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  • 7/22/2019 PPGHC-DISSERTACAO

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    UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

    INSTITUTO DE FILOSOFIA E CINCIAS SOCIAIS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA COMPARADA

    HELENIZAO, EGIPCIANIZAO E A RE-CONSTRUO DA

    IDENTIDADE: Estudo das Interaes Culturais entre Estrangeiros e Nativos na Chra

    Ptolomaica.

    (Dissertao de Mestrado)

    Ronaldo Guilherme Gurgel Pereira

    Rio de Janeiro, junho

    2005

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    UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO - UFRJ

    INSTITUTO DE FILOSOFIA E CINCIAS SOCIAIS - IFCS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA COMPARADA - PPGHC

    HELENIZAO, EGIPCIANIZAO E A RE-CONSTRUO DA

    IDENTIDADE: Estudo das interaes Culturais entre Estrangeiros e Nativos na chra

    Ptolomaica.

    (Dissertao de Mestrado)

    Ronaldo Guilherme Gurgel Pereira

    Dissertao apresentada coordenao do Programa de Ps-Graduaoem Histria Comparada da UFRJ visando a obteno do ttulo de Mestre.

    Linha de Pesquisa: Histria Comparada das Diferenas Sociais.

    Orientadora: Prof. Dra. Marta Mga de Andrade

    Rio de Janeiro, junho

    2005

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    Universidade Federal do Rio de JaneiroUFRJ

    Instituto de Filosofia e Cincias SociaisIFCS

    Programa de Ps-Graduao em Histria Comparada

    Folha de Aprovao

    Autor: Ronaldo Guilherme Gurgel Pereira

    Ttulo: HELENIZAO, EGIPCIANIZAO E A RE-CONSTRUO DA

    IDENTIDADE: Estudo das interaes Culturais entre Estrangeiros e Nativos na chra

    Ptolomaica.

    Dissertao apresentada coordenao do Programa de Ps-Graduao em Histria

    Comparada da UFRJ visando a obteno do ttulo de Mestre. Linha de Pesquisa: Histria

    Comparada das Diferenas Sociais.

    Data de Aprovao: ______________/____________/_____________.

    Presidente da Banca: Prof. Dra. Marta Mga de Andrade (Orientadora)UFRJ/PPGHC

    Assinatura: ____________________________________data: _______/_______/________.

    Prof. Dr. Antonio Brancaglion JniorUFRJ/Museu Nacional

    Assinatura: ____________________________________data: _______/_______/________.

    Prof Dr Regina Maria da Cunha BustamanteUFRJ/PPGHC

    Assinatura: ____________________________________data: _______/_______/________.

    Prof Dr. Andr Leonardo ChevitareseUFRJ/PPGHC

    Assinatura: ____________________________________data: _______/_______/________.

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    Dedico este trabalho memria de minha madrinha, que me ensinou a amar os livros.

    Vera Maria Bahiense, vtima de violncia urbana em maro de 2004.

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    AGRADECIMENTOS

    A realizao deste trabalho jamais seria possvel sem a confiana e colaborao em

    graus diversos. A comear pela minha orientadora, prof Dra. Marta Mga de Andrade com

    quem tive o privilgio de conviver desde o incio de minha graduao e que aceitou estender

    nossa parceria por mais esse perodo. Sua colaborao foi inestimvel ao longo de todo o

    processo de pesquisa, e a cada elogio (duramente) conquistado, minha segurana profissional

    tornava-se mais e mais slida. Sinto-me extremamente favorecido ao me recordar de suas

    demonstraes de confiana em minha capacidade para lidar com os obstculos que foram

    transpostos, o que, alis, no teria sido possvel sem seu auxlio (muito menos sem tanta

    pacincia). Devo citar o prof Dr. Ciro Flamarion Santana Cardoso (UFF), por sua ateno ao

    me receber para duas reunies para debater meu objeto de estudo ainda quando meu projeto

    no passava de um conjunto de ensaios. Foi de grande valia para mim o emprstimo que este

    me ofereceu de alguns de seus livros, que tiveram grande peso tanto para a confeco de meu

    projeto como para a concluso deste trabalho.

    Nesse mrito outro nome se faz necessrio incluir: minha amiga, Sabine Sidler, que

    sempre encontrava tempo ao longo de seu curso de mestrado para me enviar um acervo

    documental inestimvel da biblioteca do Instituto de Egiptologia da Ludwig-Maximilians-

    Universitt Mnchen. Sem sua colaborao, este trabalho simplesmente no teria sido

    possvel. Principalmente quando me recordo que ela nunca aceitou reembolso pelo material...

    Agradeo tambm ao prof Dr. lvaro H. Allegrette, por suas sugestes, suas palavras de

    incentivo e ateno que teve para comigo ao longo de nossa breve convivncia. Igualmente

    incluo em minhas consideraes os professores do PPGHC, que tanto me ajudaram dentro e

    fora de sala de aula, e que muito auxiliaram a crescer profissionalmente e individualmente.

    Minha gratido tambm minha professora de grego, Sra. Catherine Creatsoulas, seu

    filho Michel Creatsoulas, presidente da comunidade helnica do Rio de Janeiro, meus colegas

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    Paulo, Dona Altair, o Outro Paulo, enfim, todos os que me ensinaram a enxergar as pessoas

    antes de pensar em Cultura. Agradeo pela minha prpria experincia de helenizao

    ps-modernidade, pelas piadas de turco e por todo aquele ouzo.Geia Mas! Aos meus amigos

    Luis Eduardo Jason dos Santos, Daniel, Leandro, Leandro Kushita, Juliano, Rodrigo e

    Fernando, minha gratido por mais de uma dcada de verdadeira fraternidade; aos meus

    companheiros do Instituto NITEN, pelas lies de perseverana do bushido. Aos meus pais,

    Airton e Tereza, meu irmo Henrique e meu tio Paulo Roberto Pereira, agradeo por todo o

    apoio. E minha amada Daniela, eu agradeo pelo sentido que se fez por trs dos meus atos.

    Ao longo desse curso de mestrado, foram seis concursos prestados e cerca de duzentos

    currculos enviados, resultando em trs entrevistas e uma oportunidade real de trabalho. Em

    paralelo a isto, ainda houve tempo para prestar uma consultoria histrica para a traduo de

    um romance sobre Hanbal, e ainda escrever uma apostila sobre a Cerimnia do Ch... A

    ausncia de uma bolsa de pesquisa e a subseqente necessidade de encontrar uma fonte de

    renda tornou bastante trabalhosa a tarefa de desenvolver um projeto sobre um tema to

    escasso no Brasil como o Egito Helenstico. Principalmente se considerarmos que nenhuma

    fonte utilizada se encontra publicada em lngua portuguesa. Recordo-me que certa vez a prof

    Neyde Theml comparou as primeiras turmas do PPGHC a heris, e agora consigo

    compreender que aquilo no era uma metfora. Devo dizer que foi uma grande honra ter

    participado do incio da histria do PPGHC e desejo um futuro prspero aos meus colegasvindouros e aos meus eternos professores, ento, em despedida, dedico a estes os versos de

    Fernando Pessoa: Valeu a pena? Tudo vale a pena/ Se a alma no pequena./ Quem quer

    passar alm do Bojador/ tem que passar alm da dor./ Deus ao mar o perigo e o abismo deu,/

    Mas nele que espelhou o cu.

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    () ns as conhecemos e as veneramos. Mas as leis daqueles que moram longe, ns

    no as conhecemos e no as veneramos. Por isso, de fato, tornamo-nos brbaros uns em

    relao aos outros, ao passo que, de qualquer modo, por natureza, todos, em tudo, da mesma

    maneira, encontramo-nos naturalmente feitos para ser tanto brbaros quanto gregos.

    Antfonte, Sobrea Verdade.Papyri Oxyrinchi1364 = 3647, Col.II.

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    RESUMO

    O objetivo deste trabalho estabelecer as dimenses da poltica interna imperial dosLgidas em seu esforo helenizador do Egito. H um conflito poltico entre osnativos/dominados e o poder estrangeiro helenstico estabelecido, onde a cultura e aresistncia cultural (percebida como o respeito s tradies e leis, ou nmoi) estointimamente ligadas relao entre o poder instalado dos macednios, e o poderlegitimador e mediador nativo dos sacerdotes. Por outro lado, a anlise das prticascotidianas reflete uma aproximao muito mais intensa, entre nativos e estrangeiros. De fato,

    junto a estratgias conscientes de um processo de interao cultural entre os nmoi,proliferam jogos cotidianos de negociaes e invenes que no se reduzem a estas. Assim,esta dissertao busca compreender como uma cultura pode vir a se transformarhistoricamente em razo dos contatos com um outro, comparando diferentes dimenses deuma noo de identidade, atravs de uma anlise de fontes oficiais e de documentao privada

    sobre o Egito Helenstico.

    ABSTRACT

    This work aims to establish the dimensions of a Lagid imperial domestic politicsthrough their helenizations effort on Egypt. There is a political confl ict betweennatives/submitted and the established Hellenistic foreign power, where culture and culturalresistance (noticed as the respect to the local traditions and laws, or nmoi) are deeplyattached at the relationship between Macedonian power and the needed interceding native

    power from the Egyptian priests. On the other hand, the analysis of a daily quotidian showssome more increased approaching between natives and foreigners. As a matter of fact,conscious tactics of cultural interaction processes between the nmoibring itself together withsome quote of daily playing for negotiations and innovations that could be not reduced tothem. So, this dissertation pursues understanding about how did a culture be historicallyturned to another one, on account of intercultural contacts, making a comparison betweendistinct aspects of a notion of identity, trough a comparative analysis of resources from publicand private affairs in Hellenistic Egypt.

