prÁticas de ensino bem-sucedidas nos anos iniciais...

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6858 PRÁTICAS DE ENSINO BEM-SUCEDIDAS NOS ANOS INICIAIS DO ENSINO FUNDAMENTAL: O INÍCIO DA DOCÊNCIA NA EDUCAÇÃO FÍSICA Catia Silvana da Costa (PPGE/UFSCar) Maria Iolanda Monteiro (PPGE/UFSCar) Eixo 05: Políticas de formação de professores Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) [email protected] Introdução Neste artigo, discutiremos as práticas pedagógicas de uma professora de Educação Física iniciante - atuante no contexto dos anos iniciais do Ensino Fundamental - com base no recorte de uma Dissertação de Mestrado (COSTA, 2014 i ) desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) no período de 2012 a 2013. Com o propósito de conhecer e compreender essas práticas e as fontes que influenciam na construção dos saberes dessa professora, a dissertação trouxe foco para evidências que, salvo exceções (GUARNIERI, 2005; LEAL, 2011), não são apontadas pela literatura sobre o início da carreira. Assim, pudemos evidenciar os aspectos positivos do período de inserção na docência por meio de um estudo de caso representativo de uma professora iniciante (COSTA, 2014). A pesquisa supracitada, motivada em considerações sobre o início da carreira como uma fase complexa e pouco explorada (CORRÊA; PORTELLA, 2012; HUBERMAN, 1995) e nos professores iniciantes (COSTA; FERREIRA, 2013; COSTA; VOLTARELLI; CUNHA, 2012), apresentou o desenvolvimento de práticas de ensino bem-sucedidas nas aulas de Educação Física nos anos iniciais. Essas práticas, pouco comuns nesse período, se fundamentam em uma perspectiva contextualizada e interdisciplinar de ensino e ressignificam a aprendizagem dos alunos para “além da prática” (propostas de atividades com planejamento, objetivos e significados próprios da Educação Física enquanto “componente curricular” no contexto educacional). Segundo Silva e cols. (2007), o bom professor estimula o interesse do aluno respeitando suas fases de desenvolvimento, desenvolve conteúdos expressivos, proporciona uma aprendizagem eficaz, integra todos nas atividades, instiga o processo criativo, domina a especificidade da área, tem consciência sobre o valor de sua atuação profissional, posiciona-se como um permanente aprendiz e apresenta respeito para com os alunos e consigo próprio.

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PRÁTICAS DE ENSINO BEM-SUCEDIDAS NOS ANOS INICIAIS DO ENSINO

FUNDAMENTAL: O INÍCIO DA DOCÊNCIA NA EDUCAÇÃO FÍSICA

Catia Silvana da Costa (PPGE/UFSCar)

Maria Iolanda Monteiro (PPGE/UFSCar)

Eixo 05: Políticas de formação de professores

Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior

(CAPES)

[email protected]

Introdução

Neste artigo, discutiremos as práticas pedagógicas de uma professora de

Educação Física iniciante - atuante no contexto dos anos iniciais do Ensino Fundamental

- com base no recorte de uma Dissertação de Mestrado (COSTA, 2014i) desenvolvida no

Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da Universidade Federal de São

Carlos (UFSCar) no período de 2012 a 2013.

Com o propósito de conhecer e compreender essas práticas e as fontes que

influenciam na construção dos saberes dessa professora, a dissertação trouxe foco para

evidências que, salvo exceções (GUARNIERI, 2005; LEAL, 2011), não são apontadas

pela literatura sobre o início da carreira. Assim, pudemos evidenciar os aspectos positivos

do período de inserção na docência por meio de um estudo de caso representativo de

uma professora iniciante (COSTA, 2014).

