carvalho, marcelo et al (orgs.) - filosofia medieval

449
7/21/2019 Carvalho, Marcelo Et Al (Orgs.) - Filosofia Medieval http://slidepdf.com/reader/full/carvalho-marcelo-et-al-orgs-filosofia-medieval 1/449

Upload: ichtus

Post on 04-Mar-2016

170 views

Category:

Documents


8 download

DESCRIPTION

Filosofia Medieval

TRANSCRIPT

  • ANPOF - Associao Nacional de Ps-Graduao em Filosofia

    Diretoria 2015-2016Marcelo Carvalho (UNIFESP)Adriano N. Brito (UNISINOS)Alberto Ribeiro Gonalves de Barros (USP)Antnio Carlos dos Santos (UFS)Andr da Silva Porto (UFG)Ernani Pinheiro Chaves (UFPA)Maria Isabel de Magalhes Papaterra Limongi (UPFR)Marcelo Pimenta Marques (UFMG)Edgar da Rocha Marques (UERJ)Lia Levy (UFRGS)

    Diretoria 2013-2014Marcelo Carvalho (UNIFESP)Adriano N. Brito (UNISINOS)Ethel Rocha (UFRJ)Gabriel Pancera (UFMG)Hlder Carvalho (UFPI)Lia Levy (UFRGS)rico Andrade (UFPE)Delamar V. Dutra (UFSC)

    Equipe de ProduoDaniela GonalvesFernando Lopes de Aquino

    Diagramao e produo grficaMaria Zlia Firmino de S

    CapaCristiano Freitas

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)F487

    Filosofiamedieval/OrganizadoresMarceloCarvalho,RobertoHofmeisterPich,MarcoAurlioOliveiradaSilva,CarlosEduardoOliveira.SoPaulo:ANPOF,2015.450p.(ColeoXVIEncontroANPOF)

    BibliografiaISBN978-85-88072-28-2

    1.FilosofiamedievalI.Carvalho,MarceloII.Pich,RobertoHofmeisterIII.Silva,MarcoAurlioOliveiradaIV.Oliveira, Carlos Eduardo V. SrieCDD100

  • COLEO ANPOF XVI ENCONTRO

    Comit Cientfico da Coleo: Coordenadores de GT da ANPOF

    Alexandre de Oliveira Torres Carrasco (UNIFESP)Andr Medina Carone (UNIFESP)Antnio Carlos dos Santos (UFS)Bruno Guimares (UFOP)Carlos Eduardo Oliveira (USP)Carlos Tourinho (UFF)Ceclia Cintra Cavaleiro de Macedo (UNIFESP)Celso Braida (UFSC)Christian Hamm (UFSM)Claudemir Roque Tossato (UNIFESP)Cludia Murta (UFES)Cludio R. C. Leivas (UFPel)Emanuel Angelo da Rocha Fragoso (UECE)Daniel Nascimento (UFF)Dborah Danowski (PUC-RJ)Dirce Eleonora Nigro Solis (UERJ)Dirk Greimann (UFF)Edgar Lyra (PUC-RJ) Emerson Carlos Valcarenghi (UnB) Enias Jnior Forlin (UNICAMP)Ftima Regina Rodrigues vora (UNICAMP)Gabriel Jos Corra Mograbi (UFMT)Gabriele Cornelli (UnB)Gisele Amaral (UFRN)Guilherme Castelo Branco (UFRJ)HoracioLujnMartnez(PUC-PR)Jacira de Freitas (UNIFESP)Jadir Antunes (UNIOESTE)Jarlee Oliveira Silva Salviano (UFBA)Jelson Roberto de Oliveira (PUCPR)Joo Carlos Salles Pires da Silva (UFBA)Jonas Gonalves Coelho (UNESP)Jos Benedito de Almeida Junior (UFU)

  • Jos Pinheiro Pertille (UFRGS)JovinoPizzi(UFPel)Juvenal Savian Filho (UNIFESP) Leonardo Alves Vieira (UFMG)Lucas Angioni (UNICAMP)Lus Csar Guimares Oliva (USP)LuizAntonioAlvesEva(UFPR)LuizHenriqueLopesdosSantos(USP)LuizRohden(UNISINOS)Marcelo Esteban Coniglio (UNICAMP)Marco Aurlio Oliveira da Silva (UFBA)Maria Aparecida Montenegro (UFC)Maria Constana Peres Pissarra (PUC-SP)Maria Cristina Theobaldo (UFMT)Marilena Chau (USP)Mauro Castelo Branco de Moura (UFBA)Milton Meira do Nascimento (USP)Osvaldo Pessoa Jr. (USP)Paulo Ghiraldelli Jr (UFFRJ)Paulo Srgio de Jesus Costa (UFSM)Rafael Haddock-Lobo (PPGF-UFRJ) Ricardo Bins di Napoli (UFSM)Ricardo Pereira Tassinari (UNESP)Roberto Hofmeister Pich (PUC-RS)SandroKobolFornazari(UNIFESP)Thadeu Weber (PUCRS)WilsonAntonioFrezzattiJr.(UNIOESTE)

  • Apresentao da Coleo XVI Encontro Nacional ANPOF

    Apublicaodos24volumesdaColeoXVIEncontroNacio-nalANPOFtemporfinalidadeofereceroacessoapartedostrabalhosapresentadosemnossoXVIEncontroNacional,realizadoemCamposdoJordoentre27e31deoutubrode2014.Historicamente,osencon-tros da ANPOF costumam reunir parte expressiva da comunidade de pesquisadoresemfilosofiadopas;somenteemsualtimaedio,foiregistradaaparticipaodemaisde2300pesquisadores,dentreelescercade70%dosdocentescredenciadosemProgramasdePs-Gradu-ao.Emdecorrnciadesteperfilpluralevigoroso,tem-sepossibilita-doumacompanhamentocontnuodoperfildapesquisaedaproduoemfilosofianoBrasil.

    As publicaes da ANPOF, que tiveram incio em 2013, porocasiodoXVEncontroNacional,garantemo registrodepartedostrabalhos apresentados por meio de conferncias e grupos de traba-lho,epromovemaampliaododilogoentrepesquisadoresdopas,processo este que tem sido repetidamente apontado como condio ao aprimoramento da produo acadmica brasileira.

    importante ressaltar que o processo de avaliao das produes publicadas nesses volumes se estruturou em duas etapas. Emprimeirolugar,foirealizadaaavaliaodostrabalhossubmetidosao XVI Encontro Nacional da ANPOF, por meio de seu ComitCientfico,compostopelosCoordenadoresdeGTsedeProgramasdePs-Graduao filiados,epeladiretoriadaANPOF.Apso trminodoevento,procedeu-seumanovachamadadetrabalhos,restritaaospesquisadores que efetivamente se apresentaram no encontro. Nesta etapa, os textos foram avaliados pelo Comit Cientfico da ColeoANPOFXVIEncontroNacional.Ostrabalhosaquipublicadosforamaprovadosnessasduasetapas.Arevisofinaldostextosfoiderespon-sabilidade dos autores.

  • AColeoseestruturaemvolumestemticosquecontaram,emsuaorganizao, comacolaboraodosCoordenadoresdeGTsqueparticiparamdaavaliaodostrabalhospublicados.Aorganizaote-mtica no tinha por objetivo agregar os trabalhos dos diferentes GTs. Essestrabalhosforammantidosjuntossemprequepossvel,mascomfrequncia privilegiou-se evitar a fragmentao das publicaes e ga-rantir ao leitor um material com uma unidade mais clara e relevante.

    EssetrabalhonoteriasidopossvelsemacontnuaequalificadacolaboraodosCoordenadoresdeProgramasdePs-GraduaoemFilosofia,dosCoordenadoresdeGTsedaequipedeapoiodaANPOF,emparticularde FernandoL. deAquino edeDanielaGonalves, aquem reiteramos nosso reconhecimento e agradecimento.

    Diretoria da ANPOF

    Ttulos da Coleo ANPOF XVI EncontroEsttica e Artetica e Filosofia Polticatica e Poltica ContemporneaFenomenologia,ReligioePsicanliseFilosofiadaCinciaedaNaturezaFilosofiadaLinguagemedaLgicaFilosofiadoRenascimentoeSculoXVIIFilosofiadoSculoXVIIIFilosofiaeEnsinarFilosofiaFilosofiaFrancesaContemporneaFilosofiaGregaeHelensticaFilosofiaMedievalFilosofiaPolticaContemporneaFilosofiasdaDiferenaHegelHeideggerJustia e DireitoKantMarx e MarxismoNietzschePlatoPragmatismo,FilosofiaAnalticaeFilosofiadaMenteTemasdeFilosofiaTeoria Crtica

  • Sumrio

    Aalmaesuasfaculdades:umahiptesesobreousodostermosem Agostinho

    Ricardo Pereira Santos Lima 11 A Construo de uma Teologia Poltica na Idade Mdia a dosescritosdoPseudo-Dionsio,oAreopagita

    Gerson Leite de Moraes 20

    Elementos Cinticos do Conceito Agostiniano de Pecado Maurizio Filippo Di Silva 29

    OsignificadodamenteemSantoAgostinhoSrgio Ricardo Strefling 40

    Sobre o ser e a essncia em Agostinho Luiz Marcos da Silva Filho 50

    VerdadeefalsidadedasficesapartirdeSolilquios de Agostinho Daniel Fujisaka 59

    Liberdade e Graa em Santo Agostinho Flavia Formaggio de Lara Azevedo 85

    Vontade segundo a obra o livre-arbtrio de Santo AgostinhoDinno Camposilvan Zanella 97

    Ordemebelezadouniversonaestticafilosfico-religiosade Santo Agostinho

    Marcos Roberto Nunes Costa 108

    AsimetrianaestticacosmolgicadeSantoAgostinhoRicardo Evangelista BrandoMarcos Roberto Nunes Costa

    118Consideraes sobre problemas ticos em Pedro Abelardo: Comentrios Epstola de Paulo aos Romanos e a tica

    Pedro Rodolfo Fernandes da Silva 129

    As Sumas de Toms de Aquino no Perodo Medieval Camila de Souza Ezdio 143

  • Houve uma evoluo do conceito de virtude em Toms de Aquino? A proposta de Giuseppe Abb

    Renato Jos de Moraes 153

    O mistrio do mal na Suma de Teologia de Toms de Aquino(Prima pars,questes48e49)

    Rodrigo Aparecido de Godoi 165

    Oserincausadoearegressoaoinfinito:um estudo baseado nas cinco vias de Toms de Aquino

    Fbio Gai Pereira 182

    RazoepaixoemTomsdeAquino.AafetividadenaIa parte da Suma de Teologia

    Paulo Ricardo Martines 194

    Toms de Aquino e o problema do Mnon: leitura comparada a partir docomentrioaosSegundosAnalticos,deAristteles(ExpositioLibri Posteriorum)

    Anselmo Tadeu Ferreira 204

    A noo de intelecto na doutrina dos transcendentais de Toms de Aquino

    Matheus Barreto Pazos de Oliveira 213

    OproblemadanaturezacomumemTomsdeAquinoAntonio Janunzi Neto 226

    Toms e o problema do movimento elementar: notas sobre In Physica,II,1,n.3,1-8.

