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Preço € 1,00. Número atrasado € 2,00 L’O S S E RVATORE ROMANO EDIÇÃO SEMANAL Unicuique suum EM PORTUGUÊS Non praevalebunt Ano XLVIII, número 34 (2.478) Cidade do Vaticano quinta-feira 24 de agosto de 2017 y(7HB5G3*QLTKKS( +/!z!{!%!&! Mensagem para o dia mundial do migrante e do refugiado Acolher, proteger, promover, integrar Acolher, proteger, promover e inte- grar: articula-se «ao redor destes quatro verbos fundados sobre os princípios da doutrina da Igreja» a mensagem que o Papa Francisco emanou em vista do próximo dia mundial do migrante e do refugiado, que será celebrado a 14 de janeiro de 2018. Reafirmando a sua «especial preo- cupação» pela situação de tantos ho- mens e mulheres «que fogem das guerras, das perseguições, dos desas- tres naturais e da pobreza», o Pontí- fice recordou que «cada forasteiro que bate à nossa porta é ocasião de encontro com Jesus Cristo». Disto nasce «uma grande responsabilida- de» que a Igreja «deseja partilhar com todos os crentes e os homens e mulheres de boa vontade», convi- dando-os a «dar resposta aos nume- rosos desafios colocados pelas mi- grações contemporâneas com gene- rosidade, prontidão, sabedoria e cla- rividência». Especificamente, Francisco pediu «possibilidades mais amplas de en- trada segura e legal nos países de destino» e invocou «um empenho concreto para incrementar e simplifi- car a concessão de vistos humanitá- rios e para a reunificação familiar». Ao mesmo tempo, formulou votos a fim de que um número cada vez maior de países «abram corredores humanitários para os refugiados mais vulneráveis», prevendo ainda «vistos temporários especiais para as pessoas que fogem de conflitos nos países confinantes». O Papa reafir- mou o seu não às «expulsões coleti- vas e arbitrárias de migrantes e refu- giados» e voltou a frisar a importân- cia de lhes oferecer «um primeiro alojamento adequado e decente». Insistindo sobre a necessidade de uma proteção adequada na pátria e em terras de imigração, o Pontífice pediu que a todos sejam concedidos «a liberdade de movimento no país de acolhimento, a possibilidade de trabalhar e o acesso aos meios de te- lecomunicação». Para os menores, em particular, a mensagem insistiu sobre a necessidade de «evitar qual- quer forma de detenção» e de garan- tir «o acesso regular à educação». Quanto à questão da nacionalidade, o Papa afirmou que «no respeito pe- lo direito universal», esta «deve ser reconhecida e devidamente certifica- da a todos os meninos e meninas no momento do seu nascimento». Além disso, «o status migratório não deve- ria limitar o acesso à assistência mé- dica nacional e de previdência so- cial, nem à transferência das respeti- vas contribuições em caso de repa- triamento». Aos «estrangeiros pre- sentes no território» devem ser ga- rantidas também «a liberdade de profissão e prática religiosa» e «a in- tegração sociolaboral», acompanha- da por «percursos de formação lin- guística e cidadania ativa». Contudo deve ser sempre promovida a integri- dade da família «favorecendo a reu- nificação familiar — com a inclusão de avós, irmãos e netos — sem nunca o fazer depender de requisitos eco- nómicos». A propósito de integração, a men- sagem do Pontífice evidenciou «as oportunidades de enriquecimento in- tercultural geradas pela presença de migrantes e refugiados» e exortou a favorecer este processo inclusive «através da oferta de cidadania inde- pendentemente de requisitos econó- micos e linguísticos, e de percursos de regularização extraordinária para migrantes que possuam uma longa permanência no país». PÁGINAS 8 E 9 Recordação do teólogo argentino Onde a fé tem uma cor especial JORGE MARIO BERGO GLIO NAS PÁGINAS 10 E 11 No Angelus a dor e a oração do Papa pelos atentados no Burquina Faso, Espanha e Finlândia Um momento de silêncio O Papa Francisco voltou a expres- sar a sua dor pelos sanguinolentos atos terroristas dos quais foram víti- mas nos dias passados alguns países africanos e europeus. No Angelus de domingo 20 de agosto, na praça de São Pedro, o Pontífice recordou os recentes ataques ocorridos no Burquina Faso, na Espanha e na Finlândia. «Oremos por todos os defuntos, pelos feridos e pelos seus familiares, e supliquemos ao Se- nhor, Deus de misericórdia e de paz, para que liberte o mundo des- ta violência desumana» exortou convidando os fiéis a um momento de silêncio, ao qual se seguiu a reci- tação de uma Ave-Maria. Anteriormente, comentando o episódio do encontro de Jesus com a mulher cananeia narrado no evan- gelho de Mateus (15, 21-28), o Papa frisou a insistência da mãe ao pedir a cura da filha. «A força interior desta mulher, que permite superar qualquer obstáculo — observou — deve ser procurada no seu amor materno e na certeza de que Jesus pode atender o seu pedido». Por conseguinte, o testemunho da mãe demonstra «que é o amor que move a fé e, por sua vez, a fé torna-se o prémio do amor». De resto, é o próprio Jesus que indica a mulher «como exemplo de fé ina- balável». Eis por que a perseveran- ça, insistiu o Pontífice, «é para nós estímulo a não desanimar, a não desesperar quando somos oprimi- dos pelas provações difíceis da vi- da». Com efeito, o Senhor «não se volta para o outro lado diante das nossas necessidades e, se por vezes parece insensível aos pedidos de ajuda, é para pôr à prova e robuste- cer a nossa fé». Por nosso lado, «devemos continuar a gritar como esta mulher: “Senhor, ajuda-me! Se- nhor, ajuda-me!”», rezando «com perseverança e coragem», sobretu- do quando «o caminho já não é plano mas áspero e difícil». PÁGINA 3 Visita do cardeal secretário de Estado à Rússia Justiça para garantir a paz Diálogo ecuménico, cooperação entre as confissões religiosas, cenários in- ternacionais de conflitos e crises humanitárias, terrorismo fundamentalis- ta, tutela dos direitos humanos e emergência ambiental estiveram no cen- tro dos colóquios do cardeal secretário de Estado, Pietro Parolin, com os chefes da Igreja ortodoxa e com as mais altas autoridades civis da Fede- ração russa, durante a visita realizada àquele país de 21 a 24 de agosto. PÁGINA 4 O encontro em Sochi do secretário de Estado, Pietro Parolin com o presidente russo Vladimir Putin (Reuters)

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Page 1: Preço € 1,00. Número atrasado € 2,00 OL’ S S E RVATOR E … · com todos os crentes e os homens e mulheres de boa vontade», convi-dando-os a «dar resposta aos nume-rosos

Preço € 1,00. Número atrasado € 2,00

L’O S S E RVATOR E ROMANOEDIÇÃO SEMANAL

Unicuique suum

EM PORTUGUÊSNon praevalebunt

Ano XLVIII, número 34 (2.478) Cidade do Vaticano quinta-feira 24 de agosto de 2017

y(7HB5G3*QLTKKS( +/!z!{!%!&!

Mensagem para o dia mundial do migrante e do refugiado

Acolher, proteger, promover, integrarAcolher, proteger, promover e inte-grar: articula-se «ao redor destesquatro verbos fundados sobre osprincípios da doutrina da Igreja» amensagem que o Papa Franciscoemanou em vista do próximo diamundial do migrante e do refugiado,que será celebrado a 14 de janeiro de2018.

Reafirmando a sua «especial preo-cupação» pela situação de tantos ho-mens e mulheres «que fogem dasguerras, das perseguições, dos desas-tres naturais e da pobreza», o Pontí-fice recordou que «cada forasteiroque bate à nossa porta é ocasião deencontro com Jesus Cristo». Distonasce «uma grande responsabilida-de» que a Igreja «deseja partilharcom todos os crentes e os homens emulheres de boa vontade», convi-dando-os a «dar resposta aos nume-rosos desafios colocados pelas mi-grações contemporâneas com gene-rosidade, prontidão, sabedoria e cla-rividência».

Especificamente, Francisco pediu«possibilidades mais amplas de en-trada segura e legal nos países dedestino» e invocou «um empenhoconcreto para incrementar e simplifi-car a concessão de vistos humanitá-rios e para a reunificação familiar».Ao mesmo tempo, formulou votos afim de que um número cada vezmaior de países «abram corredoreshumanitários para os refugiadosmais vulneráveis», prevendo ainda«vistos temporários especiais para aspessoas que fogem de conflitos nospaíses confinantes». O Papa reafir-mou o seu não às «expulsões coleti-vas e arbitrárias de migrantes e refu-giados» e voltou a frisar a importân-cia de lhes oferecer «um primeiroalojamento adequado e decente».

Insistindo sobre a necessidade deuma proteção adequada na pátria eem terras de imigração, o Pontíficepediu que a todos sejam concedidos«a liberdade de movimento no paísde acolhimento, a possibilidade detrabalhar e o acesso aos meios de te-lecomunicação». Para os menores,em particular, a mensagem insistiusobre a necessidade de «evitar qual-quer forma de detenção» e de garan-tir «o acesso regular à educação».Quanto à questão da nacionalidade,o Papa afirmou que «no respeito pe-lo direito universal», esta «deve serreconhecida e devidamente certifica-da a todos os meninos e meninas no

momento do seu nascimento». Alémdisso, «o status migratório não deve-ria limitar o acesso à assistência mé-dica nacional e de previdência so-cial, nem à transferência das respeti-

vas contribuições em caso de repa-triamento». Aos «estrangeiros pre-sentes no território» devem ser ga-rantidas também «a liberdade deprofissão e prática religiosa» e «a in-

tegração sociolaboral», acompanha-da por «percursos de formação lin-guística e cidadania ativa». Contudodeve ser sempre promovida a integri-dade da família «favorecendo a reu-nificação familiar — com a inclusãode avós, irmãos e netos — sem nuncao fazer depender de requisitos eco-nómicos».

A propósito de integração, a men-sagem do Pontífice evidenciou «asoportunidades de enriquecimento in-tercultural geradas pela presença demigrantes e refugiados» e exortou afavorecer este processo inclusive«através da oferta de cidadania inde-pendentemente de requisitos econó-micos e linguísticos, e de percursosde regularização extraordinária paramigrantes que possuam uma longapermanência no país».

PÁGINAS 8 E 9

Recordação do teólogo argentino

Onde a fétem uma cor especial

JORGE MARIO BERGO GLIONAS PÁGINAS 10 E 11

No Angelus a dor e a oração do Papa pelos atentados no Burquina Faso, Espanha e Finlândia

Um momento de silêncioO Papa Francisco voltou a expres-sar a sua dor pelos sanguinolentosatos terroristas dos quais foram víti-mas nos dias passados alguns paísesafricanos e europeus. No Angelusde domingo 20 de agosto, na praçade São Pedro, o Pontífice recordouos recentes ataques ocorridos noBurquina Faso, na Espanha e naFinlândia. «Oremos por todos osdefuntos, pelos feridos e pelos seusfamiliares, e supliquemos ao Se-nhor, Deus de misericórdia e depaz, para que liberte o mundo des-ta violência desumana» exortouconvidando os fiéis a um momentode silêncio, ao qual se seguiu a reci-tação de uma Ave-Maria.

Anteriormente, comentando oepisódio do encontro de Jesus coma mulher cananeia narrado no evan-gelho de Mateus (15, 21-28), o Papafrisou a insistência da mãe ao pedira cura da filha. «A força interiordesta mulher, que permite superarqualquer obstáculo — observou —deve ser procurada no seu amormaterno e na certeza de que Jesuspode atender o seu pedido».

Por conseguinte, o testemunhoda mãe demonstra «que é o amorque move a fé e, por sua vez, a fétorna-se o prémio do amor». Deresto, é o próprio Jesus que indicaa mulher «como exemplo de fé ina-balável». Eis por que a perseveran-ça, insistiu o Pontífice, «é para nósestímulo a não desanimar, a nãodesesperar quando somos oprimi-dos pelas provações difíceis da vi-da». Com efeito, o Senhor «não sevolta para o outro lado diante das

nossas necessidades e, se por vezesparece insensível aos pedidos deajuda, é para pôr à prova e robuste-cer a nossa fé». Por nosso lado,«devemos continuar a gritar comoesta mulher: “Senhor, ajuda-me! Se-

nhor, ajuda-me!”», rezando «comperseverança e coragem», sobretu-do quando «o caminho já não éplano mas áspero e difícil».

PÁGINA 3

Visita do cardeal secretário de Estado à Rússia

Justiça para garantir a paz

Diálogo ecuménico, cooperação entre as confissões religiosas, cenários in-ternacionais de conflitos e crises humanitárias, terrorismo fundamentalis-ta, tutela dos direitos humanos e emergência ambiental estiveram no cen-tro dos colóquios do cardeal secretário de Estado, Pietro Parolin, com oschefes da Igreja ortodoxa e com as mais altas autoridades civis da Fede-ração russa, durante a visita realizada àquele país de 21 a 24 de agosto.

PÁGINA 4

O encontro em Sochi do secretário de Estado, Pietro Parolincom o presidente russo Vladimir Putin (Reuters)

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página 2 L’OSSERVATORE ROMANO quinta-feira 24 de agosto de 2017, número 34

L’OSSERVATORE ROMANOEDIÇÃO SEMANAL

Unicuique suumEM PORTUGUÊSNon praevalebunt

Cidade do Vaticanoed.p [email protected]

w w w. o s s e r v a t o re ro m a n o .v a

GI O VA N N I MARIA VIANd i re t o r

Giuseppe Fiorentinov i c e - d i re t o r

Redaçãovia del Pellegrino, 00120 Cidade do Vaticano

telefone +390669899420fax +390669883675

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O que salva «a barca» da Igreja donaufrágio não são «a coragem nem asqualidades dos homens» mas «a fé emCristo e na sua palavra», recordou oPapa no Angelus de domingo 13 deagosto, na praça de São Pedro.

Queridos irmãos e irmãs, bom dia!Hoje a página do Evangelho (Mt 14,22-33) descreve o episódio de Jesusque, depois de ter rezado a noite in-teira à margem do lago da Galileia,se dirige à barca dos seus discípulos,caminhando sobre as águas. A barcaencontra-se no meio do lago, blo-queada por um forte vento contrá-rio. Quando veem Jesus a caminharsobre as águas, os discípulos confun-dem-no com um fantasma e sentemmedo. Mas ele tranquiliza-os: «Tran-quilizai-vos, sou eu; não temais!» (v.27). Pedro, com o seu ímpeto carate-rístico, diz-lhe: «Se és tu, Senhor,manda-me ir ter contigo sobre aságuas»; e Jesus chama-o «Vem» (vv.28-29). Descendo da barca Pedro ca-minhou sobre as águas para ir tercom Jesus; mas sentindo a violênciado vento teve medo, começou aafundar e gritou: «Salva-me, Se-nhor!». Jesus estendeu-lhe a mão esegurou-o (vv. 30-31).

Esta narração do Evangelho con-tém um simbolismo rico e faz-nos

refletir sobre a nossa fé, quer comoindivíduos quer como comunidadeeclesial, também a fé de todos nósque estamos aqui hoje na Praça. Acomunidade, esta comunidade ecle-sial, tem fé? Como é a fé em cadaum de nós e a fé da nossa comuni-dade? A barca é a vida de cada umde nós mas é também a vida daIgreja; o vento contrário representaas dificuldades e as provações. A in-vocação de Pedro: «Senhor, manda-me ir ter contigo!» e o seu grito:«Salva-me, Senhor!» assemelham-seao nosso desejo de sentir a proximi-dade do Senhor, mas também o me-do e a angústia que acompanham osmomentos mais difíceis da nossa vi-da e das nossas comunidades, mar-cadas por fragilidades internas e di-ficuldades externas.

Naquele momento a Pedro não foisuficiente a palavra segura de Jesus,que era como uma corda estendidana qual segurar-se para enfrentar aságuas hostis e turbulentas. Isto podeacontecer também a nós. Quandonão nos agarramos à palavra do Se-nhor, para ter mais segurança con-sultamos horóscopos e cartomantes,começamos a afundar. Significa quea fé não é tão firme. O Evangelhode hoje recorda-nos que a fé no Se-nhor e na sua palavra não nos abre

um caminho onde tudo é fácil etranquilo; não nos livra das tempes-tades da vida. A fé oferece-nos a se-gurança de uma Presença, a presen-ça de Jesus, que nos impele a supe-rar os temporais existenciais, a certe-za de uma mão que nos segura a fimde nos ajudar a enfrentar as dificul-dades, indicando-nos a estrada in-clusive quando está escuro. A fé nãoé um subterfúgio para os problemasda vida mas apoia no caminho, dan-do-lhe sentido.

Este episódio é uma imagem ma-ravilhosa da realidade da Igreja detodos os tempos: uma barca que, aolongo da travessia, deve enfrentaraté ventos contrários e tempestades,que ameaçam virá-la. O que a salvanão são a coragem nem as qualida-des dos seus homens: a garantia

contra o naufrágio é a fé em Cristo ena sua palavra. Esta é a garantia: afé em Jesus e na sua palavra. Dentrodesta barca estamos em segurança,não obstante as nossas misérias efragilidades, sobretudo quando nospomos de joelhos e adoramos o Se-nhor, como discípulos que, no final,«se prostaram diante dele, dizendo:“És realmente o Filho de Deus!”» (v.33). Que bonito dizer a Jesus estafrase: «És realmente o Filho deDeus!». Digamos todos juntos? «Ésrealmente o Filho de Deus!».

A Virgem Maria nos ajude a per-manecer firmes na fé para resistir àstempestades da vida, a persistir nabarca da Igreja refutando a tentaçãode subir nos barcos encantadoresmas inseguros das ideologias, dasmodas e dos slogans.

Prece dominical de 13 de agosto

Na barca da Igreja

Oitenta projetos financiados por #popeforukraine

Em primeiro lugar as criançasDurante o ano passado foram realizados aproxi-madamente oitenta projetos, graças à iniciativadenominada «O Papa pela Ucrânia»: a angaria-ção de fundos feita nas Igrejas do velho continen-te a seguir à coleta extraordinária destinada a essepaís do leste europeu, lançada pelo Pontífice a 24de abril de 2014.