A pesquisa supracitada, motivada em considerações sobre o início da carreira

como uma fase complexa e pouco explorada (CORRÊA; PORTELLA, 2012; HUBERMAN,

1995) e nos professores iniciantes (COSTA; FERREIRA, 2013; COSTA; VOLTARELLI;

CUNHA, 2012), apresentou o desenvolvimento de práticas de ensino bem-sucedidas nas

aulas de Educação Física nos anos iniciais. Essas práticas, pouco comuns nesse

período, se fundamentam em uma perspectiva contextualizada e interdisciplinar de

ensino e ressignificam a aprendizagem dos alunos para “além da prática” (propostas de

atividades com planejamento, objetivos e significados próprios da Educação Física

enquanto “componente curricular” no contexto educacional).

Segundo Silva e cols. (2007), o bom professor estimula o interesse do aluno

respeitando suas fases de desenvolvimento, desenvolve conteúdos expressivos,

proporciona uma aprendizagem eficaz, integra todos nas atividades, instiga o processo

criativo, domina a especificidade da área, tem consciência sobre o valor de sua atuação

profissional, posiciona-se como um permanente aprendiz e apresenta respeito para com

os alunos e consigo próprio.

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A participante da pesquisa de mestrado foi selecionada por ser considerada uma

professora iniciante, estando em seu 4º ano de atuação, sendo os dois primeiros na rede

municipal e, os dois últimos, em duas escolas da rede de ensino da Secretaria de Estado

da Educação de São Paulo (SEE-SP). No momento da pesquisa se encontrava em um

processo de transição entre a “exploração” e a “estabilização” (HUBERMAN, 1995). A

formação inicial, a condição de efetiva, a atuação com os anos iniciais e a disponibilidade

para a pesquisa também foram cuidadosamente consideradas.

Com o objetivo de conhecer e compreender as práticas dessa professora,

refletimos sobre o professor iniciante, as características do início da carreira e suas

implicações (FERREIRA, 2006; GUARNIERI, 2005; HUBERMAN, 1995), a formação

inicial em Educação Física e as dimensões dos processos de aprendizagem e de

desenvolvimento profissional (BRASIL, 2001, 2011; TANCREDI, 2009) e a natureza

social, pluralidade e temporalidade dos saberes docentes (BORGES, 2005; TARDIF,

2008).

Apresentamos um movimento de reflexão sobre a formação inicial em Educação

Física tomando-se por base uma trajetória da racionalidade técnica à garantia dos

conhecimentos da formação específica e da formação ampliada nos cursos de

licenciatura, em razão da necessidade de se voltar olhares para os saberes que são

construídos pelos professores iniciantes e não somente para as particularidades dos

momentos de ingresso na docência. As dimensões do processo de aprendizagem e de

desenvolvimento profissional da docência também integram nossas reflexões, no

propósito de contemplar a questão e os objetivos da referida pesquisa, ilustrar a

diversidade de fontes de aprendizagem e dar visibilidade à forma como o professor

aprende e se desenvolve na trajetória de sua profissão.

Refletimos sobre os saberes docentes, os quais são construídos de forma intensa

e acentuada no início da carreira, entre os três ou os cinco primeiros anos, e pode

orientar todos os saberes imprescindíveis à atuação docente (TARDIF, 2008). Assim, faz-

se necessário estabelecer relações entre os saberes e o início da carreira, uma vez que a

iniciação e o desenvolvimento na docência implicam em apropriação de saberes objetivos

e exclusivos dos contextos de trabalho, incluindo hábitos, normas e valores (TARDIF,

2008). Tomando-se por base a natureza social e pluralidade dos saberes, Borges (2005)

afirma que a análise dos saberes deve estar diretamente relacionada às particularidades

da atividade exercida (considerando a formação em licenciatura e bacharelado e os

diferentes campos de atuação do profissional de Educação Física).

