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Os mais festejados chefs do País reverenciam o seu nome. A colunista Nina Horta é amiga e tira o chapéu para ele. Jornais e revistas o têm como fonte. E, ainda assim, talvez você não conheça Carlos Alberto Dória, o sociólogo que fez do assunto “comida” seu objeto de estudo. Em entrevista à Graciliano, ele fala sobre a origem da culinária brasileira, políticas públicas capazes de entender a gastronomia como elemento integrante da cultura nacional e ainda aponta qual o caminho da cozinha de vanguarda. Leia a seguir TEXTO: CARLA CASTELLOTTI PRATO CHEIO O sociólogo, escritor e crítico Carlos Alberto Dória, um dos mais respeitados nomes da área de gastronomia no Brasil João Paulo Vicente 5 4 ano VII / nº 22 / 2014 ano VII / nº 22 / 2014 ENTREVISTA

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Os mais festejados chefs do País reverenciam o seu nome. A colunista Nina Horta é amiga e tira o chapéu para ele. Jornais e revistas o têm como fonte. E, ainda assim, talvez você não conheça Carlos Alberto Dória, o sociólogo que fez do assunto “comida” seu objeto de estudo. Em entrevista à Graciliano, ele fala sobre a origem da culinária brasileira, políticas públicas capazes de entender a gastronomia como elemento integrante da cultura nacional e ainda aponta qual o caminho da cozinha de vanguarda. Leia a seguir

TEXTO: CARLA CASTELLOTTI

PRATOCHEIO

O sociólogo, escritor e crítico Carlos Alberto Dória, um dos mais respeitados nomes da área de gastronomia no Brasil

João

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54 ano VII / nº 22 / 2014 ano VII / nº 22 / 2014

ENTREVISTA

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brasileira. Uma culinária, lembra, que tem como prato principal o arroz com feijão (“mais feijão que o arroz”), e inúmeros produtos nativos (“o quiabo é mais brasileiro que o tucupi”).

Mas os ingredientes e as particularidades da dieta do brasileiro são apenas algumas das muitas facetas que Carlos Alberto Dória explora e explica em suas pesquisas. Autor de um par de títulos (entre eles, o recém-lançado Formação da Culinária Brasileira – Escritos Sobre a Cozinha Inzoneira), Dória já foi dono de restaurantes, e hoje, além do trabalho como consultor, mantém o blog E-Boca Livre (ebocalivre.blogspost.com).

E não para por aí. Ao lado

do chef Rodrigo Oliveira, do festejado restaurante Mocotó, o sociólogo paulistano procura preservar e disseminar os preciosos estudos do folclorista potiguar Luís da Câmara Cascudo na ONG chamada de C5: Centro de Cultura Culinária Câmara Cascudo.

Na entrevista que você lê a seguir, Carlos Alberto Dória – que responde a muitas perguntas com outra interrogação – pensa, explica e ensina sobre a comida no Brasil. Ele lembra também que gostar de comida depende de repertório e que a nova vanguarda gastronômica está na ampliação da fronteira do que é comestível. Em resumo, um prato cheio. Boa leitura!

GRACILIANO - A banana veio da Ásia. O milho, das civilizações ameríndias. Para você, qual seria o mais brasileiro dos ingredientes? CARLOS ALBERTO DÓRIA - Há uma dificuldade conceitual quando se fala em ingrediente. O que é o ingrediente? O ingrediente ou a matéria-prima é aquilo que está no início de um processo de produção. Você tem o leite como ingrediente do queijo; o queijo como ingrediente do pão de queijo. Então, quer dizer que ingrediente é apenas aquilo que está no início do processo. Quando você vai falar de ingredientes da biodiversidade brasileira, isso é uma visão, mas não é, por exemplo, a visão do Alex [Atala] no livro dele [D.O.M., Redescobrindo Ingredientes Brasileiros], que aponta a coxinha e o Catupiry como ingredientes nacionais, que, para mim, mais se parecem com produtos acabados e não ingredientes. Por isso, você não apresentaria um ingrediente tipicamente nacional? Na nossa culinária, você encontra pouca coisa dos ingredientes próprios da biodiversidade brasileira. Eu gosto de citar um que, para mim, é emblemático: o pequi. Esse, sim, é um ingrediente quase que exclusivo do Brasil, que tem uma história de domesticação milenar. Os índios cultivavam a fruta assim como a mandioca,

