práticas culturais e orientações coletivas de grupos juvenis

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Práticas Culturais e Orientações Coletivas de Grupos Juvenis: um estudo comparativo entre jovens negros em São Paulo e jovens de origem turca em Berlim * Wivian Weller UFSC Palavras chave: juventude, identidades, etnicidade, metodologias qualitativas. Introdução Este artigo é resultado de um estudo comparativo sobre “Música, identidade e experiências discriminatórias”, realizado com jovens negros e jovens de origem turca, pertencentes ao movimento hip hop nas cidades de São Paulo e Berlim. Apesar das diferenças históricas, políticas e sociais entre o Brasil e a Alemanha, existem muitos paralelos entre os jovens de ambas cidades no que diz respeito às expressões político- culturais e às orientações coletivas de vida desenvolvidas a partir de uma estética global, ou seja, a partir da incorporação e adaptação do hip hop em suas práticas cotidianas. 2 A práxis coletiva em torno do movimento hip hop e as formas de discriminação etno-racial e de segregação socioespacial vividas no cotidiano, constituem uma base de experiências comuns entre os jovens paulistanos e berlinenses. Nesse sentido a análise dos contextos sociais que permeiam as experiências comuns é fundamental para a compreensão das distintas visões de mundo ou orientações coletivas dos jovens e suas ações práticas. Para tanto utilizamos o conceito de visão de mundo (Weltanschauungen) * Trabalho apresentado no XIII Encontro da Associação Brasileira de Estudos Populacionais, realizado em Ouro Preto, Minas Gerais, Brasil de 4 a 8 de novembro de 2002. 1 Professora recém-doutora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC e pesquisadora do projeto: "Educação Intercultural e Movimentos Sociais: cidadania e reconhecimento identitário no sul do Brasil" (Apoio CNPq/FUNCITEC). 2 O hip hop surgiu no final dos anos 1970 no bairro de South Bronx em Nova Iorque (veja: Rose 1994:27-34). Segundo Rose (1997:202) o movimento hip hop "emergiu como fonte de formação de uma identidade alternativa e de status social para os jovens numa comunidade, cujas antigas instituições locais de apoio foram destruídas, bem como outros setores importantes. As identidades alternativas locais foram forjadas a partir de modas e linguagens, de nomes e ruas e, mais importante: do estabelecimento de grupos e turmas de bairro". Com relação ao desenvolvimento do hip hop na cidade de São Paulo veja Silva (1998), Tella (2000) e Weller (2001). Sobre o apropriação do hip hop pelos jovens de origem turca em Berlim veja Weller (2001), Caglar (1998) e Greve (2000).

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Page 1: Práticas culturais e orientações coletivas de grupos juvenis

Práticas Culturais e Orientações Coletivas de Grupos Juvenis: um estudo comparativo entre jovens negros em São Paulo e jovens de

origem turca em Berlim*

Wivian Weller UFSC

Palavras chave: juventude, identidades, etnicidade, metodologias qualitativas.

Introdução

Este artigo é resultado de um estudo comparativo sobre “Música, identidade e

experiências discriminatórias”, realizado com jovens negros e jovens de origem turca,

pertencentes ao movimento hip hop nas cidades de São Paulo e Berlim. Apesar das

diferenças históricas, políticas e sociais entre o Brasil e a Alemanha, existem muitos

paralelos entre os jovens de ambas cidades no que diz respeito às expressões político-

culturais e às orientações coletivas de vida desenvolvidas a partir de uma estética global,

ou seja, a partir da incorporação e adaptação do hip hop em suas práticas cotidianas.2 A

práxis coletiva em torno do movimento hip hop e as formas de discriminação etno-racial

e de segregação socioespacial vividas no cotidiano, constituem uma base de

experiências comuns entre os jovens paulistanos e berlinenses. Nesse sentido a análise

dos contextos sociais que permeiam as experiências comuns é fundamental para a

compreensão das distintas visões de mundo ou orientações coletivas dos jovens e suas

ações práticas. Para tanto utilizamos o conceito de visão de mundo (Weltanschauungen)

* Trabalho apresentado no XIII Encontro da Associação Brasileira de Estudos Populacionais, realizado

em Ouro Preto, Minas Gerais, Brasil de 4 a 8 de novembro de 2002. 1 Professora recém-doutora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política da Universidade

Federal de Santa Catarina – UFSC e pesquisadora do projeto: "Educação Intercultural e Movimentos Sociais: cidadania e reconhecimento identitário no sul do Brasil" (Apoio CNPq/FUNCITEC).

2 O hip hop surgiu no final dos anos 1970 no bairro de South Bronx em Nova Iorque (veja: Rose 1994:27-34). Segundo Rose (1997:202) o movimento hip hop "emergiu como fonte de formação de uma identidade alternativa e de status social para os jovens numa comunidade, cujas antigas instituições locais de apoio foram destruídas, bem como outros setores importantes. As identidades alternativas locais foram forjadas a partir de modas e linguagens, de nomes e ruas e, mais importante: do estabelecimento de grupos e turmas de bairro". Com relação ao desenvolvimento do hip hop na cidade de São Paulo veja Silva (1998), Tella (2000) e Weller (2001). Sobre o apropriação do hip hop pelos jovens de origem turca em Berlim veja Weller (2001), Caglar (1998) e Greve (2000).

Page 2: Práticas culturais e orientações coletivas de grupos juvenis

e o método documentário de interpretação de Karl Mannheim como apoio teórico-

metodológico na interpretação dos dados empríricos e que iremos expor a seguir.3

Método documentário de interpretação

Weltanschauung (visão de mundo) – segundo Mannheim – é o resultado de “uma

série de vivências ou de experiências ligadas a uma mesma estrutura, que por sua vez

constitui-se como base comum das experiências que perpassam a vida de múltiplos

indivíduos” (ibid. 1980:101). Em seu artigo “Contribuições para a teoria da

interpretação das visões de mundo” (Beiträge zur Theorie der

Weltanschaungsinterpretation), publicado originalmente em 1921/22, Mannheim

apresenta um método ou um caminho para a compreensão dessas visões de mundo e

uma forma de ‘indicialização’4 dos espaços sociais (Erfahrungsräume) em que está

enraizada a ‘Weltanschauung’ de um determinado grupo. No entanto, não podemos

confundir visões de mundo com imagens de mundo ou com algo que tenha sido pensado

ou produzido teoricamente: as visões de mundo são construídas a partir das ações

práticas e pertencem ao campo que Mannheim definiu como sendo o do conhecimento

ateórico (ibid. 1964a:97ff). Assim sendo, a compreensão das visões de mundo e das

orientações coletivas de um grupo só é possível a partir da explicação e da

conceitualização teórica desse conhecimento ateórico. O grupo envolvido geralmente

não está em condições de realizar essa tarefa, ou seja; a explicação teórica do

conhecimento ateórico é praticamente impossível para o indivíduo ou grupo que está

vinculado ao contexto no qual se construiu esse saber. O papel do pesquisador passa a

