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    INTRODUO

    A alimentao passou a ser objeto de estudo nas Cincias Humanas, mais

    especificamente nos Annales, quando os historiadores Marc Bloch e Lucien Febvre,

    representantes da Primeira Gerao, pensaram trabalhar a histria do cotidiano; nessa

    empreitada, Bloch escreveu um ensaio sobre histria da alimentao como parte

    integrante da obra Encyclopdie Franaisede Febvre, cuja qual foi publicada ao final

    da dcada de 19301.

    J na Segunda Gerao dos Annales, dois trabalhos foram bastante

    representativos no tocante questo alimentar: as obras dos historiadores Fernand Braudele Ernest Labrousse. O volume um da obra de Fernand Braudel denominada Civilizao

    material, economia e capitalismo, publicada em Paris em 1979, enquadrou-se nos

    estudos de Histria da Cultura Material; nela, o historiador francs dedicou um captulo

    inteiro aos gneros alimentcios, como o trigo, o arroz e o milho, do sculo XV ao XVIII,

    enquanto produtos representantes da vida cotidiana2.

    Na seqncia, a tese de Ernest Labrousse, intitulada La crise de lconomie

    franaise la fin de lAncien Rgime et au dbut de la Revolution, de 1944, e que anos

    mais tarde foi inserida na chamada Histria Quantitativa, abordou a respeito da crise

    econmica francesa que se instaurou no sculo XVIII, em funo de uma m colheita, cujo

    reflexo negativo se estendeu do meio rural para os grandes mercados e para a indstria3.

    A partir da dcada de 1970, o interesse pela temtica alimentar tomou corpo e, no

    ano de 1974, a obra Faire de lhistoire, organizada por Jacques Le Goff e Pierre Nora

    props pensar a Histria atravs de outros tipos de histria, dentre as quais ...a micro-histria, em contraposio a uma histria absoluta do passado4. Nessa perspectiva,

    historiadores como Jean-Louis Flandrin e Jean-Paul Aron, passaram e se ocupar dos

    estudos sobre alimentao, os quais tm apresentado significativo crescimento na prpria

    1BURKE, P. A Escola dos Annales (1929-1989): a Revoluo Francesa da historiografia.Traduo de Nilo Odalia. So Paulo: Editora da UNESP, 1997. 154 p.; p. 60.

    2 BRAUDEL, F. Civilizao material, economia e capitalismo: sculos XV-XVIII.Traduo de Telma Costa. So Paulo: Martins Fontes, 1995. p. 89-236.

    3BURKE, op. cit., p. 68.4SANTOS, C. R. A dos. A alimentao e seu lugar na Histria: a preservao do patrimnio

    gustativo da sociedade curitibana. Histria: Questes & Debates.Curitiba, p. 11-31; p. 14, 2005.

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    Academia francesa; dentre tais estudos que resultaram em publicaes traduzidas no

    Brasil desde a dcada de 1990, esto as obras Histria da alimentao, organizada por

    Jean-Louis Flandrin e Massimo Montanari, A gastronomia francesa, de Jean-Robert

    Pitte e a Inveno do restaurante, de Rebecca Spang.

    No Brasil, trabalhos acadmicos como as dissertaes de Daniele Rocha

    Saucedo (sobre a fuso dos espaos pblico e privado no Restaurante Bologna) e de

    Juliana Cristina Reinhardt (sobre o fortalecimento da tradio proporcionado pela

    memria gustativa, atravs da ingesto de pes e das bolachas produzidas e

    comercializadas pela Padaria Amrica desde 1913), bem como as teses de Maria

    Ceclia Barreto Amorim Pilla (sobre as boas maneiras mesa e seus desdobramentos)e a de Suely Teresinha Schmidt Passos de Amorim (sobre as prticas alimentares

    infantis no Brasil) -, compem uma srie de objetos de pesquisa j desenvolvida desde

    a dcada de 1990, no Departamento de Histria, da Universidade Federal do Paran.

    Sob a implantao pioneira e orientao do Prof. Dr. Carlos Roberto Antunes dos

    Santos, trabalhos nessa linha vm despertando interesse entre historiadores, socilogos

    e nutricionistas, no tocante construo de projetos de pesquisa de carter

    interdisciplinar, na Histria.

    Minha trajetria na busca por informaes sobre Histria e Alimentao teve

    incio quando eu era estagiria do setor de Memria Urbana, da Casa da Memria

    (Fundao Cultural de Curitiba) e ainda graduanda do curso de Histria; nessa poca

    participava de um projeto, provisoriamente intitulado Caminhos, o qual procurava

    contar a histria de Curitiba atravs das atuais avenidas Anita Garibaldi e Cndido de

    Abreu e rua Mateus Leme.Nas fontes selecionadas para esse projeto, ou seja, almanaques, Livros de

    Impostos, Industrias e Profisses da Capital e Livro Azul da Cidade de Curityba buscou-

    se levantar os vrios estabelecimentos comerciais existentes ao longo desses logradouros

    para entender um pouco mais do que era essa cidade poca. Quanto a mim, aproveitei

    para tambm olhar os Livros de Impostos, Indstrias e Profisses no intuito de procurar

    vestgios sobre os provveis estabelecimentos que comercializassem gneros

    alimentcios em Curitiba. No entanto, o Livro Azul da Cidade de Curityba datado de

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    1935 trouxe-me, primeiramente, algo que eu procurava ainda que sem compromisso

    ou rigor metodolgico: um anncio da fbrica de massa de tomate, de Archelau de

    Almeida Torres, situada em Araucria (um dos municpios da Regio Metropolitana de

    Curitiba). A posteriori, os Livros de Impostos, Indstrias e Profisses me mostraram a

    existncia de restaurantes, a partir de 1892 em Curitiba, bem como um tipo de

    estabelecimento chamado casa de pasto, cujo termo at ento me era desconhecido.

    Passei a fich-los e procurar o significado para as tais casas de pasto, quando me

    deparei com uma definio, em um dicionrio qualquer, que afirmava que pasto era

    alimento e casa de pasto, restaurante. Tal informao me encorajou a trabalhar na

    monografia de concluso daquele curso a relao entre gneros alimentcios e asmudanas nos hbitos alimentares da populao curitibana.

    Para tal, li Histria da alimentao no Paran, obra cuja tese central aborda a

    questo agroalimentar atravs de sua produo, distribuio e consumo no tocante aos

    alimentos que faziam parte do cotidiano do paranaense no perodo provincial a partir da

    2 metade do sculo XIX -, como a carne, o arroz, o feijo, o milho, a mandioca, o trigo e a

    erva-mate5. Concomitantemente, a pesquisa aliada s leituras relacionadas questo

    alimentar resultaram em trabalho monogrfico de graduao sobre os gneros alimentcios

    vendidos no quadro urbano da capital paranaense pelos colonos, bem como aqueles nos

    armazns e em alguns restaurantes e casas de pasto6na ltima dcada do sculo XIX. Nessa

    poca, a documentao utilizada na escrita desse trabalho foram os Livros de Impostos,

    Indstrias e Profisses e os almanaques referentes ao perodo de dez anos.

    Mesmo tendo escolhido um recorte relativamente curto, dei continuidade ao

    arrolamento das fontes at a dcada de 1940. No intuito de dar seqncia aos estudos sobreHistria da Alimentao e me aprofundar na trajetria de casas de pasto e restaurantes em

    Curitiba foi que entrei em contato com o Prof. Dr. Carlos Roberto Antunes dos Santos

    pensando a possibilidade de participar do Programa de Ps-Graduao em Histria, na

    Universidade Federal do Paran.

    5SANTOS, C. R. A dos. Histria da alimentao no Paran.Curitiba: Fundao Culturalde Curitiba, 1995. 190 p.; p. 16. (Coleo Farol do Saber).

    6 Estabelecimento onde se serve de comer. CASA DE PASTO. In: SGUIER, J. de.Diccionrio Prtico Illustrado: novo diccionrio encyclopdico luso-brasileiro. 2ed. revista. Porto:Lello & Irmo, L.da, Editores, 1928. 1780 p.; p. 844.

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    A priori, tentei viabilizar a construo de um projeto de pesquisa o qual

    estabelecesse um dilogo entre histria da alimentao e histria do comrcio; no entanto,

    as fontes que eu tinha em mos eram insuficientes para dar conta da questo alimentar.

    Iniciados os crditos do mestrado e em meio s contribuies feitas nas

    disciplinas de Seminrio I e II, uma das sugestes apontadas pelo prprio orientador se

    deu no sentido de ampliao das fontes referentes ao projeto, o que resultou na busca por

    maiores informaes sobre casas de pasto e restaurantes, em Curitiba, entre 1890 e 1940,

    nos peridicos da poca. Nestes, os anncios dos estabelecimentos foram de grande valia,

    visto que trouxeram informaes sobre os servios, gneros, horrio de funcionamento,

    bebidas, localizao e, em alguns casos, a razo social. Isso favoreceu o entendimento darelao casa de pasto/restaurante versusalimentos em funo dos ltimos estarem inseridos

    numa categoria histrica, que pode ser explicada pela sua produo, circulao e

    consumo luz dos nveis de desenvolvimento de uma determinada formao

    econmica e social7.

    Concomitantemente, de posse do nome completo e endereo dos ento

    proprietrios desses estabelecimentos, decidi contatar seus descendentes. A procura por

    essas pessoas pelo sobrenome na lista telefnica foi um trabalho exaustivo e nem sempre

    com resultados favorveis ao projeto: na maior parte das vezes ou elas desconheciam o tal

    proprietrio, ou, se sabiam da atividade na poca confirmavam a informao, mas nada de

    novo acrescentavam. Uma situao desestimulante, a exemplo da filha de um dos

    proprietrios que acompanhou o trabalho dos pais na casa de pasto e presenciou as

    mudanas de sede do estabelecimento e que, sob hiptese alguma quis contribuir, somou-

    se a outras situaes desanimadoras, cujas quais culminaram no abandono da idia detrabalhar com depoimentos, exceto em apenas seis casos, cujas informaes concedidas

    foram incorporadas ao trabalho.

    Tendo em mos o nome e endereo dos proprietrios de casas de pasto e

    restaurantes ou seja, dados estes provenientes da pesquisa nos Livros de Impostos,

    Indstrias e Profisses -, procurei verific-los nos registros de imigrantes disponveis

    para consulta no site do Departamento Estadual de Arquivo Pblico (DEAP), com o

    7SANTOS, Histria da alimentao..., p. 124.

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    intuito de identificar a nacionalidade desses comerciantes, bem como o ano de chegada

    dessas pessoas, nome e nmero de membros da famlia; mas a no-padronizao na

    escrita de seus nomes pouco favoreceu a identificao da grande maioria dos

    proprietrios e, quando encontradas as famlias de mesmo sobrenome, raros eram os

    registros que informavam que determinado comerciante tinha certo grau de parentesco

    com os demais inscritos nos Livros.

    A despeito da poltica imigrantista no Brasil, atravs da lei de 16 de maro de

    1820, objetivava-se ocupar os chamados vazios demogrficos, atravs da realocao de

    imigrantes europeus nesses espaos. Ao final dos anos 1840, muitos dos que entraram no

    pas passaram a trabalhar nas lavouras cafeeiras em So Paulo, sob o regime de parcerias.De 1850 a 1860, a chegada de imigrantes continuou e, at 1870, predominava o imigrante

    alemo; a partir dessa ltima dcada, a presena de italianos passou a ter maior

    expressividade. No Paran, os imigrantes tambm se instalaram com maior incidncia j

    no primeiro ano de governo do ento Presidente de Provncia Lamenha Lins (1875-

    1877), com o intuito de gerar uma agricultura de abastecimento; em Curitiba, alemes,

    italianos, poloneses e ucranianos, por exemplo, deram no apenas uma nova feio

    sociedade local, mas tambm atuaram nesse espao, na qualidade de comerciantes

    inclusive como proprietrios de casas de pasto e restaurantes -, e de colonos que vinham

    do rocio comerciar no quadro urbano da capital paranaense.

