povoamento e civilizaÇÃo movidos a

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ESTE PRIMEIRO VOLUME DA COLEÇÃO "UM OLHAR SOBRE A HISTÓRIA DA ECONOMIA DO BRASIL" RETOMA OS DETALHES HISTÓRICOS DAS TRÊS MAIS IMPORTANTES ATIVIDADES ECONÔMICAS NO BRASIL COLÔNIA – PAU-BRASIL, CANA-DE-AÇÚCAR E OURO – , BUSCANDO RESPONDER A DUAS PERGUNTAS, EM ESPECIAL: QUAL A INFLUÊNCIA DESTAS ATIVIDADES NO DESENVOLVIMENTO SOCIAL E CULTURAL DO PAÍS RECÉM DESCOBERTO? QUE PAPEL EXERCERAM AS DIFERENTES CULTURAS E ETNIAS QUE PARTICIPARAM ATIVAMENTE DOS PROCESSOS DE POVOAMENTO E COLONIZAÇÃO DO PAÍS, NOS SÉCULOS XVI, XVII E XVIII? OBRA ESCRITA EM LINGUAGEM ACESSÍVEL PELO JORNALISTA RICARDO BUENO, MAS RESPEITANDO CRITÉRIOS TÉCNICOS E CONTANDO COM A CONSULTORIA DO PROFESSOR E HISTORIADOR VOLTAIRE SCHILLING, POVOAMENTO E CIVILIZAÇÃO MOVIDOS A PAU- BRASIL, CANA E OURO DIFERENCIA-SE TAMBÉM PELO PROJETO GRÁFICO HARMÔNICO E ELEGANTE, REPLETO DE IMAGENS, ALGUMAS DELAS POUCO EXPLORADAS ATÉ ENTÃO EM PUBLICAÇÕES DO GÊNERO. PATROCÍNIO PRODUÇÃO UM OLHAR SOBRE A HISTÓRIA DA ECONOMIA DO BRASIL cana ouro POVOAMENTO E CIVILIZAÇÃO MOVIDOS A pau-brasil RICARDO BUENO, JORNALISTA FORMADO PELA UFRGS, FOI REPÓRTER, REDATOR E EDITOR DO JORNAL ZERO HORA DE 1989 A 1996. COORDENOU A ÁREA DE COMUNICAÇÃO EMPRESARIAL DA PLURAL COMUNICAÇÃO / GRUPO AMANHÃ DE 1998 A 2000, GERENCIANDO A PRODUÇÃO DE INÚMERAS PUBLICAÇÕES E FERRAMENTAS DE RELACIONAMENTO INSTITUCIONAL. FORMATOU E FOI UM DOS EDITORES DO PROJETO "AS MARCAS DO RIO GRANDE", PRÊMIO ABERJE SUL 2003 NA CATEGORIA PUBLICAÇÃO ESPECIAL (PROJETO APROVADO NA LEI ROUANET, COM APOIO DA GERDAU E RGE ENERGIA). FOI COORDENADOR EDITORIAL DO PROJETO "RIO GRANDE DO SUL: SEU POVO, SUA ALMA", REALIZAÇÃO DA RIMOLI EM 2008, QUE CONSISTIU NA PRODUÇÃO DE UM LIVRO COM 160 PÁGINAS E UMA EXPOSIÇÃO FOTOGRÁFICA, INICIATIVA QUE TAMBÉM CONTOU COM O APOIO DA LEI ROUANET. VOLTAIRE SCHILLING, NASCIDO EM OUTUBRO DE 1944, É PROFESSOR DE HISTÓRIA. ESCREVEU 12 LIVROS E MAIS DE 40 POLÍGRAFOS, A MAIORIA SOBRE HISTÓRIA. FOI PROFESSOR DO CURSO DE JORNALISMO APLICADO DA RBS E CONFERENCISTA E PALESTRANTE DA AJURIS-RS. FEZ O CURSO DE LÍNGUA E CULTURA ALEMÃ EM BERLIM EM 1986, ONDE FOI PALESTRANTE NA UNIVERSIDADE LIVRE. REPRESENTOU O BRASIL NA FEIRA INTERNACIONAL DO LIVRO DE JERUSALÉM, EM 1991. É, HÁ MAIS DE DEZ ANOS, ARTICULISTA DO JORNAL ZERO HORA, CONTRIBUINDO NA PÁGINA DE OPINIÃO, ALÉM DE COLABORADOR DO CADERNO DE CULTURA DO MESMO JORNAL. FOI, POR QUATRO ANOS, COMENTARISTA DE ASSUNTOS INTERNACIONAIS, CULTURAIS E POLÍTICOS DO PROGRAMA CÂMERA 2, NA TV GUAÍBA-RS. UM OLHAR SOBRE A HISTÓRIA DA ECONOMIA DO BRASIL

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Page 1: POVOAMENTO E CIVILIZAÇÃO MOVIDOS A

ESTE PRIMEIRO VOLUME DA COLEÇÃO "UM

OLHAR SOBRE A HISTÓRIA DA ECONOMIA DO

BRASIL" RETOMA OS DETALHES HISTÓRICOS

DAS TRÊS MAIS IMPORTANTES ATIVIDADES

ECONÔMICAS NO BRASIL COLÔNIA – PAU-BRASIL,

CANA-DE-AÇÚCAR E OURO – , BUSCANDO

RESPONDER A DUAS PERGUNTAS, EM ESPECIAL:

QUAL A INFLUÊNCIA DESTAS ATIVIDADES NO

DESENVOLVIMENTO SOCIAL E CULTURAL DO

PAÍS RECÉM DESCOBERTO?

QUE PAPEL EXERCERAM AS DIFERENTES

CULTURAS E ETNIAS QUE PARTICIPARAM

ATIVAMENTE DOS PROCESSOS DE

POVOAMENTO E COLONIZAÇÃO DO PAÍS,

NOS SÉCULOS XVI, XVII E XVIII?

OBRA ESCRITA EM LINGUAGEM ACESSÍVEL

PELO JORNALISTA RICARDO BUENO, MAS

RESPEITANDO CRITÉRIOS TÉCNICOS E

CONTANDO COM A CONSULTORIA DO PROFESSOR

E HISTORIADOR VOLTAIRE SCHILLING,

POVOAMENTO E CIVILIZAÇÃO MOVIDOS A PAU-

BRASIL, CANA E OURO DIFERENCIA-SE TAMBÉM

PELO PROJETO GRÁFICO HARMÔNICO E

ELEGANTE, REPLETO DE IMAGENS, ALGUMAS

DELAS POUCO EXPLORADAS ATÉ ENTÃO EM

PUBLICAÇÕES DO GÊNERO.

PATROCÍNIO PRODUÇÃO

UM O

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O BR

ASIL

canaouroP O V O A M E N T O E C I V I L I Z A Ç Ã O M O V I D O S A

pau-brasil

RICARDO BUENO, JORNALISTA FORMADO PELA

UFRGS, FOI REPÓRTER, REDATOR E EDITOR DO

JORNAL ZERO HORA DE 1989 A 1996.

COORDENOU A ÁREA DE COMUNICAÇÃO

EMPRESARIAL DA PLURAL COMUNICAÇÃO /

GRUPO AMANHÃ DE 1998 A 2000, GERENCIANDO

A PRODUÇÃO DE INÚMERAS PUBLICAÇÕES E

FERRAMENTAS DE RELACIONAMENTO

INSTITUCIONAL. FORMATOU E FOI UM DOS

EDITORES DO PROJETO "AS MARCAS DO RIO

GRANDE", PRÊMIO ABERJE SUL 2003 NA

CATEGORIA PUBLICAÇÃO ESPECIAL (PROJETO

APROVADO NA LEI ROUANET, COM APOIO DA

GERDAU E RGE ENERGIA). FOI COORDENADOR

EDITORIAL DO PROJETO "RIO GRANDE DO SUL:

SEU POVO, SUA ALMA", REALIZAÇÃO DA RIMOLI

EM 2008, QUE CONSISTIU NA PRODUÇÃO DE UM

LIVRO COM 160 PÁGINAS E UMA EXPOSIÇÃO

FOTOGRÁFICA, INICIATIVA QUE TAMBÉM CONTOU

COM O APOIO DA LEI ROUANET.