que é igualmente importante na nossa dieta. E você tem outros ingredientes tipicamente brasileiros, como o abiu, cujo uso é restrito. Há tribos que cultivam a fruta, que pode chegar a ter um quilo e meio, enquanto que no supermercado o abiu não passa de 150 gramas. O foco nesse assunto tem que ser cultural também.

fechamento em torno da matéria-prima. Hoje, essa questão está em foco porque há um esgotamento, digamos assim, da gastronomia que privilegiou as técnicas.Como assim?O período do [Ferran] Adrià, por exemplo, é basicamente tecnológico. O que fazia o diferencial de uma gastronomia ou o trabalho do chef era o uso da tecnologia. Mas isso se vulgarizou. Hoje, todos fazem as mesmas coisas: cocção à baixa temperatura, as espumas etc. A técnica se estabilizou e deixou de ser um diferencial. Então, se volta para os ingredientes locais. Mas isso é um problema. Afinal, o que é, realmente, genuinamente brasileiro? É isso que define o uso de um ingrediente? Não, tendo como exemplo a [chef] Roberta Sudbrack, que trabalha com ingredientes como o quiabo, a banana, o milho, que são coisas que foram ganhando espaço e legitimidade na culinária do Brasil.E qual seria o prato mais brasileiro de todos?Essa é uma questão que apresento em um dos capítulos do meu livro [Formação da Culinária Brasileira]. É o que eu chamo de oposição entre legibilidade e legitimidade. Nós sabemos que as coisas que são da biodiversidade brasileira são genuinamente nacionais, mas não são, necessariamente, legíveis. Como, por exemplo,

N a camisa branca do entrevistado, estão bordadas as iniciais C.A.D. E o lugar mais habitado de seu apartamento é a cozinha. A descrição pode fazer o leitor achar que falamos de um chef. Mas não. Carlos Alberto Dória é sociólogo. Um dos maiores estudiosos da culinária brasileira em atividade, foi com suas pesquisas e escritos que ajudou chefs como Alex Atala (Com Unhas, Dentes & Cuca) e Roberta Sudbrack (Eu Sou do Camarão Ensopadinho com Chuchu) a escrever seus livros.

O homem, que quando criança dizia conviver com mesas fartas de arroz, feijão e nhoque na casa dos amigos da escola, explica que ainda é preciso inventariar a enorme diversidade da comida

Por que? Afora esse conjunto de ingredientes da nossa biodiversidade que são subutilizados, você tem muitos elementos que os portugueses trouxeram para o Brasil. A fruta-pão, se não me engano, veio da Ásia, se aclimatou no Caribe e chega aqui pela mão dos portugueses. Existia essa transação muito grande. Para você falar de ingredientes brasileiros, você tem que analisar esse processo de

Segundo Dória, houve um esgotamento da gastronomia que privilegiava as técnicas. Hoje, o foco está no ingrediente, em especial na questão do que é brasileiro

Dória em palestra realizada em São Paulo. Para ele, gostar de comida depende de repertório

