primeiras linhas do princípio do contraditório como garantia de influência e não surpresa no cpc...

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1 Texto a ser publicado na obra: Alexandre Freire, Bruno Dantas, Dierle Nunes, Fredie Didier Jr., José Medina, Luiz Fux, Luiz Volpe e Pedro Miranda (Coord.). Novas Tendências do Processo Civil - Estudos sobre o Projeto do Novo CPC.Vol. II, Salvador: Editora Jus Podivm, 2014 (NO PRELO). Primeiras linhas do princípio do Contraditório como garantia de influência e não surpresa no CPC Projetado e sua necessária conexão com as técnicas delineadas de padronização decisória Dierle Nunes 1 Rafaela Lacerda 2 1. Considerações iniciais Deveríamos abandonar a singularidade em prol da similaridade? Estamos em momento muito singular do ordenamento jurídico pátrio, no qual percebemos ao longo dos últimos 25 anos uma mudança muito consistente dos níveis de litigiosidade em aspectos qualitativos e quantitativos. Esta mudança, conjuntamente com a transição para um modelo jurídico principiológico (Dworkin), as altas taxas de congestionamento, os novos perfis de litigiosidade repetitiva, vem cada vez mais gerando um peculiar modelo de Direito Jurisprudencial no qual os precedentes são usados para geração de padrões decisórios (mediante a técnica de causa piloto - test claim Musterverfahren) e aplicação em casos idênticos. Os teóricos, como pontua Calvinho, passam a se dividir entre aqueles que propõem um novo paradigma teórico de melhoria qualitativa, embasado em sólidas bases constitucionais, e aqueles que defendem a mantença das velhas premissas, em face do aumento quantitativo. 3 1 Doutor em Direito Processual (PUCMinas/Università degli Studi di Roma “La Sapienza”). Mestre em Direito Processual (PUCMinas). Professor Permanente do PPGD da PUCMINAS. Professor Adjunto na PUCMINAS e na UFMG. Membro do IBDP) e do IAMG. Advogado. E-mail: [email protected] 2 Graduanda em direito pela Universidade Federal de Minas Gerais; Faculdade de Direito da UFMG. E-mail: E- mail: [email protected]. 3 CALVINHO, Gustavo. La procedimentalización posmoderna. in BALIÑO, Juan Pablo Pampillo; PÁEZ, Manuel Alexandro Munive. (coord.) “Obra Jurídica Enciclopécida”. Ed. Porrúa: México D.F., volumen Derecho Procesal Civil y Mercantil (coord.: Mauricio A. Cárdena Guzmán y Carlos Sodi Serret), p. 135-155

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Texto a ser publicado na obra coordenada por: Alexandre Freire, Bruno Dantas, Dierle Nunes, Fredie Didier Jr., José Medina, Luiz Fux, Luiz Volpe e Pedro Miranda (Coord.). Novas Tendências do Processo Civil - Estudos sobre o Projeto do Novo CPC.Vol. II, Salvador: Editora Jus Podivm, 2014 (NO PRELO).

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Page 1: Primeiras linhas do princípio do Contraditório como garantia de influência e não surpresa no CPC Projetado e sua necessária conexão com as técnicas delineadas de padronização

1

Texto a ser publicado na obra: Alexandre Freire, Bruno Dantas, Dierle Nunes, Fredie Didier Jr.,

José Medina, Luiz Fux, Luiz Volpe e Pedro Miranda (Coord.). Novas Tendências do Processo

Civil - Estudos sobre o Projeto do Novo CPC.Vol. II, Salvador: Editora Jus Podivm, 2014 (NO

PRELO).

Primeiras linhas do princípio do Contraditório como garantia de influência

e não surpresa no CPC Projetado e sua necessária conexão com as técnicas

delineadas de padronização decisória

Dierle Nunes1

Rafaela Lacerda2

1. Considerações iniciais

Deveríamos abandonar a singularidade em prol da

similaridade?

Estamos em momento muito singular do ordenamento jurídico pátrio, no qual

percebemos ao longo dos últimos 25 anos uma mudança muito consistente dos níveis de

litigiosidade em aspectos qualitativos e quantitativos.

Esta mudança, conjuntamente com a transição para um modelo jurídico

principiológico (Dworkin), as altas taxas de congestionamento, os novos perfis de

litigiosidade repetitiva, vem cada vez mais gerando um peculiar modelo de Direito

Jurisprudencial no qual os precedentes são usados para geração de padrões decisórios

(mediante a técnica de causa piloto - test claim – Musterverfahren) e aplicação em casos

idênticos.

Os teóricos, como pontua Calvinho, passam a se dividir entre aqueles que

propõem um novo paradigma teórico de melhoria qualitativa, embasado em sólidas bases

constitucionais, e aqueles que defendem a mantença das velhas premissas, em face do

aumento quantitativo.3

1 Doutor em Direito Processual (PUCMinas/Università degli Studi di Roma “La Sapienza”). Mestre em Direito

Processual (PUCMinas). Professor Permanente do PPGD da PUCMINAS. Professor Adjunto na PUCMINAS

e na UFMG. Membro do IBDP) e do IAMG. Advogado. E-mail: [email protected] 2 Graduanda em direito pela Universidade Federal de Minas Gerais; Faculdade de Direito da UFMG. E-mail: E-

mail: [email protected]. 3 CALVINHO, Gustavo. La procedimentalización posmoderna. in BALIÑO, Juan Pablo Pampillo; PÁEZ,

Manuel Alexandro Munive. (coord.) “Obra Jurídica Enciclopécida”. Ed. Porrúa: México D.F., volumen

Derecho Procesal Civil y Mercantil (coord.: Mauricio A. Cárdena Guzmán y Carlos Sodi Serret), p. 135-155

Page 2: Primeiras linhas do princípio do Contraditório como garantia de influência e não surpresa no CPC Projetado e sua necessária conexão com as técnicas delineadas de padronização

2

Esta transição ganha especial importância em momento no qual se encontra,

em etapa avançada de tramitação, no Congresso Nacional, um CPC projetado, norma que

poderá viabilizar uma “nova gramática interpretativa” do estado adulterado de criação e

aplicação do direito jurisprudencial no Brasil.

E nesse aspecto, a compreensão dos impactos do processo constitucionalizado

(com nosso dinâmico modelo constitucional de processo), posto nas normas fundamentais do

CPC projetado e em seu corpo (v.g. art. 499 – fundamentação racional), podem fornecer

pressupostos interpretativos essenciais no sistema dogmático que se descortina.

Obviamente que, se esta legislação projetada for interpretada como mais uma

reforma, desprovida de novas premissas e fundamentos interpretativos (comparticipativos),

esta seria mais do mesmo, ou poderia gerar até mesmo efeitos deletérios; fato impensável em

face das balizas constitucionais institutivas do projeto.

Dentro deste aspecto, há exatos dez anos, um dos autores do presente ensaio

defende a necessidade de adoção do contraditório como garantia de influência e não surpresa

na formação das decisões.4

Essa concepção já arraigada em outros países, em face da percepção anterior

da importância dos direitos fundamentais processuais no dimensionamento e aplicação do

direito processual, somente começou a ganhar maior destaque e efetividade no discurso

processual pátrio efetivamente de poucos anos para cá.

Como já se informou em outra oportunidade sobre essa visão mais consistente

do princípio do contraditório e sobre a nulidade das decisões de surpresa:

Nota-se que, uma vez que os poderes do julgador são aumentados, impõe-se a este o

dever de informar às partes das iniciativas que pretende exercer, de modo a permitir

a elas um espaço de discussão em contraditório (NORMAND, 1988, p. 724),

devendo haver a expansão e a institucionalização do dever de esclarecimento

judicial a cada etapa do procedimento, inviabilizando julgamentos surpresa

(BENDER; STRECKER, 1978, p. 554). A colocação de qualquer entendimento

jurídico (v. g. aplicação de súmula da jurisprudência dominante dos Tribunas

Superiores) como fundamento da sentença, mesmo que aplicada ex officio pelo juiz,

sem anterior debate com as partes, poderá gerar o aludido fenômeno da surpresa.

Desse modo, o contraditório constitui um verdadeira garantia de não surpresa que

impõe ao juiz o dever de provocar o debate acerca de todas as questões, inclusive as

de conhecimento oficioso, impedindo que em “solitária onipotência” aplique normas

ou embase a decisão sobre fatos completamente estranhos à dialética defensiva de

4 NUNES, Dierle. O recurso como possibilidade jurídica discursiva do contraditório e ampla defesa. Puc-

Minas, 2003, dissertação de mestrado; NUNES, Dierle. O princípio do contraditório, Rev. Síntese de Dir. Civ.

e Proc. Civil. v. 5. n. 29. p. 73-85, Mai-Jun/2004; NUNES, Dierle José Coelho, THEODORO JR, Humberto.

Princípio do contraditório: tendências de mudança de sua aplicação. Revista da Faculdade de Direito do Sul de

Minas. v.28, p.177 - 206, 2009. NUNES, Dierle José Coelho. Processo jurisdicional democrático: uma análise

critica das reformas processuais. Curitiba: Juruá, 2008.

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uma ou de ambas as partes (FERRI, 1988, p. 781-782). Ocorre que a decisão de

surpresa deve ser declarada nula, por desatender ao princípio do contraditório. Toda

vez que o magistrado não exercitasse ativamente o dever de advertir as partes quanto

ao específico objeto relevante para o contraditório, o provimento seria invalidado,

sendo que a relevância ocorre se o ponto de fato ou de direito constituiu necessária

premissa ou fundamento para a decisão (ratio decidendi) (FERRI, 1988, p. 781-

782). Assim, o contraditório não incide sobre a existência de poderes de decisão do

juiz, mas, sim, sobre a modalidade de seu exercício, de modo a fazer do juiz um

garante da sua observância e impondo a nulidade de provimentos toda vez que não

exista a efetiva possibilidade de seu exercício (FERRI, 1988, p. 793). [....] Para a

demonstração cabal do atual perfil comparticipativo que o princípio possui em sua

releitura democrática, faz-se necessária a análise pormenorizada do já aludido

fenômeno intitulado “decisão de surpresa”, ou “decisione della terza via”, ou

“Überraschungsentscheidungen”, que atribui a nulidade de decisões fundadas sobre a

resolução de questões de fato e de direito não submetidas à discussão com as partes

e não indicadas preventivamente pelo juiz (CIVININI, 1999, p. 4). O âmbito das

decisões de surpresa possui interesse especialmente para as questões jurídicas, das

quais o juiz poderá conhecer de oficio (LEBRE DE FREITAS, 1996, p. 102). Na

verificação do Direito estrangeiro, percebe-se que não é recente a preocupação com

essas decisões. Pollak, em 1931, ao comentar a ZPO austríaca, afirmava que o

Tribunal não deve surpreender as partes na sentença com pontos de vista jurídicos

não analisados na fase preliminar: se o Tribunal viola esse dever, o procedimento é

viciado (CAPPELLETTI, v. II, p. 509). Denti afirmava que o fenômeno não era

estranho a vários ordenamentos de diversas tradições e pressupostos ideológicos,

mesmo naqueles em que havia ocorrido um notável aumento dos poderes do juiz na

direção do processo e na obtenção dos materiais para a decisão (DENTI, 1968, p.

229). Defendia a posição de que a individuação da norma pelo juiz diversa da

suscitada pelas partes dava lugar à necessidade do contraditório, caso em que da

aplicação da referida norma surgisse “uma questão potencialmente idônea a definir a

controvérsia” (DENTI, 1968, p. 225).5 Porém, restringia a aplicação de sua tese a

questões jurídicas prejudiciais (DENTI, 1968, p. 224). Bender e Strecker, ao

comentarem, na Alemanha, o já aludido Modelo de Sttutgart (cf. 4.3.1), afirmavam

que a decisão de surpresa é um câncer na administração da justiça, visto que

subverte a confiança daqueles que procuram justiça no Direito. É a razão principal

por que na República Federal um número desproporcional de julgamentos da

primeira instância eram impugnados pela via recursal (BENDER; STRECKER,

1978, p. 554). O contraditório deve ser desenvolvido em todo o iter processual, em

relação tanto às atividades das partes quanto às atividades judiciais, de modo que “o

exercício de poderes oficiosos constitua expressão de um princípio de colaboração e

não de autoridade no processo” (tradução livre)6 (CIVININI, 1999, p. 6).

Mostrava-se a necessidade de se aprofundar no estudo e implementação dos

direitos fundamentais processuais em nosso país, notadamente, do contraditório. Seja pela

notória tendência de reforço e diversificação dos papéis da Jurisdição após a Constituição de

1988, seja pela necessidade de se adotar uma nova dimensão no processo constitucional.

Essas novas perspectivas no direito pátrio ofertavam um contraponto ao

discurso socializador (que remonta o final do Sec. XIX) que ainda mantinha a crença que

somente com o reforço do protagonismo e ativismo judicial (este, em matriz institucional, pós

5 No original: “[...] una questione potenzialmente idonea a definire la controversia”.

6 No original: “[...] l’esercizio dei poteri ufficiosi costituisca espressione di un principio di collaborazione e non

di autorità nel processo”.