    Evaniel Brs dos Santos 243

    A criao na tica de Toms de Aquino Bernardo Veiga de Oliveira Alves 261

    OprincpiodeindividuaonafilosofiadeJooDunsScotusThiago Soares Leite 280

    A Logica Modernorum na Summulae Logicales de Pedro Hispano Jernimo Jos de Oliveira 291

    A suppositio como proprietate terminorum em Guilherme deShyreswood,PedroHispanoeGuilhermedeOckham

    Laiza Rodrigues de Souza 299

    Meister Eckhart e a imagem sem imagem Matteo Raschietti 313

  • Entendo por cu a cincia e por cus as cincias: as sete Artes Liberais no Convvio (c. 1304-1307) de Dante Aliguieri

    Ricardo Luiz Silveira da Costa 333

    A filosofia da economia no pensamento barroca latinoamericano Alfredo Culleton 356

    O direito das gentes em Francisco de Vitoria Fernando Rodrigues Montes DOca 375

    Res a reor reris e res a ratitudine na metafsica de Henrique de Gand Gustavo Barreto Vilhena de Paiva 392

    Termos Categoremticos e Sincategoremticos: distino terminista e eliminao ontolgica

    Rafael Antonio dos Santos Sandoval 418

    Os falasifa e a eternidade do mundo Evandro Santana Pereira 428

  • A alma e suas faculdades: uma hiptese sobre o uso dos termos em Agostinho

    Ricardo Pereira Santos LimaUniversidade Federal de Uberlndia

    Todo o pensamento de Agostinho orbita em volta de dois pon-tos fundamentais: (i) Deus e (ii) a alma. O primeiro ponto se expressa como objeto mximo do interesse agostiniano. o anseio de buscar, conhecer e amar a Deus que coloca em movimento o pensamento de Agostinho1. O segundo ponto, por sua vez, se expressa como o instru-mento que viabiliza o acesso a Deus; a alma que descortina a possibi-lidade da elevao do homem a Deus:

    Chegamos, agora, ao assunto que nos determinamos a conside-rar: a parte mais nobre da alma humana pela qual se conhece a Deus, ou se pode vir a conhec-lo. Vamos procurar a a imagem de Deus. Embora, a alma humana no seja ad mesma natureza que a de Deus, contudo, a imagem dessa natureza a mais su-blime que se possa pensar , preciso procur-la e encontr-la em ns, l onde a nossa natureza possui o que h de mais exce-lente (trin. XIV viii 11).

    Com efeito, cabe considerar que Agostinho nunca deixou de es-crever ou de fazer alguma referncia por menor que fosse alma, 1 Conformeafirmaofilsofonos Solilquios: Amo somente a ti, sigo somente a ti, busco

    somente a ti, estou disposto a servir somente a ti e desejo estar sob a tua jurisdio, porque somente tu governas com justia. Manda e ordena o que quiseres, mas sana e abre meus ou-vidos para ouvir tuas palavras; sana e abre meus olhos para enxergar os teus acenos. Afasta de mim a ignorncia para que eu te reconhea (sol. I i 5).

    Carvalho, M.; Hofmeister Pich, R.; Oliveira da Silva, M. A.; Oliveira, C. E. Filosofia Medieval. Coleo XVI Encontro ANPOF: ANPOF, p. 11-19, 2015.

  • 12

    Ricardo Pereira Santos Lima

    dada sua importncia no itinerrio do homem em direo a Deus2. Ten-do em vista o destacado papel da alma no pensamento de Agostinho e, mais ainda, na vida do homem, acaba tornando-se essencial fazer uma reflexosobreoconceito;queaalmaafinal?

    A pergunta, aparentemente simples, no encontra ainda hoje uma resposta satisfatria edefinitiva.Odesdobramento contempor-neo dessa pergunta remete aos conceitos de self, conscincia e mente, os quaissoobjetosdepesquisadereascomoafilosofia,psicologiaeneu-rocincia. Antes desse desdobramento contemporneo, vrios pensado-res,dentreelesAgostinho,refletiramsobreoproblema.Adespeitodaimportncia precursora de pensadores como Plato e Aristteles no que tange ao tema, com Agostinho que a questo da alma humana tenta pela primeira vez chegar ao esgotamento3. Por essa razo, no exagero afirmarqueasconsideraesagostinianasacercadofuncionamentodapsique humana foram alm do seu tempo, e tornaram-se, ulteriormente, referncia e aparato de pesquisa para o desenvolvimento da discusso.

    Agostinho no s parece conhecer a estrutura responsvel pela vida psquica humana a qual se denominou alma como tambm parecedemonstrarzeloecuidadoaoexporsuasreflexesacercadoconceito. Apesar de ter sido professor de retrica e grande conhecedor da lngua latina, a cautela agostiniana no concerne apenas ao rigor terminolgico ou gramatical, mas tambm ao rigor conceitual. Embora AgostinhonotenhafeitoumafilosofiasistemticacomoTomsdeAquinopossvelnotarumasignificativaclarezaconceitualemsuasconsideraesarespeitodaalma.

    Numa extensa nota de rodap de sua Introduo ao estudo de San-to Agostinho,aofalarsobreaalma,Gilson(2007,p.95)afirmaqueaterminologiadeAgostinho,aquicomoemoutroslugares,muitoflu-tuante. No se trata de considerar que a terminologia agostiniana seja 2 Conferimos todas as 111 obras de Agostinho, e em todas elas constatamos a ocorrncia dos

    termos anima e/ou animus. necessrio esclarecer o que entendemos como obra: Conside-ramos o conjunto das Epistolae, Enarrationes e Sermones como trs obras separadas, as quais congregamosrespectivosconjuntosdecartas,interpretaesesermes.Consideramostam-bm como uma obra separada aquelas que contm mais de um livro na sua composio. Assim,compreendemosqueostrezelivrosquecompemasConfisses representam, em sua totalidade, uma nica obra.

    3 Exemplo disso so as obras dedicadas exclusivamente alma; De Anima et eius Origine contra Vincentium Victorem, De Duabus Animabus contra Manichaeos, De Inmortalitate Animae e De Quantitate Animae.

  • 13

    A alma e suas faculdades: uma hiptese sobre o uso dos termos em Agostinho

    incerta ou duvidosa, mas antes inconstante ou varivel. Isto , sua ter-minologiaflutuaconformeapretensoouintuitodeapresentare/outornar compreensvel uma determinada ideia ou conceito:

    O signo uma coisa que, alm da imagemquepropeaossenti-dos, faz vir de si ao pensamento algo outro. (doc. chr. II i 1)4

    O signo aquilo que tanto se mostra aos sentidos, como alm de si mostra algo ao esprito. (dial. V)5

    Por esta razo, na tentativa de mostrar ao seu leitor alguma coisa alm que Agostinho se vale de um leque terminolgico to extenso. Conforme Gilson (p. 95), os termos que fazem parte deste leque so: (i) anima/animus, (ii) spiritus, (iii) mens, (iv) ratio e (v) intellectus/intelli-gentia.Nessetexto,ater-nos-emosespecificamentedistinoesre-laesentreanima/animus e spiritus, de posse da crena de que toda complexidade da discusso advenha da.

    O par de termos anima/animus, cuja traduo para o portugus alma, designa, de modo geral, o princpio animador, essencial e vital de todos os seres vivos, sejam eles animais, como um coelho, ou vegetais, como uma rosa. Conforme Agostinho, esse princpio vital recebe sua fora de Deus, que considerado a Vida por excelncia. Importa con-siderar que o argumento agostiniano se apoia em dois pontos: o pri-meiroEscritural,expressonapassagememqueDeusafirmaEu sou a vida (Jo 14, 6). O segundo ponto, que sustenta e valoriza o primeiro, remonta noo platnica de participao; um princpio que respon-svelporvivificarseresfinitosprecisa,necessariamente, recebersuafora vital de outro princpio mais poderoso. Com efeito, Deus, que , consoante Agostinho, a Vida por excelncia, o responsvel pela fora vital das almas:

    No existe qualquer tipo de vida que no seja propriamente vida e, enquanto seja totalmente vida, que no se estenda suma fon-te e sumo princpio da vida, o qual no podemos confessar ser nenhum outro, seno o Deus supremo, nico e verdadeiro. Por-

    4 Traduo e destaques por Moacyr Ayres Novaes Filho. Cf.NOVAES,Moacyr.A razo em exer-ccio: estudos sobre a filosofia de Agostinho.SoPaulo:DiscursoEditorial:Paulus,2009.p.44.

    5 Idem.

  • 14

    Ricardo Pereira Santos Lima

    tanto, aquelas almas, as quais os maniquestas chamam de ms, ou carecem de vida, e no so almas, e por isso no querem ou deixam de querer, cobiar ou evitar alguma coisa; ou se vivem, para que possam ser almas e fazer algo tal qual eles opinam, de nenhum modo podem viver seno pela Vida (duab. an. I; tradu-o nossa).6

    Embora tanto anima quanto animus sejam usados para se referir ao princpio vital que anima os seres vivos, possvel notar que, nos textosdeAgostinho,existeumasignificativadistinoentreeles.Pre-ferencialmente, o termo anima empregado para falar sobre a alma animale/ousobreaalmadeumamaneirageral,isto,noespecifica-mente. O termo animus, por sua vez, empregado para falar sobre a almaespecificamentehumanaque,almdeprincpiovital,umprin-cpio racional. Por este motivo, o termo animus geralmente traduzido como alma racional. Agostinho compreende que todos os seres vivos justamente por serem vivos tm uma alma; a diferena fundamental existente entre a alma de um co e a de um homem que a alma do primeiro apenas um princpio vital, ao passo que a alma do segundo um princpio vital e racional:

    E se, aqui, deveras perturbados, tivessem me perguntado se aca-so eu no pensava que a alma [animam] da mosca tambm era superior a esta luz, eu lhes teria respondido: certamente. E o fato de a mosca ser pequena no me aterrorizaria. Antes, sustenta a minha ideia o fato de que ela possui vida (duab. an. IV, traduo nossa, grifo nosso).7

    Ademais, quando raciocinamos, a alma [animus] faz isso. Pois no faz isso a no ser aquele que intelige. [...] Portanto, a alma [animus] humana sempre vive (imm. an. I 1, traduo nossa, grifo nosso).8

    6 Nooriginal:nullam esse qualemlibet vitam, quae non eo ipso quo vita est, et in quantum omnino vita est, ad summum vitae fontem principiumque pertineat: quod nihil aliud quam summum et solum verumque Deum possumus confiteri. Quapropter illas animas, quae a Manichaeis vocantur malae, aut carere vita, et animas non esse, neque quidquam velle seu nolle, appetere vel fugere; aut si viverent, ut et animae esse possent, et aliquid tale agere, quale illi opinantur, nullo modo eas nisi vita vivere

    7 No original: Atque hic si forte turbati a me quaererent, num etiam muscae animam huic luci praes-tare censerem, responderem: etiam. Nec me terreret musca quod parua est, sed quod uiua firmaret.

    8 No original: Iamvero cum ratiocinamur, animus id agit. Non enim id agit, nisi qui intellegit [] Semper igitur animus humanus vivit.

  • 15

    A alma e suas faculdades: uma hiptese sobre o uso dos termos em Agostinho

    importanteatentarparaofatodequeotermoalmafoiem-pregado para traduzir tanto animam quanto animus. Isto , foi utilizado umtermoemcomumparatraduzirdoistermosquecarregamnoesdistintas. No entanto, esse detalhe terminolgico pode se tornar irrele-vante desde que o leitor esteja atento aos ensinamentos de Agostinho e conhea um pouco sobre a lngua me do autor.

    Para se referir ao conceito de alma racional, Agostinho utiliza, alm do termo animus, o termo spiritus, cuja traduo para o portugus esprito.Emborasejaempregadoemmenorescaladoqueanimus, o termo spiritus demanda um pouco mais de ateno, pois, de acor-docomGilson(2007,p.95),otermotemdoissentidosinteiramentediferentes, segundo Agostinho, derivado de Porfrio ou das Escritu-ras.Conformeocomentador,nasignificaoporfiriana,spiritus reme-te ao que se denomina imaginao reprodutiva ou memria sensvel. Emoutraspalavras,oespritoresponsvelporreteras impressescausadas pelos sentidos corporais. Impelido pela noo de que as im-pressessensveispodemdesviarohomemdeseucursoemdireoaDeus, Agostinho evidenciar que papel do esprito combater o car-nal. Uma vez que o carnal pode ser impresso no esprito, o homem peca ao amar o sensvel:

    Poderemos ento concluir que nem todos querem ser felizes porque h alguns que no querem alegrar-se em Vs, que sois a nicavidafeliz?No;todosqueremumavidafeliz.Mascomoa carne combate contrao esprito e o esprito contra a carne,muitos no fazem o que querem, mas entregam-se aquilo que podem fazer (conf. X xxiii 33).9

    Isso no surpreende: Pois somos constitudos atualmente de for-ma que possamos ser movidos ao prazer pelo carnal, e em dire-o virtude pelo esprito (duab. an. XIX, traduo nossa).10

    9 Nooriginal:Non ergo certum est, quod omnes esse beati volunt, quoniam qui non de te gaudere volunt, quae sola vita beata est, non utique beatam vitam volunt. An omnes hoc volunt, sed quo-niam caro concupiscit adversus spiritum et spiritus adversus carnem, ut non faciant quod volunt, cadunt in id quod valent.