Informações detalhadas encontram-se no sitepopeforukraine.com continuamente atualizado so-bre os programas aprovados e realizados: o acam-pamento de verão para um grupo de 86 criançasprovenientes das áreas “cinzentas” do Donbass,que assim puderam passar um período de fériasem Savudrija, na Croácia, assistidos pela Cáritasucraniana; e a assistência garantida à associaçãoEmmanuel para projetos de ajuda às populaçõesvítimas do conflito nos territórios orientais. Tam-bém neste caso — explicou a coordenadora GalinaKucher — em primeiro lugar «o dinheiro destina-se à organização dos acampamentos de verão cha-mados “territórios de paz” nas mesmas áreas atin-gidas, a favor de duas mil crianças» e, em segun-do lugar, à distribuição de caldeiras para 1.410 fa-mílias nos povoados de Krasnogorivka e Maryin-ka. Neste último centro serão instaladas tambémcaldeiras móveis em dois jardins de infância quepodem receber 600 crianças cada um, para quepossam voltar à escola. Enfim, será remodeladoum hospital em Kramatorsk e uma pequena quo-ta servirá para construir um poço no povoado deBakmukta.

Entretanto, a nunciatura apostólica na Ucrâniacomunicou que findou o previsto ano de ativida-des, encerrando a tarefa que lhe tinha sido confia-da, a comissão técnica constituída pela Secretariade Estado em junho de 2016 para avaliar os proje-tos de #popeforukraine. Efetivamente, a partir dodia 31 de agosto ela será substituída por uma se-cretaria técnica, também esta desejada pela SantaSé.

Desde a sua criação, a comissão presidida porD. Jan Sobilo, bispo auxiliar de Kharkiv-Zapori-zhia, supervisionou as situações presentes naUcrânia, destinando os fundos angariados às pes-soas mais vulneráveis. Foram delineados os crité-rios de seleção e aprovados os procedimentos derealização e revisão, tendo como parceiras organi-zações nacionais e internacionais, fundações decaridade e comunidades paroquiais que imple-mentaram programas de assistências sobretudo afavor dos deslocados nas regiões de Donetsk,Luhansk, Zaporizhzia, Dnipro e Kharkiv. Agoratudo passa sob o controlo da secretaria técnica,que começará a trabalhar em Kiev a partir de 1 desetembro, com a função de continuar as colabora-ções com as agências já identificadas pela comis-são e de completar o trabalho com novos proje-tos, que serão apresentados e examinados de for-ma simplificada. Coordenador será o D. EdwardKawa, dos frades menores conventuais, bispo au-xiliar da arquidiocese latina de Lviv, e D. Kenne-th Nowakowski bispo da eparquia greco-católicade New Westminster no Canadá, desempenhará afunção de consultor.

A Secretaria de Estado pediu ao núncio apostó-lico em Kiev, D. Claudio Gugerotti, que manifes-te profundo apreço e gratidão à comissão «O Pa-pa pela Ucrânia» e, em especial, ao seu presiden-te, pela dedicação, generosidade e eficácia daobra realizada, desejando bom trabalho à nova se-cretaria técnica e agradecendo-lhe a disponibilida-de manifestada.

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número 34, quinta-feira 24 de agosto de 2017 L’OSSERVATORE ROMANO página 3

Oração mariana na solenidade da Assunção

Por todos os povosque sofrem

O Papa Francisco confiou a Maria«as ansiedades e as dores daspopulações que em tantas partes domundo sofrem por causa decalamidades naturais, de tensões sociaisou de conflitos». Fê-lo no final doAngelus da solenidade da Assunção,recitado com os fiéis na praça de SãoPedro na manhã de 15 de agosto.

Queridos irmãos e irmãs, bom dia!Hoje, solenidade da Assunção daBem-Aventurada Virgem Maria, oEvangelho apresenta-nos a jovem deNazaré que, tendo recebido o anún-cio do Anjo, parte depressa para irter com Isabel, nos últimos meses dasua gravidez prodigiosa. Ao chegar àsua casa, Maria ouve dos seus lábiosas palavras que compõem a oraçãoda “Ave-Maria”: «Bendita és tu en-tre as mulheres e bendito é o frutodo teu ventre» (Lc 1, 42). Com efei-to, o maior dom que Maria oferece aIsabel — e ao mundo inteiro — é Je-sus, que já vive nela; e vive não sópor fé e expetativa como em tantasmulheres do Antigo Testamento: daVirgem Jesus assumiu a carne huma-na para a sua missão de salvação.

Na casa de Isabel e do seu maridoZacarias, onde antes reinava a triste-za pela falta de filhos, agora há aalegria da chegada de um bebé: ummenino que se tornará o grandeJoão Batista, precursor do Messias.

E quando Maria chega, a alegriatransborda e rebenta dos corações,porque a presença invisível mas realde Jesus a tudo dá sentido: a vida, afamília, a salvação do povo... Tudo!Esta alegria plena exprime-se com a

voz de Maria na oração maravilhosaque o Evangelho de Lucas nostransmitiu e que, desde a primeirapalavra latina, se chama Magnificat.É um canto de louvor a Deus querealiza grandes coisas através daspessoas humildes, desconhecidas aomundo, como a própria Maria, o seuesposo José, e também o lugar noqual vivem, Nazaré. As grandes coi-sas que Deus realizou com as pes-soas humildes, as coisas grandes queo Senhor faz no mundo com os hu-mildes, porque a humildade é comoum vazio que deixa espaço a Deus.O humilde é poderoso porque é hu-milde: não porque é forte. Esta é agrandeza do humilde e da humilda-de. Gostaria de vos perguntar — etambém a mim mesmo — sem res-ponder em voz alta, cada um res-ponda no coração: “Como está a mi-nha humildade?”.

O Magnificat canta o Deus mise-ricordioso e fiel, que cumpre o seudesígnio de salvação com os peque-nos e os pobres, com os que têm fén’Ele, que confiam na sua Palavra,como Maria. Eis a exclamação deIsabel: «Feliz daquela que acredi-tou» (Lc 1, 45). Naquela casa, a vin-da de Jesus através de Maria criouum clima não só de alegria e de co-munhão fraterna mas também de féque leva à esperança, à oração e aol o u v o r.

Gostaríamos que tudo isto aconte-cesse também hoje nas nossas casas.Celebrando a Assunção de MariaSantíssima ao Céu, peçamos queEla, mais uma vez traga a nós, àsnossas famílias, às nossas comunida-des, aquele dom imenso, única graçaque devemos pedir sempre em pri-meiro lugar e acima das outras gra-ças embora todas nos estejam a pei-to: a graça que é Jesus Cristo!

Dando-nos Jesus, Nossa Senhoraoferece-nos também uma alegria no-va, plena de significado; concede-nos uma nova capacidade de atra-vessar com fé os momentos mais do-lorosos e difíceis; doa-nos a capaci-dade de misericórdia, para nos per-doar, nos compreender, nos apoiarrecipro camente.

Maria é modelo de virtude e fé.Ao contemplá-la hoje elevada aoCéu, ao cumprimento final do seuitinerário terreno, demos-lhe graçasporque sempre nos precede na pere-grinação da vida e da fé — é a pri-meira discípula. E peçamos-lhe quenos guarde e nos apoie; que possa-mos ter uma fé firme, jubilosa e mi-sericordiosa; que nos ajude a sersantos, para nos encontrar com ela,um dia, no Paraíso.

Depois, o Papa dirigiu-se aos presentescom estas palavras.

A Maria Rainha da paz, que con-templamos hoje na glória do Paraí-so, gostaria de confiar mais uma vezas ansiedades e as dores das popula-ções que em tantas partes do mundosofrem por causa de calamidades na-turais, de tensões sociais ou de con-flitos. Que a nossa Mãe celeste obte-nha para todos consolação e um fu-turo de serenidade e de concórdia!

Durante o Angelus de 20 de agosto o Pontífice exortou a perseverar na fé

A fortaleza das mulheres«Com a sua fortaleza» as mulheres «são capazes de obtercoisas grandiosas». Afirmou o Papa no Angelus dedomingo, 20 de agosto, na praça de São Pedro,comentando o episódio evangélico do encontro de Jesus coma mulher cananeia.

Queridos irmãos e irmãs, bom dia!O Evangelho de hoje (Mt 15, 21-28) apresenta-nos umexemplo singular de fé no encontro de Jesus com umamulher cananeia, uma estrangeira em relação aos ju-deus. A cena desenvolve-se quando Ele está a caminhoda cidade de Tiro e Sidom, a nordeste da Galileia: éaqui que a mulher implora Jesus para que cure a suafilha a qual — diz o Evangelho — «é muito atormenta-da por um demónio» (v. 22). O Senhor, num primeiromomento, parece não ouvir este grito de dor, a pontode suscitar a intervenção dos discípulos que intercedempor ela. O aparente desinteresse de Jesus não desenco-raja esta mãe, que insiste na sua invocação.

A força interior desta mulher, que permite superarqualquer obstáculo, deve ser procurada no seu amormaterno e na confiança de que Jesus pode atender o seupedido. E isto faz-me pensar na força das mulheres.Com a sua fortaleza são capazes de obter coisas gran-diosas. Conhecemos tantas! Podemos dizer que é oamor que move a fé e, por seu lado, a fé torna-se oprémio do amor. O amor profundo à própria filha a in-duz «a gritar»: “tem piedade de mim, Senhor, filho deD avid”» (v. 22). E a fé perseverante em Jesus permite-lhe não desanimar nem sequer face à sua inicial rejei-ção; assim a mulher «prostrou-se diante dele dizendo:“Senhor, ajuda-me”» (v. 25).

No final, perante tanta perseverança, Jesus fica ad-mirado, quase estupefacto, com a fé de uma mulherpagã, e satisfaz o seu pedido dizendo: «“Mulher, égrande a tua fé! Seja feito o que desejas”. E a partirdaquele instante a sua filha ficou curada» (v. 28). Estamulher humilde é indicada por Jesus como exemplo defé inabalável. A sua insistência em invocar a intenven-ção de Cristo é para nós estímulo a não desanimar, anão desesperar quando estamos oprimidos pelas prova-ções difíceis da vida. O Senhor não se vira para o ou-tro lado diante das nossas necessidades e, se por vezesparece insensível aos pedidos de ajuda, é para pôr à

prova e enrobustecer a nossa fé. Nós devemos conti-nuar a gritar como esta mulher: «Senhor, ajuda-me!Senhor, ajuda-me!». Assim, com perseverança e cora-gem. É esta a coragem necessária na oração.

Este episódio evangélico ajuda-nos a compreenderque todos temos necessidade de crescer na fé e fortale-cer a nossa confiança em Jesus. Ele pode ajudar-nos aencontrar o caminho, quando perdemos a orientaçãodo nosso rumo; quando o percurso já não é plano masáspero e difícil; quando é cansativo manter-nos fiéisaos nossos compromissos. É importante alimentar to-dos os dias a nossa fé, com a escuta atenta da Palavrade Deus, com a celebração dos Sacramentos, com aoração pessoal como «grito» dirigido a Ele — « S e n h o r,ajuda-me!» — e com atitudes concretas de caridade pa-ra com o próximo.

Recomendemo-nos ao Espírito Santo para que Elenos ajude a perseverar na fé. O Espírito infunde audá-cia no coração dos crentes; confere à nossa vida e aonosso testemunho cristão a força da persuasão; encora-ja-nos a vencer a incredulidade em relação a Deus e aindiferença para com os irmãos.

A Virgem Maria nos torne cada vez mais conscientesda nossa necessidade do Senhor e do seu Espírito; nosobtenha uma fé forte, cheia de amor, e um amor quesabe tornar-se súplica, súplica corajosa a Deus.

No final da prece mariana, antes de saudar os grupos defiéis, o Pontífice expressou de novo a sua dor pelosatentados terroristas ocorridos nos dias passados noBurquina Faso, Espanha e Finlândia.

Temos nos nossos corações a dor pelas ações terroristasque, nos últimos dias, fizeram numerosas vítimas noBurquina Faso, na Espanha e na Finlândia. Rezemospor todos os defuntos, pelos feridos e pelos seus fami-liares; e supliquemos ao Senhor, Deus de misericórdiae de paz, que liberte o mundo desta violência desuma-na. Rezemos juntos em silêncio e, depois, a Nossa Se-nhora.

[Ave-Maria...]Desejo a todos bom domingo. Por favor, não vos es-

queçais de rezar por mim. Bom almoço e até à vista!

Stephen B. Whatley«Assunção da Virgem Maria» (2008)

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página 4 L’OSSERVATORE ROMANO quinta-feira 24 de agosto de 2017, número 34

O cardeal Parolin encontrou-se na Rússia com o ministro dos negócios estrangeiros Lavrov

Justiça e legalidade para garantir a pazNa manhã de terça-feira 22 de agosto,segundo dia de encontros oficiais para osecretário de Estado que visitou a Fe-deração Russa de 21 a 24, o cardealPietro Parolin encontrou-se em Mosco-vo com o ministro dos Negócios estran-geiros Sergiey Lavrov. No final da pri-meira parte do colóquio, teve lugaruma conferência de imprensa durante aqual o purpurado proferiu a seguinted e c l a ra ç ã o .

Senhor MinistroSenhoras e Senhores!

Acabamos de concluir a primeirae intensa parte dos nossos colóquioscom o senhor ministro Sergiey La-vrov, através de cuja pessoa expressoo meu agradecimento às autoridadesrussas pelo convite e pelo acolhi-mento cordial no país.

Vim a Moscovo para me fazer in-térprete junto dos meus interlocuto-res — hoje o ministro Lavrov e ama-nhã o presidente da Federação Rus-sa, Vladimir Putin — da solicitudedo Papa Francisco, tanto pela situa-ção bilateral entre a Santa Sé e a Fe-deração Russa, como pelas questõese preocupações no âmbito interna-cional.

Nas relações bilaterais, partilhá-mos a satisfação acerca dos desen-volvimentos em vários âmbitos, co-meçando pelos frequentes contactosa nível dos altos representantes deambas as Partes, e prosseguindo coma resenha das experiências positivasno âmbito dos intercâmbios culturaise da colaboração entre os institutoscientíficos e médicos. É óbvio quefoi confirmada por ambas as Partesa intenção de continuar também nofuturo a tecer relações em todos oscampos supracitados. Testemunha econfirma esta intenção a assinaturado Acordo entre a Secretaria de Es-tado da Federação Russa acerca daisenção dos vistos para os titularesde passaportes diplomáticos, à qualpresenciámos há pouco juntamentecom o ministro Lavrov.

Evidentemente, o colóquio pro-porcionou a ocasião para discutirtambém sobre algumas questõesconcretas relativas à vida da Igrejacatólica na Federação Russa, entre asquais as dificuldades que ainda per-sistem relativamente às autorizaçõesde residência por motivos de traba-lho, para o pessoal religioso não rus-so, e a restituição de algumas igrejasque se tornam necessárias para a cu-ra pastoral dos católicos no país,constatando no interlocutor grandeatenção no respeitante à soluçãodestes problemas e a vontade de osa c o m p a n h a r.

No campo das questões de inte-resse internacional reafirmei antes demais os votos de que sejam procura-das soluções justas e permanentespara os conflitos que atormentam,em particular, o Médio Oriente, aUcrânia e várias outras regiões domundo. Se, nestas situações dramáti-cas a Santa Sé está mais diretamenteativa no esforço de promover inicia-tivas destinadas a aliviar os sofri-mentos das populações, ao mesmotempo expressa o claro apelo a fazerprevalecer o bem comum, e sobretu-do a justiça, a legalidade, a verdadedos factos e a abstenção da manipu-

lação dos mesmos, a incolumidade eas condições de vida dignas das po-pulações civis. A Santa Sé não pre-tende nem pode identificar-se comqualquer uma das posições políticas,mas chama ao dever de se ater rigo-rosamente aos grandes princípios dodireito internacional, cujo respeito éimprescindível tanto para proteger aordem e a paz mundial, como para

recuperar uma atmosfera sadia derespeito recíproco nas relações inter-nacionais.

Entre as temáticas sobre as quais aSanta Sé e a Federação Russa en-contram pontos de convergência,mesmo se com abordagens diferen-tes, mencionamos antes de tudo agrande preocupação pela situaçãodos cristãos nalguns países do Mé-

dio Oriente e do continente africa-no, assim como nalgumas outras re-giões do mundo. A este propósito, aSanta Sé nutre a preocupação cons-tante para que seja preservada a li-berdade religiosa em qualquer Esta-do e situação política.

Penso que poderemos retomar es-tas e outras temáticas também nospróximos encontros de hoje.

Um momento do colóquio do secretário de Estado com o ministro Lavrov

Uma nova etapaO secretário de Estado iniciou asua visita à Federação Russa na se-gunda-feira 21, encontrando-se como Metropolita Hilarion de Voloko-lamsk, presidente do Departamentopara as relações externas do patriar-cado de Moscovo. Entre os temastratados, pôr fim ao terrorismo naSíria para chegar, depois da conse-cução da paz, a determinar o futuropolítico do país. Na tarde do mes-mo dia, o secretário de Estado en-controu-se com os bispos católicoslocais e à noite celebrou a missa nacatedral da Imaculada Conceiçãode Moscovo.

A visita à Rússia é «uma ocasiãopropícia para verificar e consolidaras nossas relações bilaterais que são

de alto nível». Declarou o cardealParolin, na manhã de 22 de agosto,antes do encontro com o ministroLavrov o qual, por seu lado, disseque a Rússia e a Santa Sé têm«proximidade de pontos de vistasobre as crises globais, os temas dapaz, da justiça social e dos valoresda família», e expressou grande sa-tisfação porque as relações com oVaticano estão «em crescimento, atéao máximo nível», frisando que avisita de Parolin é a «primeira deum secretário de Estado à Rússianeste século». À margem do encon-tro, respondendo aos jornalistas emrelação à situação na Venezuela, opurpurado afirmou que a Rússia«pode servir de ajuda neste mo-

mento difícil» porque, tendo rela-ções estreitas com esse país, «podecontribuir para o diálogo». Diálogoque, «segundo a Santa Sé, é a úni-ca via para resolver a crise».