3 Durante a pesquisa de campo em São Paulo e Berlim (1998 à 1999) foram utilizados três métodos

diferentes para a coleta de dados: discussão de grupo, entrevistas autobiográficas e observação participante. No total foram realizadas quinze entrevistas com grupos de rap e dezoito entrevistas autobiográficas com alguns integrantes das bandas numa Cohab na zona leste de São Paulo e em dois bairros da cidade de Berlim. Além das entrevistas gravadas, realizamos vários encontros com jovens ligados ao Movimento HipHop em distintas regiões da grande São Paulo e na cidade de Berlim, coletamos material produzido pelos grupos e artigos de imprensa.

4 Conceito utilizado na etnometodologia e que foi adaptado da lingüística. Indicialidade – segundo Coulon (1995) – "significa que, embora uma palavra tenha uma significação trans-situacional, tem igualmente um significado distinto em toda situação particular em que é usada. Sua compreensão profunda passa por 'características indicativas' e exige dos indivíduos que ''vão [sic] além da informação que lhes é dada' ... Falar de indicialidade significa igualmente que o sentido é sempre local e não tem generalização possível ... Isto quer dizer que uma palavra, por suas condições de enunciação, uma instituição, por suas condições de existêndcia, só podem ser analisadas tomando em conta as suas situações" (ibid.: p. 33/37).

2

Page 3: Práticas culturais e orientações coletivas de grupos juvenis

ser, então, encontrar uma forma de acesso ao conhecimento implícito do grupo

pesquisado, explicitá-lo e defini-lo teoricamente.

Do ponto de vista metodológico, a diferenciação tecida por Mannheim entre

interpretação imanente e interpretação genética (ibid 1980:85-88) e sua reivindicação

por uma mudança radical na forma de análise foram fundamentais. Em outras palavras,

pode-se dizer que, nessa diferenciação, ao invés da pergunta o que (was) é uma

realidade social, deveremos perguntar como ou de que forma (wie) essa realidade social

está constituída (vide: Bohnsack 2001a:326 e Mannheim 1964a:134). Mannheim define

a transcendência da pergunta o que para a pergunta como ou de que forma, como

postura sociogenética ou funcional (ibid 1980:71-79). A compreensão funcional ou

interpretação genética distingue-se da interpretação imanente da realidade social, ou

seja, da compreensão intuitiva que desenvolvemos no cotidiano. Segundo Mannheim,

no processo de interpretação existem ainda três “níveis de sentido” (Sinnschichten) a

serem diferenciados:

- um nível objetivo ou imanente, dado naturalmente (por exemplo, num gesto,

num símbolo ou ainda na forma de uma obra de arte);

- um nível expressivo, que é transmitido através das palavras ou das ações (por

exemplo, como expressão de ou como reação à algo);

- e um nível documentário, ou seja, como documento de uma ação prática (ibid.

1964a:103-129).

De acordo com Mannheim, a postura genética é fundamental para a compreensão

e explicação do sentido documentário das visões de mundo ou das orientações coletivas

e dos posicionamentos de um grupo. O acesso ao sentido documentário de uma frase ou

de uma expressão cultural só é possível a partir do processo de interpretação e por isso

podemos afirmar que ele só acontece de forma receptiva (ibid. 1964a:118). Esse

caminho implica tanto a exploração de uma via de acesso ao “psíquico do outro”

(Fremdpsyche) como a inserção num contexto que nos leve à compreensão desse espaço

social de experiências conjuntivas (konjunktiver Erfahrungsraum) e suas respectivas

representações coletivas (ibid. 1980:271). Em outras palavras, o que Mannheim afirma é

que o sentido documentário de uma frase ou de uma expressão cultural está inserida

3

Page 4: Práticas culturais e orientações coletivas de grupos juvenis

num contexto específico, que é esse espaço social de experiências conjuntivas e que,

para entendermos o seu significado, é preciso que encontremos uma forma de nos

inserirmos nesse contexto específico (por exemplo através do trabalho de interpretação),

não apenas para conhecê-lo, mas também para compreender o significado de

determinadas expressões ou representações sociais.

A partir dessa diferenciação dos três “níveis de sentido” de Mannheim, o

sociólogo Ralf Bohnsack (1983, 1989, 1999, 2001a e 2001b) retomou e atualizou a

interpretação documentária, tanto do ponto de vista do método como da metodologia,

transformando-a num instrumento de análise para a pesquisa social e empírica de caráter

reconstrutivo. Bohnsack coloca a reconstrução do sentido documentário no centro da

análise empírica, o que significa que ao invés da reconstrução do decurso de uma ação,

passaremos a analisar e reconstruir o sentido dessa ação no contexto social em que ela

está inserida. No caso da interpretação documentária da prática musical e artística do

hip hop, por exemplo, não é a interpretação da música e do seu sentido expressivo que

está em primeiro lugar, mas sobretudo a análise das visões de mundo, ou seja, das

orientações coletivas em um determinado contexto social ou milieu, que se constituíram

a partir da articulação desses jovens no movimento hip hop. Através do método

documentário de interpretação, o pesquisador constrói um caminho para chegar ao

conhecimento que conduz às ações dos atores bem como ao modus operandi das suas

ações práticas. O método documentário como teoria e prática da interpretação

sociológica5 pode ser visto como um ‘instrumentário’ que auxilia o pesquisador a

inserir-se em contextos sociais que lhe são alheios e lhe permite compreender e

conceitualizar as orientações coletivas de um grupo, suas ações e formas de

representação.