    10 Nooriginal:Nec mirum: ita enim nunc constituti sumus, ut et per carnem voluptate affici, et per spiritum honestate possimus.

  • 16

    Ricardo Pereira Santos Lima

    E por isso diz o Profeta muito acertadamente e por divina inspira-o:Criaemmim,Deus,umcoraopuroerenovaemminhasentranhasoespritoderetido(Sb.50,12).Entendoqueespritode retido o que impede a alma de se desviar e falsear na pro-curar da verdade. E ele no se renova se antes no tiver a pure-za, ou seja, se o pensamento no se afasta antes de toda paixo, purificando-senoranodascoisasmortais(an. quant. XXXIII 75).

    Aindaqueaconceituaoporfirianadespiritus se apresente, con-forme Gilson, como distinta da conceituao escritural, regularmente o termo spiritus aparece dentro de excertos que, ou se referem bblia ou citam-nadiretamente,oquepossveldeserverificado,porexemplo,em beata v. II 1211; mag. I 212; spir. et litt. IV 613 e lib. arb. III xiii 5114.

    Conforme Gilson, o sentido escritural de spiritus se assemelha ao conceito de animus. Spiritus definidocomooprincpioracionaldaalma humana (do animus). Conforme fora anteriormente assentado, o animus o resultado da unio entre os princpios vital e racional. Des-tarte, em virtude do spiritus, isto , do princpio vital que a alma do homem se difere da alma dos outros animais:

    E porque as trs coisas so estabelecidas pelo homem: esprito, alma e corpo. Duas so ditas inversamente, pois a alma muitas vezes nomeada juntamente com o esprito; com efeito, certa parte racional da mesma, que falta s bestas, chamada de esp-rito; entre ns, o esprito o principal; depois somos unidos ao corpopelavida;aistosechamaalma.Enfim,oltimoocorpo,pois o prprio visvel a ns (f. et symb. X 23, traduo nossa). 15

    11 Nooriginal:Puer autem ille minimus omnium: Is habet Deum, ait, qui spiritum immundum non habet (cf. Mt 5, 8).

    12 Nooriginal:An apud Apostolum non legisti:Nescitis quia templum Dei estis, et spiritus Dei habi-tat in vobis (cf. 1 Cor 3, 16.).

    13 Nooriginal:Doctrina quippe illa, qua mandatum accipimus continenter recteque vivendi, littera est occidens, nisi adsit vivificans spiritus.Neque enim solo illo modo intellegendum est quod legimus: Lit-tera occidit, spiritus autem vivificat (cf. 2 Cor 3, 6.).

    14 Nooriginal:Et tamen etiam per ignorantiam facta quaedam improbantur, et corrigenda iudicantur, sicut in divinis auctoritatibus legimus: ait enim Apostolus [...] Caro concupiscit adversus spiritum, spiritus autem adversus carnem: haec enim invicem adversantur; ut non ea quae vultis faciatis (cf. Gal 5, 17.).

    15 Nooriginal:Et quoniam tria sunt quibus homo constat: spiritus, anima et corpus, quae rursus duo dicuntur, quia saepe anima simul cum spiritu nominatur; pars enim quaedam ejusdem rationalis, qua carent bestiae, spiritus decitur; principale nostrum spiritus est; deinde vita qua conjungimur corpori, anima dicitur; postremo ipsum corpus quoniam visibile est, ultimum nostrum est.

  • 17

    A alma e suas faculdades: uma hiptese sobre o uso dos termos em Agostinho

    Adstritos ao conceito de spiritus encontram-se os conceitos de mens, ratio e intellectus/intelligentia.Seospiritus compreendido como o princpio vital, a mens,geralmentetraduzidapormenteoupen-samento pode ser compreendida como a parte superior, sublime ou excelente deste princpio racional (excellentia animi). Agostinho costu-ma no evidenciar a diferena entre ambos os conceitos e, por vezes, fala deles de modo anlogo, como ocorre n O livre-arbtrio:

    Eisoqueeuqueroteexplicaragora:oquepeohomemacimados animais, seja qual for o nome com que designemos tal fa-culdade, seja mente ou esprito, ou com mais propriedade um e outro indistintamente, porque encontramos esses dois vocbulos tambmnosLivrosSagradosquandopoisesseelementosupe-rior domina no homem e comanda a todos os outros elementos que o constituem, ele encontra-se em perfeitamente ordenado (lib. arb. I viii 18).16

    A razo para Agostinho se referir a spiritus e mens de modo smile reside no fato de que a mens a parte constituinte mais importante do spi-ritus. Por englobar a mens, pode-se dizer que, quando se fala de spiritus automaticamente se fala da mens, j que o todo sempre se refere parte.

    Em De Magistro, Agostinhoafirmaqueamens a unio entre ratio e intelligentia, o que nos permite considerar que a ratio e intelligentia no esto separadas do esprito, mas antes o constituem na forma de mente:

    Quando, pois, se trata das coisas que percebemos pela mente, isto , atravs do intelecto e da razo, estamos falando ainda em coisas que vemos como presentes naquela luz interior de verdade, pela qual iluminado e de que frui o homem interior17 (mag. XII 40).

    Acitao anterior suscitaumaquesto: Se amente formadapela inteligncia e pela razo, necessrio supor que as duas no se-jam a mesma coisa e/ou desempenhem a mesma operao, o que leva

    16 Nooriginal: Illud est quod volo dicere: hoc quidquid est, quo pecoribus homo praeponitur, sive mens, sive spiritus, sive utrumque rectius appellatur (nam utrumque in divinis Libris invenimus), si dominetur atque imperet caeteris quibuscumque homo constat, tunc esse hominem ordinatissimum.

    17 Cum vero de iis agitur quae mente conspicimus, id est intellectu atque ratione, ea quidem loquimur quae praesentia contuemur in illa interiore luce veritatis, qua ipse qui dicitur homo interior, illustra-tur et fruitur.

  • 18

    Ricardo Pereira Santos Lima

    a crer que tanto uma quanto outra podem ser vistas como faculdades que, embora integrem e formem um mesmo composto, desempenham atividades distintas.

    Infelizmente, no entanto, pela escassez de tempo, e em virtude da complexidade do tema, no haver tempo hbil para explicar e de-finirdemodopormenorizadoasrelaesentreosconceitosdemens, ratio e intelligentia, razo pela qual nos ativemos aqui a delimitar de modorazoavelmenteprecisoasespecificidadeseaextensodasno-esdealmaeespritonasobrasdeAgostinho,certodequeaprofun-didade com que equacionou tais conceitos pde reverberar, de manei-rasignificativa,nodesenvolvimentodasulterioresdiscussesacercada natureza e da estrutura do psquico humano.

    Referncias

    AGOSTINHO,Santo.A Trindade. Traduo e introduo por Agustinho Bel-monte,revisoenotasporNairdeAssisOliveira.SoPaulo:Paulus,1995(Patrstica, 7)._____. Confisses.TraduoporJ.OliveiraSantos,S.J.,eA.AmbrsiodePina,S.J.SoPaulo:NovaCultural,1973(OsPensadores).

    _____. De Magistro (Domestre).TraduoporAngeloRicci.SoPaulo:NovaCultural, 1973 (Os Pensadores)._____. O livre-arbtrio. Traduo, organizao, introduo e notas por Ir. Nair deAssisOliveira.SoPaulo:Paulus,1995.(Patrstica,8).

    _____. La fe y el Smbolo de los Apstoles. In: Obras completas de San Agustn. Tra-duccin, introduccin y notas de Claudio Basevi. Madrid: La Editorial Catli-ca/BAC, 1988. v. 29. Edicin bilnge._____. La inmortalidad del alma. In: Obras completas de San Agustn. Traduccin, introduccin y notas de Claudio Basevi. Madrid: La Editorial Catlica/BAC, 1988. v. 29. Edicin bilnge._____. Las dos almas. In: Obras completas de San Agustn. Traduccin, introduc-cin y notas de Pio de Luis. Madrid: La Editorial Catlica/BAC, 1986. v. 30. Edicin bilnge._____. Sobre a potencialidade da alma. Trad. por Aloysio Jansen de Faria. Petr-polis: Vozes, 1997.

  • 19

    A alma e suas faculdades: uma hiptese sobre o uso dos termos em Agostinho

    _____. Solilquios.TraduoenotasporAdauryFiorotti.SoPaulo:Paulus,1998 (Patrstica, 11).BBLIASAGRADA.EdioPastoral.Trad.,introd.enotasporIvoStornioloeEuclidesMartinsBalachin.SoPaulo:Paulus,2005.

    GILSON,tienne.Introduo ao estudo de Santo Agostinho. Traduo por Cris-tianeNegreirosAbbudAyoub.SoPaulo:Paulus,2007.

    NOVAES,Moacyr.A razo em exerccio: estudos sobre a filosofia de Agostinho.SoPaulo: Discurso Editorial : Paulus, 2009.

  • A Construo de uma Teologia Poltica na Idade Mdia a partir dos escritos do Pseudo-Dionsio, o Areopagita

    Gerson Leite de MoraesUniversidade Presbiteriana Mackenzie

    Durante o perodo da Baixa Idade Mdia, a Escolstica se apro-priou de todos os escritos antigos que balizavam seu poderio poltico. Contudo, no final do perodo mencionado, a obra intitulada Doao de Constantino, que embasou durante muito tempo o domnio territorial da Igreja no perodo medieval, foi desmascarada por Lorenzo Valla. Ocorreu um verdadeiro desmonte de uma teologia poltica que h muito vinha vigorando no ambiente europeu. Mesmo sob escombros, necessrio dar o devido valor a alguns elementos que serviram de base para justificar o perodo poltico medieval durante tanto tempo.

    O que nos interessa neste trabalho perscrutar uma obra que teve um papel fundamental na construo da teologia poltica medie-val. Ela foi produzida por um filsofo-telogo do sculo V da era crist que usou o pseudnimo de Dionsio, personagem histrico convertido aps a pregao do Apstolo Paulo na ocasio em que o mesmo dis-cursou no Arepago para os atenienses vidos de novidades, mas que em sua maioria no estavam interessados na questo da ressurreio. Dionsio foi uma exceo: ouviu e converteu-se f crist. Este fato est registrado em Atos dos Apstolos no captulo 17. Provavelmente, o pseudo-Dionsio valeu-se do subterfgio de usar o nome de uma fi-gura respeitada na tradio crist porque tinha como finalidade garan-tir a aceitao e difuso de suas obras. Esses escritos representam uma fuso entre o cristianismo e o neoplatonismo, em que ficam evidentes

    Carvalho, M.; Hofmeister Pich, R.; Oliveira da Silva, M. A.; Oliveira, C. E. Filosofia Medieval. Coleo XVI Encontro ANPOF: ANPOF, p. 20-28, 2015.

  • 21

    A Construo de uma Teologia Poltica na Idade Mdia a partir dos escritos do Pseudo-Dionsio, o Areopagita

    as influncias de Plotino e Proclo (412-485), ldimos representantes de releituras de Plato.

    Os escritos do Pseudo-Dionsio, o Aeropagita, foram usados por nomes respeitados na tradio crist. Joo Erigena, Alberto, o Grande e Toms de Aquino so algumas dessas figuras. So Toms de Aquino, por exemplo, mencionou em suas obras os escritos do Pseudo-Dion-sio cerca de 1700 vezes. Seu valor se mostra tanto no campo teolgico, quanto no filosfico. Na Teologia, de suma importncia a distino feita entre a Teologia Positiva, tambm chamada de cataftica (do grego, katphasis = afirmao), e a Teologia Negativa, ou apoftica (do grego, ap-phasis = negao). A proposta da Teologia cataftica consiste em afirmar de Deus as perfeies que se encontram nas criaturas, valorizando as mais elevadas, tais como a sabedoria, a bondade, a unidade, a vida etc.