    Na seqncia, depois de delimitadas as fontes, busquei conceituar casas de

    pasto e restaurantes enquanto objeto de estudo, j que os objetos histricos so

    recortes da realidade, so recursos analticos que servem para decompor o processo

    social em diferentes dimenses que nos oferecem uma riqueza mltipla deinformaes sobre aspectos da realidade, mas que devem ser compreendidos

    integrados no conjunto da vida, que simultaneamente social, econmica e

    cultural...8; por esse motivo, enquadravam-se na colocao do historiador social

    Henrique Carneiro, no tocante ao aspecto cultural o que se depreende de um projeto

    na linha de pesquisa Cultura e Poder.

    8 CARNEIRO, H. Comida e sociedade: uma histria da alimentao. Rio de Janeiro:Campus, 2003. 185 p.; p. 166-167.

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    Ao ir mais alm, pensei uma possvel abertura no sentido de analis-los como

    parte integrante dos bares, cafs, hotis e penses to-somente nos casos em que

    houvesse alguma informao referente venda de refeies naquelas casas de

    comrcio; tendo em vista que a alimentao [] um fato da cultura material, da infra-

    estrutura da sociedade; um fato da troca e do comrcio, da histria econmica e social,

    ou seja, parte da estrutura produtiva da sociedade9 quando combinada aos dados

    arrolados nos anncios dos peridicos da poca que serviram de amostragem para a

    escrita deste trabalho - daria conta de trazer tona novos questionamentos pela temtica

    alimentar.

    Como problemtica, procurei identificar os alimentos, os gneros, as comidas e ospratos elaborados e comercializados nasepelascasas de pasto e restaurantes de Curitiba,

    entre 1890 e 1940. Esse recorte, cujo contexto o da Primeira Repblica, foi determinado

    pelas fontes, em funo do ano de 1890 ser o meio-termo entre o momento em que os

    Alvars do Comrcio (1885) e Livros de Impostos, Indstrias e Profisses (1892) comeam

    a dar sinais do surgimento dessas casas comerciais em Curitiba e 1940 por ser o ano em que

    se consolidou o uso do termo restaurantecomo substituto de casa de pasto.

    De posse das fontes arroladas e no decorrer da construo metodolgica,

    utilizei-me da experincia da historiadora Sandra Jatahy Pesavento sobre o papel desse

    profissional. Segundo ela,

    a figura do narrador no caso, o historiador, que narra o acontecido a de algum quemediatiza, que realiza uma seleo dos dados disponveis, que tece relaes entre eles, que osdispe em uma seqncia dada e d inteligibilidade ao texto. Tais atividades envolvem amontagem de uma intriga, a urdidura de um enredo, a decifrao de um enigma. O narrador

    aquele que se vale da retrica, que escolhe as palavras e constri os argumentos, que escolhe alinguagem e o tratamento dado ao texto, que fornece uma explicao e busca convencer. (...).O narrador-historiador ainda que se vale de provas os indcios, cuidadosamentepesquisados, selecionados e dispostos em uma rede de analogias e combinaes de modo arevelar significados que, mais at do que explicar, operam como recurso de autoridade falado historiador. Alm disso, o historiador-narrador cita. Suas citaes no so apenas evidnciasde que ele andou pelos arquivos e, cumprindo o seu ofcio, pesquisou as fontes documentais,mas tambm operam no sentido de atestar que esse historiador conhece e participa do dilogocientfico e acadmico de sua poca. Ele demonstra com isso no apenas a sua erudio, massua atualizao com as tendncias e debates de seu tempo. (...). O mtodo fornece aohistoriador meios de controle e verificao, possibilitando uma maneira de mostrar, comsegurana e seriedade, o caminho percorrido, desde a pergunta formulada pesquisa de

    9Id.

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    arquivo, assim como a estratgia pela qual fez a fonte falar, produzindo sentidos e revelaes,que ele transformou em texto10.

    Com base no raciocnio desenvolvido por Pesavento, acredito que a riqueza do

    trabalho do historiador e o seu diferencial enquanto profissional daqueles que

    nomeiam a si prprios como representantes dessa categoria, quando no o so- est no

    debruar sobre a documentao levantada, arrolada e devidamente fichada. Assim,

    acima de tudo, procurei construir a narrativa sem perder de vista as fontes e permiti que

    elas tivessem um peso bastante significativo no corpo do trabalho, j que elas se inserem

    num processo de pesquisa exaustivo nos seguintes acervos: do Centro de Documentao

    da Casa da Memria, os Alvars Comerciais, de 1885 a 1937; Departamento Estadual deArquivo Pblico, os Livros de Impostos, Industrias e Profisses de 1872 a 1943; da

    Diviso de Documentao Paranaense, Biblioteca Pblica do Paran, todas as revistas

    relativas aos anos de 1887 a 1943 e os jornais O Dezenove de Dezembro (em que

    foram consultados apenas os exemplaresfac-smilescorrespondentes aos anos de 1854,

    1857 e 1858), bem como os pertencentes ltima dcada de 1890, conforme pode ser

    visto mais detalhadamente na folha 153 deste trabalho e os exemplares do Diario da

    Tarde. Tambm inclu citaes diretas como forma de no apenas ilustrar o texto, mas

    me valer da idia de representao atravs dos discursos em execuo poca.

    A respeito da atualizao com as tendncias e debates de seu tempo, percebo

    que a abordagem dada pelo vis da alimentao cabal quando procura recuperar os

    tempos da memria gustativa, possibilitando as desejveis articulaes entre a Histria e

    outras disciplinas11. Nesse sentido foi que procurei conhecer os trabalhos pioneiros

    orientados pelo Prof. Carlos, no departamento de Histria da UFPR, em Histria eAlimentao, dentre os quais pude selecionar a dissertao de mestrado de Solange

    Demeterco e a tese de doutorado de Maria do Carmo Marcondes Brando Rolim,

    enquanto trabalhos cujos recorte, objeto de pesquisa e metodologia apresentavam maior

    proximidade com o que eu pretendia desenvolver.

    10PESAVENTO, S. J. Histria & histria cultural.Belo Horizonte: Autntica, 2003. 132 p.; p.50-51; 67. (Coleo Histria &... reflexes, 5).

    11SANTOS, A alimentao e seu..., f. 1.

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    O primeiro, intitulado Doces lembranas: cadernos de receitas e comensalidade

    (1900-1950),trata da escolha, do preparo, do consumo e do ritual que envolve a refeio

    nos primeiros 50 anos do sculo XX; tal recorte se justifica pelo fato de que, nesse

    perodo, os diversos grupos de imigrantes j haviam se fixado em Curitiba, integrando-se

    economia e sociedade, bem como nova forma de sociabilidade que resultou da sua

    chegada, atrelada ao surgimento de restaurantes como locais do comer. Outro aspecto

    abordado pela historiadora se refere expanso da indstria curitibana que, segundo ela,

    permitiu que a variao e a oferta de gneros alimentcios surgissem enquanto uma nova

    ferramenta para atender s expectativas do novo consumidor, que se mostrava receptivo

    presena de novos produtos e formas de lazer. No mais, os cadernos de receita dasfamlias curitibanas e uma srie de entrevistas, algumas com mulheres dessas famlias

    (cerca de 19), foram utilizadas por Solange Demeterco como fonte documental e oral e

    que possibilitaram-na identificar quais eram os pratos considerados estimulantes do gosto

    e do prazer mesa, importantes na tradio familiar.

    J no segundo, intitulado Gosto, prazer e sociabilidade: bares e restaurantes

    de Curitiba (1950-1960), Maria do Carmo Marcondes Brando Rolim ocupou-se em

    conhecer o gosto dos fregueses dos bares e restaurantes dessa cidade, entre 1950 e 1960;

    aliado ao padro alimentar caracterstico em cada um dos estabelecimentos que serviram

    de amostragem ao longo da tese, Rolim no perdeu de vista a noo de sociabilidade que

    estava agregada a eles. Para a anlise do corpo documental, a historiadora utilizou, entre

    outras fontes, os cardpios desses estabelecimentos, com o intuito de identificar o gosto

    da sociedade em questo, combinados ao que ela definiu enquanto categorias

    universais, a exemplo de tempo, espao e memria, norteadoras de outras gosto,estilo de vida, habitus -, e todas convergindo para as especificidades do consumo

    alimentar e os significados simblicos subjacentes12.

    Para dar conta da trajetria de casas de pasto e restaurantes em Curitiba, de

    1890 a 1940, parti de trs objetivos: 1) contextualizao do objeto de pesquisa na sua

    origem, luz do espao e da sociedade de ento; 2) direcionamento aos pratos

    12ROLIM, M. do C. M. B. Gosto, prazer e sociabilidade: bares e restaurantes de Curitiba,1950-60. Curitiba, 1997. Tese (Doutorado em Histria) Setor de Cincias Humanas, Letras e Artes,Universidade Federal do Paran. 250 f; f. 5.

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    confeccionados pelos estabelecimentos e seus respectivos servios e 3) comrcio de

    venda de gneros alimentcios em paralelo ao mapeamento do objeto, respectivamente;

    tais objetivos foram trabalhados cada qual dentro de um captulo, que perpassaram

    pela cidade, alimentao e comrcio locais.

    Assim, no primeiro captulo, foram abordados alguns autores que pensaram o

    surgimento de casas de pasto e restaurantes como objeto de estudo na Histria; na

    seqncia, foram observadas as mudanas absorvidas pela capital paranaense na

    tentativa de enquadr-la s vivncias j experimentadas pelos pases europeus e que

    vinham fazendo parte da realidade das principais capitais brasileiras - a exemplo de

    Rio de Janeiro e So Paulo no sentido de adequar ao cotidiano local as noes demodernidade, as quais estavam condicionados os preceitos de higiene, moral e

    crescimento urbano. Nessa direo, foram tratados os aspectos do cotidiano de

    Curitiba, no tocante s mudanas de cunho urbanstico, dentre as quais estavam a

    preocupao com o estado de conservao dos logradouros pblicos e, por fim,

    salubridade na cidade como um todo, em momentos de epidemia e, principalmente,

    nos locais de venda de refeies e demais produtos. Como fontes foram utilizados os

    jornais da poca, a exemplo do Diario do Commercio, Diario do Paran, A

    Republicae Diario da Tarde, tendo sido este o de maior destaque por compreender

    os ltimos anos do sculo XIX at 1940; dentre as revistas estavam A Bomba e

    Illustrao Paranaense.