Na tarde do mesmo dia o cardealParolin encontrou-se com o patriar-ca Cirilo. Juntos, católicos e orto-doxos, para apoiar as populaçõesque sofrem e para construir e de-fender a paz no mundo. É este oterreno concreto sobre o qual pros-segue o caminho ecuménico. UmaIgreja que trabalha unida pela paz,foi a mensagem fundamental queemergiu do encontro.

«Saúda o meu irmão Cirilo, pa-triarca de Moscovo e de todas asRússias»: foi a mensagem confiadapelo Papa Francisco ao secretáriode Estado. Recebendo o purpuradono mosteiro Danilov, depois de terouvido as suas palavras de sauda-ção, Cirilo respondeu com igualcordialidade, utilizando a línguaitaliana, com um simples e afetuosoobrigado.

A situação dos cristãos e a crisehumanitária no Médio Oriente, ossofrimentos da população causadospelo conflito na Ucrânia foram ostemas principais do colóquio. Cirilofrisou que «o apoio comum aoscristãos no Médio Oriente ajudaráa levar as relações entre Igreja cató-lica e Igreja ortodoxa russa a umnível mais alto». A comum partici-pação de todo o mundo cristão em

CO N T I N UA NA PÁGINA 7O encontro do secretário de Estado com o patriarca ortodoxo, Cirilo (Ansa)

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número 34, quinta-feira 24 de agosto de 2017 L’OSSERVATORE ROMANO página 5

Na mensagem ao Meeting de Rímini o Papa convidou a voltar às origens

As grandes interrogaçõesPublicamos a mensagem do PapaFrancisco por ocasião da abertura, nodia 20 de agosto, da trigésima oitavaedição do Meeting de Rimini. O texto,assinado pelo cardeal secretário de Es-tado Pietro Parolin, foi enviado ao bis-po da cidade, D. Francesco Lambiasi.

Excelência ReverendíssimaEm nome do Santo Padre Franciscoe meu, dirijo uma cordial saudação aVossa Excelência, aos organizadorese aos participantes na XXXVIII ediçãodo Meeting para a amizade entre ospovos.

Os títulos do Meeting todos osanos exortam a refletir sobre aspetosda existência que o ritmo frenéticodo dia a dia com frequência leva adeixar entre parênteses. Parece quetudo nos é indiferente, tomados co-mo estamos pela ansiedade de virara página rapidamente. A vida frag-menta-se e corre o risco de se tornarárida. Por isso, de vez em quando éprecioso parar a fim de considerar asgrandes questões que definem o nos-so ser humano e que é impossível ig-norar totalmente.

Neste sentido podemos interpretartambém o tema do Meeting de 2017:«O que herdaste de teus pais, recon-quista-o, para possuí-lo» (Goethe,Fa u s t ). É um convite a reapropriar-nos das nossas origens a partir deuma história pessoal. Durante dema-siado tempo pensou-se que a heran-ça dos nossos pais permaneceriaconnosco como um tesouro que erasuficiente conservar para manter ace-sa a chama. Não foi assim: aquelefogo que ardia no peito de quantosnos precederam pouco a pouco seapagou.

Um dos limites das sociedadesatuais é ter pouca memória, liquidarcomo um fardo inútil e pesado oque nos precedeu. Mas isto tem con-sequências graves. Pensemos na edu-cação: como podemos esperar em fa-zer crescer as novas gerações semmemória? E como pensar em edifi-car o futuro sem tomar posição emrelação à história que gerou o nossopresente? Como cristãos não cultive-mos retornos nostálgicos a um pas-sado que já não existe. Ao contrário,olhemos para a frente com confian-ça. Não temos espaços a defender

porque o amor de Cristo não conhe-ce fronteiras insuperáveis. Vivemosnum tempo favorável para uma Igre-ja em saída, mas uma Igreja rica dememória, totalmente impelida pelovento do Espírito a ir ao encontrodo homem que busca uma razão pa-ra viver. São inumeráveis os indíciosda presença de Deus ao longo dahistória do mundo; de facto, tudo,começando pela criação, nos falad’Ele. O Deus real e vivo quis com-partilhar a nossa história: «O Verbofez-se carne e veio habitar no meiode nós» (Jo 1, 14). Deus não é umarecordação mas uma presença a aco-

narmos o porto seguro da nossaunião com o Pai, tornar-nos-emospresa dos caprichos e das vontadesdo momento, escravos dos “falsosinfinitos”, que prometem a lua, masque nos deixam desiludidos e tristes,na busca espasmódica de algo quepreencha o vazio do nosso coração.Como evitar este “alzheimer espiri-tual”? Existe um só caminho: atuali-zar as origens, o “primeiro Amor”,que não é um discurso nem um pen-samento abstrato mas uma Pessoa. Amemória grata por este início garan-te o impulso necessário para enfren-tar os desafios sempre novos queexigem respostas também novas,

do teve início!», e por isso é necessá-rio «voltar ali, àquele ponto incan-descente no qual a Graça de Deusme comoveu no início do caminho[...], quando Jesus passou pelo meucaminho, olhou-me com misericór-dia, pediu-me para o seguir; [...] re-cuperar a lembrança daquele mo-mento em que os seus olhos se cru-zaram com os meus» (FR A N C I S C O,Homilia na Vigília Pascal, 19 de abrilde 2014).

Aquele olhar precede-nos sempre,como nos recorda Santo Agostinho,falando de Zaqueu: «Foi olhado eentão viu» (Sermão 174, 4.4). Nuncanos devemos esquecer este início.Eis o que herdamos, o tesouro pre-cioso que devemos redescobrir todosos dias, se quisermos que seja nosso.O padre Giussani deixou uma ima-gem eficaz deste compromisso quenão podemos desertar: «Por nature-za, quem ama a criança põe na suamochila, sobre os ombros, o que demelhor viveu na vida [...]. Mas numcerto ponto, a natureza dá à criança,a quem era criança, o instinto de pe-gar na mochila e de a pôr diante dosolhos. [...] Por conseguinte deve tor-nar-se um p ro b l e m a o que nos disse-ram! Se não se tornar um problema,nunca amadurecerá [...]. Quando vêa mochila [...] compara o que hádentro, ou seja, o que a tradição lhepôs sobre os ombros, com os desejosdo seu coração: [...] exigência deverdade, de beleza, de bem. [...]. As-sim fazendo, adquire a sua fisiono-mia de homem» (Il rischio educativo,Milão 2005, 17-19).

“Reconquistar a própria herança”é um compromisso ao qual a MãeIgreja chama cada geração; e o San-to Padre convida a não se deixar as-sustar por dificuldades e sofrimen-tos, que fazem parte do caminho.Não nos é concedido olhar das va-randas para a realidade nem pode-mos permanecer comodamente sen-tados no sofá a ver o mundo quepassa diante de nós na T V. Só recon-quistando a verdade, a beleza e abondade que os nossos pais nosconfiaram poderemos viver comouma oportunidade a mudança deépoca na qual estamos imersos, co-mo ocasião para comunicar de modoconvincente aos homens a alegria doEvangelho.

Por isso o Papa Francisco exortaos organizadores e os voluntários doMe e t i n g a aguçar a vista a fim de re-conhecer os muitos sinais — mais oumanos explícitos — da necessidadede Deus como sentido último daexistência, de maneira que se possaoferecer às pessoas uma resposta vi-va às grandes questões do coraçãohumano. Também este ano, os visi-tantes possam ver em vós testemu-nhas confiáveis da esperança quenão desilude. Falai-lhes com os en-contros, as exposições, os espetácu-los e, antes de tudo, com a vossaprópria vida.

Enquanto recomenda que se rezepelo seu ministério, Sua Santidadeconcede de coração a Vossa Excelên-cia e a todos os participantes do Me -eting a desejada Bênção Apostólica.

Uno os meus votos pessoais e, naexpetativa de participar no dia con-clusivo no Me e t i n g , confirmo-mecom sentimentos de distinto obsé-quio.

lher sempre de novo, como o amadopara a pessoa que ama.

Há uma enfermidade que podeatingir os batizados e à qual o SantoPadre chama “alzheimer espiritual”:consiste em esquecer a história danossa relação pessoal com Deus,aquele primeiro Amor que nos con-quistou até nos tornar seus. Se nostornarmos “desmemoriados” do nos-so encontro com o Senhor, já nãoestaremos seguros de nada; então as-salta-nos o medo que paralisa todosos nossos movimentos. Se abando-

permanecendo sempre abertos àssurpresas do Espírito que sopra on-de quer.

Como chega até nós a grande tra-dição da fé? Como o amor de Jesusnos alcança hoje? Através da vida daIgreja, através de uma multidão detestemunhas que há dois mil anosrenovam o anúncio do evento doDeus-connosco e nos permitem revi-ver a experiência do início, como foipara os primeiros que O encontra-ram. Também para nós «a Galileia éo lugar da primeira chamada, onde tu-

Santa Missa celebrada na inauguração do Meeting deste ano

Francisco aos peruanos em vista da viagem

Para construir unidade e esperançaTrabalhar todos juntos para construir unidade e espe-rança: foi a exortação que o Papa Francisco confiou aopovo peruano, em vista da viagem apostólica de 18 a 21de janeiro de 2018. Um apelo que o Pontífice lançoucom uma mensagem vídeo, divulgada pelo cardealJuan Luis Cipriani Thorne, arcebispo de Lima. No ví-deo, filmado na Casa Santa Marta, Francisco dirigiu asua mensagem aos peruanos mantendo ao seu ladouma pequena imagem de São Martinho de Porres, reli-gioso da ordem dominicana que viveu a sua santidadeprecisamente em Lima.

O Papa quis em primeiro lugar confidenciar o seu«grande desejo» de ir ao Peru. «Sois um povo que temmuitos recursos» reconheceu. Mas, acrescentou, «o re-curso mais bonito que um povo pode ter é o recursodos santos». Sob este ponto de vista o Peru tem gran-des perspectivas, porque pode contar com «muitos egrandes santos que marcaram a América Latina». Tra-ta-se de «santos — afirmou Francisco — que construi-

ram a Igreja», levando em frente a sua missão «da dis-persão à unidade». Aliás, insistiu o Pontífice, «um san-to trabalha sempre nesta direção: a partir do que estádisseminado até à unidade». E é precisamente «o quefez Jesus: um cristão deve seguir este caminho».

Portanto, com esta mensagem vídeo, o Papa quisconvidar os peruanos a percorrer um verdadeiro cami-nho de unidade seguindo os testemunhos dos numero-sos santos bem conhecidos pelo povo e enraizados naprópria história do país. «Quem trabalha pela unidadeolha para a frente» disse. Mas, admoestou, é possívelolhar para frente também «com ceticismo e amargura».Uma atitude esta que certamente não é cristã. Porque«um cristão olha para a frente com esperança» e «es-pera alcançar o que o Senhor prometeu». E foi com es-te convite a criar unidade e a ter esperança que Fran-cisco marcou encontro para janeiro com todos os pe-ruanos, pedindo para que cadenciem a espera da via-gem com a oração recíproca.

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página 6 L’OSSERVATORE ROMANO quinta-feira 24 de agosto de 2017, número 34

A missão do Pontifício colégio por-tuguês, como «comunidade sacerdo-tal viva» ao serviço da Igreja local eda Igreja universal, «é ocupar-se daformação permanente dos sacerdo-tes», pondo-se com «todas as suasenergias e recursos na escola de Ma-ria». Deste modo os presbíteros po-derão viver como «discípulos do Se-nhor e peregrinos da fé seguindo obom Pastor, com a mesma generosi-dade, confiança e constância da Mãede Deus». Eis as indicações que D.Jorge Carlos Patrón Wong, secretá-rio para os seminários da Congrega-ção para o clero, sugeriu ao pronun-ciar-se no encontro entre sacerdotesestudantes e ex-estudantes do Ponti-fício colégio português realizado emFátima recentemente.

Referindo-se expressamente à es-piritualidade da cidade mariana por-tuguesa, o prelado recordou que «opovo de Deus provém de todas aspartes do mundo ao santuário deFátima, numa peregrinação de féque através desta porta santa que éNossa Senhora, abre o coração aoencontro com o Senhor». E, «pen-sando bem, a primeira peregrina dahistória da salvação foi precisamenteela, Maria». De facto, a jovem deNazaré não teve medo de «pôr emquestão os próprios projetos, de sairde si mesma e de confiar na promes-sa de Deus; assim, acolhendo comtrepidação, alegria e ansiedade oanúncio do Anjo, pôs-se imediata-mente a caminho, como peregrinada fé: primeiro indo ter com Isabelsua prima, depois, durante toda asua vida fez-se discípula daquele Fi-lho que tinha carregado no ventre,até à hora dolorosa da morte nac ru z » .

«Portanto, se Maria, mãe e mode-lo de fé, se fez discípula e serva doFilho e da humanidade — frisou D.Patrón Wong — então este é tambémo programa de vida de um sacerdo-te: crescer e formar-se para ser sem-pre discípulo e servo do Senhor e dop ovo».

De resto, observou evocando emparticular a experiência do instituto,o colégio não é «só um espaço físicoe anónimo no qual residir enquantose completam os estudos de especia-lização mas um lugar de vida sacer-dotal, no qual se cresce nas relaçõeshumanas, na partilha da oração e nafraternidade presbiteral».

«Não devem existir outras motiva-ções na nossa vida, no nosso percur-so espiritual e no exercício do nossoministério», sugeriu. Porque, conti-nuou, «devemos ser animados pelodesejo de uma experiência cada vezmais intensa de amor e de consagra-ção com aquele Deus que nos cha-mou, tornando-nos uma ponte a fimde que a esta experiência de graçapossam aceder as pessoas que en-contramos».

Depois o secretário da Congrega-ção referiu-se à nova Ratio funda-mentalis, promulgada a 8 de dezem-bro passado, que definiu a formaçãosacerdotal como «um único e inin-terrupto caminho discipular e mis-sionário» no seguimento de Cristo.Portanto, relevou, «só por comodi-dade pedagógica podemos distinguirformação inicial e permanente poisna realidade o caminho formativo éúnico e dura a vida inteira, abran-gendo as dimensões humana, espiri-tual, académica e pastoral».

Esta experiência, «que faz amadu-recer a consagração sacerdotal e rea-

viva continuamente a caridade pas-toral do presbítero, nutre-se de mo-dalidades concretas que, de acordocom as circunstâncias da Igreja locale das faixas etárias dos sacerdotes»,são «mediadas e interpretadas comuma certa criatividade». Assim D.Patrón Wong referiu-se ao «desen-volvimento da fraternidade sacra-mental entre os sacerdotes, à direçãoespiritual e à confissão, aos exercí-cios espirituais, à experiência da par-tilha das refeições e de outros mo-mentos da vida pessoal ou ministe-rial, ao cuidado e ao acompanha-mento recíproco para que cada sa-cerdote, no caminho da vida, possaenfrentar os desafios pastorais e cul-turais e os aspetos mais difíceis co-mo a solidão, a sensação de falência,os momentos de crise».

«Por conseguinte, um colégio sa-cerdotal, longe de ser só um lugar euma experiência “de passagem” ouum simples instrumento “externo”ao percurso de vida sacerdotal —afirmou o arcebispo — é uma reali-dade formativa que, em muitos ca-sos, pode ser indispensável comoponto de união entre um “antes” eum “dep ois”». Com efeito, «podeacontecer que haja um “antes” re p re -sentado pela formação inicial do se-minário desde os primeiros meses ouanos de ordenação e de ministério, esucessivamente, um “dep ois”, quan-do ajudados por alguns anos a maisde idade e de experiência sacerdotale enriquecidos por um curso de es-tudo em Roma, penetramos total-mente na ação pastoral da Igreja lo-cal que fomos chamados a servir».

E «no meio destas duas fases —observou — há a experiência do colé-gio: um lugar de encontro, de con-fronto com as realidades extradioce-sanas do próprio país, de aspetosdiários da vida humana e do cami-nho espiritual, partilhados na alegriada fraternidade sacerdotal». Então ocolégio «não é só “o meu quarto”com “os meus exames universitários”a superar mas é o lugar no qual ca-da um é ajudado a vencer o próprioindividualismo e a partilhar o proje-to vocacional e o ministério presbite-ral».

Na conclusão, o arcebispo voltoua propor duas expressões do PapaFrancisco, que definiu o colégio por-tuguês «um viveiro de apóstolos eum ponto de união das Igrejas dosvossos países com Roma». Um «vi-veiro de apóstolos» porque o colégio«não serve só para oferecer uma ca-ma e para permitir que se realizemos estudos académicos, mas tambémpara fazer crescer e amadurecer to-dos os aspetos típicos do ser pastore apóstolo do Evangelho». E tam-bém «ponto de união», repetiu oprelado indicando o exemplo deMaria, porque ele, garantindo «umamadurecimento integral e de frater-nidade sacerdotal, pode oferecer agrande possibilidade de viver umaexperiência da Igreja romana e, vice-versa, também de levar algo deste al-cance universal para a própria Igrejalo cal».

Encontro em Fátima sobre a formação permanente dos sacerdotes

Na escola de Maria

Chega à África a proposta educativa de Scholas occurrentes para dar voz aos estudantes

Projeto Moçambique

Scholas occurrentes chegou a Moçambique envolvendoe dando voz, com a sua proposta educativa, a duzentosjovens que se confrontaram pela primeira vez sobre asquestões mais preocupantes: a difusão da toxicodepen-dência, as moléstias sexuais, a falta de serviços como osmeios de transporte públicos e o relacionamento comos professores. Nesta inédita experiência de formação ediálogo, realizada na Missão de Mangunze, os estu-dantes foram acompanhados pelo grupo internacionalde Scholas e também por trinta voluntários moçambi-canos, preparados para este serviço nos meses passadosna Argentina.