    H, com efeito, uma regra universal de que preciso evitar apli-car temerariamente alguma palavra, por vezes at algum pensa-mento, Deidade supra-essencial e secreta, com exceo daquilo que as santas Escrituras divinamente nos revelaram. O desco-nhecimento desta prpria Supra-essencialidade que ultrapassa razo, pensamento e essncia, deve ser o objeto da cincia supra--essencial; portanto, no devemos levantar os olhos para o alto a no ser medida que se nos manifesta o prprio Raio de Luz das santas palavras terquicas, cegando-nos, para receber as mais al-tas luzes, desta sobriedade e desta santidade que convm aos ob-jetos divinos. Com efeito, se for preciso confiar em uma teologia inteiramente sbia e perfeitamente verdadeira, s medida que convm a cada inteligncia que os segredos divinos se manifes-tam e se revelam, pois prpria bondade da Tearquia (Princpio do divino) que, em sua justia salvadora, oferece divinamente aos seres mensurveis, como realidade infinita, sua prpria inco-mensurabilidade (PSEUDO-DIONSIO, 2004, p.09-10). Deus causa e princpio de todas as coisas, abarcando em si mes-

    mo todos os nomes, contudo no se confundindo com as coisas cria-das, mas transcendendo-as todas. Percebe-se ento, a dificuldade de se falar sobre Deus, aquele que inominvel,

    E nenhuma razo discursiva pode discorrer sobre o Uno que ul-trapassa todo discurso, nem alguma palavra pode exprimir algo

  • 22

    Gerson Leite de Moraes

    a respeito do Bem que est acima de toda palavra, Mnada uni-ficadora de toda mnada, Essncia supra-essencial, Inteligncia ininteligvel e Palavra inefvel, isenta de razo, de inteligncia e de nome, que no tem ser segundo o modo de algum ser, que causa ontolgica de todo ser e ao mesmo tempo, porque est si-tuada alm de toda essncia, totalmente excluda da categoria de ser, segundo a revelao que ela faz de si mesma em sua mestria e seu saber (PSEUDO-DIONSIO, 2004, p.10-11).

    Ainda sobre a Teologia Cataftica, o Pseudo-Dionsio afirma:

    Celebramos as principais afirmaes da teologia afirmativa, mostrando em que sentido a excelente natureza de Deus dita una, em que sentido ela dita trina, o que se chama nela Paterni-dade e Filiao, o que a teologia pretende significar quando fala do Esprito, o modo como do prprio corao do Bem imaterial e indivisvel saram as luzes da bondade, como estas luzes se difundiram ao mesmo tempo permanecendo, graas a seu eterno renascimento, nele mesmo, cada uma em si e todas mutuamente umas com as outras, assim como Jesus supra-essencial revestiu verdadeiramente a natureza humana, e todos os outros mist-rios que os Esboos teolgicos celebram segundo o ensinamento das Escrituras. No Tratado dos Nomes divinos, mostramos por-que Deus nomeado Bem, Ser, Vida, Sabedoria, Fora, e assim por diante, para todos os nomes inteligveis de Deus (PSEUDO--DIONSIO, 2004, p.133).

    No havendo categorias lingusticas que possam dar conta da realidade do ser de Deus, esse ser que fonte de toda perfeio conduz os homens a recorrerem Teologia apoftica, que consiste em ressaltar elementos da imperfeio conhecida pelos humanos, salientando-se aquilo que Deus no . Tudo o que os homens veem como errado e imperfeito no mundo criado no pode fazer parte da essncia de Deus.

    Agora, pois, penetraremos na Treva que est alm do intelig-vel, e no haver maior conciso ainda, mas, ao contrrio, uma cessao total da palavra e do pensamento. Onde nosso discur-so descia do superior ao inferior, medida que se distanciava das alturas, seu volume aumentava. Agora que ns subimos do inferior ao transcendente, na prpria medida que nos aproxima-mos do pico, o volume de nossas palavras se retrair; no termo

  • 23

    A Construo de uma Teologia Poltica na Idade Mdia a partir dos escritos do Pseudo-Dionsio, o Areopagita

    ltimo da ascenso estaremos totalmente mudos e plenamente unidos ao Inefvel. Contudo, dirs, por que partir das mais al-tas quando se trata das afirmaes, e das mais baixas quando se trata das negaes? Respondo que, para falar afirmativamente Daquele que transcende toda afirmao, seria preciso que nos-sas hipteses afirmativas tomassem apoio sobre o que est mais prximo dele. Mas, para falar negativamente Daquele que trans-cende toda negao, comea-se necessariamente por negar dele o que est mais distante dele. Com efeito, no verdade que mais vida ou bem que ar ou pedra e que se erra muito mais quando o nomeamos rancoroso e colrico do que o supondo exprimvel ou pensvel? (PSEUDO-DIONSIO, 2004, p.134-135).

    Com se diz no texto acima, quanto mais ocorre a aproximao em relao ao superior, desemboca-se no silncio mstico, na apreenso di-reta e desnudada da divindade, embora no se possa explicar isso ra-cionalmente, ficando apenas a sensao da experincia como resultado.

    No campo filosfico, o Pseudo-Dionsio repete as trades dia-lticas de Proclo, enfatizando o processo que vai do Uno at o mundo, bem como o processo de retorno para o Uno. Vale-se tambm da ter-minologia platnica, da emanao para explicar a criao, evitando, claro, qualquer tipo de pantesmo. O que est por trs da concepo filosfica do Areopagita a percepo que a Idade Mdia traz sobre a relao entre Deus e o mundo. O cerne que embasa essa cosmoviso medieval questo da hierarquia, que exposta ali pela primeira vez em toda sua extenso no que tange ao seu alcance metafsico, em suas variadas hipteses e em suas diversas variaes.

    Chamo hierarquia uma ordem, um saber e um ato to prximos quanto possvel da forma divina, elevados imitao de Deus na medida das iluminaes divinas. [...] O fim da hierarquia , portanto, o de conferir s criaturas, o quanto se pode, a seme-lhana divina e de uni-las a Deus. Deus para ela, com efeito, o mestre de todo conhecimento e de toda ao, e ela no cessa de contemplar sua divinssima bondade, recebe sua impresso tan-to quanto ele est nela, e de seus seguidores ela faz perfeitas ima-gens de Deus, espelhos de plena transparncia e sem manchas, aptas para receber o raio do Fogo fundamental e da Tearquia; depois, tendo santamente recebido a plenitude de seu esplendor, tornam-se, em seguida, capazes, segundo os preceitos da Tear-

  • 24

    Gerson Leite de Moraes

    quia, de transmitir livremente esta mesma luz aos seres inferio-res (PSEUDO-DIONSIO, 2004, p.148-149).

    Especialmente os tratados que mais exerceram influncia foram aqueles que discutiram da hierarquia do cu e da terra.

    A importncia histrica destes tratados consiste em que os mes-mos, pela primeira vez, aparecem unidos e se desenvolvem con-juntamente unidos aos motivos e foras capitais que constituem o fundamento da f e da cincia na Idade Mdia, alm disso, vale ressaltar tambm, que neles se cumpre pela primeira vez uma verdadeira e acabada fuso sincrtica da doutrina crist da salva-o com a especulao helenstica. Esta especulao sobre todo o neoplatonismo presenteou ao cristianismo uma outra coisa, a noo e a imagem universal do cosmos disposto em graus. Segundo essa doutrina, o universo divide-se em um mundo inferior e em um mundo superior, em um mundo sensvel e um mundo inteli-gvel, que no se opem entre si, mas que tm a mesma essncia, que est baseada nessa negao recproca, nessa contraposio polar. Porm, acima do abismo da negao que se abre entre os mundos, tem-se um vnculo espiritual (CASSIRER, 1951, p.23).

    Interligando os vrios polos, do Uno Absoluto ao aspecto infor-me absoluto, do imaterial ao material, o vnculo espiritual tem como caracterstica bsica a mediao. Pela mediao, o infinito passa ao fi-nito e retorna ao infinito. Foi assim que Deus, para redimir os homens, encarnou-se em Jesus e voltou para a economia1 da santssima trinda-de, tendo vencido a morte e tornando essa vitria uma possibilidade real aos homens.

    A escala gradual desce do celeste para o terrestre, que ascen-de deste para aquele num processo sistemtico. Mas entre Deus e o homens aparece tambm o mundo das inteligncias puras e das puras

    1 Uma das teses que procurar demonstrar que da teologia crist derivam dois paradigmas polticos em sentido amplo, antinmicos, porm funcionalmente conexos: a teologia poltica, que fundamenta no nico Deus a transcendncia do poder soberano, e a teologia econmica, que substitui aquela pela ideia de uma oikonomia, concebida como uma ordem imanente domstica e no poltica em sentido estrito tanto da vida divina quanto da vida humana. Do primeiro paradigma derivam a filosofia poltica e a teoria moderna da soberania; do segundo, a biopoltica moderna at o atual triunfo da economia e do governo sobre qualquer outro aspecto da vida social (AGAMBEN, 2011, p.13).

  • 25

    A Construo de uma Teologia Poltica na Idade Mdia a partir dos escritos do Pseudo-Dionsio, o Areopagita

    foras espirituais, que esto divididas em trs crculos distintos, cada um deles se articulando em trplice rbita.

    A teologia nomeou todas as essncias celestes com nove nomes reveladores, que nosso divino iniciador divide em trs ordens. A primeira, diz-se, envolve Deus de maneira permanente, e a tradio quer que esteja unida a ele de modo constante antes de todos os outros e sem nenhuma mediao: estes so os tronos santssimos e estes batalhes notveis pelo nmero de seus olhos e de suas asas, que se chamam em hebraico querubins e serafins, e que esto assentados, diz Hieroteu, segundo a tradio das san-tas Escrituras, imediatamente junto de Deus, em uma proximi-dade superior de todos os outros. Esta ordem de trs batalhes forma, segundo o ensinamento de nosso clebre preceptor, uma s hierarquia, de condio igual e verdadeiramente primeira; ne-nhuma outra se conforma melhor a Deus, e ela imediatamente contgua s iluminaes primordiais da Tearquia. A segunda or-dem se compe, diz-se, dos poderes, das senhorias e das potncias. A terceira constitui a ltima hierarquia celeste, a ordem dos anjos, dos arcanjos e dos principados (PSEUDO-DIONSIO, 2004, p.158).

    O primeiro crculo composto por Serafins, Querubins e Tro-nos; o segundo, por Poderes, Senhorias e Potncias, e o terceiro, por Anjos, Arcanjos e Principados. De maneira que se pode afirmar que de Deus procedem irradiaes nesses diversos graus, que os sustentam e que acabam voltando ao centro irradiador, que o ponto de partida e trmino de todas as coisas.

    Com essa concepo se tinha procurado na ordem eclesistica uma justificao e uma verdadeira e prpria teodiceia, pois esta ordem, em essncia, no seno a mais acabada cpia da ordem espiritual csmica; a hierarquia da Igreja reflete a hierarquia do cu, e como reflexo tem-se a plena conscincia de sua prpria ne-cessidade e inviolabilidade. A cosmologia da Idade Mdia e a f medieval, a noo de ordem do universo e da ordem moral e re-ligiosa de salvao confluem em uma nica viso fundamental, em uma imagem de suprema significao e da mais alta lgica interior (CASSIRER, 1951, p.24).

    Essa hierarquia vista no cu deveria ser repetida na Terra, e as-sim se procedeu durante toda a Idade Mdia, quando os reis eram vis-tos como senhores entre senhores, numa clara compreenso de que o

  • 26

    Gerson Leite de Moraes

    poder poltico medieval estava pulverizado, o que facilitava o dom-nio poltico da Igreja, j que ela podia ser entendida como um grau da hierarquia divina entre os homens, colocada nesta condio para organizar a sociedade humana, tanto do ponto de vista moral como religioso. Contudo, com as mudanas em marcha desde o incio do Renascimento, percebe-se uma contestao importante a essa viso poltica de mundo imposta pela Igreja Catlica. Dante Alighieri (1265-1321) comeou a articular uma teologia poltica que possibilitou o des-membramento, mesmo que sem ruptura total entre o poder temporal e o poder espiritual.

    Afirmo, ento, que o poder temporal no recebe do espiritual nem a existncia, nem a faculdade que a autoridade, nem mes-mo o exerccio puro e simples. Recebe, sim, do poder espiritual aperfeioamentos acidentais: agem com maior eficcia pela luz da graa que Deus, no cu, e a bno do Sumo Pontfice, na ter-ra, lhe infundem. E, ento, o argumento peca na forma, porquan-to o predicado da concluso no a extremidade da premissa maior. Raciocina-se assim: a lua recebe a luz do sol que o poder espiritual; o poder temporal a lua; logo, o poder temporal rece-be a autoridade do poder espiritual (DANTE, 1984, p.88).