    No segundo captulo, intitulado Comer, beber, dormir: os sabores de Curitiba,

    os estabelecimentos foram trabalhados dentro de categorias, cuja escolha pela

    nomenclatura se deu em funo da inexistncia de um padro para nomear casas de pastoe restaurantes nos anncios das fontes de imprensa. Assim, foi que se procurou realoc-los

    com o intuito de mostrar a condio na qual seus proprietrios tornavam mais claro ao

    pblico leitor os servios cujos estabelecimentos estavam inseridos. A definio de acordo

    com o enquadramento foi organizada por ordem alfabtica a partir da palavra subseqente

    a restaurante - como restaurante e bar, restaurante e caf, restaurante, caf e hotel e

    assim por diante -, dentro das quais a questo alimentar foi item primordial entre 1890 e

    1940, na cidade de Curitiba. Foram escolhidos e utilizados os dois volumes da obra

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    Histria da alimentao no Brasil, de Lus da Cmara Cascudo e o Pequeno dicionrio

    da gula, de Mrcia Algranti para a complementao de dados referentes a certos pratos ou

    alimentos existentes nos anncios das fontes de imprensa.

    Dados mais gerais, a exemplo da qualidade e custo dos servios - quando

    existentes - tambm foram abordados para que o leitor pudesse perceber certas

    alteraes no discurso dos prprios anncios, que se davam muito mais em se tratando

    dos pratos e seus respectivos alimentos do que quanto salubridade e organizao.

    Nesse sentido foi que se procurou verificar at onde ia a preocupao dos comerciantes

    locais em informar a respeito das atividades habituais em seus estabelecimentos e como

    eles, efetivamente, remetiam questo alimentar com relao possibilidade derealizao das refeies fora do mbito privado. Aqui, as fontes utilizadas foram os

    depoimentos de Adelina Lcia Spessato Ferreira, Escolstica Stenzoski Zaniocoski e

    Zlia Petersen, bem como os jornais O Dezenove de Dezembro, Diario do

    Commercio, Diario do Paran, Diario da Tardee as revistas: A Bomba, A Cidade,

    A Cruzada, A Fulanita, Almanach dos Municipios, Almanach do Paran,

    Almanach Paranaense, Annuario dos Impostos (Federaes, Estadoaes e

    Municipaes), A Rolha, A Rua, A Sulina, Boletim da Associao Commercial do

    Paran, Calendario do Paran, Caras e Carrancas, Expanso Econmica, Gran-

    Fina, Guia Telefnico, Illustrao do Paran, Indicador Commercial Paranaense,

    Lista de Assignantes, Livro Azul da Cidade de Curityba, O Itiber, O Miko, O

    Olho da Rua, Paran Mercantil, Paran Progresso e Terra dos Pinheirais.

    No terceiro e ltimo captulo a idia norteadora foi a de traar o comrcio de

    gneros alimentcios no apenas nas casas de pasto e restaurantes, mas tambm nosaougues, armazns, confeitarias, entre outros; para o conhecimento dos ltimos,

    foram pesquisados os jornais Diario do Commercio, Diario do Paran, Diario da

    Tarde e as revistas A Bomba, A Cruzada, Almanach do Paran, Almanach

    Paranaense, Anthos, Calendrio do Paran, Illustrao Paranaensee O Miko.

    No mais, fora verificado o comportamento dos primeiros, no perodo de 1890

    a 1940, atravs da anlise dos dados existentes nos Alvars do Comrcio e Livros de

    Impostos, Industrias e Profisses (embora o primeiro exemplar dessa documentao

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    corresponda ao ano de 1872, restaurantes e casas de pasto surgem vinte anos mais tarde).

    Como complemento a uma questo levantada por esta ltima fonte, foram utilizados os

    depoimentos de Mrio Busnardo e Arilda e Antnio Scarante.

    De fato foi, acima de tudo, uma forma de pens-los a partir das novas

    necessidades que passaram a ser notadas em Curitiba. Nos Alvars do Comrcio as

    designaes preestabelecidas foram de encontro unicamente aos termos casa de pasto

    e restaurante13. Levantados os dados a partir das duas denominaes foi que se

    procurou verificar a data em que foi retirado o alvar para funcionamento desses

    estabelecimentos, o nome completo do proprietrio, os endereos antigo e atual, o

    local e/ou bairro.Na seqncia, partiu-se do pressuposto de que os respectivos proprietrios de casas

    de pasto e restaurantes constituram um grupo atuante no cenrio comercial e urbano

    curitibano; para tal, essas casas de comrcio foram agrupadas por dcadas, cujos dados

    concernentes a esses estabelecimentos foram tirados dos Alvars do Comrcio e Livros de

    Impostos, Indstrias e Profisses, respectivamente, o que deu a esse captulo um carter

    mais quantitativo. Abertura, fechamento, transferncia de proprietrio ou endereo, bem

    como substituio do termo casa de pasto para restaurante e vice-versa tambm foram

    abordados, de sorte que neste ltimo item fizeram parte da amostragem os proprietrios que,

    com efeito, registraram essa mudana e as mulheres que tiveram participao significativa

    na qualidade de comerciantes.

    Na construo deste trabalho como um todo e em meio ao que fora delineado

    como contedo de cada um dos captulos atesto que casas de pasto e restaurantes no

    apenas so objetos de estudo em Histria da Alimentao pela alimentao por si s,mas por serem elementos os quais esto imbricados na grande teia de relaes que

    passam a ser pensadas como algo constituinte desse novo panorama posto pela

    modernidade. E, se pensados atravs da lente de aumentoda Histria da Alimentao,

    certamente acabam por revelar detalhes to particulares que somente so desvendados

    quando adotada essa vertente da Histria.

    13Isso tambm se deu nos Livros de Impostos, Industrias e Profisses. Os anncios buscadosposteriormente acabaram por enriquecer os dados um tanto ridos desses Livros e dos Alvars,mostrando que havia uma estrutura mais slida por trs das casas de pasto e restaurantes.

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    CAPTULO 1

    ESPAO, SOCIEDADE E ALIMENTAO

    1.1 AS ORIGENS DAS CASAS DE PASTO E RESTAURANTES

    Os pesquisadores que se ocuparam do processo de investigao do surgimento

    e consolidao das casas de pasto e restaurantes, o fizeram tendo como ponto de

    partida os estabelecimentos portugus e francs, respectivamente.

    Quanto s casas de pasto, cuja origem genuinamente portuguesa, pouco foraescrito sobre elas at ento, no sentido de fornecer maiores informaes sobre a

    dinmica dessa forma de comrcio.

    Isabel Drummond Braga foi bastante feliz em mencion-las e inseri-las no

    quadro urbano portugus. Segundo ela, a primeira casa de pasto aberta ao pblico se

    dera em Lisboa, ainda no sculo XIX; pertencente ao Grande Hotel, hotel este de

    muito bom conceito, de propriedade de Joo da Mata era considerado um

    estabelecimento impar (...) tanto pela boa sociedade que a freqenta[va], como pela

    perfeio de seus diversos e esquisitos manjares14.

    Dentre as mais modestas, costumava-se servir bife com batatas, cabea de

    porco, chispe15com ervas, costeletas, macarro italiana, toucinho, chourio de carne

    e de sangue, croquetes, empadas, salsichas, iscas, feijo branco com hortalia,

    linguados fritos, pescada cozida com cebolas e batatas, sardinhas fritas e at

    caldeirada

    16

    . Seus proprietrios tinham o costume de anunciar seus servios eaproveitavam a oportunidade para elencar seus produtos e seus respectivos valores 17.

    Como forma de trazer tona o discurso dos anncios das casas de pasto portuguesas

    que segue a citao na prxima folha referente Taberna dos Mosqueteiros:

    14DRUMOND BRAGA, I. Do primeiro almoo ceia.Sintra: Colares Editora, 2004. p. 148.15 P de porco. CHISPE. In: SGUIER, J. de. Diccionrio Prtico Illustrado: novo

    diccionrio encyclopdico luso-brasileiro. 2 ed. revista. Porto: Lello & Irmo, L.da, Editores, 1928.1780 p.; p. 223.

    16DRUMOND BRAGA, op. cit.,, p. 150.17Ibid., p. 151.

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    Esta nova casa de pasto, onde sempre se encontrar decncia, asseio, boas maneiras eeconomia abrir as suas portas ao pblico na vspera do dia de Santo Antnio, s 4 horas datarde, e apresentar, alm dos melhores vinhos de mesa e das comidas usuais, outras iguariasnovas e desconhecidas nestes estabelecimentos: bifes recheados, iscas de carneiro, costeletasrecheadas commolho de carticha, lngua com molho de azedas, pastis de carne, almndegasde carne, eirs18 francesa, linguados de molho branco, muletas de camaro, mariscos, etc.19

    Nota-se o quo eclticos eram os pratos que seriam servidos na Taberna dos

    Mosqueteiros a partir da sua abertura, bem como a variada opo que tinha como

    ingrediente principal carnes diversas. No mais, o interesse do proprietrio quanto

    oferta de pratos j conhecidos pela populao local aliado insero de novidades

    gastronmicas incitaria a visita dos possveis freqentadores habituais e dos

    apreciadores da boa mesa.

    Juntamente s casas de pasto, outros estabelecimentos tambm procuravam

    comercializar refeies: dentre eles havia, ao longo do sculo XIX em Portugal, os

    restaurantes, as estalagens, os hotis, as tabernas, as adegas e os armazns de vinho

    que eram tidos como espaos destinados sociabilidade e comensalidade20.

    Os hotis, por sua vez, tinham certa expressividade no tocante venda derefeies e, nesse sentido, eram variados os estabelecimentos que se apresentavam,

    quanto oferta de servios diversa clientela que se fazia presente. Por volta de 1880,

    Lisboa contabilizava 51 hotis, dentre os quais vrios eram aqueles que se

    encarregavam da venda de refeies21. J os cafs no ficavam atrs e se esmeravam

    em ofertar uma variada gama de comestveis, que transitavam dos lanches s

    refeies22. As hortas, tidas como espaos reservados boemia e para se ouvir o fado,

    apresentavam cardpio ecltico, cujos itens perpassavam pelas carnes de peixe, decoelho e de carneiro, bem como pelas saladas, canja de galinha e bebidas diversas 23.

    Observa-se que grandes eram as opes de refeio e seus respectivos

    estabelecimentos comerciais na capital portuguesa, ao longo do sculo XIX: casas de

    18espcie de enguia. EIRS. In: SGUIER, op. cit.,p. 366.19DRUMOND BRAGA, op. cit.,p. 152.20Ibid., p. 147.21Ibid., p. 148.22Id.23Ibid., p. 152.

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    pasto, restaurantes e cafs, por exemplo, eram os locais encarregados do preparo e da

    venda de comida, alm dos hotis que no deixavam a desejar os servios de cozinha,

    mantendo em anexo ao seu estabelecimento uma casa de pasto que tinha tal

    responsabilidade. Dessa maneira, a preocupao de alguns proprietrios quanto

    disponibilizao de produtos variados, bem como o incremento da sua atividade

    comercial, tambm era validada pela escolha por servios de cozinha especializados e

    do preparo dos respectivos pratos, que no apenas visavam atingir os hspedes do

    estabelecimento, mas, inclusive, os moradores locais que vez ou outra buscavam

    encontrar variedade e boa mesa fora do mbito privado.

    Ainda sobre casas de pasto e, numa abordagem diferenciada de DrummondBraga, Margareth Visser afirma que tais estabelecimentos foram precursores dos

    restaurantes quanto venda de comidas ao grande pblico o qual, para realizar suas

    refeies, deveria se dirigir ao estabelecimento dentro de um horrio fixo, cuja

    refeio tida como comum tambm tinha um valor pr-determinado24.