Somente depois da análise e explicitação teórica do contexto social de

determinadas representações coletivas de um grupo – via compreensão e interpretação

das descrições discursivas e narrativas das discussões ou entrevistas de grupo –

reconheceremos suas visões de mundo ou suas orientações coletivas. Nesse sentido, a

análise do espaço social das experiências conjuntivas como definido por Mannheim é

fundamental. No caso dos jovens negros da periferia de São Paulo e dos jovens de

5 O método documentário foi desenvolvido por Bohnsack com base na Sociologia do Conhecimento de

Mannheim, no Interacionismo Simbólico, na Etnometodologia e na tradição da Escola de Chicago.

4

Page 5: Práticas culturais e orientações coletivas de grupos juvenis

origem turca em Berlim, esse espaço social de experiências conjuntivas está constituído

em torno da práxis coletiva no movimento hip hop e das experiências comuns de

discriminação etno-racial e segregação socioespacial e que passaremos a analisar a

seguir.

Gênese, contexto político-social e histórico-biográfico dos grupos paulistanos e

berlinenses pertencentes ao movimento hip hop

Antes de falar propriamente dos tipos de orientações coletivas dos grupos

pesquisados e do modus operandi de suas ações práticas, faremos uma breve

reconstrução dos contextos sociais e biográficos em que se formaram os grupos.

No caso dos jovens paulistanos, muitos vieram com os pais do interior de cidades

nordestinas e interior de Minas Gerais para São Paulo ou pertence à segunda geração de

migrantes que habita bairros periféricos da capital e da região metropolitana do ABC. A

pesquisa foi desenvolvida num bairro localizado na zona leste de São Paulo, formado

principalmente por conjuntos habitacionais construídos da década de 1980 e que

passaremos a chamar de Cohab Fernandes.6 A mudança para um bairro de edificações

verticais e singulares como a Cohab Fernandes, e conseqüentemente a perda dos

vínculos de parentesco e das relações sociais anteriores, significou, principalmente para

os jovens, uma ruptura biográfica violenta, como Carlos, do grupo Atitude, nos coloca

(Cohab, 1-367):

WW: Vocês falaram antes que vocês moraram primeiro em outros bairros e vieram

depois para a Cohab Fernandes, né? Vocês podem contar um pouco como é

que foi prá vocês, na época, quando vocês mudaram prá cá e como que é a vida

aqui na Cohab Fernandes? Vocês podem falar um pouco sobre isso?

Carlos: Bom, prá mim foi muito difícil porque eu era praticamente um menino

mimado, né. Então eu era assim, só tinha eu e a minha irmã mais velha, então a

gente sempre teve de tudo, sabe. E assim nunca vi alguém andar armado na

rua, nunca vi ninguém matá os otro, você entendeu? Então eu era assim, era

6 Tanto o nome do bairro como dos grupos e pessoas entrevistadas são fictícios. 7 Para a transcrição das entrevistas de grupo utilizamos uma subdivisão em temas ou “passagens” de 5 à

15 minutos de duração. A fim de facilitar a leitura, as citações de entrevistas nesse artigo foram simplificadas.Na citação acima trata-se da “passagem” Cohab, linhas 1-26 da transcrição original.

5

Page 6: Práticas culturais e orientações coletivas de grupos juvenis

medroso, então prá mim foi muito difícil quando eu mudei prá cá eu falei, meu

Deus, que lugar; eu chorei tanto. Eu falei nos- sabe porque era muito esquisito

morar aqui, né. Eu falei, nossa é outro mundo. Mas por um lado prá mim o que

foi legal, que eu comecei a olhar que tinha bastante pretos. Já no bairro onde eu

morava não tinha tanto, né; era contá- na minha rua mesmo só tinha eu e mais

um. Então era assim a gente sempre era alvo, né; sempre tava excluído das

brincadeiras, das festas né, até namoradas mesmo. Então era difícil, a gente

ficava num mundo ali, nós tava fora à parte, né. Aí quando eu mudei prá cá eu

falei, puta, de uma certa forma eu tô em casa né ...

Para Carlos e sua família, a mudança para a Cohab Fernandes implicou não

somente uma ruptura dos vínculos sociais e de parentesco, mas também uma perda de

qualidade de vida (“eu era praticamente um menino mimado, né”8) e de uma situação

sócio-econômica relativamente estável (“a gente sempre teve de tudo, sabe”). A

mudança para a Cohab trouxe o confrontamento com formas de violência e

criminalidade desconhecidas até então. Era um “outro mundo”, onde Carlos teve que

aprender a lidar com as regras e códigos estabelecidos pelos traficantes e criminosos e

encontrar ao mesmo tempo uma nova orientação de vida nesse bairro “muito esquisito”.

Nessa fase da adolescência9 – que por si só já é difícil – e nesse novo contexto social em

que foi inserido, além do “medo” e das crises de “choro” ocasionadas por essa mudança

radical em sua vida, Carlos passa por uma nova experiência que irá redefinir sua

identidade pessoal e sua identidade étnica. A edificação dos conjuntos habitacionais na

periferia separou geograficamente os ricos e pobres, bem como a população

eurodescendente e afrodescendente na cidade de São Paulo. Mas para os

afrodescendentes que foram segregados nesse processo a experiência não foi somente

negativa. Em relação ao bairro em que Carlos vivia anteriormente na condição de

minoria enquanto negro e de excluído das atividades sociais como “brincadeiras, festas”

e até da possibilidade de “namorar”, a Cohab Fernandes é vista “de uma certa forma”

como um lugar em que se está “em casa”, ou seja, como um espaço que não hostiliza o

diferente e não o exclui das atividades sociais e de lazer. Após a mudança para um

bairro de população majoritariamente afrodescendente, o pertencimento a um grupo 8 Todas as expressões retiradas das entrevistas foram colocadas em asterisco no texto. 9 Carlos tinha 15 anos quando a família mudou para a Cohab Fernandes.