VOLTAIRE SCHILLING, NASCIDO EM OUTUBRO

DE 1944, É PROFESSOR DE HISTÓRIA.

ESCREVEU 12 LIVROS E MAIS DE 40

POLÍGRAFOS, A MAIORIA SOBRE HISTÓRIA.

FOI PROFESSOR DO CURSO DE JORNALISMO

APLICADO DA RBS E CONFERENCISTA E

PALESTRANTE DA AJURIS-RS. FEZ O CURSO

DE LÍNGUA E CULTURA ALEMÃ EM BERLIM

EM 1986, ONDE FOI PALESTRANTE NA

UNIVERSIDADE LIVRE. REPRESENTOU O BRASIL

NA FEIRA INTERNACIONAL DO LIVRO DE

JERUSALÉM, EM 1991. É, HÁ MAIS DE DEZ

ANOS, ARTICULISTA DO JORNAL ZERO HORA,

CONTRIBUINDO NA PÁGINA DE OPINIÃO, ALÉM

DE COLABORADOR DO CADERNO DE CULTURA

DO MESMO JORNAL. FOI, POR QUATRO ANOS,

COMENTARISTA DE ASSUNTOS INTERNACIONAIS,

CULTURAIS E POLÍTICOS DO PROGRAMA

CÂMERA 2, NA TV GUAÍBA-RS.

UM OLHAR SOBRE A HISTÓRIA DA ECONOMIA DO BRASIL

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canaouroP O V O A M E N T O E C I V I L I Z A Ç Ã O M O V I D O S A

pau-brasil

UM OLHAR SOBRE A HISTÓRIA DA ECONOMIA DO BRASIL

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Page 8: POVOAMENTO E CIVILIZAÇÃO MOVIDOS A

canaouroP O V O A M E N T O E C I V I L I Z A Ç Ã O M O V I D O S A

pau-brasil

UM OLHAR SOBRE A HISTÓRIA DA ECONOMIA DO BRASIL

DUETTO / RIMOLI ASSOCIADOS

1a EDIÇÃO

PORTO ALEGRE, RS, BRASILNOVEMBRO DE 2010

P R O J E T O I N T E R C Â M B I O S

R i c a r d o B u e n o

Page 9: POVOAMENTO E CIVILIZAÇÃO MOVIDOS A

PROJETO CULTURAL: RIMOLI ASSOCIADOS

COORDENAÇÃO EXECUTIVA: FLAVIO ENNINGER

COORDENAÇÃO EDITORIAL: RICARDO BUENO

CONSULTORIA: VOLTAIRE SCHILLING

EDIÇÃO: RICARDO BUENO

TEXTOS: RICARDO BUENO (CHOQUE CULTURAL GERA UMA NAÇÃO / ESCRAVIDÃO E

POVOAMENTO) E VOLTAIRE SCHILLING (GARIMPANDO UM NOVO PAÍS)

REVISÃO: FERNANDA PACHECO – ALMA DA PALAVRA

PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO: LUCIANE TRINDADE

TRATAMENTO DE IMAGENS: PEDRO BIZ

IMPRESSÃO: GRÁFICA E EDITORA PALLOTTI

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação ( CIP )

Bibliotecária Responsável: Denise Pazetto CRB-10/1216 – (51)30297042

B9280 Bueno, Ricardo.

Povoamento e civilização movidos a pau-brasil, cana e ouro – Um olhar sobre a históriada economia do Brasil / Ricardo Bueno. – 1. ed. – Porto Alegre: Duetto/Rimoli, 2010.

144 p. : il. color. ; 20 x 30 cm. – (A história da economia brasileira e sua influência na cultura e nasociedade ; v. 6).

Apresentar como a economia, mais precisamente os primeiros ciclos econômicos – Pau-Brasil,Cana-de-Açúcar e Ouro – tiveram influência na sociedade e na cultura brasileira.

ISBN 978-85-61763-02-2.

1. Administração de empresa – Governança corporativa. 2. Governança corporativa – Ensinosuperior. I. Título.

CDU 657.05:658.114.8658.114.8:378.018.593657.05:378.018.593

PATROCÍNIO PRODUÇÃO

RIMOLI ASSOCIADOS

AV. LUCAS DE OLIVEIRA 199 – PORTO ALEGRE-RS – CEP 90440-011

(51) 3331.2774 – [email protected]

Page 10: POVOAMENTO E CIVILIZAÇÃO MOVIDOS A
Page 11: POVOAMENTO E CIVILIZAÇÃO MOVIDOS A
Page 12: POVOAMENTO E CIVILIZAÇÃO MOVIDOS A

“Os livros não mudam o mundo. Os livros mudam apenas os homens. E os homens, sim, mudam o mundo”

Sempre acreditamos na força dos livros, das artes, da educação, da cul-tura e de seus impactos sobre os homens para melhorar o mundo.

É por este motivo que a Case New Holland – fabricante de máquinasagrícolas e de construções – patrocina, há 18 anos, o Prêmio CNH de Jorna-lismo Econômico. O jornalismo, tal como a cultura, instiga mentes, escancarao mundo e provoca reflexões sem as quais seríamos apenas uma massa amorfae incapaz de construir sonhos e abrir caminhos.

É também por estes motivos que a CNH apoia, firmemente, projetos daLei de Incentivo à Cultura. Num país rico em cultura e história, mas aindacarente de meios que as tornem universais, essa Lei preenche uma lacunaimportante para uma das mais fundamentais necessidades humanas: o co-nhecimento. O saber. Sem o saber, não há o ser. Sem o ser, não há nada.

O primeiro volume da coleção “Um olhar sobre a história da economia doBrasil”, com o título Povoamento e civilização movidos a pau-brasil, cana e ouro, pa-trocinado pela CNH com o apoio da Lei Rouanet de Incentivo à Cultura, encai-xa-se neste contexto. Estamos num momento especial do país. A economia bra-sileira mostra vigor, em especial no mercado interno. No exterior, o país se firmoucomo potência emergente. A voz do Brasil hoje é ouvida em todo o mundo.

Para sustentarmos este crescimento no presente e no futuro, precisamosolhar para o passado. Vasculhar os caminhos e descaminhos da economiabrasileira ao longo de cinco séculos e vários ciclos. E tirar daí a principal dá-diva que o passado nos oferece: o aprendizado. Esperamos que este projetoambicioso possa cumprir tal papel.

Temos orgulho de dizer que construir caminhos é a vocação da CNH. Asmáquinas que produzimos são engrenagens importantes na roda que gira aeconomia e ergue uma nação cada vez mais forte. Esperamos, portanto, queesta obra seja uma ponte de reconciliação entre o passado econômico doBrasil e um futuro a ser desbravado com inteligência e ousadia por cada bra-sileiro que, como a CNH, acredita na força da paixão. Paixão pelo Brasil.

Plantando novos caminhos

Page 13: POVOAMENTO E CIVILIZAÇÃO MOVIDOS A

se complementamOlhares que

RICARDO BUENO, JORNALISTA

apresentação

A HISTÓRIA SE DESDOBRA EM VÁRIAS HISTÓRIAS

Page 14: POVOAMENTO E CIVILIZAÇÃO MOVIDOS A

Assim como todo filósofo que se preze passa a vidainteira tentando encontrar a verdade mais verdadeira,esteja ela onde estiver, boa parte dos historiadores so-nha um dia em escrever a História derradeira – dessejeito mesmo, com agá maiúsculo. Mas assim como nãoexiste uma única verdade, também a história se des-dobra em várias histórias. Porque, ao fim e ao cabo, arelatividade das coisas reside justamente na possibili-dade de diferentes olhares se derramarem sobre os fa-tos, estejam eles na plena efervescência do momentoou, quem sabe, recolhidos, e no mais das vezes ador-mecidos, no passado. É por isso que a coleção que orase inicia, cujo primeiro volume é dedicado ao pau-brasil,à cana-de-açúcar e ao ciclo do ouro, se chama “Umolhar sobre a história da economia do Brasil”.