    Embora essa literata no esmice os servios, as refeies preparadas nas

    casas de pasto, nem mesmo quais os estabelecimentos que serviram de amostragem

    para o estudo dessas casas comerciais, ela toma o cuidado de informar ao leitor quanto

    ao aspecto comum das refeies, o que se deduz que seus pratos eram,

    principalmente, os do cotidiano. Desse modo, o desencadeamento das casas de pasto

    para os restaurantes seria uma maneira de aperfeioar as tcnicas e os servios locais,

    no sentido de oferecer ao comensal maior diversidade mesa.

    Sobre a chegada dos restaurantes, Jean-Robert Pitte afirma que esses

    estabelecimentos destinados a comercializar comidas recuam aos limites da pr-histria e da histria [pois] esse tipo de comrcio surgiu com os mercados e as

    feiras..., quando se era obrigado a se ausentar de casa por vrios dias e,

    conseqentemente, necessrio se alimentar fora. Diante disso, relaes sociais e

    comerciais passavam a ser travadas, como uma caracterstica do meio urbano, bem

    24VISSER, M. O ritual do jantar: as origens, a evoluo, excentricidades e significado dasboas maneiras mesa. Traduo de Snia Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1998. 430 p.; p. 345.

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    como o desenvolvimento do restaurante em paralelo ao processo de urbanizao das

    cidades25.

    Logo mais frente, esse historiador se posiciona diferentemente quando

    afirma que o restaurante, estabelecimento conhecido por essa designao,

    originariamente francs e que vem desde o final do sculo XVIII; provvel que Pitte

    tenha tido a inteno de mencionar a existncia de locais responsveis pela venda de

    refeies: no entanto, no foi feliz ao faz-la visto que para caracteriz-las utilizou de

    uma terminologia prpria e ulterior aos perodos referentes pr-histria e histria.

    No entanto, demais ambientes com pratos de carter popular em detrimento dos

    especializados, mais focados na venda de bebidas alcolicas eram responsveis pelopreparo e comrcio de refeies em toda a Europa, dentre os quais esto as brauerein

    alems, as bodegas espanholas, as uzeriasou tabernas gregas, as tascas francesas e os

    pubsingleses para exemplificar alguns26.

    Com o advento da Revoluo Francesa (1789) os restaurantes aumentaram em

    nmero, o que teria ocorrido em funo da morte ou mesmo fuga dos membros da

    corte, o que fez com que seus respectivos cozinheiros - a partir de ento

    desempregados - passassem a disponibilizar seus servios para um pblico maior e nos

    restaurantes27. J no novo sculo, no ano de 1804, o autor28 do Almanach des

    gourmands, descrevia a seguinte situao: o corao da maioria dos parisienses

    opulentos, de repente, se metamorfoseou em goela (...) assim, no existe nenhuma

    cidade no mundo onde os comerciantes e os fabricantes de comestveis tenham assim

    se multiplicado. Em Paris, conta-se cem restaurantes para uma livraria.29.

    25 PITTE, J.-R. Nascimento e expanso dos restaurantes. In: FLANDRIN, J.-L.;MONTANARI, M. Histria da alimentao. Traduo de Luciano Vieira Machado e Guilherme J. F.Teixeira. So Paulo: Estao Liberdade, 1998. 888 p.; p. 751-762; p. 751.

    26Ibid., p. 753.27PITTE, J.-R. A gastronomia francesa: histria e geografia de uma paixo. Porto Alegre:

    L & P M, 1993. 176 p.; p. 99.28Alexandre Balthasar Laurent Grimod de la Reynire (1758-1838) considerado o criador

    da crtica gastronmica, cuja qual fora feita, entre 1803 e 1812, nas publicaes do Almanach desGourmands, na Frana. REVEL, J.-F. Um banquete de palavras: uma histria da sensibilidadegastronmica. Traduo de Paulo Neves. So Paulo: Companhia das Letras, 1996. 334 p.; p. 281-284;SPANG, R. L. A inveno do restaurante. Traduo de Cynthia Cortes e Paulo Soares. Rio deJaneiro: Record, 2003. 392 p.; p. 185.

    29PITTE, A gastronomia francesa..., p. 101.

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    No entanto, ao longo do XIX, os estabelecimentos em geral se organizaram

    efetivamente: os cafs passaram a ser conhecidos como sales de ch; as tavernas

    que vendiam vinhos de baixa categoria desapareceram e as casas de pasto e leiterias se

    propuseram a comercializar comidas caseiras por preo acessvel s pessoas que

    precisassem se alimentar fora de casa, mas que no podiam gastar muito com as

    refeies.

    Para Jean-Robert Pitte, a origem das casas de pasto se dera pelas tavernas que

    apresentavam uma certa diversidade de pratos a exemplo das saladas (de salsicho e

    ps de carneiro), croquetes com molho branco, tabliers de sapeur (dobradinha),

    cervelle de canut(queijo muito forte), regados com vinho beaujolais...30

    .Diferentemente das casas de pasto, os restaurantes de luxo do sculo XIX,

    esmeravam-se em preparar os melhores peixes e crustceos,foie grasde Estrasburgo

    (...) caa da estao, frangos e capes, lombos de boi, tudo isso desaparecendo debaixo

    de montanhas de trufas e escorrendo sob molhos dourados base de manteiga ou

    creme de leite31. Ao final desse sculo o turismo de luxo, aliado ao crescimento dos

    transportes rpidos, permitiu que ingleses abastados passassem a desfrutar da riviera

    francesa; isso, por sua vez, no foi responsvel pela abertura de novos restaurantes32,

    mas permitiu a disseminao do termo restaurante, ao longo do sculo XX, por vrios

    pases do mundo, de sorte que em alguns casos ele substitura o termo casa de pasto33.

    Em A fisiologia do gosto, Brillat-Savarin registra nessa obra que, por volta de

    1770, o aprimoramento do restaurante ocorreu pela importncia das vantagens que

    esse comrcio apresentava queles que passassem freqent-lo, bem como para a

    cincia, o que justificou da seguinte maneira:

    1) Por esse meio, todo homem pode fazer sua refeio hora que lhe convm, conforme ascircunstncias em que se v colocado por seus negcios e seus prazeres. 2) Ele tem certezade no ultrapassar a soma que resolveu destinar para sua refeio, porque sabe de antemo opreo de cada prato que lhe servido. 3) Estando a conta de acordo com o seu bolso, oconsumidor pode, vontade, fazer uma refeio slida, leve ou extica, reg-la com os

    30_____, Histria da alimentao..., p. 758.31Ibid., p. 758-759.32Ibid., p. 759.33Ibid., p. 760.

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    melhores vinhos franceses ou estrangeiros, aromatiz-la com caf moca e licores dos doismundos, sem outros limites a no ser o vigor de seu apetite ou capacidade de seu estmago.O salo de um restaurante o den dos gastrnomos. 4) O restaurante tambmextremamente cmodo para os viajantes, os estrangeiros, para aqueles cuja famlia se

    encontra momentaneamente no campo, e para todos aqueles, em suma, que no tm cozinhaem casa, ou esto momentaneamente privados dela.34

    De resto, afirmou que os diversos comerciantes ligados ao preparo de

    alimentos, dentre os quais estavam os donos de restaurantes foram, como um todo,

    multiplicando-se numa proporo crescente combinada s necessidades de ento. E

    nessa atmosfera de aperfeioamento, novos utenslios passaram a ser pensados, bem

    como outros especialistas na arte culinria a se enquadrarem ao grupo de cozinheiros,

    padeiros e confeiteiros; foram realizados novos progressos na horticultura e outros

    pases deram incio fabricao e comercializao do vinho. A um s tempo, novos

    sabores se integraram ao paladar francs, dentre outros melhoramentos de carter

    prtico35; mas o hbito de comer fora trazia um qu de desconfiana: poderia favorecer

    o egosmo j que as refeies eram feitas individualmente36.

    A palavra da historiadora inglesa Rebecca Spang a ltima, em se tratando do

    surgimento dos restaurantes, uma vez que analisara com bastante cuidado, em sua tesede doutorado, os trabalhos de Jean-Robert Pitte, Brillat-Savarin e Jean-Franois Revel.

    Ela parte da premissa que esses estabelecimentos foram posteriores s estalagens,

    casas de pasto e bares, no tocante comercializao de comida e bebida para viajantes

    e moradores locais desprovidos de cozinha37. Embora no derivassem dos ltimos, os

    restaurantes surgiram quando do preparo de caldos feitos base de carne, cuja

    finalidade era restabelecer a sade dos doentes.

    No sculo XV, esse tipo de preparo levava como ingredientes desde a carne deum determinado animal e peas em ouro ou mesmo pedras preciosas, os quais

    variavam de acordo com a prescrio mdica. Nos sculos XVII e XVIII no mais

    eram utilizados as pedras e o precioso metal, mas esse tipo de caldo previamente

    34 SAVARIN, B. A fisiologia do gosto.Traduo de Paulo Neves. So Paulo: Companhiadas Letras, 1995. 384 p.; p. 138.

    35Ibid.,p. 275-276; 278.36Ibid., p. 279-287.37SPANG, op. cit., p. 19-20.

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    preparado e aquecido em banho-maria ainda apresentava carter medicinal. Para a

    realizao desse tipo de refeio, era necessrio se deslocar para a sala de um

    restaurateur, local este especializado na confeco desses alimentos lquidos numa

    porcentagem significativamente elevada se comparados aos slidos38.

    O primeiro restaurateur a abrir as portas de seu estabelecimento - Roze de

    Chantoiseau39-, o fez no ano de 1766 confiante na idia de que a consolidao desse

    tipo de comrcio era favorvel circulao de bens e o estmulo de desejos como

    possveis canais para o benefcio social e o desenvolvimento nacional40. Dessa

    maneira foi que os primeiros restaurateursde Paris passaram no s a se enquadrar ao

    grupo de comerciantes ligado ao mercado de produtos medicinais: na realidade, elesconsolidaram uma prtica que fazia com que a culinria estivesse vinculada noo de

    sade o que era um dos focos de interesse da elite local e que, certamente, estaria

    em consonncia aos anseios do seleto pblico freqentador41.

    Restabelecer-se era o ato de no comer: era se expor e expor aos demais

    comensais os problemas existentes num organismo fragilizado pela presena de uma

    determinada patologia; era a busca do bem-estar nas pequenas pores de caldo

    restaurativo, cuja apreciao era sinnimo de sensibilidade e bom paladar. Nas salas

    reservadas de ambientes cuidadosamente decorados, era possvel dispor de um servio

    personalizado, j que a variedade de consoms ento relacionada nos cardpios

    culminava na escolha daquele que melhor se adequasse cura da enfermidade;

    ademais, a no-imposio de um horrio rgido ao comensal garantia o retorno ao

    estabelecimento quando melhor lhe aprouvesse42.

    Comernada mais era que freqentar a cozinha das pousadas e casas de pastoem horrios pr-estabelecidos e nelas realizar as refeies mesa do anfitrio 43; era

    38Ibid., p. 11-12; 88.39Mathurin Roze de Chantoiseau (?-1806) tambm conhecido pela alcunha de O Amigo do

    Mundo Todo abrira seu estabelecimento na Rue des Poulies, prximo ao Louvre. PITTE, Agastronomia francesa..., p. 97.

    40SPANG, op. cit., p. 27.41Ibid., p. 40.42Ibid., p. 50; 86-87.43Segundo as impresses de um estudioso alemo que estivera em Paris no incio do sculo

    XVIII, embora a designao supracitada remeta a um tipo de situao hospitaleira, apresentava certaslimitaes: dentre elas a comida que no era bem-feita e pouco variada; ademais, o fato de dividir a

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    estar em contato regular com uma clientela fixa e compartilhar dos servios em

    ambientes de carter popular destinados sociabilidade da comunidade local44.