Igualmente, contextualizamos a Educação Física retomando seu percurso

histórico para proporcionar visibilidade e compreensão sobre a constituição dessa área

do conhecimento (BETTI, 2011; CASTELLANI FILHO, 2008), situando as diversas

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tendências que influenciaram sua configuração atual e apresentando a construção do

conceito de “cultura corporal” (BRASIL, 1997; SOARES e cols., 1992). Posicionamo-nos

em uma “educação de corpo inteiro” (FREIRE, 2010) em razão das possibilidades de

diálogo com nossos dados. Refletimos sobre a legislação prescrita para a Educação

Física em razão da necessidade que sentimos de legitimar essa prática na escola

enquanto “componente curricular” (BRASIL, 2001, 2007; GALLARDO, 2010) e breves

resultados de pesquisas sobre o seu ensino nos anos iniciais do Ensino Fundamental

(KAWASHIMA; SOUZA; FERREIRA, 2009).

Diante do objetivo exposto, justificamos a abordagem de investigação qualitativa,

da qual extraímos a opção pelo estudo de caso (ANDRÉ, 1998; BOGDAN; BIKLEN,

1994), representativo de uma professora iniciante. Recorremos às entrevistas

semiestruturadas, à observação-participante, à análise documental (instrumentos que

distinguem a pesquisa qualitativa), à caracterização da participante, à contextualização

das escolas e a forma como os eixos de análise foram construídos.

Realizamos observações das práticas da participante em duas escolas (Escola 1 e

Escola 2), entrevistas semiestruturadas e análises de documentos, observando também o

seu envolvimento em cursos na área. Licenciada em Educação Física pela Universidade

Estadual Paulista (UNESP), em 2007, especializou-se em Educação Física Escolar pela

UFSCar em 2010, estando em seu 4º ano de atuação profissional na rede pública de

ensino.

Observamos 90 aulas, 20 na Escola 2 (com 3ºs anos), 70 aulas (com 3ºs, 4º e 5ºs

anos) e duas Aulas de Trabalho Pedagógico Coletivo (ATPC) na Escola 1 (unidade-sede

da participante). Nas entrevistas semiestruturadas, obtivemos o relato oral da professora,

apreendendo as múltiplas dimensões de sua trajetória profissional.

Na análise documental, utilizamos os documentos para constituir o fato no seu todo,

complementando os conhecimentos extraídos dos dados coletados - os instrumentos de

coleta de dados explicitados neste tópico foram utilizados mediante apreciação e

aprovação da proposta desta pesquisa pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) em

Seres Humanos da UFSCar, no processo 72184. Tal análise ocorreu mediante a leitura

do Projeto Político Pedagógico (PPP) de cada escola, os quais descrevemos

brevemente.

As duas Unidades Escolares (UE) da SEE-SP atendem alunos dos anos iniciais e

seus PPP encontravam-se organizado em um período de quatro anos. A Escola 1 articula

a aprendizagem com sua função social, respeitando as particularidades da comunidade

local. Para a equipe gestora, o PPP é um processo em contínua (re) construção.

Observamos que o documento não faz referências específicas às áreas do

conhecimento.

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O PPP da Escola 2 apresenta-a mediante proposições de competências e

habilidades para os anos iniciais, objetivos gerais em todas as áreas, autoavaliação,

currículo, processos para as normas regimentais, planos de ensino, sistema

organizacional e avaliação. Na composição dessa análise, observamos também o Plano

de Ensino Anual (PEA) da participante, caderno de planejamento, atividades, livros,

vídeos, textos e a legislação para o ensino da Educação Física nos anos iniciais.

Com base em reflexões e nas informações obtidas, identificamos e construímos

eixos para a análise dos dados. Os eixos são construídos com base em regularidades,

modelos e temas observados nos dados e representados por meio de “frases-chave” que

expressam seus teores (BOGDAN; BIKLEN, 1994). Realizamos um cruzamento entre as

informações coletadas e sintetizamos as ideias principais, definindo, então, as seguintes

“frases-chave”: “conteúdo escolar”; “natureza das práticas: organização, fundamentação

e avaliação”; “dilemas docentes”; e “desafios da Educação Física escolar: intervenções,

relações e perspectivas”. Consideramos que as informações de cada eixo se manifestam

em todos os eixos, em razão das inter-relações entre eles.