6

Page 7: Práticas culturais e orientações coletivas de grupos juvenis

étnico passou a ser visto como um potencial para a construção de novas formas de ações

individuais e coletivas. Mesmo parecendo paradoxal, podemos afirmar que as

experiências migratórias da família, a segregação e discriminação vivida pelos jovens da

Cohab Fernandes impulsionaram essa busca por novas formas de coletividade, gerando

a constituição de uma Posse, que agregou os grupos de rap que foram surgindo a partir

da mudança de muitos jovens para o novo bairro.10 Bohnsack e Wild (1997:162)

descrevem esse tipo de busca da seguinte forma:

“Formas coletivas de vida e milieus não são encontradas apenas nos modos

tradicionais de vida e em contextos sociais intactos; pelo contrário, são

justamente as experiências coletivas de descontinuidade e desintegração que

irão servir de base para os novos milieus e vivências comuns específicas da

geração bem como para os novos modelos de superação [dessas experiências

de descontinuidade e desintegração – WW]”

O pertencimento a um grupo majoritário e a constituição de uma comunidade

étnica com base na reciprocidade e na “irmandade” constituiu-se não apenas como

fundamento das novas formas e orientações coletivas de vida, mas também de um forte

vínculo com o espaço sócio-geográfico. Apesar das elevadas taxas de violência e

criminalidade na Cohab Fernandes, os jovens não expressam nenhuma intenção de

mudança para outro bairro. As relações abertas e sinceras de amizade e a atmosfera de

bem estar no grupo majoritário (“aqui você se sente mais à vontade”) são colocadas em

contraposição às experiências discriminatórias e de isolamento vividas no antigo bairro

(Atitude, Cohab, 76-90):

Carlos: Hoje em dia eu não troco a Cohab Fernandes prá morar num bairro assim;

onde eu morava. Porque aqui eu tenho eh amizades fortíssimas, tem aquela

coisa da irmandade né, da gente tá sempre um na casa do otro trocando idéia.

Poxa? lá na minha, onde eu morava mesmo na minha casa era muito legal, mas

10 O conceito posse é originário do movimento hip hop norteamericano, utilizado para definir os

interesses comuns das associações de grupos ligados ao hip hop (grafiteiros, dançarinos de break, rappers, DJ’s ). Além do trabalho artístico as posses paulistanas costumam desenvolver atividades comunitárias e educativas, como por exemplo, realização de palestras em escolas, campanhas de recolhimento de donativos e agasalhos, etc. Uma das posses mais conhecidas é a Zulu Nation (EUA) que serviu praticamente como modelo para a criação das posses mais antigas em São Paulo. Algumas posses paulistanas mantém intercâmbio com a Zulu Nation.

7

Page 8: Práticas culturais e orientações coletivas de grupos juvenis

nunca eu iria reunir um grupo de pessoas assim prá gente tá conversando. Os

cara não vinha na minha casa. Ah ir na casa do preto? Não não, ir na casa de

preto? Você escutava na cara dura as pessoas falarem isso prá você né. Então

era muito difícil. Aqui não. Aqui você se sente mais a vontade, nesse sentido

aqui é muito bom, nesse sentido ...

Já no caso dos jovens berlinenses de origem turca o surgimento das primeiras

posses e grupos juvenis ligados ao movimento hip hop está fortemente associado aos

acontecimentos político-sociais no final da década de 1980 e ao período de transição

após a reunificação da Alemanha em outubro de 1990. Vários atos de violência e

racismo contra migrantes e exilados por parte de grupos jovens neonazistas marcaram

essa época. Diante destes acontecimentos surgiram as primeiras posses, como por

exemplo,“To Stay Here Is My Right Posse” e “White Nigger Posse”, que se reuniam

nos Centros de Juventude existentes nos bairros berlinenses (veja Caglar 1998 e Henkel

& Wolff 1996). Juntamente com as posses apareceram os primeiros grupos de rap, com

o objetivo de conscientizar e mobilizar os jovens de origem turca e de

outrasnacionalidades, incentivando-os a reagir às agressões cometidas pelos neo-

nazistas (Grupo: Ideale, HipHop, 12-30):

Amim: ... no início nossa intenção era de que nós, de alguma forma, uma vez que nós

gostávamos, eh, de ouvir HipHop, de que nós, eh, música HipHop, eh, é

queríamos ocupar-nos com a música. E então, ehm, nessa altura aconteceram

paralelamente, eh, muitos ataques contra estranjeiros, eh, por parte dos facistas

e na realidade queríamos com essa música [passar – WW] a nossa opinião para

os nossos conterrâneos, portanto por assim dizer para o estrangeiro ou o não-

alemão. Ehm, queríamos passar-lhes uma mensagem de que nós, ehm,

portanto, como uma federação ou, não como uma federação, mas como uma

associação contra esses ataques, eh, dos Fachos, eh, Fachos. Ehm, enfim como

contra argumento ou como uma contra força …

O rap passa a ser visto como um instrumento de comunicação e informação entre

o grupo e os jovens estrangeiros e simpatizantes do hip hop. Através das letras e dos

discursos durante os shows realizados, o grupo pretendia atingir os jovens que não

8

Page 9: Práticas culturais e orientações coletivas de grupos juvenis

estavam organizados politicamente e que não participavam de atividades organizadas

por ONG’s e por associações de imigrantes. A “mensagem” ou opinião passada através

da música, era a de que os estrangeiros deveriam estar organizados entre si numa

espécie de “federação” ou “associação”, para melhor reagir aos insultos e “ataques” por

parte dos Skinheads. A união dos estrangeiros e a experiência através da vivência

coletiva faria a força, ou seja, possibilitaria aos estrangeiros o desenvolvimento de

argumentos próprios contra o racismo e a violência.

As atividades artísticas em torno do hip hop organizadas pelos Centros de

Juventude foram fundamentais na consolidação do movimento hip hop em Berlim e em

outras cidades da Alemanha. Grande parte dos jovens entrevistados freqüentaram esses

espaços durante a adolescência e juventude, constituido-se como grupos de dança break

ou como bandas musicais no interior desses centros. Contudo o interesse pelo hip hop,

especialmente pela música e pela dança, já havia sido despertado antes dos conflitos

enfrentados pelos jovens com a mudança para a Cohab Fernandes ou com a queda do

muro em Berlim. Em São Paulo, o contato com a cultura hip hop iniciou nos assim

chamados Bailes Black que começaram a surgir na década de 1970 e nos encontros de

dança break que aconteciam no centro da cidade a partir da década de 1980 (veja entre

outros: Silva 1998, Félix 2000). Em Berlim, os jovens entrevistados ouviam rap desde a

sua infância e alguns grupos de dança break foram criados quando freqüentavam a

escola primária. Nesse sentido, o hip hop passou a ser para esses jovens um potencial

criativo de alternativas, que possibilitou o enfrentamento de uma fase altamente

complexa, marcada por rupturas biográficas violentas e por inseguranças vividas no

contexto socio-espacial.