Pela primeira vez o programa «Scholas cidadania»realiza-se na África. Como já aconteceu noutros países,esta experiência não permaneceu fechada em si mesma:de facto, os conteúdos do confronto entre os estudan-

tes foram apresentados com muitas propostas concretasàs autoridades. Os estudantes denunciaram «os dema-siados obstáculos que ainda devem superar diariamen-te»: muitos deles, por exemplo, «caminham todos osdias de dez a vinte quilómetros, ida e volta, para che-gar às suas escolas partindo das zonas rurais e dosbairros de onde provêm». Portanto, pediu-se para ins-tituir «um transporte escolar para todos». Mas os pro-blemas não são só logísticos. Os jovens pediram expli-citamente «uma qualidade maior do ensino e da for-mação dos professores», além de «um melhoramentodas infraestruturas escolares e dos instrumentos para adidática». Depois, apontaram corajosamente às autori-dades discriminações e moléstias, denunciando alémdisso que, perto das escolas, há a venda ilegal de álco-ol e drogas, e invocando maior vigilância.

Ronaldo Mendes, «Nossa Senhora de Fátima»

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número 34, quinta-feira 24 de agosto de 2017 L’OSSERVATORE ROMANO página 7

Peregrinação ao santuário mariano com os emigrantes portugueses

Regresso a casa

Com a oração «pelos nossos nume-rosos irmãos e irmãs, obrigados a fu-gir da sua terra só porque têm o no-me de cristãos», os emigrantes por-tugueses marcaram encontro em Fá-tima para uma peregrinação que foiantes de tudo «um regresso a casa».Dois dias intensos, 12 e 13 de agosto,guiados pelo arcebispo Rino Fisi-chella, presidente do Pontifício con-selho para a promoção da novaevangelização. «Muitos de vós sa-bem o que significa a distância dacasa, da família, dos afetos, e vivernum país estrangeiro — disse o pre-lado — mas hoje voltastes aqui à ca-pelinha das aparições, porque esta éa vossa casa».

«Nos anos passados vós deixastesa família, o lar, a vossa cidade e Por-tugal e partistes para outros paísesem busca de um trabalho». Assim,«conhecestes o cansaço e a dificul-dade de aprender outra língua, deviver longe dos afetos, de encontraroutras tradições». Mas esta peregri-nação «é dedicada ao regresso a ca-sa, para voltar a falar na própria lín-gua, retomar as tradições que marca-ram a vossa história e o vosso estilode vida». E para os portugueses,«voltar para casa significa tambémfazer-se peregrinos à capelinha ondea Mãe de Deus nos recebe e nos fazsentir protegidos», pois «Nossa Se-nhora de Fátima está gravada no co-ração de cada português que a trazconsigo onde quer que vá: pertenceà identidade deste povo, e cada umsente que lhe pertence».

Dando início à peregrinação natarde do dia 12 de agosto, na capeli-nha das aparições, o prelado sugeriuque se aprofunde o significado destaexperiência: «Ser peregrino equivalea pôr-se a caminho para alcançar ameta, o verdadeiro peregrino sabeque deve enfrentar algumas dificul-dades: caminhar a pé, suportar atemperatura do calor ou do frio, vi-

ver com o estrito necessário, fazertudo isto com grande fé porque sesente movido pelo desejo de fixar osolhos da Mãe de Deus».

«Estamos aqui para rezar», disseD. Fisichella, convidando todos a in-vocar os santos Francisco e Jacinta edesejando que «depressa também aserva de Deus, irmã Lúcia, receba oreconhecimento que lhe é devido eassim também na santidade os trêspastorinhos estejam reunidos comoo u t ro r a » .

«Peçamos, antes de tudo, a graçade aprender todos os dias a rezarsem nos iludirmos de que já o sabe-mos fazer», disse. E «peçamos à Vir-gem Maria que nos ajude a orar co-mo Jesus nos ensinou, sem nos can-sarmos, tornando a nossa vida intei-ra uma oração que, mesmo se frágil,se eleva agradável a Deus».

Peçamos também «que inspire anossa oração a fim de que tudo serealize segundo a vontade do Pai enunca nos encontre fechados em nósmesmos e no nosso pecado, porquerelutantes a cumprir a sua vontade».

«Não procuremos noutro lugarnem fora de nós o sentido da nossavida», sugeriu o arcebispo. «O silên-cio que este lugar sagrado encerra éo conteúdo mais bonito e eficaz para

entrarmos em nós mesmos, no maisprofundo do nosso coração e ouvir avoz de Deus que nos fala e nosguia», continuou. De resto, «não de-vemos ter medo do silêncio, é o mo-mento mais importante quando esta-mos na presença de Deus e de suaMãe». Nalguns momentos, prosse-guiu, «o silêncio é a oração mais im-portante, porque é aquela do pobreciente de que nada possui e por issoestende as mãos para que sejam aco-lhidas pela Virgem Maria que comoMãe não deixa ninguém sem o seuamor». O silêncio «é a condição pa-ra ouvir deveras quanto nos queremdizer, é o espaço necessário para rea-lizar a escolha da nossa conversão».Em Fátima, particularmente, Maria«estende-nos as mãos para nos con-duzir a receber o dom do perdão eda reconciliação: é o momento paraexperimentar a misericórdia do Paique acolhe cada um de nós comoum filho».

Celebrando a missa no final datarde, o prelado recordou que «ocristão nunca está sozinho». Muitasvezes nos esquecemos que temosuma grande família e assim perde-mos «algo que tem um valor enor-me». Mas «nascemos numa famíliacristã, pertencemos a uma família

ainda maior que é a Igreja» e por is-so «não podemos fazer da oraçãoum ato particular». Além disso, afir-mou o arcebispo sugerindo um exa-me de consciência, «ser filhos deDeus e de Maria torna-nos responsá-veis por um estilo de vida coerente».Eis que devemos «fazer algo porquem se encontra em necessidade:por quantos já não sentem alegria efelicidade porque a tristeza predomi-nou; por quantos se afastaram e vãoerrantes pelas veredas que não levama nada; por quantos estão enfermose sofrem; por quantos se sentem in-seguros e torturados pela dúvida;por quantos já não têm casa, traba-lho, projetos; por quantos são objetode violência e abuso».

Infelizmente, observou D. Fisi-chella, «a lista poderia ser longa eimpiedosa quando se descrevem osmales e as pobrezas do nosso mun-do de hoje. Enquanto ela aumentacomo uma ladainha de dor, o quepermanece único e forte é o olhar deMaria que nos pede para oferecerajuda».

Uma linha de reflexão que se re-petiu na missa celebrada no domin-go 13, convidando a ter fé — segun-do o testemunho dos três pastori-nhos de Fátima — até «caminhar so-bre as águas» como Pedro. Sem nosdeixar amedrontar, afirmou, «pelasincertezas da vida, pelos momentosde dor e sofrimento nos quais nosparece que não somos ouvidos quan-do pedimos, porque não sabemospedir». Mas «quantas vezes — p ro s -seguiu — vivemos a experiência dopecado, do afastamento de Deus edo seu amor. Sentimo-nos talvez li-vres e contentes, mas é uma ilusão.Caímos cada vez mais no fundo,afastados de nós mesmos e incapazesde manter relações verdadeiras deamizade, sinceridade e amor. Cristosegura-nos e mantendo-nos estreitosa si não nos impede de ser livres,não nos faz mal, mas permite-nosdescobrir a verdadeira liberdade eabre diante de nós horizontes de paze alegria, tão desejados e nunca al-cançados, porque sem Ele nada po-demos fazer».

Na conclusão da peregrinação, oarcebispo repropôs aos migrantesportugueses a lição da «Mãe deDeus que, aqui em Fátima, nos re-corda a essência da vida cristã feitade conversão, silêncio, oração e tes-temunho da caridade».

Eugène Laermans,«Emigrantes» (1894)

CO N T I N UA Ç Ã O DA PÁGINA 4

projetos de ajuda à população —disse — terá «um efeito de unidademuito importante».

E as Igrejas podem desempenharum papel de pacificação tambémna dolorosa situação na Ucrânia:«Quando as pessoas estão em con-flito — disse o patriarca — a Igrejanão pode desempenhar nenhumoutro papel, a não ser o de pacifi-cadora. Os conflitos não duram pa-ra sempre e mais cedo ou mais tar-de acabam. Se todas as forças so-ciais estiverem envolvidas no confli-to, quem recolherá as pedras?».Debatendo sobre estes compromis-sos comuns, o patriarca e o secretá-rio de Estado frisaram que «come-çou deveras uma nova fase no de-senvolvimento das relações entre asduas Igrejas». Ponto de partida foio histórico encontro em Cuba em

fevereiro de 2016 entre Cirilo eFrancisco: um grande passo emfrente nas relações bilaterais, que ti-veram uma importante continuida-de com a recente transladação dasrelíquias de São Nicolau de Barique durante dois meses, desde maiopassado, estiveram expostas emMoscovo e em São Petersburgo.Comentando a grande afluência defiéis — mais de dois milhões — opatriarca falou de «um evento ex-cepcional para a história das nossasIgrejas», e o cardeal Parolin evocouo conceito de ecumenismo da santi-dade: «Os santos unem-nos porqueestão mais próximos de Deus e porconseguinte são os que mais nosajudam a superar as dificuldadesdas relações do passado devidas asituações antigas e a caminhar cadavez mais rapidamente rumo aoabraço fraterno e à comunhão euca-rística». E acrescentou: «Desenca-

deou-se uma dinâmica positiva: háa vontade da parte de todos deprosseguir o caminho e de fazer ou-tros sinais e gestos que o possamconsolidar». E acerca das possíveisiniciativas futuras disse: «O espíritodo Senhor sugerirá quais serão osmelhores passos a dar».

No dia 23 de agosto, na conclu-são da sua visita à Federação Rus-sa, o cardeal Parolin encontrou-secom o presidente Vladimir Putin naresidência de Sochi, nas margensdo Mar Negro. O serviço de im-prensa do Kremlin anunciou que oencontro prevê um intercâmbio deopiniões sobre as questões atuais daagenda internacional, em primeirolugar a condição dos cristãos noMédio Oriente e no Norte de Áfri-ca e a situação na Ucrânia. No diaseguinte o purpurado regressou aRoma.

O cardeal Parolin na Rússia

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número 34, quinta-feira 24 de agosto de 2017 L’OSSERVATORE ROMANO página 8/9

Mensagem para o dia mundial do migrante e do refugiado

Acolher, proteger, promover, integrarAcolher, proteger, promover e integrar:articula-se «ao redor destes quatro verbosfundados sobre os princípios da doutrinada Igreja» a mensagem que o PapaFrancisco emanou em vista do próximodia mundial do migrante e do refugiado,que será celebrado a 14 de janeiro de2018. A seguir, publicamos o texto damencionada mensagem pontifícia.

Acolher, protegerpromover e integrar os migrantes

e os refugiados

Queridos irmãos e irmãs«O estrangeiro que reside convosco

será tratado como um dos vossos com-patriotas e amá-lo-ás como a ti mesmo,porque foste estrangeiro na terra doEgito. Eu sou o Senhor, vosso Deus»(Lv 19, 34).

Repetidas vezes, durante estes meusprimeiros anos de pontificado, expres-sei especial preocupação pela triste si-tuação de tantos migrantes e refugiadosque fogem das guerras, das persegui-ções, dos desastres naturais e da pobre-za. Trata-se, sem dúvida, de um «sinaldos tempos» que, desde a minha visitaa Lampedusa em 8 de julho de 2013,tenho procurado ler sob a luz do Espí-rito Santo. Quando instituí o novo Di-castério para o Serviço do Desenvolvi-mento Humano Integral, quis que hou-vesse nele uma Secção especial (coloca-da temporariamente sob a minha guiadireta) que expressasse a solicitude daIgreja para com os migrantes, os desa-lojados, os refugiados e as vítimas detráfico humano.

Cada forasteiro que bate à nossa por-ta é ocasião de encontro com JesusCristo, que se identifica com o forastei-ro acolhido ou rejeitado de cada época(cf. Mt 25, 35.43). O Senhor confia aoamor materno da Igreja cada ser huma-no forçado a deixar a sua pátria à pro-cura de um futuro melhor.1 Esta solici-tude deve expressar-se, de maneira con-creta, nas várias etapas da experiênciamigratória: desde a partida e a travessiaaté à chegada e ao regresso. Trata-se deuma grande responsabilidade que aIgreja deseja partilhar com todos oscrentes e os homens e mulheres de boavontade, que são chamados a dar res-posta aos numerosos desafios colocadospelas migrações contemporâneas comgenerosidade, prontidão, sabedoria eclarividência, cada qual segundo assuas possibilidades.

A este respeito, desejo reafirmar que«a nossa resposta comum poderia arti-cular-se à volta de quatro verbos funda-dos sobre os princípios da doutrina da

Igreja: acolher, proteger, promover e in-tegrar».2

Considerando o cenário atual, acolhersignifica, antes de tudo, oferecer a mi-grantes e refugiados possibilidadesmais amplas de entrada segura e legalnos países de destino. Neste sentido, édesejável um empenho concreto para seincrementar e simplificar a concessãode vistos humanitários e para a reunifi-cação familiar. Ao mesmo tempo, espe-ro que um número maior de paísesadote programas de patrocínio privadoe comunitário e abra corredores huma-nitários para os refugiados mais vulne-ráveis. Além disso seria convenienteprever vistos temporários especiais paraas pessoas que, escapando dos confli-tos, se refugiam nos países vizinhos. Asexpulsões coletivas e arbitrárias de mi-grantes e refugiados não constituemuma solução idónea, sobretudo quandosão feitas para países que não podemgarantir o respeito da dignidade e dosdireitos fundamentais.3 Volto a subli-nhar a importância de oferecer a mi-grantes e refugiados um primeiro aloja-mento adequado e decente. «Os pro-gramas de acolhimento difundido, jáiniciados em várias partes, parecem fa-cilitar o encontro pessoal, permitir umamelhor qualidade dos serviços e ofere-cer maiores garantias de bom êxito».4

O princípio da centralidade da pessoahumana, sustentado com firmeza pelomeu amado predecessor Bento XVI,5obriga-nos a antepor sempre a seguran-ça pessoal à nacional. Em consequên-cia, é necessário formar adequadamenteo pessoal responsável pelos controlosde fronteira. A condição de migrantes,requerentes de asilo e refugiados exigeque lhes sejam garantidos a segurançapessoal e o acesso aos serviços básicos.Em nome da dignidade fundamentalde cada pessoa, esforcemo-nos por pre-ferir outras alternativas à detenção paraquantos entram no território nacionalsem estar autorizados.6

O segundo verbo, p ro t e g e r, conjuga-se numa ampla série de ações em defe-sa dos direitos e da dignidade dos mi-grantes e refugiados, independentemen-te da sua situação migratória.7 Esta pro-teção começa na própria pátria, consis-tindo na oferta de informações certas everificadas antes da partida e na suasalvaguarda das práticas de recrutamen-to ilegal.8 Tal proteção deveria conti-nuar, na medida do possível, na terrade imigração, assegurando aos migran-tes uma assistência consular adequada,o direito de manter sempre consigo osdocumentos de identidade pessoal, umacesso equitativo à justiça, a possibili-dade de abrir contas bancárias pessoaise a garantia de uma subsistência vitalmínima. Se as capacidades e competên-cias dos migrantes, requerentes de asiloe refugiados forem devidamente reco-nhecidas e valorizadas, constituem ver-dadeiramente uma mais-valia para ascomunidades que os recebem.9 Por is-so, espero que, no respeito da sua dig-nidade, lhes seja concedida a liberdadede movimento no país de acolhimento,a possibilidade de trabalhar e o acessoaos meios de telecomunicação. Para aspessoas que decidam regressar ao seupaís, sublinho a conveniência de desen-volver programas de reintegração labo-ral e social. A Convenção Internacionalsobre os Direitos da Criança oferece

uma base jurídica universal para a pro-teção dos menores migrantes. É neces-sário evitar-lhes qualquer forma de de-tenção por motivo da sua situação mi-gratória, ao mesmo tempo que lhes de-ve ser assegurado o acesso regular àinstrução primária e secundária. Damesma forma, é preciso garantir-lhes apermanência regular ao chegarem àmaioridade e a possibilidade de conti-nuarem os seus estudos. Para os meno-res não acompanhados ou separados dasua família, é importante prever progra-mas de custódia temporária ou acolhi-mento.10 No respeito pelo direito uni-versal a uma nacionalidade, esta deveser reconhecida e devidamente certifica-da a todos os meninos e meninas nomomento do seu nascimento. A situa-ção de apátrida, em que às vezes aca-bam por se encontrar migrantes e refu-giados, pode ser facilmente evitadaatravés de uma «legislação sobre a ci-dadania que esteja em conformidadecom os princípios fundamentais do di-reito internacional».11 A situação migra-tória não deveria limitar o acesso aossistemas de assistência sanitária nacio-nal e de previdência social, nem àtransferência das respetivas contribui-ções em caso de repatriamento.