Em virtude das limitações deste artigo, optamos somente pela apresentação dos

dados e da descrição do eixo “natureza das práticas: organização, fundamentação e

avaliação”, o qual fundamenta o “tecer” de nossas considerações finais.

Por se tratar de um recorte, afirmamos, com base no eixo selecionado, que as

reflexões geradas possam contribuir para o entendimento das aprendizagens adquiridas

no início da carreira, tornando observáveis as características de práticas de ensino bem-

sucedidas nas aulas de Educação Física nos anos iniciais, promovendo o início de

reflexões imprescindíveis à sistematização de diretrizes de políticas públicas de formação

inicial e continuada de professores de Educação Física da SEE-SP, e suscitando novos

diálogos sobre práticas de professores de Educação Física iniciantes.

Práticas de ensino bem-sucedidas na Educação Física: características,

fundamentação, organização e avaliação

Com base no eixo selecionado, pretendemos evidenciar como se configuram as

práticas pedagógicas desenvolvidas pela participante, destacando características das

atividades propostas, recursos e estratégias utilizados, diálogos estabelecidos com

subsídios teóricos e metodológicos, formas de organização das práticas e critérios

avaliativos adotados nas aulas.

As características destacadas dialogam com os atributos de um bom professor

apresentados por Silva e cols. (2007). Com isso, não pretendemos dizer que não

observamos dificuldades (em especial, nas relações professor-aluno e aluno-aluno, mais

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acentuadas em uma das UE), as quais consideramos como dificuldades de uma boa

professora, conforme reflexões de Cunha (2014), Galvão (2002) e Silva e cols. (2007).

Com a finalidade de investigar como a participante se constrói enquanto professora

de Educação Física no contexto dos anos iniciais, buscamos identificar elementos que

contribuem para o seu processo de aprendizagem e de desenvolvimento profissional na

docência nessa fase de início de carreira. Nossa intenção também incide em conhecer e

entender as implicações decorrentes dessa fase, as lacunas da formação inicial e as

responsabilidades da SEE-SP para com o professor de Educação Física iniciante.

Em nosso olhar, a atividade planejada e desenvolvida nas aulas de Educação

Física na escola deve apresentar algumas características, as quais, corroborando Freire

(2010) e os Parâmetros Curriculares Nacionais de Educação Física, PCN-EF, ensino de

1ª a 4ª série (BRASIL, 1997), respectivamente, deve ser significativa e estar vinculada à

realidade dos alunos, se revelando por meio do desenvolvimento das dimensões

conceituais, procedimentais e atitudinais dos conteúdos.

De acordo com os PCN-EF (BRASIL, 1997), os conteúdos da Educação Física

podem ser desenvolvidos com base nas dimensões conceitual, atitudinal e

procedimental. A dimensão conceitual refere-se a códigos, acontecimentos e opiniões,

incluindo elucubrações sobre os conceitos estudados. A dimensão procedimental está

vinculada ao fazer corpóreo, ao experimento prático, sem restrições a um mundo da

prática pela prática, alheio a procedimentos de ordem, conhecimentos sistematizados,

entre outros processos. Já a dimensão atitudinal está associada a princípios, valores e

atitudes, em uma tentativa de construção de uma postura responsável pelo aluno consigo

próprio e com os outros.

Tomando-se por base a análise dos dados nesse eixo, refletimos sobre as

características das práticas da participante, observando a proposição de dinâmicas

diferenciadas no desenvolvimento das atividades, diversificação dos conteúdos e das

condições didáticas, flexibilidade nas decisões e ações e realização de intervenções

pontuais no desenvolvimento das aulas. Essas atitudes buscaram favorecer o dinamismo

e a interação entre os alunos, a participação ativa de todos, otimizar o tempo da aula e

igualar as oportunidades, ampliando as experiências e os conhecimentos discentes.