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    SUMRIO

    FOLHA DE APROVAO

    DEDICATRIA

    AGRADECIMENTOS

    EPGRAFE

    RESUMO/ABSTRACT

    SUMRIO

    LISTA DE ILUSTRAES

    LISTA DE TABELAS

    LISTA DE ABREVIATURAS

    INTRODUO 12

    1 HELENIZAO, EGIPCIANIZAO E A RE-CONSTRUO DA

    IDENTIDADE 19

    1.1 Cultura-Identidades-Nmos 27

    1.2 Do Contexto Histrico das Relaes Greco-Egpcias 39

    2 RELAES DE PODER ENTE OS TEMPLOS EGPCIOS E O DOMINADORHELENSTICO 45

    2.1 Formas de Cooperao 46

    2.2 Idioma e CampusPoltico 70

    2.3 Formas de Conflito 74

    2.4 O CampusPoltico e as Jurisdies deHabitus 83

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    3 A CHRA EGPCIA E A PRAGMTICA DO COTIDIANO 86

    3.1 As Interaes Cotidianas na Chrado Egito Helenstico 90

    3.2 Uma Re-formulao Prtica da Identidade 112

    CONCLUSO 118

    BIBLIOGRAFIA 124

    APNDICES 132

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    LISTA DE ILUSTRAES

    a) FotografiasFigura 01: Topo da Estela de Pithon (Decreto de Rfia) 58

    Figura 02: Mesa de Oferendas Greco-Egpcia 108

    Figura 03: Estela com Dedicao Helenstica a sis 110

    b) MapasMapa 01: O Mundo Helenstico 134

    Mapa 02: O Nomos Arsinota (Fayum) 135

    LISTA DE TABELAS

    Tabela 01: Dos Decretos Sacerdotais Conhecidos 50

    Tabela 02: Dos Decretos Sacerdotais Analisados 69

    Tabela 03: Nomes Duplos Greco-Egpcios 98

    Tabela 04: Calendrio Macednio X Calendrio Egpcio 105

    Tabela 05: Cronologia do Egito Helenstico 132

    LISTA DE ABREVIATURAS

    GHDHP Greek Historical Documents: The Hellenistic Period;

    HWARC The Hellenistic world from Alexander to the Roman conquestA selection

    of sources in translation;

    IGENML Inscriptions Grecques dgypte et de Nubie au Muse du Louvre;

    JEA The journal of Egyptian Archaeology;

    P. Lond Greek Papyri in the British Museum;

    P. Tebt The Tebtunis Papyri;

    Sel. Pap Select Papyri, 2 vols. Loeb Classical Library.

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    INTRODUO

    Quando em 332 a.C. Alexandre entrou com o exrcito greco-macednio em Mnfis,

    capital da ento satrapia persa do Egito, o Delta inteiro os recebeu como libertadores de uma

    segunda dominao persa. O governo extremamente opressor dessa dominao persa fez com

    que os egpcios do Delta interpretassem positivamente essa nova alternativa de governo. Alm

    disso, aquela regio do Egito possua um passado de boas relaes com a civilizao helnica:

    os helenos ajudaram o Delta a unificar o Egito sob o domnio de Sais (26 dinastia),

    combateram juntos contra a primeira invaso persa, lutaram para libertar o Egito da primeira

    dominao persa, e agora libertavam o Egito de uma segunda. Nesse mrito, para visualizar

    corretamente o que era o Egito contemporneo conquista macednica vale lembrar que no

    momento da chegada de Alexandre ao territrio, trs grupos sociais possuam alguma

    importncia poltica em sua organizao interna: os militares, os burocratas e o sacerdcio 1.

    Os militares proporcionariam o menor problema, posto que o rei persa Dareios III, ao sufocar

    uma revolta nativa, anexou as tropas nativas s suas, desmilitarizando o pas. A burocracia foi

    parcialmente assimilada pelos macednios, de modo que a administrao civil foi permitida a

    egpcios, embora nenhum comando militar o fosse.

    Havia uma grande necessidade de restaurar a mquina administrativa e a economia

    egpcia, contudo, mas no se tratava apenas de restaurao da antiga administrao nativa,como Rostovtzeff comenta: Com os Ptolomeus, um elemento novo foi inserido no Pas: os

    Gregos. Eles eram os conquistadores e em sua fora residia o poder dos

    Ptolomeus.(1967:03). Com os gregos, vieram tambm as suas leis, baseadas em seus

    costumes e hbitos tradicionais (o nmos). Baseados no Direito de Conquista eles

    reivindicavam o direito de se tornar a classe dominante no Egito. Por outro lado, restaurar a

    1Cf: W. Spielberg, Demotische Chronik, 30f.: die Krieger, die Priester, die Schreiber gtptens.

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    ordem e a prosperidade no Egito significava buscar a centralizao do pas, e as instituies

    administrativas nativas eram perfeitas para tal objetivo. Uma vez que a classe sacerdotal

    estava inserida em todos os setores da administrao da terra, finanas e militares, no era

    possvel empreender uma tentativa macednica ou nativa em demarcar reas de influncias

    justas. Alexandre buscou emoldurar e no destruir os sacerdcios egpcios, embora no se

    encerrasse a a questo. Aps a conquista do Egito, Alexandre seguiu de Mnfis para o

    Templo de Amon do osis de Siwa, na fronteira ocidental, onde o Orculo o proclamou Filho

    de Amon. Com a manuteno das cerimnias de coroao em Mnfis, segundo as tradies

    egpcias, com o reconhecimento dos orculos locais e com a aceitao de elementos da ltima

    casa real nativa em seu exrcito, Alexandre repetiu2no Egito uma poltica interna que seria

    amplamente seguida por seus sucessores: legitimar-se no poder tornando-se simultaneamente

    fara e basileuspara egpcios e gregos respectivamente.

    Dieter Kessler observa que a poltica religiosa de Alexandre baseou-se na da XXX

    dinastia3(autctone, de 404 a 350 a.C.): (...) Mandou reconstruir o santurio do templo de

    Luxor, ao qual se seguiu j no governo de seu didoco, ao santurio de Amon em

    Karnak.(1998:291). Aps a morte de Alexandre e um perodo de guerras entre os did ocos,

    Ptolomeu, filho de Lagus proclamou-se rei do Egito, e fez-se coroar fara. Ptolomeu I

    convocou um conselho misto de sacerdotes egpcios e sbios helnicos para elaborar um

    conjunto de regras e prescries religiosas para que as duas comunidades interagissem nasfestas oficiais e no Ano Novo. Um snodo como esse tambm elaborou a criao do deus

    Serpis bem como sua elevao como patrono de Alexandria, nova capital do reino. Ptolomeu

    II reivindicou antigos direitos faranicos sobre o Chipre, o Levante (ou Celessria),

    estendendo a soberania do Egito helenstico por todo o Mediterrneo oriental.

    2Na realidade, a adoo da posio de Fara, bem como a respectiva negociao poltica com os sacerdotes,sempre foi adotada pelo dominador estrangeiro: Hiccsos, Nbios, Persas...3Essa dinastia se caracterizou pelo retorno dos privilgios sociais dos Templos e sacerdotes. Privilgios estesque haviam sido custosamente abolidos, ou pelo menos bastante reduzidos durante a XXVI dinastia.

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    Os Ptolomeus prestavam homenagens aos templos e deuses egpcios, construam,

    reformavam ou ampliavam templos e se permitiam retratar como faras. Durante toda a

    dominao grega, os templos foram mantidos e ampliados em quase todo o Egito. Kessler

    comenta como os Ptolomeus aumentaram a produo de esttuas cultuais e pequenas capelas

    visando maior receita para o Estado (1998: 293). Segundo o autor, os reis Pto lomaicos ao se

    comportarem tanto como faras nativos como basilei helensticos, visavam garantir a

    sobrevivncia dessas instituies sociais e culturais por questes estratgicas. A despeito do

    controle real no incio imposto sobre os Templos, a manuteno de suas receitas, e,

    posteriormente das imunidades que lhe foram concedidas continuaram uma forma de

    acumulao de riquezas. Nesse mrito podemos concluir a respeito da importncia estratgica

    dos templos egpcios com o ponto de vista de Praux, que afirma que como faras,

    assumindo com ostentao postos religiosos, prodigalizando domnios e receitas tarifrias aos

    Templos egpcios para a manuteno de novos cultos4, os Ptolomeus asseguraram que a

    religio enquanto espinha dorsal da civilizao egpcia permanecesse forte na sociedade. Com

    isso se mantm uma classe de eruditos e escribas nativos () (1993:334).

    Analisamos as dimenses da poltica interna dos Ptolomeus em prol do esforo

    civilizador-helenizador do Egito. Consideramos as interaes sociais entre estrangeiros e

    nativos, formando uma identidade cultural particular para o caso de um Egito Helenstico,

    lugar onde as relaes de poder entre o dominador estrangeiro e o dominado nativo criaramum discurso ideal de compartimentao de identidades (nmoi). Ento, finalmente

    buscamos estabelecer como o discurso de identidades se inseria na dimenso de uma prtica

    cotidiana atravs das interaes sociais entre nativos e estrangeiros. Em nossa linha de

    abordagem, no trataremos as culturas helenstica e egpcia como dois blocos separados,

    estanques que ganham ou perdem substncia cultural, em decorrncia de suas interaes. Para

    4Vide a doao da Pedra de Roseta.

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    este trabalho de extrema importncia perceber as negociaes com a cultura, com uma

    dimenso cultural dinmica e no categorizada, sistematizada em um conjunto de focos de

    cristalizao, como os modelos e as instituies.

    Nesse estudo consideraremos a helenizao como uma apropriao poltica de

    processos de fabricao de identidades culturais fortemente demarcadas. A conscincia de

    ser grego se manifesta culturalmente, atravs de uma poltica de legitimao de uma elite

    cultural dominante helenizada. Isso porque o ideal de superioridade grega se embasava em

    uma superioridade cultural, referente aos costumes, tradies, leis, sintetizadas na noo grega

    de conduta correta contida pelo nmos. No Mundo Helenstico, admitia-se a possibilidade de

    indivduos no-gregos (ou seja, brbaros) aprenderem a cultura grega de modo a se

    tornaremgregos. Contudo neste caso no mais se trata de uma classificao tnica, mas sim

    de um valor cultural socialmente atribudo, ou seja, ser considerado grego tornava-se ento

    um sinnimo de ser considerado civilizado. Conseqentemente, um indivduo considerado

    helenizado estava apto a desfrutar de quaisquer benefcios jurdicos destinados elite

    dominante helenstica. Desse modo, judeus, srios, celtas e egpcios podiam desfrutar do

    estatuto jurdico do grego. Isso, aos olhos da poltica helenizadora era satisfatrio para atestar

    a submisso do nativo frente ao seu projeto de dominao cultural. Portanto, segundo o

    discurso ideolgico da helenizao, o estatuto jurdico grego era o emblemtico para

    comprovar a assimilao do nativo.Esboa-se em nossa pesquisa um quadro inicial de relao de poder entre

    nativos/dominados e estrangeiros/dominantes, onde cultura e resistncia cultural (traduzida

    pelo respeito s tradies, ou nomi) esto intimamente ligadas relao entre o poder

    instalado greco-macednio e o poder legitimador e mediador nativo dos sacerdotes e da

    instituio religiosa milenar. Contudo, uma dimenso pouco explorada dessa segmentao das

    instituies impondo uma segmentao entre gregos, romanos e egpcios, foras

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    civilizadoras e barbrie nativa, aquela da produo de uma identidade cultural e da

    negociao entre culturas: possvel imaginar um total isolamento dos egpcios? Houve

    justaposio de culturas? Quais so os nveis de interao entre gregos e nativos? As

    populaes helenizadas que habitavam o Egito Lgida tinham um contato muito mais intenso

    com o nativo na chra. Justamente por isso, o prestigio social dos templos e dos sacerdotes

    a elite nativa mais eficiente nas negociaes de poder com o governo macednico - era muito

    melhor preservada na rea rural. Na chra, muitos colonos gregos e helenizados foram

    assentados, majoritariamente como clerurcos, destacando-se a ocupao helenstica na regio

    do Fayum (nomos Arsinota), de onde provm a maioria dos documentos helensticos

    escavados.