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elementos de uma região do País que você não conhece em outra. Quando eu dou palestras, costumo perguntar: ‘Quem conhece tucupi?’. Pouca gente diz que conhece. E ainda que o tucupi seja propagandeado como algo tipicamente brasileiro, ele não tem essa legibilidade que uma cultura culinária popular precisa ter. Então, nesse sentido, o quiabo é mais brasileiro do que o tucupi. Isso porque você encontra o quiabo em todo o Brasil?Sim. O quiabo, o jiló, as farinhas de milho e mandioca. São coisas muito mais gerais do que formigas e tucupi. Há uma diversidade muito grande no Brasil, e por isso mesmo é difícil se falar em uma culinária brasileira, no sentido de falar de uma culinária popular. Por isso, é difícil falar sobre o que seria

típico. O que é típico? Típico é um tipo que é geral. E, no Brasil, isso é difícil.Mas não existe um prato que se come em todo o País?O arroz e feijão. O feijão mais do que o arroz. Há lugares onde você mal come arroz, como no Norte do Brasil. Primeiro, há tipos diferentes, como o arroz selvagem, que nunca foi usado pelos índios. Segundo, que o arroz foi introduzido cerca de três vezes no Brasil: uma em Iguape (SP), no Maranhão, e depois, no século 19, no Rio de Janeiro. Isso, sem falar nos negros islamizados que chegaram na Bahia e comiam arroz. O vatapá, no final do século 19, era feito com farinha de arroz e não com pão adormecido, como hoje. O arroz é muito presente na dieta desses negros. Mas o arroz com

feijão se populariza no Rio de Janeiro, com a chegada da Corte Portuguesa. O próprio dom João VI baixa uma determinação de que seja servido arroz para a tropa. Aí começa a se comer o arroz com feijão, que surge como comida de funcionário público e dos militares, e só depois ganha o Rio de Janeiro como um todo. O arroz vem se somar ao feijão – no Rio, na Bahia, no Rio Grande do Sul por outras vertentes, mas permanece muito pouco utilizado no Norte.Por que há a diferença do feijão-preto e do feijão-fradinho ao longo do País?Essa questão está justamente em um dos capítulos do meu livro. Eu me pergunto: ‘Se você tem o feijão em toda parte, por que ele mantém uma diversidade tão grande?’.

É uma argumentação longa, mas basicamente digo que o feijão é um produto tipicamente identitário. Você tem no feijão a representação da Nação por meio da feijoada, ou no mito da feijoada, que é um mito modernista. O feijão-preto tem toda uma representação da escravidão e do preto – e, em várias regiões do País, há feijões regionais que são muito mais importantes que qualquer outro. Você não tem o feijão-preto sendo consumido nacionalmente, a não ser ritualisticamente nisso que se chama de feijoada brasileira. Mas só isso não basta para se entender o feijão. Porque o feijão serve para particularizar a comida doméstica. Você certamente acha que o tempero do seu feijão é melhor que o meu. O tempero do feijão não é

objeto de comparação pública, não faz parte da gastronomia. Cada família tem o seu tempero, assim como o gefilte fish judeu, que é um bolinho de carpa. O feijão se presta a essa diferenciação entre a nação e o lar, diferenciação de espaço: casa e nação.Câmara Cascudo, na sua História da Alimentação no Brasil, dá conta de que a nossa feijoada é um prato de origem francesa, que vem do cassoulet. Ainda assim, a feijoada como a conhecemos (o ensopado de feijão com embutidos e cortes menos nobres de carne) é uma adaptação tipicamente nacional?A feijoada é um prato típico português. É um cozido feito com feijão. A introdução de carnes [no ensopado de feijão], segundo o Câmara Cascudo,

se dá no Rio de Janeiro a partir dos pretos livres. Os pretos que estão dedicados ao comércio ganham algum dinheiro e compram carnes que colocam nesse feijão. Essa seria a origem da feijoada que o Câmara Cascudo só vai identificar no final do século 19, como prato servido nas pensões. Também no começo do século 19, [o professor francês] Jean-Baptiste Debret fala sobre a feijoada e sobre o feijão-preto. Mas a feijoada nada tem a ver com a senzala, e isso é o importante.É daí que vem o mito? A feijoada não é um prato dos negros. É um prato que expressa essa questão da convergência nacional entre índios, negros e brancos. O que se diz é que, na feijoada, você teria esses elementos

Acima, o quiabo, que Dória considera mais brasileiro que o tucupi, já que pode ser encontrado em todas as regiões, e o pequi, fruta exclusivamente brasileira, que possui uma história de domesticação milenar na cultura indígena