Nesse contexto, identificamos a proposição de “Jogos de Perseguição” no qual a

definição dos alunos “pegadores” acontecia por meio da cor da roupa, do mês do

aniversário e/ou pela primeira letra do nome.

Prá ... que todos possam ... é ... participar né ... serem ... pegadores ...passar pelo ... pelo pega-pega ... sendo pegadores ... e ... é uma formade ... de repente não né ... excluir ... né ... não excluir alguns alunos ...e ... eu acabo escolhendo assim ... de forma aleatória mesmo ... ou ...

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pelo signo ... pelo signo ... pela data de nascimento ... pela cor daroupa ... prá não ficar ... escolhendo às vezes sempre os mesmos ... ouescolhendo os que querem SEMPRE ser os pegadores ... e ... dessa ...dessa forma todos podem participar sendo pegadores ... e fugitivostambém ... aí eu vou ... fazendo rodízio ... até que todos tenham ...tenham sido pegadores ... prá que ninguém seja ... excluído ou fique ...fique sem brincar né ... (Participante, ENTREVISTA 3, 28/09/2012).

Com base nessas estratégias, a participante possibilitou aos alunos vivências dos

jogos em diferentes posições, fato que favoreceu a mobilização de diversos

conhecimentos em razão das ações que deveriam ser empreendidas por eles e das

tomadas de decisões necessárias em cada uma dessas posições para a concretização

dos objetivos dos jogos realizados. Como exemplo, na proposição do jogo “Polícia e

Ladrão” para alunos dos 3ºs anos em aulas observadas na Escola 2, as perguntas

realizadas pela participante aos alunos versaram sobre “quem quer ser a polícia?”,

“quem não foi polícia ainda?” (Participante, DIÁRIO DE CAMPO, 15/08/2012).

Igualmente, realizou a inversão das posições em outro momento em que esse

mesmo jogo foi proposto na Escola 1 para uma classe de 5º ano em dois grandes grupos

(um grupo de “policiais” e outro de “ladrões”). Em outro momento, novamente com uma

classe de 5º ano, definiu três pegadores ao mesmo tempo pelo mês do aniversário.

Essas estratégias também confirmam a promoção de práticas inclusivas.

Observamos também a capacidade de iniciativa da participante na busca por

materiais para o desenvolvimento de suas aulas com recursos próprios e a consideração

pelas expectativas dos alunos na escolha, proposição e desenvolvimento do conteúdo.

A utilização adequada do tempo da aula, dos materiais e dos espaços disponíveis

nas UE para otimizar o processo de aprendizagem dos alunos, bem como a utilização de

recursos próprios na construção de materiais com os alunos, as iniciativas próprias para

adequação das atividades e a solicitação de materiais e experiências entre os pares se

constituem, de acordo com Leal (2011), como indicadores educacionais sobre os

processos de aprender e ensinar na escola e daquilo que deve ser proporcionado aos

alunos nas aulas de Educação Física. Esses indicadores, elaborados com base nos

discursos de um professor de Educação Física considerado “experiente” e em período de

iniciação na docência, nos revelam evidências que, normalmente, não são apontadas

pela literatura sobre o início da carreira.

Corroborando Tardif (2008), consideramos a relação direta entre os saberes

construídos e a pessoa da participante. Notamos as diferentes fontes e diferentes

naturezas desses saberes e a conexão dos saberes para o tratamento do conteúdo

“Jogos Africanos”, por exemplo, com questões definidas em um grupo de trabalho

pertencente a um determinado contexto escolar (conteúdo definido em momento de

planejamento em uma das escolas para o desenvolvimento do projeto sobre o “Dia da

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Consciência Negra”). Nessa perspectiva, o autor afirma a impossibilidade de se apartar

os saberes das realidades nas quais os professores se encontram inseridos. Em Borges

(2005), também há destaque para a pluralidade do saber docente, sobretudo, em

professores de Educação Física que atuam em mais de uma escola ao mesmo tempo,

como é o caso da participante deste estudo.