P ro m o v e r significa, essencialmente,empenhar-se por que todos os migran-tes e refugiados, bem como as comuni-dades que os acolhem, tenham condi-ções para se realizar como pessoas emtodas as dimensões que compõem a hu-

manidade querida pelo Criador.12 D en-tre tais dimensões, seja reconhecido ojusto valor à dimensão religiosa, garan-tindo a todos os estrangeiros presentesno território a liberdade de profissão eprática da religião. Muitos migrantes erefugiados possuem competências quedevem ser devidamente certificadas eavaliadas. Visto «o trabalho humano,pela sua natureza, estar destinado aunir os povos»,13 encorajo a que se façatodo o possível para se promover a in-tegração sociolaboral dos migrantes erefugiados, garantindo a todos — in-cluindo os requerentes de asilo — apossibilidade de trabalhar, percursos deformação linguística e de cidadania ati-va e uma informação adequada nassuas línguas originais. No caso de me-nores migrantes, o seu envolvimentoem atividades laborais precisa de ser re-gulamentado de modo a que se evitemabusos e ameaças ao seu crescimentonormal. Em 2006, Bento XVI sublinha-va como a família, no contexto migra-tório, é «lugar e recurso da cultura davida e fator de integração de valores».14

A sua integridade deve ser sempre pro-movida, favorecendo a reunificação fa-miliar — incluindo avós, irmãos e netos— sem nunca o fazer depender de re-quisitos económicos. No caso de mi-grantes, requerentes de asilo e refugia-dos portadores de deficiência, deve serassegurada maior atenção e apoio. Em-bora considerando dignos de louvor osesforços feitos até agora por muitos

países em termos de cooperação inter-nacional e assistência humanitária, es-pero que, na distribuição das respetivasajudas, se considerem as necessidades(como, por exemplo, de assistência mé-dica e social e de educação) dos paísesem vias de desenvolvimento que aco-lhem fluxos enormes de refugiados emigrantes e de igual modo se incluam,entre os beneficiários, as comunidadeslocais em situação de privação materiale vulnerabilidade.15

O último verbo, i n t e g ra r, situa-se noplano das oportunidades de enriqueci-mento intercultural geradas pela pre-sença de migrantes e refugiados. A in-tegração não é «uma assimilação, queleva a suprimir ou a esquecer a própriaidentidade cultural. O contacto com ooutro leva sobretudo a descobrir o seu“s e g re d o ”, a abrir-se para ele, a fim deacolher os seus aspetos válidos e contri-buir assim para um maior conhecimen-to de cada um. Trata-se de um proces-so prolongado que tem em vista formarsociedades e culturas, tornando-as cadavez mais um reflexo das dádivas multi-formes de Deus aos homens».16 Esteprocesso pode ser acelerado pela ofertade cidadania, independentemente derequisitos económicos e linguísticos, epor percursos de regularização extraor-dinária para migrantes que possuamuma longa permanência no país. Insis-to mais uma vez na necessidade de fa-vorecer em todos os sentidos a culturado encontro, multiplicando as oportu-nidades de intercâmbio cultural, docu-mentando e difundindo as «boas práti-cas» de integração e desenvolvendoprogramas tendentes a preparar as co-munidades locais para os processos deintegração. Tenho a peito sublinhar ocaso especial dos estrangeiros forçadosa deixar o país de imigração por causade crises humanitárias. Estas pessoasnecessitam que lhes seja asseguradauma assistência adequada para o repa-triamento e programas de reintegraçãolaboral na sua pátria.

De acordo com a sua tradição pasto-ral, a Igreja está disponível para secomprometer, em primeira pessoa, narealização de todas as iniciativas pro-postas acima, mas, para se obter os re-sultados esperados, é indispensável acontribuição da comunidade política eda sociedade civil, cada qual segundoas próprias responsabilidades.

Durante a Cimeira das Nações Uni-das, realizada em Nova Iorque em 19de setembro de 2016, os líderes mun-diais expressaram claramente a vontadede se empenhar a favor dos migrantes erefugiados para salvar as suas vidas eproteger os seus direitos, compartilhan-do tal responsabilidade a nível global.Com este objetivo, os Estados compro-meteram-se a redigir e aprovar até aofinal de 2018 dois acordos globais (Glo-bal Compacts), um dedicado aos refu-giados e outro referente aos migrantes.

Queridos irmãos e irmãs, à luz destesprocessos já iniciados, os próximos me-ses constituem uma oportunidade privi-legiada para apresentar e apoiar asações concretas nas quais quis conjugaros quatro verbos. Por isso, convido-vosa aproveitar as várias ocasiões possíveispara partilhar esta mensagem com to-dos os atores políticos e sociais envolvi-dos — ou interessados em participar —

no processo que levará à aprovação dosdois acordos globais.

Neste dia 15 de agosto, celebramos asolenidade da Assunção de Maria San-tíssima ao Céu. A Mãe de Deus experi-mentou pessoalmente a dureza do exí-lio (cf. Mt 2, 13-15), acompanhou amo-rosamente o caminho do Filho até aoCalvário e agora partilha eternamenteda sua glória. À sua materna interces-são confiemos as esperanças de todosos migrantes e refugiados do mundo eas aspirações das comunidades que osacolhem, para que todos, no cumpri-mento do supremo mandamento divi-no, aprendamos a amar o outro, o es-trangeiro, como a nós mesmos.

Vaticano, 15 de agosto de 2017Solenidade da Assunção

da Bem-Aventurada Virgem Maria.

1 Cf. Pio XII, Constituição apostólicaExsul familia, Tit. I.2 Discurso aos participantes no Fórum in-ternacional «Migrações e Paz», 21 de fe-vereiro de 2017.3 Cf. Intervenção do Representante perma-nente da Santa Sé na 103ª Sessão doConselho da OIM, 26 de novembro de2013.4 Discurso aos participantes no Fórum in-ternacional «Migrações e Paz».5 Cf. Bento XVI, Carta encíclica Caritasin veritate, 4 7.6 Cf. Intervenção do Observador perma-nente da Santa Sé na XX sessão do Con-selho dos direitos humanos, 22 de junhode 2012.7 Cf. Bento XVI, Carta encíclica Caritasin veritate, 62.8 Cf. Pontifício conselho para a pasto-ral dos migrantes e itinerantes, Instru-ção Erga migrantes caritas Christi, 6.9 Cf. Bento XVI, Discurso aos participan-tes no VI Congresso mundial para a pas-toral dos migrantes e dos refugiados, 9 denovembro de 2009.10 Cf. Id., Mensagem para o dia mundialdo migrante e do refugiado de 2010; Ob-servador permanente da Santa Sé, In-tervenção na XXVI sessão extraordináriado Conselho para os direitos do homemsobre os direitos humanos dos migrantes,13 de junho de 2014.11 Pontifício conselho para a pastoraldos migrantes e itinerantes e Pontifícioconselho Cor Unum, Acolher Cristo nosrefugiados e nas pessoas forçadamente de-s e n ra i z a d a s , 2013, 70.12 Cf. Paulo VI, Carta encíclica Populo-rum progressio, 14.13 João Paulo II, Carta encíclica Centesi-mus annus, 2 7.14 Bento XVI, Mensagem para o Diamundial do migrante e do refugiado de2 0 0 7.15 Cf. Pontifício conselho para a pasto-ral dos migrantes e itinerantes e Ponti-fício conselho Cor Unum, Acolher Cris-to nos refugiados e nas pessoas forçada-mente desenraizadas, 2013, 30-31.16 João Paulo II, Mensagem para o diamundial do migrante e do refugiado de2005, 24 de novembro de 2004.

Migrações e tráficoLU C E T TA SCARAFFIA

«O s traficantes de homensestão a fazer a política damigração no Mediterrâ-

neo», eis o título de um artigo publi-cado pelo diário francês «La Croix»de 30 de maio passado. E os dadossobre a composição dos fluxos migra-tórios divulgados há alguns dias con-firmam-no, quantificando o que estãoa denunciar há algum tempo as reli-giosas que se ocupam de tráfico. Ouseja, que duplicou o número de me-nores — entre os quis prevalecem asmulheres — que chegam em barcos deborracha: menores que é difícil con-trolar e hospedar nos centros de aco-lhimento, muitos dos quais se faz demaneira que fujam para os inserir nu-ma rede de vergonhosa exploração. Eisto não é válido só para os menores:faz tempo que os missionários sentemque os mercantes de homens percor-rem as aldeias africanas da área subsa-riana, deslumbrando com falsas pro-messas os jovens para os seduzir auma emigração que os levará, depoisde um longuíssimo calvário, a traba-lhar para pagar os seus torturadores.

Esta situação gravíssima não dizrespeito unicamente à condição naqual se encontram as vítimas do mer-cado de carne humana, porque osseus efeitos se alargam ao contexto in-ternacional. Por um lado, a introdu-ção nos fluxos migratórios de massascada vez mais numerosas de pessoasenvolvidas no tráfico penaliza, tornan-do as viagens mais dispendiosas e di-fíceis, os verdadeiros migrantes, ou se-ja, aqueles que fogem de situações de-sesperadas, de guerras, violências en-démicas, carestias. Por outro, cria umasituação de insegurança e de hostili-dade nos países de chegada, mesmose estes são corresponsáveis pela tra-

gédia aceitando a prostituição, até demenores, e pelo trabalho clandestino.

Numa situação tão complexa e difí-cil talvez a resposta não deva ser sóaquela, obrigatória, de acolher os mi-grantes e de lhes oferecer uma inser-ção digna nos países europeus, mashá também a obrigação moral de terem mente a chaga do mercado de se-res humanos que está a prosperar, in-felizmente de modo crescente, atravésdas rotas mediterrâneas, e que consti-tui uma rica fonte de lucro ilícito paramuitos. Não é fácil fazer face a estefenómeno, mas em primeiro lugar énecessária uma repressão eficaz da ex-ploração dos migrantes nos países eu-ropeus, sem se eximir de um sériocontrole das modalidades de chegada.Com efeito, a morte de tantos mi-grantes nos naufrágios não se evita sócom os salvamentos no mar, mas tam-bém contrastando quem os faz partirem condições desumanas e perigosas.

Quando se sai de afirmações abs-tratas, mesmo se forem sacrossantas,para enfrentar a realidade, tudo secomplica, e é necessário olhar para assituações com realismo. Por exemplo,o dos corredores humanitários, reali-zados pela Itália e pela França por or-ganizações católicas e protestantes,que permitem ajudar quem está emperigo, salvando-o do tráfico. Um ca-minho que deve ser percorrido commais frequência e determinação, comoensinou o Papa Francisco trazendoconsigo, ao regressar da ilha de Les-bos, três famílias de refugiados. E adenúncia do tráfico é um dos temasrecorrentes do Pontífice, que precisa-mente no Angelus de 30 de julho de-nunciou mais uma vez esta «chagaaberrante»: uma «forma de escravidãomoderna» de muitíssimas mulheres,crianças e homens «vítimas inocentesda exploração laboral e sexual e dotráfico de órgãos».Georges Rouault, «Fuga para o Egito»

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página 10 L’OSSERVATORE ROMANO quinta-feira 24 de agosto de 2017, número 34

Recordação do teólogo argentino Rafael Tello no centenário do nascimento

Onde a fétem uma cor especial

JORGE MARIO BERGO GLIO

Ahistória tem as suas ironias.Esta é a primeira vez que ve-nho à Faculdade de Teologia

(não me formei aqui). E venho paraapresentar um livro sobre o pensa-mento de um homem que foi afasta-do desta Faculdade. Situações dahistória. Deus sabe escrever direitoem linhas tortas: aquela mesma hie-rarquia que numa certa altura tinhajulgado oportuno afastá-lo, hoje afir-ma que o seu pensamento é válido.Mais ainda, foi fundamental na obra

vida diária. A fé é a nossa resposta aesse amor, é encontrar um sustentá-culo seguro em Deus, é entrar emcomunhão com o mistério de umamor que nos supera e nos abrange.Deus concede abundantemente estagraça, e de modo especial aos po-bres. Distribui-a a todos, mas de for-ma particular aos pobres. O próprioJesus se admira com esta predileçãodivina, quando diz: «Bendigo-te, óPai, Senhor do céu e da terra, por-que escondeste estas coisas aos sá-bios e entendidos e as revelaste aospequeninos» (Mt 11, 25).

grandiosa, que Deus nos concedeu.Aparecida deu um passo em frenteno reconhecimento da mesma. Seantes falávamos de religiosidade popu-lar (este termo ainda hoje é usado),Paulo VI dá um ulterior passo emfrente e diz: seria melhor classificá-lapiedade popular. A p a re c i d a dá aindaoutro passo, classificando-a como es-piritualidade popular.

Em perspetiva histórica, se anali-sarmos estes cinco séculos de cami-nho, veremos que a espiritualidadepopular é um itinerário original aolongo do qual o Espírito Santo con-duziu e continua a guiar milhões deirmãos nossos. Não se trata somentede manifestações de religiosidadepopular que devemos tolerar, mas deuma verdadeira espiritualidade po-pular que há de ser revigorada, emconformidade com as formas que lhesão próprias.

Depois de Aparecida já não pode-mos tratar a piedade popular comoa Cinderela de casa. É singular: naredação de Aparecida, três ou quatrodias antes da votação definitiva, oDocumento tinha recebido 2.440«modos», ou seja, alterações que de-viam ser resolvidas naqueles dias. Eno entanto o capítulo sobre a espiri-tualidade popular só recebeu duasou três observações, mas relativas aoestilo, secundárias. Foi respeitadoexatamente como tinha saído da co-missão, na qual se viu refletido todoo episcopado que estava ali presente.Este é um sinal.

Não é a Cinderela da casa. Nãosão aqueles que não entendem,aqueles que não sabem. Lastimoquando alguém diz: «Temos queeducar aqueles». Persegue-nos sem-pre o fantasma do Iluminismo,aquele reducionismo ideológico-no-minalista que nos leva a não respei-tar a realidade concreta. E Deus quisfalar-nos através de realidades con-cretas. A primeira heresia da Igreja éa gnose, que já o apóstolo João criti-ca e condena. Até nos dias de hojepodem verificar-se posições gnósti-cas perante esta constatação da espi-ritualidade ou piedade popular.

Sobre o tema da piedade popular,nos últimos tempos há dois pilaresque são insuperáveis, aos quais é ne-cessário recorrer como fontes: aEvangelii nuntiandi (que, como exor-tação apostólica sobre a evangeliza-ção, ainda não foi superada no seuconjunto) e o Documento de Apare-cida. É preciso fazer referência a es-tas fontes.

Aparecida retoma e atualiza paraa realidade do nosso continente oensinamento de Paulo VI, contido naEvangelii nuntiandi. Recomendo-vos

a leitura dos pontos nos quais seaborda o tema, de 258 a 265. Cadaum destes trechos merece ser medi-tado com atenção. Por exemplo:«Nossos povos se identificam parti-cularmente com o Cristo sofredor,olham-no, beijam-no ou tocam seuspés machucados, como se dissessem:Este é “o que me amou e se entre-gou por mim” (Gl 2, 20). Muitosdeles, golpeados, ignorados despoja-dos, não abaixam os braços. Comsua religiosidade característica seagarram ao imenso amor que Deustem por eles e que lhes recorda per-manentemente sua própria dignida-de. Também encontram a ternura eo amor de Deus no rosto de Maria.Nela veem refletida a mensagem es-sencial do Evangelho» (Documentode Aparecida, 265).

Além disso: «A piedade popular éuma maneira legítima de viver a fé,um modo de se sentir parte da Igre-ja e uma forma de ser missionário,onde se recolhem as mais profundasvibrações da América Latina. É par-te de uma “originalidade histórico-cultural” dos pobres deste Continen-te, e fruto de “uma síntese entre asculturas [dos povos originários] e afé cristã”» (n. 264).

Eis uma última citação, muito im-portante: «Não podemos rebaixar aespiritualidade popular, nem consi-derá-la um modo secundário de vidacristã, porque seria como esquecer oprimado da ação do Espírito e a ini-ciativa gratuita do amor de Deus»(n. 263).

A piedade popular é o germinarda memória de um povo. É essen-cialmente deuteronómica. Não a po-demos compreender sem uma dispo-sição deuteronómica. E aquela me-mória floresce de várias maneiras. D.Tavella, arcebispo de Salta nos anosquarenta, conta uma anedota. Entrana sua catedral e vê um índio quereza com profunda concentraçãodiante do Senhor dos Milagres. D.Tavella recita o seu ofício e o índiopermanece tranquilamente ali. Nofim, intrigado, o bispo esperou paraver o que teria acontecido. Teve queesperar bastante tempo até que o ín-dio terminasse. Então, aproximou-sedele. «A bênção, p a d re c i t o », disse-lheimediatamente o índio. D. Tavellaperguntou-lhe: «Que prece recita-va?». «O catecismo, p a d re c i t o », res-pondeu o índio. Tratava-se do cate-cismo de São Turíbio (séc. XVI). Amemória de um povo.

Uma recordação pessoal sobre apiedade popular. Durante dois anosfui confessor na residência de Cór-dova. A residência da Companhiaem Córdova está situada no centro,

de evangelização na Argentina. Que-ro dar graças a Deus por isto.

A meu ver, o livro que hoje apre-sentamos tem dois traços preciosos,que merecem ser salientados. Emprimeiro lugar, ajuda-nos a compre-ender teologicamente o modo pró-prio como o nosso povo humilde ex-prime a sua fé. Por outro lado, ofe-rece-nos a possibilidade de entrarem sintonia com o pensamento deum dos teólogos mais fecundos danossa Igreja na Argentina, mas queainda não recebeu suficiente reco-nhecimento. Desejo apresentar algu-mas reflexões a partir destas duasideias.

Antes de tudo, é preciso recordarque a fé é sempre uma graça, umadádiva de Deus que nós não merece-mos. Deus derrama continuamente oseu amor em nós e é isto que nostorna cristãos. No nosso dialeto lo-cal lunfardo diz-se: é Deus que nosp r i m e re a , nos antecipa, nos antecipasempre, nos ama primeiro, nos pro-cura primeiro, nos espera primeiro.E isto é graça pura. Como diz a Es-critura: «Nisto consiste o amor, nãoem termos nós amado a Deus, masem ter-nos Ele amado» (1 Jo 4, 10).

Nesta moldura habita a fé, nestequadro reside a fé do nosso povohumilde. É este amor que nos dáforça, esperança e alegria na nossa

Sob o perfil histórico, o nossocontinente latino-americano é marca-do por duas realidades: a pobreza eo cristianismo. Um continente commuitos pobres e numerosos cristãos.Isto faz com que nas nossas terras afé em Jesus Cristo adquira uma corsingular. As procissões sempre api-nhadas, a fervorosa veneração deimagens religiosas, o profundo amorpela Virgem Maria e muitas outrasmanifestações de piedade popularrepresentam um testemunho elo-quente. O Documento de Pueblaexprime esta consciência, afirmandoque a encarnação do Evangelho naAmérica produziu uma «originalida-de histórico-cultural» (cf. Documentode Puebla, 446). Ao longo de cincoséculos de história, no nosso conti-nente desenvolveu-se um renovadomodo cultural de viver o cristianis-mo, o cristianismo encontrou umnovo semblante.