    O Fayum, embora seja normalmente descrito como um osis est ligado ao Nilo por

    um brao de rio conhecido como Bahr Yusuf (em rabe o Rio de Jos). Trata-se de uma

    grande depresso extremamente frtil com um lago conhecido pelos gregos como Moeris; ou

    She-resy (lago meridional) e Mer-wer (grande lago), em egpcio antigo. O nome Fayum

    deriva do coptaPeiom. Durante o reinado de Ptolomeu II o lago foi artificialmente reduzido,

    de modo a obter-se mais terreno arvel, onde uma grande quantidade de novos colonos foi

    assentada sobretudo veteranos greco-macednios. Como decorrncia da colonizao

    helenstica, a chra se tornou um espao intermedirio, ou seja, de mediao onde segundo

    Gruzinski se desenvolvem novos modos de pensamento cuja vitalidade reside na aptidopara transformar e criticar o que as duas heranas () tem de pretensamente

    autntico.(2001:48).

    A premissa antropolgica da pesquisa se constri quando nos vemos diante do

    problema: junto a estratgias conscientes de um processo de interao cultural entre os nomi,

    proliferam jogos cotidianos de negociaes e invenes que no se reduzem a elas. Buscamos

    enfim, compreender as interaes entre os civilizadores helensticos e os brbaros no

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    Egito, em uma perspectiva ao mesmo tempo poltica e antropolgica. Consideramos o esforo

    civilizador-helenizador do Egito como uma das dimenses vitais da poltica interna dos

    Ptolomeus em sua relao com os grupos autctones de poder. Vital no apenas porque

    caracterstico da legitimao ideolgica da expanso greco-macednia, mas principalmente

    porque gostaramos de demonstrar que era nesse campo das trocas culturais onde se

    confrontavam diretamente o poder da instituio imperial Lgida e a hegemonia poltica e

    social da instituio sacerdotal. Embasamos nossa pesquisa na teoria de Sahlins, segundo a

    qual uma cultura sofre uma transformao quando idias, objetos e prticas externas so

    confrontadas e assimiladas em um ordenamento, e enquanto um processo de interaes, um

    certo limiar crtico ultrapassado, a cultura re-ordenada, ou seja, atualizada.

    No primeiro captulo, buscamos contextualizar e caracterizar o nmos enquanto

    conceito particular grego de cultura correta, e como este absorvido e instrumentalizado

    como discurso social, devido ao surgimento de uma nova dimenso do senso comum em que

    uma minoria estrangeira se estabelece como dominante, e precisa justificar socialmente tal

    hegemonia, atravs do desenvolvimento de um projeto ideolgico de dominao cultural

    helenstica. Nesse sentido projeto define uma coleo de interesses que conduz a um fim

    comum: o fortalecimento de uma prtica imperial, e no uma agenda de compromissos

    formalizados. No segundo captulo, analisamos as relaes de poder presentes no projeto

    imperial macednico e sua poltica para com setores de uma elite sacerdotal mediadora,porm heterognea. Os confrontos entre os interesses polticos macednicos com a ideologia

    real egpcia e interesses polticos das elites sacerdotais que justificavam uma aliana com o

    dominador conseqentemente criaram um espao de negociao de poder entre as duas

    instncias. Abordaremos um desses espaos com a anlise dos decretos sinodais, e seu papel

    dentro de uma estrutura de discursos autorizados. No terceiro captulo, inserimos a questo

    das prticas cotidianas entre as comunidades helenizadas e no helenizadas, buscando

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    estabelecer como uma realidade prtica no est necessariamente adequada a um ideal

    defendido pelas elites, de modo que atravs da vida cotidiana, a cultura est constantemente

    se reinventando. Visamos demonstrar que a prtica cotidiana reflete uma realidade nova, nem

    grega, nem egpcia, embora detentora de elementos comuns a ambas. Isso porque uma

    fronteira, ou um limite entre culturas tende a ser flexvel, fluida. Desse modo ela pode se

    deslocar ou ser deslocada ao longo do processo de interao e acabar sendo incorporada ao

    cotidiano de ambas as partes em contato, re-formulando elementos antigos em um padro

    novo.

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    1 HELENIZAO, EGIPCIANIZAO E A RE-CONSTRUO DA

    IDENTIDADE

    O objetivo deste captulo a caracterizao da importncia do conceito de nmospara

    a compreenso da questo da diferena entre o Grego e o Brbaro, no contexto de uma

    dominao cultural helenstica. O fenmeno da helenizao pode ser abordado sob mltiplos

    aspectos, compreendendo como uma poltica de dominao cultural pode produzir um

    discurso ideolgico de superioridade cultural, e como esse discurso pode alcanar um

    consenso embora no se sustente em confronto com a prtica cotidiana. O discurso

    ideolgico, enquanto abstrao politicamente construda, no pode atingir pleno sucesso

    quando de sua aplicao na realidade da prtica cotidiana. Nessa realidade prtica se incluem

    no s as relaes comerciais, sociais e de solidariedade do dia a dia entre as duas populaes,

    mas tambm as adaptaes sofridas pelas duas instncias de poder em decorrncia da prpria

    necessidade de negociarem o poder entre si. Seria correto assumir a posio de que os gregos

    no Egito literalmente se tornaram egpcios, como acusaram pejorativamente os pensadores

    do mundo romano? O que est em jogo quando se desqualifica o helenismo no Egito? Para

    responder a tal acusao de fracasso do helenismo, se faz necessrio a construo de nosso

    conceito de helenizao de forma clara. Desse modo, justifica-se nossa necessidade ao

    especificar nossa anlise no caso do Egito. No da helenizao do Egito, mas sim dahelenizao noEgito. A diferena em estudar a helenizao noEgito consiste na anlise de

    um processo de encontro, contato, interao e troca cultural. A helenizao doEgito limitaria

    o encontro a uma viso de que no houve dilogo, mas apenas uma imposio unilateral

    mediante uso de fora.

    comum que a historiografia do Egito no perodo helenstico estabelea como dado

    que a Helenizao doEgito fracassou. Normalmente quando se remonta a essa afirmativa,

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    imagina-se que houve uma campanha pblica de porta em porta pelo territrio egpcio para

    fazer com que a populao passasse a freqentar ginsios, aprender grego, etc., enfim, que a

    Helenizao fora uma maquinao minuciosamente planejada e quando posta em prtica,

    porm, no houvesse logrado xito. Praux, por exemplo, afirma que:

    O Egito foi usado pelos gregos, mas no disse que foihelenizado, pois embora houvesse diversas reas decontato, pode, penso eu, ser mostrado que o Egito que, atravs de seus reis e imigrantes gregos, cumpriu alguns dosobjetivos da Cidade-estado clssica e o outro Egito que permaneceu centrado em seus templos e aldeias, existiram lado alado, sem de qualquer maneira misturarem-se estreitamente. H, portanto, dois legados distintos que foram transmitidos,o de Alexandria e o do resto do pas, comparado com o qual, o legado que resultou de uma fuso dos dois , na verdade,tnue. (1993: 334).

    Lvcque complementa esse ponto de vista, ao afirmar a respeito da helenizao doEgito, que:

    Se o contgio continua a ser fraco nas cidades, onde os helenos conservam o seu quadro tradicional e onde sorelativamente numerosos, colonos e clerurcos, que vivem muito mais isolados e no podem agrupar-se (...) adotam poucoa pouco os usos indgenas, tanto mais que estes correspondem a um clima bastante diferente do da Grcia ou da Anatliae que os casamentos mistos se multiplicam a partir de 250. (1987: 90).

    Haveria, ento, segundo uma perspectiva mais tradicional, dois Egitos distintos: o de

    Alexandria, com suas leis prprias e o da chra (o resto do pas), que teria permanecido

    isolado e centrado em seus templos e aldeias, submetido s leis nativas5, sem se misturarem

    estreitamente, embora existissem algumas reas de contato. Assim, o Egito teria sido

    usado pelos gregos, uma vez que foi conquistado por estes (evocando a idia de poder

    oriundo do krtos). Porm no foi helenizado, uma vez que o termo sugere uma conquista

    moral (hegemonia de um nmos sobre o outro), e a populao nativa no foi realmente

    submetida. Restaria ento uma cidade pseudo-egpcia, Alexandria, que destoaria do restante

    do territrio (chra) que permanecia irredutivelmente brbaro. Contudo, embora Alexandria

    realmente constitua uma realidade parte para os estudos do Egito Helenstico, seria um erro

    acreditar que de helenizao se possa entender apenas um fenmeno decorrente de uma

    poltica de submisso do Outro.

    5Ver S. Allan, 1991. Esse artigo faz um estudo do sistema legal nativo durante o domnio ptolomaico. Seuscomentrios e a bibliografia sugerida permitem que se analise a administrao nativa por esse vis.

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    Durante muito tempo a historiografia tratou do perodo Helenstico como se ele

    constitusse uma fase de transio entre a cultura grega Clssica e a instalao do Imprio

    Romano. Uma das afirmaes mais comuns presentes em estudos mais tradicionais sobre o

    Egito Helenstico ou Romano, diz respeito ao fato de os colonizadores terem se apoiado em

    instituies polticas e administrativas nativas; como Rostovtzeff comenta que sua

    preocupao mais urgente era a competio com os outros reinos helensticos recm-formados

    da Sria e Macednia, havendo uma grande necessidade de restaurar a mquina administrativa

    e a economia egpcias, (...) (1967:03); e de que os egpcios permaneciam distintos dos

    dominadores. Petit confirma dizendo: No sculo III se opem principalmente gregos

    imigrados e indgenas explorados, que esto longe de ostentar a conscincia de classe dos

    cidados propriamente gregos. (1987:26).

    Aymard e Auboyer defendem que o contato entre as duas culturas era mediado por

    grandes comunidades brbaras, que falavam perfeitamente tanto o grego quanto o egpcio, e

    indicavam como uma lgica natural que, entre governantes e sditos nativos, no houvesse

    muito entrosamento. Os dois grupos tnicos permaneceriam assim rigorosamente divididos

    entre gregos-mercadores-invasores e os egpcios, os zelosos guardies de tradies milenares.

    (1958). Segundo essa posio, o desejo de uma poltica helenstica de no admitir nativos

    (que no falavam grego) aos privilgios da cidadania de Alexandria ou de outras cidades

    contribuiu para manter o elemento helnico e/ou helenizado (falante do grego) separado dapopulao nativa.