Notamos as relações entre conteúdos e temas (“Jogos Africanos” e “Discriminação

Racial”), aulas de Educação Física e aulas das “professoras de classes” (professor

polivalente, denominado de Professor de Educação Básica - I, PEB-I, na SEE-SP). Tais

práticas propõem a confecção de brinquedos, oportunizam a tomada de decisões e

articulam as diferentes linguagens - são pouco comuns nas aulas de Educação Física

(COSTA, 2014).

A participante valeu-se do desenvolvimento do conteúdo fundamentado nas

dimensões conceituais, procedimentais e atitudinais (com reflexões para além da

especificidade da Educação Física) e da articulação entre as várias linguagens (escrita,

gráfica e corporal) no desenvolvimento de suas aulas.

A transcrição a seguir elucida o desenvolvimento de uma atividade proposta em

grupo, na qual os alunos realizaram uma produção textual na temática “Folclore” com

base em frases soltas. A proposição dessa atividade revela o posicionamento de

mediadora adotado pela participante, a promoção dos alunos como protagonistas na

construção do saber, a interação originada pelo trabalho em grupo, a ludicidade e o

desenvolvimento da autonomia e da responsabilidade dos alunos. Para Silva e cols.

(2007), uma das características do bom professor consiste em promover, para os alunos,

situações em que um auxilie e colabore com o outro.

[...] Acho que a ideia ... de trabalhar desse jeito ... é ... foi um pouco ... dealgumas experiências com outras professoras ... é ... mas a atividade emsi foi ... eu retirei da internet ... ela já veio ... né ... riscadinha ... e ... aí eupensei em recortar ... e deixar que as crianças montassem o ... o texto ...a respeito das brincadeiras populares ... mas ... essa ... as ideias são ...acho que devido às ... às atividades que às vezes eu vejo as professorasfazendo em sala ... é ... atividades de ... de livros ... (Participante,ENTREVISTA 2, 31/08/2012).

Percebemos as influências das práticas desenvolvidas pelas professoras de classe

na escolha das atividades e estratégias utilizadas em suas aulas enquanto vai se

construindo como professora de Educação Física no contexto dos anos iniciais do Ensino

Fundamental. Conforme Tardif (2008), percebemos as inter-relações que permeiam os

saberes construídos pela participante, cujos saberes são resultados de uma afluência

entre o individual e o social.

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Nos procedimentos avaliativos, destacamos dificuldades no quesito “participação

nas aulas” e nas habilidades desenvolvidas nas práticas da “cultura corporal”. Para

superar tais dificuldades, a participante fez uso de registros que, para ela, funcionam

como medida de segurança e diagnóstico daquilo que os alunos aprenderam.

Nessas análises, visualizamos o processo de aprendizagem e de desenvolvimento

profissional da participante, protagonista desse/nesse processo. Suas percepções

procedem das próprias reflexões que realiza sobre as estratégias utilizadas nas

abordagens de conteúdos e temas nas aulas, de um ano de atuação profissional para o

outro. Essas reflexões estão relacionadas ao seu processo de “tornar-se” professora, em

um movimento de reinterpretação/reconstrução das próprias ações realizadas.

Corroborando com Tardif (2008), identificamos saberes provenientes de fontes e

naturezas diferentes, construídos e reconstruídos em momentos e contextos diferentes

como produções de um determinado grupo de professores. Concebemos saberes

originários de influências das “professoras de classes” e de uma “professora especialista”

(Professor de Educação Básica - II, PEB-II, de Educação Física e de Arte da SEE-SP,

atuantes nos anos iniciais do Ensino Fundamental), saberes provenientes das trocas com

os pares, dos momentos de estudo em ATPC realizados nas escolas investigadas, das

experiências iniciais e da formação continuada.