A feijoada não é um prato dos negros. É um prato que expressa essa questão da convergência nacional entre índios, negros e brancos

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[que representam as três etnias]. Mas esse é um relato da cozinha brasileira dos anos 1920, 1930. Quando você tem uma necessidade de ter uma literatura nacional, uma filosofia nacional, uma cultura nacional. É uma demanda do País nas primeiras décadas do século 20. Ainda que essa demanda comece bem antes, em 1870, quando se começa a discutir o que é a Nação. Aí há a construção de uma ideia de cozinha nacional, da qual participam ativamente o Gilberto Freyre e o Câmara Cascudo – apesar das diferenças entre eles não serem poucas.

Você acredita que a principal característica da culinária brasileira seria a sua própria diversidade? Nessa formação da ideia de nação brasileira, no Manifesto Regionalista de 1926, o Gilberto Freyre procura fazer uma representação regionalista do País para destacar a importância do Nordeste na cultura nacional. Gilberto Freyre diz que o Nordeste deu uma contribuição muito maior ao País do que simplesmente o açúcar. Ele descreve as virtudes do Nordeste frente ao conjunto da Nação, e digamos que a culinária na obra dele é uma tentativa de demonstrar

isso. Mas o Freyre é um sujeito conservador. Ele fala de uma boa cozinha brasileira constituída no Segundo Império, que depois decai. Pernambuco, para o Freyre, seria o estado que ainda conseguia manter algumas tradições, como a doçaria conventual. O Freyre é conservador no sentido de que mostra o que está se perdendo com a modernização, como os hábitos franceses no Recife, por exemplo. E o folclorista Luís da Câmara Cascudo? Estudos mais recentes, que comparam Câmara Cascudo ao Freyre, mostram que o folclorista potiguar tem

uma posição diferente do pernambucano. Câmara Cascudo vem de um estado pobre cujas principais atividades econômicas são a pecuária e o cultivo do algodão. O Rio Grande do Norte é um estado que almeja uma modernização. Câmara Cascudo vai em busca de uma cultura profunda, popular. Ele baseia suas pesquisas em fontes populares, especialmente no folclore, e constrói uma ideia baseada em três vertentes: a cozinha portuguesa, a cozinha indígena e a cozinha negra. Câmara Cascudo está em oposição à ideia de região. Ele fala de um substrato nacional. Os anos 1920 e 1930 produzem dois pensamentos sobre a culinária nacional – uma regionalizada e outra etnicizada. É possível sentir os efeitos desses pensamentos hoje em dia? A culinária regionalizada dá ingredientes para a indústria do turismo. Quando a revista 4 Rodas surge, ela abraça essa ideia de que há uma diferença regional marcante. É curioso olhar isso ao longo dos anos porque a revista define um conjunto de pratos típicos, e passam-se os anos e esses pratos mudam (risos). Ao passo

que o Câmara Cascudo vai procurar essas três vertentes étnicas; e como isso evolui? Isso não evolui. Aí está o problema. Há uma estagnação. Não se recupera, por exemplo, a diversidade de povos indígenas. Quando o Câmara Cascudo fala em índio, ele fala de um índio genérico. Hoje, você tem estudos que mostram a diversidade cultural dos povos africanos que vieram para cá. Hoje, já há uma discussão sobre os índios do litoral, que usavam a mandioca, e os índios do interior, especialmente os Tupis-Guaranis, que usavam o milho porque tinham contato com os povos da cordilheira. Você tem uma culinária do milho, que pega o Centro-Oeste e o Sul, que vai até a Argentina. É uma mancha cultural muito grande, da qual os cronistas coloniais, os viajantes, não

falaram porque eles andaram mais pelo litoral e tiveram mais contato com a mandioca e não com o milho. Mas o milho é igualmente importante. Onde o milho deixa raízes? No Sudeste e no Sul do País. A culinária caipira é, toda ela, baseada no milho e não na mandioca. Você acredita mais em qual visão? A do Freyre ou a do Câmara Cascudo? Eu acredito mais na visão do Câmara Cascudo. Mas acho que falta inventariar essa diversidade. Nós percebemos mais a coisa simplista do Freyre, da regionalização, do que uma diversidade mais profunda, que você teria observando, por exemplo, a culinária dos índios. Há povos [indígenas] que comem batata-doce, abóbora, amendoim. Amendoim é importantíssimo, é algo originário do Brasil –