    Remeto a esta historiografia de cunho tradicional na medida em que, pelo menos

    quando temos em mente a questo das interaes culturais, ainda no se buscou alternativas a

    noes como as de sincretismo e aculturao, e isso mesmo quando se coloca claramente

    o problema do encontro de culturas, o que nem sempre o caso. Talvez seja possvel

    atribuir o certo descaso para com o estudo do perodo helenstico em detrimento ao Clssico

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    (anterior) e o Romano (posterior) razo de existir uma realidade de confronto entre

    civilizaes durante o perodo em que se compreende a produo historiogrfica aqui tomada

    como tradicional: o perodo em que as grandes potncias europias perdem seus imprios

    coloniais na frica e sia, o que possivelmente influenciou a preferncia de uma sociedade

    imperialista em crise a buscar compreender a realidade de um Imprio como o romano, por

    uma questo de identificao. Isso conseqentemente serviu para uma determinada construo

    de um consenso scio-cultural a respeito dos fenmenos da Helenizao e da Romanizao

    Podemos citar a ttulo de exemplo uma interessante discusso a respeito do prprio

    conceito de Mundo Helenstico. Pollit observa que:

    A mais elementar disputa entre estudiosos a respeito dos reinos Indo -Gregos se estende at sobre o queexatamente se poderia chamar de Helenstico e sobre de como se teria feito alguma contribuio significante ao MundoHelenstico. As duas maiores autoridades no assunto diferem drasticamente em seus pontos de vista. Para W.W. Tarn no havia quatro dinastias HelensticasSeleucidas, Ptolomeus, Antignidas, Atlidas - mas cinco, e para tanto destacaos Euthydemidas, pois tanto pela extenso de seu governo como pelo que eles tentaram fazer, foram largamente maisimportantes que os Atlidas O imprio grego de Bactria e ndia foi um Estado Helenstico e como um EstadoHelenstico deve ser tratado.6Para A.K. Narain, por outro lado, a histria dos Indo-Gregos parte da histria da ndia eno dos Estados Helensticos; eles vieram, eles viram, mas a ndia os conquistou.7 (1986: 289).

    Podemos refutar ambas teorias, concordando com Pollit ao estabelecer que a verdade

    poderia flutuar entre esses dois extremos (1986: 289). Realmente parece um absurdo afirmar

    que os reinos indo-gregos colaboraram mais para a cultura Helenstica do que os Atlidas; da

    mesma forma a numismtica nos prova concretamente que os reinos indo-gregos mantiveram

    o olhar para suas razes gregas, de modo que sua ascendncia grega os distinguia das outras

    populaes ditas brbaras. Isso oferece um bom quadro de vises extremadas defendidaspor antagonistas modernos ( ingleses e indianos), transferindo o choque de suas civilizaes

    para suas contrapartes histricas refletidas: a Grega-Euthydemida e a Indiana-Maurya. Os

    prprios termos utilizados pelos estudiosos citados: Narain-Indiano-Colonizado: Indo-

    Gregos e Tarn-Anglo-Saxo-Colonizador: Imprio Grego de Bactria e ndia alm de

    emblemticos quanto s posies tericas, transparecem tambm o quadro bem ntido em que

    6Cf: Tarn, Greeks in Bactria, pp. xx-xxi.7Cf: Narain,Indo-Greeks, p.ii.

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    se defende mais uma questo referente histria recente das duas naes, ilustrando bem o

    papel das ideologias contemporneas ao historiador como influncia norteadora de sua

    pesquisa.

    Assim, tradicionalmente a historiografia se valeu de um ideal civilizatrio que se

    atribura ser defendido pela civilizao romana atravs de sua poltica de dominao cultural,

    ou projeto civilizador, como referencial para analisar o sucesso ou fracasso decorrente dos

    encontros culturais entre duas civilizaes. Afirmamos isso devido ao uso acrtico adotado

    pela historiografia tradicional para com as crticas de autores romanos ou romanizados em

    relao ao grau de helenismo dos reinos governados por uma elite greco-macednia, e

    especificamente sobre o Egito Lgida. Segundo Crawford, os governantes especialmente a

    partir do reinado de Philopator, estavam enfraquecidos e degenerados.(1971:1); e indica

    como justificativa as seguintes passagens de: Polibio, V 34; Strabo, XVII I, II; Justino,

    XXIX, e Tito Lvio, XXXVIII, 17, que culpa o clima. Lewis cita Tito Lvio (XXXVIII, 17):

    Macedones...in...Aegyptios degenerarunt (1993: 281), e complementa que O desdm

    romano pelos modos efeminados do Egito Ptolomaico, e especialmente de sua corte real,

    iniciou-se muito antes de Otvio, mas foi ele quem introduziu um carter exacerbado de pura

    hostilidade. (1993:281). Esses autores da antiguidade se alinham ideologicamente com um

    discurso de hegemonia moral romana, e de seu discurso de supremacia sobre a civilizao,

    que fatalmente se estenderia sobre o Egito, pondo termo dinastia Lgida e ao ltimo reinosucessor do imprio de Alexandre.

    Para nossa abordagem acerca das interaes culturais, partimos da proposta de Sahlins,

    segundo a qual, as sociedades elaboram os consensos, segundo seus critrios e mtodos

    especficos. Sahlins diz que a comunicao social um risco to grande quanto s

    referncias materiais. Os efeitos desses riscos podem ser inovaes radicais.(1994:10). Da,

    Sahlins considerar o poltico como sendo o mediador de todas as relaes entre Homem e

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    Natureza, Sociedade e Cosmos. Podemos dizer tambm que a questo no reside em um

    problema de dominao e resistncia, mas constitui um processo que se desenvolve

    simultaneamente ocorrncia de imposies oriundas de poderes socialmente dominantes.

    Sahlins diz que o consenso se d ento no processo de comunicao e interao social.

    atravs de um risco emprico dessas categorias, que surge a possibilidade da cultura (que

    inconsciente) ser tragada pela histria. A ordem cultural vivenciada pelas pessoas. Da

    mesma forma, o signo arbitrrio, ele busca dar sentido a algo especfico.

    O que devemos entender por uma identidade cultural no Egito Helenstico? No

    Mundo Helenstico, a cultura dos helenos constitui um alicerce para uma identidade cultural

    adequada a realidades especficas desses novos reinos helensticos, que so resultado da

    conquista militar macednica sobre civilizaes ditas brbaras. Esses territrios brbaros

    conquistados passaram a ser governados por uma minoria estrangeira que se classificava

    positivamente como grega. Essa identidade defendida pelas elites governantes se

    fundamenta inicialmente em um referencial tnico como sinnimo de um valor cultural ideal.

    Assim, nas sociedades helensticas, ser ou agir como um heleno significa reproduzir o valor

    cultural dos helenos o helenismocomo um conjunto de significados caractersticos de um

    consenso cultural formulado por um nmos8grego. Hall complementa a discusso afirmando

    que a nao no apenas uma entidade poltica, mas algo que produz sentidos um sistema

    de representao cultural () uma nao uma comunidade simblica e isso que explicaseu poder para gerar um sentimento de identidade e lealdade. (2003: 49).

    Para Geertz, a significao cultural e remonta ao senso comum, uma vez que para

    qualquer indivduo tais smbolos so dados, na sua maioria. Ele os encontra j em uso em

    sua comunidade quando nasce e eles permanecem em circulao aps sua morte, com alguns

    8 Um nmos grego no significa que no existissem variantes de uma leitura helnica de condutas,reconhecidas e aceitas, circulando no Mundo Grego. Aqui o nmos grego ser muitas vezes colocado emoposio aos valores tradicionais egpcios, que nesse caso especfico tero o valor simblico de um nmosegpcio. Para uma leitura mais aprofundada a respeito de nomibrbaros, ver Hartog (1999).

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    acrscimos, subtraes e alteraes parciais dos quais ele pode ou no participar.(1989: 57).

    A cultura um fenmeno to especfico quanto dinmico, sendo concebida como processos

    de comunicao e mecanismos de controle, por um lado, e dependendo das formas de

    interpretao e apropriao, por outro lado. O senso comum constri uma identificao a

    partir do reconhecimento de uma origem em comum, ou de caractersticas partilhadas com

    outros grupos de pessoas, ou ainda a partir do reconhecimento da presena de um mesmo

    ideal. Assim, forma-se uma rede de solidariedade para com um grupo, no caso o Grego.

    A helenizao constitui, portanto, um discurso ideolgico que joga com modos de

    perceber as identidades e alteridades. Esse discurso se torna presente devido necessidade

    originada pela formao de uma nova dimenso de relaes no cotidiano: uma minoria tnica

    caracterizada por uma viso de pertena nica forma de civilizao possvel precisando

    justificar e legitimar sua presena em territrio estrangeiro conquistado assume uma posio

    hegemnica na sociedade. Buscamos, enfim, estudar o resultado das inmeras negociaes

    decorrentes desse processo de troca cultural. Como Burke observa, os historiadores da

    Antiguidade, (...) esto se interessando cada vez mais pelo processo de helenizao, que

    esto comeando a ver menos como uma simples imposio da cultura grega sobre o imprio

    romano e mais em termos de interao entre o centro e a periferia.(2003:20). O Autor cita

    entre outros exemplos, a contribuio de Momigliano, que assume uma abordagem crtica

    fundamental na anlise das interaes culturais no mundo antigo, embora deixasse de lado,voluntariamente o caso do Egito. Para justificar tal postura, Momigliano observa que o Egito

    sempre esteve presente no imaginrio grego, desde os tempos de Homero, como um lugar de

    costumes intrigantes e detentor de um conhecimento muito antigo e por vezes mgico, e

    afirma que durante o perodo helenstico, no houve, portanto, alterao notvel na avaliao

    grega do Egito, embora fosse nova a ascenso de Hermes Trismegisto como deus do

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    conhecimento.(1975: 11). Mas nosso desacordo com Momigliano advm a partir de sua

    colocao de que:

    A cultura nativa declinou durante o perodo helenstico porque estava sob controle direto dos gregos e passoua representar um estrato inferior da populao. O carter hermtico da lngua e da escrita, como Claire Prauxdenominou (Chron. Dgypte 35, p. 151, 1943), tornou o sacerdote que falava egpcio para no falar do camponssingularmente incapaz de se comunicar com os gregos. A criao da literatura copta nas novas condies da cristandadeindica a vitalidade dessa cultura oculta. Mas os gregos helensticos preferiam as imagens fantasiosas de um Egito eternoao pensamento egpcio de sua poca. (1975: 11).

    No parece correto concordar com a afirmativa de que a cultura nativa declinou,

    devido ao fato do Egito estar sob dominao estrangeira. Toda sociedade exerce uma

    influncia sobre o outro, tanto no tempo quanto no espao. As trocas culturais e as influnciasde tradies de fora dos limites de uma determinada sociedade ou dos limites do presente da

    mesma parecem emergir da interpretao de Momigliano como possveis ameaas

    integridade de uma cultura dominada. Sendo assim uma cultura s poderia subsistir se ela

    pudesse impedir o questionamento de suas prprias estruturas tradicionais ao longo das

    geraes. De qualquer modo, interessa-nos realmente compreender a vitalidade desta cultura

    oculta.