    A terminologia restaurante permaneceu dentre as vrias alteraes que

    perpassaram desde criao do caldo implantao do estabelecimento reservado

    comensalidade e que fora definido por Spang como a traduo de um culto de

    sensibilidade setecentista no sentido do paladar oitocentista: a mudana do valor social

    de uma poca no adorno cultural de outra45. Nesse sentido, significava a conservao

    do refinamento para que determinado prato pudesse ser bem apreciado em aluso aos

    procedimentos usados para um melhor aproveitamento das benesses do caldo

    restaurativo -, numa poca em que a freqncia ao restaurante denotava estabelecerrelaes de sociabilidade, cujo elo era dado pela comida como fator de integrao

    entre os componentes da mesma mesa.

    Ainda que, por volta de 1780, alguns restaurateurs inclussem os consoms

    nos cardpios, esses proprietrios procuravam no descurar dos demais indivduos,

    diversificando a oferta de produtos: como exemplo da implementao dessa prtica,

    Jean-Franois Vacossin46 servia guisado de peixe, salsicha de perdiz, arraia em

    molho escuro de manteiga, alcachofras e espinafre, alm da sua ainda popular potage

    au riz (sopa de arroz)47. J os proprietrios das casas de pasto os traiteurs -,

    sentindo-se vontade para ampliar seus servios, procuraram comercializar caldos,

    cuja prtica passou a caracteriz-los enquanto traiteurs-restaurateur.

    Nota-se que em paralelo s mudanas vivenciadas pelos restaurantes de modo

    a ampliar e diversificar seus servios, certas casas de pasto tambm procuraram lanar

    mo de medidas que favorecessem sua atividade; assim, provvel que o investimentono preparo de caldos trouxesse ao traiteur, que passava a atuar como restaurateur,

    mesa com desconhecidos causava ao visitante certo desconforto no momento da realizao dasrefeies. Tal impresso assemelha-se a de outros visitantes britnicos que, neste ponto, corroboracom a do alemo. Ibid., p. 18-19.

    44Ibid., p. 44-48.45Ibid., p. 13.46Jean-Franois Vacossin foi considerado por Roze de Chantoiseau o segundo restaurateur

    de Paris. Vacossin tinha o costume de anotar os pedidos da clientela em um livro contbil. Ibid., p.38; 84.

    47Ibid., p. 84.

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    uma clientela maior, a qual, embora fosse menos abonada, tambm demonstrava

    curiosidade em desfrutar de um prato to caracterstico que, aos poucos, tornou-se

    designao de uma instituio. E para esse novo proprietrio que se aventurava no

    preparo do caldo restaurativo colocar este item ao alcance de sua clientela era,

    tambm, permitir que ela tivesse acesso a esse processo de restabelecimento, sade e

    alimentao o qual permeou a trajetria dos restaurantes franceses.

    Jean-Louis Flandrin foi alm quando tratou dos restaurantes, no decorrer dos

    sculos XIX e XX, como locais cuja principal atividade era a funo gastronmica

    que deles se desdobrava devido preocupao que se tinha com a boa cozinha, sem

    que necessariamente se tendesse para estabelecimentos caros. Para esse historiador, oimportante era o ato de apreciar a comida, o paladar, embora o seu aumento em termos

    numricos estivesse vinculado s mudanas de cunho cotidiano, que permitiram que as

    pessoas deixassem de comer em casa para comer fora48.

    Num contexto geral, cidades a exemplo de Londres e Paris tiveram seu

    cotidiano alterado no sculo XIX em funo da Revoluo Industrial. Marcadas pelo

    caos urbano essas capitais passaram a implementar novas noes de planejamento

    que fossem ao encontro da idia de cidade ideal; nessa perspectiva, seus governantes

    tiveram a tarefa de higienizar e pensar em solues possveis para a vida urbana 49.

    Com o advento da Revoluo Cientfico-Tecnolgica, na dcada de 1870,

    diversas descobertas integraram o cotidiano de europeus e norte-americanos alterando-

    o significativamente, num perodo em que novos rumos foram tomados pela

    indstria50. A exemplo disso estavam a adoo da eletricidade e outras formas de

    energia, bem como a utilizao do alumnio, nquel, cobre e aos especiais. As reasde microbiologia, bacteriologia e bioqumica tambm foram afetadas, como a

    48 FLANDRIN, J.-L. Os sculos XIX e XX. In: _____; MONTANARI, M. Histria daalimentao. Traduo de Luciano Vieira Machado e Guilherme J. F. Teixeira. So Paulo: EstaoLiberdade, 1998. 888 p.; p. 700-707; p. 701.

    49RAMINELLI, R. Histria urbana. In: CARDOSO, C. F.; VAINFAS, R. (Orgs.). Domniosda Histria.Rio de Janeiro: Campus, 1997. 508 p.; p. 185-202; p. 185.

    50Algumas invenes e descobertas como o fogo a gs (1837), refrigerao para produoindustrial do gelo (1860), pasteurizao de alimentos (1865), margarina (1869), chiclete (1872), Coca-cola (1886), corn-flakes (1898), geladeira domstica (1913) so exemplos de novidades que foram deencontro Revoluo Cientfico-Tecnolgica. COSTA, A. M. da. 1890-1914: no tempo das certezas.So Paulo: Companhia das Letras, 2000. 176 p.; p. 159-160. (Virando sculos).

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    farmacologia, medicina, higiene e profilaxia culminando, inclusive, nas mudanas na

    forma de conservao dos alimentos e combate s doenas51.

    sua maneira, com a chegada da Repblica, o Brasil procurou estar imerso

    nesse processo de modernizao no qual a idia de ordem estava condicionada a ele

    sufocando toda e qualquer manifestao que remetesse esse pas a uma sociedade

    escravista52. Na colocao da historiadora ngela Marques da Costa,

    ...a Repblica preparava-se para redesenhar uma nao. Unindo mudana poltica aocontexto da virada do sculo, os brasileiros se mobilizam como nunca para definir suaimagem. (...). Era hora de reformar cidades, planejar novos inventos, adaptar descobertas;enfim vestir as diferentes capitais com a nova roupagem que escondia os trpicos e exaltava

    a modernidade. Nesse momento, em que o futuro parecia to prximo, em que era possvelse debruar para olhar o novo sculo, as imagens e idias florescem. Dos pequenosinstrumentos s grandes invenes, dos sonhos ligeiros s utopias realizadas, eis que era horade imaginar o novo sculo. O progresso estava por perto e no havia como escapar.53

    As grandes capitais como Rio de Janeiro e So Paulo - procuraram

    corresponder nesse sentido e, muitas vezes, foram referenciadas no tocante s

    mudanas que passavam a ser postas em prtica, incutindo ideais de higiene,

    crescimento moral e local em que formas de controle foram estabelecidas54

    . No mais,elas tambm dialogaram com as mudanas decorrentes do processo de urbanizao por

    meio da insero de novas prticas cotidianas ditas modernas, percebidas nas formas

    de vestir, comprar, relacionar-se socialmente que alteraram o ritmo de vida da

    populao local e que, assim, diferiam das caractersticas que, at ento, eram prprias

    do mundo rural55.

    Ao tentar certa proximidade com esse contexto foi que a Curitiba de 1890 a

    1940 tambm procurou estar envolta pelos ares da modernidade e, para tal, decidida a

    aplicar mudanas de cunho urbanstico, social, moral e higinico. No decorrer deste

    51SEVCENKO, N. O preldio republicano, astcias da ordem e iluses do progresso. In: _____(Org.). Histria da vida privada no Brasil: Repblica (da belle poque era do rdio). 5reimp. SoPaulo: Companhia das Letras, 2002. 724 p.; p. 8-10. (Histria da vida privada no Brasil, 3).

    52COSTA, op. cit., p. 43.53Ibid., p. 127-128.54 WISSENBACH, M. C. C. Da escravido liberdade: dimenses de uma privacidade

    possvel. In: SEVCENKO, op. cit., 726 p.; p. 49-130; p. 107.55MORAES, J. G. V. de. Cidade e cultura urbana na Primeira Repblica.6. ed. So Paulo:

    Atual, 1994. 116 p.; p. 6-7. (Discutindo a histria do Brasil).

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    captulo, os discursos vigentes na poca tidos como alicerce para a construo desse

    panorama, dados pelo olhardos historiadores, cronistas, viajantes e do prprio registro

    oficial serviram, sobremaneira, para identificar pontos de encontro ou mesmo

    desencontros quando relacionados temtica da alimentao.

    1.2 VIDA URBANA EM CURITIBA: SEUS ASPECTOS E TRANSFORMAES

    LOCAIS

    ...uma cidade moderna aquela que destri paraconstruir, arrasando para embelezar, realizando

    cirurgias urbanas para redesenhar o espao emfuno da tcnica, da higiene, da esttica.

    Sandra Jatahy Pesavento

    Em 1874 Curitiba tinha como principal rua a das Flores, atual XV de

    Novembro. Nessa poca em que a iluminao era feita por lampies, constavam na

    cidade cerca de 70 prdios, 15 sobrados e 60 casas, estas s na praa Generoso

    Marques. O quadro urbano correspondia ao espao compreendido pela rua do Fogo

    que se chamava So Francisco (a leste) e Claudino dos Santos (a oeste). J a Emiliano

    Perneta possua 15 casas, sendo que algumas estavam em construo. A rua do

    Comrcio, hoje Marechal Deodoro, era de grande importncia por abrigar diversos

    estabelecimentos comerciais da cidade. A atual Dr. Muricy era vista como local

    adequado para residncia das famlias. Na seqncia havia as ruas Direita (hoje 13 de

    Maio), do Nogueira (Baro do Serro Azul), da Carioca (Riachuelo), Alegre (Cndido

    de Leo), da Cadeia (provavelmente uma das denominaes da praa Generoso

    Marques) e Fechada (Jos Bonifcio), alm das travessas do Liceu (rua Cruz

    Machado), Irani (travessa Nestor de Castro) e da Assemblia (rua Cndido Lopes) 56.

    56CURITIBA h 64 anos. Diario da Tarde, Curityba, 08 fev. 1938, p. 1.

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    PLANTA 1 Planta de Curitiba de 1894. 1 fotografia: P/B; 15,95 X 14,5 cm. Fundo: Casa daMemria.

    Ao final do sculo XIX, j eram notveis os primeiros sinais de remodelao

    urbanstica, perceptveis no calamento e nivelamento das ruas, na construo de prdios,

    nos bondes puxados a burro (responsveis pelo transporte da populao) e na utilizao de

    luz eltrica. Embora algumas ruas e praas apresentassem aspecto vergonhoso para o

    estrangeiro que nos visita[va]57Curitiba achava-se num perodo amplo de cidade que,

    57Diario do Paran, Curityba, 10 jan. 1897, p. 2.

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    em breves tempos, [foi] adquirindo no pais, lugar entre as de primeira classe...58 frente

    quelas transformaes. E, numa atmosfera de embelezamento da cidade foi que se

    adentrou o novo sculo. Nessa poca, Curitiba tinha 100 ruas, 11 praas, 3 largos, 243

    quadras, 971 esquinas, alcanando as ruas, e fraces nos lados das praas, a extenso

    de 76.730,00059.