Apesar da apreensão para tratar alguns conteúdos presentes no Currículo do

Estado de São Paulo - Educação Física, CESP-EF (SÃO PAULO, 2011a), a participante

reconhece as contribuições do curso promovido pela Escola de Formação e

Aperfeiçoamento dos Professores (EFAP) do Estado de São Paulo (SÃO PAULO, 2011b)

e visualiza o currículo como uma direção a ser seguida. Suas dificuldades se referem à

inexistência de um currículo - com uma sistematização de conteúdos - de Educação

Física para os anos iniciais. Essa necessidade, que deveria ser debatida desde a

formação inicial, bem como a relação teoria-prática, resulta em desafios relacionados ao

“como” dar aula. O Quadro 1 apresenta uma síntese dessas análises, as quais contém as

características das práticas bem-sucedidas desenvolvidas pela participante, permeadas

por algumas dificuldades.

Quadro 1: Síntese do eixo “natureza das práticas: organização, fundamentação e

avaliação”.

Características Critérios para seleção dos conteúdos: justificativas; atividades; materiais;expectativa dos alunos, etc..Organização da aula por meio de dinâmicas diferentes da sala e da quadra.Diversificação, sistematização e relações entre os conteúdos para ampliaros conhecimentos dos alunos.Diversificação dos recursos materiais para promover a participaçãosimultânea de todos os alunos.Desenvolvimento de práticas pedagógicas e avaliativas com base nas

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dimensões do conteúdo.Conteúdo inserido em projetos maiores da UE.Trocas com os pares: atividades; experiências; etc..Desenvolvimento do conteúdo com base em seu contexto histórico (textos,ilustrações, diálogos e vivências). Propostas de trabalho coletivo para os alunos e postura docente pautadana mediação.Influências das práticas das “professoras de classe”.Equidade de oportunidades aos alunos e organização das práticas demodo a otimizar o tempo da aula.Oportunidades e respeito às decisões dos alunos.Relações estabelecidas entre as aulas de Educação Física e as aulas das“professoras de classes”.

Organização

Comprometimento com a aprendizagem dos alunos.Prática contextualizada e interdisciplinar por meio da relação conteúdo-tema e relação entre as áreas.Ampliação das respostas nas entrevistas sobre as contribuições de suasaulas para a alfabetização.Contribuições para o desenvolvimento da competência leitora e escritora.Valorização dos registros dos alunos e das aulas de Educação Física nasUE.Preocupação com a escrita correta das palavras em razão dafuncionalidade das produções propostas.Apresentação de condições didáticas necessárias nas propostas realizadasaos alunos.

Fundamentação

Necessidade de uma sistematização dos conteúdos para os anos iniciaisnos cursos de formação inicial (lacuna).Necessidade de articulação entre teoria e prática na formação inicial econtinuada (relativo ao “como” dar aula). Superação de dificuldades mediante iniciativas e investimentos próprios naprática e na formação.Diálogo com referenciais teóricos e metodológicos.Diálogo com a própria experiência, pesquisas na internet, filmes, conceitose materiais construídos nas aulas. Intervenções pontuais nas aulas.Identificação de conhecimentos “da” prática adquiridos “pela prática”(atuação profissional na rede municipal). Referência positiva à especialização, por tê-la cursado concomitante aoexercício da docência na rede municipal. Visualização do Currículo como uma direção a ser seguida, não devendolimitar o processo criativo docente.

Avaliação

Apresentação de várias possibilidades avaliativas.Dificuldades em avaliar a participação nas aulas e as habilidades físicasdesenvolvidas pelos alunos. Utilização dos registros como medida de segurança.Realização de devolutiva aos registros, correspondentes às expectativasdos alunos e facilitando a avaliação.Compreensão de avaliação para além da acumulação de conhecimentosescolarizados pelos alunos.Necessidade de avaliação teórica e prática.Concepção de avaliação como um processo contínuo.