Trata-se de uma entre tantas perspectivas possíveis, a qual, nonosso caso, se propõe a estabelecer nexos de causa e efeito entre aeconomia e seus principais momentos ao longo dos nossos 510 anoscomo nação, de um lado, e a cultura e a sociedade que se construiudesde então, de outro. Na prática, o que se verifica é que esta dis-tinção e segmentação não existe. A economia influencia a cultura,que por sua vez condiciona a evolução e o desenvolvimento econô-mico de uma sociedade. Mas como foi mesmo que isso se deu noBrasil dos séculos XVI, XVII e XVIII? É o que, modestamente, pre-tendemos responder nas páginas que virão.

Cabe acrescentar que já virou lugar comum dizer-se que, para en-tender o presente, é preciso conhecer o passado. Mas o que exatamenteessa afirmativa quer dizer? No caso da história do Brasil, trata-se de umexercício dos mais simples, cujo resultado é de uma limpidez cristalina.Quem procurar entender, ainda que de maneira não muito profunda,como e por que os portugueses aqui chegaram, e as razões que os leva-ram, mais tarde, a tomar as decisões que tomaram, ao longo de todo operíodo colonial, terá muito mais facilidade para compreender boa par-te dos dilemas com os quais nosso país convive até os dias de hoje.

Uma das conclusões a que se pode chegar é que nem tudo sãoheranças malditas, como, por exemplo, a que decorre da supervalorizaçãodo papel que náufragos, traficantes e degredados que por aqui aportaram

PÁGINA AO LADO: ILUSTRAÇÃO MUNDUS NOVUS, DE DIOGO HOMEM (1550)

Page 15: POVOAMENTO E CIVILIZAÇÃO MOVIDOS A

apresentação

no século XVI teriam desempenhado na nossa formação moral. Muitomais relevantes para a estruturação dos valores de nossa sociedade, atéos dias de hoje, foram, por exemplo, a lavoura monocultora escravocrata,que descuidou das questões ambientais (até pela imensidão do territó-rio inexplorado) e cerceou, primeiro, a liberdade dos índios, depois, ados negros africanos. Acontece que, de outra parte, a miscigenaçãogerada pelo mesmo processo econômico (tenha sido ela consentida ounão), deixou de herança um Brasil cujos traços culturais são dos maismultifacetados do planeta.

Da mesma forma, o ouro em parte desperdiçado nos arroubos perdu-lários de Dom João V em Portugal - em tal monta que quase nada restoupara a viabilização de uma necessária e até então inexistente indústriamanufatureira na colônia - ao mesmo tempo gerou o primeiro grandemomento das artes no país, com o barroco mineiro, na arquitetura e naescultura, e a escola arcadiana, nas letras. Sem falar na expansão dasáreas ocupadas pelos lusos (ou já brasileiros), ampliando as fronteiras dopaís, em razão dos movimentos migratórios realizados em especial pelospaulistas, depois de expulsos da região das minas. Como fica claro, quan-do o assunto é rever (ou reler) a história, há sempre à disposição muitosolhares, quase sempre complementares (com o perdão da rima).

Um detalhe importante sobre o material que será apresentado aseguir diz respeito à sua ambição, ou melhor, aos seus limites. Sabemosque um trabalho realizado com viés jornalístico ganha, por um lado,na linguagem menos acadêmica e hermética, mais acessível ao públi-co não iniciado, por assim dizer. De outra parte, perde-se em profundi-dade, ainda que, no presente caso, tenhamos contado com a colabo-ração do professor e historiador Voltaire Schilling, nosso consultor etambém autor de alguns dos textos que se seguem. Particularmentefalando, considero um privilégio estar ao lado deste renomado mestre,cuja respeitabilidade, em especial na comunidade gaúcha, só faz au-mentar nossa responsabilidade.

Por fim (ou antes de darmos início a nossa jornada pelos primeirostrês séculos de existência do Brasil como país), há que se destacar oapuro visual que buscamos oferecer aos leitores. O elegante projeto grá-fico concebido pela designer Luciane Trindade buscou valorizar as ima-gens aqui reunidas, algumas das quais, se não são inéditas, foram poucoexploradas em obras do gênero "jornalismo histórico". Cabe, assim, umagradecimento especial à Fundação Biblioteca Nacional, localizada noRio de Janeiro, instituição que completou 200 anos em 2010 e presta uminestimável serviço à causa da cultura. Desejamos a todos uma boaleitura, e até os próximos capítulos da série "Um olhar sobre a história daeconomia do Brasil".

PÁGINA AO LADO: ILUSTRAÇÃO PLANISFÉRIO, DE PIERRE DESCELIERS (1550)

Page 16: POVOAMENTO E CIVILIZAÇÃO MOVIDOS A

QUANDO O ASSUNTO É REVER (OU RELER) A HISTÓRIA, HÁ SEMPRE

MUITOS OLHARES POSSÍVEIS, QUASE SEMPRE COMPLEMENTARES

Page 17: POVOAMENTO E CIVILIZAÇÃO MOVIDOS A

sumário

Page 18: POVOAMENTO E CIVILIZAÇÃO MOVIDOS A

introdução

pau-brasil C H O Q U E C U LT U R A L G E R A U M A N A Ç Ã O

Brasil inspirando utopias

cana M O N O C U LT U R A E P O V O A M E N T O

os 7 Brasis

ouro G A R I M PA N D O U M N O V O PA Í S

obras consultadas

20

26

52

58

102

106

140

Page 19: POVOAMENTO E CIVILIZAÇÃO MOVIDOS A

riqueza e pobrezaA S P R I M E I R A S H I S T Ó R I A S E C O N Ô M I C A S

Brasil colônia:

VOLTAIRE SCHILLING, HISTORIADOR

introdução

Page 20: POVOAMENTO E CIVILIZAÇÃO MOVIDOS A

O padre José Antônio Antonil S.J. (*) deveter exultado ao receber a autorização da censu-ra portuguesa liberando-o para editar seu tra-balhoso livro Cultura e Opulência do Brasil porsuas Drogas e Minas, saído do prelo em Lisboa,em 1711.

Chegado a Salvador, na Bahia, desembarcado da Europa, eleque nascera em Luca, na Toscana, logo se empenhou em ir serviro grande padre Antônio Vieira, o maior sermonista da línguaportuguesa em todos os tempos, homem da Corte e das lides di-plomáticas. Mas, jesuíta de ampla formação, curioso das coisasda terra do Brasil, Antonil resolveu registrar detalhadamentesuas impressões sobre a maior riqueza da colônia daquela época:a lavoura de açúcar.

Ainda que o ouro tivesse sido descoberto há pouco na capita-nia das Minas Gerais, o jesuíta concentrou sua atenção maior naprodução do engenho, sem, todavia, deixar de dar tratos ao plan-tar do tabaco, à criação de gado e ao comércio do couro. O inten-to dele era pragmático: queria deixar algo de útil aos produtoresrurais brasileiros. Pensou que suas anotações e observações – ex-traídas do dia a dia do engenho Sergipe do Conde, de proprie-dade da Companhia de Jesus – poderiam servir como uma espéciede “Manual da Lavoura” para os donos de terra e um norte para oreinol que no Brasil viesse a se estabelecer.

Terminou escrevendo o melhor livro sobre a economia colonialque se conhece, não lhe ficando mal o título de “pai” ou “precur-sor-mor” da história econômica do Brasil, ainda que na sua sober-ba monografia sobre a história colonial brasileira, José HonórioRodrigues o tenha colocado apenas no tópico da “LiteraturaAçucareira” (ver José Honório Rodrigues, História da História doBrasil: 1ª parte – Historiografia colonial. São Paulo : Companhia Edi-tora Nacional, pág. 371 e 393).