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segunda-guerra) conseguiríamos contornar os novos grandes desafios descortinados pela

ampliação exponencial da garantia de acesso à justiça, com o decorrente aumento brutal da

quantidade de litígios.

Claro que ao se cogitar da aplicação do contraditório há de se perceber a

necessidade de sua adequação e efetivação partindo das tipologias processuais e de

litigiosidade, de modo a analisar o princípio a partir de sua adaptação coerente e legítima.

Assim, deve se pensar na interpretação do contraditório como pressuposto de

base para o rompimento da abordagem reducionista das novas litigiosidades, pois, como já se

teve oportunidade de tematizar em outras oportunidades,7 o Brasil, e os tradicionais sistemas

de civil law, vêm vivenciando um movimento de convergência com o common law que não

pode mais ser considerado aparente,8 devido a colocação de cada vez maior destaque ao uso

da jurisprudência como fundamento de prolação de decisões pelo Judiciário pátrio e da

própria prática advocatícia que se vale dos julgados como importante ferramenta

argumentativa de persuasão (ou convencimento).

Há de se perceber que após a efetiva falência do modelo processual reformista

imposto, entre nós, após a década de 1990, que apostou, em apertada síntese, prioritariamente,

em reformas legislativas (e não em uma abordagem panorâmica e multidimensional,

nominada de “processualismo constitucional democrático”)9 (e no ideal socializador de busca

de reforço tão só do protagonismo judicial),10

que alguns vêm a alguns anos, em face da

explosão exponencial de demandas e dos altos índices de ‘congestionamento judicial’,

defendendo um peculiar uso dos precedentes (vistos como padrões decisórios) para

dimensionar a litigiosidade repetitiva.

O pressuposto equivocado é o de que mediante o julgamento de um único caso,

sem um contraditório dinâmico como garantia de influência e não surpresa para sua

7 THEODORO JÚNIOR, Humberto; NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre. Breves considerações da politização do

judiciário e do panorama de aplicação no direito brasileiro – Análise da convergência entre o civil law e o

common law e dos problemas da padronização decisória. Revista de Processo, vol. 189, p. 3, São Paulo: Ed.

RT, nov. 2010. NUNES, Dierle. Processualismo constitucional democrático e o dimensionamento de técnicas

para a litigiosidade repetitiva. A litigância de interesse público e as tendências “não compreendidas” de

padronização decisória. Revista de Processo, vol. 199, p. 38, São Paulo: Ed. RT, set. 2011. 8 HONDIUS, Ewoud. Precedent an the law: Reports to the XVIIth Congress International Academy of

Comparative Law Utrecht, 16-22 July 2006. Bruxelles, Bruylant, 2007. 9 NUNES, Dierle. Processualismo constitucional democrático e o dimensionamento de técnicas para a

litigiosidade repetitiva. A litigância de interesse público e as tendências “não compreendidas” de padronização

decisória. Cit. p. 38 10

Para uma análise mais consistente dos equívocos do movimento reformista brasileiro conferir: NUNES, Dierle

José Coelho. Processo jurisdicional democrático: uma análise critica das reformas processuais. Curitiba:

Juruá, 2008.

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formação,11

mediante a técnica de causa piloto,12

o Tribunal Superior (e existe a mesma

tendência de ampliação dessa padronização nos juízos de segundo grau no CPC Projetado)

formaria um julgado (interpretado por nós como precedente) que deveria ser aplicado a

todos os casos “idênticos”.

Pode-se notar a intenção de estender o âmbito de aplicabilidade das decisões

judiciais, fazendo com que o Judiciário no menor número de vezes possível tenha que se

aprofundar na análise de questões similares, tornando-se mais eficiente quantitativamente

através do estabelecimento de padrões a serem seguidos nos casos idênticos subsequentes, sob

o argumento de preservação da isonomia, da celeridade, da estabilidade e da previsibilidade

do sistema.

Neste particular, o movimento reformista brasileiro convergiria para alguns, de

modo peculiar, com o sistema do common law, ao adotar julgados que devem ser seguidos nas

decisões futuras – o que configuraria uma peculiar forma de precedente judicial, com

diferentes graus de força vinculante.

Falta, assim, aos nossos Tribunais uma formulação mais robusta sobre o papel

dos “precedentes”.13

Se a proposta é que eles sirvam para indicar aos órgãos judiciários qual o

entendimento “correto”, deve-se atentar que o uso de um precedente apenas pode se dar

fazendo-se comparação entre os casos – entre as hipóteses fáticas –, de forma que se possa

aplicar o caso anterior ao novo.

Parece prevalecer um modelo de aplicação de precedentes como regras de

Shauer, tendendo ao uso de julgados (e súmulas), pelos juízes de primeiro e segundo grau,

com redução de sua responsabilidade, mas com aceitação de uma busca de eficiência que

permite decisões sub-ótimas.

Quando explica o critério de eficiência na aplicação de precedentes de Shauer,

Maues aduz que:

[…] quando um agente decide de acordo com regras, ele se encontra

parcialmente livre da responsabilidade de analisar cada característica

11

Cf. THEODORO JR. Humberto, NUNES, Dierle. Princípio do contraditório: tendências de mudança de sua

aplicação. Revista da Faculdade de Direito do Sul de Minas. , v. 28, p. 177 - 206, 2009. 12

“Trata-se de uma técnica conhecida em diversos países, que a denominam de ‘caso-piloto, ‘caso-teste’ ou

‘processo-mestre’. Consiste o mecanismo em permitir que, entre várias demandas idênticas, seja escolhida uma

só, a ser decidida pelo tribunal, aplicando-se a sentença aos demais processos, que haviam ficado suspensos.

Esse método é utilizado pela Alemanha, Áustria, Dinamarca, Noruega e Espanha (nesta, só para o contencioso

administrativo)’.” (GRINOVER, Ada Pellegrini. “O tratamento dos processos repetitivos”. JAYME, Fernando

Gonzaga; FARIA, Juliana Cordeiro de; LAUAR, Maira Terra (coord). Processo civil: novas tendências:

estudos em homenagem ao professor Humberto Theodoro Junior. Belo Horizonte: Del Rey, 2008, p. 5 13

NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre. Formação e aplicação do direito jurisprudencial: alguns dilemas. Revista

do Tribunal Superior do Trabalho. V. 79, n.2, abr.-jun./ 2013. p. 118-144.

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relevante do caso, concentrando sua atenção somente na presença ou

ausência de alguns fatores. O resultado seria uma maior eficiência do

processo de tomada de decisão, pois os agentes estariam livres para cumprir

outras responsabilidades e não haveria duplicação de esforços dentro do

mesmo ambiente decisório em eliminar suas vantagens. No que se refere ao

argumento da confiança, seu valor depende da medida em que um ambiente

decisório tolera resultados sub-ótimos, a fim de que os afetados pelas

decisões sejam capazes de planejar certos aspectos de sua vida. Essa

tolerância tende a diminuir quanto mais relevantes forem os fatos

suprimidos, ou menos relevantes, os fatos destacados no predicado da regra,

e também quanto mais a decisão estiver abaixo da melhor decisão que seria

tomada se todos os fatores fossem levados em conta. Assim, decisões erradas

podem aca- bar tornando mais difícil confiar em quem as toma. Quanto à

busca de eficiência, Schauer considera que seu valor depende das outras

destinações que podem ser dadas aos recursos decisórios economizados, e se

for um uso valioso pode tolerar um certo número de resultados sub-ótimos.

Portanto, quando os recursos decisórios não são escassos ou há poucas

alternativas atraentes para seu uso, é menos provável que os benefícios da

eficiência tenham mais peso que os custos necessariamente envolvidos em

qualquer processo de tomada de decisão que não esteja apto para buscar o

resultado ótimo em cada situação.14

Porém, ao invés de se promover a imposição de uma concepção de acesso à

justiça democrático,15

continuamos a dedicar maior vigor na busca de alterações legislativas e,

agora, num CPC Projetado; o qual recentemente teve aprovado seu relatório na Comissão

Especial da Câmara dos Deputados em 16 de julho de 2013 (Relatório do Dep. Paulo

Barradas, Presidência do Dep. Fábio Trad) e início de discussão no plenário no dia 27 de

agosto, cinco sessões de discussão e previsão de votação em outubro de 2013.

Felizmente, o mesmo (CPC projetado) desde a redação do anteprojeto

consagrou a concepção dinâmica do Contraditório no seu art. 10,16

com a confessada

adoção de um modelo comparticipativo ou cooperativo de processo.

No entanto, muitos ainda não perceberam o impacto que tal concepção gerará

em termos de avanço no trato da litigiosidade tradicional (individual e patrimonial) e nas

novas litigiosidades (com destaque para a repetitiva).

14

MAUÉS, Antônio Moreira. Jogando com os precedentes: regras, analogias, princípios. Revista Direito GV,

São Paulo 8(2) | p. 611 | JUL-DEZ 2012.

15 NUNES, Dierle; TEIXEIRA, Ludmila. Acesso à justiça democrático. Brasília: Gazeta Jurídica. 2013.

16 “Art. 10. Em qualquer grau de jurisdição, o órgão jurisdicional não pode decidir com base em fundamento a

respeito do qual não se tenha oportunizado manifestação das partes, ainda que se trate de matéria apreciável de

ofício.”

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Isto pois o dispositivo, consagrado na parte geral do Código Projetado,

conjuntamente com o dispositivo que impõe uma fundamentação racional legítima (art.

49917

), servirão de pressupostos para a interpretação de todas as técnicas processuais; seja no

trato da técnica cognitiva de primeiro grau, seja na formação dos precedentes (padrões

decisórios), que vêm sendo usados para o trato da litigiosidade repetitiva.

Em relação a litigiosidade individual, em outros textos,18

mostrou-se que tal

concepção de contraditório é extremamente bem vinda, desde que adotada uma metódica fase

de preparação do procedimento que filtre todas as questões a serem debatidas e provadas na

fase de debates. Contraditório dinâmico e fase preparatória metódica da cognição devem ser

analisados em nexo instrumental; um depende do outro para evitar que o juiz tenha que

promover aberturas de vistas constantes, em face da carência de filtragem concentrada das

questões. Mas para uma percepção melhor remeto os leitores aos trabalhos antigos.

Aqui interessa o trato, mesmo que perfunctório, do impacto do contraditório

dinâmico na formação dos precedentes.

Já se vem criticando o modo superficial e romântico como a técnica de

precedentes vem sendo utilizada pelos tribunais pátrios; sejam os superiores na formação,

sejam os de segunda grau, os aplicando, de inexplicável modo mecânico.

Ocorre que com a adoção normativa do contraditório dinâmico será

impensável pensar que um julgado de um tribunal (superior ou de segundo grau) pelo simples

17

“Art. 499. São elementos essenciais da sentença: I – o relatório, que conterá os nomes das partes, a

identificação do caso, com a suma do pedido e da contestação, bem como o registro das principais ocorrências

havidas no andamento do processo; II – os fundamentos, em que o juiz analisará as questões de fato e de

direito; III – o dispositivo, em que o juiz resolverá as questões principais que as partes lhe submeterem. § 1º

Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que: I –

se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a

questão decidida; II – empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua

incidência no caso; III – invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão; IV – não

enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo

julgador; V – se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos

determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos; VI – deixar de seguir

enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de

distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento. § 2º No caso de colisão entre normas, o

órgão jurisdicional deve justificar o objeto e os critérios gerais da ponderação efetuada. § 3º A decisão judicial

deve ser interpretada a partir da conjugação de todos os seus elementos e em conformidade com o princípio da

boa-fé. 18

NUNES, Dierle. O princípio do contraditório, Rev. Síntese de Dir. Civ. e Proc. Civil. v. 5. n. 29. p. 73-85,

Mai-Jun/2004; NUNES, Dierle José Coelho, THEODORO JR, Humberto. Princípio do contraditório:

tendências de mudança de sua aplicação. Revista da Faculdade de Direito do Sul de Minas. v.28, p.177 - 206,

2009. NUNES, Dierle José Coelho. Processo jurisdicional democrático: uma análise critica das reformas

processuais. Curitiba: Juruá, 2008. NUNES, Dierle; NASCIMENTO, Renata Gomes. A fase preliminar da

cognição e sua insuficiência no projeto de lei do Senado n. 166/2010 de um novo Código de processo civil

brasileiro. in. BARROS, Flaviane Magalhães; MORAIS, José Luiz Bolzan de. Reforma do Processo civil:

perspectivas constitucionais. Belo Horizonte: Editora fórum, 2010. p. 201-229

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fato de ter passado pela técnica de causa piloto, vá ter o condão de gerar um padrão decisório

hábil a obter alto teor persuasivo (ou mesmo efeitos vinculantes) se não tiver promovido uma

análise extenuante de todos os argumentos relevantes na discussão do caso.

No entanto, para a demonstração da necessidade de releitura dos sistema de

formação dos precedentes, e da necessidade de se discutir a força do contraditório de modo

mais claro, é absolutamente imperativa a análise prévia das premissas do movimento de

convergência.