    Alguns jornais de circulao diria tornaram-se grandes aliados ao tratarem

    das questes relativas cidade. As notificaes da imprensa local a respeito do estado

    das ruas e logradouros pblicos eram recorrentes e um tanto incisivas, donde era visto o

    bom ou o mau estado das ruas e sarjetas prximas praa Osrio - esta, uma das mais

    desgraciosas ruas Comendador Arajo, XV de Novembro e 13 de Maio, bem comoo desleixo quando da no-remoo de tijolos, pedras, lixos, animais mortos, capim e

    ervas daninhas dos diversos locais da capital. J os elogios eram despendidos quando

    trechos eram calados, rvores plantadas, avenidas projetadas e inauguradas entre

    outras atividades que denotassem a ateno das autoridades competentes60.

    Paralelamente, as questes ligadas idia de remodelao perpassavam pela

    necessidade de criao de uma empresa de gua e do esgoto, a qual era vista como garantia

    de salubridade pblica. Esse melhoramento, por sua vez, faria de Curitiba uma cidade de

    pouso de pessoas vindas de outras localidades61. Os poucos cuidados dados aos chafarizes62

    e, inclusive, a difcil implantao de um sistema de guas e esgotos na cidade somavam-se

    a outros problemas existentes na capital, conforme aqueles j citados acima.

    A Lei n 506 de 2 de abril de 1903 determinou a construo de uma rede de

    canalizao do esgoto que viria coletar as guas provenientes dos dejetos, resduos

    residenciais e das chuvas

    63

    . Em 1913, um ano aps a fundao da Universidade do

    58 BUENO, W. de L. Uma cidade bem-amanhecida: vivncia e trabalho das mulherespolonesas em Curitiba. Curitiba: Aos Quatro Ventos, 1999. 168 p.; p. 26.

    59FACTOS diversos. Diario da Tarde, Curityba, 16 dez. 1903, p. 2.60Diario do Paran, Curityba, 28 fev. 1903, p. 1; Diario do Paran, Curityba, 18 fev. 1903, p. 2;

    Diario da Tarde, Curityba, 07 abr. 1903, p. 2; Diario da Tarde, Curityba, 18 jan. 1904, no paginado;Diario da Tarde, Curityba, 27 jan. 1904, no paginado; Diario da Tarde, Curityba, 11 mar. 1904, p. 2;Diario da Tarde, Curityba, 18 maio 1904, p. 2; Diario da Tarde, Curityba, 22 dez. 1904, p. 2.

    61Diario do Commercio, Curityba, 25 fev. 1891, p. 1.62Tidos como fornecedores de gua populao.63Diario da Tarde, Curityba, 08 mar. 1900, p. 1; Diario da Tarde, Curityba, 09 abr. 1904, p.

    1; Diario da Tarde, Curityba, 14 abr. 1904, p. 2; Diario da Tarde, Curityba, 19 abr. 1904, p. 1.

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    Paran, eram presenciadas duas situaes adversas: por um lado, Curitiba se deparava

    com a falta de gua; por outro, fazia parte dos planos do prefeito Candido Ferreira de

    Abreu (1913-1916) a oferta de gua quente para quem tivesse interesse 64.

    Alguns anos mais tarde o que j havia sido colocado como inibidor do

    progresso citadino, continuava a ser um dos problemas enfrentados por Curitiba. Nesse

    contexto, um humorstico da capital federal publicou em um jornal paulista por qu

    considerava a capital paranaense a primeira do pas:

    1) Pela quantidade assombrosa de p que se aspira nas ruas. (...). 2) Pela enorme quantidadede papel que se encontra nas ruas e praas, enfeiando-a e lhe emprestando aspecto de

    depositos de lixo. 3) Pela anarchia do transito de vehiculos e pelo desposismo de seusproprietrios que decretam leis e estabelecem tabella de preo ao seu talante, abusando dapacincia do povo. 4) Pelo mau cheiro insuportvel que se desprende das bocas dos boeiros edo interior dos aougues. 5) Pelo desagradvel aspecto das latas de lixo fedendo expostas aosol at ao meio dia a espera do mastodonte prehistorico conhecido pela alcunha de carro dalimpeza publica. 6) Pelo varrimento das ruas em horas imprprias e por meio dum systemacoetaneo do venervel Pae Ado. 7) Pela existncia de clubs de jogo, fingindo de sociedadesserias e que constituem verdadeiras arapucas contra a ingenuidade e inexperincia de tolos ejovens herdeiros. 8) Pelo pssimo systema de cuspir-se por toda a parte. 9) Pela abusivamanuteno de ordures onde se desenvolve a mosca o maior flagello da humanidade e afilha genuna da immundicie. 10) Pela floresta de postes telephonicos, telegraphicos,electricos, etc., que vae dominando a cidade, completamente. 11) Pelos eclypses contnuosda nossa iluminao de lamparinas electricas. 12) Pelas aguas estagnadas em quanto buracoh. 13) Pelas cascas de fructas jogadas nos passeios, pelas sujeiras das sargetas, pelo uso de,dos lares jogarem o cisco na rua, pelos mendigos que invadem a cidade. 14) Pelo calamentoextraordinario, enfim, que a torna intransitvel nos dias de chuva...65

    Infelizmente, esse panorama se manteve por alguns bons anos, mas diversas

    intervenes foram feitas por parte da administrao local, no sentido de calar e

    macadamizar ruas e trechos, canalizar rios, construir galerias pluviais, ajardinar praas,

    entre outros melhoramentos de cunho urbanstico66

    . Em 11 de abril de 1919, o Diario daTardenoticiou a realizao dos reparos no calamento da rua XV de Novembro por

    iniciativa dos proprietrios dos imveis, por ela ser uma importante via de circulao

    64A Bomba, Coritiba, n 1, 12 jun. 1913.65FLAVIO. 2X7 maravilhas coritibanas. Diario da Tarde, Curityba, 28 abr. 1913, p. 1.66Diario da Tarde, Curityba, 01 fev. 1916, p. 5-6; Mensagem dirigida Cmara Municipal de

    Curityba pelo Eng. Civil Joo Moreira Garcez prefeito municipal, ao ser installada a 2. Sesso ordinriada 8. Legislatura, em 01 abr. 1921. Curityba: Typ. dA Republica, 1921. p. 35; O ASPHALTO emCurityba: uma empreza que se impe. Illustrao Paranaense, ano 2, no-paginada, abr. 1928; AURBANISAO de Curityba: o que disse e o que pensa o engenheiro David A. da Silva Carneiro.Illustrao Paranaense, ano 2, n 10-11, no-paginada, out.-nov. 1928.

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    de pessoas e ponto estratgico para a abertura de estabelecimentos comerciais e de

    diverso67, em funo dela vir h anos abrigando diversas casas nos mais variados ramos,

    dentre os quais estavam as casas de pasto e os restaurantes.

    A preocupao com a revitalizao dos espaos acabou por transform-los em

    locais de recreio e em ponto de reunio s quintas e domingos dosflaneurs[sic],

    como a praa Tiradentes que passou a ter como atrativo a apresentao da banda do

    13 Regimento de Cavalaria68. Com o intuito de melhor ilustrar esse momento de

    lazer, segue o verso abaixo:

    Flanando...Vae alta a tarde. Na manso da PraaUm grupo passa de gentis donzelas;E outro, mais outro, quaes bouquets de rosasLeves, graciosas, divinaes, singellas...Ao centro a banda musical gorgeiaUma ria cheia de emoes infindas;Na torre, esquina, largo sino estalaChamando falla as noveneiras lindas...Sopra de manso, perfumosa aragem,Treme a ramagem das gracis aroeiras...Tem mesmo o saibro um arrepio vago

    Tal qual um lago s viraes fagueiras...Flana garbosos, com passarinhos tardos,Os felizardos conquerantsda modaDo volta Praa, entre ideaes suspiros,Fazendo giros quaes perus de roda.Os commodistas, ou cansado ou manco,Pilhando um banco... que alegria ignota!Irra! Caramba! Que maldito callo!E que regalo quando tiro a bota!A noite vem com seu funreo manto,Em cada canto um grande fcco acende;Vae findar a retraitemaviosaQue pavorosa a escurido se estende.Partio a banda. Na risonha PraaUm grupo passa e gentis donzellas;Outro, mais outro... Quantas senhoritasGracis, catitas, donairosas, bellas...69

    67O CALAMENTO da rua 15. Diario da Tarde, Curityba, 11 abr. 1919, p. 2.68Diario da Tarde, Curityba, 27 jul. 1903, p. 2. Diario da Tarde, Curityba, 11 set. 1903, p.

    1; SYLVAN. Uma tetia! Diario da Tarde, Curityba, 23 jun. 1904, p. 1; Diario da Tarde, Curityba,26 maio 1906, no paginado.

    69Diario da Tarde, Curityba, 13 set. 1904, p. 1.

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    Flanar70 na primeira dcada do sculo XX era, passear ociosamente, sem

    rumo certo71 e estar em contato direto com a cidade; a constante movimentao de

    pessoas nos logradouros pblicos nos finais de semana era uma das raras alternativas

    de lazer na capital paranaense, vista como um divertimento contnuo num perodo em

    que eram escassos os ambientes pblicos destinados sociabilidade, j que na parte da

    noite eram quase nulas as opes de diverso nos clubes e praas da cidade 72.

    Sobre o comrcio reservado sociabilidade, aos poucos foram sendo abertos

    cassinos, teatros, restaurantes, cafs e confeitarias os quais acabaram alterando as

    prticas cotidianas do relacionar-se e do comer73. Em meio a esse panorama, casas de

    pasto e restaurantes foram constituintes de uma nova configurao da cidade e osdiscursos do urbanista e do governante dialogaram com ela atravs dos espaos como

    um todo, a fim de pr em prtica a idia de saneamento. Nesse sentido, modernizao e

    civilidade tambm estavam relacionados s prticas alimentares e em consonncia s

    noes de sade, higiene e moralidade, conforme os pontos destacados no prximo

    subitem.

    1.3 SADE X ALIMENTAO EM CURITIBA: COMER PARA FICAR

    FORTE?

    Ao longo do sculo XIX, na Europa, sade e doena passaram a ser pensados

    enquanto questo de responsabilidade social, cuja ateno era um dos focos do

    governo. Assim, dentro da ampla noo de sade pblica a higiene deveria ser vista

    atravs da figura do homem que, como um agente no meio, abrangia a totalidade do

    70 Embora a idia do flneur esteja ligada obra potica de Charles Baudelaire nafigura do indivduo que contempla a cidade - e, mais tarde, a Walter Benjamin em CharlesBaudelaire: um lrico no auge do capitalismo -cujo interesse por este poeta se deu em funo davivncia de Baudelaire na modernidade - ela nada tem a ver com esta ltima obra, que foiproduzida a posteriori; aqui, o termoflneurnada mais que um dentre os vrios estrangeirismosadotados pela lngua portuguesa que por razes estticas, culturais, comerciais, pragmticas,identitrias, estilsticas, entre outras, como qualquer neologismo - quando adotado pela lnguamaterna -, submete-se a ela FARACO, C. A. O maisculo e o minsculo. Disponvel em: Acesso em: 09 out. 2003.

    71SGUIER, J. de. Diccionrio prtico illustrado: novo diccionrio encyclopdico luso-brasileiro. 2ed. revista Porto: Lello & Irmo, L.da, Editores, 1928. 1780 p.; p. 492.