Quando nos aproximamos donosso povo com o olhar do bomPastor, quando não o fazemos parajulgar mas para amar, descobrimosque esta forma cultural de manifes-tar a fé cristã ainda está viva entrenós, especialmente nos nossos po-bres. E isto, fora de qualquer idealis-mo sobre os pobres, para além detodo o pauperismo teologal. É umarealidade. Trata-se de uma riqueza

Imagem tirada da capada edição em italianodo livro de Enrique Ciro Bianchi

Um perfil espiritualPara recordar o primeiro centenário do nascimento do teólogoargentino Rafael Tello (1917-2002), publicamos nesta página oprefácio ao livro da autoria de Enrique Ciro Bianchi,Introduzione alla teologia del popolo. Profilo spirituale e teologico diRafael Tello (Bologna, Emi, 2015), escrito por Jorge MarioBergoglio. Trata-se do texto que o então arcebispo de BuenosAires pronunciou no dia 10 de maio de 2012, na sede daFaculdade de Teologia da Pontifícia Universidade CatólicaArgentina, para apresentar a edição original do mencionadovolume.

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número 34, quinta-feira 24 de agosto de 2017 L’OSSERVATORE ROMANO página 11

ao lado da universidade. É ali que seconfessam os estudantes universitá-rios, os professores e as pessoas dosbairros populares que, quando vãoao centro, aproveitam para se con-fessar porque o sacerdotes do bairronão tem tempo para confessar aosdomingos, porque celebra uma mis-sa atrás da outra. E eu observavaque no meio do povo havia pessoasque se confessavam “b em”. Não fa-ziam perder tempo. Diziam o quedeviam dizer. Nunca confessavam al-go que não fosse pecado. Não sevangloriavam. Falavam com muitahumildade. Certo dia, perguntei auma daquelas pessoas de onde era.Vinha de Traslasierra. A memória ca-tequética do padre Brochero. Umpovo que se expressava bem no sa-cramento da reconciliação (é-me gra-to recordar aquele episódio precisa-mente hoje, quando em Roma foireconhecido o milagre do cura B ro -chero, e assim se Deus quiser nopróximo ano vê-lo-emos beato). Apiedade popular converge da memó-ria de um povo e — repito — deve-mos interpretá-la num contexto deu-t e ro n ó m i c o .

A Igreja fez uma opção preferen-cial pelos pobres e isto deve levar-nos a conhecer e a apreciar a manei-ra cultural como eles vivem o Evan-gelho. É bom — e necessário — que ateologia se ocupe da piedade popu-lar, é o «precioso tesouro da Igrejacatólica na América Latina», comonos disse Bento XVI inaugurando aConferência de Aparecida.

O padre Rafael Tello oferece-nosum sólido pensamento teológico, doqual nos podemos valer para apre-ciar esta espiritualidade nas suas ver-dadeiras dimensões. Como faz o li-vro agora apresentado, que tem omérito de propor uma reflexão sobrea articulação entre a fé cristã e as di-ferentes culturas. O padre EnriqueCiro Bianchi não se limita tanto adescrever as várias expressões da es-piritualidade popular mas, ao con-trário, procura o fundamento teoló-gico desta última. O ponto de parti-da é pensar no homem como numser social por natureza. Ninguémpode viver totalmente isolado, todasas ações das pessoas se verificamnum ambiente histórico que os con-diciona, os gestos concretos distin-guem-se pela cultura na qual se rea-lizam. Na dinâmica da história, ohomem cria a cultura, e a cultura in-flui sobre o homem. Eis as palavrasde João Paulo II: «O homem é si-multaneamente filho e pai da cultura

onde está inserido» (Fides et ratio,71).

Nisto, a fé não é uma exceção. Afé exprime-se sempre no plano cul-tural. A criança aprende-a dos pais,dos mestres, dos catequistas e doambiente onde vive. Como eu diziano início, a fé é acima de tudo umagraça divina. Digamos agora que étambém uma obra humana e, porconseguinte, um ato cultural. É poreste motivo que se pode falar de ummodo cultural de aprender e de ex-pressar a fé. Por isso, como já diziao padre Rafael Tello, também nóspodemos afirmar que quanto os nos-sos pobres manifestam na própriapiedade popular brota de uma fé ge-nuína, e que desta fé decorre inclusi-ve uma atitude cristã em relação àvida.

Quando, como Igreja, nos aproxi-mamos dos pobres para os acompa-nhar, nós constatamos — para alémdas enormes dificuldades quotidia-nas — que eles vivem com um senti-do transcendente da existência. Decerta maneira, o consumismo aindanão os engaiolou. A vida tem emvista algo que vai mais além destaexistência. A vida depende de Al-guém (com a letra A maiúscula) e es-ta vida tem necessidade de ser salva.Tudo isto existe no mais profundodo nosso povo, embora ele seja inca-paz de o formular em termos concei-tuais.

O sentido transcendente da vidaque se vê no cristianismo popular éa antítese do secularismo que se pro-paga nas sociedades modernas. Tra-ta-se de um ponto-chave. Se quisés-semos falar em termos antagónico-agressivos, diríamos que a fé do nos-so povo é uma bofetada às atitudessecularizadoras. Por conseguinte,pode-se dizer que a piedade popularé uma força ativamente evangeliza-dora que tem no seu cerne um antí-doto eficaz contra o avançamento dosecularismo. O Documento de Apa-recida exprime-se com palavras se-melhantes: «A piedade popular (...)no ambiente de secularização que vi-vem nossos povos, continua sendouma poderosa confissão do Deus vi-vo, que atua na história, e um canalde transmissão da fé» (n. 264).

A Igreja é chamada a acompanhare a fecundar incessantemente estemodo de viver a fé dos seus filhosmais humildes. Nesta espiritualidadeexiste um «rico potencial de santida-de e justiça social» (Documento deAp a re c i d a , 262), ao qual devemos re-correr em vista da Nova Evangeliza-

ção. Como diria o próprio padre Ra-fael Tello, o cristianismo popular de-ve ser fortalecido com uma pastoralp opular.

Conheci o padre Rafael Telloquando eu tinha 17 anos, no Colégio«Carmen Arriola de Marín», duran-te um retiro para jovens por eleorientado. Fui com o meu irmão e,regressando juntos de comboio, pu-semo-nos a falar: tínhamos compra-do alguns livros e ele recomendava-nos quais devíamos ler. Aquele foi omeu primeiro encontro com o padreRafael Tello.

Mais tarde, o penúltimo ou ante-penúltimo encontro com ele teve lu-gar um mês depois da minha no-meação como arcebispo de BuenosAires. Encontrei-o na sua casa, ondefalamos durante muito tempo. Nofinal, ele disse-me: «Quarracino deu-me as licenciaturas, mas oralmente.Não disponho do documento. Porque não mo dás tu?». Obviamente,no dia seguinte fiz com que ele rece-besse o certificado assinado. Tive aalegria interior de realizar aquelegesto de reparação, assinando as li-cenciaturas ministeriais do padre Ra-fael Tello. Recordo-me muito bemdaqueles dois encontros.

Quero prestar um ato de justiça àmemória do padre Rafael Tello. Elefoi uma pessoa admirável, um ho-mem de Deus, enviado para abrircaminhos. Nenhuma pessoa queabre novas sendas permanece com ocorpo sem cicatrizes. O padre RafaelTello enfrentou as suas dificuldades,teve as suas feridas, que depois fo-ram cicatrizadas pela sua mãe, a san-ta Igreja. Como acontece com todosos profetas, também ele não foicompreendido por muitas pessoasda sua época. Suspeitado, caluniado,castigado e afastado, não evitou odestino de cruz com o qual Deusdistingue os grandes homens daI g re j a .

Hoje, nesta Faculdade que devemuito ao seu ex-professor, desejo fa-zer memória grata da sua vida, quefoi uma dádiva de Deus à nossaIgreja. Trinta e três anos depois dese ter retirado e dez anos após a suamorte, os seus vestígios permanecemvivos nos seus discípulos e entre nós.Durante a sua vida pública ele dis-pensou generosamente a luz da suasabedoria como docente desta Facul-dade, especialista em teologia daComissão episcopal para a pastoral eanimador de inúmeras iniciativaspastorais. Talvez a mais conhecidade todas seja a peregrinação juvenil

a Luján, a qual continua até aos diasde hoje e constitui um dos eventosmais frutuosos da vida da nossaI g re j a .

Ele viveu em tempos difíceis. Asagitações dos anos setenta foramuma verdadeira prova de fogo paraos agentes no campo da pastoralque trabalhavam nos setores popula-res. Naquele contexto tão delicado,o padre Rafael Tello procurou fiel-mente caminhos para a libertação in-tegral do nosso povo, anunciandoaté ao fundo a novidade evangélica,sem cair nos reducionismos dasideologias. Não lhe dizem respeitoas condenações e as suspeitas dasduas Instruções sobre a teologia dalibertação, emanadas pela Congrega-ção para a doutrina da fé.

Hoje, com a perspetiva que nosoferece a história, podemos afirmarsem dúvida alguma que a reflexão ea pastoral que animavam o padreRafael Tello tencionavam acompa-nhar a ação libertadora de Deus,evitando os extremos, por um lado,do ativismo secularizado e politiza-do e, por outro, da resignação fata-lista.

Ele procurava descobrir a açãosalvadora de Deus no povo e, destemodo, abriu muitos caminhos quehoje percorremos na nossa pastoral,e soube fazê-lo conjugando o impul-so profético com a adesão firme à sãdoutrina eclesial. Impressionava-meo seu recurso incessante, verdadeiraestrutura do seu pensamento, à Sum-ma theologica. Numa época em que aSumma theologica era posta de lado,em que quantos diziam que ensina-vam fundamentados na Summa theo-logica eram considerados como mons-tros antediluvianos, ele manteve cons-tantemente a Summa theologica comoreferência do seu pensamento. Com-preendia mais do que qualquer outrapessoa a profundidade e a originali-dade de S. Tomás de Aquino, reflexoda verdade evangélica, que é «maispenetrante do que uma espada dedois gumes» (Hb 4, 12).

Rafael Tello foi sempre um bomfilho da Igreja. Não me recordo deter lido ou ouvido dele algo contra aIgreja, que ele sentia como sua mãe.A sua herança continuará a indicar-nos os caminhos do Espírito para atarefa sempre renovada da evangeli-zação na qual estamos comprometi-dos. Teria sido lastimável se, comoIgreja, tivéssemos perdido a possibi-lidade de conhecer a teologia daevangelização para a América Latinaque o padre Rafael Tello desenvol-veu. Neste sentido, o livro do padreEnrique Ciro Bianchi constitui umanovidade agradável, porque nos ofe-rece uma vereda frutuosa para nosvincular à sua proposta.

Quero concluir, agradecendo aopadre Enrique Ciro Bianchi este tra-balho, que é fruto de um teólogo, deum filho fiel da Igreja e de um pas-tor. Três qualidades que lhe perten-cem. E desejo formular-lhe os me-lhores votos a fim de que ele conti-nue a crescer nesta fecunda síntesede vida que, disto estou profunda-mente persuadido, fará bem a todosnós.

Bergoglio apresentao livro em Buenos Aires em 2012

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página 12 L’OSSERVATORE ROMANO quinta-feira 24 de agosto de 2017, número 34

Em Aparecida o cardeal Angelo Amato falou da piedade popular da América Latina

Quando os pobres cantam o MagnificatCom as palavras daquele hino à li-berdade que é o Magnificat, «naAmérica Latina a piedade marianapode transformar-se legitimamenteem grito de libertação para superaras estruturas de divisão e de pecadoque existem a vários níveis». Porque«o abismo entre ricos e pobres, a si-tuação de intimidação na qual vivemos mais débeis, as injustiças, asomissões e as submissões humilhan-tes que eles sofrem estão em radicalcontraste com os valores da dignida-de pessoal e da solidariedade frater-na» que «o povo latino-americanoleva no coração como imperativosrecebidos do Evangelho». Ao inter-vir no décimo primeiro congressomariológico realizado nestes dias nosantuário brasileiro de Aparecida, ocardeal Angelo Amato deu voz àmais antiga «religiosidade popularlatino-americana, capaz de se trans-formar num grito pela verdadeira li-bertação» contra as injustiças.

«Face ao atual alastrar-se da po-breza — disse o prefeito da Congre-gação para as causas dos santos en-cerrando os trabalhos no dia 12 deagosto — chegou o momento propí-cio para uma nova fantasia da cari-dade que, além do socorro, tenha acapacidade da proximidade, do aco-lhimento e da solidariedade comquem sofre, de modo que o gesto deajuda seja percebido não como óbo-lo humilhante mas como partilhafraterna».

Evocando «a relevância teológicae pastoral da pobreza para uma re-novada evangelização da sociedadecontemporânea», o cardeal frisouque «em todos os continentes a co-munidade eclesial é chamada a con-siderar e a viver a pobreza como aestrutura portadora da mensagemevangélica hoje». Depois, observouque «a relação Igreja-pobreza não sefunda em razões socioeconómicasnem políticas mas na fé em Cristo».É verdade que hoje «a pobreza apa-rece como o termómetro para julgara renovação da Igreja pós-conciliar».

«Jesus, desde a sua infância, este-ve circundado por pessoas humildese pobres, sendo a primeira de todasMaria, sua mãe», observou. Por con-seguinte Maria «pertence à multidãodos crentes com um coração pobre:o Magnificat acolhe as aspiraçõesdos pobres e é um hino à pobrezaespiritual». Nossa Senhora «é a po-bre ideal do reino de Deus», dadoque precisamente «no Magnificat elaexprime a realização do programada redenção».

E assim, explicou, «o Deus exalta-do no Magnificat é o Deus que aba-te as fronteiras da raça para ampliaros benefícios da salvação à humani-dade inteira». Concretamente «é oDeus que privilegia os oprimidos eos humilhados e inverte as situaçõesinjustas criadas pelos poderosos». E«também os lugares e as circunstân-cias de alguns eventos fundamentaisda redenção — como Nazaré, Belém,o refúgio numa gruta-estalagem, onascimento de Jesus numa manje-doura — fazem referência explícita àpobreza: trata-se de sítios sem gló-ria». Além disso, Maria «é uma jo-vem de província comprometida como artesão José e vive na periferia, emNazaré, uma aldeia distante de Jeru-salém, das suas riquezas e das suas

sedes do poder». Eis que «Deus semanifesta na promoção dos pobres eno abaixamento dos não-pobres, eno Magnificat aos orgulhosos estáreservada a humilhação e aos pobrese humildes a glorificação».

«A valorização dos pobres com osquais Cristo se identificou para par-ticipar a sua graça — afirmou o car-deal Amato — não é a exaltação dopauperismo e da miséria, mas o re-conhecimento do valor espiritual donão ter, do não poder e do não sa-ber no cenário de uma religiosidadeiluminada por Deus». A pobreza,«diversamente do ideal da riquezaproposto pelos sábios deste mundo,é a disponibilidade a acolher a ma-nifestação de Deus». Precisamente«a atitude de Maria e dos outrosprotagonistas das narrações evangéli-cas é o espelho que reflete e engran-dece a fé da Igreja, chamada ao se-guimento de Cristo também nisto».

Desde sempre a Igreja «mostra oágape de Deus na caridade paracom os necessitados, dado que, ob-servou o purpurado, «a história do-cumenta, mediante personagens egrupos, que a Igreja é fonte inesgo-tável de obras de misericórdia corpo-ral e espiritual». Além da esmola«promoveu uma cultura da partilha»da qual «a humanidade tem sempremais necessidade». Falando numcontexto latino-americano, o cardealAmato frisou que a Igreja no conti-nente está «sob a proteção da Mãede Deus, a “M o re n i t a ”, como a Vir-gem é afetuosamente chamada pelosmexicanos». Para todos os efeitos éconsiderada «Mãe da América Lati-na e Mãe da Igreja na América Lati-na, autêntica estrela da evangeliza-ção».

Com efeito, «poucos anos após odescobrimento da América — obser-vou o purpurado — apenas dez anosdepois da conquista do império az-teca, em 1531 a Virgem de Guadalu-pe apareceu ao índio Juan Diego, nacolina de Tepeyac, ao norte da Cida-de do México. Isto marcou o iníciovitorioso de um cristianismo “no-vo”». A sua novidade «é essencial-mente teológica: de facto, não deviaser a simples continuação do cristia-nismo europeu mas de um cristianis-mo profundamente inserido tambémna cultura e na vida do povo indíge-na». Nossa Senhora indica assim «oprincípio formal de cada nova evan-gelização cristã, que significa encar-

nação total da fé no espaço e notempo, na linguagem, nos símbolosculturais e na “carne” dos novos po-vos».

Depois o purpurado evocou «adimensão popular do cristianismolatino-americano, no qual Maria évista como parte integrante não sóda fé do povo, mas da sua história,da sua cultura e da sua própria al-ma: isto é, a América Latina é umcontinente radicalmente cristão emariano». E «a religiosidade popu-lar mariana aparece como uma au-têntica “sabedoria cristã” e verdadei-ro “instinto evangélico”: é vínculo deunião das multidões, realizando a

universalidade concreta do anúnciocristão». Precisamente a partir destaconsideração «deriva que a religiosi-dade do povo latino-americano mui-tas vezes se transforme num gritopor uma autêntica libertação», expli-cou o cardeal.

De resto, é um facto que «o cânti-co do Magnificat se revela como amagna charta da liberdade dos fi-lhos de Deus: nele é expressa a ale-gria pela libertação realizada peloSenhor que salva os oprimidos e hu-milha os opressores e os poderosos eque está sempre da parte dos sim-ples, dos pobres». Nesta perspetiva,insistiu o purpurado, «Maria é amulher profética, corajosa e forte,profundamente comprometida na li-bertação messiânica das injustiçashistórico-sociais dos pobres». «Me-diante o Magnificat, Maria torna-senossa contemporânea: de facto, aautêntica espiritualidade deste hinonão é intimista nem passiva, mascontém uma carga altamente dinâ-mica e libertadora».

Por conseguinte, concluiu o car-deal Amato, «Maria é uma mulherforte e corajosa, que invoca a justiçade Deus sobre os opressores dos po-bres; é uma mulher comprometidaque sabe tomar as suas decisões».Como Deus «também Maria se põeda parte daqueles cuja dignidade de-ve ser recuperada e cuja justiça deveser realizada: só assim antecipa e faza história do reino de Deus nestemundo».