Gilberto Freyre diz que o Nordeste deu uma contribuição muito maior ao País do que simplesmente o açúcar. [...] Mas o Freyre é um sujeito conservador

Os índios do litoral usavam a mandioca (foto), ao contrário dos índios do

interior, adeptos do milho, pouco mencionado pelos cronistas coloniais,

que andavam mais pela costa litorânea

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acredite se quiser. Como os estudos etnográficos voltados para a alimentação são poucos, essa diversidade não se mostrou ainda. Existe alguma lógica que explique por que quem mora próximo à praia tem predileção por frutos do mar? Isso acontece por privilegiarmos os ingredientes mais frescos e típicos do local onde vivemos?Procuro desenvolver a ideia de que a culinária brasileira se fez entre secos e molhados. Você tem os pratos que são ensopados, e o outro conjunto de pratos muito secos, como a paçoca e o cuscuz. Eu fiz um gradiente que vai do chibé, que é uma mistura de muita água e pouca farinha (é quase um refrigerante), passando pelo mingau e o pirão, até chegar à farofa. E você tem as moquecas, que são ensopados que levam farinha... Quando você olha o conjunto, fica claro que os ensopados se desenvolvem no litoral, com diferenças por região. Quais diferenças, por exemplo? Do Ceará até o Espírito Santo, os ensopados levam leite de coco. Na mancha da Bahia, você tem o dendê. E do Espírito Santo para baixo, você só tem a peixada. Mas é tudo uma coisa só: comida de água. No Sertão, há os produtos do milho-verde, do fubá, do milho seco, que, reidratado e macerado, vira farinha de milho e dá o cuscuz, que surge na região de São

Paulo. São os tropeiros que, pelo interior, levam o cuscuz para o Nordeste. Você tem essa linha do interior com pratos mais secos e a faixa litorânea com pratos molhados. O peixe, na Amazônia, é seco, o moquém – ele integra o rol de alimentos secos que costuma ser reidratado e cozido. Isso é muito parecido com o bacalhau dos portugueses, com a diferença que os índios não usavam o sal. Em um post do seu blog, você fala sobre as formas de servir: à francesa, à inglesa, à americana. Qual seria a forma (ou as formas) de comer à brasileira? O dualismo da culinária brasileira advém do fato de que você tem uma culinária popular que nada tem a ver com a culinária da elite, que se espelha em Paris. O garfo e a faca entram no repertório da mesa no século 19, eles fazem parte da cultura urbana. Os modos à mesa das elites brasileiras vêm do francesismo. O povão come de outra forma.Com a colher, por exemplo? Foi o Rodrigo Oliveira que me chamou a atenção para isso. No Mocotó, ele serve vários pratos com colher. Essa é uma reminiscência. Mas no interior do Brasil, se come muito com colher. Eu me lembro que, na fazenda do meu avô, os caboclos tinham marmita e colher. Se você pensar a funcionalidade do picadinho, é que o prato pode ser comido com colher.