Práticas culturais e orientações coletivas dos rappers paulistanos e berlinenses

Ao mesmo tempo em que jovens negros em São Paulo e jovens de origem turca

em Berlim estão fortemente constituídos em torno de práticas culturais e de lazer,

convertem-se por outro lado em redes de articulação das experiências cotidianas,

elaborando orientações coletivas de vida e formas de enfrentar as diferentes

experiências de marginalização e discriminação. A partir da análise comparativa e

interpretação documentária dos dados empíricos foi possível verificar, que as visões de

mundo e as estruturas do pensamento e das ações coletivas dos grupos não estão

9

Page 10: Práticas culturais e orientações coletivas de grupos juvenis

propriamente vinculadas ao contexto local ou cultural em que estão inseridos, mas que

transcendem ou atravessam esse tipo de fronteira. Em ambas cidades encontramos dois

tipos de grupos, ou seja, grupos de orientação geracional – que associam suas práticas e

discursos à geração à qual pertencem -, e grupos de orientação 'classista'11 – que vêem

o rap como uma forma de articulação de uma mensagem e como meio adequado para a

concretização de suas aspirações sociopolíticas. Como exemplo para os diferentes tipos

de orientações coletivas tomaremos respectivamente dois grupos de rap de cada cidade.

Dados sobre os jovens entrevistados:

Nome do grupo e entrevistados

Idade

Escolaridade

Atividade profissional

Estado civil

Filhos

Atitude: André Bernardo Carlos Darcy Eugênio Fábio Gerson

22 23 26 25 24 26 22

1° grau incompleto 1° grau incompleto 2° grau completo 2° grau incompleto 2° grau incompleto 1° Grau completo 2° Grau completo

desempregado desempregado agente cultural estudante bombeiro operador de máquinas atendente de lanchonete

casado casado casado casado casado casado casado

1 5 1 2 - 1 1

Skateboard: Antônio Beto Cleber

24 20 20

2° Grau incompleto 2° Grau incompleto 1° Grau incompleto

enfermeiro estudante desempregado

separado solteiro solteiro

2 - 1

Ideale: Arnim Büllet Cafer

23 26 21

Realschule (11 anos) Abitur (13 anos) Hauptschule (9 anos)

decorador* trab. em escritório* pintor*

casado solteiro solteiro

- - -

Drama: Avni Bahri Cevdet

21

21 21

Abitur (13 anos) Hauptschule (9 anos) Hauptschule (9 anos)

ensino profissionalizante na área de Educação desempregado atendente de lanchonete

solteiro solteiro casado

- - -

* Trata-se de atividades que os os jovens estão desenvolvendo após a conclusão de curso profissionalizante com duração média de 3 anos.

11 Ao denominar esse tipo de grupos como orientação 'classista' não estamos nos referindo ao sentido

estrito do conceito "luta de classes" segundo Marx e Engels. A "luta de classes" desses jovens deve ser entendida como uma luta política ampla, ou seja, como uma luta contra o racismo e à exclusão social e como uma crítica às relações de desigualdade entre estabelecidos e outsiders (vide Elias/Scotson 2000), que é expressa a partir de uma dimensão de classe social.

10

Page 11: Práticas culturais e orientações coletivas de grupos juvenis

ORIENTAÇÃO GERACIONAL E PARTILHA DAS EXPERIÊNCIAS DE RUPTURA BIOGRÁFICA:

OS GRUPOS SKATEBOARD (SÃO PAULO) E DRAMA (BERLIM)

Para os grupos Skateboard e Drama o hip hop é visto primordialmente como um

elemento de identificação com a geração jovem e menos como uma forma de

construção e afirmação da identidade étnica. Inicialmente os jovens interessaram-se

pelo hip hop por ser um estilo musical que trazia momentos de “curtição”12 através das

ações desenvolvidas coletivamente. Ao mesmo tempo, a preferência deste estilo pela

maioria dos jovens da comunidade (“a maioria do pessoal só curtia rap”) gerou um

processo de identificação expressiva (Goffmann 1996:318) com a cultura hip hop, que

passou a ser vista como única forma de integração entre os jovens da mesma geração.

Não aderir ao hip hop significaria estar desintegrado e excluído do grupo geracional e

das atividades no próprio bairro. Como componente central da orientação geracional

dos grupos paulistanos e berlinenses destaca-se a relação de suas práticas estético-

musicais a uma revolução, que no entanto, não deve ser entendida como uma revolução

social ou política mas como uma revolução cultural e juvenil, ou seja, como forma de

contestação específica do grupo geracional ao qual pertencem. O hip hop é visto como

uma “potencialidade” ou como um dom natural único e exclusivo dessa geração: “nós

já nascemos dentro dessa onda” argumenta um jovem. Sendo assim, o hip hop passa a

ser visto como uma revolução cultural levada a cabo por jovens que pertencem não

somente à mesma geração, mas que compartem também um mesmo extrato de

experiências (Art der Erlebnisschichtung) como diria Mannheim (vide 1964b:536).

Através de uma clara distinção entre o hip hop e outros estilos musicais bem como entre

as gerações mais velhas e as mais jovens, os grupos definem o movimento hip hop

como marca e expressão autênticas de sua geração. A práxis musical e sociocultural

passa a ser para os grupos desse tipo uma forma de sociabilidade, de constituição de

relações geracionais e de solidariedade, de descoberta das capacidades e habilidades

individuais e de geração de processos criativos: “é interessante tudo o que se pode fazer

aí, a pessoa descobre-se a si mesma e os desejos encobertos vêem à tona” são as

palavras de um jovem rapper do Grupo Drama.

12 As palavras e frases em asteriscos foram tomadas das entrevistas.

11

Page 12: Práticas culturais e orientações coletivas de grupos juvenis

Um segundo componente da orientação geracional dos grupos paulistanos e

berlinenses é a análise crítica da geração paterna/materna através da práxis musical,

sobretudo da figura do pai. O rap é visto como um instrumento de análise coletiva das

experiências biográficas individuais e familiares ou como uma forma de “desabafo” e

partilha de suas vivências. Contudo, constatamos que a análise das histórias individuais

e experiências traumáticas vividas no contexto familiar acontece de forma distinta.