Talvez por isto mesmo as autoridades da metrópole tenhamvoltado atrás. A licença de circulação do livro foi suspensa, e osfuncionários do rei tiveram ordem de recolher todos os exemplaresque encontrassem pelas livrarias de Lisboa ou que estivessem ex-postos em alguma repartição.

É possível que a razão maior da reviravolta tenha sido o fato deAntonil, ingênuo, descrever os vários caminhos que poderiam serusados para, partindo-se do litoral brasileiro, atingir-se as regiões

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PÁGINA AO LADO: CARTA 5ª COSTA DO BRASIL, PADRE DIOGO SOARES

Page 21: POVOAMENTO E CIVILIZAÇÃO MOVIDOS A

da lavra do ouro, uma espécie de roteiro que podia cair em mãosadversas e, assim, proporcionar aos inimigos de Portugal boas infor-mações para que lhe roubassem a riqueza finalmente encontrada.Calcula-se que sobraram apenas sete livros de Antonil.

Mas este incidente de bibliofobia é revelador de uma outrasituação que explica a pobreza intelectual e cultural do Brasil co-lônia. Donos de um território vastíssimo, imenso, com uma linhacosteira de 7 mil e tantos quilômetros de extensão, que devia serguarnecido de tanto em tanto com poderosos fortes, para os portu-gueses somente uma permanente "operação silêncio" poderia manteros curiosos a distância.

Sempre com pouquíssima gente e escassez de funcionários, a Co-roa não tinha como policiar seu colossal império, que se desdobravapor outros continentes e oceanos. Os cuidados, então, eram redobra-dos. Não podiam circular informações sobre a nova possessão, pois ametrópole não desejava atrair colonos ou outros povoadores, como osingleses fizeram nas suas terras americanas, mas sim somente explorarsuas riquezas. A esta preocupação juntou-se a da Igreja Católica,impulsionada pelos medos da Contra- reforma que a faziam ver here-sia em qualquer canto, redobrando-se assim o policiamento.

Assim, nos principais ancoradouros do Brasil daquele tempo,fiscais atentos reviravam as embarcações para evitar a exportaçãode relatos comprometedores escritos por algum desavisado, ou en-tão o desembarque de "obras perigosas", particularmente as quetinham origem francesa, matriz da subversão iluminista, que corroíaa autoridade do rei e os dogmas da Santa Madre Igreja.

A vigilância extrema terminou por fazer com que, por vezes,livros contrabandeados alcançassem São Paulo ou o Rio de Janeirotrazidos por tropeiros do extremo sul, em rotas de mais de mil qui-lômetros, vindos da região do rio da Prata.

Esta paranoia por igual explica o motivo de jamais permitirema abertura de universidade no Brasil, como a Coroa espanhola acei-tou que se fizesse na cidade do México e em Lima, no Peru. Umauniversidade, por mais mirrada e acanhada, implica abrir pontespara o mundo, em importar livros e acadêmicos de outras partes,em deixar circular as ideias e em abrir-se às inovações, em excitaro olho dos curiosos, em abrigar tratados, polígrafos e manuais. Eem ter uma prensa. Nada disto era do agrado do poder colonial. Opequeno reino ibérico, ciumento do seu achado, não queriapartilhá-lo com ninguém. Mantê-lo no silêncio e no atraso, quan-do não bronco e alheio às coisas do mundo, era uma questão estra-tégica de sobrevivência dos seus interesses.

introdução

22

PÁGINA AO LADO: CARTA 9ª COSTA DO BRASIL, PADRE DIOGO SOARES

Page 22: POVOAMENTO E CIVILIZAÇÃO MOVIDOS A

NOS ANCORADOUROS, FISCAIS TENTAVAM EVITAR EXPORTAÇÃO DE

RELATOS COMPROMETEDORES OU DESEMBARQUE DE OBRAS PERIGOSAS

Page 23: POVOAMENTO E CIVILIZAÇÃO MOVIDOS A

Destino similar ao livro de Antonil teve outro "clássico" do Bra-sil Colonial, surgido um século antes da obra do jesuíta. Trata-se doDiálogo das Grandezas do Brasil, de autor anônimo, que apareceu em1618 e somente foi encontrado na Biblioteca Nacional de Lisboapelo historiador Francisco Adolfo de Varnhagen, no século XIX.

É o registro de um interessante diálogo mantido por dois ho-mens, um luso que há muito está na terra nordestina, provavelmen-te na capitania da Paraíba, chamado Brandônio, e um reinol recémdesembarcado, de nome Alviano. O primeiro, quase um brasileiro,procura expor as potencialidades da colônia, a excelência do climae a abundância de terras, e, depois de descrever as capitanias uma auma, elenca as promessas de riquezas que aguardam os destinos dosmoradores, tudo frente ao português que, somente aos poucos, vaisendo convencido do futuro dadivoso que aguarda a região con-quistada – ainda que, naquele momento, o torrão se ressentisse dafalta de tudo: de bons portos, de estradas, de pontes e outras melhoriasque permitissem a circulação das coisas e dos homens. É um panora-ma extraordinário do Brasil e da sua gente, seus brancos, índios,caboclos e escravos, dos começos do século XVII, baseado na rela-ção direta que o autor tinha com os fatos locais (**).

Deste modo, seguindo a perversa lógica da dialética colonial, ariqueza do Brasil contribuiu decisivamente para sua pobreza cultu-ral, pois o país se viu por três séculos sem universidades, sem livra-rias, sem jornais e muito menos impressoras ou editoras, enquantoque nos Estados Unidos prosperava a Liga de Hera (as universida-des de Harvard, Brown, Columbia, Dartmouth, Pensilvânia,Princeton e Yale), e mais de 2 mil títulos de jornais haviam circula-do antes dos norte-americanos obterem a Independência, em 1776.

Dado o abandono da colônia, não se deve estranhar que a pri-meira tentativa de se organizar as coisas da cultura no Brasil e seuprimeiro organismo oficial tenha sido a Academia Brasílica dosEsquecidos, fundada na Bahia, em 1724.

É este imenso déficit cultural que gerações de brasileiros têm,século após século, tentado de todos os modos superar.

(*) S.J. significa societatis jesu, isto é, alguém que pertence à or-dem dos jesuítas. Costuma-se colocar a sigla após o nome do padre,para identificar sua procedência.

(**) Este mesmo modelo de diálogo vai ser retomado no romanceCanaã, de Graça Aranha, quando dois imigrantes alemães no EspíritoSanto, Lentz e Milkau, comentam as possíveis excelências do Brasil.

introdução

24

PÁGINA AO LADO: CARTA 10ª COSTA DO BRASIL, PADRE DIOGO SOARES

Page 24: POVOAMENTO E CIVILIZAÇÃO MOVIDOS A

A RIQUEZA DO BRASIL CONTRIBUIU PARA SUA POBREZA CULTURAL,

UM PAÍS SEM UNIVERSIDADES, LIVRARIAS, JORNAIS OU EDITORAS

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Page 26: POVOAMENTO E CIVILIZAÇÃO MOVIDOS A

pau-brasilC H O Q U E C U LT U R A L G E R A U M A N A Ç Ã O

Page 27: POVOAMENTO E CIVILIZAÇÃO MOVIDOS A

As três primeiras décadas que se seguiram aodescobrimento do Brasil – ou achamento, termoque é usado por alguns pesquisadores para indicarque os portugueses na realidade estavam aportandoem área já conhecida – serão marcadas pela corre-lação dos aspectos econômicos e geopolíticos mui-to mais com nuances antropológicas e sociológicasdo que propriamente com enfoques culturais. Istoporque, ao aportarem em Porto Seguro, em 22 deabril de 1500, os portugueses chegavam ao extre-mo oeste do Atlântico movidos em especial pelosonho de aqui encontrarem ouro e pedras precio-sas e carreá-las para a Europa. Quase nenhumapretensão expansionista e colonizadora, do pontode vista de fazer do novo território uma extensãode Portugal, os movia. Os indígenas que osrecepcionaram na praia eram apenas mais um ele-mento exótico entre tantos com os quais os via-jantes se deparariam.