    Como pode a cultura de uma sociedade declinar? Se for um fato que a cultura

    inconsciente, enquanto ao simblica, Geertz observa que os sistemas simblicos devem ser

    orientados pelos atos, j que eles do o sentido por trs do ato. Nada mais necessrio para

    compreender o que interpretao antropolgica, e em que grau ela uma interpretao, do

    que a compreenso exata do que ela se prope dizer ou no se prope de que nossas

    formulaes dos sistemas simblicos de outros povos devem ser orientadas pelos atos.(1989:

    24). Concordamos com a viso de Veyne, que estabelece que um grupo social ou poltico

    capaz de mudar de valores, de modo de vida, de tornar-se o oposto de si mesmo desde que, ao

    fazer isso, no se coloque em nvel mais baixo na pirmide. (1982: 111). Assim, por

    exemplo, as elites egpcias se permitiam uma helenizao necessria o bastante para

    desenvolverem com o poder helenstico as negociaes polticas vitais para a permanncia de

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    sua categoria enquanto elite mediadora. Portanto, para iniciarmos nossa anlise a respeito da

    helenizao no Egito, cabe aqui levantar a seguinte questo: o que ser grego no Egito

    Helenstico? Ou da mesma forma: o que ser egpcio no Egito Helenstico? Tais perguntas

    compem enfim uma mesma questo. Embora o presente trabalho no possua nem condies

    nem pretenses de solucionar tal questo, nossa proposta segui-la como norte e lanar novos

    elementos discusso de um tema to polmico quanto atual, que o da identidade cultural e

    das relaes sociais no contexto das trocas culturais. Conforme afirma Burke, a preocupao

    com este assunto (fronteiras culturais) natural em um perodo como o nosso marcado por

    encontros culturais cada vez mais freqentes e intensos. A globalizao cultural envolve

    hibridizao. Por mais que reajamos a ela, no conseguimos nos livrar da tendncia global

    para a mistura e a hibridizao.(2003:14).

    1.1 Cultura-Identidades-Nmos

    A dominao helenstica uma prtica imperialista, enquanto movimento de

    conquistas militares seguidos pelo estabelecimento de governos estrangeiros sobre populaes

    nativas. A legitimidade do direito de conquista se baseava na prpria formao da identidade

    grega enquanto pice do desenvolvimento de uma civilizao. O discurso social de dominao

    helenstica se constri em um contexto novo de dominao imperial, segundo umapreocupao crescente em justificar e legitimar tal imperialismo atravs de uma

    superioridade cultural frente o no-grego (ou brbaro) como premissa favorvel a uma

    dominao efetiva e sistemtica do Outro. Vale citar Brunt que comenta que:

    Na discusso sobre imperialismo a que eu me referia, Aristteles permite que se submeta povos nascidos paraa escravido ou estender uma hegemonia para o benefcio dos subordinados9. H momentos em que ele se prontificavaa sugerir que os brbaros poderiam ser classificados como escravos naturais, embora ele considerasse obviamente oscartagineses uma exceo e reconhecendo outros, como por exemplo, os prprios macednios 10.(1997: 298).

    9O autor indica as seguintes passagens: 1256b 26; 1324b 37 ff.; 1334a 1 cf. N. 42.10Idem: 1252b 5ff., cf. 1285a 18 ff., 1327b 23 ff., E complementa: porm ele reconhece que alguns brbarosso beligerantes, 1324b 5-23.(1997:298).

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    Mas o que podemos entender pelo conceito de Helenizao? Iniciando pela resposta

    mais simples, podemos classificar como helenizao toda prtica que busque dar um carter

    grego a algo, ou seja, um processo em que se busca caracterizar como grego algo que

    originalmente no grego (sendo conseqentemente, brbaro). Nos aprofundando na

    resposta, podemos adicionar que a helenizao de que tratamos aqui uma iniciativa derivada

    do imperialismo helenstico. Sendo assim, aproximar algo inicialmente no-grego (logo,

    brbaro) de algo positivamente reconhecvel como grego, traduz em sua raiz uma prtica

    etnocntrica, reproduzindo os termos da polarizao das culturas entre gregos e brbaros,

    cuja formulao remonta pelo menos ao sculo V a.C., e constituinte da forma como os

    gregos compreendem-se como nmos.

    Fazia parte da identidade cultural grega se perceber como detentora de um grau

    superior de civilizao: aquele da organizao das cidades, pleis. Viver em cidades,

    constituir uma politea, era a condio da liberdade e, assim, ser brbaro era estar sob o

    jugo de outrem, como um rei, por exemplo, 11. No perodo helenstico essa concepo acabou

    imiscuindo-se na formao de hierarquias sociais, introduzindo assim um elemento de

    graduao de posies sociais. O helenismo imps-se como um padro. Como entender

    civilizao era literalmente entender a Civilizao Helnica, logo, um povo era mais ou

    menos civilizado se o juzo de valor grego assim o considerasse mais ou menos prximo de

    sua prpria noo (grega) de cultura, de religiosidade, de poltica. Contudo imprescindvelfrisar que essa mesma noo de cultura utilizada pelo juzo grego era uma construo de sua

    prpria cultura e sociedade helnica. Essa percepo hierarquizante da diferena ir justificar

    11Podemos citar A Poltica, de Aristteles, quanto a justificativa natural para com a escravizao do brbarodevido a uma inferioridade imutvel:Por isso, aquele que pode antever, pela inteligncia, as coisas, senhor emestre por natureza; e aquele que com a fora do corpo capaz de execut-las por natureza escravo. Portantoentre senhor e escravo existem foras em comum. () Mas entre os brbaros nenhuma distino feita entre

    mulheres e escravos; isso porque no existe entre eles aquela parte da comunidade destinada por natureza , agovernar e a comandar; so uma sociedade composta unicamente de escravos, tanto os homens quanto asmulheres. Por isso o poeta diz: sabido que os helenos podem dominar os brbaros!, significando isso quebrbaros e escravos so da mesma natureza. Fora essas duas afinidades, o primeiro ponto a considerar a

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    a superioridade cultural grega, e conseqentemente legitimar um discurso social de

    dominao do brbaro.

    Nesse esprito, inserimos a importncia do nmosno processo de construo de uma

    noo de cultura-identidade grega. O termo remonta sua origem a uma noo de partilha ou

    repartio legal, em um sentido exclusivamente comandado por uma lei baseada no costume

    ou convenincia, na noo de decncia e comodidade em um nvel de relaes sociais; em

    oposio a alguma forma arbitrria de deciso. Benveniste observa que uma pastagem

    repartida em virtude do direito costumeiro chamado nmos. O sentido de nmos a lei se

    volta para atribuio legal. Assim nmo se define em grego por repartir legalmente e

    tambm obter legalmente em partilha (no mesmo sentido ativo). (1966: 85). Segundo o

    autor, essa relao etimolgica permite o uso do termo para construir outra palavra, com o

    sentido de herdar (kleronomein).

    A legalidade por trs do nmos decorre de uma construo baseada em relaes

    sociais, costumes comuns que promovem o entendimento de um consenso ou convenes.

    Desse modo, o nmos promove, atravs de seu consenso, um processo de identificao social

    e cultural entre os grupos que reconhecem sua validade e se submetem a seu arbtrio

    simblico. Ento o nmos promove conseqentemente um instrumento delimitador da

    diferena, atravs de um juzo de valor permeado no senso comum de um grupo caracterizado

    pela adoo de uma verdade contida pelo nmos. Desse modo, os discursos de validao,justificao e legitimao tornam o nmos o nico mediador verdadeiro/positivo aceitvel

    pelo senso comum, para promover a continuidade e zelo das tradies culturais do grupo.

    A noo de nmos se traduz de diversas formas: desde cultura, costume, leis,

    tradies, artifcios humanos (plis), at distribuio de dom, repartio e diferena

    (Beneviste, 1966). Interessa-nos aqui uma noo mais restrita, que se liga forma como

    famlia. Hesodo tem razo ao dizer: Primeiro o lar, a esposa e um boi para o arado, uma vez que o boi oescravo dos pobres. (I, 2 4-6).

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    Herdoto, ao investigar os costumes dos brbaros, contribuiu para a formao de um

    discurso em que no apenas polarizam-se os povos entre gregos e brbaros, mas

    particularmente comparam-se um nmos grego e um nmos egpcio (Hartog, 1999), e

    distribui-se nessa comparao parmetros de diferenciao. Por isso, possvel compreender

    o nmoscomo algo compatvel com a definio de Bourdieu de cultura enquanto jurisdio

    de habitus (1980). Entenda-se jurisdio no contexto de esferas idealmente distintas, ou

    ideologicamente propostas de universos simblicos e habitusa mediao entre as estruturas e

    a prtica. A helenizao um tema que necessariamente nos remete discusso do que

    diferencia o grego do brbaro. De fato era uma constante do pensamento grego - ao

    menos desde o perodo Clssicoo debate acerca dessa diferena. Tudo aquilo que no fosse

    considerado grego era conseqentemente brbaro. E se os costumes e leis que definiam o

    nmos grego era por definio superior aos nomi brbaros era compreensvel a

    necessidade em se estabelecer um consenso a respeito dessa diferena, bem como suas

    conseqncias. Segundo Cassim,

    Barbariza-se ou no a medida em que se faz, ou no, uma diferena entre as leis. por isso que () Herdoto(...) enfatiza a que os persas so os homens que adotam, com maior facilidade, os costumes estrangeiros(xenika...nomaia, I,135), costume meda, couraa egpcia, amor grego Onde se v o brbaro definido por sua plasticidade: ele faz seus os nomaiados outros, isto , seus costumes, usos, ou modos, da forma mais prxima dosnomima, as prescries, e dos nomoi, as leis. (1993:108).

    O termo barbarizar (bebarbarmetha) possui a rigor dois significados: transformar-

    se em brbaro e/ou adotar o comportamento de brbaro, no reconhecendo as leis dos

    gregos. O brbaro um indivduo incapaz de compreender e se comunicar na lngua dos

    helenos. Este se torna inapto para compreender o nmos e conseqentemente adota outras

    convenes/leis/tradies consideradas negativamente no-gregas pelo discurso de

    identificao helnico. Assim, o brbaro est excludo de um processo de identificao

    helnico uma vez que incapaz de aderir ao consenso abrangido pelo nmos. Sendo assim, o

    ato de barbarizar, adotando um comportamento brbaro, pode no consistir um obstculo

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    noo de identidade grega do indivduo, medida que este vir a definir-se como grego em

    relao ao nascimento, antepassados ou laos sanguneos, ao passo que aqueles que se

    definem gregos devido ao respeito s leis discordariam. Cassim cita o Orestes de Eurpedes

    para demonstrar essa discusso; em que Tndaro dirige-se a Menelau e diz: Eis-te tornado

    brbaro (bebarbarsai) por ter permanecido muito tempo entre os brbaros! (v.485,

    1993:110). Ao passo que este responde: grego respeitar sempre quem tem a mesma

    origem.(v.486, 1993:110). E por fim Tndaro responde E quanto s leis, de qualquer modo,

    no querer ficar acima delas. (v.487, 1993:110). Cassim comenta que:

    A caracterstica que diferencia a Grcia do restante do mundo aos olhos do Scrates de Xenofonte(Memorveis, IV, 4, 16): em toda a Grcia vigora uma lei que prescreve aos cidados o juramento de entrarem emacordo, e em toda a Grcia eles prestam tal juramento. Ora, o contedo e a finalidade desse juramento, que serve dedefinio para o consenso, so simplesmente obedecer s leis. Entender-se (homonoein) no se entender quanto identidade de um contedo prescritivo, compartilhar gostos e costumes (preferir os mesmos coros, louvar os mesmosflautistas, escolher os mesmos poetas: ter os mesmos prazeres), mas antes se entender quanto discurso social de ideal deimpermeabilidade cultural. Assim, apropriar-se dos costumes estrangeiros, forma do universal e a seu respeito.(1993: 109).