2. Algumas premissas da percepção da convergência de sistemas...

Os sistemas jurídicos contemporâneos, devido às suas complexidades, não se

apresentam mais como modelos “puros” de aplicação, podendo-se perceber uma tendência

mundial de convergência entre os sistemas de Common Law e Civil Law. Nesse sentido,

países de tradição do Civil Law, como o Brasil, vêm adotando de modo mais denso em sua

prática jurídica, e mesmo no desenho institucional de seus sistemas judiciários, um modelo de

aplicação de precedentes como fonte do Direito.

É fato indubitável que a aplicação de precedentes é uma ferramenta essencial

para a efetivação do princípio da segurança jurídica, bem como do princípio constitucional a

fundamentação das decisões judiciais19

(art. 93, IX, CRFB/88), uniformizando a aplicação do

direito e contribuindo para a celeridade e eficiência do sistema judicial. Isso porque o

precedente facilita o julgamento de demandas repetitivas e, geralmente, implementa o

princípio da igualdade formal entre os jurisdicionados20

, que, ao promoverem demandas,

passariam a contar com respostas uniformes por parte do Judiciário.

19

“[...] há uma regra constitucional segundo a qual ‘todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão

públicos, e fundamentadas todas as decisões’. Tal norma expressamente declara nulas todas as decisões

judiciais não propriamente “fundadas” em razões explicitamente formuladas, o que estabelece um dever para

os Tribunais Superiores em revertê-las.” [tradução livre do inglês: “[...] there is a constitutional rule according

to which ‘all judgements shall be public and all decisions properly justified’. Such norm expressely renders

void all judicial decisions not properly ‘grounded’ on explicitly formulated reasons, establishing a duty for the

Higher Courts to reverse them.”] Cf. BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. Precedent in Brazil.

In:HONDIUS, Ewoud (org.). Precedent and the Law: Reports to the XVIIth Congress International Academy

of Comparative Law Utrecht, 16-22 July 2006. Bruxelas: Bruylant, 2007. p.290. 20

“[...] o princípio da justiça formal (exigência de igualdade de tratamento) exige que a decisão seja tomada

olhando-se para o futuro (forward-looking) e para o passado (backward-looking) [MacCormick 1978-a: 75;

MacCormick 2005: 148]: uma decisão jurídica justificável onde surjam disputas sobre questões de direito deve

estar fundamentada em regra jurídica que não seja nem ad hoc nem ad hominem [MacCormick 2005: 148].”

(BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. Teoria do Precedente Judicial: A Justificação e a Aplicação de Regras

Jurisprudenciais. São Paulo: Noeses, 2012. p.45)

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9

No entanto, é notável que a experiência de uso de precedentes no sistema

judicial brasileiro tem se revelado acentuadamente diferente daquela dos países de tradição do

Common Law. Tanto na doutrina, quanto na prática jurídica, percebe-se uma enorme confusão

conceitual no processo argumentativo ao se defender a aplicação de “súmulas”, “súmulas

vinculantes”, “jurisprudência”, “julgados” e “precedentes”. Nesse processo não é raro que os

técnicos defendam como “vinculante” jurisprudência preventiva, de modo que o precedente é

criado e aplicado ao mesmo tempo.

E não apenas as partes sofrem dessa confusão, mas os próprios juízes que

aplicam precedentes em suas decisões: falta a habilidade de manejo do distinguishing e do

overruling e no respeito e continuidade às decisões proferidas pelas Cortes. Nesse contexto,

não é raro que um mesmo órgão jurisdicional profira decisões contraditórias sem tomar o

cuidado de harmonizá-las com seu passado institucional.

Surgem conflitos sincrônicos (syncronous), que ocorrem quando a mesma

matéria é decidida de modo diferente e concomitantemente ou em pequenos espaços

temporais, e conflitos diacrônicos (diachronic), quando o mesmo tema é decidido de modo

diverso ao longo do tempo.21

Ambos dificultam a verificação da efetiva posição do Tribunal

sobre alguma temática, gerando-se a ausência de uma estabilidade decisória horizontal

(tribunal respeitar suas decisões) e dificuldade de obtenção de uma estabilidade vertical

(juízes e tribunais funcionalmente inferiores respeitarem).

Chega-se ao absurdo do negar-se por completo o passado de análise do tema no

Tribunal, atribuindo uma força maior às decisões mais recentes, quando somente a busca do

leading case e a reconstrução da cadeia de julgados, mediante um comparativo analítico,

permite a aplicação correta.

Observa-se que esse mal acomete os Tribunais Superiores, que carregam a

missão constitucional de uniformização da interpretação da Constituição e das leis federais.

Quanto à jurisdição de primeiro e segundo grau, o problema se torna ainda

maior, pois se os julgados das Cortes Superiores encontram-se conflitantes, fica aberto o

espaço para sua não aplicação por aqueles, ou para o surgimento de “entendimentos”

divergentes por essas instâncias inferiores, subutilizando a estrutura constitucional do

Judiciário brasileiro.

21

TARUFFO, Michele. Precedent in Italy. In: HONDIUS, Ewoud (org.). Precedent and the Law: Reports to the

XVIIth Congress International Academy of Comparative Law Utrecht, 16-22 July 2006. Bruxelas: Bruylant,

2007. p. 184.

Page 10: Primeiras linhas do princípio do Contraditório como garantia de influência e não surpresa no CPC Projetado e sua necessária conexão com as técnicas delineadas de padronização

10

Portanto, nota-se a necessidade de adoção de uma sólida teoria de precedentes,

para que o sistema judicial brasileiro possa gozar dos benefícios de previsibilidade, excelência

e qualidade na produção de decisões judiciais que países legatários da doutrina do stare

decisis gozam, minando problemas de insegurança jurídica e morosidade para os litigantes,

num contexto de amplo acesso à justiça democrático.

Ademais, é absolutamente necessária a mudança de nosso paradigma de

aplicação, que se preocupa pouco com as ratione decidendi (holding) e se contenta com a

aplicação quase mecânica de súmulas e ementas, que parcamente representam o julgado

utilizado como base.

3. A experiência do direito estrangeiro .... e algumas conexões com o sistema

pátrio...

Antes que se analise o contexto brasileiro, e de modo breve, as novas

interações com o contraditório, urge promover uma análise do direito estrangeiro, colocando

em evidência como a experiência estrangeira.

3.1. Precedente e a experiência angloamericana

Precedente, segundo Bustamante seria, de maneira ampla, qualquer decisão

pretérita que seja evocada por um juiz para justificar uma decisão posterior. Contudo, ele

destaca que, enquanto nos países de tradição de Civil Law, as razões dadas no precedente

são o elemento em que se foca a argumentação quando do uso do julgado, no caso do

Common Law a ênfase é dada na autoridade da Corte que a proferiu. Assim, o uso do

precedente na tradição inglesa dependeria diretamente da repetição dos fatos concretos que

se ligaram à decisão evocada, bem como da autoridade do juiz que a proferiu: essa autoridade

seria determinante para se decidir se o julgado contém uma ratio decidendi a ser

obrigatoriamente reproduzida em decisões futuras ou se goza apenas de força persuasiva

(argumentativa), sendo um mero dictum22

.

22

BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. Precedent in Brazil. In:HONDIUS, Ewoud (org.). Precedent and the

Law: Reports to the XVIIth Congress International Academy of Comparative Law Utrecht, 16-22 July 2006.

Bruxelas: Bruylant, 2007. pp.300-301.

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11

Pontue-se que predomina um pressuposto positivista de que a decisão obtem

esta força por uma autorização de que o juiz possa produzir o direito. Aspecto, inclusive,

criticado (como em Dworkin)

Por ratio decidendi pode-se ter diversas concepções: i) compreendida como

norma geral que se vê afirmada como suficiente para decidir o caso num esquema de

subsunção, a concepção de ratio decidendi poderia se aproximar da construção da massima

italiana, ou da súmula brasileira; ii) compreendida como uma versão contextualizada da

norma geral que se liga aos fatos e aos argumentos que a enunciam para resolver o caso; iii)

compreendida como um argumento essencial da argumentação judicial, podendo ser um fato

ou uma norma23

. Nessas duas últimas concepções, entrevê-se diferentes teorias para a

compreensão do precedente na tradição britânica.

No sistema do Common Law inglês, o uso do precedente judicial com

autoridade para embasar futuras decisões judiciais deriva de uma prática jurídica (tradição

judicial) ou da autoridade pura ou essencial do agente público, o juiz (explicação

positivista)24

: “[...] a força vinculante do precedente está intrinsecamente conectada às

matérias jurídicas tratadas pela Corte que o decidiu e à sua relação com os fatos do caso.”25

.

É tradição judicial a aceitação de que o Parlamento, uma vez que legisle, pode

derrogar ou mudar o direito comum26

. Esse entendimento se desenvolveu sobretudo a partir

da segunda metade do séc. XIX, quando regras surgiram que reforçaram a autoridade

atribuída aos precedentes, conjuntamente com uma profunda reforma no sistema judiciário e

com a sistematização dos registros da atividade decisória27

.

Além disso, traço marcante do sistema processual inglês é que as partes não

buscam apenas provar os fatos alegados: é-lhes oposta a obrigação de evocar e provar o

direito, com as autoridades (legais, jurisprudenciais, costumeiras) que embasam a pretensão,

23

BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. Precedent in Brazil. In:HONDIUS, Ewoud (org.). Precedent and the

Law: Reports to the XVIIth Congress International Academy of Comparative Law Utrecht, 16-22 July 2006.

Bruxelas: Bruylant, 2007. p.302. 24

POSTEMA, Gerald J.. Some Roots o four notion of precedent. In: GOLDSTEIN, L. (Ed.). Precedent in law.

Oxford: Clarendon, 1987. Pp.9-33. Apud: BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. Precedent in Brazil. In:

HONDIUS, Ewoud (org.). Precedent and the Law: Reports to the XVIIth Congress International Academy of

Comparative Law Utrecht, 16-22 July 2006. Bruxelas: Bruylant, 2007. p.293. 25

WHITTAKER, Simon. Precedent in English Law: a view from the citadel. In: HONDIUS, Ewoud (org.).

Precedent and the Law: Reports to the XVIIth Congress International Academy of Comparative Law Utrecht,

16-22 July 2006. Bruxelas: Bruylant, 2007. p.36. 26

WHITTAKER, Simon. Precedent in English Law: a view from the citadel. In: HONDIUS, Ewoud (org.).

Precedent and the Law: Reports to the XVIIth Congress International Academy of Comparative Law Utrecht,

16-22 July 2006. Bruxelas: Bruylant, 2007. p.31. 27

WHITTAKER, Simon. Precedent in English Law: a view from the citadel. In: HONDIUS, Ewoud (org.).

Precedent and the Law: Reports to the XVIIth Congress International Academy of Comparative Law Utrecht,

16-22 July 2006. Bruxelas: Bruylant, 2007. p.37.

Page 12: Primeiras linhas do princípio do Contraditório como garantia de influência e não surpresa no CPC Projetado e sua necessária conexão com as técnicas delineadas de padronização

12

demonstrando que, seguida a linha argumentativa da parte, o conflito fático pode ser resolvido

a partir do direito demonstrado. O Juiz, a sua vez, não apenas determinará os fatos, mas

afirmará qual a resolução jurídica trazida pelas partes guarda pertinência para a resolução da

lide28

.

Nesse sentido, Whittaker afirma que a máxima do Civil Law, curia nouit legem

[ou da mihi facti dabo tibi ius], não se verifica verdadeira no processo judicial inglês29

, pois

há reflexos relevantes para a decisão per incuriam, ou seja, aquela em que o precedente

carrega uma decisão proferida com o desconhecimento judicial do estado evolutivo do direito

àquele tempo. Tal precedente carece de força vinculante, pois a Corte decidiu sem “saber” o

direito30

. A autoridade do precedente também pode ser restringida caso o juiz inove em

sua decisão trazendo argumentos que não foram defendidos pelas partes, não

submetidos, portanto, ao contraditório. Esse traço revela uma ativa participação das

partes inclusive na produção do precedente, sendo que a efetiva discussão das teses

jurídicas é elemento determinante para revestir o julgado de autoridade vinculante.

O que demandaria uma reflexão, entre nós, do papel das técnicas de

participação das partes e da utilização legítima dos amici curiae na formação dos

precedentes.

Além dessas considerações, há pelo menos duas classes de procedimentos

aceitos pela doutrina para determinar, dentro de um caso, quais de suas partes são vinculantes

e quais não são necessárias ou essenciais, procedimentos que conformam a chamada

“Doutrina do Precedente”. Primeiramente, deve-se separar qual parte do julgado é capaz de

vincular decisões futuras (ratio decidendi31

) e qual parte não é central, e portanto não

28

BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. Teoria do Precedente Judicial: A Justificação e a Aplicação de Regras

Jurisprudenciais. São Paulo: Noeses, 2012. p.45. 29

WHITTAKER, Simon. Precedent in English Law: a view from the citadel. In: HONDIUS, Ewoud (org.).

Precedent and the Law: Reports to the XVIIth Congress International Academy of Comparative Law Utrecht,

16-22 July 2006. Bruxelas: Bruylant, 2007. pp.37-38. 30

WHITTAKER, Simon. Precedent in English Law: a view from the citadel. In: HONDIUS, Ewoud (org.).