No caso dos jovens paulistanos, a crítica dirigida à geração paterna/materna e a

distinção entre as gerações mais jovens e entre os espaços geográfico-sociais

(centro/periferia) está relacionada às experiências de desintegração familiar e de

segregação socioespacial. Como um dos elementos centrais da orientação geracional

dos rappers paulistanos podemos destacar a falta do embate ou ‘conflito’ com normas e

valores da geração paterna/materna. Essa ausência do ‘conflito’ acontece porque na

adolescência – fase que se caracteriza pela busca de concordância e segurança habitual

(vide Bohnsack 1995 e 2000) –, os jovens paulistanos praticamente não podem contar

com o apoio dos pais ou porque a relação com os mesmos é altamente precária. A figura

do pai está marcada principalmente pela sua ausência no contexto familiar, fazendo com

que os jovens paulistanos tomem uma posição de distanciamento e de uma certa frieza

em relação ao mesmo. Nesse sentido a expressão “desabafo” documenta uma foma de

lidar com as experiências de ruptura e desintegração familiar. Histórias individuais e

experiências traumáticas vividas na família são trabalhadas textualmente (através das

letras de rap) e superadas de forma comunicativa com os integrantes do grupo e com o

público. E é este sentimento de pertencimento a um grupo, no qual os membros passam

a ser herdeiros de um conjunto de narrativas comuns, que gera uma satisfação de cantar

para um público. A letra de um rap não é apenas a história de um indivíduo, mas a

história de muitos outros jovens que estão ouvindo e cantando uma música juntamente

com o grupo (Skateboard, hip hop, 219-236):

Antô.: ... que nem a música nossa que até agora fez mais sucesso foi Pai Decepção né

que tá tocando direto na rádio, toca sempre e todas às vezes que a gente vai

cantar sempre as pessoas já param prá ouvir porque também já se identificam

com o que a gente tá falando, com o jeito da gente se comportar no palco; a

gente nunca chega a ser assim muito a querer ser superior a ninguém todas as

pessoas que vem perto da gente às vezes a gente fica brincando entendeu às

12

Page 13: Práticas culturais e orientações coletivas de grupos juvenis

vezes eu fico até meio nervoso com um com otro por que uma brincadeira

demais entendeu; então aquela coisa as pessoas chegam na gente sem medo e

tá cantando pro pessoal assim é legal porque é o nosso povo né, é o pessoal da

gente é a gente da gente ...

A apresentação em público gera o reconhecimento da performance (“o jeito da

gente se comportar no palco”) e dos elementos estético-musicais da banda através da

platéia, criando, ao mesmo tempo, um momento de concordância habitual entre o grupo

e os ouvintes no que diz respeito às experiências conjuntivas (konjunktive

Erfahrungen), ou seja, às experiências que não são apenas comuns entre esses jovens,

mas que apresentam estruturas idênticas na sua forma de constituição. Um exemplo

desse tipo de experiência conjuntiva está na música “pai decepção” e na reação do

público quando a música é cantada: “As pessoas já param prá ouvir porque também já

se identificam com o que a gente tá falando”.

No caso dos jovens berlinenses, a análise da geração paterna/materna toma uma

dimensão altamente metafórica e dramatúrgica. Suas letras tratam “somente de dramas”,

uma vez que o grupo encara toda a existência como uma tragédia, como no coloca Avni:

Avni: ... ehm, então, eu falo somente de dramas, e o meu lema também é drama.

então, eh, toda a vida é um drama. Então, a gente poderia encarar toda a vida

como um drama, assim, como se fosse um livro de não sei quantas páginas, a

cada minuto surge uma nova página, ou duas frases ou algo assim. Eh, e cada

um é o seu ator principal. Assim, e cada um vê com os seus olhos e conta a

partir da sua perspectiva ...

O trabalho de análise das experiências individuais e de histórias “fictícias” através

da composição de textos musicais acontece num nível que poderíamos chamar de

interpretação documentária, ou seja, com base em expressões metafóricas que refletem

a visão ‘dramática’ do grupo em relação à vida cotidiana. Nesse processo de

composição das letras e confecção das bases musicais as experiências individuais são

abstraídas do contexto social específico e transportadas para um contexto virtual (“cada

um é o seu ator principal”). A busca de concordância habitual e de coletividade

13

Page 14: Práticas culturais e orientações coletivas de grupos juvenis

acontece durante a composição das letras, que passa a ser uma tentativa de transposição

dos problemas da vida cotidiana para o campo virtual. Nesse sentido notamos uma

diferença entre os grupos paulistanos e berlinenses, uma vez que o sentimento de

coletividade e de concordância habitual entre os jovens paulistanos acontece

principalmente no momento da interação com o público e menos na fase de produção

dos textos e das bases musicais.

Questões relativas à origem e à identidade étnica não aparecem ou são pouco

tematizadas entre jovens paulistanos e berlinenses de orientação geracional, o que

caracteriza um terceiro aspecto comum a esses grupos. Mesmo ressaltando a satisfação

de cantar para “o nosso povo” (que pode ser interpretado como a alegria e o prazer de

cantar para um público afrodescendente), o grupo paulistano Skateboard dirige-se em

primeiro lugar à geração jovem que vive em situações sociais e histórico-biográficas

semelhantes. Através da música, da reciprocidade e da interação com o público, o grupo

procura superar a perda de vínculos e de pessoas significantes (“eu tenho letra que fala

da minha vó que morreu”) e as “decepções” vividas no cotidiano e nas relações

familiares. Entre os jovens berlinenses de origem turca, constatamos que a relação com

a comunidade étnica não acontece nem através do conteúdo das letras nem através da

língua, uma vez que as músicas são escritas em inglês. Através da composição e

apresentação das músicas nesse idioma, o grupo constitui para si uma terceira esfera, ou

um “entre-lugar” como diria Bhabha (2001). A constituição de uma terceira esfera

permite o desenvolvimento de processos criativos e um posicionamento que rompe com

identificações ou tentativas de definí-los como “turcos” ou como “turcos-alemães”.