    Ainda sobre esse assunto, mas usando uma terminologia dife-rente, papatus, para o poder espiritual, e imperiatus, para o poder tem-poral, Ernst H. Kantorowicz diz o seguinte:

    Tanto papatus como imperiatus, portanto, eram instituies esta-belecidas por Deus para a adequada orientao da humanidade; ambos derivavam de Deus e ambos, em ltima instncia, refe-riam-se a Deus. Logo, tornavam-se comparveis apenas quando reduzidos a Deus, no qual universalmente confluem todas as relaes, ou talvez a alguma substncia inferior a Deus, algum prottipo celestial, no qual a deidade aparece de uma forma mais particularizada. Em outras palavras, Dante exclua, com relao a cada um dos cargos, a possibilidade de um interme-dirio humano, j que ambos dependiam diretamente de Deus. Ou, se houvesse intermedirio, este seria um anjo, um prot-tipo celestial de papatus e imperiatus, respectivamente, alguma substncia inferior a Deus de cuja universalidade essa forma particularizada descendia (KANTOROWICZ, 1998, p.277-278).

  • 27

    A Construo de uma Teologia Poltica na Idade Mdia a partir dos escritos do Pseudo-Dionsio, o Areopagita

    Ao fazer a distino entre poder espiritual e poder temporal, mesmo que o segundo se subordine ao primeiro, Dante assegura rea-leza um papel de destaque, que possibilitar aos tericos polticos dos sculos seguintes a formulao do poder temporal como um elemento j bem afastado do poder espiritual, cabendo a este uma tutela muito mais simblica do que, de fato, poltica.

    Seu estratagema era bastante bvio, pois o ponto de referncia em relao ao qual montava e orientava seu material, ou o deno-minador a que o reduzia, raramente era o fenmeno institucional em si; praticamente era sempre o homem por trs da instituio. E nesse sentido, a imagem do Prncipe ou Monarca, de Dante ainda que composta de inmeras tesselas de mosaico empres-tados da teologia e da filosofia, de argumentos histricos, polti-cos e legais da tradio corrente , reflete um conceito de realeza centrada no Homem e de uma Dignitas puramente humana que, sem Dante, estaria ausente e, com toda certeza, teria ficado au-sente daquele sculo (KANTOROWICZ, 1998, p.274).

    Os dois cargos estabelecidos por Deus para o bem da humani-dade, o papatus e o imperiatus, aproximar-se-o e distanciar-se-o em vrios acontecimentos no incio da Idade Moderna, principalmente aqueles relativos s questes religiosas. importante interrogar sobre o vnculo entre teologia e poltica, portanto, a questo do poder, mas importante tambm levantar questionamentos sobre o vnculo en-tre teologia e filosofia, portanto, sobre a questo do saber. Uma nova teologia poltica ser consagrada a partir de ento e usar elementos teolgicos e polticos que interessem para a sua prpria existncia.

    No sem motivo que falamos em uma era de absolutismo. O que encontra expresso nessa mudana na forma de dominao poltica uma mudana estrutural, como um todo, na sociedade ocidental. No apenas reis isolados expandem seu poder, mas, claramente, as instituies sociais da monarquia ou do principa-do adquirem nova importncia no curso de uma transformao gradual de toda a sociedade, uma importncia que simultanea-mente confere novas oportunidades de poder aos maiores prn-cipes (ELIAS, 1993, p.16).

  • 28

    Gerson Leite de Moraes

    A Reforma Protestante talvez tenha sido o movimento que me-lhor catalisou a nova teologia poltica, possibilitando a cada uma de suas vertentes iniciais (luterana, calvinista, anabatista e anglicana) repensar as possibilidades da poca e construir regimes polticos que delinearam os rumos da modernidade ocidental, superando definiti-vamente a teologia poltica anterior.

    Referncias

    AGAMBEN, Giorgio. O reino e a glria: uma genealogia teolgica da economia e do governo: homo sacer II. So Paulo: Boitempo, 2011.CASSIRER, Ernst. Individuo y Cosmos en la filosfa del Renascimento. Buenos Ai-res: Emec Editores, 1951.

    DANTE ALIGHIERI. Monarquia. Lisboa: Guimares Editores, 1984.ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador: Formao do Estado e Civilizao. Vol 2. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 1993.

    KANTOROWICZ, Ernst H. Os dois corpos do rei: um estudo sobre teologia poltica medieval. So Paulo: Companhia das Letras, 1998. PSEUDO-DIONSIO, O areopagita. Obra Completa. So Paulo: Paulus, 2004.YATES, Frances A. Giordano Bruno e a tradio hermtica. So Paulo: Cultrix, 1995.

  • Elementos Cinticos do Conceito Agostiniano de Pecado

    Maurizio Filippo Di Silva Universidade Federal de Minas Gerais

    Introduo

    O objetivo desta comunicao o de analisar se e como nas refle-xes agostinianas concernentes ao, aparece uma estrutura do agir, coincidente com o mudar ou o permanecer das entidades. Tendo em vista tal fim, o primeiro momento desta anlise coincidir com a indi-viduao das diferentes modalidades da ao, entendidas, por Agosti-nho, como as formas de relao com as entidades. Mais precisamente, luz da perspectiva mencionada, para alcanar o objetivo ser reque-rida, em primeiro lugar, a anlise das reflexes agostinianas relativas luta contra as tentaes, assim como elas aparecem no livro X da obra Confessiones (27.38-39.64), o que nos permitir indicar as direes do amor e as relaes entre a mens e os desejos da alma e do corpo. Com base nisto, considerar-se- a noo cintica do pecado coincidente com a negao da forma e da unidade das entidades (Conf., X, 34.53; 29.40), o que nos consentir esboar, preliminarmente, a identidade entre a ao e o movimento. Em segundo lugar, o fato de a determinao dos elementos cinticos da noo de ao depender da anlise do conceito de ordo e da relao entre alma e corpo, assim como eles aparecem na obra De libero Arbitrio (I, 7.16-12.24), ns permitir esclarecer como o agir no corresponde a uma especfica tipologia de movimento, ine-

    Carvalho, M.; Hofmeister Pich, R.; Oliveira da Silva, M. A.; Oliveira, C. E. Filosofia Medieval. Coleo XVI Encontro ANPOF: ANPOF, p. 29-39, 2015.

  • 30

    Maurizio Filippo Di Silva

    rente a um elemento das entidades, mas ao movimento da realidade mesma das criaturas. Por fim, as anlises sugeriro que a ao, nas suas formas e na sua natureza, coincide com a corruptio, o permanere e a conversio das entidades (De moribus Manichaeorum, II, 6.8).

    Confessiones, X (27.38-39.64)

    Conforme o que foi esclarecido nas observaes inicias, o primei-ro ponto desta comunicao coincide com a individuao das possveis formas da ao e, assim, com a determinao das diferentes modalida-des da relao com as entidades. Neste sentido, o ponto de partida da anlise a individuao agostiniana do comando divino, coincidente com a continncia e a pluralidade das suas direes: Sem dvida, or-denas-me que contenha a concupiscncia da carne, e a concupiscncia dos olhos, e a ambio do sculo (Agostinho, 2001, X, 30.41, traduo levemente modificada) 1. A lei divina, como ordem da continncia, su-gere a possibilidade de duas formas de agir, isto , o conter, ou no, as tentaes do corpo e da alma, o que coincide com a boa ao ou o peca-do. Assim, para determinar se o agir seria ou no movimento, ser ne-cessrio aprofundar a anlise das formas de ao referidas, tendo em vista tanto as direes do amor quanto a relao entre a mens e os de-leites da alma e da carne. Na perspectiva exposta, o ponto de partida da anlise so as reflexes agostinianas concernentes s tentaes da carne, assim como elas aparecem na obra Confessiones (X, 30.41-34.51). Mais precisamente, em tal mbito temtico, as reflexes agostinianas concernentes ao amor pelas formas belas obtm especial valor, sendo que nelas aparecem, muito claramente, tanto as formas do amor quanto as relaes entre a mens e as tentaes da carne: Os olhos amam as for-mas belas e variadas, as cores vivas e alegres. Oxal estas coisas se no apoderem da minha alma; que dela se apodere Deus que, na verdade, fez estas coisas muito boas. Porque o meu bem ele mesmo e no es-tas coisas (Agostinho, 2001, X, 34.51) 2. Como as prprias palavras de Agostinho revelam, se os homens amam as criaturas por si mesmas,

    1 Cf.: Iubes certe, ut contineam a concupiscentia carnis et concupiscentia oculorum et ambitione saecu-li. O texto latino das obras agostinianas citadas nesta comunicao o da NBA (1965-2007).

    2 Cf.: Pulchras formas et varias, nitidos et amoenos colores amant oculi. Non teneant haec animam meam; teneat eam Deus, qui fecit haec bona quidem valde, sed ipse est bonum meum, non haec.

  • 31

    Elementos Cinticos do Conceito Agostiniano de Pecado

    eles pecam; mas, se eles as usam para amar a Deus, fazem o que bem. O pecado corresponde ao domnio do corpo sobre a alma, ao passo que a boa ao coincide com o controle da mens sobre as tentaes da carne.

    Os elementos mencionados na anlise das reflexes agostinianas referentes s tentaes do corpo tambm aparecem nas observaes agostinianas sobre a curiositas. A curiosidade , para Agostinho, um apetite da alma, coincidente com o desejo de conhecer e experimentar por meio dos sentidos do corpo tudo o que est ao nosso redor: A isto acresce outra forma de tentao, perigosa sob muitos mais aspectos. Com efeito, alm da concupiscncia da carne, que inerente ao deleite de todos os sentidos e prazeres, postos ao servio da qual perecem os que se afastam de ti, existe na alma, disfarado sob o nome de co-nhecimento e cincia, uma espcie de apetite vo e curioso, no de se deleitar na carne por meio dos mesmos sentidos do corpo, mas sim de sentir por meio da experincia da carne (Agostinho, 2001, X, 35.54) 3. Assim, seja no caso das tentaes da carne seja no da curiositas, a lei divina define duas formas de agir, isto , a continncia e a incon-tinncia. Cabe agora compreender o que so o pecado e a boa ao na anlise agostiniana da curiosidade. Ainda, na perspectiva exposta, os elementos tericos da anlise so as direes do amor e as relaes entre a mens e os deleites: No entanto, quem poder contar a grande quantidade de coisas to insignificantes e desprezveis, com que dia-riamente tentada a nossa curiosidade, e quantas vezes nos deixamos levar? [...] E que dizer quando, sentado em casa, muitas vezes me atrai a ateno uma osga a caar moscas, ou uma aranha a enredar nas suas teias as que nelas caem? Acaso, porque so animais pequenos, no o mesmo o que se passa? Passo da ao teu louvor, criador admirvel e ordenador de todas as coisas, mas no para te louvar que comeo a reparar nisso. Uma coisa levantar-me rapidamente e outra no cair (Agostinho, 2001, X, 35.57) 4. Assim como as prprias reflexes 3 Cf.: Huc accedit alia forma temptationis multiplicius periculosa. Praeter enim concupiscentiam car-

    nis, quae inest in delectatione omnium sensuum et voluptatum, cui servientes depereunt qui longe se faciunt a te, inest animae per eosdem sensus corporis quaedam non se oblectandi in carne, sed experiendi per carnem vana et curiosa cupiditas nomine cognitionis et scientiae palliata.

    4 Cf.: Verum tamen in quam multis minutissimis et contemtibilibus rebus curiositas cotidie nostra temte-tur et quam saepe labamur, quis enumerat? [...] Quid cum me domi sedentem stelio muscas captans vel aranea retibus suis inruentes inplicans saepe intentum facit? Num quia parva sunt animalia, ideo non res eadem geritur? Pergo indem ad laudandum te, creatorem mirificum atque ordinatorem rerum omnium, sed non inde esse intentus incipio. Aliud est cito surgere, alid est non cadere. Em que concerne relao entre curiositas e cincia no pensamento agostiniano, cf. tambm: Confessiones, V, 3.3-4.7.