Precedent and the Law: Reports to the XVIIth Congress International Academy of Comparative Law Utrecht,

16-22 July 2006. Bruxelas: Bruylant, 2007. p.38. 31

“A ratio decidendi de um caso, ou a base de uma decisão, pode ser definida como a proposição jurídica, ou as

proposições jurídicas, que são necessárias para a resolução do caso a partir dos fatos. Aqui, eu uso a expressão

neutra “proposição jurídica” para reconhecer que as vezes a ratio pode ser expressa como uma regra, como a

definição de um conceito jurídico (ou aspecto de um conceito jurídico), ou mesmo como uma asserção jurídica

mais ampla, que pode ser chamada de princípio.”. Tradução livre de: “A case’s ratio decidendi or grounds of

its decision may be defined as that proposition of law or those propositions of law which are necessary for the

disposal of the case on the facts. Here, I use the fairly neutral phrase ‘proposition of law’ so as to recognise that

sometime the ratio may be expressed as a ‘rule’, sometimes as a definition of a legal concept (or aspect of a

legal concept), and sometimes even a broader legal statement, worthy of being called a principle.”

(WHITTAKER, Simon. Precedent in English Law: a view from the citadel. In:HONDIUS, Ewoud (org.).

Page 13: Primeiras linhas do princípio do Contraditório como garantia de influência e não surpresa no CPC Projetado e sua necessária conexão com as técnicas delineadas de padronização

13

vinculante, apesar de gozar de força persuasiva (obter dictum)32

. Em segundo lugar, a

vinculatividade depende da autoridade da Corte que profere o precedente em questão, sendo

mandatória a observância do precedente vertical (Cortes superiores vinculam as inferiores) e

existindo inclusive o precedente horizontal, até em última instância (a Corte dos Lordes se

vincula aos próprios precedentes)33

.

Finalmente, há uma notável preocupação das Cortes com os fatos concretos do

caso, buscando-se relacionar a solução encontrada com as especificidades do litígio, de modo

a se produzir um repertório bem especificado para o corpus do stare decisis: “[...] sua força

vinculante depende de sua ligação com os fatos da decisão na qual eles foram declarados e em

sua ligação com os fatos da decisão para a qual se argumenta que o precedente seja

aplicável.”34

. De outro modo, o engessamento do sistema e a impossibilidade da evolução dos

debates judiciais se faria inevitável.

O grande dilema dos juristas ingleses, segundo Whittaker é justamente o

equilíbrio entre um uso judicial do precedente que potencialmente pode engessar toda

atividade judicial futura, com a possibilidade de novas decisões sobre assuntos já

anteriormente tratados e deliberados: “[...] os juízes procuram resolver a tensão entre as

virtudes da coerência e justiça proporcionadas pelo stare decisis e a necessidade de se adaptar

o direito para garantir decisões acertadas para os fatos que constantemente mudam perante

si.”35

.

A experiência norte-americana oferece uma realidade parecida com a

inglesa, apesar de não ser comum uma teorização profunda acerca do precedente. De maneira

direta, ele é compreendido como a aplicação da Constituição ou da lei ao caso presente tal

qual foi feito anteriormente quanto a casos semelhantes. Essa reprodução e continuidade

Precedent and the Law: Reports to the XVIIth Congress International Academy of Comparative Law Utrecht,

16-22 July 2006. Bruxelas: Bruylant, 2007. p.41.) 32

WHITTAKER, Simon. Precedent in English Law: a view from the citadel. In:HONDIUS, Ewoud (org.).

Precedent and the Law: Reports to the XVIIth Congress International Academy of Comparative Law Utrecht,

16-22 July 2006. Bruxelas: Bruylant, 2007. p.40. 33

WHITTAKER, Simon. Precedent in English Law: a view from the citadel. In:HONDIUS, Ewoud (org.).

Precedent and the Law: Reports to the XVIIth Congress International Academy of Comparative Law Utrecht,

16-22 July 2006. Bruxelas: Bruylant, 2007. pp.42-43. 34

Tradução livre de: “[...] their binding forcedepends on their relationship to the facts of the decision in which

they were declared ando n their relationship to the facts of the decision in which they are subsequently claimed

to apply.” (WHITTAKER, Simon. Precedent in English Law: a view from the citadel. In:HONDIUS, Ewoud

(org.). Precedent and the Law: Reports to the XVIIth Congress International Academy of Comparative Law

Utrecht, 16-22 July 2006. Bruxelas: Bruylant, 2007. p.42.) 35

Tradução livre de: “[...] the judges seek to resolve the tension between the virtues of consistency and fairness

which lie behind stare decisis and the need to adapt the law to do justice to the evolving facts before them.”

(WHITTAKER, Simon. Precedent in English Law: a view from the citadel. In: HONDIUS, Ewoud (org.).

Precedent and the Law: Reports to the XVIIth Congress International Academy of Comparative Law Utrecht,

16-22 July 2006. Bruxelas: Bruylant, 2007. p.73.)

Page 14: Primeiras linhas do princípio do Contraditório como garantia de influência e não surpresa no CPC Projetado e sua necessária conexão com as técnicas delineadas de padronização

14

guarda importância prática na familiarização do cidadão com a legislação, observando-se em

casos concretos as implicações de enunciados jurídicos abstratos36

.

O precedente também pode ser compreendido como uma necessidade lógica,

pela qual o juiz torna o seu trabalho ao mesmo tempo coerente e contínuo, o que dá

previsibilidade às decisões da Corte, fazendo o exercício do Poder político aceitável: um só

direito, tanto no texto legal quanto na prática judicial37

. Nesse sentido, não poderia haver

finalidade ou estabilidade no sistema judiciário, caso a manutenção de entendimentos

passados fosse deixada de lado38

.

Tal qual a tradição inglesa, o precedente existe tanto em sua modalidade

vertical (com Cortes superiores no topo da organização judiciária, proferindo decisões que

vinculam as Cortes inferiores) quanto horizontal (pelo qual as Cortes que proferem as

decisões sentem-se obrigadas a manter a coerência de sua orientação em casos futuros,

necessariamente considerando tais decisões em seus processos argumentativos). Como reação

aos perigos do engessamento da doutrina do stare decisis, é um traço comum na prática

judiciária que os juízes enunciem em suas decisões o mínimo possível de fatos relevantes, de

modo a não minar a atividade judicial futura, abrindo-se amplo espaço para a prática do

distinguishing, pela qual, presentes outros suportes fáticos, não obstante a semelhança de

situações, uma decisão distinta pode ser proferida, afastando-se a imposição do stare decisis

ao novo caso39

.

Além disso, pode se verificar que quando se conclui que as razões dadas no

precedente encontram-se inadaptadas ou mal justificadas, é aberta a possibilidade do

overruling, desde que utilizado de maneira parcimoniosa, de modo a não colocar em risco a

confiança do público na atividade judicial40

. A doutrina do stare decisis, nesses termos, não é

inexorável na prática judiciária norte-americana, havendo espaço para a superação do

36

SELLERS, Mortimer N.S. The Doctrine of precedent in the United States of America. In: HONDIUS, Ewoud

(org.). Precedent and the Law: Reports to the XVIIth Congress International Academy of Comparative Law

Utrecht, 16-22 July 2006. Bruxelas: Bruylant, 2007. pp.112 e 132. 37

FRIED, Charles. Saying What the Law Is: The Constitution in the Supreme Court. Cambridge: Harvard

University Press, 2004. p.5. 38

SELLERS, Mortimer N.S. The Doctrine of precedent in the United States of America. In: HONDIUS, Ewoud

(org.). Precedent and the Law: Reports to the XVIIth Congress International Academy of Comparative Law

Utrecht, 16-22 July 2006. Bruxelas: Bruylant, 2007. p. 133. 39

SELLERS, Mortimer N.S. The Doctrine of precedent in the United States of America. In: HONDIUS, Ewoud

(org.). Precedent and the Law: Reports to the XVIIth Congress International Academy of Comparative Law

Utrecht, 16-22 July 2006. Bruxelas: Bruylant, 2007. p.112. 40

SELLERS, Mortimer N.S. The Doctrine of precedent in the United States of America. In: HONDIUS, Ewoud

(org.). Precedent and the Law: Reports to the XVIIth Congress International Academy of Comparative Law

Utrecht, 16-22 July 2006. Bruxelas: Bruylant, 2007. p.134.

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15

precedente (citando-se aqui Brown v. Board of Education, no qual ocorreu overruling de toda

uma série de precedentes)41

.

3.2. Precedente versus jurisprudência

Segundo Taruffo, há que se fazer uma distinção entre precedente e

jurisprudência:

Quando se fala em precedente se faz normalmente referência a uma

decisão relativa a um caso particular, enquanto que quando se fala da

jurisprudência se faz normalmente referência a uma pluralidade,

frequentemente bastante ampla relativa a vários e diversos casos

concretos [...] em regra a decisão que se assume como precedente é

uma só, de modo que fica fácil identificar qual decisão faz precedente.

Ao contrário nos sistemas nos quais se alude à jurisprudência, se faz

referência normalmente a muitas decisões: às vezes são dúzias até

mesmo centenas.42

Ainda, existem problemas decorrentes da dificuldade de estabelecer qual

decisão seja verdadeiramente relevante ou de decidir quantas decisões são necessárias para

que se possa dizer que existe jurisprudência firmada e pacífica a respeito de determinada

interpretação da norma43

.

3.3. Diferentes graus de vinculatividade

No caso brasileiro, o instituto das súmulas revelam uma tendência muito

maior a generalizações e à procura por normas gerais afirmadas nos julgados do que a prática

inglesa de valorização dos fatos concretos e separação metódica entre ratio e dictum.

Contudo, é de se assinalar que o Supremo Tribunal Federal não é estranho a esse modus

operandi, extremamente útil em se tratando das dúvidas que podem surgir da tradicional

estrutura das decisões judiciais brasileiras – fatos, fundamentos, dispositivo –, já tendo

41

SELLERS, Mortimer N.S. The Doctrine of precedent in the United States of America. In: HONDIUS, Ewoud

(org.). Precedent and the Law: Reports to the XVIIth Congress International Academy of Comparative Law

Utrecht, 16-22 July 2006. Bruxelas: Bruylant, 2007. p.123. 42

TARUFFO, Michelle. Precedentes e Jurisprudência. Revista de Processo, São Paulo, n.199, pp.142-143, 2010. 43

TARUFFO, Michelle. Precedentes e Jurisprudência. Revista de Processo, São Paulo, n.199, pp.142-143, 2010.

Page 16: Primeiras linhas do princípio do Contraditório como garantia de influência e não surpresa no CPC Projetado e sua necessária conexão com as técnicas delineadas de padronização

16

afirmado a doutrina dos fundamentos relevantes44

do julgado, que conformam o precedente e

são vinculantes45

.

Bustamante propõe, finalmente, que no sistema brasileiro há diferentes níveis

de peso que se pode dar ao precedente. Nos casos de inconstitucionalidade declarada pelo

Supremo Tribunal Federal, tratar-se-ia de precedentes vinculantes num sentido forte, pois

outros Tribunais e o Executivo – mas não o Legislativo – estariam impedidos de aplicar a lei

ou ato normativo declarado inconstitucional, gozando o ofendido do remédio da Reclamação,

para dar imediata efetividade à deliberação do STF.

Já quanto aos demais precedentes, chamados vinculantes num sentido fraco,

haveria diferentes pesos, de acordo com a conformação de cada julgado. Bustamante enumera

algumas variáveis que poderiam ser consideradas no processo de argumentação por

precedentes, no caso dos julgados vinculantes num sentido fraco, na tradição brasileira:

i) a existência de uma Súmula das Cortes Superiores sobre o assunto;

ii) a existência de “jurisprudência reiterada” da Corte acerca da matéria;

iii) o ônus argumentativo do juiz ordinário para dissentir de um julgado de

Corte Superior ou do Tribunal a que se filia;

iv) o grau de aderência de um precedente perante outras Cortes;

44

BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. Precedent in Brazil. In: HONDIUS, Ewoud (org.). Precedent and the

Law: Reports to the XVIIth Congress International Academy of Comparative Law Utrecht, 16-22 July 2006.

Bruxelas: Bruylant, 2007. p.290. 45

RECLAMAÇÃO. CABIMENTO. AFRONTA À DECISÃO PROFERIDA NA ADI 1662-SP. SEQÜESTRO

DE VERBAS PÚBLICAS. PRECATÓRIO. VENCIMENTO DO PRAZO PARA PAGAMENTO. EMENDA

CONSTITUCIONAL 30/00. PARÁGRAFO 2º DO ARTIGO 100 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. 1.