    O nmos prescreve para as sociedades helnicas uma necessidade pela busca do

    entendimento, pela manuteno de um consenso a respeito de um discurso social de

    identificao mtua e solidariedade cultural. a busca em si que caracteriza o respeito ao

    nmos e conseqentemente o reconhecimento de uma grecidade enquanto atributo positivo

    para um grupo. A idia de uma impermeabilidade cultural no implica em isolamento

    cultural xenofbico, trata-se antes de um eficaz mecanismo para a manuteno de um discurso

    social de identidade. Desse modo, no cabe aqui uma interpretao literal do sentido do termoimpermeabilidade. Podemos atestar, em concordncia com isso, que no perodo Clssico

    Herdoto assumira em sua obra uma origem egpcia para uma srie de conhecimentos e

    tradies helnicas: De fato, a Hlade recebeu do Egito quase todos os nomes dos deuses.

    Estou convencido de haver descoberto que eles vieram dos brbaros sobretudo do Egito,

    penso eu. (Herdoto, II, 50). Herdoto no considera ofensivo ou negativo o reconhecimento

    de uma origem externa para certos costumes dos helenos. De fato, seu discurso parece

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    justificar esse fato definindo que todos os helenos cultivavam incansavelmente todos os

    ramos do conhecimento humano (Herdoto, IV, 77). Notamos tambm que a influncia

    cultural externa a Hlade tambm permeou os objetos de uso cotidiano: Na minha opinio, o

    escudo redondo e o capacete vieram do Egito para os helenos. (Herdoto, IV, 180). E

    tambm: Os trajes e a gide das imagens de Atena foram copiados pelos helenos dos lbios,

    (...). Foi ainda dos lbios que os helenos aprenderam a atrelar quatro cavalos juntos.

    (Herdoto, IV, 189). Embora Herdoto demonstre que o perodo Clssico admitisse uma

    influncia estrangeira para inmeras caractersticas culturais helnicas, desde os ritos rficos e

    bquicos at verses complementares dos mesmos mitos, no entanto no existe um

    questionamento a respeito de um indcio de barbarismos dos helenos. Isso pode ser devido ao

    fato de que tais conhecimentos originais passaram todos por uma adaptao s necessidades

    helnicas12, mas tambm pode remontar ao fato de que o helenismo e o barbarismo no

    estavam sendo instrumentalizados em um discurso poltico de hegemonia cultural como de

    fato veio a ocorrer durante o perodo Helenstico.

    O discurso visa estabelecer uma proposta para o consenso. Este alcanado

    socialmente pela aceitao do senso comum e reproduzido atravs das relaes sociais, ento

    passa a ser utilizado como artefato poltico pelo discurso ideolgico-social, consolidando uma

    noo cultural de justia, mediante o respeito ao nmos. Cassim cita Antfonte em que este

    observa que cada grupo conformemente ao que lhe convm chegou a um acordo e elesestabeleceram as leis () A justia ento no transgredir as prescries da cidade da qual

    encontramo-nos cidados.(1993: 102). Um dos elementos distintivos entre gregos e brbaros

    a capacidade do heleno para viver em pleis. O espao delimitado pelas cidades gregas

    definido diretamente pelo que Cassim denomina nmico (nomimom, nomima(), nomous

    (), nomm). (1993:117). A autora prossegue afirmando que esse nmico resultado de

    Para uma anlise mais detalhada sobre a questo do Egito no imaginrio grego Clssico, bem como suaimportncia estratgica para a poltica externa do Imprio Ateniense, ver Pereira 2003.

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    uma imposio suplementar (epitheta, ()) de um acordo (homologthenta,

    homologsantas). (1993: 117). Desse modo, o cidado grego se define por sua preocupao

    em no transgredir (m parabainen) as leis, para no se colocar fora da esfera poltica (da

    cidade), e conseqentemente arcar com algum castigo ou a vergonha.

    Como vimos, as prescries (ta nomina) de uma cidade so o resultado de um acordo.

    As prescries da cidade determinam aquilo que deve ser positivamente ou negativamente

    medido em um juzo de valor. Contudo nem sempre algo til ou agradvel estaria localizado

    no espao positivo desse critrio, e vice-versa. Segundo Cassim,

    ento que a lgica do uso fornece o clculo do til, uma regra de conduta em caso de conflito: trata-se sempre depreferir o menor mal. () Em pblico de fato eu cidadanizo; se transgrido, castigam-me: o menor mal (entre por exemplo,arriscar-se a morrer pela ptria ou morrer como desertor) obedecer lei. Mas possvel que eu aja sem testemunhas: naidiotia do privado tenho escolha. (1993:118)

    Ser um cidado seria, portanto agir publicamente de acordo com as expectativas do seu

    nmos, enquanto emblema do consenso de um grupo para a noo positiva de normalidade.

    O privado recairia conseqentemente em um papel secundrio, devido ausncia de

    testemunhas, o que traduz uma questo de jurisdio do nmos. Uma vez que este busca uma

    harmonia no convvio social, torna-se por excelncia uma caracterstica da esfera pblica,

    logo, poltica. Essa idia se mantm ao longo do perodo Helenstico. Uma vez que se

    admite que o conceito de brbaro denota antes uma inferioridade cultural, e no uma

    natural, torna-se possvel ensinar o helenismo ao no-heleno. Cassim estabelece a relao

    entre a natureza e a lei (nmos), atravs de duas vises possveis para uma definio de

    identidade positivamente helnica/civilizada ou helenstica: uma a partir do heleno

    (cidadanizar), e outra a partir do brbaro (barbarizar)13.

    Desse modo, admite-se que o brbaro possui a condio de ascender civilizao

    13Se partimos de cidadanizar, a natureza aquilo que escapa ao poltico no prprio poltico. Mas ela constitui

    o prprio modelo da lei: ningum a transgride sem ser punido. Se partimos de barbarizar, a natureza desqualificada como fundamento das diferenas, brbaro aquele que acredita em uma diferena natural entregrego e brbaro, grego aquele que se relaciona com a lei no como idiossincrasia, mas como universal. Mas ainda, lendo-se bem o papiro, a natureza que constitui o modelo dessa universalidade. (1993:122).

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    grega. Isso torna possvel que a dominao poltica greco-macednica assuma um discurso

    civilizador, no s legitimando sua superioridade como tambm justificando sua presena em

    territrio estrangeiro atravs de um discurso ideolgico helenizador. Para tanto se fazia

    necessrio a aplicao de um projeto de dominao cultural, e a imposio do idioma grego

    seria uma das mais bsicas e aparentemente eficientes formas de faz-lo. Garantir o uso do

    idioma grego era necessrio para sustentar a hegemonia social das elites helensticas. Alm

    desse elemento poltico, cabe acrescentar que o ideal Grego era realmente creditado como

    valor cultural (nmos) superior14. Portanto as elites helensticas no admitiriam

    voluntariamente ou conscientemente a perda de substncia de sua cultura. Assim, o ato de

    barbarizar, ou seja, deixar de ser grego/civilizado consiste no exatamente na apropriao ou

    no de costumes no-gregos, mas muito mais quanto forma como feita essa adaptao.

    Para manter a legitimidade de uma noo de si grega, era necessrio que as relaes do

    cotidiano permitissem a esses indivduos se reconhecerem gregos o bastante. Se um

    costume egpcio assimilado pelas populaes helenizadas, esse costume precisa ser

    traduzido para o universo simblico grego.

    O potencial da dominao helenstica residia em uma noo de nmos como lei e

    artifcio cultural. Este modo de ver est mais prximo da abordagem de Clastres (1978) 15,

    segundo a qual, as sociedades indgenas so positivamente etnocntricas, de modo que no

    visam a interveno na natureza do outro, este apenas ignorado quanto sua importncia. Oetnocentrismo dos gregos baseava-se numa viso positiva quanto ao artifcio do seu nmos.

    Isto quer dizer que, para os gregos que pensaram no assunto, ser grego representa o clma x

    14 Vale citar Momigliano, que afirma: para todo falante de grego, a nica lngua da civilizao permaneciasendo o grego. Mesmo no sculo I a.C., o autor de Periplus Mare Erythraeino consegue achar um feito maiorpara um rei da Etipia a fim de contrabalanar sua avidez por dinheiro do que seu conhecimento de grego.Flon, o Judeu, louvou Augusto por expandir o territrio do helenismo (Leg. Ad Gaium147). (1990:14).15Limitar-nos-emos a recusar a evidncia etnocntrica de que o limite do poder a coero, alm ou aqum da

    qual nada mais haveria; que o poder existe de fato (no s na Amrica, mas em muitas outras culturas primitivas)totalmente separado da violncia e exterior a toda a hierarquia; que, em conseqncia, todas as sociedades,arcaicas ou no, so polticas, mesmo se o poltico se diz em mltiplos sentidos, mesmo se esse sentido no imediatamente decifrvel e se devemos desvendar o enigma de um poder impotente. (1978: 17).