    72Diario da Tarde, Curityba, 25 ago. 1905, p. 1.73COSTA, op. cit., p. 42-43, 78-79.

    http://www.artesaos.hpg.ig.com.br/mais2.htmhttp://www.artesaos.hpg.ig.com.br/mais2.htm
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    mundo fsico e moral. No Brasil, ela passou a ser tratada como uma cincia

    normativa, propondo-se a gerar bem-estar ao maior nmero de pessoas em sociedade;

    o meio a ser saneado correspondia cidade e era validado pelos conhecimentos

    cientficos aliados aos interesses mdicos e da elite urbana.

    Essa ateno aos preceitos de higiene se deu quando da instalao da Corte

    portuguesa no Brasil como forma de executar os interesses vindos com esse novo

    grupo. Os higienistas integrantes da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro,

    pensando em acordar aos interesses do Estado, instauraram a idia de preveno

    atravs do saneamento dos espaos, a exemplo dos rios, pntanos, matas, esgotos, ar,

    gua, mercados, cemitrios, matadouros, escolas que passaram a sofrer interveno.O Paran tambm integrou essa temtica luz das medidas tomadas pela ento capital

    do pas, no apenas preocupado com a sade da coletividade, mas tambm com a

    manuteno da ordem local74.

    No decorrer do perodo estudado, a propagao de enfermidades era um dos

    fatores de preocupao. E quando da constatao da existncia de algum tipo de mal,

    procurava-se implementar certas medidas de segurana junto populao para que ele

    fosse combatido. Na seqncia foram identificados alguns casos nos quais se detectaram

    irregularidades nos gneros alimentcios e seus respectivos locais de venda ou quando

    algum tipo de enfermidade comprometeu a dinmica do comrcio curitibano.

    Por um lado, em se tratando de alguns dos problemas vistos nos gneros

    disponveis ao consumo da populao de Curitiba, vrias ocorrncias foram foco de

    alerta aos consumidores locais como meio de evitar a disseminao de tal prtica.

    Nessa perspectiva, foram alvo de reclamao a comercializao de produtosfalsificados, como carnes ou de qualidade duvidosa ou deterioradas; a venda do peixe

    proveniente de Alexandra, litoral do Paran, cuja desinfeco com cido fnico dava a

    esse gnero - quando pronto para degustao - um cheiro insuportvel; a

    disponibilizao do acar refinado em funo do odor desagradvel que recendia; o

    comrcio de leite suspeito e das laranjas verdes nos kiosques e casas de fructas; a

    74SIQUEIRA, M. T. A. D. Sade e doena na Provncia do Paran (1853-1889). Curitiba,1989. Tese (Doutorado em Histria) Faculdade de Cincias Humanas, Letras e Artes, UniversidadeFederal do Paran. 396 f.; f. 315-319.

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    oferta de peixes e camares deteriorados no mercado municipal; a pssima qualidade

    dos pes em funo da mistura de cinco tipos de farinha diferentes, o que comprometia

    o paladar desse produto; a possvel falsificao do caf, devido ao baixo preo que

    estava sendo comercializado no mercado, despertando desconfiana na populao; a

    no comercializao dos vinhos que no fossem produzidos pela fermentao da uva; a

    suspeita quanto adio de milho e outros cereais pelas fbricas de caf a este gnero;

    o acrscimo de gua ao leite entregue aos fregueses75, entre outros vrios problemas.

    Entre 1850 e 1920, irregularidades tambm foram notadas em So Paulo, no

    tocante aos alimentos vendidos ao pblico consumidor; concomitantemente,

    reclamaes eram feitas quanto baixa qualidade das carnes ou mesmo a mistura dediversas delas na confeco de embutidos, utilizao de produtos nocivos sade nos

    doces, falta de asseio no armazenamento e transporte de carnes e peixes, entre outros.

    Situaes como essas j eram constantes, bem como eram cobradas as solues das

    autoridades locais, no sentido de instaurar uma fiscalizao mais rigorosa nos gneros

    alimentcios disponveis venda. Para tal, medidas higinicas foram determinadas no

    combate s irregularidades, cujo alvo passou a ser os vrios comerciantes locais.

    Contra uns e a favor de outros, dois pontos eram tidos como cruciais naquilo

    que era definido por Denise Bernuzzi de SantAnna como relaes de confiana e

    desconfiana mediatizadas pela comida: o primeiro, era o odorato, o qual, pelo bom

    o mau odor vindo dos estabelecimentos e seus respectivos gneros culminava no

    sucesso ou insucesso dos proprietrios; j o segundo, a fama, tambm boa ou m,

    dava-se no sentido de que estabelecimentos anteriormente tidos como lugares

    higinicos transformavam-se em lugares insalubres, visto pela tica da perda daqualidade dos mesmos, das relaes sociais travadas entre pessoas influentes e

    comerciantes paulistanos que desautorizavam a freqncia a certos lugares -, bem

    75SALUBRIDADE publica. Diario do Commercio, Curityba, 30 abr. 1891, p. 1; Diario da Tarde,Curityba, 26 set. 1899, p. 2; Diario da Tarde, Curityba, 10 dez. 1903, p. 2; Diario da Tarde, Curityba, 13 mar.1907, p. 1; Diario da Tarde, Curityba, 06 abr. 1910, p. 1; Diario da Tarde, Curityba, 31 ago. 1911, p. 2; ACONFERENCIA assucareira. Diario da Tarde, Curityba, 03 out. 1911, p. 1; Diario da Tarde, Curityba, 10 nov.1911, p. 1; LEITEIROS criminosos. Diario da Tarde, Curityba, 22 ago. 1927, p. 4; Diario da Tarde, Curityba, 03jan. 1940, p. 1;Diario da Tarde, Curityba, 22 jan. 1940, p. 2.

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    como quando comparados aos estabelecimentos que tinham ar novidadeiro poca, a

    exemplo dos restaurantes, cafs e confeitarias76.

    Na Provncia do Paran, em meados do sculo XIX, a falta de mdicos em

    condies legais para o exerccio da Medicina era um fato, cujos profissionais dessa

    rea eram ocupantes de cargos pblicos como mdico da cadeia, do municpio, do

    corpo fixo da guarnio do exrcito, inspetor de higiene pblica, inspetor de sade do

    Porto de Paranagu. Em 1886, criou-se a funo de delegado de higiene que tinha por

    objetivo responder pela vacinao e por todas as condies de sade e bem-estar da

    populao. Prximo Proclamao da Repblica, o nmero desses profissionais

    ainda era escasso e no passava de 19 sendo 18 o de farmacuticos para atender umapopulao em torno de 249.491 habitantes77.

    Em Curitiba, num perodo tido como crtico, devido s mudanas que estavam

    sendo vivenciadas quando do processo de redefinio da ordem urbana, a presena de

    imigrantes [e] a estratgia mdico-sanitria78 foi que a higiene nos espaos

    comerciais passou a suscitar maiores questionamentos por parte dos habitantes locais,

    certamente de uma parcela da populao que era leitora dos peridicos da poca e que

    procurava validar os discursos pr-salubridade.

    Em janeiro de 1899, publicou-se a indignao de um leitor frente ao descaso

    quanto higiene pblica nos quesitos alimentao e solues para o combate de uma

    possvel epidemia79. Cinco meses mais tarde, o tenente Henrique Torres, na qualidade

    de fiscal geral do 2Distrito de Curitiba - em visita a casas de particulares e aougues -

    procurou orientar os proprietrios no sentido de manter esses locais de acordo com os

    preceitos de higiene

    80

    . No ms de dezembro desse ano a Cmara Municipal de

    76 SANTANNA, D. B. de. Transformaes das intolerncias alimentares em So Paulo(1850-1920). Histria: Questes & Debates,Curitiba, p. 81-93, 2005.

    77SIQUEIRA, op. cit., f. 48; 64.78DE BONI, M. I. M. O espetculo visto do alto: vigilncia e punio em Curitiba (1890-

    1920). So Paulo, 1985. Tese (Doutorado em Histria) Faculdade de Filosofia, Letras e CinciasHumanas, Universidade de So Paulo. 281 f.; f. 175.

    79NRI, F. de. Hygiene publica. Diario da Tarde, Curityba, 28 jan. 1899, p. 2-3.80Diario da Tarde, Curityba, 25 ago. 1899, p. 1.

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    Curitiba nomeou uma comisso especial, designada a inspecionar os recipientes nos

    quais eram servidos chopse demais bebidas81.

    Com a Lei n. 17, de 20 de outubro de 1899, coube ao Servio Sanitrio da

    capital paranaense ser dirigido e suas atividades executadas por dois mdicos, cujas

    averiguaes deveriam ser feitas tanto em casas comerciais e de particulares, como

    tambm com relao fiscalisao da alimentao publica, do fabrico e consumo de

    bebidas nacionaes e estrangeiras, naturaes ou artificiaes82. Mesmo com tais

    intervenes, os problemas relativos higiene e salubridade em Curitiba eram

    recorrentes, de modo que pouco se alterou ao longo dos anos. As irregularidades eram

    uma constante e no deixavam de ser pontuadas nos jornais. Assim, era necessrio quemedidas mais eficazes fossem tomadas para tratar dos espaos enfermos.

    Apenas no ano de 1911 foi chamada a ateno a respeito da higiene nos

    ambientes destinados comensalidade: em manchete do dia 20 de outubro

    daquele ano, o Diario da Tarde noticiou que a disseminao de doenas

    contagiosas dentre elas a tuberculose - muito se dava, no s em funo da

    reunio de pessoas nos cafs, confeitarias e music-halls, mas da falta de cuidados

    quanto limpeza dos estabelecimentos e de seus respectivos utenslios que eram

    manipulados pelo pblico. Para isso, as xcaras deveriam ser bem lavadas, bem

    como a colherzinha do acar, aps levada boca, no deveria ser inserida no

    aucareiro de uso comum hbito este que dois anos mais tarde voltava a ser

    criticado no mesmo jornal, em 28 de maio de 1913.

    Tanto os proprietrios quanto os fregueses seriam alvo das determinaes dos

    encarregados para este fim, cujo olhar vigilante somado s medidas preventivasresguardariam a sade da coletividade. Nesse mesmo ms e ano, a obrigatoriedade

    quanto fiscalizao no s do po e da carne, mas tambm dos demais gneros

    alimentcios era uma das exigncias cobradas da municipalidade, a qual deveria tomar

    conhecimento da boa ou m qualidade dos alimentos antes deles serem

    disponibilizados ao consumo83.

    81Diario da Tarde, Curityba, 05 jul. 1899, p. 2.82Diario da Tarde, Curityba, 25 out. 1899, p. 2.83Diario da Tarde, Curityba, 12 maio 1913, p. 1.

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    Nas situaes tratadas acima, interessante verificar o quo permanentes eram

    as queixas no tocante higiene das pessoas, dos espaos e alimentos cujas

    intervenes eram cobradas das autoridades competentes. Embora orientaes fossem

    dadas, bem como esperadas fossem as mudanas nos hbitos dirios, muito pouco se

    fazia nessa direo, j que os papis delegados eram vistos de forma segmentada,

    cabendo a cada um dos grupos agir de acordo com a sua funo. Assim, a idia de

    incurso do papel do agente da sade pelo comerciante - no sentido de vigiar o

    comensal e vice-versa - era um ato completamente alheio sociedade de ento e que

    somente foi questionada anos mais tarde84.

    Por outro, a varola, a febre tifide e a gripe espanhola foram as trs patologiasaqui relacionadas em funo da referenciao que estabeleciam com a temtica

    alimentar85. Tendo sido conhecidos os casos de varola no Taboo e nas colnias

    Lamenha, Abranches e Thomaz Coelho no incio da ltima dcada do sculo XIX,

    solicitava-se que o contato com os poloneses provenientes dessas localidades fosse

    completamente evitado86. Alguns anos mais tarde a interdio de uma venda na avenida

    Silva Jardim foi solicitada como medida preventiva propagao dessa doena pelas

    imediaes87.