Preliminar. Cabimento. Admissibilidade da reclamação contra qualquer ato, administrativo ou judicial, que

desafie a exegese constitucional consagrada pelo Supremo Tribunal Federal em sede de controle concentrado

de constitucionalidade, ainda que a ofensa se dê de forma oblíqua. 2. Ordem de seqüestro deferida em razão do

vencimento do prazo para pagamento de precatório alimentar, com base nas modificações introduzidas pela

Emenda Constitucional 30/2000. Decisão tida por violada - ADI 1662-SP, Maurício Corrêa, DJ de 19/09/2003:

Prejudicialidade da ação rejeitada, tendo em vista que a superveniência da EC 30/00 não provocou alteração

substancial na regra prevista no § 2º do artigo 100 da Constituição Federal. 3. Entendimento de que a única

situação suficiente para motivar o seqüestro de verbas públicas destinadas à satisfação de dívidas judiciais

alimentares é a relacionada à ocorrência de preterição da ordem de precedência, a essa não se equiparando o

vencimento do prazo de pagamento ou a não-inclusão orçamentária. 4. Ausente a existência de preterição, que

autorize o seqüestro, revela-se evidente a violação ao conteúdo essencial do acórdão proferido na

mencionada ação direta, que possui eficácia erga omnes e efeito vinculante. A decisão do Tribunal, em

substância, teve sua autoridade desrespeitada de forma a legitimar o uso do instituto da reclamação.

Hipótese a justificar a transcendência sobre a parte dispositiva dos motivos que embasaram a decisão e

dos princípios por ela consagrados, uma vez que os fundamentos resultantes da interpretação da

Constituição devem ser observados por todos os tribunais e autoridades, contexto que contribui para a

preservação e desenvolvimento da ordem constitucional. 5. Mérito. Vencimento do prazo para pagamento

de precatório. Circunstância insuficiente para legitimar a determinação de seqüestro. Contrariedade à

autoridade da decisão proferida na ADI 1662. Reclamação admitida e julgada procedente. (grifou-se) (STF,

Rcl n. 1987, Rel. Min. Maurício Corrêa, DJ 21/04/2004)

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v) o grau de aderência a um precedente perante as câmaras ou turmas do

Tribunal;

vi) precedentes emitidos por Cortes especializadas (Justiça Eleitoral, Militar,

do Trabalho) não vinculariam a Justiça Comum e vice-versa;

vii) no caso de conflito entre precedentes, ambos teriam apenas força

persuasiva, mas não vinculante;

viii) decisões isoladas teriam mero poder persuasivo, dependendo diretamente

de sua qualidade;

ix) a autoridade, sozinha, não deveria justificar precedentes, pois justificação

deficiente desqualificaria a decisão (art. 93, IX, CRFB/88)46

;

x) decisões que se referem a normas específicas em suas razões tornam-se mais

consolidadas e tornam mais difícil o aparecimento de exceções ao decidido.

Esse conjunto de fatores evidencia a complexidade do uso de precedentes na

argumentação jurídica no caso brasileiro, não obstante sua utilidade e necessidade, de vista

dos fatores institucionais que reclamam sua aplicação. Conforme se verá a seguir, sua

introdução no sistema brasileiro, via legal e constitucional, fomentou uma profunda alteração

da tradição jurídica pátria, com inerentes dificuldades que acompanharam tais alterações.

4. Convergência entre common law e civil law no sistema jurídico brasileiro:

aplicação de precedentes

Até o fim do segundo pós-guerra prevalecia uma noção positivista das fontes

do Direito, em que a lei era uma diretriz suprema, de modo que cabia ao julgador apenas

aplicá-la sistemática e dogmaticamente. Com o fim da segunda guerra, emergiu uma nova

doutrina pós-positivista que afirma a existência de valores supralegais, que superaram a mera

aplicação fria da letra da lei, de modo que foi suplantada a concepção de que “o legislativo

dita o que será reproduzido pelo julgador”, afirmando-se desse modo a discricionariedade

judicial na aplicação da lei.

Assim, após o surgimento de tal doutrina, observou-se no Brasil uma constante

valorização dos julgados dos Tribunais como elemento persuasivo nas decisões judiciais.

46

BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. Precedent in Brazil. In:HONDIUS, Ewoud (org.). Precedent and the

Law: Reports to the XVIIth Congress International Academy of Comparative Law Utrecht, 16-22 July 2006.

Bruxelas: Bruylant, 2007. pp.305-306.

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18

A partir década de 1960 adotou-se o modelo de súmulas (Enunciados de

Súmula da Jurisprudência Dominante) no STF que, tal como as atuais, eram pequenos

enunciados de matérias recorrentemente julgadas pelo Tribunal.

Com a elaboração do Código de Processo Civil de 1973, introduziu-se o

Capítulo I, do Título IX (arts. 476 a 479 do CPC), que dispõe sobre a Uniformização da

Jurisprudência, mantendo-se, em verdade, a alteração feita na década de 1950 no CPC de

1939, dispondo sobre a mesma “uniformização de jurisprudência”. Trata-se da uniformização

horizontal, produzida dentro dos Tribunais, com fins institucionais, de criação de uma

identidade de julgamento dentro do mesmo órgão jurisdicional colegiado. Dos julgamentos

dirimentes da divergência resultarão súmulas, indicativas da jurisprudência prevalecente, com

conteúdo persuasivo.

Com a Constituição de 1988 esse movimento inicialmente legal tomou força.

Princípios constitucionais como o da igualdade formal (art. 5º, caput) e o da fundamentação

racional das decisões judiciais (art. 93, IX) foram determinantes para dar dignidade

constitucional à necessidade de coerência e continuidade como atributos da atividade

judicante. Como bem pontua Ricardo Marcelo Fonseca:

Essa mudança histórica de rumos obviamente afeta profundamente o sistema

das fontes formais. Na medida em que a lei perde sua aura de diretriz

soberana e absoluta e deve ser confrontada em todos os momentos com a

axiologia constitucional, o papel da jurisprudência – e sobretudo das Cortes

Constitucionais – ganha um novo relevo. A última palavra sobre a validade

da lei diante da Constituição ocorrerá nos tribunais, e não mais nos

Parlamentos.47

Com a criação do STJ, houve um apelo pela uniformização da interpretação da

legislação federal, principalmente a partir da definição na Constituição de 1988 da

competência do Tribunal para dirimir dissídio pretoriano, além da possibilidade de edição de

súmulas persuasivas.

Outra alteração técnica considerável foi a introdução do art. 55748

do CPC com

a Lei n. 9.756/98 que permite o julgamento através da jurisprudência, o que possibilitou a

inadmissão de recursos baseada em súmula ou mesmo em jurisprudência dominante de

Tribunal Superior.

47

Fonseca, Ricardo Marcelo.A jurisprudência e o sistema das fontes no Brasil: uma visão histórico-jurídica.

Revista Seqüência, no 58, p. 23-34, jul. 2009. 48

Art. 557: O relator negará seguimento a recurso manifestamente inadmissível, improcedente, prejudicado ou

em confronto com súmula ou com jurisprudência dominante do respectivo tribunal, do Supremo Tribunal

Federal, ou de Tribunal Superior

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19

No entanto, a modificação mais polêmica introduzida até então veio com a

Emenda Constitucional n. 45/2004 que introduziu a súmula vinculante. Após discussão

extensa, buscou-se consolidar a aplicação do entendimento jurisprudencial como critério de

julgamento, de modo que a jurisprudência perdesse o caráter meramente persuasivo e passasse

a ter caráter de aplicação obrigatória, vinculante em todos os Tribunais brasileiros.

A mesma Emenda Constitucional introduziu o §3º, ao art. 103-A da

Constituição da República de 1988, prevendo o recurso à Reclamação para sancionar o

descumprimento judicial ou administrativo de súmula vinculante49

.

Outra reforma processual relevante foi a introdução dos arts. 543-A e 543-B

com a Lei 11.418/2006 que determinou a demonstração de Repercussão Geral como requisito

de admissibilidade recursal perante o STF. Tal requisito, além de filtrar o recurso por sua

transcendência jurídica, política e social, é capaz de sobrestar todos os demais recursos

extraordinários na origem que possuam “a mesma temática” do recurso paradigma que será

julgado com efeitos pan-processuais sobre os demais,

Ainda houve a introdução do art. 543-C pela Lei n. 11.672/2008 que introduziu

a chamada “Técnica do Julgamento do Recurso Repetitivo” para o STJ. Tal técnica, ao

contrário do que ocorre no STF, não é um requisito de admissibilidade, porém, do mesmo

modo haverá o pinçamento de apenas um recurso paradigma pelo Presidente do Tribunal de

Origem e os demais ficaram sobrestados, de modo que o julgamento desse recurso escolhido

promoverá a uniformização jurisprudencial para todos aqueles que guardam a mesma

temática, segundo critérios subjetivos do Presidente do Tribunal de Origem.

Também, como exemplo pitoresco da força que a aplicação jurisprudencial

adquiriu no atual sistema jurídico brasileiro é o PARECER PGFN/CRJ/Nº 492 /2010,

publicado em março de 2011. Tal parecer trata de diretrizes direcionadas aos procuradores da

Fazenda Pública para evitar a interposição de recursos infrutíferos, quando houver

jurisprudência dos tribunais superiores a respeito. Ou seja, há uma orientação interna da

Procuradoria da Fazenda sobre como observar e eventualmente recorrer extraordinariamente,

de vista dos precedentes dos Tribunais Superiores. Veja-se:

Dentre os dispositivos legais veiculadores de mecanismos processuais que,

ao reforçar a importância dos precedentes judiciais oriundos dos Tribunais

Superiores, pretendem atingir as finalidades mais acima elencadas, podem

49

“Art. 103-A [...]

§ 3º Do ato administrativo ou decisão judicial que contrariar a súmula aplicável ou que indevidamente a aplicar,

caberá reclamação ao Supremo Tribunal Federal que, julgando-a procedente, anulará o ato administrativo ou

cassará a decisão judicial reclamada, e determinará que outra seja proferida com ou sem a aplicação da súmula,

conforme o caso.”

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ser citados o art. 475, §3º (inexistência de remessa necessária quando a

sentença estiver fundada em jurisprudência do plenário do STF ou em

Súmula de Tribunal Superior), o art. 518, §1º (Súmula “impeditiva de

recursos”), o art. 557 (inadmissão monocrática de recurso contrário à súmula

ou à jurisprudência dominante do STF ou do STJ) e o art. 557,

§1º(provimento monocrático de recurso em consonância com súmula ou

jurisprudência dominante do STF ou do STJ), todos do CPC e, por fim, o

art. 103-A da CF/88 (Súmula Vinculante), introduzido pela Emenda

Constitucional n. 45, de 30 de novembro de 2004 (Emenda da “Reforma do

Judiciário”).50

(grifou-se)

5. Críticas ao atual modelo de aplicação jurisprudencial

Como visto anteriormente, a introdução do julgamento por precedentes na

tradição brasileira ganhou força posteriormente a Emenda Constitucional n.45/2004 que

trouxe a instituição de súmulas vinculantes do STF. No entanto, há um grande problema na

aplicação dessas súmulas, visto que o julgamento que nelas se baseia geralmente é

desconectado de seu acórdão paradigma e, às vezes, pela necessária aplicação de direitos

fundamentais, induz-se o seu não seguimento. 51

É dizer: aplica-se simplesmente o enunciado geral e abstrato, resumido em

poucas palavras como regra jurídica de aplicação para qualquer caso que se afigure pertinente.

Conforme visto, as súmulas possuem conteúdo específico traduzido em enunciações gerais, de

modo que, pela aplicação equivocada, se descolam dos acórdãos-paradigma que as originam,

pois seu breve texto é incapaz de traduzir os fatos e fundamentos discutidos na decisão

precursora, de modo que a aplicação dessa regra universalizada não se funda na analogia dos

fatos, mas sobre uma regra geral.52

Aplica-se meramente a regra jurídica sem identidade dos fatos, pois os fatos

não foram sequer analisados por impedimento de competência dos Tribunais Superiores.

Desse modo, os acórdãos são elaborados para descobrir qual é o princípio de direito, uma vez

que o que se procura é apenas a regra de direito abstrata para aplicar no caso concreto sem

individualização concreta dos fatos que foram objeto da decisão53

.

Nesse sentido, tal qual percebido na tradição inglesa, é um desafio não

engessar a atividade judicial presente a partir do stare decisis proporcionado por decisões

50

Procuradoria Geral da Fazenda Nacional. PARECER PGFN/CRJ/Nº 492 /2010. Disponível em:

<http://www.pge.sp.gov.br/blog/PGFN%20PARECER%20No%20492-2010.pdf>. Acesso em: 10/01/2013. 51

MAUÉS, Antônio Moreira. Jogando com os precedentes: regras, analogias, princípios. Revista Direito GV,

São Paulo 8(2) | p. 588- 590 | JUL-DEZ 2012.

52 TARUFFO, Michelle. Precedentes e Jurisprudência. Revista de Processo, São Paulo, n.199, p.143, 2010.

53 TARUFFO, Michelle. Precedentes e Jurisprudência. Revista de Processo, São Paulo, n.199, p.144, 2010.

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vinculantes pretéritas. Se tais decisões gozam de efeitos imediatos e de ação constitucional

com a dignidade da Reclamação, não se pode passar ao largo dos fatos e do direito que a

produziram, sob pena de uma miríade de situações fáticas, não tratadas pelos precedentes que

originaram o “precedente” (ordinariamente aplicado pela comparação com uma ementa ou

súmula), virem a ser nele abarcados por generalização e assim passarem a ser regrados. Trata-

se de evidente lesão à segurança jurídica, além de extrapolação de competência da parte do

STF quando se presta a semelhante papel.