Pastoral missionária

Para os indígenas do BrasilOs bororos, também conhecidoscomo «coroados» ou «parrudos»,são um povo indígena (estimadoem pouco menos de dois mil indi-víduos) do Estado amazônico bra-sileiro do Mato Grosso. Eles distin-guem-se pelas pinturas de elevadonível artístico com as quais ador-nam o próprio corpo, mas tambémpor uma inteligente produção deobjetos artesanais. Os xavantes re-presentam outro grupo étnico ame-ríndio que vive naquele mesmo Es-tado. Eles definem-se «pessoas ver-dadeiras» e o furo das orelhas fazparte do seu rito de iniciação.Duas comunidades cultural e histo-ricamente distantes, que vivem iso-ladas da sociedade e que, no en-tanto, além de compartilhar a ri-queza dos mesmos espaços natu-

rais, vivem unidas pela amizadecom os missionários salesianos des-de há anos comprometidos na obrapastoral a favor das comunidadesindígenas.

Uma grande ressonância — re f e rea agência Ans — teve a recente or-ganização, por parte dos missioná-rios, da semana da cultura bororo,realizada na escola indígena esta-dual «Koregedu Paru», na aldeiade Córrego Grande — Terra Indí-gena Teresa Cristina. A festa deinauguração desse evento foi filma-da e documentada pelos própriosbororos, para depois ser transmiti-da pelos meios de comunicação.Além disso, foi realizado um muralde grandes dimensões com artefa-tos originais bororos, fotografias,pequenos trabalhos escolares, ador-nos e músicas tradicionais.

Significativa foi também a inicia-tiva promovida a favor dos índiosxavantes. Aproximadamente ses-senta indígenas participaram nocurso anual para agentes no campoda pastoral, promovido na paró-quia itinerante intitulada a SãoDomingos Sávio, no povoado deSanta Clara — Terra Indígena Para-bubure, no município de Campiná-polis. O principal objetivo do cur-so era formar os responsáveis pelaanimação litúrgica das comunida-des locais.

Cerezo Barredo, «Magnificat»

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número 34, quinta-feira 24 de agosto de 2017 L’OSSERVATORE ROMANO página 13

Entrevista ao sacerdote scalabriniano Fabio Baggio

Dever de responderaos desafios migratórios

NICOLA GORI

«Para combater o tráfico de migran-tes» é preciso «abrir vias de acessolegais e seguras, através de políticase leis específicas e clarividentes», da-do que «as políticas migratórias res-tritivas com frequência contribuírampara aumentar a oferta de canais al-ternativos de migração». Foi o dese-jo expresso pelo scalabriniano FabioBaggio, que nesta entrevista a L’O s-servatore Romano narrou os primór-dios da sua experiência como subse-cretário do Departamento migrantese refugiados do dicastério para oServiço do desenvolvimento humanointegral.

Com a histórica viagem a Lampedusao Papa Francisco pôs no centro do seupontificado o acolhimento e o respeitoda dignidade dos imigrantes. Uma es-colha confirmada inclusive pela insti-tuição do vosso dicastério?

Diria que sim dado que no seu in-terior foi constituído uma espécie dedepartamento dedicado às questõesinerentes a migrantes, refugiados evítimas do tráfico. O Pontífice quisassumir ad tempus a guia de tal de-partamento, que corresponde emprimeiro lugar à sua vontade de as-sistir as conferências episcopais e asdioceses no desenvolvimento de res-postas pastorais adequadas aos desa-fios migratórios contemporâneosatravés da oferta de informaçõesconfiáveis, da produção de avalia-ções científicas e reflexões teológicassobre questões de competência, daformulação de diretrizes e progra-mas. O departamento nasceu oficial-mente a 1 de janeiro passado e porisso estamos ainda na fase inicial deorganização do trabalho e dos escri-tórios. Juntamente com o Papa,constatamos a necessidade, pelo me-nos para este primeiro ano, de nospormos à escuta das diversas realida-des eclesiais presentes no mundo ecomprometidas no acompanhamentode migrantes, refugiados e vítimasdo tráfico. Estamos a recolher infor-mações preciosíssimas que nos per-mitirão desenvolver um plano opera-cional adequado e eficaz, com prio-ridades e objetivos claros.

Como viveu estes primeiros meses detrabalho no dicastério?

Como missionário scalabrinianodecidi dedicar toda a minha vida aosirmãos e irmãs migrantes. Poder fa-zê-lo no «coração» da Igreja e aoserviço direto do Pontífice é umagrande honra. A experiência de sub-secretário do Departamento migran-tes e refugiados revelou-se muitomais rica e envolvente do que imagi-nei em novembro passado, quandoofereci a minha disponibilidade aoPapa Francisco. Não obstante os de-safios sejam enormes — e do pontode observação no qual me encontrohoje se veem em toda a sua urgência— consola-me a solicitude pastoralque comprovo em tantos bispos, sa-cerdotes, religiosos, religiosas e lei-gos que pude encontrar neste perío-do. Todos estão entusiasmados com

o zelo demonstrado pelo Santo Pa-dre para com os migrantes e os refu-giados de todos os continentes, emanifestaram uma total disponibili-dade para coordenar os esforços demodo a tornar ainda mais tangível oamor maternal da Igreja por estesnossos irmãos e irmãs.

A solidariedade em relação aos migran-tes é um imperativo para os cristãos.De que modo pode ser concretizada navida diária das comunidades paro-quiais?

O Papa Francisco evocou com fre-quência a necessidade de promover acultura do encontro em contraposi-ção à cultura da indiferença e dodescarte, que perigosamente parecemadquirir espaços importantes nas so-ciedades contemporâneas. O deversagrado da hospitalidade, muitas ve-zes reiterado no Antigo Testamento,encontra a sua consagração definiti-va na parábola do juízo universal(Ma t e u s 25, 31-46), na qual JesusCristo se identifica com o forasteiroque bate à porta pedindo para seracolhido. Permito-me acrescentarque além de ser um dever, o acolhi-mento do outro, do estrangeiro, do

diverso, representa para cada cristãouma verdadeira oportunidade de en-contro íntimo e pessoal com Deus,presente na pessoa acolhida. Para ascomunidades paroquiais trata-se deuma boa ocasião para viver a catoli-cidade da Igreja, na qual todos osbatizados podem reivindicar o direi-to de cidadania. Para todos os cris-tãos trata-se de uma autêntica opor-tunidade missionária, uma ocasiãoprovidencial para testemunhar a pró-pria fé através da caridade.

O que se pode fazer para pôr fim aodrama do tráfico de seres humanos?

No final do século XIX GiovanniBattista Scalabrini, bispo de Piacen-za, denunciou publicamente a nefas-ta obra de muitos funcionários daemigração, que recrutavam com oengano migrantes que vagavam pelaItália com a única finalidade de ob-ter grandes lucros graças a eles. De-nominou-os «comerciantes de carnehumana». O santo bispo sugeriuuma nova lei que abrangesse a emi-gração e protegesse quem partia, for-necendo-lhes informações verdadei-ras e garantindo-lhes vias seguras deexpatriação. Mesmo se os tempos

mudaram, estou convicto de que aprimeira medida a tomar para com-bater o tráfico de migrantes sejaabrir vias de acesso legais e seguras,através de políticas e leis específicase clarividentes. As políticas migrató-rias restritivas contribuíram para au-mentar a oferta de vias de migraçãoalternativas.

Há soluções praticáveis para restituir apaz ao Médio Oriente e para evitar oêxodo dos cristãos daquelas terras?

Devemos reconhecer o generosoesforço desempenhado até agora pormuitos atores internacionais e tam-bém pela Igreja católica a fim de ga-rantir a paz nos territórios que fo-ram massacrados pelas guerras nasúltimas décadas. Apesar das dificul-dades reais, jamais devemos perder oânimo mas continuar a insistir nodiálogo entre as diversas partes. Épreciso trabalhar assiduamente paracicatrizar as feridas antigas e recon-ciliar ânimos devastados pelo rancor.A criação de sociedades plurais e in-clusivas não é uma utopia, dado quetemos exemplos concretos em muitaspartes do mundo. É necessário tertanta paciência, porque o caminhodo diálogo muitas vezes não é omais curto, mas sem dúvida é o úni-co que pode garantir uma paz sus-tentável.

Com Bergoglio em Buenos AiresOriginário de Bassano del Grappa, no Véneto (Itália),cinquenta e dois anos de idade, há vinte e cinco ésacerdote dos missionários de São Carlos Borromeu,família religiosa que tem a missão específica daspessoas em mobilidade. De facto, embora acongregação tenha nascido para seguir os migrantesitalianos, em 1968 ampliou a obra a todos osmigrantes, refugiados e marítimos. Por isso o padreBaggio amadureceu concretamente a própriaexperiência pastoral no mundo da emigração,desempenhando o ministério na Europa, na AméricaLatina e na Ásia: inicialmente no coração do velhocontinente, na Suíça e na Alemanha, com os italianos;depois na Itália quando começaram a chegar osprimeiros imigrantes latino-americanos.Fortalecido por esta experiência transferiu-se para aAmérica Latina: primeiro Santiago do Chile, comovice-pároco, capelão da comunidade peruana econselheiro da comissão episcopal para as migrações;depois Buenos Aires, onde dirigiu o departamentopara a migração da arquidiocese governada por JorgeMario Bergoglio, desempenhando também o papel de

secretário nacional da Obra da propagação da fé,Obras missionárias pontifícias na Argentina. Aomesmo tempo, ensinou na «Universidad del Salvador»na capital argentina e no instituto de teologia de SãoPaulo no Brasil: países que depois da segunda guerramundial se tornaram uma meta natural para aemigração de europeus, sobretudo os mais jovens, emfuga da devastação causada pelo conflito.Sucessivamente viveu nas Filipinas: uma naçãoconstruída sobre a emigração, de onde naquela épocapartiam um milhão de pessoas por ano. Ensinou noateneu de Manila e na Maryhill School of Theologyde Quezon City, dirigiu o Scalabrini Migration Centere a revista «Asian Pacific Migration Journal». Por fim,depois de um período como professor enviado aoScalabrini International Migration Institute,incorporado à faculdade de teologia da Pontifíciauniversidade Urbaniana, a partir de 2010 tornou-seprofessor e diretor dessa faculdade. Desde 1 de janeiropassado é subsecretário do Departamento migrantes erefugiados do Dicastério para o serviço dodesenvolvimento humano integral.

Uma família síria procura passar a rede de arame farpadona fronteira entre a Hungria e a Sérvia (Reuters)

Jovens migrantes africanos salvosno Mediterrâneo (foto Ap)

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página 14 L’OSSERVATORE ROMANO quinta-feira 24 de agosto de 2017, número 34

No centenário do nascimento de Óscar Arnulfo Romero

Atual como nuncaSI LV I N A PÉREZ

Uma das primeiras coisas que com-preendemos, nós que nos ocupamosdeste jornal, é a condição temporaldo nosso trabalho: a informação estárelacionada com o presente, nãocom o passado. Contudo, o passadoé algo que irrompe do nada sob asformas mais inesperadas. E fá-locom vigor, através de documentos,testemunhos e recordações que são ahistória e a memória, neste caso, dobispo Óscar Romero, outro servo daIgreja de Roma.

profundamente marcado pelo assas-sínio do jesuíta Rutilio Grande e ce-lebrara a histórica missa de exéquiasa 14 de março de 1977 juntamentecom cerca de 150 sacerdotes, na pre-sença de mais de 100.000 pessoasreunidas dentro e ao redor da cate-dral: as expressões que pronuncioudurante a homilia são as primeiraspalavras transcritas que temos do ar-cebispo de San Salvador. Para estapregação inspirou-se numa afirma-ção de Paulo VI, do qual era profun-damente devoto, acerca de quem é overdadeiro libertador cristão. De res-to, não esqueçamos que quase toda

mento, em grande partefruto da ignorância da-quela realidade distanteque a América Latina erae é para a Europa, causa-ram-lhe muitas dificulda-des.

Naqueles anos a Amé-rica Central tornou-seuma das áreas estratégi-cas da guerra fria nocontinente americano eincompreensivelmente a

nho de conversão dos corações» co-mo alternativa à violência, reconduzà bonita fórmula de Paulo VI, quefalava da vocação para construir a«civilização do amor». Ou seja, oprogresso e a história dos homensmovem-se graças ao amor e pormeio do amor.

Pois na teologia diária de Romeroentre a Igreja e o mundo o único ca-minho possível — não fácil, mas reto— passa por Cristo. Romero amou a

Dom Romero em 1979

Consultando os nossos arquivos, acrónica de 29 de maio de 1977 no-loconfirma: na página 4, um artigosimples mas muito pormenorizadoconta-nos as visitas de cortesia quevários bispos da América Latina fi-zeram aos nossos escritórios duranteos primeiros meses daquele ano. Umdeles foi Dom Óscar Romero quevisitou a nossa redação nos primei-ros dias de abril. «Desde que assu-miu o governo da arquidiocese — lê-se no artigo — está a alimentar comdiversas iniciativas a difusão dos en-sinamentos do Papa, através de assi-naturas a L’Osservatore Romano,entre sacerdotes, leigos, movimentosapostólicos e comunidades religio-sas». Além disso, naquela ocasião,Romero entregou uma lista porme-norizada, com nomes e sobrenomes,para ativar assinaturas às 104 paró-quias da sua diocese.

Um pequeno episódio «público»entre tantos que se verificaram, masque ninguém conhece por causa dagrande humildade de Romero. Comefeito, a fama não estava entre asprioridades da vida diária de um ho-mem da instituição eclesiástica, deum bispo que, como muitos outrosnaqueles tempos difíceis, todos osdias demonstrava também desta for-ma a sua pertença ao corpo da Igre-ja de Roma. Amável, cordial, próxi-mo dos sacerdotes da sua diocese, econtudo muito exigente em matériade disciplina eclesiástica, de obe-diência à Igreja e de estrito uso doshábitos religiosos e dos ornamentossagrados.

Na época, Romero já tinha sido

vador 2.100 famílias possuíam tantoquanto as restantes famílias do país.

Ameaçados: era esta a palavra ha-bitual que circulava entre os cristãosde El Salvador. Com efeito, entre osanos setenta e oitenta na AméricaLatina, por causa das ditaduras edos seus braços armados, ameaça epobreza eram dois conceitos funda-dos numa violência sem igual. Du-rante estes primeiros meses na novasede episcopal e à luz da situação naregião, Dom Romero sentia o pesoda responsabilidade: precisava de sesentir ouvido e encorajado. Mas adistorção da sua vida juntamentecom a incompreensão do seu pensa-

ação pastoral de muitos sacerdotes emembros da Igreja foi considerada,sob uma perspetiva bipolar do mun-do, através de espelhos curvos quedeformaram a imagem dos objetosrefletidos. Dom Romero exortava aum humanismo discreto, irrequieto eincansável. Apresentava-se aos pode-rosos da terra e aos humildes trans-mitindo a todos igualmente a men-sagem de amor e de esperança, coma firmeza da caridade que soubera

Com as suas irmãs antes de entrar no seminário

A ordenação episcopal em 1970. O primeiro à direita é o padre Rutilio Grandee, no fundo, Dom Luíz Chávez e Dom Arturo Rivera

a doutrina da libertaçãocristã de Romero se inspirana exortação apostólicaEvangelii nuntiandi.

O contexto salvadorenhode 1977, no qual Romerodesempenhou a sua ativida-de pastoral, é fácil de re-percorrer através de algunsdados inequívocos: 65 porcento da população eracamponesa sendo 40 porcento da mesma anafabeta;mais de 80 por cento nãotinha água nem serviços hi-giénicos em casa, e mais de92 por cento não dispunhade energia elétrica. Existiacontudo uma minoria rica eextraordinariamente forteque possuía mais de 77 porcento da terra. Em El Sal-

Número especialEste artigo foi tirado do númeromonográfico especial da edição emespanhol de «L’Osservatore Romano»para o Panamá dedicado a Óscar ArnulfoRomero, no centenário do seu nascimento.Para recordar o assassínio do arcebispoocorrido em 1980, o cardeal Gregorio RosaChávez promoveu uma marcha de 150quilómetros em 3 dias, que teve lugar emEl Salvador e noutros países da AméricaCentral e nos Estados Unidos.

admirar e conquistar.A 10 de abril, domingo

de Páscoa, alguns dias an-tes de partir para Roma,promulga a sua primeiracarta pastoral. Na saudaçãode apresentação aos fiéis eapenas quarenta e cincodias depois da sua nomea-ção deve frisar que «estaarquidiocese, graças à suafidelidade ao Evangelho,resgata a calúnia que pre-tende fazê-la passar porsubversiva, promotora deviolência e de ódio, marxis-ta e política; esta arquidio-cese, graças à sua persegui-ção, oferece-se a Deus e aopovo como uma Igreja uni-da, disposta ao diálogo sin-cero e à cooperação sadia, mensagei-ra de esperança e de amor». Estedocumento, entregue numa simplesfotocópia a L’Osservatore Romanodurante a sua visita, representa umaverdadeira tabela de marcha do seupensamento teológico-pastoral: a in-sistência com a qual invoca o «cami-

Igreja, abandonou-se totalmente aela. Sem limites. A sua fidelidade di-nâmica conduziu-o, de facto, a um«martírio» inevitável e a sua herançapastoral, baseada num grande esfor-ço para que as reformas do concílionão fossem interpretadas em chavede rutura, permitiu readquirir aindaum protagonismo histórico de soli-dariedade com os pobres da AméricaLatina que a Igreja tinha perdido. Épreciso dizer também que, no espaçoreligioso, a perda de Dom Romeroteve algumas consequências diretastotalmente inesperadas. Referimo-nos, por exemplo, à proliferação deseitas, nalguns países da AméricaCentral, em particular na Guatemalae em El Salvador, orientadas paraum messianismo religioso que nadatem a ver com o Evangelho.

Sem dúvida a história da Igrejaagradecerá a Dom Romero a sua de-fesa tenaz do aspeto mais transcen-dente que se aproxima do mistériode Deus: a vida humana nas suasnascentes, no seu curso e no seu fim.«Se me matarem, ressuscitarei na lu-ta do povo salvadorenho». Hoje éevidente que esta profecia não erauma simples metáfora ocasional, masa expressão de um conhecimentoreal do povo de Deus.