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    das civilizaes, enquanto simplesmente no preciso se ocupar com as outras. Ento, no h

    um projeto de dominao cultural; h uma projeo hegemnica do nmosgrego que no quer

    aculturar o brbaro e sim reproduzir a dicotomia. Assim, embora a he lenizao do

    brbaro colabore com a dominao helenstica em sua tentativa de homogeneizar o habitus

    dos dois universos (grego e egpcio), podemos consider-la de duas formas, de acordo com

    as questes que nos colocamos: do ponto de vista do Projeto Imperial, a projeo de dois

    nomi distintos serve s relaes de poder; na perspectiva das interaes cotidianas, a

    presena de dois nomi entra no jogo das negociaes prticas como moeda de conta, num

    modo de proceder e num processo que ainda precisam ser historicamente pensados.

    medida que os colonos helensticos se fixam no territrio egpcio e suas geraes se

    sucedem, torna-se cada vez mais difcil para o Poder helenstico manter uma noo ideal de

    distines entre os grupos. Da Silva diz que a identidade que se forma por meio do

    hibridismo no mais integralmente nenhuma das identidades originais, embora guarde traos

    delas.(2000: 87). Contudo, as identidades podem tambm funcionar ao longo da histria,

    como pontos de apoio referencial, de identificao e apego devido a sua caracterstica

    capacidade de excluir o diferente e torna-lo exterior, marginal, negativo ou mesmo abjeto,

    como o discurso etnocntrico da helenizao estabelece em relao aos barbarismos. Os

    helenos por sua vez no concebiam deixarem de ser gregos atravs da adoo de certos

    costumes egpcios. Notamos que as prticas funerrias-religiosas-mgicas egpcias so as quemaior aceitao alcanou entre as populaes helenizadas no Egito. As recompensas

    oferecidas pelo ps-vida dos egpcios eram possivelmente consideradas mais atraentes, e isso

    no fazia com que os gregos que se permitiam mumificar aps a morte no encontrassem uma

    forma grega de faz-lo, justificando as inovaes estticas das mmias helensticas como os

    retratos pintados sobre os rostos dos sarcfagos, reproduzindo um rosto perfeitamente

    helnico, bem como o uso de inscries em grego em dedicao a divindades egpcias. Desse

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    modo, no se trata de uma populao que barbariza devido convivncia com os brbaros,

    adota o costume de brbaros, abandonando o nmosdos helenos; posto que no se abandona

    nem a identidade positiva helnica, nem o respeito a um nmos ainda que adaptado a uma

    realidade social especfica do Egito Helenstico.

    Uma vez que o Imprio prope a assimilao das diferenas, visando a pacificao, o

    alargamento e a legitimao da sua soberania/autoridade, o governo macednio precisou

    lanar mo de uma poltica estratgica de negociao com o poder local. No existe poder

    absoluto, sem negociaes. E em meio a tais negociaes, ambas as instncias de poder

    acabam cedendo e fazendo concesses para o estabelecimento de um espao de negociaes, e

    a manuteno destas. Conseqentemente, o discurso dentro de um projeto poltico cria uma

    idia de esferas de influncias, como se fossem blocos, onde atuam o governo helenstico

    sobre as populaes helenizadas e um poder nativo mediador para legitimar a autoridade

    estrangeira perante as populaes no helenizadas. Mas ento como manter coesa a identidade

    grega, e sua viso de superioridade, sem uma dominao total e absoluta do nativo? Ou seja,

    como evitar que caia no vazio o discurso de reproduo da dicotomia entre os nomi?

    A identidade grega das elites helensticas do Egito Lgida se enquadra no que Hall

    definiu por identidade mestra (2003: 20). Pode existir um projeto ideolgico de identidade

    mestra independente de uma vontade de dominar a natureza do outro. Nesse caso, a

    identidade mestra busca um ideal de universalismo da cultura grega, onde todos seriam, seno unanimemente helenizados, pelo menos positivamente helenizados. O nmos parte

    integrante e indissocivel da identidade mestra, uma vez que so suas leis positivas e sua

    constituio etnocntrica que fazem com que seja compulsivamente valorizado e cultivado.

    As identidades existentes em uma sociedade podem ser contraditrias, considerando a relao

    entre os interesses de grupos polticos estabelecidos e uma percepo prtica individual.

    Segundo Hall, nenhuma identidade singular poderia alinhar todas as diferentes identidades

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    como uma identidade mestra nica e abrangente, na qual se pudesse, de forma segura,

    basear uma poltica.(2003:20). Sendo assim, a identidade grega poderia ser defendida como

    mestra, em um discurso etnocentrado de identidade, baseado em uma premissa de

    superioridade cultural como instrumento poltico de manuteno de um discurso legitimador

    de uma poltica de dominao cultural estabelecido por uma minoria tnica dominante. Como

    o discurso de identidade helenstico obedece interesses polticos, este no subsiste na esfera

    da prtica cotidiana, uma vez que ao longo das interaes sociais entre nativos e estrangeiros

    foram sendo gradativamente incorporados elementos culturais caractersticos do outro. Este

    processo decorre o que Hall (2003) denominou eroso da identidade e da emergncia de

    novas identidades. Burke diz que a adaptao cultural pode ser analisada como um

    movimento duplo de ds-contextualizao e re-contextualizao, retirando um item de seu

    local original e modificando-o de forma que se encaixe em seu novo ambiente. (2003: 91).

    Contudo, mesmo havendo uma identidade mestra que conduza os referenciais de

    identidade cultural a buscar a manuteno de sua ascendncia grega, as prticas cotidianas

    iro contribuir, no para o fim de uma identidade grega absoluta, mas para que a noo do que

    Grego em si sofra certas adaptaes e atualizaes conforme os casos das interaes. Deste

    modo, as interaes culturais prticas entre estrangeiros e nativos acabaram por produzir

    resultados inesperados, invenes no diretamente absorvidas e objetivadas no discurso dos

    nomi. Essa outra cultura, totalmente oriunda do processo de interao cultural umfenmeno muito mais complexo e imprevisvel com relao ao projeto de poder das elites

    gregas e sacerdotais egpcias (a principal instncia mediadora), sendo, ao nosso ver, o que

    constitui o helenismo, ou o que fundamenta o uso da noo de civilizao helenstica.

    Podemos tentar definir o encontro cultural entre helenos16 e egpcios, como um

    encontro de detentores de duas esferas culturais distintas, ou seja, duas formas socialmente

    16As aspas so necessrias uma vez que nem todos os estrangeiros participantes da condio de dominantes noEgito eram de raa (ethns) helnica. A prpria nobreza era macednica, e inmeros persas, judeus, trcios,

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    convencionadas, e, portanto diferentes de um grupo compreender o mundo, interagir,

    expressar, escolher, enfim, duas jurisdies de habitus que tm sua demarcao de atuao

    bem como a idia de normalidade que lhes for caractersticas, perturbadas. Esse campo de

    delimitao de um habitus trataremos por nmos. Portanto, a noo de nmossignifica, em

    nosso estudo, uma forma histrica de perceber a cultura como um bloco separado de uma

    outracultura. No significa, porm, o uso de um conceito ou modelo de cultura, posto que, se

    este fosse o caso, estaramos optando pela definio de Geertz: a cultura, () no so cultos

    e costumes, mas estruturas de significado atravs das quais os homens do forma sua

    experincia, e a poltica no so golpes e constituies, mas uma das principais arenas na qual

    tais estruturas se desenrolam publicamente. (1989: 207).

    O nmos, enquanto um conceito particular grego de cultura, responsvel por uma

    viso de si e do outro etnocntrica e, portanto hierarquizante. Essa viso de mundo peculiar

    grega, uma vez instrumentalizada por uma autoridade de identidade grega, passa a integrar um

    discurso de legitimidade do exerccio do poder sobre o dominado brbaro (enquanto

    no-grego). Para entender como os contatos entre as civilizaes helnica e egpcia geraram

    atualizaes em graus diversos em ambas sociedades, necessrio considerar que de fato no

    so as culturas literalmente se encontrando, mas sim pessoas. Os contatos entre esses

    agentes dominadores gregos e os dominados brbaros geraram inmeras apropriaes (e

    conseqentemente adaptaes) das noes originais das tradies culturais uns dos outros,diminuindo a distncia responsvel por um estranhamento do outro e, por conseguinte, da

    idia essencial da Diferena. A essas sociedades em que se ambientaram os contatos e as

    trocas culturais, classificamos como Sociedades Helensticas, integrando o chamado

    Mundo Helenstico.

    etc, tambm participaram do fluxo migratrio para o Egito Helenstico. Contudo ainda assim so consideradoshelnicos desde que estejam reconhecidamente helenizados.

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    Enfim, o Egito Helenstico um local onde os indivduos se posicionam e atualizam

    elementos de suas relaes sociais, formulando, ou re-formulando uma identidade/ideologia

    cultural que em funo da realidade em que se encontram. Para ns, historiadores

    contemporneos desenvolvermos uma questo como a de construo da identidade no Egito

    Helenstico, podemos nos valer de dados obtidos atravs de fontes oficiais, responsveis pelo

    governo e pelas relaes de poder, e que esto ideologicamente comprometidas com um

    projeto de dominao imperial. Assim, o Egito Helenstico procura ser construdo como um

    reino de gregos por ser um reino civilizado; por ser governado por greco-macednios; por

    no ser brbaro, enfim, limitando nossa anlise a como as elites dominantes gostariam de ser

    vistas. Portanto no podemos entender a sociedade egpcia helenstica de modo unitrio. Ela

    tanto egpcia quanto grega, uma vez que ela formada por elementos essenciais comuns aos

    dois referenciais, enquanto a viso de si no comprometida, por um lado; contudo a

    apropriao de gregos e egpcios de elementos inseridos no cotidiano mtuo possibilitou um

    uso grego da cultura egpcia, ou um uso egpcio da cultura grega. Se buscarmos interpretar o

    Egito helenstico apenas pela leitura da linguagem oficial do discurso, obtemos um resultado

    necessariamente parcial e incompleto.

    1.2 Do Contexto Histrico das Relaes Greco-Egpcias

    De todas as civilizaes no-gregas, o Egito possui uma relao parte com o mundo

    grego. Os contatos entre o Egito e a Hlade foram precedidos pelas relaes entre o Egito e a

    civilizao Minica, e posteriormente com a civilizao Micnica; remontando as origens dos

    contatos XVIII Dinastia egpcia (1540 a 1293 a.C.). Os textos egpcios se referem aos

    micnicos pelo nome de Keftiu. Bresciani observa que os Keftiu (pertencentes ao Mundo

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    Egeu e tambm aos pases da costa Sria) eram alguns dos que, no Novo Imprio,

    freqentavam o Egito como mercadores e importadores diversos. (1994: 212).

    Os relatos Homricos tambm nos atestam que os portos egpcios faziam parte do

    conhecimento dos gregos. Bresciani comenta como na Odissia, das tentativas de

    desembarque de Ulisses, um pirata idntico aos Povos do Mar, mas no sculo VIII. (1994:

    212). Na Escrita Linear B, surge com freqncia o nomeAigyptiu, de onde deriva o termo

    igyptos, o nome grego do Egito. A fundao de Naucratis 17 no delta do Nilo, importante

    centro de ligao do comrcio grego j bem organizado no sculo VII, constitui-se como mais

    um fator de aproximao. Podemos mencionar tambm os mercenrios jnios e crios

    citados por Herdoto (II, 152-153), aliciados pelo fara Psamtico com promessas de altos

    salrios a terras para se fixar (stratpeda). Prosseguindo com Bresciani,

    Para o mundo grego, o Egito Sata18era o pas onde um mercenrio podia enriquecer: em Priene, descobriu-serecentemente uma esttua egpcia com um texto grego, dedicado por um soldado jnio da poca de Psamtico I, e que um documento extraordinrio do precoce bilingismo cultural greco-egpcio e dos contatos entre o Egito e o meiohelnico da sia Menor, to cheios de conseqncias para a Grcia Arcaica. O Egito da 26 dinastia 19conservava aindaum prestgio cultural que tornava a sua visita obrigatria para intelectuais e filsofos gregos. (1994: 212).