  • 32

    Maurizio Filippo Di Silva

    agostinianas sugerem, se os homens procuram o conhecimento pelo desejo de conhecer e de experimentar, eles pecam; ao contrrio, se os homens buscam o saber para louvar Deus, eles agem em respeito lei divina. O pecado , portanto, o domnio da curiositas sobre a mens, isto , o controle de um desejo da alma sobre a alma mesma; a boa ao, ao contrrio, coincide com o domnio da mens sobre a curiosidade, isto , com o controle da alma sobre si mesma e sobre os seus desejos.

    Os elementos expostos na anlise das reflexes agostinianas so-bre as tentaes da carne e sobre a curiositas tambm aparecem nas observaes relativas soberba. Assim como a curiosidade, a soberba um apetite da alma e corresponde, precisamente, ao desejo de ser temido e amado pelos humanos. luz da ordem da continncia, trata--se de esclarecer quais formas de agir correspondem ao conter ou no a soberba. Mais especificamente, o objetivo da anlise compreender o que o pecado e a boa ao so nas reflexes agostinianas sobre a ambitio mundi, tendo em vista tanto o motivo do amor quanto as rela-es entre a mens e os desejos da alma: E assim, como, por causa de certos deveres da sociedade humana, necessrio ser amado e temido pelos homens, o adversrio da nossa verdadeira felicidade no nos d trguas, espalhando por toda a parte nos seus laos um muito bem! muito bem!, para que, enquanto recebemos avidamente estes aplau-sos, sejamos apanhados incautamente, e desliguemos a nossa alegria da tua verdade, e a coloquemos na falsidade dos homens, e nos agrade ser amados e temidos, no por causa de ti, mas em vez de ti (Agosti-nho, 2001, X, 36.59)5. Assim como as palavras de Agostinho nos suge-rem, quando os homens amam as criaturas por si mesmas, eles pecam; mas, quando as amam por causa de Deus, eles respeitam a lei divina. O pecado , assim, o domnio da ambitio mundi sobre a mens, isto , o controle de um desejo da alma sobre a prpria alma; a boa ao, ao contrrio, coincide com o domnio da mens sobre a soberba, isto , com o controle da alma sobre si mesma e sobre os seus desejos.

    luz das anlises desenvolvidas, podem-se reconhecer duas tipologias da ao, isto , o pecado e a boa ao, as quais correspondem

    5 Cf.: Itaque nobis, quoniam propter quaedam humanae societatis officia necessarium est amari et timeri ab hominibus, instat adversarius verae beatitudinis nostrae ubique spargens in laqueis euge, euge, ut, dum avide colligimus, incaute capiamur et a veritate tua gaudium nostrum deponamus atque in hominum fallacia ponamus, libeatque nos amari et timeri non propter te, sed pro te.

  • 33

    Elementos Cinticos do Conceito Agostiniano de Pecado

    ao conter, ou no, os deleites da carne e da alma. Alm disso, no que concerne s direes do amor, o pecado revelou-se o amor pelas cria-turas em si mesmas, ao passo que a boa ao corresponde ao amor por Deus. Enfim, no plano da relao entre a mens e as tentaes da carne e da alma, a anlise esclareceu que o pecar coincide com o domnio dos desejos do corpo e da alma sobre a mens, ao passo que a boa ao , ao contrrio, o controle da mens sobre as tentaes referidas. Com base nisto, podem-se agora indicar, se bem s preliminarmente, os aspec-tos cinticos da noo de ao. A identidade entre agir e o movimento aparece, em primeiro lugar, nas reflexes de Agostinho sobre o pe-cado entendido como a negao da forma. Neste sentido, quando os homens pecam, eles destroem a forma que Deus criou; ao contrrio, quando eles fazem o bem, eles a guardam: Que inumerveis coisas acrescentaram os homens s tentaes da vista com as variadas artes e requintes no vesturio, no calado, nos utenslios, em outros produtos do mesmo gnero, nas pinturas e esculturas vrias que muito ultra-passam o seu uso necessrio e equilibrado e o seu piedoso significado, seguindo exteriormente aquilo que criam, abandonando interiormente aquele que os criou, e destruindo em si aquilo que ele os fez (Agos-tinho, 2001, X, 34.53) 6. A coincidncia de ao e movimento aparece tambm nas reflexes agostinianas sobre a ao como a negao da unidade das entidades. Neste caso, o pecado revela-se, para Agosti-nho, como a negao da unidade da entidade, ao passo que a ao conforme lei divina coincide com a custdia da unidade: Efectiva-mente, pela continncia samos da disperso e somos reconduzidos unidade, da qual nos dissipmos em muitas coisas.Na verdade, ama-te menos aquele que, ao mesmo tempo que a ti, ama alguma coisa, que no ama por causa de ti (Agostinho, 2001, X, 29.40) 7.

    Com base nisto, parece, claramente, que a ao, na sua dplice modalidade, corresponde ao movimento e ao permanecer da forma das entidades: Tarde te amei, beleza to antiga e to nova, tarde te amei! E eis que estavas dentro de mim e eu fora, e a te procurava, e eu,

    6 Cf.: Quam innumerabilia variis artibus et opificiis in vestibus, calciamentis, vasis et cuiuscemodi fabricationibus, picturis etiam diversisque figmentis atque his usum necessarium atque moderatum et piam significationem longe transgredientibus addiderunt homines ad inlecebras oculorum, foras sequentes quod faciunt, intus relinquentes a quo facti sunt et exterminantes quod facti sunt.

    7 Cf.: Per continentiam quippe colligimur et redigimur in unum, a quo in multa defluximus. Minus enim te amat qui tecum aliquid amat, quod non propter te amat.

  • 34

    Maurizio Filippo Di Silva

    deforme, precipitava-me nessas coisas belas que tu fizeste. Tu estavas comigo e eu no estava contigo (Agostinho, 2001, X, 27.38, traduo levemente modificada) 8. Nesta perspectiva, a qual parece sugerir a ideia de que o agir seria um movimento inerente apenas a algumas qualidades da criatura, aparece, contudo, a exigncia de uma anlise da coincidncia de forma e ordem das entidades, a qual permite, ao mesmo tempo, esclarecer qual elemento est sujeito ao movimento e determinar o que a ao, enquanto movimento, seria.

    De libero Arbitrio (I, 7.16-12.24)

    As reflexes agostinianas sobre a forma e a unidade dos homens, enquanto entidades, aparecem nas anlises contidas na obra De libero Arbitrio e, precisamente, nas observaes agostinianas relativas ao con-tedo da lei divina. Neste contexto, Agostinho esclarece que o conter as tentaes da carne e da alma corresponde ao guardar a ordem en-tre a mens os desejos referidos. Em primeiro lugar, Agostinho define o domnio da mens sobre as tentaes nos termos de uma relao entre o que mais e o que menos forte, sugerindo, assim, a presena de uma hierarquia entre os elementos que nos constituem. Neste sentido, quando os homens pecam, o que neles menor predomina sobre o que maior; ao contrrio, quando eles agem conforme lei divina, o que maior neles exerce seu controle sobre o que menor: A- Pensas que a paixo mais poderosa do que a mente, qual reconhecemos ter sido confiado, por lei eterna, o domnio sobre as paixes? Eu, de facto, de modo algum penso que assim seja. E no seria absolutamente or-denado que as realidades mais fracas dominassem as mais fortes. Por isso, julgo que necessrio que a mente seja mais poderosa do que o desejo desenfreado, precisamente porque recto e justo que ela o do-mine (Agostinho, 2001, I, 10.20) 9. A relao de ordem aparece, ainda mais claramente, nas reflexes agostinianas concernentes ao domnio da mens sobre a curiositas e a ambitio mundi. Nesta perspectiva, Agosti-8 Cf.: Sero te amavi, pulchritudo tam antiqua e tam nova, sero te amavi! Et ecce intus eras et ego foris et

    ibi te quaerebam et in ista formosa, quae fecisti, deformis inruebam. Mecum eras, et tecum non eram.9 Cf.: A- Putasne ista mente, cui regnum in libidines aeterna lege concessum esse cognoscimus, poten-

    tiorem esse libidinem? Ego enim nullo pacto puto. Neque enim esset ordinatissimum, ut inpotentiora potentioribus imperarent. Quare necesse arbitror esse ut plus possit mens quam cupiditas, eo ipso quo cupiditati recte iusteque dominatur.

  • 35

    Elementos Cinticos do Conceito Agostiniano de Pecado

    nho define o controle da mens sobre os desejos irracionais da alma nos termos de uma relao entre o que mais e o que menos perfeito. Neste sentido, quando os homens agem conforme lei divina, o que neles tem um grau de perfeio maior domina sobre o que tem um n-vel de perfeio menor; mas, quando os homens pecam, o que menos perfeito domina sobre o que mais perfeito: A- Em suma, dir-se- que o ser humano est ordenado, quando a razo domina sobre estes movimentos da alma. De facto, no se h-de falar de uma recta ordem ou, sequer, de ordem, onde as realidades superiores esto subjuga-das s inferiores. No te parece? E- evidente. A- Portanto, quando esta razo mente ou esprito governa os movimentos irracionais da alma, ento domina, no ser humano, aquilo que nele deve dominar, de acordo com aquela lei que descobrimos ser eterna (Agostinho, 2001, I, 8.18) 10. Parece, portanto, claramente, que a ao, na sua dplice moda-lidade, no coincide apenas com o movimento inerente a algumas das qualidades das entidades, mas com o movimento e a permanncia da ordem axiolgica delas.

    Contudo, tal compreenso do carter axiolgico da ao requer uma anlise da dimenso ontolgica da relao entre a mens e as ten-taes, de modo a esclarecer a coincidncia do agir e do movimen-to. A noo agostiniana de ordem coincide, de fato, com o conceito de essncia, o que sugere, portanto, que os homens, como entidades, correspondem a uma relao hierrquica dos elementos que os com-pem. Neste sentido, quando os homens pecam, eles destroem a pr-pria natureza; contudo, quando eles agem em respeito lei divina, eles preservam a prpria essncia: A- O que eu quero dizer o seguinte: seja l o que for isso pelo qual o ser humano se sobrepe aos animais, quer se lhe chame mente ou esprito, ou, de modo mais adequado, am-bas as coisas de facto, encontramos uma e outra nos livros divinos -, se dominar e imperar sobre as demais realidades de que o ser huma-no se compe, ento ele estar perfeitamente ordenado (Agostinho,

    10 Cf.: A- Nemo autem cuiquam miseria se praeponendum putavit. Hisce igitur animae motibus cum ra-tio dominatur, ordinatus homo dicendus est. Non enim ordo rectus aut ordo appellandus omnino est, ubi deterioribus meliora subiciuntur. An tibi non videtur? E- Manifestum est. A- Ratio ista ergo vel mens vel spiritus cum inrationales animi motus regit, id scilicet dominatur in homine, cui dominatio lege debetur ea quam aeternam esse comperimus.

  • 36

    Maurizio Filippo Di Silva

    2001, I, 8.18) 11. Com base nisto, mostra-se claro, que a ao no um movimento inerente s qualidades singulares das entidades, mas o prprio movimento do ser delas, sugerindo, assim, que a forma no uma das propriedades das criaturas, mas a essncia delas: A- Por conseguinte, aquele movimento de averso, que reconhecemos ser o pecado, na medida em que um movimento de defeco e que toda a decadncia provm do nada, repara bem naquilo a que ele se refere, e no duvides que no pertence a Deus (Agostinho, 2001, II, 20.54) 12.

    Nesta perspectiva, a qual sugere a ideia de que o agir um movi-mento inerente ao ser das entidades, apresenta-se, tambm, a exigncia de uma anlise das formas de coincidncia de ao e do movimento, que permita esclarecer, com base na identidade entre agir e negao ou custdia das entidades, quais seriam as formas cinticas da ao.

    3. De moribus Manichaeorum (II, 6.8)

    Com base nos resultados da primeira e da segunda fase desta an-lise, cabe, agora, examinar quais seriam, para Agostinho, as formas de movimento e assim determinar o que seria a ao enquanto movimento. Os elementos mencionados aparecem nas reflexes agostinianas sobre a corrupo, a permanncia e a converso, contidas na obra De moribus Manichaeorum. Neste contexto, Agostinho analisa tanto as modalidades cinticas citadas quanto o seu estatuto ontolgico e axiolgico.