Sendo assim, os jovens entrevistados geralmente se definem como “europeus” ou como

“berlinenses”. A utilização do inglês como idioma de referência também pode ser

interpretada como uma busca por princípios universais de reconhecimento e como uma

tentativa de ampliar o leque das relações para um grupo que não se restringe somente às

fronteiras geográficas e/ou étnicas.13

13 Utilizando-se de algumas análises de Gilroy (1998) poderíamos dizer ainda que cantando em inglês o

grupo procura transcender as fronteiras e os limites da comunidade étnica.

14

Page 15: Práticas culturais e orientações coletivas de grupos juvenis

ORIENTAÇÃO ‘CLASSISTA’ E CONCEPÇÃO DE NOVAS FORMAS COLETIVAS DE VIDA:

OS GRUPOS ATITUDE (SÃO PAULO) E IDEALE (BERLIM)

Em contrapartida questões relativas ao grupo étnico e à classe social aparecem

como centrais no discurso e postura dos rappers paulistanos e berlinenses de orientação

‘classista’. Como elemento central desse tipo destaca-se a posição teórico-reflexiva em

relação ao racismo e à segregação e em relação aos mecanismos de exclusão social em

ambos os países. Para esses jovens a práxis artístico-musical no âmbito do movimento

hip hop é vista como missão sociopolítica. O rap é sobretudo um instrumento de

comunicação de uma certa “mensagem” e uma forma de concretização dos objetivos

propostos. Suas análises teórico-reflexivas focalizam o conflito com o outro, sendo que

esse outro são as classes privilegiadas. O que existe em comum entre os jovens negros

da periferia de São Paulo e os jovens de origem turca em Berlim de orientação

‘classista’ é a certeza, de que o discurso ou os argumentos teóricos levam à

‘conscientização’ da população marginalizada, do espaço que lhes é permitido ocupar

na sociedade e das relações do poder econômico. Contudo, modelos estratégicos

desenvolvidos pelos grupos paulistanos e berlinenses para a realização de seus objetivos

e aspirações político-sociais são distintos.

Para o grupo Atitude (São Paulo) a luta de classes é ao mesmo tempo uma luta de

reconhecimento e de reconstrução da história e memória coletiva. Esse processo de

construção da identidade e história coletiva acontece em dois momentos. O primeiro

momento surge como um processo de “identificação com a raça“, como expressa um

jovem do grupo, ou seja, como um momento de construção da identidade negra,

impulsionada inicialmente pelo contato com o rap norteamericano e pelo resgate da

história de luta e resistência dos afrodescendentes na diáspora do atlântico negro

(Gilroy 1996). A partir da releitura da história dos afrodescendentes e do

redescobrimento14 da luta contra a opressão e discriminação, os jovens reconstruiram o

passado coletivo como parte de sua história e identidade. Nesse processo, a história de

luta e resistência de seus antepassados, é projetada na história vivida enquanto negros e

habitantes de bairros periféricos e relacionada à memória coletiva. Dessa forma a

“negritude” – que é vista pelos jovens como um processo de tornar-se negro – constitui-

14 Sobre esse tema veja também Hall (1990 e 1996a).

15

Page 16: Práticas culturais e orientações coletivas de grupos juvenis

se como elemento de identificação comum no campo da história apreendida e como

resultado das experiências de discriminação e segregação (Atitude, hip hop, 183-190):

Carlos: ... o HipHop ele foi fundamental neste sentido porque aumentou a nossa auto-

estima né porque nós somos considerados um povo sem; sem identidade né

mesmo pelo processo da colonização né e da miscigenação né. e então a gente

a partir daí a gente começou a ter eh, eh criar a nossa própria identidade que

tem que ter um alicerce ...

O segundo momento de construção da identidade e história coletiva surge a partir

da concepção de novas formas coletivas de vida com base no “trabalho comunitário”, na

“africanidade” e nas ações solidárias do grupo (vide Weller 2001 e 2002a) e pela

relação estabelecida com um antigo Quilombo (Milieu, 110-118):

Carlos: Também eh a questão da educação, prá gente também aqui é fundamental

porque aqui praticamente é um quilombo né, a Cohab Fernandes é um

quilombo. Aqui tinha aqui atrás tinha o quilombo eh que fica próximo de eh do

muro disso que era na Vila Cruz. Ali foi um antigo quilombo realmente né

constatado então aqui tem toda essa relação com nosso povo né então é legal ...

A importância da educação para o grupo Atitude pode ser vista como resultado da

relação direta com a história atual do bairro e a história de luta e resistência das

sociedades quilombolas. A educação passa a ser fundamental porque é nesse processo

de formação e resgate de informações que o grupo constrói a história no seu interior.

Nessa reconstrução da história, a partir do momento e da situação atual, os jovens

estabelecem semelhanças entre a história vivida na Cohab Fernandes e a história de

opressão e perseguição vivida pelos escravos. Dessa forma o grupo reconstrói a história

do Quilombo Vila Cruz como parte da história e identidade coletiva, estabelecendo uma

linha imaginária entre o passado e o presente, ou seja, entre as estruturas comunitárias

existentes nas sociedades quilombolas e as formas de sociabilidade que existem

atualmente no bairro. Essa linha imaginária é criada com o objetivo de recuperar ou

restituir valores como a “africanidade” e a “irmandade”. Essa relação entre o passado e

o presente também pode ser vista como uma estratégia de integração da história

16

Page 17: Práticas culturais e orientações coletivas de grupos juvenis

apreendida e da história vivida, a fim de fortalecer a “auto-estima” e a consciência

coletiva. Nesse sentido, a educação é fundamental para o grupo, porque é ela que

possibilita o acesso ao conhecimento e novas formas de leitura da história. A análise

reflexiva da história e cultura da diáspora do atlântico negro e das próprias experiências

de discriminação e segregação socioespacial surgiu desse processo de educação ou de

auto-formação levado a cabo pelo grupo.

A orientação ‘classista’ do grupo Ideale (Berlim) caracteriza-se por sua forma

ofensiva e assimétrica na luta contra o racismo e contra todo tipo de discriminação. A

práxis musical é entendida como uma práxis política (“nós fazemos um rap político”).