    Duas dcadas depois, aps a epidemia de tifo, em outubro de 1917, o Dr.

    Trajano Joaquim dos Reis, Diretor do Servio Sanitrio, dava os seguintes conselhos

    populao, j que a ingesto de alimentos e gua contaminada contribuam para a

    propagao dessa enfermidade. Assim, fazia-se necessrio:

    ...Conservar o mais escrupuloso asseio corporal, tomando banhos mornos frequentes comuma pequena poro de creolina, mudando as roupas conchegadas ao corpo. Manter rigorosoasseio nas habitaes e suas dependencias, fazendo incinerar o lixo, no permittindodepositos de aguas estagnadas ou servidas, nos quintaes. (...). Usar de alimentos bem

    84Mais precisamente em 1933 com a divulgao de um sloganque procurava fazer com que apopulao passasse a observar o comportamento do seu prximo.

    85 Este trabalho no teve a pretenso de esgotar as questes relativas alimentao, masincitar o historiador a estabelecer uma nova leitura a respeito do tema; assim, faz-se necessrio umolhar minucioso sobre a temtica da sade relacionada alimentar, j que as consideraes feitasacerca desse tema foram utilizadas como forma de criar um elo entre o discurso em prol da limpeza dacidade e por parte das casas de pasto e restaurantes.

    86Diario do Commercio, Curityba, 03 jun. 1891, p. 2.87Diario da Tarde, Curityba, 26 out. 1899, p. 1.

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    cosidos, quer vegetaes, quer animaes. Lavar escrupulosamente os fructos, bem sazonados,antes de descascal-os. Beber agua filtrada, ou coada e fervida. No ingerir alimento dedifficil digesto e verificar que estejam bem cosidos ou assados. Ferver sempre o leite erefervel-o na occasio de usar. Evitar todo qualquer excesso...88

    J o governo do Estado decretou o fechamento de certos estabelecimentos,

    inclusive aqueles destinados diverso89. No que tange questo alimentar a

    orientao dada por um dos especialistas consistia em utilizar gua fervendo para lavar

    a loua, que deveria ser guardada em local livre de moscas; os talheres, bem limpos; a

    comida, coberta com guardanapos; o po, torrado; toda a comida deveria ser bem

    cozida, sendo proibida a ingesto de alimentos crus j que as verduras tambm eram

    uma das fontes disseminadoras do tifo; quanto aos lquidos que teriam de ser fervidos

    antes de ir boca, estavam a gua e o leite90.

    De forma bem mais clara, o jornal alertava para que os estabelecimentos, as

    vendas de gneros alimentcios e ambulantes estivessem atentos quanto ao manuseio,

    exposio, comercializao e armazenamento de seus produtos:

    ...Prohibio de entrega de po em avulsos, conduzidos em carrinhos ou grandes cestas, onde

    os mesmos pes so revolvidos por qualquer comprador, sem a menor precauo de hygiene;Obrigar os proprietarios de restaurantes, cafs ou botequins a terem chicaras, copos e outrosobjectos de uso constante, mergulhados em gua quente, retirando-os somente em occasiode servir aos seus freguezes e no tel-os expostos sobre as mezas onde recebem os micrbiosprovenientes do p das ruas e das varreduras do estabelecimento; (...); prohibir a venda dedoces e outras golodices, em taboleiros, ruas e mesmo em exposies nos estabelecimentoscommerciaes sem a necessaria cautella de os conservar ao abrigo do p e das moscas, factoeste que se observa a cada momento.91

    88REIS, T. J. dos.Aos habitantes de Curytiba.A Republica, Curytiba, 19 out. 1917, p. 1.89Foram tambm elencados as igrejas, escolas pblicas, jardins de infncia e cinemas, mas

    no casas de pasto e restaurantes.90Diario da Tarde, Curityba, 10 out. 1917, p. 1. Diario da Tarde, Curityba, 11 out. 1917,

    p. 1 e 2. Diario da Tarde, Curityba, 24 out. 1917, p. 1.91MEDIDAS sobre a febre typhoide. Diario da Tarde, Curityba, 22 out. 1917, p. 2.

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    Quando do combate gripe espanhola, em outubro de 191892, o Servio de

    Profilaxia Rural do Paran determinou que a populao fugisse das aglomeraes durante

    noite por no existir um preventivo seguro capaz de evitar a infeco93. Quanto s

    orientaes a respeito do tratamento adequado aos alimentos e seu respectivo consumo, a

    nica informao de carter novidadeiro das firmadas um ano antes para que o tifo no

    propagasse, alertava quanto a no-ingesto de gelados e, sim, o consumo de aguas

    alcalinas gazozas, por causa do acido carbonico94.

    Curiosamente, a proibio quanto circulao de pessoas em estabelecimentos

    destinados comensalidade, como as casas de pasto e os restaurantes, ou mesmo a interdio

    temporria destes nos perodos de epidemia do tifo e da gripe espanhola, a priori, inexistiu.Embora fossem locais perfeitamente adequados para a proliferao das enfermidades - no

    tocante manipulao e ao preparo das refeies no se tem conhecimento de que foram

    fechados por tempo determinado; mas orientaes quanto ao cuidado com os alimentos e das

    pessoas no mbito domstico eram sempre reforados.

    Em 1919, a Lei n. 527, de 27 de janeiro desse mesmo ano, determinava que quaisquer

    estabelecimentos que denotassem permanncia ou mesmo circulao de pessoas, bem como os

    locais de habitao seriam mensalmente fiscalizados pela Diretoria de Higiene, como medida

    favorvel manuteno da sade pblica95; mesmo aps essa determinao, os problemas

    ainda eram recorrentes e medidas eficazes para combater tais impasses ainda estavam longe de

    ser adotadas em termos prticos.

    92 Aproveito a proximidade desse ano com o de 1919 para comentar as atividades deresponsabilidade da Junta da Alimentao. Esse rgo tinha por objetivo fiscalizar o valor dos gneros

    alimentcios comercializados nos estabelecimentos de Curitiba; para tal, contava com uma comissocomposta por trs pessoas, incumbida do tabelamento dos preos do po e das carnes (conformeobservado no Diario da Tarde), verificar o peso correto do po e aplicar penalidades ao comerciantecaso este no seguisse as determinaes da Junta. A fiscalizao quanto aos preceitos de higiene noera da competncia desse rgo. FARIA, G. Morreu a Junta de Alimentao Publica do Paran?Diario da Tarde, Curityba, 29 jan. 1919, p. 1; FARIA, G. A Junta de Alimentao do Paran vaemobilisar as suas energias. Diario da Tarde, Curityba, 01 fev. 1919, p. 1; ENFIM, vamos ter tabella!Diario da Tarde, Curityba, 04 fev. 1919, p. 2; FARIA, G. O povo deve ser fiscal dos seus interesses.Diario da Tarde, Curityba, 08 fev. 1919, p. 1.

    93Diario da Tarde, Curityba, 26 out. 1918, p. 2. Diario da Tarde, Curityba, 29 out. 1918, p. 1.94 REIS, T. J. dos. Conselhos ao povo. A Republica, Curytiba, 17 out. 1918, p. 1.; A

    Republica, Curytiba, 23 nov. 1918, p. 1.95CURITYBA. Capitulo XX, Hygiene, Lei n 527, 27 jan. 1919. Cdigo de Posturas do

    Municpio de Curityba, p. 56, 1919.

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    Apenas em 1927, crticas foram finalmente feitas quanto aos problemas

    apontados pela falta de higiene nos cafs e de preparo de pessoal qualificado para

    exercer as funes. Como agravante dessa situao, a ausncia de membros da Sade

    nesses espaos para vistori-los e eliminar os utenslios quebrados e lascados -

    considerados veculos transmissores de doenas - eram vistos como um ato de

    conivncia s irregularidades que se apresentavam96. Em 1928, a Diretoria de Higiene

    Municipal se desdobrou em mais trs inspetorias sanitrias com o intuito de validar as

    suas atividades na implantao dos preceitos de modernidade - cuja ordem e limpeza

    dos espaos eram dados pela higiene -, mas so desconhecidas as intervenes nas casas

    de pasto e restaurantes97

    . Nessa perspectiva, muito pouco avano foi feito no combate falta de salubridade naqueles ambientes, o que favoreceu o agravamento da situao.

    Foi pelas escassas vistorias a essas casas de comrcio que o Diario da Tarde

    publicou uma queixa quanto venda de alimentos imprprios ao consumo nos

    restaurantes baratos. Nesses ambientes abertos dia e noite, onde os maiores attentados

    saude publica e aos preceitos de hygiene eram cometidos, comidas ditas nojentas

    e generos (...) sempre deteriorados ou mofados eram comercializados sem qualquer

    restrio. De posse de um pacote contendo peixe (podre) frito, um senhor foi quele

    jornal registrar queixa do restaurante onde adquiriu o alimento que, mesmo em

    situao irregular, continuava em plena atividade98.

    Percebe-se que a comercializao de alimentos em fase de decomposio era

    fato freqente em alguns estabelecimentos do gnero, j que a aquisio de produtos

    deteriorados no era surpresa para o fregus que os levava para consumo domstico.

    provvel que o senhor queixoso ao Dirio da Tarde por ter aceitado o peixe emestado calamitoso no tenha se sentido vontade para reclamar ao comerciante

    desonesto, pois talvez ele soubesse que a Higiene Municipal no era um rgo em

    plena atividade no combate s irregularidades dessa natureza; mas caso levasse o

    96CAFS anti-higienicos. Diario da Tarde, Curityba, 29 jul. 1927, p. 2.97A exemplo disso, esse rgo promoveu um concurso para eleger os hotis mais higinicos

    da capital, o que deu certo, tendo sido considerado um chamariz para a vinda de pessoas de outrascidades. A REMODELAO da cidade. Diario da Tarde, Curityba, 25 fev. 1928, p. 4.

    98O ABUSO dos restaurantes. Diario da Tarde, Curityba, 19 mar. 1929, p. 3.

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    embrulho quele jornal seu problema teria maior repercusso, resultando na punio

    daquele e dos demais estabelecimentos irregulares.

    Em 1930, esse assunto voltou tona em diversos momentos, donde se chamou a

    ateno para a higiene ou mesmo para a falta dela nos estabelecimentos comerciais. Na

    matria intitulada O estomago do curitybano foi dado o resultado da visita feita por

    membros do Diario da Tarde aos cafs, restaurantes, casas de pasto e hotis. Nesses

    espaos foram constatados diversos tipos de problema como instalaes sanitrias

    inadequadas, louas sujas e mal conservadas, fios de cabelo nas xcaras e descaso por

    parte do corpo de funcionrios perante essas ocorrncias nos cafs; completa falta de

    higiene e ateno no preparo de refeies nos restaurantes onde era de costume sedeparar com insetos nas sopas; falta de limpeza das mesas cujas toalhas se encontravam

    sujas e manchadas de vinho e gordura, bem como no salo de refeies das casas de

    pasto e seu respectivo assoalho, onde os fregueses costumavam jogar as cinzas dos

    cigarros e escarrar no cho; quanto aos hotis, tinham pssimo aspecto.

    A respeito da situao descrita acima, o Diario da Tardeacreditava que visita