    O primeiro ponto da anlise agostiniana mencionada a cor-rupo, a qual coincide, para Agostinho, com a negao da essncia e do ser das criaturas. Mais precisamente, a corruptio o movimento que, negando os elementos essenciais das entidades, isto , a medida, a forma e a ordem, nega, assim, o ser das criaturas: Quare ordinatio esse cogit, inordinatio ergo non esse; quae perversio etiam nominatur atque corruptio (Agostinho, 1997, II, 6.8). O segundo elemento da anli-se agostiniana corresponde, por outro lado, permanncia. Uma tal forma cintica coincide, mais precisamente, para Agostinho, com o

    11 Cf.: A- Illud est quod volo dicere: hoc quidquid est, quo pecoribus homo praeponitur, sive mens sive spiritus sive utrumque rectius appellatur nam utrumque in divinis libris invenimus -, si dominetur atque imperet ceteris, quibuscumque homo constat, tunc esse hominem ordinatissimum.

    12 Cf.: A- Motus ergo ille aversiosnis, quod fatemur esse peccatum, quoniam defectivus motus est, omnis autem defectus ex nihilo est, vide quo pertineat, et ad deum non pertinere ne dubites.

  • 37

    Elementos Cinticos do Conceito Agostiniano de Pecado

    subtrair-se corruptio. Neste sentido, a permanncia revela-se como o permanecer da estrutura ontolgica da entidade: Deficiunt autem om-nia per corruptionem ab eo quod erant et non permanere coguntur, non esse coguntur. Esse enim ad manendum refertur (Agostinho, 1997, II, 6.8). A terceira forma cintica analisada por Agostinho corresponde conver-so, a qual revela-se como o movimento de reconstituio da essncia e do ser das criaturas: Nam quod mutatur in melius, non quia manebat mutatur, sed quia pervertebatur in peius, id est ab essentia deficiebat (Agos-tinho, 1997, II, 6.8). A tais formas cinticas correspondem, alm disso, no plano ontolgico e axiolgico, diferentes graus de valor e realidade. A corrupo coincide, de fato, com o mal e o no-ser, ao passo que a permanncia e a converso correspondem ao bem e ao ser.

    Com base nisto e nas anlises concernentes s modalidades da ao, pode-se, agora, determinar o que o agir enquanto movimento. Em primeiro lugar, se o pecado coincide com a negao da ordem on-tolgica das entidades, torna-se evidente que ele coincide com a cor-rupo, sendo que a corruptio corresponde negao da essncia da en-tidade. Em segundo lugar, se a boa ao coincide tanto com a custdia quanto com a reformao da ordem ontolgica das entidades, torna-se evidente que ela tem que corresponder permanncia e converso, enquanto movimentos de custdia do ser. luz desta anlise, torna-se clara a coincidncia das modalidades da ao e dos sentidos agostinia-nos do movimento, o que sugere a exigncia de um exame dos graus e dos nveis da relao mencionada.

    Concluses

    Conforme anlise desenvolvida, pode-se concluir que a ao , para Agostinho, o movimento da forma e da unidade da entidade, isto , o movimento do ser das criaturas. Neste sentido, a ao no corres-ponde ao movimento inerente s qualidades singulares das entidades, mas ao movimento da essncia e s suas diferentes modalidades, isto , a corrupo, a permanncia e a converso. Assim como a prpria terminologia agostiniana sugere (Agostinho, 1997, 7)13, torna-se claro, 13 Cf.: Creaturis autem praestantissimis, hoc est rationabilibus spiritibus, hoc praestitit Deus ut si no-

    lint, corrumpi non possint, id est si obedientiam conservaverint sub Domino Deo suo ac sic incorrup-tibili pulchritudini eius adhaeserint. Cf. tambm: Agostinho, 1997, 37.

  • 38

    Maurizio Filippo Di Silva

    portanto, que a identidade entre a ao e o movimento completa e intrnseca, o que indica a exigncia de um exame da tica em termos cinticos. luz dos resultados expostos, o objetivo das prximas in-vestigaes ser, assim, o de examinar a tica agostiniana enquanto expresso da ontologia e dos seus conceitos fundamentais, isto , as noes de matria e forma.

    Referncias

    Agostinho, Confisses, trad. pt. A. do Esprito Santo, J. Beato e M.C. de Castro--Maia de Sousa Pimentel, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2001 (texto lat., Roma, Citt Nuova, 2007)

    -De moribus Ecclesiae catholicae et de moribus Manichaeorum, in: SantAgostino, Polemica con i Manichei, trad. it. A. Pieretti, Roma, Citt Nuova, 1997.-De Natura Boni, in: SantAgostino, Polemica con i Manichei, trad. it. L. Alici, Roma, Citt Nuova, 1997.

    -Dilogo sobre o livre arbtrio, trad. pt. P. Oliveira e Silva, Lisboa, Imprensa Na-cional-Casa da Moeda, 2001 (texto lat., Roma, Citt Nuova, 1992).

    Beierwaltes, W. (1995). Agostino e il neoplatonismo cristiano, trad. it. A.Trotta, Milano: Vita e Pensiero. Bettetini, M. (1994). La misura delle cose: Struttura e modelli delluniverso secondo Agostino dIppona. Milano: Rusconi.Bezanon, J.N. (1965). Le mal et lexistence temporelle chez Plotin et saint Au-gustin. Recherches Augustiniennes, 3, pp. 133-160.Bochet, I. (1982), Saint Augustin et le dsir de Dieu. Paris: Institut dtudes Augustiniennes.dOnofrio, G. (1991). Quod est et non est. Ricerche logico-ontologiche sul problema del male nel Medioevo pre-aristotelico. Doctor Seraphicus, 38, pp. 13-35.De Capitani, F. (1980). Corruptio negli scritti antimanichei di S. Agostino. I. Rivista di Filosofia Neoscolastica, 72, pp. 640-669; (1981). II, 73, pp. 132-156.Di Silva M.F. (2013). Corruzione e formazione degli enti: Forme cinetiche agostiniane, in: R. Fras Urrea (Ed.), Cultura Helenstica y Cristianismo Primi-tivo: Actualidad de un (Des)encuentro (Actas del XIII Encuentro Internacional de Estudios Clsicos, Santiago, Chile, 5-7 novembre 2013), Santiago de Chile, Comisin Nacional Cilena de Cooperacin con UNESCO, pp. 151-164.

  • 39

    Elementos Cinticos do Conceito Agostiniano de Pecado

    La Bonnardire, A. M. (1970). Biblia Augustiniana. Paris: Institut dtudes Augustiniennes.Mller, C. (1986). Corruptio-incorruptio. In: Augustinus-Lexikon, Tomo 2, Ba-sel: Schwabe, pp. 47-53.OConnell, R.J. (1970). De libero arbitrio I: Stoicism revisited. Augustinian Stu-dies, 1, pp. 49-78.Pieretti, A. (2007). Mutabilit. In: Agostino: Dizionario enciclopedico Roma: Citt Nuova, pp. 977- 978.Roche, I. (1941). Measure, Number and Weight in Saint Augustine. New Scho-lasticism, 15, pp. 350-376.Zum Brunn, E. (1969). Le dilemme de ltre et du nant chez saint Augustin. Des premiers dialogues aux Confessions. Recherches Augustiniennes, 6, pp. 3-102.

  • O significado da mente em Santo Agostinho

    Srgio Ricardo StreflingUniversidade Federal de Pelotas

    1. Termos e significados

    Antes de tudo, devemos considerar que os termos em San-to Agostinho so flutuantes, e na medida em que vamos adquirindo familiaridade com os seus textos, ento percebemos que cada termo pode ter vrios significados e cada significado correlato a outros. o caso da mente (mens) relacionada com a razo (ratio), bem como, s vezes, identificada com a inteligncia (intelligentia) e com o intelecto (intellectus). Para entendermos estes termos no podemos deixar de lembrar a derivao dos mesmos a partir de trs palavras latinas que o autor hiponense grafa, a saber: anima, animus e spiritus. Gilson (2007, p.95) nos adverte sobre a importncia de considerarmos os diversos significados das expresses acima citadas.

    O termo anima designa o princpio animador dos corpos conside-rando a funo vital que neles exerce, isso significa que o homem pos-sui uma alma semelhante aos demais animais. Com o termo animus, Agostinho quer preferencialmente designar a alma humana, ou seja, um princpio vital que ao mesmo tempo uma substncia racional (De civitate dei, VII, 23). Nesse sentido, animus o maior grau da alma, e s vezes, parece confundir-se com mens (De civitate dei XI, 3). J o termo spiritus possui dois sentidos inteiramente diferentes, podendo ser deri-

    Carvalho, M.; Hofmeister Pich, R.; Oliveira da Silva, M. A.; Oliveira, C. E. Filosofia Medieval. Coleo XVI Encontro ANPOF: ANPOF, p. 40-49, 2015.

  • 41

    O significado da mente em Santo Agostinho

    vado de Porfrio (De civitate dei, X, 9, 2) ou das Sagradas Escrituras (De anina et ejus origine, II, 2, 2) . Na designao porfiriana, spiritus designa bem o que denominamos imaginao reprodutiva ou memria sens-vel; portanto, superior vida (anima) e inferior ao pensamento (mens) humano (De Genesi ad litteram, XII, 24,51). No sentido bblico (De fide et symbolo, X, 23) , spiritus designa a parte racional da alma e, por conse-guinte, torna-se uma faculdade especfica do homem e que os animais no possuem (GILSON, 2007, p. 95).

    A mens, que podemos traduzir por mente ou pensamento, a parte superior da alma racional e o que existe de mais excelente na criatura humana, ela que adere aos inteligveis e a Deus (Enarratones in psalmis 3,3). Em De trinitate (XV, 7.11 e 27,49) encontramos a famosa definio agostiniana da mente: a mente no a alma, mas nela, o que h de excelente (Non igitur anima, sed quod excellit in anima, mens vocatur). Agostinho ao explicar sobre a excelncia da mente a denomi-na presidente de honra, no sentido de que acima dela encontra-se somente Deus, a quem ela deve se submeter. A mente contm natural-mente a razo e a inteligncia. Algumas vezes o termo mente equipa-rado a animus.

    Matthews ao tratar do dualismo mente-corpo sitematiza os ar-gumentos apresentados no De trinitate e enfatiza que a lista de Santo Agostinho de indubitveis funes mentais converte-se em sua carac-terizao do que uma mente. Assim: uma mente algo que vive, recorda, entende, deseja, pensa, conhece e julga (2007, p.71-73). Veja-mos o raciocnio do prprio Agostinho:

    Ora, certos homens duvidaram se a faculdade de viver, recor-dar, entender, querer, pensar, saber, julgar, no provinha do ar, do fogo, do crebro, do sangue ou dos tomos, ou ainda se, alm desses quatro elementos mais defendidos, ou talvez, de um quinto elemento de natureza ignorada. Ou tambm, se a estrutu-ra ou constituio de nosso prprio corpo era que realizava todas essas atividades. Uns defenderam tal opinio, outros tal outra. Quem, porm, pode duvidar que a alma vive, recorda, entende, quer, pensa, sabe e julga? Pois, mesmo se duvida, vive; se duvi-da lembra-se do motivo de sua dvida; se duvida, entende que duvida; se duvida, quer estar certo; se duvida, pensa; se duvida, sabe que no sabe; se duvida, julga que no deve consentir teme-

  • 42

    Srgio Ricardo Strefling

    rariamente. Ainda que duvide de outras coisas no deve duvidar de sua dvida. Visto que se no existisse, seria impossvel duvi-dar de alguma coisa (De trinitate 10.10.14).

    Vimos, portanto, que o autor africano procura estabelecer esta lista mostrando que a prpria tentativa da mente de duvidar de que desempenha qualquer dessas funes , de certo modo, um efeito con-trrio ao que se desejava.