    Herdoto atribui a esses mercenrios a oportunidade para o conhecimento mais

    aprofundado da histria egpcia:

    Aps sua instalao no Egito ns, helenos, atravs de nossa convivncia com eles

    adquirimos um conhecimento acurado de todos os eventos relativos histria do Egito, a

    partir do reinado de Psamticos (eles foram os primeiros homens de lngua estrangeira a

    instalar-se no Egito). (Herdoto II, 154). Podemos acrescentar que o perodo atualmente

    conhecido como Renascimento Sata tambm caracterizado por uma forte aproximao

    artstica e esttica helnica. Os mercenrios jnios e crios permaneceram no Egito, em

    17Onde os faras reuniam os representantes de algumaspleisgregas, sobretudo da sia Menor, que conduziamo comrcio com o Egito.18Segundo a conveno adotada pelo autor, o Perodo Sata est como XXV dinastia. (664-525 a.C.). Em outras

    listas, consta o mesmo perodo como XXVI dinastia, com o que concordamos. Podemos acrescentar que durantea dinastia Sata, reunificou-se politicamente o territrio egpcio e iniciou-se um perodo de restaurao decostumes e templos abandonados, alm de iniciar uma fase de forte cooperao com os gregos, mandandooferendas para a Hlade, concedendo Nucrartis aos helenos, etc.

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    Mnfis, mesmo nos tempos posteriores. De tal modo, Alexandre encontrou na regio seus

    descendentes, os Helenomenfitas e os Cariomenfitas.(Herdoto II, 178).

    A relao entre helenos e egpcios descrita muito detalhadamente por Herdoto, que

    descreve o governo da dinastia Sata como uma fase de grande aproximao e influncia do

    Egito para com a Hlade como podemos comprovar pelas seguintes passagens:

    masis deu tambm aos egpcios uma lei segundo a qual todos eles eram obrigados a declarar anualmente aogovernador de sua provncia os recursos com os quais assegura vam sua subsistncia. () Slon, o ateniense, trouxe essa leido Egito para ser observada pelos atenienses; eles a seguem sempre, pois se trata de uma lei perfeita. (Herdoto II, 177);

    masis tornou-se um grande amigo dos helenos e, alm de outros servios prestados a alguns deles, ofereceu aosque vinham ao Egito a cidade de Nucratis para habitarem; aos que vinham sem a inteno de fixar residncia ele deu terrasonde poderiam erigir altares e fazer templos consagrados aos seus prprios deuses. (Herdoto II, 178);

    Herdoto ainda descreve uma srie de oferendas que o fara masis consagrou a

    Hlade (II, 182), demonstrando um forte lao de solidariedade e familiaridade entre o Egito

    Sata e os helenos. Todavia, o Egito por onde andou Herdoto j era de fato uma satrapia do

    imprio Persa20. Durante a presena persa o Egito se tornou pluritnico e plurilnge: desde a

    corte administrativa persa residente em Mnfis, a multido de escribas, juzes chefes de

    provncias (fratarak), at as guarnies militares, mercenrios, comerciantes. A lngua oficial

    passara a ser o aramaico, lngua do imprio aquemnida, chamado em egpcio de escrita

    sria. As zonas das guarnies de fronteira, desde Migdo a Marea e a Elefantina, no sul,

    albergavam gentes de vrias nacionalidades, de vrios cultos e religies, e os templos e

    capelas para as divindades estrangeiras surgiam um pouco por todo o Egito. Durante o

    primeiro Perodo Persa, uma grande rebelio ocorrera liderada por dois prncipes egpcios

    (Inarus da Lbia e Armitaios de Sais). Os atenienses e seus aliados (a Liga de Delos) enviaram

    uma grande fora expedicionria entre os anos de 460 e 454 a.C., e cujo fracasso da campanha

    resultaria no incio do chamado Imprio Ateniense. Apesar do fracasso do esforo helnico,

    a luta contra os persas prosseguiu at 404 a.C., quando a restaurao do Egito foi garantida

    19Segue-se a mesma justificativa. Aqui se trata do Egito submetido ao primeiro domnio persa (521 a 404 a.C.).

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    por duas dinastias (XXIII e XXIX), at uma nova invaso persa em 380 a.C. Durante esse

    perodo, o Egito se tornaria um aliado e referencial para todo inimigo dos persas.

    Em muitos aspectos a obra de Herdoto nos serve de grande valia para compreender o

    respeito que o Egito despertava no imaginrio grego do perodo Clssico. A nfase na

    descrio do Egito, dos costumes, da geografia e histria, indica uma obra com grande

    afinidade grega para com os egpcios. Existe inclusive uma busca por parentesco entre as

    culturas, datado de um passado remoto, mas que se notavam ainda atravs das coincidncias

    religiosas e cientficas. Ao cabo, a imagem que Herdoto produz configura-se como um

    esteretipo, que classifica o egpcio como mais um povo brbaro na geopoltica de um

    mundo no-grego. (Hartog, 1999).

    A criao de categorias de identidade como os esteretipos e o espantoso (thma), e

    at pela explorao do vis poltico (pois os egpcios tambm combateram os persas)

    contribuem para a construo de um Egito-bero dos principais conhecimentos formadores

    da cultura grega, criando um vnculo de simpatia entre gregos e egpcios que por

    conseqncia possibilitou a elevao hierrquica da cultura egpcia (segundo um julgamento

    grego). Assim, os egpcios permaneciam brbaros, como os persas e todos os demais povos

    no-gregos, contudo se isolavam com uma viso positiva de brbaro graas admirao por

    sua cultura. Os demais povos eram to negativamente brbaros quanto se poderia ser

    positivamente grego (Hartog, 1999).Dessa maneira, vemos como o Egito est presente tanto no imaginrio como no

    cotidiano dos gregos desde os tempos mais remotos: Fraser comenta que o Egito de

    Elefantina ao Delta era familiar aos gregos das mais variadas origens, sobretudo os da

    profisso das armas no quinto e quarto sculos a.C. Eles deixaram seus nomes e origens

    inscritas em templos desde o perodo arcaico em diante, do Mdio Egito Nbia e alm pelo

    20Vale a pena comentar que mesmo nesse momento em que o Egito conquistado pelo imprio persa, o exrcitodo derrotado fara Psamtico III composto por uma grande porcentagem de mercenrios gregos.

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    Deserto Oriental.(1996: 180). O que a conquista macednica introduziu no Egito foi um

    governo legitimado pela premissa do direito de conquista, e em certa medida pela promessa

    de libertao dos persas. Estabelecia-se ento no Egito, mais uma presena cultural

    estrangeira sob a forma de dominador.

    Contudo, esta nova dominao estrangeira, apesar de procurar manter as estruturas

    milenares do poder faranico, introduziu um elemento inaudito: o nmos como instrumento

    de hierarquizao e como moeda na negociao entre os poderes helnicos e os poderes

    locais. Cabe ao nmoso principal referencial para a construo de um discurso de dominao

    imperial helenstica, e por este vis que o mundo helenstico transforma a questo da

    diferena entre o grego e o brbaro em um problema majoritariamente poltico. O surgimento

    de uma minoria dominante greco-macednia e conseqentemente, sua elevao condio de

    elite dominante estrangeira ocasionaram, naturalmente, a existncia de uma nova categoria

    cultural na sociedade egpcia: a elite grega , o que cria uma categoria oposta de no-gregos,

    cujo elemento principal nas formulaes polticas do nmos o egpcio. Este possui

    reconhecidamente uma organizao scio-poltica como tambm uma religio e um

    conhecimento milenares, o que contribui para moldar a forma do encontro dos nomi no

    como um processo hegemnico de imposies etnocentradas, mas como um processo de

    negociaes na esfera poltica institucional.

    Podemos agora dimensionar as implicaes da noo de nmos para o projetoimperial helenstico no contexto especfico de uma realidade egpcia. Uma vez que se admitia

    que o que diferenciava o heleno do brbaro era o nmos, no havia o determinismo de

    uma natureza imutvel de brbaro, mas sim uma questo cultural. Eis ento a possibilidade

    para o elemento de origem no-grega se tornar civilizado como um grego: aprendendo a

    agir como um heleno, ou seja, helenizando-se, reproduzindo assim o nmosgrego e no o

    brbaro. Assim, no mundo helenstico, era possvel ao nativo ascender a um estatuto

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    jurdico grego21atravs do aprendizado do novo idioma administrativo, o grego, e a aquisio

    de uma educao grega, atravs dos ginsios. Visar uma civilizao universal no

    pensamento helenstico pressupe uma hegemonia (imposta) de determinados valores scio-

    culturais, costumes considerados como sendo os costumes corretos, enfim, baseados na

    premissa de superioridade cultural.

    21 Ressaltando que as exigncias para que tal fosse alcanado, bem como as condies para a aquisio dacidadania grega so variveis de caso a caso. Estaremos aqui nos referindo quase sempre ao estudo de casoproposto: a realidade na chrado Egito helenstico.

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    2 RELAES DE PODER ENTRE OS TEMPLOS EGPCIOS E O DOMINADOR

    HELENSTICO

    O objetivo do presente captulo abordar as negociaes entre a monarquia helenstica

    e os sacerdotes egpcios. A classe sacerdotal egpcia permeava com sua presena e influncia

    todos os setores da administrao da terra, finanas e militares. Diante dessa realidade poltica

    especfica, Alexandre buscou emoldurar e no destruir os sacerdcios egpcios. Essa

    estratgia de emoldurar uma instncia de poder nativo pretende o estabelecimento de um

    poder mediador, legitimador e consolidador da autoridade imperial estrangeira-helenstica no

    territrio nativo-egpcio. Como conseqncia dessa aproximao poltica entre as duas

    instncias de poder, uma nova rede de negociaes polticas se desenvolve na sociedade

    egpcia helenstica. Essa nova rede precisa construir um novo campus de atuao

    (Bourdieu, 1980), para ento desenvolver suas negociaes.

    Nesse esprito, optamos por investir num estudo a respeito das relaes de poder entre

    o basileus-fara (o Poder imperial estrangeiro instalado) e os templos nativos (o poder

    administrativo e social nativo) atravs de fontes oficiais, principalmente, decretos sacerdotais

    para compreender esse processo de construo de um campo novo de atuao e deliberao

    poltica, analisando as relaes polticas entre as duas instncias de poder. Tais decretos so

    particularmente teis em identificar aspectos da poltica religiosa dos Lgidas, bem como suasnegociaes com os templos. Os governantes helensticos sabiam que os templos exerciam

    autoridade moral e poltica sobre a populao, uma vez que as instituies administrativas

    estavam em sua maioria sob encargo dos sacerdotes, alm da existncia de um prestgio

    inquestionvel do sacerdote frente sociedade egpcia. Finalmente, sobre os decretos

    sacerdotais, salvo o Decreto de Rfia, cuja verso original e tradues disponveis so

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    referentes verso demtica do texto; os demais documentos