Através do discurso teórico-político e com a ajuda de elementos artístico-musicais o

grupo questiona aspectos sociais e políticos e procura informar os imigrantes e

descendentes sobre os seus direitos. O hip hop passa a ser uma forma de diálogo com a

comunidade de imigrantes, constituída pelas experiências comuns enquanto

estrangeiros. Trata-se no entanto, de um diálogo ou propagação de uma “mensagem”

com base numa reciprocidade de caráter mais complementar do que simétrico, ou seja,

de um diálogo voltado principalmente para a divulgação da visão do grupo sobre um

determinado tema, e menos para a busca de perspectivas recíprocas.15

Outro aspecto da orientação ‘classista’ dos jovens berlinenses é a análise dos

sistemas políticos, transformada em um dos temas centrais da “mensagem” divulgada

pelo grupo: “para nós é importante que as pessoas saibam onde que elas vivem, para quê

se vive ... e também a sua situação econômica e política no mundo, por quem ela é

controlada, por quem ela é dirigida”. A práxis da discussão teórica sobre as visões de

mundo, ou a reflexão sobre a reflexão do próprio grupo, tem como objetivo a formação

de um público crítico e consciente que questione as relações de ordem econômica e

social. Nesse aspecto nota-se que a compreensão do que seria o trabalho de

‘conscientização’ é distinta entre os jovens berlinenses e paulistanos de orientação

‘classista’, uma vez que os jovens do grupo Atitude buscam uma ‘conscientização’ que

leve à construção da identidade e memória coletiva. Já os jovens do grupo Ideale vêem-

se na missão de ‘conscientizar a população oprimida’.

15 Sobre a diferença entre reciprocidade complementar e simétrica vide Youniss (1984).

17

Page 18: Práticas culturais e orientações coletivas de grupos juvenis

A concepção de formas coletivas de vida destaca-se como outro aspecto comum

entre os grupos do tipo luta de classes. Para os jovens berlinenses o que está em jogo

não é a elaboração de redes solidárias entre os imigrantes mas sim a constituição de um

modelo de vida conjunta com base na fusão das culturas “ocidentais” e “orientais”. Os

estereótipos existentes em relação aos imigrantes e a falta de informação sobre a história

e cultura dos países de origem dos imigrantes por parte da população autóctona,

justificam a necessidade de intervenção do grupo na sociedade multicultural atual.

Segundo o grupo Ideale, os estereótipos existentes são resultado de políticas públicas

que “durante anos” favoreceram somente as culturas européias. Para que ocorram

mudanças, é necessário que a “própria cultura” ou as “culturas orientais” sejam

valorizadas a fim de estabecer um diálogo ou uma “aproximação entre as culturas”. Essa

concepção de fusão ou “aproximação” das culturas pode ser interpretada como tentativa

de desconstrução de imagens estereotipadas sobre os imigrantes, e como busca de

solução de um problema com o qual os jovens se deparam cotidianamentente. Através

da análise e reconstrução da história das culturas orientais os jovens estão buscando um

caminho ou alternativa, que leve à “fusão” das culturas e à erradicação de problemas

como o racismo, a xenofobia e a exclusão social. Nessa tentativa de transformação da

sociedade multicultural os jovens estão reivindicando a participação ativa dos

imigrantes e descentes. Contudo a proposta de constituição da sociedade cultural não

toma o pluralismo ou o reconhecimento das diferenças como base; o modelo

desenvolvido pelo grupo Ideale prioriza a ‘hibridização cultural’, que levaria à

construção “de algo novo”, como resultado desse processo de fusão. Através da música

os jovens procuram divulgar a idéia de que os frutos dessa nova planta também serão

“saborosos” e que o surgimento de uma cultura híbrida deve ser visto como algo

positivo. Apesar da luta pela constituição de um novo modelo de sociedade ou de uma

cultura híbrida, os jovens do grupo Ideale acabam dando à “cultura ocidental” um

destaque maior do que à “cultura oriental” ou à “cultura turca”: O eixo principal (“o

tronco”) dessa nova cultura seria formado pelos elementos históricos e culturais da

cultura autóctona e somente as frutas mudariam de sabor devido à influência “oriental”

(Ideale, 162-167):

18

Page 19: Práticas culturais e orientações coletivas de grupos juvenis

Amim: ... e sobre isso eu diria que seria uma raíz ou uma semente, diria eu, da música

do orien- ou da Turquia, onde o tronco estaria formado pela cultura ocidental e

as frutas seriam algo novo. E ela são saborosas ...

A aspiração de uma nova cultura híbrida que toma como base a “cultura

ocidental” parece refletir a posição real dos jovens na sociedade em que vivem. Diante

das limitações a busca por novos “frutos”, mesmo que estes não resultem de um

processo de hibridização equitativo, aparece como uma das poucas possibilidades reais

de transformação da sociedade em que vivem.

Conclusão

Como um dos resultados centrais dessa pesquisa, podemos afirmar que as

diferentes visões de mundo e as estruturas do pensamento e das ações coletivas dos

grupos não estão propriamente vinculadas ao contexto local ou cultural em que estão

inseridos, mas que transcendem ou atravessam esse tipo de fronteira. Enquanto os

grupos do tipo orientação geracional buscam no rap uma forma de trabalhar

descontinuidades biográficas, rupturas familiares e os problemas que enfrentam

enquanto jovens e habitantes da periferia, os grupos de orientação ‘classista’ vêem o

rap como uma forma de concretização de suas aspirações sociopolíticas e educativas.

Independentemente do tipo de orientação coletiva dos diferentes grupos de rap

pode-se dizer que o hip hop proporcionou a constituição de novas formas associativas

de vida que passaram a substituir de certa forma os vínculos perdidos devido a

migração/imigração e/ou segregação espacial. Os objetivos e interesses comuns e o

reconhecimento de que “não estavam soltos”, mas que faziam parte de um espaço social

de experiências conjuntivas, fortaleceu o espírito de coletividade, aumentando também

a auto-estima e levando-os a buscar novas formas de combater os problemas

enfrentados no cotidiano. Enquanto membros de um grupo, os integrantes passaram a

ser herdeiros desse conjunto de narrativas comuns que constitui o grupo e que gera esse

potencial criativo tantos dos grupos de orientação geracional como dos grupos de

orientação ‘classista’.

19

Page 20: Práticas culturais e orientações coletivas de grupos juvenis

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