Sendo assim, o encontro de duas civilizações tão distintas – am-plamente documentado na carta de Pero Vaz de Caminha, enviadade pronto ao rei Dom João III de Portugal – terá a marca do desas-sossego de ambas as partes, diante do inusitado daquele contato eda incerteza quanto às perspectivas futuras. Dito de outra forma:nem índios, nem europeus tinham uma exata noção do que fazeruns com os outros quando ficaram frente a frente, há 510 anos. É oque pode ser resumido como um legítimo choque cultural.

De parte dos indígenas, a ambiguidade advém do fato de quemuitos deles, de caráter mais pacífico, sentiram-se irresistivelmenteatraídos por aquelas estranhas e curiosas figuras de além-mar; já ou-tros grupos, mais selvagens e arredios, intuíram que aqueles seres detez clara e fartamente vestidos carregavam também uma ameaça – aqual viria a se confirmar ao longo dos séculos, resultando na chacinade milhões de indígenas. E tudo em consequência, ou do enfrentamentoe resistência a ações escravocratas, ou, na direção contrária, pela apro-ximação consentida com o homem branco, seguida do contato fatalcom doenças e infecções para as quais não estariam imunizados. Nas

pau-brasil C H O Q U E C U LT U R A L G E R A U M A N A Ç Ã O

Page 28: POVOAMENTO E CIVILIZAÇÃO MOVIDOS A
Page 29: POVOAMENTO E CIVILIZAÇÃO MOVIDOS A

pau-brasil

ÚLTIMA PÁGINA DA CARTA DE PERO VAZ DE CAMINHA, PRINCIPAL RELATO DA VIAGEM DE PEDRO ÁLVARES CABRAL

C H O Q U E C U LT U R A L G E R A U M A N A Ç Ã O

30

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palavras de Florestan Fernandes, “os Tupis entraram em contato comos portugueses em quase todas as regiões que estes tentaram ocupar eexplorar colonialmente. Foram, ao mesmo tempo, a principal fonte deresistência organizada aos desígnios dos colonizadores e o melhor pon-to de apoio com que eles contaram, entre as populações nativas.”

De parte dos portugueses, também a ambivalência se fez presen-te desde logo. De um lado, estava muito claro aos comandantes dassucessivas incursões lusas às novas terras, as quais se dariam emgrande número a partir de 1500, que sua missão tinha caráter ape-nas exploratório, ou seja, a meta era replicar aqui o mesmo modeloextrativista já em curso especialmente nas costas africanas e tam-bém em ilhas do Atlântico. Nada, portanto, de perder tempo esta-belecendo laços ou vínculos. Concomitantemente, entretanto, mui-tos dos marinheiros de primeira viagem recrutados em Lisboa,extasiados com a beleza e os encantos do lugar (não só naturais, mastambém os de caráter sensual, expressos na nudez e docilidade dasíndias), acreditaram que poderiam encontrar, no então chamadonovo mundo, um paraíso abençoado – e decidiram não mais deixá-lo, e sim adaptar-se e aproveitar ao máximo a nova perspectiva.

CONCORRÊNCIA E ADAPTAÇÃOO fato é que, formalmente, vinham os lusos em busca de metais

e pedras preciosas, em especial ouro, a exemplo do que já vinhasucedendo com os espanhóis, em outros pontos das Américas recémabordados. E de pronto perceberam que outras nações – além dosespanhóis, também holandeses, ingleses e especialmente franceses– não titubeariam na busca de algum quinhão de riqueza no novocontinente, seja contando com apoio oficial de seus países, seja via

NATIVOS FORAM, AO MESMO TEMPO, PONTO DE

APOIO E DE RESISTÊNCIA AOS PORTUGUESES

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CHEGADA A PORTO SEGURO: ENCONTRO INSÓLITO ENTRE DOIS MUNDOS

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incursões de piratas e corsários. Na prática, os franceses foram osque demonstraram maior desprezo pela linha imaginária e verticalestabelecida no Tratado de Tordesilhas, de 1494, a qual dividia asterras recém descobertas em duas metades: uma portuguesa(marcadamente a costa brasileira) e outra espanhola (do meio doBrasil para o oeste das novas terras, até se chegar ao Pacífico).

O viés exploratório, concebido na matriz de poder portuguesa,teria, portanto, que ser acompanhado de operações de defesa eproteção contra oportunistas de toda espécie. Acontece que, na-queles primeiros momentos, e apesar dos limites demarcados emTordesilhas, foi difícil para os lusos terem uma exata noção daextensão de território a ser explorado – e mais do que isso, defen-dido. Só alguns anos mais tarde, quando ficou claro literalmente otamanho do problema (ou suas dimensões continentais), é queeles perceberiam a necessidade de um reposicionamento estraté-gico: para bem explorar, e também evitar a cobiça alheia, seriapreciso colonizar, ou, dito de outra forma, povoar.

O que se pode afirmar com certeza, como refere Eduardo Bueno,é que, a partir de 1525, quando os europeus começaram a desembar-car com mais frequência no Brasil, encontraram por aqui uma galeriade personagens enigmáticos: “Eram homens brancos que viviam entreos nativos; alguns tinham sobrevivido ao naufrágio de seus navios,outros haviam desertado. Muitos haviam cometido algum crime emPortugal e foram condenados ao degredo no Brasil, outros tiveram aaudácia de discordar de seus capitães e acabaram desterrados. Váriosestiveram casados com as filhas dos principais chefes indígenas, exer-ciam papel preponderante na tribo, conheciam suas trilhas, usos ecostumes, e intermediavam as negociações entre as várias nações in-dígenas e os representantes de potências europeias. Sua presença es-tratégica em pontos do litoral seria decisiva para os rumos do país.”

TRÊS DÉCADAS DE PURA EXPLORAÇÃOAntes de que se desencadeasse de fato o processo de ocupação

e colonização, a partir de 1530, a principal atividade econômicafoi a exploração do pau-brasil, a qual, apesar de sua relevânciahistórica, não chega propriamente a configurar um ciclo econômi-co (assim como a cana-de-açúcar também não, ao menos no en-tender de alguns economistas, uma vez que nem uma, nem outratem claramente marcados seu início, apogeu e queda, caracterís-tica principal dos ciclos). Cabe ressaltar que desde o primeiromomento a escravização de índios também se fez presente, confi-gurando efetivamente um negócio, ainda que preponderasse ainteração pacífica com os nativos (ou gentios, como mencionammuitos livros de história), interação essa que teve impacto decisi-vo na formação cultural da nação cuja história engatinhava.

TRATADO DE

TORDESILHAS

(IMAGEM AO LADO)

PAUTOU OS

MOVIMENTOS DE

LUSOS E ESPANHÓIS

NO SÉCULO XVI

pau-brasil C H O Q U E C U LT U R A L G E R A U M A N A Ç Ã O

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Ao que consta, o nome Brasil como identificação das novasterras começou a aparecer em 1503, obviamente associado à plan-ta que se configurou como principal riqueza dos primeiros tempos.Até ali, a expressão dividia espaço com denominações como VeraCruz e Santa Cruz, de caráter religioso, ou Terra dos Papagaios,em referência às aves encontradas em abundância. A propósito, otermo “brasileiro”, nos primeiros tempos, era utilizado para identi-ficar apenas aqueles que lidavam com o pau-brasil, e não os ho-mens e mulheres, índios ou brancos, que já habitavam ou que ha-viam se estabelecido nas novas terras. Esses, a levar-se ao pé daletra as regras da gramática, e uma vez vingando o nome do paíscomo Brasil, deveriam ser chamados de brasilienses.