Outro elemento problemático é a chamada uniformização horizontal, na qual

o Regimento Interno de cada Tribunal determina o procedimento para a produção de súmulas.

Não obstante o esforço de uniformização dentro de um mesmo Tribunal, com fins de

formação de um padrão decisório institucional, nota-se ainda um grande número de

divergências dentro dos sub-órgãos dos Tribunais, de forma que, na prática, para a

uniformização de decisões, são necessários anos e um enorme número de decisões a respeito

do mesmo caso, antes que um Tribunal tome a iniciativa de uniformizar, via súmula, a

questão jurídica repetidamente litigada54

. E mesmo com a produção da súmula, não há

vinculação entre os julgamentos posteriores e aquele incidente de uniformização resolvido,

sendo que o próprio Tribunal muitas vezes não obedece a uniformização que promoveu55

.

Ainda, um dos maiores problemas enfrentados é a inexistência, em certos

casos, da possibilidade de superação do precedente (overruling) e de distinção do caso

(distinguishing).

Nos casos de Súmula impeditiva de recurso (art. 518, §1º, do CPC), inadmissão

monocrática de recurso contrário a súmula ou jurisprudência dominante do STF ou STJ (art.

557 do CPC) e provimento monocrático de recurso em consonância com súmula ou

jurisprudência dominante do STF ou STJ (art. 557 § 1), há mecanismo de distinção do

precedente, visto que existe recurso idôneo previsto no CPC para esses casos pelos quais se

leva à atenção de Tribunal hierarquicamente superior a possibilidade de não se tratar, naquele

caso, de hipótese de aplicação do precedente em questão.

54

No original: “Each Brazilian court has its own internal code of procedures (Regimento Interno). Literally all

those internal codes contais expres rules about the unification of the court’s jurisprudence. Nevertheless, there

is still large divergence among each court’s panels. Generally speaking, it takes many years and hundread of

identical cases for a court to unify its ruling on a particular legal question. In: BUSTAMANTE, Thomas da

Rosa de. Precedent in Brazil. In: HONDIUS, Ewoud (org.). Precedent and the Law: Reports to the XVIIth

Congress International Academy of Comparative Law Utrecht, 16-22 July 2006. Bruxelas: Bruylant, 2007.

p.307. 55

BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. Precedent in Brazil. In: HONDIUS, Ewoud (org.). Precedent and the

Law: Reports to the XVIIth Congress International Academy of Comparative Law Utrecht, 16-22 July 2006.

Bruxelas: Bruylant, 2007. p.310.

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22

No entanto, quando se trata de Repercussão Geral e Técnica do Recurso

Repetitivo56

, não há nenhum mecanismo processual de superação ou distinção da aplicação

jurisprudencial, de modo que a parte que se entende lesada não dispõe de sucedâneos

recursais para defender seus direitos.

O que ocorre é que apenas um recurso escolhido pelo Presidente do Tribunal

de Origem, sem critérios objetivos e sem um procedimento adequado de escolha, será julgado

pelos Tribunais Superiores como um tema, como uma tese, sem análise fática ou mesmo

identificação ou descrição dos fatos ocorridos naquele recurso representativo da controvérsia.

Após, o resultado desse julgamento será aplicado mecanicamente a todos os recursos

sobrestados, sem sequer haver descrição das especificidades de cada caso, apenas aplicando-

lhes a “tese” que em teoria os torna idênticos ao recurso paradigma, massiva e

mecanicamente.

Novamente, percebe-se uma tendência a generalizações e elaboração de

“normas abstratas” que a priori têm o condão de dirimir uma questão jurídica controvertida e

repetida, mas que podem desembocar num engessamento da atividade judicial, trazendo

injustiça e inadequação para diversos casos, servindo a doutrina do stare decisis não mais

como instrumento de realização da igualdade formal (art. 5º, caput) e sim como um

desvirtuamento de uma potencialidade do Judiciário, que é a análise casuística dos fatos e

direitos envolvidos nas demandas que lhe são trazidas. Tais riscos estruturais, aliados a um

sistema judicial com um histórico de superutilização, morosidade, e baixa qualidade de

produção decisória é potencialmente um atalho para seu colapso. Julgamento de teses, ao

invés de julgamento de casos. Nesse sentido, Alexandre Bahia:

Quanto ao mecanismo de sobrestamento de alguns Recursos “idênticos”

enquanto alguns deles são apreciados pelo Tribunal (e depois a decisão destes

predetermina a sorte dos demais), apenas podemos manifestar nossa

perplexidade: na crença de que as questões em Direito podem ser tratadas de

forma “tão certa”, que se possa realmente dizer que as causas são idênticas; no

tratamento dos casos como standards, como temas, pois que as características

do caso e as pretensões que são levantadas em cada um são desconsideradas e

então um deles servirá para que tente sensibilizar o Tribunal da importância de

sua apreciação.57

56

A introdução dos artigos 543-A, 543-B e 543-C permitiram que fossem introduzidos mecanismos de

“filtragem” de Recurso Extraordinário e Especial, introduzindo a Repercussão Geral e a Técnica do Recurso

Repetitivo, de modo que o STF e o STJ julgam recursos “em bloco”. 57

BAHIA, Alexandre G. Melo Franco. Recursos Extraordinários no STF e no STJ: conflito entre interesses

público e privado. Curitiba:Juruá, 2009, p.293 a 295

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Desse modo, para a parte cujo recurso foi sobrestado na origem não existe

nenhum recurso previsto no CPC que permita a distinção de seu caso, devendo a parte, ao

perceber o cerceamento de seu direito de ampla defesa, contraditório, bem como o direito à

individualidade de julgamento, se valer dos chamados sucedâneos recursais, que consistem no

uso de ações autônomas como se recurso fossem.

Porém tais sucedâneos mais uma vez instauram a insegurança jurídica, pois sua

aceitação depende do entendimento do Tribunal, ou na maioria das vezes, do entendimento

daquela específica Turma de julgamento a respeito de qual sucedâneo seria o mais adequado.

Atrai-se, finalmente, um ônus muito grande para a parte ao tentar, sem garantias de sucesso,

demonstrar a necessidade de se proceder ao distinguishing, ex post uma análise judicial

apressada e que, na visão da parte, falhou grandemente ao não perceber as diferenças que

permearam o caso em questão.

Nesse sentido, a necessidade de justificação judicial das decisões (art. 93, IX,

CRFB/88), e o recurso de embargos declaratórios, manejados com esse específico propósito,

podem se revelar ferramenta útil, desde o julgamento singular, até a última pronúncia

colegiada, para que as partes pontuem e forcem os julgadores a levar em consideração cada

ponto específico, de fato e de direito, que percebem não ter sido levado em conta na

decisão.

A preocupação judicial com o engessamento de sua atividade futura, que na

Inglaterra e Estados Unidos levam o juiz a se deter exaustivamente sobre os fatos específicos

do caso e a enunciar as teses jurídicas – trazidas pelas partes e discutidas em contraditório

– que se revelam coerentes e corretas, no Brasil deve ser, perante nossa estrutura processual

(tanto legal, quanto resultante da prática forense), uma preocupação constante das partes.

Assim, o distinguishing na estratégia processual deve ser pensado a cada decisão, desde o

início do processo, correndo-se o risco, caso tal não seja feito, de a parte se encontrar, em sede

de recurso extraordinário lato sensu, tolhida de recursos para demonstrar a particularidade de

seu caso, tentando demonstrar por sucedâneos recursais, sem segurança de serem ouvidas,

suas razões.

Quanto aos mecanismos de overruling, trata-se de uma das maiores

deficiências do Poder Judiciário brasileiro, visto que apenas raramente as partes trazem de

maneira contundente as decisões anteriores que terão de ser superadas, ou então em quase

nenhuma oportunidade o julgador considera, em sua decisão, as razões que levam-no a

superar o entendimento anteriormente tecido. Geralmente, a superação do precedente é feita

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aleatória e tacitamente pelos próprios Tribunais que, ao invés de debaterem a questão da

superação de um julgado com a finalidade de estabelecer outro entendimento, simplesmente

julgam de modo diverso, desrespeitando de modo infundado o precedente anteriormente

adotado.

6. Algumas conexões dos precedentes com o contraditório: primeiros comentários

Delineado o panorama acima ofertado, resta, de modo breve, ofertar algumas

bases para a questão do contraditório.

Ao se perceber o movimento no Brasil para o dimensionamento da

litigiosidade repetitiva ingressa na pauta jurídica, como já dito, o modo como a jurisprudência

deve ser formada e aplicada; em especial, pelo necessário respeito ao processo constitucional

em sua formação.

Inclusive, esta é uma grande preocupação que vimos defendendo junto a

Comissão do CPC projetado na Câmara dos Deputados (com alguma repercussão no

substitutivo acerca da técnica de distinguishing). Nesse aspecto, o projeto busca ofertar

algumas premissas na formação e aplicação dos precedentes.58

58

Apesar de ser criticável a tentativa de uma metodologia, nos termos postos: “DO PRECEDENTE JUDICIAL -

Art. 520. Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável. Parágrafo único. Na forma e

segundo as condições fixadas no regimento interno, os tribunais devem editar enunciados correspondentes à

súmula da jurisprudência dominante. Art. 521. Para dar efetividade ao disposto no art. 520 e aos princípios da

legalidade, da segurança jurídica, da duração razoável do processo, da proteção da confiança e da isonomia, as

disposições seguintes devem ser observadas: I - os juízes e os tribunais seguirão a súmula vinculante, os

acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento

de recursos extraordinário e especial repetitivos; II – os juízes e os tribunais seguirão os enunciados das

súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional, do Superior Tribunal de Justiça em matéria

infraconstitucional e dos tribunais aos quais estiverem vinculados, nesta ordem; III – não havendo enunciado

de súmula da jurisprudência dominante, os juízes e os tribunais seguirão os precedentes: a) do plenário do

Supremo Tribunal Federal, em matéria constitucional; b) da Corte Especial ou das Seções do Superior Tribunal

de Justiça, nesta ordem, em matéria infraconstitucional; IV – não havendo precedente do Supremo Tribunal

Federal ou do Superior Tribunal de Justiça, os juízes e os órgãos fracionários do Tribunal de Justiça ou do

Tribunal Regional Federal seguirão os precedentes do plenário ou do órgão especial respectivo, nesta ordem; V

– os juízes e os órgãos fracionários do Tribunal de Justiça seguirão, em matéria de direito local, os precedentes

do plenário ou do órgão especial respectivo, nesta ordem. § 1o Na hipótese de alteração da sua jurisprudência

dominante, sumulada ou não, ou de seu precedente, os tribunais podem modular os efeitos da decisão que

supera o entendimento anterior, limitando sua retroatividade ou lhe atribuindo efeitos prospectivos. § 2o A

mudança de entendimento sedimentado, que tenha ou não sido sumulado, observará a necessidade de

fundamentação adequada e específica, considerando os princípios da segurança jurídica, da proteção da

confiança e da isonomia. § 3o Nas hipóteses dos incisos II a V do caput deste artigo, a mudança de

entendimento sedimentado poderá realizar-se incidentalmente, no processo de julgamento de recurso ou de

causa de competência originária do tribunal, observado, sempre, o disposto no §1o deste artigo. §4o O efeito

previsto nos incisos do caput deste artigo decorre dos fundamentos determinantes adotados pela maioria dos

membros do colegiado, cujo entendimento tenha ou não sido sumulado. § 5o Não possuem o efeito previsto

nos incisos do caput deste artigo: I - os fundamentos, ainda que presentes no acórdão, que não forem

imprescindíveis para que se alcance o resultado fixado em seu dispositivo; II - os fundamentos, ainda que

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As discussões esposadas no CPC Projetado, que teve o relatório aprovado na

Câmara em 16 de julho de 2013, demonstram claramente a preocupação com a ausência de

“técnicas processuais constitucionalizadas” para a formação de nossos “precedentes”.

Isto pois com a percepção do contraditório como uma garantia de influência e

de não surpresa se vislumbra que sua aplicação não se resumiria a formação das decisões

unipessoais (monocráticas), mas ganharia maior destaque na prolação das decisões

colegiadas, com a necessária promoção de uma redefinição do modo de funcionamento dos

tribunais.

