, em sintonia com suas respectivas performances.
Entretanto, o fechamento da tipografia de Antonio Isidoro por ordem régia é
exemplar: Ele mostra que, não obstante a pujança fluminense, ao rei, em especial ao
magnificente D. João V - e aos poderes a ele subordinados -, cabia autorizar a impressão e
controlar a informação sobre festas e cerimônias. Lembremos então da Academia Real de
História, e da representação definida por Bluteau. Esse aspecto espetacular do Estado
ibérico, que se relaciona, reconhece, mas ao mesmo tempo suplanta pela via festiva e
impressa poderes supostamente concorrentes, parece evidente nos episódios envolvendo a
entrada do bispo e a tipografia de Isidoro da Fonseca. Cultura da imagem e do espetáculo, e Isidoro da Fonseca. Nachan Falbel, Avraham Milgram e Alberto Dines (Org.). Em nome da fé. Estudos em memória de Elias Lipiner. São Paulo: Perspectiva, 1999, p.75-89. 35 Entre vários títulos Fernando Bouza Álvarez. Del escribano a la biblioteca. La civilización escrita europea en la alta edad moderna (siglos XV-XVII). Madrid: Sintesis, 1997 e Imagen y propaganda. Capítulos de historia cultural del reinado de Felipe II. Madrid: Akal, 1998, com destaque para o prólogo de Chartier (p.5-11), que evidencia o talento do historiador espanhol em trabalhar com as duas acepções da representação régia, mediar e mostrar. O estagiário da Biblioteca Nacional Jerônimo Duque Estrada de Barros, a partir dos documentos existentes na coleção Barbosa Machado, envereda por esta investigação sobre a oficina de Antonio Isidoro.
21
pluralidade de poderes nas formas. No jogo das licenças necessárias à publicação de
opúsculos, e das provisões, também se revelava essa dinâmica política. As festas e suas
narrativas como metáforas daquele Estado moderno.36
Mas esse tema não é apenas ibérico ou específico da Época Moderna. Ninguém
finge o poder, com o risco de parecer ridículo aos demais. A ciência e a história política por
vezes se esquecem de compreender este fenômeno em sua mais profunda dimensão,
relacionada aos aspectos da dominação e da submissão, e às motivações pessoais no seio de
cada sociedade. Nessa abordagem multidisciplinar, o estudo do comportamento animal
pode ser bastante elucidativo, ao se descrever, por exemplo, as ações dos líderes em seus
bandos, suas demonstrações de força - o olhar intimidador, o andar, a vivacidade das cores,
o tamanho da juba - e o aspecto protetor na relação com o grupo, o que evidencia a
importância da expressão corporal e, de forma contundente, o problema da distinção entre
natureza e representação do poder.37
Essência e aparência, natureza e representação. Conceitos criados posteriormente
para se entender o poder e a vida política no Antigo Regime. Contudo, no complexo aqui
apresentado, que mesclou reuniões de estados gerais e de cortes, juramentos, cerimoniais
diversos e suas respectivas impressões, vale lembrar dos conselhos de Nicolau Maquiavel a
Lourenço de Médici, proferidos em 1513, mas que ultrapassaram épocas, incomodando até
hoje a humanidade ocidental. O florentino falou a todos os tempos, e não somente ao século
XVI, porque dissertou sobre o poder, mais do que sobre relações políticas específicas.
Dessa forma aconselhou ao soberano que se inspirasse nos exemplos animais do leão ou da
raposa. E, entre tantas idéias, destacou a importância do príncipe aparentar as virtudes,
mais do que apenas possuí-las em essência, com o risco de tornar-se um fracasso de
governante. Essa mensagem ambígua e sábia, que associa o poder a sua própria
representação - seja ela discursiva numa assembléia, festiva ou impressa -, precisa ser
lembrada nos estudos que visam trabalhar a política e a cultura na Época Moderna.38
36 Ana Paula Torres Megiani. O rei ausente. Festa e cultura política nas visitas dos Filipes a Portugal (1581 e 1619). São Paulo: Alameda, 2004. Iris Kantor. Esquecidos e Renascidos. Historiografia acadêmica luso-americana (1724-1759). São Paulo: Hucitec, 2004. 37 Annie & Laurent Chabry. Le pouvoir dans tous ses états. Paris: Imago, 2003. Uma abordagem trans-cultural que enfatiza a importância da representação por meio da tensão entre imitação e substituição também se encontra no ensaio de Carlo Ginzburg. Olhos de madeira. Nove reflexões sobre a distância. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p.85-103. 38, Niccolò Machiavelli. O Príncipe. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001.