Referindo-se ao pau-brasil, diz o historiador Boris Fausto queseu cerne, muito vermelho, era usado como corante, e a madeira,de grande resistência, era utilizada na construção de móveis e na-vios. De acordo com Sérgio Buarque de Holanda, o largo empregodeste produto nas indústrias de tecidos europeia tornava sua explo-ração altamente lucrativa, embora o insumo não se comparasse, por

pau-brasil

O TERMO

“BRASILEIRO” ERA

UTILIZADO PARA

IDENTIFICAR AQUELES

QUE LIDAVAM COM O

PAU-BRASIL

C H O Q U E C U LT U R A L G E R A U M A N A Ç Ã O

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ENCONTRO DE PORTUGUESES E ÍNDIOS, NA VISÃO DE JOHANN MORITZ RUGENDAS (1835)

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esse aspecto, ao que resultava das riquezas da Índia. Não deixa deser interessante notar a relevância que a primeira das riquezas danova terra assumiria no cenário econômico global, por assim dizer,uma vez que a indústria têxtil já começava a dar os primeiros passosno sentido de se transformar em propulsora da Europa. E a tinturaextraída do pau-brasil contribuiria para emprestar estilo e persona-lidade aos panos e tecidos que vestiam a nobreza.

Quanto ao método de extração do pau-brasil, quem explicasuas características é também Boris Fausto: “As árvores não cres-ciam juntas, em grandes áreas, mas encontravam-se dispersas. Àmedida que a madeira foi-se esgotando no litoral, os europeuspassaram a recorrer aos índios para obtê-la. O trabalho coletivo,especialmente a derrubada das árvores, era uma tarefa comum nasociedade tupinambá. Assim, o corte do pau-brasil podia integrar-se com relativa facilidade aos padrões tradicionais da vida indíge-na. Os índios forneciam a madeira e, em menor escala, farinha demandioca, trocadas por peças de tecido, facas, canivetes e quin-quilharias, objetos de pouco valor para os portugueses.”

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MAPA DE JACQUES DE VAU DE CLAYE RETRATA O NORDESTE NO SÉCULO XVII

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pau-brasil

TORAS E AVESO modelo exploratório utilizado no Brasil nas primeiras três

décadas pós-descobrimento tinha como base as feitorias, postosfortificados de comércio implantados na costa ocidental da Áfri-ca. A sistemática adotada no novo território era basicamente amesma implantada no continente africano: “... as trocas comerci-ais eram precárias, exigindo a garantia das armas. A parte comer-cial do núcleo era dirigida por um agente chamado feitor. Cabia aele fazer compras de mercadorias dos chefes ou mercadores nati-vos e estocá-las, até que fossem recolhidas pelos navios portugue-ses para a entrega na Europa. A opção pela feitoria praticamentetornava desnecessária a colonização do território ocupado”. Naprática, o modelo não teria sucesso.

O jornalista Eduardo Bueno cita em sua obra Náufragos, Trafi-cantes e Degredados que o pau-brasil crescia quase que exclusiva-mente entre o Rio Grande do Norte e o Rio de Janeiro, na planíciecosteira. As primeiras feitorias foram fundadas em três pontos ondehavia maior concentração da planta: entre o Rio de Janeiro e CaboFrio; nos arredores de Porto Seguro; e nas proximidades da ilha deItamaracá, em Pernambuco. “Havia exemplares extraordinários, tãogrossos que três homens não podiam abraçá-los. O tronco vermelhoferruginoso chegava a ter, algumas vezes, 30 metros, embora a alturamédia fosse de 20 metros”, acrescenta Bueno. “A exploração dochamado ‘pau-de-tinta’ foi feita em um ritmo tão feroz que, ao lon-go de todo o século XVI, portugueses e franceses levaram em média8 mil toneladas da madeira por ano para a Europa. Só no primeiroséculo de exploração, cerca de 2 milhões de árvores foram derruba-das – uma espantosa média de 20 mil por ano, ou quase 50 por dia.Cada navio levava cerca de 5 mil toras por viagem”.

Buarque de Holanda acrescenta que a atração exercida pelopau-brasil junto aos comerciantes que percorreram na época o lito-ral brasileiro teve uma peculiaridade: diferentemente dos portu-

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FEITORIAS (À ESQUERDA)

TINHAM PAPEL RELEVANTE NA

PROTEÇÃO DO TERRITÓRIO,

JÁ QUE A OCUPAÇÃO ATÉ ENTÃO

ERA FENÔMENO INCIPIENTE

MAPA DE VAU DE CLAYE

MOSTRA LITORAL DO RIO

DE JANEIRO (AO LADO)

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pau-brasil C H O Q U E C U LT U R A L G E R A U M A N A Ç Ã O

gueses, que tinham contatos mais restritos com os indígenas, os tri-pulantes das embarcações francesas tratavam diretamente com astribos, procurando familiarizar-se com seus hábitos básicos. Orenomado historiador acrescenta que, além de algum tráfico de es-cravos já nos primeiros tempos da exploração do litoral, “grandesararas de cores vistosas, que nele se achavam em abundância e pa-recem ter impressionado vivamente os europeus da época, tambémchegaram a tornar-se objeto de comércio”. O historiador refere ain-da que, em 1511, a nau Bretoa levou para Portugal uma carga com-posta de pau-brasil, escravos, tuins, gatos, saguis e papagaios: "Eraquase tudo o que daria a terra por aqueles tempos.”

QUEM ERAM OS NATIVOS?Mas afinal de contas, quantos e quem eram os indígenas com

os quais os portugueses teriam intenso convívio? Segundo BorisFausto, os cálculos oscilam entre números tão variados como 2milhões para todo o território e cerca de 5 milhões só para a Ama-zônia brasileira. O certo é que eles se dividiam em dois grandesgrupos: os tupis-guaranis e os tapuias.

Os tupis-guaranis ocupavam quase toda a costa, desde o Cearáaté a Lagoa dos Patos. Os tupis, ou tupinambás, distribuíam-se nafaixa litorânea, do Norte até Cananeia, no sul de São Paulo. Já osguaranis espalhavam-se pela bacia do Paraná-Paraguai e no trechodo litoral entre Cananeia e o extremo sul do que viria a ser futura-mente o Brasil. Entre eles, haviam muitas semelhanças de cultura, etambém da língua. Todos praticavam a pesca, a caça, a coleta defrutas e a agricultura. Quando ocorria uma relativa exaustão dealimentos nessas áreas, migravam temporária ou definitivamente paraoutras. Para praticar a agricultura, os tupis derrubavam árvores efaziam a queimada – técnica que iria ser incorporada pelos coloni-zadores. Plantavam feijão, milho, abóbora, e principalmente mandi-oca, cuja farinha se tornou também um alimento recorrente na co-lônia. Sua economia era basicamente de subsistência.

Além dos tupis-guaranis, havia várias outras populações disper-sas, que se misturavam às demais. Eram os chamados tapuias, pala-vra que identificava aqueles que não falavam o tupi-guarani. Nestaclassificação se incluem goitacases, aimorés, tremembés. Interessantenotar que alguns destes povos eram inimigos entre si, fato que nãopassaria despercebido aos portugueses, que na época das bandeiras,no século XVII, contariam com o apoio de algumas tribos e tambémde mamelucos (filhos de pai branco com mãe índia) em suas futurasincursões pelo vasto território até então inexplorado, escravizandooutros nativos para o trabalho nas lavouras de cana-de-açúcar.

Gilberto Freyre, na monumental e sempre atual obra Casa-grande& Senzala, aponta um outro elemento importante, o qual diferencia

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DESENHO DE

ANDRE THEVET É

UMA DAS IMAGENS

CLÁSSICAS DA ERA

DO PAU-BRASIL

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1500CHEGADA DE PEDRO ÁLVARES CABRAL AO BRASIL. EM SEGUIDA,ENVIA PARA PORTUGAL CARTA DE PERO VAZ DE CAMINHA E AMOS-TRAS DE PRODUTOS, ENTRE ELES O PAU-BRASIL.

1501É ASSINADO O CONTRATO DE EXPLORAÇÃO DO PAU-BRASIL, PORFERNANDO DE NORONHA, PARA SER UTILIZADO COMO CORANTE.ENTRE 1502 E 1503, NAVIOS PERCORREM A COSTA BRASILEIRA.

1503UMA SEGUNDA EXPEDIÇÃO É REALIZADA POR GONÇALO DE COE-LHO, QUE FUNDA A PRIMEIRA FEITORIA, DEPÓSITO E PREPARAÇÃOPARA O EMBARQUE.