Fonte: Retirado de Costa (2014, p. 215-216).

Conclusões

Reconhecendo as nuances do processo de aprendizagem e de desenvolvimento

profissional da participante em período de início na carreira e as particularidades de seus

contextos de atuação profissional, afirmamos, tal como Leal (2011), que a experiência

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docente não representa somente tempo de exercício na profissão, mas compromisso

com a educação, com a própria formação, com os alunos e com o aprimoramento das

próprias aulas e dos métodos de ensino em prol da aprendizagem dos alunos. Afirmamos

que constatamos essas características nas práticas observadas.

Uma das implicações para o professor iniciante (GUARNIERI, 2005) permeou as

práticas da participante, sobretudo, pela capacidade de identificação de aspectos

positivos e negativos em seu trabalho. Identificamos o domínio dos conhecimentos

específicos, a promoção de aprendizagem e de reflexão nos alunos, a utilização

adequada do tempo, materiais e espaços disponíveis nas escolas.

Apesar das dificuldades, analisamos diversas características de um bom professor

conforme Silva e cols. (2007), sendo os aspectos positivos: experiências iniciais; cursos;

trocas com os pares; diálogos com a literatura; e posicionamento da direção como

consequência da atuação de “professores especialistas” nas escolas, resultantes de

iniciativas e recursos próprios. Em virtude dessas características e por transitar entre o

desenvolvimento de boas práticas e alguns conflitos inerentes a esse período,

consideramos a participante como uma professora “de início de carreira”.

Com base em Cunha (2014), Galvão (2002) e Silva e cols. (2007), identificamos

esses conflitos como dificuldades de uma boa professora. Afirmamos que, salvo

exceções (GUARNIERI, 2005; LEAL, 2011), este estudo trouxe foco para evidências que,

normalmente, não são apontadas pela literatura sobre o início da carreira.

Nesse cenário, apontamos a responsabilidade da SEE-SP e da gestão escolar, de

se investir em políticas públicas, com merecidas considerações pelos saberes que são

construídos/adaptados pelos professores no exercício da docência, pelas peculiaridades

do contexto de trabalho e das condições intrínsecas a ele. Tais políticas podem/devem se

apropriar desses saberes e propor ações de formação que tenham por finalidade

viabilizar, assistir e otimizar esse processo de aprendizagem da docência, não ficando o

professor a mercê da própria disposição para aprender e mudar.

A necessidade de investimentos dessas políticas se relaciona com os aspectos

negativos (lacunas da formação inicial, inexistência de currículo para os anos iniciais e

conflitos nas relações), tornando visível a necessária aproximação entre a formação

inicial e os contextos das escolas, a articulação teoria-prática, a sistematização de

conteúdos para esse nível de ensino (tanto na formação inicial quanto pela SEE-SP) e a

valorização e o aprofundamento do estudo dos diversos saberes que devem ser

garantidos ao professor de Educação Física, especialmente, o “saber-fazer”.

Finalizando, intuímos que este estudo possa contribuir para o início de reflexões

imprescindíveis à sistematização de diretrizes de políticas públicas de formação inicial e

continuada de professores de Educação Física dos anos iniciais na rede de ensino da

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SEE-SP, e, concomitantemente, promover novos diálogos sobre práticas pedagógicas de

professores de Educação Física iniciantes, sobretudo práticas bem-sucedidas.

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BOGDAN, R.; BIKLEN, S. Investigação Qualitativa em Educação: uma introdução à teoria e aos métodos. Porto Editora, 1994.

BORGES, C. A formação dos docentes de Educação Física e seus saberes profissionais. In: BORGES, C.; DESBIENS, J-F. (Orgs.). Saber, formar e intervir: para uma Educação Física em mudança. Campinas, SP: Autores Associados, p. 157-190, 2005.

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i Essa pesquisa foi financiada, em seu último semestre, pela SEE-SP.