Esse seria o serviço à brasileira, então?Na França, você tem um ritual complexo na aristocracia, que depois acaba sendo simplificado e decodificado no serviço à francesa. Você tem o serviço à russa, à inglesa... Cada povo vai padronizando [a sua maneira de comer], até para que as pessoas possam se situar em uma etiqueta – é um padrão, como uma linguagem qualquer. No Brasil, no entanto, você tem um dualismo. O que eu procuro dizer no blog é que existe uma riqueza não observada no nosso modo de coreografar a refeição. Outra coisa típica brasileira é a mesa cheia. Quando eu era moleque, em casa, se servia peixe, carne e frango, além dos acompanhamentos. É uma forma de reafirmar o status da família. Mesa cheia é sinônimo de que uma família está bem. Essa coisa da fartura é uma reminiscência do Brasil rural, da aristocracia rural. Você diz que apreciar comida é refinar critérios. No caso de um trabalhador braçal, por exemplo, que vai passar boa parte da vida se alimentando das mesmas coisas, você quer dizer que ele não é capaz de apreciar comida? Ele come apenas pela obrigação de se alimentar? Não necessariamente. Ele desenvolve um gosto tosco, especializado. Não só comida, como música e literatura

requerem repertório. Você precisa estar em contato. Outro dia, eu ouvi um depoimento da minha empregada que muito me impressionou. Ela dizia que sua filha trabalhava como faxineira num shopping center. Foi quando a filha disse: ‘Mãe, estou pensando em algum dia comer sushi’. Eu acho que é isso. Você estar posto diante de uma situação e ultrapassar essa barreira. E isso não vale só para as classes populares. Quantas pessoas de elite gostam de jiló? O amargo do jiló, as elites não gostam; preferem o amargo da alcachofra. O chef Alex Atala é um pesquisador incansável, e sempre que pode vai à Amazônia em busca de novos ingredientes. Foi assim que ele se tornou o embaixador da Priprioca. Para você, qual o principal feito do chef?Ele tem uma importância fundamental, que é levar a sério essa ideia de renovar a cozinha brasileira. Afora isso, ele é um cara bastante antenado com o que se passa nos principais centros gastronômicos. Além da técnica, o Atala está em contato com as tendências como o terroir [produtos próprios de uma área, como a macaxeira plantada em Alagoas ou a macaxeira plantada em São Paulo]. Ele está ligado a uma tendência internacional da renovação gastronômica. Eu acho que o Atala tem coisas boas, coisas médias e coisas

Alex Atala, do restaurante paulistano D.O.M. e eleito um dos melhores chefs do mundo: “Ele tem uma importância fundamental, que é levar a sério essa ideia de renovar a cozinha brasileira”, diz Dória

“Procuro desenvolver a ideia de que a culinária brasileira se fez entre secos e molhados”, diz Dória, que elaborou um gradiente – do chibé (quase um refrigerante), passando pelo mingau e o pirão, até a farofa

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que eu não gosto, como todo chef. Para mim, a coisa mais genial feita por ele é o sorvete de jabuticaba com wasabi. Porque isso é uma coisa que só podia acontecer em São Paulo. É uma comida totalmente paulistana. Porque só aqui tem japonês e jabuticaba. E o que você não gosta da cozinha do Atala?Eu acho que eu não gosto de algumas coisas que se tornaram muito vulgares, como barriga de porco à baixa temperatura. Não aguento mais. Todo mundo faz. Alex Atala e Helena Rizzo são os chefs que internacionalizaram a cozinha brasileira? A Helena está tendo mais visibilidade agora, mas ela já faz um trabalho consistente há muitos anos. Hoje, eu acho a Helena Rizzo a melhor chef do País. Não que o Atala não seja um grande chef, mas ele tem feito um trabalho que o afasta da cozinha. Antes deles, houve outro nome?Esse movimento começou com o Paulo Martins. Ele foi o primeiro chef a apresentar uma série de produtos naturais brasileiros para o Adrià, por exemplo. Ele sempre foi um fornecedor de ingredientes para importantes chefs da cena internacional. Ele teve um papel nem sempre visível, mas importante na difusão da culinária brasileira. Ao contrário dos chefs mais

antigos, da nouvelle cuisine - chefs estrangeiros que descobriram nossos produtos aqui. Essa coisa da globalização é um processo fundamental nessa mudança. Tudo o que você faz hoje é internacional. Os encontros internacionais de chefs recebem gente do mundo todo; eles trocam, cozinham, ficam amigos, pesquisam. Há uma dimensão

internacional muito clara do trabalho gastronômico, e na nouvelle cuisine, nos anos 1970, 1980, não era assim. Era uma diáspora de chefs franceses para o mundo todo.Você teceu comentários no blog sobre a matéria que falava que cozinha não é lugar de mulher, publicada no caderno Comida, da Folha de S. Paulo. No início de maio de 2014,