1506É HOMOLOGADO O TRATADO DE TORDESILHAS PELO PAPA ALEXAN-DRE VI, FICANDO PORTUGAL COM O CONTROLE DA COSTA BRASILEI-RA E A EXPLORAÇÃO DO PAU-BRASIL.

1516UMA EXPEDIÇÃO NA COSTA BRASILEIRA TENTA EXPULSAR TRAFI-CANTES DE PAU-BRASIL, PRINCIPALMENTE FRANCESES.

1530SENDO 90% DO TOTAL DE PRODUTOS BRASILEIROS EXPORTADOS, OPAU-BRASIL REPRESENTA SOMENTE 5% DA RECEITA TOTAL DO TE-SOURO PORTUGUÊS.

A HISTÓRIADO PAU-BRASIL

1534COM A IMPLANTAÇÃO DO SISTEMA DE CAPITANIAS HEREDITÁRIAS,OCORRE UMA MUDANÇA NA POLÍTICA PORTUGUESA DE OCUPAÇÃO DOTERRITÓRIO BRASILEIRO, DEIXANDO DE SER EXCLUSIVAMENTEEXTRATIVISTA PASSANDO A SER AGRÍCOLA E COLONIZADORA.

1605O REI FILIPE II SUSPENDE TEMPORARIAMENTE O COMÉRCIO DE PAU-BRASIL, PARACORRIGIR FALHAS NO SISTEMA DE FISCALIZAÇÃO. O REGIMENTO PROÍBE O USO DOFOGO NA EXPLORAÇÃO DA MADEIRA E É IMPLANTADA A PENA DE MORTE PARA AEXPLORAÇÃO ILEGAL.

1624HOLANDESES INVADEM A BAHIA E SÃO EXPULSOS EM 1625. COBIÇAVAM O PAU-BRASIL E O AÇÚCAR. OCUPAM PERNAMBUCO EM 1630.

1625É DADO AOS JESUÍTAS O MONOPÓLIO PARA RECOLHER, TRANSPORTAR E GUARDARO PAU-BRASIL ATÉ SEU EMBARQUE PARA A EUROPA.

1831ATRAVÉS DE UMA LEI IMPERIAL, O PAU-BRASIL CONTINUA A AUXILIAR NO PAGA-MENTO DA DÍVIDA EXTERNA; É REDUZIDA A ATIVIDADE, IMAGINANDO-SE QUE AESPÉCIE ESTEJA EXTINTA EM ALGUMAS REGIÕES.

1875COM O USO DE CORANTES SINTÉTICOS, É PRATICAMENTE ABANDONADA A UTILIZA-ÇÃO DO PAU-BRASIL COMO CORANTE NA INDÚSTRIA TÊXTIL. PASSA A SER USADONA PRODUÇÃO DE ARCOS.

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APESAR DA CONVIVÊNCIA EM GERAL PACÍFICA,

RITUAIS ANTROPOFÁGICOS (ACIMA) ASSUSTAVAM

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o processo histórico vivido por portugueses, no litoral brasileiro, emrelação à experiência espanhola, na porção oeste da América: “Osportugueses (...) vieram defrontar-se não com nenhum povo articu-lado em império ou em sistema já vigoroso de cultura moral e mate-rial – com palácios, sacrifícios humanos aos deuses, monumentos,pontes, obras de irrigação e de exploração de minas – mas, ao con-trário, com uma das populações mais rasteiras do continente.” Eacrescenta: “O invasor, pouco numeroso, foi desde logo contempori-zando com o elemento nativo; servindo-se do homem para as neces-sidades de trabalho e principalmente de guerra, de conquista dossertões e desbravamento do mato virgem; e da mulher para as [ne-cessidades] de geração e de formação de família.”

ASPECTOS CULTURAIS E DE CONVÍVIOGilberto Freyre acredita, portanto, que havia um ambiente de

reciprocidade cultural muito forte na relação dos indígenas com ohomem branco recém-chegado, a se justificar, não apenas pela pré-disposição do português para a miscigenação, mas também, e emgrande parte, pela escassez, quando não falta absoluta, de mulherbranca: “Mesmo que não existisse entre a maior parte dos portu-gueses evidente pendor para a ligação (...) com as caboclas, a elateriam sido levados pela força das circunstâncias, gostassem ounão de mulher exótica.”

E foi graças a este mestiçamento que vários elementos culturaisforam se amalgamando. Atesta Gilberto Freyre: "Enriqueceu-se a vidano Brasil (...) de uma série de alimentos ainda hoje em uso, de drogase remédios caseiros, de tradições ligadas ao desenvolvimento da cri-ança, de um conjunto de utensílios de cozinha, de processos de higi-ene tropical – inclusive o banho frequente ou pelo menos diário, quetanto deve ter escandalizado o europeu porcalhão do século XVI.” Eacrescenta: “Muito auxiliou o índio ao bandeirante mameluco, osdois excedendo ao português em mobilidade, atrevimento e ardor guer-reiro (...), na obra de sertanismo e defesa da colônia contras os espa-nhóis, contra tribos inimigas dos portugueses, contra corsários.”

Quanto ao banho, acrescenta Freyre que os hábitos de higienedos índios surpreenderam aos europeus. Ele se refere aos nativoscomo “um povo (...) cuja maior delícia era o banho de rio. Que selavava constantemente da cabeça aos pés (...); que fazia uso defolhas de árvores, como os europeus mais limpos de toalhas de enxu-gar as mãos e de panos de limpar menino novo; que ia lavar no rio asua roupa suja, isto é, as redes de algodão – trabalho esse a cargo doshomens.” Acrescenta Freyre que também dos indígenas parece terficado no brasileiro rural ou semi-rural o hábito de defecar longe decasa; em geral no meio de touça de bananeiras perto do rio.

Do ponto de vista dos legados artísticos, há comprovação deque as mulheres (mais do que os homens) dedicavam-se à cerâmi-ca, ainda que a arte da fabricação de louças provavelmente tenha

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sido precedida pela utilização durante muito tempo de trançadosimpermeabilizantes como vasilhame para condicionar líquidos, sendoesses trançados arte mais dos homens do que das mulheres.

A propósito da divisão de tarefas, fica evidente que a carga maispesada sempre foi das mulheres. Cita Gilberto Freyre: “Vê-se quepara a mulher tupi a vida de casada era de contínuo trabalho: comos filhos, com o marido, com a cozinha, com os roçados. Isto semesquecermos as indústrias domésticas a seu cargo, o suprimento deágua e o transporte de fardos. Mesmo grávida a mulher índia manti-nha-se ativa dentro e fora de casa, apenas deixando de carregar àscostas os volumes extremamente pesados. Mãe, acrescentava às suasmuitas funções a de tornar-se uma espécie de berço ambulante dacriança; de amamentá-la, às vezes até os sete anos; de lavá-la; deensinar as meninas a fiar algodão e a preparar a comida.”

No que diz respeito à culinária, não são poucas as heranças dei-xadas pelos indígenas, em especial no Nordeste, mas também noMaranhão. Sempre segundo Gilberto Freyre, esta influência fica clarana tapioca de coco, chamada “molhada”, estendida em folha debananeira africana, polvilhada de canela, temperada com sal, “naqual sente-se o amálgama verdadeiramente brasileiro de tradiçõesculinárias; a mandioca indígena, o coco asiático, o sal europeu, con-

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FUNERAL DOS TUPINAMBÁS, RETRATADO POR FERDINAND DENIS EM 1846

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fraternizando-se em um só e delicioso quitute sobre a mesma camaafricana de folha de bananeira. (...) A Amazônia é a área de culturabrasileira mais impregnada de influência cabocla: o que aí se comeainda tem gosto de mato; é enrolado em folha de palmeira ou debananeira; leva castanha de caju; prepara-se em cuia; é polvilhadode puçanga feita de folhas de kurumikáa torrada.”