O “tradicional” modo de julgamento promovido pelos Ministros (e

desembargadores) que, de modo unipessoal, com suas assessorias, e sem diálogo e

contraditório pleno entre eles e com os advogados, proferem seus votos partindo de premissas

próprias e construindo fundamentações completamente díspares, não atende a este novo

momento que o Brasil passa a vivenciar.59

relevantes e contidos no acórdão, que não tiverem sido adotados ou referendados pela maioria dos membros do

órgão julgador. §6o O precedente ou a jurisprudência dotado do efeito previsto nos incisos do caput deste

artigo pode não ser seguido, quando o órgão jurisdicional distinguir o caso sob julgamento, demonstrando,

mediante argumentação racional e justificativa convincente, tratar-se de caso particularizado por situação fática

distinta ou questão jurídica não examinada, a impor outra solução jurídica. § 7o Os tribunais deverão dar

publicidade aos seus precedentes, organizando-os por questão jurídica decidida e divulgando-os

preferencialmente por meio da rede mundial de computadores. Art. 522. Para os fins deste Código, considera-

se julgamento de casos repetitivos: I – o do incidente de resolução de demandas repetitivas; II – o dos

recursos especial e extraordinário repetitivos.” 59 Acerca das premissas essenciais para o uso dos precedente, veja-se: “Nesse aspecto, o processualismo

constitucional democrático por nós defendido tenta discutir a aplicação de uma igualdade efetiva e valoriza, de

modo policêntrico e comparticipativo, uma renovada defesa de convergência entre o civil law e common law,

ao buscar uma aplicação legítima e eficiente (efetiva) do Direito para todas as litigiosidades (sem se aplicar

padrões decisórios que pauperizam a análise e a reconstrução interpretativa do direito), e defendendo o

delineamento de uma teoria dos precedentes para o Brasil que suplante a utilização mecânica dos julgados

isolados e súmulas em nosso país. Nesses termos, seria essencial para a aplicação de precedentes seguir

algumas premissas essenciais: 1.º – Esgotamento prévio da temática antes de sua utilização como um padrão

decisório (precedente): ao se proceder à análise de aplicação dos precedentes no common law se percebe ser

muito difícil a formação de um precedente (padrão decisório a ser repetido) a partir de um único julgado, salvo

se em sua análise for procedido um esgotamento discursivo de todos os aspectos relevantes suscitados pelos

interessados. Nestes termos, mostra-se estranha a formação de um “precedente” a partir de um julgamento

superficial de um (ou poucos) recursos (especiais e/ou extraordinários) pinçados pelos Tribunais (de

Justiça/regionais ou Superiores). Ou seja, precedente (padrão decisório) dificilmente se forma a partir de um

único julgado. 2.º – Integridade da reconstrução da história institucional de aplicação da tese ou instituto pelo

tribunal: ao formar o precedente o Tribunal Superior deverá levar em consideração todo o histórico de

aplicação da tese, sendo inviável que o magistrado decida desconsiderando o passado de decisões acerca da

temática. E mesmo que seja uma hipótese de superação do precedente (overruling) o magistrado deverá indicar

a reconstrução e as razões (fundamentação idônea)59 para a quebra do posicionamento acerca da temática. 3.º –

Estabilidade decisória dentro do Tribunal (stare decisis horizontal): o Tribunal é vinculado às suas próprias

decisões: como o precedente deve se formar com uma discussão próxima da exaustão, o padrão passa a ser

vinculante para os Ministros do Tribunal que o formou. É impensável naquelas tradições que a qualquer

momento um ministro tente promover um entendimento particular (subjetivo) acerca de uma temática, salvo

quando se tratar de um caso diferente (distinguishing) ou de superação (overruling). Mas nestas hipóteses sua

fundamentação deve ser idônea ao convencimento da situação de aplicação. 4.º – Aplicação discursiva do

padrão (precedente) pelos tribunais inferiores (stare decisis vertical): as decisões dos tribunais superiores são

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O contraditório, nesses termos, impõe em cada decisão a necessidade do

julgador enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese,

infirmar sua conclusão. Perceba-se que caso as decisões procedam a uma análise seletiva

de argumentos, enfrentando somente parte dos argumentos apresentados, com

potencialidade de repercussão no resultado, haverá prejuízo na abordagem e formação

dos precedentes (padrões decisórios); inclusive com evidente prejuízo para aplicação

futura em potenciais casos idênticos.

Não é incomum a dificuldade dos Tribunais de segundo grau em aplicar os

padrões formados pelos Tribunais Superiores, por eles não terem promovido uma

abordagem mais panorâmica do caso e dos argumentos.

Assim, os acórdãos, na atualidade, deveriam possuir uma linearidade

argumentativa para que realmente pudessem ser percebidos como verdadeiros padrões

decisórios (standards) que gerariam estabilidade decisória, segurança jurídica, proteção da

confiança e previsibilidade. De sua leitura deveríamos extrair um quadro de análise

panorâmica da temática, a permitir que em casos futuros pudéssemos extrair uma “radiografia

argumentativa” daquele momento decisório.

Extrair-se-ia, inclusive, se um dado argumento foi levado em consideração,

pois caso contrário seria possível a superação do entendimento (overruling). Ou mesmo se

verificar se o caso atual em julgamento é idêntico ao padrão ou se é diverso, comportando

julgamento autônomo mediante a distinção (distinguishing).

consideradas obrigatórias para os tribunais inferiores (“comparação de casos”): o precedente não pode ser

aplicado de modo mecânico pelos Tribunais e juízes (como v.g. as súmulas são aplicadas entre nós). Na

tradição do common law, para suscitar um precedente como fundamento, o juiz deve mostrar que o caso,

inclusive, em alguns casos, no plano fático, é idêntico ao precedente do Tribunal Superior, ou seja, não há uma

repetição mecânica, mas uma demonstração discursiva da identidade dos casos. 5.º – Estabelecimento de

fixação e separação das ratione decidendi dos obter dicta da decisão: a ratio decidendi (elemento vinculante)

justifica e pode servir de padrão para a solução do caso futuro; já o obter dictum constituem-se pelos discursos

não autoritativos que se manifestam nos pronunciamentos judiciais “de sorte que apenas as considerações que

representam indispensavelmente o nexo estrito de causalidade jurídica entre o fato e a decisão integram a ratio

decidendi, onde qualquer outro aspecto relevante, qualquer outra observação, qualquer outra advertência que

não tem aquela relação de causalidade é obiter: um obiter dictum ou, nas palavras de Vaughan, um gratis

dictum.” 6.º – Delineamento de técnicas processuais idôneas de distinção (distinguishing) e superação

(overruling) do padrão decisório: A ideia de se padronizar entendimentos não se presta tão só ao fim de

promover um modo eficiente e rápido de julgar casos, para se gerar uma profusão numérica de julgamentos.

Nestes termos, a cada precedente formado (padrão decisório) devem ser criados modos idôneos de se

demonstrar que o caso em que se aplicaria um precedente é diferente daquele padrão, mesmo que

aparentemente seja semelhante, e de proceder à superação de seu conteúdo pela inexorável mudança social –

como ordinariamente ocorre em países de common law.” NUNES, Dierle. Processualismo constitucional

democrático e o dimensionamento de técnicas para a litigiosidade repetitiva. A litigância de interesse público e

as tendências “não compreendidas” de padronização decisória. Revista de Processo, vol. 189, p. 38, São Paulo:

Ed. RT, set. 2011.

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No entanto, ao se acompanhar o modo como os Tribunais brasileiros (incluso o

STF) trabalham e proferem seus acórdãos percebemos que se compreende parcamente as

bases de construção e aplicação destes padrões decisórios (precedentes), criando um quadro

nebuloso de utilização da jurisprudência. Flutuações constantes de entendimento, criação

subjetiva e individual de novas “perspectivas”, quebra da integridade (Dworkin) do direito,

são apenas alguns dos “vícios”.

Repetimos: aos Tribunais deve ser atribuído um novo modo de trabalho e uma

nova visão de seus papéis e forma de julgamento. Se o sistema jurídico entrou em transição (e

convergência), o trabalho dos tribunais também dever ser modificado, por exemplo, a) com a

criação de centros de assessoria técnico-jurídica (unificação das assessorias) a subsidiar a

todos os julgadores de uma Câmara pressupostos jurídicos idênticos para suas decisões; b)

respeito pleno do contraditório como garantia de influência, de modo a levar em consideração

todos os argumentos suscitados para a formação de um padrão decisório, pelos juízes e pelas

partes, entre outras medidas; c) Criação de centros de estudo e pesquisa para subsidiar dados

de pesquisa especializada para cada grande matéria em debate, inclusive para promover

críticas para aprimoramento das decisões (o que poderia ser feito em parceria com instituições

de pesquisa, v.g. Universidades).

Ademais, não se pode olvidar um dos principais equívocos na análise da

tendência de utilização dos precedentes no Brasil, qual seja, a credulidade exegeta (antes os

Códigos, agora os julgados modelares) que o padrão formado (em RE, v.g.) representa o

fechamento da discussão jurídica, quando se sabe que, no sistema do case law, o precedente é

um principium argumentativo. A partir dele, de modo discursivo e profundo, verificar-se-á,

inclusive com análise dos fatos, se o precedente deverá ou não ser repetido (aplicado).

Aqui, o “precedente” dos Tribunais Superiores é visto quase como um

esgotamento argumentativo que deveria ser aplicado de modo mecânico para as causas

repetitivas. E estes importantes Tribunais e seus Ministros produzem comumente rupturas

com seus próprios entendimentos; ferindo de morte um dos princípios do modelo

precedencialista: a estabilidade.

Sabe-se que após a CRFB/88 as litigiosidades se tornaram mais complexas e

em número maior. E que a partir deste momento o processo constitucionalizado passou a ser

utilizado como garantia não só para a fruição de direitos (prioritariamente) privados, mas,

para o auferimento de direitos fundamentais, pelo déficit de cumprimento dos papéis dos

outros “Poderes” (Executivo/ Legislativo), entre outros fatores.

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Vistas estas premissas, devemos fazer uma breve análise de alguns dos

fundamentos do common law na sistemática de precedentes, para que, na sequência, possamos

verificar alguns exemplos na ausência de sistemática da própria construção dos padrões

decisórios no Brasil.

No sistema processual constitucional democrático brasileiro, agora encampado

pela legislação projetada, tornar-se-á nula a decisão que surpreender as partes acerca de

argumentos que não tiverem sido problematizados, mesmo que potencialmente, ao longo do

iter.

A chamada decisão de “terza via” (surpresa), na qual o órgão julgador traz

argumentos inovadores nas ratione decidendi, seria banida.

Ademais, a adoção do contraditório como influência na formação e aplicação

dos precedentes, especialmente mediante o uso da técnica de causa piloto, torna essencial

percebermos que em caso de dissonância nos votos proferidos no acordão, dificilmente

encontraremos uma única “ratio decidendi” apta a ser utilizada num caso futuro. Isso é

demonstrado no direito inglês.60

O Contraditório impõe uma linearidade do debate para que uma decisão com

eficácia pan processual seja hábil a ser usada com argumentos colhidos por amostragem.

Ao comentar a situação, Bustamante adverte:

Do mesmo modo, em um julgamento colegiado pode acontecer que os juízes que

integram a câmara ou turma de julgamento cheguem a um consenso sobre a

solução a ser dada para o caso sub judice mas divirjam acerca das normas gerais

que são concretizadas no caso em questão e justificam a solução adotada: “Em

uma corte de cinco juízes, ‘não há ratio decidendi da corte a não ser que três

pronunciem a mesma ratio decidendi’”[Montrose 1957:130]. Nesse sentido,

Whittaker recorda o caso “Shogun Finance Ltd. Vs Hudson” em que o raciocínio

de cada um dos juízes que compõem a maioria - uma maioria de três a dois –

difere muito significativamente dos demais: “O resultado estava claro: uma maioria

de três entre cinco juízes com acento na House of Lords sustentou que o fraudador

não havia adquirido o título e, portanto, não poderia em tais circunstâncias tê-lo

repassado a Hudson, aplicando-se a máxima nemo dat quod non habet. Não

obstante, a maioria apresentava diferenças muito significativas quanto ao

raciocínio seguido pelos seus componentes”[Whitakker 2006: 723-724]. Em um

caso como esse não se pode falar em um precedente da corte acerca das normas

(gerais) adscritas que constituem as premissas normativas adotadas por cada um

dos juízes da maioria, embora se possa falar, eventualmente, de uma decisão

comum constante da norma individual que corresponde rigorosamente aos fatos

60

WHITTAKER, Simon. Precedent in English Law: a view from the citadel. In: HONDIUS, Ewoud (org.).

Precedent and the Law: Reports to the XVIIth Congress International Academy of Comparative Law Utrecht,

16-22 July 2006. Bruxelas: Bruylant, 2007. p. 56.

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do caso e às conclusões adotadas. Apenas há um precedente do tribunal em

relação às questões que foram objeto de consenso dos seus membros. “Quando

a fundamentação divergente [no caso de votos “convergentes no dispositivo e

divergentes na motivação”] descortina-se incompatível, tem-se uma decisão

despida de discoverable ratio, e, portanto, não vinculante no que concerne à

solução do caso”[Cruz e Tucci 2004:178]. Isso não impede, porém, que se

possa falar em uma ratio decidendi da opinião de um juiz e que a regra

inferida dessa ratio seja utilizada como precedente em um caso futuro. É claro

que essa regra está menos revestida de autoridade que outra que tenha sido objeto

de consenso de toda a corte, mas isso – apenas de limitar – não extingue por

completo seu valor como precedente.61

(destacamos).

Os juízes, assim, devem estar vinculados somente por fundamentos

confiáveis sobre questões jurídicas que aparecem nas decisões, não podendo haver o

contentamento do sistema apenas com o dispositivo ou a ementa das decisões judiciais.