Helena Rizzo foi eleita pela revista Restaurant a melhor chef do mundo na categoria “chef mulher”. Por que há essa diferenciação? À mulher, cabe o papel da cozinheira e ao homem, o posto de chef?Você tem na cozinha, como em todas as áreas, um componente forte do capitalismo, que é a competição. E a competição mobiliza argumentos contra o outro. Esse machismo que há na cozinha é muito forte ainda. Se você perguntar para o Laurent [Suaudeau] o que ele acha de mulher na cozinha, ele vai dizer que não serve. Porque elas ficam menstruadas e faltam. Não carregam as coisas, não tem a mesma força... Ainda assim, a boa cozinha, a mitológica, é a cozinha das avós, das mães. Sempre que a cozinha francesa entrou em crise, ela voltou a essa cozinha tradicional. Nesse artigo que escrevi sobre a subfunção do trabalho feminino no trabalho tipicamente masculino é: o papel dessa mitologia, da cozinha da mãe e da avó, é fundamental para manter a ideia de qualidade. Uma qualidade que advém da relação que as mães e as avós mantêm com os comensais. Quem é que sabe o ponto do ovo como você gosta? A sua mãe. A mãe preserva as singularidades. Essa função de fazer uma culinária que adere à sua subjetividade está na cozinha doméstica, que é dominada

pelas mulheres. Isso se contrapõe à cozinha industrial, onde o gênero não importa, porque você tem a tecnificação, onde os gestos femininos desaparecem. Mas eu acho esse prêmio que a Helena ganhou uma bobagem, é um marketing. Eu acho a Helena Rizzo a melhor chef brasileira e ponto.Você já disse que não é preciso voltar à tradição, no máximo revisitá-la. Você acredita que a cozinha molecular (ou a cozinha tecnoemocional) é a vanguarda da gastronomia?Foi, não é mais. As técnicas se estabilizaram e se generalizaram.E o que é a vanguarda hoje?É você atravessar fronteiras. Ampliar o campo do comestível.Você defende que a política de um país interfere na sua gastronomia. Mas, no caso do Brasil, você diz que o que interfere mesmo é a ausência do Estado. Como isso funciona?No turismo, você tem um reflexo dessa presença do Estado. Você tem a regionalização, o discurso da tradição. Isso é uma política de Estado. O que falta no Brasil é um estímulo à renovação. Você não tem a universidade se envolvendo, como na Espanha, por exemplo. Você não tem nenhum estímulo político para transformar a gastronomia numa esfera dinâmica da cultura. Por exemplo, o Plano Nacional de Turismo usa uma

Para Dória, Helena Rizzo, do restaurante paulistano Maní, é hoje a melhor chef do Brasil. “Ela já faz um trabalho consistente há muitos anos”, diz

“O que falta no Brasil é um estímulo à renovação. Você não tem a universidade se envolvendo, como na Espanha, por exemplo. Você não tem nenhum estímulo político para transformar a gastronomia numa esfera dinâmica da cultura”, diz Dória

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ENTREVISTA

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Gostou do que leu e quer saber mais sobre as pesquisas de Carlos Alberto Dória? A Graciliano dá uma mão e lista a seguir quatro títulos que

você, leitor interessado em comida e gastronomia, não pode deixar de ter.

ESTANTE CARLOS ALBERTO DÓRIA

Formação da Culinária Brasileira – Escritos sobre a Cozinha InzoneiraAutor: Carlos Alberto Dória Editora: Três Estrelas Preço: R$ 42 (280 págs.) Sinopse: O que constitui a culinária brasileira, que hoje vive um boom no País e no exterior? Quais são as suas bases históricas e sociais? Com que elementos os chefs poderão erguer, no Brasil, uma gastronomia original? São esses os temas que o sociólogo Carlos Alberto Dória explora nesse livro.