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número 34, quinta-feira 24 de agosto de 2017 L’OSSERVATORE ROMANO página 15

INFORMAÇÕES

Leitura e silêncio

Para dilatar o tempo da vidaSI LV I A GUIDI

«M ercedes oferece-meuma amora», escreveJosé Beltrán no dossier

de verão «MásLibros», da revista es-panhola «Vida Nueva». É um gestosimples, espontâneo, mas no pensa-mento do interlocutor surgem ime-diatamente os muitos nãos, as nume-rosas e minúsculas objeções e des-confianças que importunam a vidaquotidiana, tornando-a pesada e pre-visível. Nãos pequenos mas incómo-dos e persistentes como uma nuvemde mosquitos irritantes. «Por uminstante — confessa o diretor da re-vista — tenho dúvida se a devo acei-tar ou não; no fundo, é uma pessoaque conheço há apenas meia hora.Não sei de onde a tirou. Além disso,é uma fruta não lavada».

Vivemos quase sempre com o freiopuxado. Fechados, desconfiados,programaticamente tristes, já não es-peramos nada de bonito nem debom dos outros e, pior ainda, dificil-mente estamos dispostos a admiti-lo.A gratuidade de um dom, mesmopequeno, até aparentemente insigni-ficante, pode abrir espaços imprevi-síveis na vida de cada um de nós.

O sorriso cheio de confiança e desegurança tranquila de Mercedesdissipa rapidamente todas as dúvi-das e hesitações, escreve Beltrán. Aamora desliza na palma da mão. Naboca, uma explosão de sabor confir-ma o milagre das pequenas coisas, apositividade de tudo o que existe, abeleza da criação.

Mercedes descreve ao jornalistacomo o silêncio, a leitura da trilogiade Pablo d’Ors sobre esta fonte deoxigénio completamente ignoradapor uma grande parte da culturaocidental, mudou a sua vida. Me-

lhor, como se tornou um modo con-creto para dar espaço à vida, paraconceder tempo e prestar atenção àescuta de si mesma e do próximo.Não por acaso, «escuta» é a primei-ra palavra do prólogo da R e g ra deSão Bento.

Ler também é uma maneira con-creta de se colocar à escuta; um ges-to que «comove e move», como rezao título do editorial que acompanhao leitor à descoberta de «MásLi-bros». Alguns nascem no meio de li-vros — como o diretor de «L’O sser-vatore Romano» que, entrevistadopor Darío Menor, diz: «O meu pai

era bibliotecário e em casa havia eainda existe uma grande biblioteca,não tanto por número quanto porqualidade» — enquanto que outros,ao longo de toda a vida, descobremuma paixão que não conhece sacie-dade nem tédio, como o escritor Jo-sé Jiménez Lozano. Contudo, o pró-prio ato de ler é sempre um exercí-cio de contemplação.

Alguns livros, escreve o cardealGianfranco Ravasi no seu artigo Aminha história de leitor, citando umacélebre frase de Francis Bacon,«existem para ser saboreados, outrospara ser devorados, poucos outrospara ser mastigados e digeridos».Outros ainda, como que por contá-gio, convidam a folhear outras pági-nas e a mergulhar noutras vidas; é ocaso, acrescenta o purpurado, dosbestsellers de Daniel Pennac, autorda saga de Benjamin Malaussène,bode expiatório por vocação e porprofissão nos grandes centros comer-ciais de Paris, um dos personagensmais amados da literatura contem-porânea, juntamente com a sua de-sordenada e alegre tribo familiar.Uma saga que a muitos restituiu oprazer de ler e de enfrentar até en-saios mais exigentes, porque — e s c re -ve Pennac em Como um romance(1992) — «o tempo para ler, do mes-mo modo que o tempo para amar,dilata o tempo da vida».

A existência adquire profundida-de, interesse e gosto, e o significadodo verbo conhecer aproxima-se cadavez mais do significado da sua raizetimológica latina: s a p e re (“sab o-re a r ”). Mas para chegar a este pontosão necessárias paciência e prática,escreve Pablo d’Ors na sua Tr i l o g i ado silêncio, narrando a aventura vivi-da pessoalmente nos espaços abertos

pelo sossego. Optar por esta viagemsignifica abandonar o estado em quehabitualmente os nossos dias estãoimersos, aquela atmosfera tóxica depreocupação, busca compulsiva deemoções cada vez mais intensas, so-nolência espiritual e, acima de tudo,medo da vida, distância artificial emrelação a nós mesmos e aos outros.«Vivemos, sim, mas muitas vezes es-tamos mortos», escreve abertamentePablo d’O rs.

Parar e permanecer em silêncio,cultivando a atenção a nós mesmos eà vida que se desenvolve: esta práti-ca leva-nos a encontrar desertos inte-riores, miragens e desorientações; co-nhece o cansaço, o tédio, a aridez ea distração. Mas ir em frente geramisteriosamente — em tempos e demaneiras impossíveis de prever e decontrolar — frutos inesperados: umapaz profunda e o contacto com onosso autêntico ego, mas sobretudouma intensa participação na vida, talcomo ela é e como vem ao nosso en-c o n t ro .

Contrariamente aos nossos pensa-mentos e às nossas fantasias, a reali-dade jamais desilude e possui umariqueza inesgotável, como o autorescreve: «Não há nada a inventar, ésuficiente receber aquilo que a vidajá inventou para nós». O encontroconfiante e tenaz com a nossa pró-pria voz interior ensina-nos que épossível viver de forma diferente,que cada busca nos leva ao lugaronde já nos encontramos, para oapreciar com um olhar renovado.Renascer para esta alegria é simplese está ao alcance de todos. Pormaior que seja o nosso icebergue, es-creve Pablo d’Ors, qualquer iceber-gue é apenas água. É suficiente umafonte de calor devidamente enérgicapara o dissolver.

Ilustração tirada do dossier «MásLibros»

Rumo ao sínododos bispos

sobre os jovensO Papa Francisco convida osjovens do mundo inteiro a mo-bilizar-se em vista do próximosínodo dos bispos, programa-do para o mês de outubro de2018 sobre o tema: «Os jovens,a fé e o discernimento vocacio-nal». Num tweet publicado namanhã de 12 de agosto, naconta #Pontifex, o Santo Pa-dre dirigiu-se diretamente à ju-ventude do mundo: «Estima-dos jovens, vós sois a esperan-ça da Igreja. Como sonhais ovosso futuro? Participai no#sinodo18!», escreveu o Papa,acrescentando no final da men-sagem o link ao questionárioproposto no passado mês dejaneiro, juntamente com o do-cumento em preparação para adécima quinta assembleia geralordinária do sínodo.

Destinado aos jovens de 16 a28 anos, o citado questionáriovisa empenhar as novas gera-ções através de uma série deperguntas cujas respostas serãoúteis para a redação do Instru-mentum laboris.

Nomeações

O Sumo Pontífice nomeou:

A 12 de agosto

Núncio Apostólico no Panamá, D.M i ro s ław Adamczyk, até agora Nún-cio Apostólico na Libéria, Gâmbia eSerra Leoa.

Núncio Apostólico em Myanmar, D.Paul Tschang InNam, até hoje Nún-cio Apostólico na Tailândia e noCamboja e Delegado Apostólico noLaos.

A 17 de agosto

Enviado Especial às celebrações doIII centenário do descobrimento daimagem de Nossa Senhora Aparecida,Padroeira do Brasil, que terá lugar noSantuário Nacional de Aparecida nosdias 10-12 de outubro, o Senhor Car-deal Giovanni Battista Re, PrefeitoEmérito da Congregação para os Bis-pos e Presidente Emérito da Pontifí-cia Comissão para a América Latina.

A 19 de agosto

Legado para a celebração do VIII cen-tenário da consagração da Basílica da

Abadia cisterciense de Casamari, queterá lugar a 15 de setembro, o SenhorCardeal Pietro Parolin, Secretário deEstado.

A 23 de agosto

Arcebispo Metropolitano de Tucu-mán (Argentina), o Rev.do Pe. CarlosAlberto Sánchez, até esta data Párocoda Paróquia de Nuestra Señora de laMerced a San Miguel em Tucumán.

D. Carlos Alberto Sánchez nasceu emSan Miguel de Tucumán, na Argentina,a 24 de abril de 1963, e foi ordenadoSacerdote em 24 de junho de 1988.

Prelados falecidos

Adormeceram no Senhor:

No dia 8 de agosto

D. Julio César Bonino Bonino, Bispoda Diocese de Tacuarembó (Uru-guai).

O ilustre Prelado nasceu a 2 de feve-reiro de 1947, em Santa Lucía (Uru-guai). Recebeu a Ordenação sacerdotalno dia 26 de maio de 1974. Foi orde-nado Bispo em 18 de março de 1990.

No dia 9 de agostoD. Robert Joseph Shaheen, BispoEmérito de Our Lady of Lebanon ofLos Angeles dos maronitas, nos Esta-dos Unidos da América.

O saudoso Prelado nasceu no dia 3de junho de 1937 em Danbury (EUA).Foi ordenado Sacerdote a 2 de maio de1964. Recebeu a Ordenação episcopalem 15 de fevereiro de 2001.

No dia 13 de agostoD. Savino Bernardo Maria CazzaroBertollo, Arcebispo Emérito de Puer-to Montt (Chile).

O venerando Prelado nasceu em Ab-bazia Pisani (Itália), no dia 28 de no-vembro de 1924. Recebeu a Ordenaçãosacerdotal a 16 de abril de 1949. Foiordenado Bispo em 13 de fevereiro de1964.

No dia 17 de agostoD. Francis Xavier DiLorenzo, Bispode Richmond (Estados Unidos daAmérica).

O saudoso Prelado nasceu em Fila-délfia (EUA), no dia 15 de abril de1942. Foi ordenado Sacerdote a 18 demaio de 1968. Recebeu a Ordenaçãoepiscopal em 8 de março de 1988.

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página 16 L’OSSERVATORE ROMANO quinta-feira 24 de agosto de 2017, número 34

Na audiência geral o Sumo Potífice recordou que além da vida existe um futuro de esperança

Morte e ódionão têm a última palavra

«A morte e o ódio não são as últimas palavras pronunciadas sobre a parábolada existência humana», recordou o Papa Francisco durante a audiência geral dequarta-feira 23 de agosto, na sala Paulo VI, falando da esperança cristã na vidaeterna.

Barcelona: quantas notícias tristesvêm dali! Saudei algumas pessoasdo Congo, e quantas notícias tristeschegam de lá! E muitas outras! Paramencionar apenas dois países, devós que estais aqui... Procurai pensarno rosto das crianças apavoradas pe-la guerra, no pranto das mães, nossonhos interrompidos de tantos jo-vens, nos refugiados que enfrentamviagens terríveis e muitas vezes são

que nos espera para nos consolar,porque conhece os nossos sofrimen-tos e preparou para nós um futurodiverso. Esta é a grandiosa visão daesperança cristã, que se dilata aolongo de todos os dias da nossaexistência e deseja consolar-nos.

Deus não quis a nossa vida porengano, obrigando-se a si mesmo e anós a duras noites de angústia. Aocontrário, criou-nos porque nos querfelizes. É o nosso Pai, e se nós aquie agora experimentamos uma vidadiversa daquela que Ele desejou paranós, Jesus garante-nos que o próprioDeus realiza o seu resgate. Ele tra-

pre cabisbaixo, amargurado e, comoàs vezes eu disse, com a cara de pi-menta avinagrada.

O cristão sabe que o Reino deDeus, o seu Senhorio de amor conti-nua a crescer como um grande cam-po de trigo, não obstante no meiohaja o joio. Há sempre problemas,bisbilhotices, guerras, enfermida-des... existem problemáticas. Mas otrigo cresce, e no final o mal será eli-minado. O futuro não nos pertence,mas sabemos que Jesus Cristo é amaior graça da vida: é o abraço deDeus que nos espera no fim, masque já agora nos acompanha e nosconsola ao longo do caminho. Eleleva-nos ao grande “tab ernáculo” deDeus com os homens (cf. Ap 21, 3),com muitos outros irmãos e irmãs,levaremos a Deus a recordação dosdias vividos aqui na terra. E naqueleinstante será bom descobrir que na-da se perdeu, nenhum sorriso e ne-nhuma lágrima. Por mais longa quea nossa vida tiver sido, teremos aimpressão de ter vivido num sopro.E que a criação não acabou no sextodia do Génesis, mas continuou semse cansar, porque Deus sempre sepreocupou connosco. Até ao dia emque tudo se completar, na manhãem que se extinguirem as lágrimas,no próprio instante em que Deuspronunciar a sua última palavra debênção: «Eis — diz o Senhor — queeu renovo todas as coisas!» (v. 5).Sim, o nosso Pai é o Deus das novi-dades e das suspresas. E naquele dianós seremos verdadeiramente felizes,e choraremos. Sim, mas choraremosde alegria!

Francisco expressou «proximidadecarinhosa» à população da ilha deÍsquia (Itália), atingida por um sismo,convidando a rezar «pelos mortos,feridos e seus familiares, e pelas pessoasque perderam a própria casa». Eis,entre outras, algumas das suassaudações no final da audiência geral.

Saúdo os peregrinos de língua por-tuguesa presentes nesta Audiência eatravés de cada um de vós, saúdo to-das as famílias dos vossos Países. Di-rijo uma saudação particular aosfiéis da paróquia de Ribeirão e aosgrupos de brasileiros. Deixai-vosguiar pela ternura divina, para quepossais transformar o mundo com avossa fé. Deus vos abençoe.

Dirijo uma cordial saudação aosjovens, aos doentes e aos recém-ca-sados. Caríssimos, elevemos o olharao Céu para contemplar o esplendorda Santa Mãe de Deus, que na se-mana passada pudemos recordar nasua Assunção, e ontem invocamoscomo nossa Rainha. Cultivai por elauma devoção sincera, para que per-maneça ao vosso lado na vossa exis-tência diária.

Finalmente, dirijo o pensamento eexprimo a carinhosa proximidade aquantos sofrem por causa do tremorde terra que, na noite de segunda-feira, atingiu a ilha de Ísquia. Ore-mos pelos mortos, feridos e familia-res, e pelas pessoas que perderam aprópria casa.

explorados... Infelizmente, a vida étambém isto. Por vezes diríamos queé sobretudo isto.

Talvez. Mas há um Pai que choraconnosco; existe um Pai que vertelágrimas de piedade infinita pelosseus filhos. Temos um Pai que sabechorar, que chora connosco. Um Pai

que Deus nos quer herdeiros de umapromessa e incansáveis cultivadoresde sonhos. Não vos esqueçais daque-la pergunta: “Sou uma pessoa deprimavera ou de outono?”. De pri-mavera, que espera a flor, que aguar-da o fruto, que se põe à espera dosol que é Jesus, ou de outono, sem-

Henri Matisse, «Jerusalém celeste»

Bom dia, prezados irmãos e irmãs!

Ouvimos a Palavra de Deus no livrodo Apocalipse: «Eis que eu renovotodas as coisas» (21, 5). A esperançacrisã baseia-se na fé em Deus quecria sempre novidades na vida dohomem, cria novidades na história,cria novidades no cosmos. O nossoDeus é o Deus que cria novidades,porque é o Deus das surpresas.

balha para nos resgatar.Acreditamos e sabe-

mos que a morte e oódio não são as últimaspalavras pronunciadassobre a parábola daexistência humana. Sercristão implica uma no-va perspetiva: um olharcheio de esperança. Al-guns julgam que a vidaencerra todas as suas fe-licidades na juventude eno passado, e que o vi-ver é uma lenta deca-dência. Outros aindaacham que as nossasalegrias são apenas epi-sódicas e passageiras, eque na vida dos ho-mens está inscrita a in-sensatez. Há aquelesque, diante de tantascalamidades, dizem:“Mas a vida não temsentido. O nosso cami-nho é a insensatez”.Mas nós cristão nãoacreditamos nisto. Aocontrário, cremos queno horizonte do homemexiste um sol que ilumi-na para sempre. Acredi-tamos que os nossosdias mais bonitos aindadevem chegar. Somospessoas mais de prima-vera do que de outono.Gostaria de perguntaragora — cada qual res-ponda no seu coração,em silêncio, mas res-ponda — “Sou um ho-mem, uma mulher, umjovem, uma jovem deprimavera ou de outo-no? A minha alma estána primavera ou no ou-tono?”. Cada um res-ponda a si mesmo. Vis-lumbramos os rebentosde um mundo novo, emvez de folhas amarela-das nos ramos. Não nosembalemos em nostal-gias, arrependimentos elamentações: sabemos

Não é cristão cami-nhar cabisbaixo — comoos porcos: eles cami-nham sempre assim —sem erguer os olhos ru-mo ao horizonte. Comose todo o nosso cami-nho acabasse aqui, noarco de poucos metrosde viagem; como se nanossa vida não houves-se meta alguma, ne-nhum ponto de chega-da, como se nós fôsse-mos obrigados a umperambular eterno, semqualquer razão para to-dos os nossos cansaços.Isto não é cristão.

As páginas finais daBíblia mostram-nos oderradeiro horizonte docaminho do crente: aJerusalém do Céu, a Je-rusalém celeste. Ela éimaginada antes de tu-do como um imenso ta-bernáculo, onde Deusacolherá todos os ho-mens para habitar defi-nitivamente com eles(cf. Ap 21, 3). Esta é anossa esperança. E oque fará Deus quando,finalmente, estivermoscom Ele? Terá uma ter-nura infinita por nós,como um pai ao receberos seus filhos que secansaram e sofreramprolongadamente. NoApocalipse, João profe-tiza: «Eis aqui o taber-náculo de Deus com oshomens! [...Ele] enxu-gará todas as lágrimasde seus olhos e já nãohaverá morte, nem luto,nem grito, nem dor,porque passou a pri-meira condição [...] Eisque eu renovo todas ascoisas!» (21, 3-5). ODeus na novidade!

Procurai meditar so-bre este trecho da Sa-grada Escritura, não demaneira abstrata, mas depois de terlido uma crónica dos nossos dias,depois de ter visto o telejornal ou aprimeira página dos jornais, onde hámuitas tragédias, onde se anunciamnotícias tristes às quais todos nóscorremos o risco de nos habituar-mos. Saudei algumas pessoas de