Resta ainda a percepção de que o contraditório dinâmico garantiria às partes

técnicas hábeis para a distinção de casos e para a superação de entendimentos; nesse aspecto,

o CPC projetado, inovando a atual situação de carência técnica e como corolário do

contraditório prevê o cabimento da reclamação quando ocorrer a aplicação indevida da tese

jurídica e sua não-aplicação aos casos que a ela correspondam, do agravo de admissão, na

redação até o texto da Comissão geral, para a demonstração de existência de distinção entre o

caso em análise e o precedente invocado (distinguishing) ou a superação da tese (overruling);

seguindo antiga defesa doutrinária,62

e, em face da supressão deste último recurso na redação

da emenda aglutinativa (com ocorrência de admissibilidade direta dos recursos

extraordinários nas instâncias superiores), o pedido ao juiz ou relator do recurso para que

identifique a divergência e afaste o sobrestamento indevido, com regular processamento do

feito.

Por derradeiro, devemos sempre levar a sério, a partir dos aportes ora

discutidos, a advertência de Motta:

Uma coisa, que é correta, é a invocação dos julgamentos anteriores que,

quando tidos como acertos institucionais, bem servem como “indício

formal” das decisões que se seguirão a ele, e que com ele devem guardar a

coerência de princípio. É louvável que as partes compreendam, pois, que a

sua causa integra a história institucional, e que chamem a atenção do juiz

para a necessidade de sua continuidade. Agora, outra coisa, bem diferente é

a fraude que decorre da utilização de verbetes jurisprudenciais, como se

fundamentação fossem, sem a devida reconstrução que foram decisivos

num e noutro caso. Dworkin explica que, se é verdade que os casos

61

BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. Teoria do precedente judicial. São Paulo: Noeses. 2012, p. 272-273.

62 THEODORO, Humberto Júnior; NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre. Litigiosidade em massa e repercussão

geral no recurso extraordinário. Revista de Processo, São Paulo, n. 177. Nov. 2009. p. 43.

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semelhantes devem ser tratados de maneira semelhante (primado da

equidade, que exige a aplicação coerente dos direitos), também é verdade

que os precedentes não têm força de “promulgação”: o juiz deve “limitar a

força gravitacional das decisões anteriores à extensão dos argumentos de

princípio necessários para justificar tais decisões”. E isso já no sistema do

common law! Que dirá então em países como o Brasil, de tradição jurídica

totalmente diferenciada, onde os precedentes não têm (em regra, pelo

menos) força normativa vinculante? Então, atenção: para que o precedente

agregue padrões “hermeneuticamente válidos” a um provimento atual, ou

para que se revele a “força” de um precedente (ou: o que, afinal, ficou

decidido naquele caso?), temos de perguntar: quais os argumentos de

princípio que o sustentaram? Simples, pois. Estes argumentos é que

poderão (e deverão) influenciar o novo provimento. Afinal, para os

propósitos de uma produção coerente e democrática do Direito, “adequar-

se ao que os juízes fizeram é [bem] mais importante do que adequar-se ao

que eles disseram”.63

7. Considerações finais

A aplicação de precedentes no Brasil assume a função de ressaltar a

credibilidade do Judiciário garantindo ao litigante previsibilidade. Ocorre que, mantido o atual

modelo de fundamentação de decisões em jurisprudência dominante, sem um debate e uma

comparação analógica adequada, seria uma ilusão crer que a tradição judicial oferecerá tal

segurança jurídica, visto que, como demonstrado, não tem ocorrido uma aplicação séria ou

mesmo a construção de uma verdadeira tradição institucional de aplicação de precedentes.

Desse modo, afigura-se um dever argumentativo das partes, do ponto de vista

de sua estratégia, e do corpo judiciário como um todo, na busca de excelência e

aperfeiçoamento da prática forense, o exercício do contraditório e da argumentação com

clareza e cuidado, de modo que é preciso reconsiderar como um todo o que vem sendo a

prática forense brasileira. Novas estruturas processuais e a aplicação de precedentes de

maneira reiterada demandam dos operadores do direito uma reelaboração de suas práticas,

adaptando-se à nova realidade.

A uniformização jurisprudencial tem como fundamento a preservação do

princípio da igualdade formal, pois efetiva o dever de atribuir decisões idênticas a situações

idênticas. Obviamente, viola-se tal princípio quando para situações semelhantes, aplica-se

63

MOTTA, Francisco José Borges. Levando o direito a sério: uma crítica hermenêutica ao protagonismo

judicial. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012. p. 183.

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uma tese anteriormente definida sem consideração com as questões fáticas e de direito que

diferenciam um caso de outro a ponto de exigir solução distinta64

.

O precedente, como no common law, oferece regra universalizável aplicada em

função da identidade com os fatos dos casos análogos. O critério de aplicação e escolha do

precedente é um critério fático, de modo que a regra será aplicada ou afastada pelo julgador

conforme considere prevalentes os elementos de identidade ou diferença entre os casos. Um

só precedente é suficiente para fundamentar a decisão de um caso65

.

Nesse contexto, fica evidenciado que a introdução legislativa de novas

modalidades recursais para se institucionalizar a necessidade de distinguishing quando do

julgamento da Repercussão Geral ou do julgamento de recurso repetitivo não resolverá o

problema apresentado: pois a deficiência na aplicação do precedente nessas situações não se

dá no número de recursos possíveis ou na oportunidade de sua interposição. A adoção no art.

499 projetado do dever efetivo de fundamentação racional como critério fiscalizatório do

contraditório como influência, devidamente aplicado, poderá sim viabilizar uma alteração

substancial dos problemas atuais na formação dos precedentes.

A má aplicação de precedentes é explicada pela própria realidade forense

brasileira: partes que argumentam parcamente, um grande número de litígios que se

reproduzem por falta de uniformização e pronta resposta judicial, e juízes incapazes de

proferir decisões claras, justificadas e específicas para cada caso.

Assim, o perigo das “generalizações”, alardeado pela doutrina nacional, nada

mais é do que o perigo de coexistir o acesso à justiça democrático amplo nos moldes

constitucionais, a necessidade de justiça formal por meio da aplicação de precedentes e a

manutenção de velhas práticas forenses.

A uniformização decisória em nome dos princípios da segurança jurídica e da

igualdade é louvável. Porém, ainda que seja importante a redução das demandas nos tribunais

superiores amparada por tais princípios, é ainda mais importante a instauração da qualidade

na formação dos precedentes judiciais, visto que um processo é instaurado para oferecer às

partes a contraprestação justa de seu direito violado. No entanto, se não há qualidade nas

decisões e o direito das partes é negligenciado, o processo se torna um fim em si mesmo,

64

NUNES, Dierle José Coelho; THEODORO, Humberto Júnior; BAHIA, Alexandre. Breves considerações

sobre a politização do Judiciário e sobre a panorama de aplicação no direito brasileiro - Análise da

convergência ente o civil law e o common law e dos problemas da padronização decisória. Revista de

Processo, São Paulo, n.189, pp.25-27, 2010. 65

OP.cit. p.27

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buscando em nome da celeridade uma perda expressiva da eficiência nas decisões judiciais,

de modo a lesar os direitos das partes envolvidas no processo.

Como demonstrado, há vários pontos críticos na aplicação atual da

jurisprudência e principalmente da formação dos precedentes no sistema processual brasileiro.

Há que se enfatizar que, para o estabelecimento do precedente como fonte do direito e

elemento de formação decisória, várias providências se fazem necessárias: (i) os Tribunais

devem consolidar e respeitar seu entendimento institucionalizado; (ii) as reformas legislativas,

(iii) deve ser adotada uma Teoria dos Precedentes adaptada para a realidade brasileira; (iv)

deve haver uma mudança de paradigma e comportamento na prática jurídica, inclusive de

iniciativa das partes, a fim de comprometer advogados e julgadores com a aplicação fiel dos

precedentes estabelecidos, bem como com a qualidade das decisões proferidas.

Deve haver a adoção de uma Teoria do Precedente que esclareça qual a força

“vinculativa” das decisões dos Tribunais Superiores. No caso de possuírem força vinculante,

deve-se definir mecanismos idôneos de aplicação, distinção e superação do precedente

vinculante. Além disso, caso subsista o julgamento por amostragem, é preciso que se julgue

os casos precursores com identidade dos fatos, com amplo debate e com aprofundamento

jurídico da questão, sendo tarefa das instâncias inferiores manejar com maestria a técnica do

distinguishing, evitando desse modo a criação de injustiças por meio do stare decisis.

Caso decida-se pela aplicação meramente persuasiva, jurisprudencial de

julgados dos Tribunais Superiores, deve-se pensar seriamente para um fim para o julgamento

monocrático por jurisprudência dominante ou negativa de seguimento de recurso. Não é

possível que se faça aplicação vinculante num momento para em seguida agir diferentemente.

Vista a abertura do conceito, poder-se-ia igualmente pensar numa solução legislativa para a

concepção de jurisprudência dominante (quantos julgados são necessários para sua formação,

quais órgãos são capazes de conformá-la).

Além disso, é urgente definir qual a força vinculativa para os próprios

Tribunais que proferem os julgados (precedente horizontal). Poder-se-ia pensar, nos moldes

da House of Lords, em se estatuir a impossibilidade de desrespeito de decisões

jurisprudenciais ou de precedentes em nome da isonomia e da segurança jurídica, assegurando

por outro lado mecanismos expressos e formalizados de superação daquilo que foi decidido

anteriormente, para que se evite a modificação de situações jurídicas pela mera mudança de

opinião do julgador.

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Há que se ressaltar que o presente artigo não defende a ideia de uma aplicação

pura da Teoria dos Precedentes e do conceito e formação dos precedentes existentes nos

países de Common Law. Pelo contrário, é defensável a criação de uma teoria e de critérios que

compreenda as peculiaridades da aplicação de precedentes em um sistema jurídico

tradicionalmente de Civil Law, como o brasileiro.

Como se pode notar, estamos muito longe em perceber a verdadeira

importância do Direito Jurisprudencial em nosso país.

E o que mais preocupa é que muitos daqueles que se encontram ligados a

tendência de padronização decisória (no âmbito legislativo ou de aplicação) se seduzam com

o argumento simplista de que “isso resolverá” o problema da litigiosidade repetitiva entre nós,

sem que antes se problematize e se consolidem fundamentos consistentes de uma teoria de

aplicação dos precedentes adequada ao direito brasileiro.

Evidentemente que se trata de uma tendência inexorável.

E isso torna a tarefa, de todos os envolvidos, mais séria, especialmente quando

se percebe toda a potencialidade e importância que o processo e a Jurisdição,

constitucionalizados em bases normativas consistentes, vem auferindo ao longo desses 25

anos pós Constituição de 1988.

Não se pode reduzir o discurso do Direito Jurisprudencial a uma pauta de

isonomia forçada a qualquer custo para geração de uma eficiência quantitativa.

Precedentes, como aqui se afirmou, são princípio(s) (não fechamento) da

discussão e aplicação do direito. Eles não podem ser formados com superficialidade e

aplicados mecanicamente.

Precisamos sondar e aprimorar o uso do contraditório como garantia de

influência e do processo constitucional na formação dos precedentes. Para além do argumento

“ufanista” e acrítico de seu uso no Brasil.

Os custos da violação de um direito fundamental não justificam a tomada de

uma decisão sub-ótima em larga escala.

Iniciamos o presente ensaio com a indagação de se deveríamos abandonar a

singularidade em prol da similaridade em face da tendência de padronização decisória em

contraponto com a análise individualizada dos casos (case to case) e chegamos, ao final, a

partir da percepção adequada do contraditório como influência e da fundamentação racional

projetados (arts. 10 e 499 do CPC projetados, como corolários constitucionais), a conclusão

de que devemos seguir esses pressupostos interpretativos (essenciais) na formação dos

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precedentes exatamente para viabilizar que todos os argumentos potencialmente relevantes

sejam levados a sério e cheguemos a única interpretação viável do novo CPC, que induzirá

uma melhoria qualitativa do sistema. Exatamente para evitar que o discurso em prol da

similaridade inviabilize a aplicação legítima (correta) do Direito.

Assim, há de se perceber que ao Direito Jurisprudencial se aplica com precisão

a histórica frase de Sander, ao comentar a tendência do uso das “ADRs”, na década de 1970:

“não existem panacéias, apenas caminhos promissores para explorar. E há tanta coisa que não

sabemos...”66

.

E o único caminho hermenêutico viável é aquele que interpreta o CPC

Projetado a luz do processo constitucional e do pressuposto comparticipativo.

66

“There are no panaceas; only promising avenues to explore. And there is so much we do not know.” Trecho da

conclusão da histórica preleção proferida por Frank A. Sander, na segunda Pound Conference, em 1976, que

fortaleceu muitíssimo o movimento pró técnicas alternativas (adequadas) de resolução de conflitos (ADR –

alternative dispute resolution). SANDER, Frank. A. Varieties of dispute processing. LEVEN, A. Leo,

WHEELER, Russell R.. The Pound Conference: perpectives on justice in the future. Minnesota: West

Publishing Co. 1979. p. 86.