A Culinária Materialista - A Construção Racional do Alimento e do Prazer GastronômicoAutor: Carlos Alberto Dória Editora: Senac Preço: R$ 60 (264 págs.) Sinopse: Esse é um livro que procura restaurar o lugar da cozinha na sociedade: o espaço onde conformamos a natureza às suas modalidades comestíveis. Sem cair na tentação do ultraculturalismo, toma a cultura num sentido amplo, incluindo as dimensões material e social (divisão do trabalho, técnica, tecnologia etc.) que determinam o quê e como comemos.

Estrelas no Céu da Boca | Escritos Sobre Culinária e Gastronomia Autor: Carlos Alberto Dória Editora: Senac Preço: R$ 64,90 (272 págs.) Sinopse: O autor investiga a culinária e a gastronomia por dentro, explicando suas lógicas, expondo os passos e avaliando resultados. Sendo um livro sobre cultura e não um guia prático de cozinha, propõe uma reflexão sobre a gastronomia no Brasil e no mundo, a vanguarda e

a tradição.

Com Unhas, Dentes & Cuca: Prática Culinária e Papo-cabeça ao Alcance de Todos Autores: Alex Atala e Carlos Alberto Dória Editora: Senac Preço: esgotado (vale garimparna internet) Sinopse: Os autores revisitaram o conhecimento clássico da culinária estabelecido nos últimos séculos e apresentam as novas técnicas desenvolvidas pelas indústrias do setor e pelas universidades - o cozimento a baixas temperaturas ou a vácuo, a confecção de sorvetes sem o tradicional resfriamento progressivo e o preparo de mousses e emulsões de maneiras completamente diferentes.

vez a palavra gastronomia e uma vez a palavra culinária em um documento de 100 páginas. A gastronomia está fora do foco político. O Estado ainda não acordou para o fato de que a gastronomia pode ser algo tão importante como a música e a arquitetura, por exemplo.O Peru foi eleito em 2013 como destino gastronômico do ano. Alex Atala atribui o título ao incentivo e à propaganda feita

pelo governo peruano. Você concorda? O que falta ao Brasil para entrar nesta lista?Sim, claro. Faltam fundos públicos vocacionados para a gastronomia nacional. Você não tem a gastronomia no foco de investimento público. Hoje, o papel do Estado na gastronomia é de repressão, com a Anvisa, por exemplo – ela coíbe, não incentiva. Um exemplo é o caso do queijo canastra, que não

pode ultrapassar a fronteira de Minas Gerais. Nos últimos tempos, foodie se tornou adjetivo daqueles que apreciam comida e chegam a gastar até 60% dos seus salários em restaurantes. Como você, que já foi sócio de quatro casas diferentes, explica o fato de se cobrar cada vez mais caro por um jantar?O mundo capitalista é perverso. Nunca é uma coisa harmônica.

E hoje, quando você tem uma supervalorização da chamada cultura gourmet, a perspectiva de crescer e se desenvolver está ligada a você entregar a sua alma ao mercado de elite. Mas tudo tem limite. Você oferece um serviço, mas existe um restaurante ao lado do outro, e o serviço se diferencia cada vez menos, sob o aspecto técnico e das matérias-primas. Assim, uma hora, o negócio

começa a esvaziar, e daí fica bacana fazer um restaurante de bairro, como o Jiquitaia, com comida honesta e relação pessoal. É outra sociabilidade. Eu acho que as duas coisas existem e os papéis são intercambiáveis. Ainda que a força centrípeta puxe os empreendedores a entrar na roda-viva do mundo fashion e shopinizável.

Para Dória, o Estado ainda não percebeu que a gastronomia pode ser tão importante culturalmente quanto a música e a arquitetura

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ENTREVISTA