    Convm agora definir um outro termo relacionado com a mente, esse a ratio. A ratio, que traduzimos por razo, o movimento pelo qual a mens passa de um dos seus conhecimentos a outro associando--os ou os dissociando (De ordine II, 11, 30). A razo a melhor parte de nossa alma (Acad. 1.2.5; retr. 1.1.2) A razo necessria para a f e para o amor, porque a razo a que apreende os objetos de ambos. Devemos ainda lembrar que os dois termos intellectus e intelligentia fo-ram impostos a Agostinho pelas Escrituras, e ambos significam uma atividade superior razo. Intelligentia aquilo que h no homem, por-tanto, na mens, de mais eminente (De libero arbitrio I, 1,3), e pela mesma razo, confunde-se com intellectus (Enarrationes in psalmos 31,9).

    Cabe agora definir o que Agostinho entende por intellectus. O intelecto uma faculdade da alma, prpria do homem, que pertence mais particularmente mens, e que iluminada diretamente pela luz divina (In Joannis evangelium tractatus XV, 4,19). O intellectus uma fa-culdade superior razo, pois possvel haver razo sem haver inteli-gncia, mas no inteligncia sem haver primeiramente razo; e, porque o homem tem a razo, ele quer alcanar o entendimento. A inteligncia uma viso interior pela qual o pensamento percebe a verdade que a luz divina descobre para ele (Enarrationes in psalmis 32,22). a partir do intellectus, visto em sua forma mais elevada, que vimos que a f o prembulo necessrio (GILSON, 2007, p.96).

    Segundo Hankey (2001, p.886), o bispo de Hipona entende que a mente no um mero aspecto de seu ser ou de sua relao com o universo. A mente imortal define o homem, e trata-se de uma infinitu-de terrivelmente fascinante na qual o homem est imerso. Agostinho afirma isso a partir de uma experincia ou compreenso de si prprio (Confessiones 10.17.26), e na qual ele explora incessantemente com uma contnua sensao de ser algo maravilhoso. Conhecer plenamente o ser

  • 43

    O significado da mente em Santo Agostinho

    humano, o faz supremamente feliz, pois isso significa buscar a unio com o bem divino na contemplao. A viso a realizao daquilo que o amor busca; o amor est percebendo constantemente (De trinitate 8.4.6; 11.6.10). O conhecer a Deus e o conhecer a ns mesmos so coisas que se acham indissoluvelmente unidas. O conhecer a Deus depende de que se chegue a entender que a mente imaterial e que imagem do Deus trinitrio (Confessiones. 7.1.1; De trinitate 1.1.1; 2.18.54; 3.1.1; 10,10.15.16). A mente comum a Deus e ao homem, o meio (medium) infinito em que eles se encontram.

    2. A mente conhece a si prpria

    A filosofia, no mundo helenstico ao que pertence o pensamento de Agostinho, tinha se voltado para si mesma, e o bispo de Hipona foi essencial para comunicar ao Ocidente latino esta virada. Compreender para Agostinho algo que depende da apreciao da deciso que esta direo mental para o interior. Somente voltando-se para o interior, afastando-se do sensvel, ser possvel ir de encontro da Verdade. Em Confessiones livro 7, atormentado pela dvida sobre a origem do mal, Agostinho reflete sobre a luz do salmo 37 e diz:

    Contudo, ia ao encontro do teu ouvido tudo o que rugia por cau-sa do gemido do meu corao, e diante de ti estava o meu desejo, e a luz dos meus olhos no estava comigo. Estava dentro de mim, mas eu fora, e ela no estava em um lugar (Confessiones 7.7.11).

    Mais adiante, em Confessiones livro 7, o nosso autor suplica o socorro divino parafraseando o salmo 101 e afirma que somente liber-tando-se dos aguilhes interiores, conforme a linguagem da Eneida de Virgilio, e por meio da intuio interior que poderemos nos certificar da existncia de Deus. Nosso autor suplica:

    E impelias-me com os teus aguilhes interiores, para que esti-vesse inquieto, at que, atravs da viso interior, tu para mim fosses uma certeza(Confessiones. 7.8.12). Na obra De Trinitate, o autor declara que propriamente nosso co-

    meo e nosso fim so como conhecimento de si mesmo. A mente se

  • 44

    Srgio Ricardo Strefling

    conhece sempre a si mesma, porque sempre est imediatamente pre-sente em si mesma, e, por tanto, melhor conhecida para si mesma que possa ser-lo qualquer outra coisa (Trinitate 8.6.9; 9.3.3; 9.6.11; 10,7.10-10.10.16). A relao com Deus e com todos os demais est contida no verdadeiro conhecimento de si mesmo. No necessitamos acrescentar nada. Ademais, devemos subtrair aquilo que acrescentamos erronea-mente por nossa auto-imerso no sensvel que est por baixo da mente. O autor de Confessiones define a memria como faculdade da mente, onde encontram-se as imagens corpreas e, lembra-nos que quando se subtraem as confuses resultantes dessas condies que deixam a mente obscura, ento a mente chega a ter um conhecimento de sua prpria natureza ou substncia (Confessiones. 10.8.15; 10.9.16).

    A mente, quando chega ao verdadeiro conhecimento de si mes-ma, chega a Deus. A Verdade a mente divina ou Verbo (Trin. 1.10.20; 4.1.2; 4.18.24; 7.3.5; 12.14ss). Ali a mente se encontra com o que supe-rior a ela (Confessiones 7.7.10; Trinitate 8ss;). A auto-reflexo o meio pela qual acontece a relao com tudo o mais, e em oposio aos neo-platnicos pagos, isto segue sendo verdade para Agostinho, inclusive no que diz respeito a unio com Deus. Para nenhum outro pensador na tradio platnica com que o hiponense se identifica a si mesmo, o mundo mental mais inclusivo. Nenhum pago obedecia mais com-pletamente que Agostinho a ordem dada pelo orculo de Delfos: Co-nhece-te a ti mesmo! (Confessiones 10.3.3). Quando a mente pensando em si, v-se, ela se compreende e se reconhece. Eis a alma agindo sobre si mesma. Essa a sua mais perfeita operao, pois o objeto que v no lhe estranho como algo de fora.

    O autor africano descobriu tambm as contradies e auto-decep-es que havia na introspeco mental. O papel decisivo de Agostinho na determinao do carter especfico do Ocidente latino de impor-tncia crtica para a formao de suas tendncias ao dualismo mente--corpo, ao intelectualismo absoluto e para a introspeco psicolgica.

    3.A mente manifesta-se trinitariamente

    Para que a mente seja o medium atravs do qual Deus e o homem se encontrem, ter que ser mais que conhecer. A mente ser interco-

  • 45

    O significado da mente em Santo Agostinho

    nectado, conhecimento e vontade, ou, melhor dito, a mente o que constitui as atividades totalmente inter-relacionadas e auto-reflexivas de recordar, entender e amar. (Confessiones. 10.10.16; 13.11.12; De civi-tate Dei 11.26; De trinitate 14.8.11). Assim, por exemplo, a mente no somente a profundidade inconsciente em que se d a unio com os princpios de sua operao (De trinitate. 8.9.13; 11.7.11; 12.2.2; 12.3,3; 12.15.24). igualmente uma conceitualizao comparvel ao falar uma palavra, um conceber em que o ser da mente se expressa a si mesmo para si mesmo. tambm um amor auto-movido porm auto-trans-cendente, comparvel ao peso de um corpo (De civitate Dei 11.28; Con-fessiones 4.14.22; 14.9.10). Cada um dos trs aspectos da mente contm aos demais (De trinitate 14.6.8; 14.14.18; 15.21.40; 15.21.41). A trade da memria, do entendimento e do amor se acha presente em cada uma das trs atividades da mente. Assim, por exemplo, h um conhecer e um amar dentro da memria antes que o conhecimento seja projetado para a conscincia.

    Quando essas trs atividades esto plenamente dirigidas para Deus individualmente e como uma totalidade, Deus e o homem esto finalmente unidos na suprema bem-aventurana (De trinitate 15.12.21). A capacidade da mente se julga por esta viso de si e do destino e da finalidade do homem. Isto significa que a essncia de Deus est dada inteiramente no pensamento divino e na vontade divina, e tambm que a mente humana chega a unio com a essncia de Deus, tal como dada assim no pensamento e no amor. A representao que Agostinho tem do futuro teleolgico da mente humana e, por tanto, de sua capa-cidade e de sua relao com o ser, se acha em vivo contraste com a que predomina na tradio crist grega, mas determinante na teologia, filosofia e cultura do ocidente latino, considerando a estrutura ontol-gica e teolgica de sua metafsica.

    No entanto, a conexo de dependncia em que se acha a men-te humana em suas atividades essenciais com respeito ao Deus trini-trio no fica reservada para a vida no mundo futuro. Est sempre presente. As atividades da mente dependem da iluminao divina. A memria depende de Deus para os princpios inatos que ela pode evo-car na conscincia. Segundo a experincia histrica de Agostinho na memria ele retm uma relao com o que ele esqueceu (Confessiones

  • 46

    Srgio Ricardo Strefling

    10.16.25) e com o subconsciente. Assim, no vasto e maravilhoso mundo da memria, a mente encontra a Deus dentro de si mesmo. A men-te, ao pensar, reflete a concepo divina de uma palavra interna. No conhecimento verdadeiro, a mente toca e v a Deus sobre si mesmo. Todos seus juzos se fazem assim em relao com a norma da Verdade divina, de tal maneira que Agostinho pode considerar-se a si mesmo como sempre movido e movente em relao com ela. No desejo da felicidade, a mente consciente ou inconscientemente movida por Deus. Quando este amor entende devidamente a natureza do fim que a satisfaz, ento chega unio com Deus. A graa e a revelao restau-ram e levam para a autoconscincia a imagem divina danificada ou prejudicada, mas nunca perdida (De trinitate 14.8.11).

    4. A mente atravs do sentido e da razorelaciona-se com os outros seres

    Em sua relao com o sentido, o sentido comum e a imaginao, a mente receptiva com respeito ao sensvel que h debaixo dela, o conduz unidade e o organiza reconstruindo criativamente. As coisas temporais e sensveis so realidades inferiores que, por sua mutabili-dade, existem reduzidamente. (Confessiones 12.9.9-12.19.28). Por meio do sentido a mente recupera o autoconhecimento.

    Segundo Harrison (2001, p.1185), a analogia dos cinco sentidos utilizada por Agostinho em forma figurada para descobrir ao homem interior, pelo qual ele entende primordialmente a alma racional e a sua relao com Deus. Atravs dos sentidos espirituais a alma apren-de sobre Deus e cr, ou tem conhecimento de Deus. Empregando a analogia da vista, a alma v e conhece pela iluminao divina, toda-via, o autor africano admite algumas vezes que este conhecimento mais afetivo e sensitivo que racional e intelectual. Trata-se de um tocar ou experimentar. Em De civitate Dei (11.27), Agostinho se refere a um sentido interior comum aos homens e aos animais, que superior aos sentidos corporais, ao qual so referidas as percepes dos cinco sentidos, sendo que estas, at certo ponto, so julgadas e interpretadas.

    Em Genesi ad litteram 12, Agostinho define trs classes de viso:A primeira, a viso corporal (visio corporalis), a viso com os olhos do

  • 47

    O significado da mente em Santo Agostinho

    corpo e a percepo sensorial; a segunda, a viso espiritual (visio spiri-tualis), a percepo interior, em funo das imagens armazenadas na mente ou na memria, do que foi sentido externamente; a terceira, a vi-so intelectual (visio intellectualis), puramente o que a mente conhece e v interiormente, sem mediao alguma de percepo sensorial externa e sem imagens corpreas. Por exemplo, em relao com o mandamento Amars ao teu prximo com a ti mesmo, Agostinho comenta:

    Eis que, quando se l neste nico preceito: Amars o teu prximo com a ti mesmo, encontram-se trs classes de vises: uma, median-te os olhos, pelos quais se vem as letras; uma segunda, por meio do esprito do homem, pela qual se pensa no que prximo e no que ausente; a terceira, pelo olhar da mente, pela qual se con-templa o prprio amor (Genesi ad litteram 12. 7. 15).

    Hankey enfatiza que, conforme o autor de Confessiones, pela gra-a da encarnao, a mente destinada a ocupar-se com a externalidade sensvel, por que esquecida de si mesma, tem a revelao de sua es-trutura trinitria e pode chegar a uma suprema comunho com Deus.

    A razo julga as atividades inferiores da alma. A razo, um ter-mo bastante geral em Agostinho, a potncia