Outros conhecimentos úteis à atividade ou à economia domésti-ca transmitiram-se da cultura vegetal do indígena à civilização docolonizador europeu. Cita Freyre “o conhecimento de várias fibraspara tecelagem ou entrançado; (...) o conhecimento de várias madei-ras e outros elementos vegetais de construção; (...) o de animais, pás-saros, peixes, mariscos etc., valiosos para a alimentação, prestando-seao mesmo tempo os seus cascos, penas, peles, lanugem ou couro avários fins úteis na vida íntima e diária da família colonial; (...) o detintas de várias cores, logo empregadas na caiação das casas, na tintu-ra de panos, na pintura do rosto das mulheres, no fabrico de tintas deescrever. (...) Se na utilização, aproveitamento ou adaptação de todoesse material de cultura indígena entrou (...) a inteligência ou a téc-nica do europeu, (...) em outros casos o que se deu foi a pura trans-missão dos valores ou conhecimentos de uma cultura à outra – danativa à adventícia.”

NÃO SÃO POUCAS AS

HERANÇAS DEIXADAS

PELA CULTURA

ÍNDIGENA COMO

DECORRÊNCIA DO

CONVÍVIO COM O

HOMEM BRANCO

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CONVIVÊNCIA QUASE SEMPRE PACÍFICA NÃO EVITOU QUE ÍNDIOS FOSSEM ESCRAVIZADOS

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A IGREJAA ação da Companhia de Jesus é uma das mais importantes refe-

rências históricas e culturais do Brasil pós-descobrimento. E comonão poderia deixar de ser, também a presença da igreja católica serámarcada por contradições e divergências entre os historiadores queanalisam a época, ainda que predomine a visão de que a açãomissionária teve caráter nefasto para os nativos. O fato é que, nointuito de protegerem os índios das tentativas de escravização (e emparalelo tentarem salvar suas almas, via conversão à fé cristã), os mis-sionários angariaram a antipatia dos escravocratas lusos. Anos maistarde, também despertariam a ira dos portugueses pelo excessivo po-der e riquezas que concentraram, em especial no Norte do país.

De um lado, alinham-se os defensores ou apologetas do traba-lho realizado pelos missionários, como Joaquim Nabuco e EduardoPrado, que afirmam: “Sem os jesuítas nossa história colonial nãoseria outra coisa senão uma cadeia de atrocidades sem nome, demassacres como os das Reduções; o país seria cortado de estradas,como as que iam do coração da África aos mercados das costas,

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NATURALISTA SPIX RETRATOU VÁRIOS GRUPOS NATIVOS DA ÉPOCA COLONIAL, COMO O DA IMAGEM ACIMA

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DEFENSORES DOS

MISSIONÁRIOS

ALEGAM QUE JESUÍTAS

EVITARAM QUE

MASSACRES FOSSEM

AINDA MAIORES

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por onde só passavam as longas filas de escravos.”De outra parte, afirma Manuel Aires de Casal: “o regime

jesuítico que se apurou no Paraguai, e que em forma mais brandadominou no Brasil, por isso mesmo que admiravelmente eficiente,foi um regime destruidor de quanto nos indígenas era alegria ani-mal, frescura, espontaneidade, ânimo combativo, potencial decultura; qualidades e potencial que não poderiam subsistir à totaldestruição de hábitos de vida sexual, nômade e guerreira, arran-cados de repente dos índios reunidos em grandes aldeias.”

Nas palavras de Boris Fausto, as grandes vítimas foram mesmoos indígenas, pois foram feitas duas tentativas de sujeição: uma,da pura escravização pelos colonos recém-chegados, e outra, viajesuítas, que queriam transformá-los em bons cristãos e, assim,convencê-los a trabalhar segundo os padrões europeus. “Indireta-mente, os protegiam da escravidão, mas também não tinham [osmissionários] a menor consideração pelos indígenas”, afirma Fausto.

Gilberto Freyre, ainda que reconheça a motivação de carátermoral e religioso da Igreja, afirma que os religiosos foram agentes

RUÍNAS DE SÃO MIGUEL, QUE PERTENCIA AOS SETE POVOS DAS MISSÕES

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europeus de desintegração de valores nativos: “Temos que concluirpor sua influência deletéria. Tão deletéria quanto a dos colonos,seus antagonistas, que, por interesse econômico ou sensualidade pura,só enxergavam no índio a fêmea voluptuosa a emprenhar ou o escra-vo indócil a subjugar e a explorar na lavoura.”

Gilberto Freyre adiciona que não foram poucos os efeitos danososda obrigação dos nativos utilizarem vestuário europeu, contrariando ohábito da pura nudez ou, na melhor das hipóteses, de cobrirem-seapenas para decorar o corpo ou protegê-lo do sol, do frio ou dos inse-tos. “Atribui-se ao seu uso forçado influência não pequena no desen-volvimento das doenças da pele e dos pulmões que tanto concorrempara dizimar populações selvagens logo depois de submetidas ao do-mínio dos civilizados; doenças que no Brasil dos séculos XVI e XVIIforam terríveis.”

Refere o historiador, entretanto, o que chama de “um traçosimpático” da presença jesuíta: a igualdade em que parece teremeles educado, nos seus colégios dos séculos XVI e XVII, índios efilhos de portugueses, europeus e mestiços, caboclos arrancados àstabas e meninos órfãos vindos de Lisboa. “As crônicas não indicamnenhuma discriminação ou segregação inspirada por preconceitode cor ou de raça contra os índios; o regime que os padres adota-ram parece ter sido o de fraternal mistura dos alunos.”

Interessante notar, ainda, o papel relevante que a língua assumedesde os primeiros tempos da ocupação do novo território – e aqui osmissionários tiveram papel decisivo. O tupi-guarani revelou-se essen-

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AO LADO, RETRATO DE

ÍNDIO TAPUIA FEITO POR

ALBERT ECKHOUT

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PORTUGUESES MUITAS VEZES CONTARAM COM AS DISPUTAS

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ENTRE GRUPOS INDÍGENAS RIVAIS PARA GARANTIR SUA SEGURANÇA

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cial na aproximação de gentios e europeus, tendo inclusive, nos sécu-los XVII e XVIII, predominado entre os estrangeiros, em detrimentode suas línguas de origem. Como atesta Gilberto Freyre, “quando,mais tarde, o idioma português – sempre o oficial – predominou sobreo tupi, tornando-se, ao lado deste, língua popular, já o colonizadorestava impregnado de agreste influência indígena; já o seu portuguêsperdera o ranço ou infantilizara-se quase, em fala de menino, sob ainfluência do ensino jesuítico.”

A CATÁSTROFE E UMA NOVA ETAPACatástrofe é, na opinião de Boris Fausto, a palavra que melhor

resume as consequências do contato do índio brasileiro com o ho-mem branco, episódio mais marcante das primeiras três décadaspós-descoberta das novas terras. Enfatiza ele que “os índios tinhamuma cultura incompatível com o trabalho intensivo e regular, emais ainda compulsório, como pretendido pelos europeus”. Ao con-trário do que o senso comum ainda hoje faz acreditar, não eram,portanto, vadios ou preguiçosos. Simultaneamente, as epidemias,assim como a escravidão, acabaram sendo letais para os índios.“Eles foram vítimas de doenças como sarampo, varíola, gripe, paraas quais não tinham defesa biológica. Duas ondas epidêmicas sedestacaram por sua violência, entre 1562 e 1563, matando mais de60 mil índios. (...) A morte da população indígena, que em partese dedicava a plantar gêneros alimentícios, resultou em uma terrí-vel fome no Nordeste e em perda de braços”, aponta Boris Fausto.

Nas palavras de Gilberto Freyre, no balanço das três primeirasdécadas de presença portuguesa no Brasil, “a colonização por in-divíduos – soldados de fortuna, aventureiros, degredados, cristãos-novos fugidos à perseguição religiosa, náufragos, traficantes de es-cravos, de papagaios e de madeira – quase não deixou traço naplástica econômica do Brasil. Ficou tão raso, tão à superfície edurou tão pouco que política e economicamente esse povoamentoirregular e à toa não chegou a definir-se em sistema colonizador.”E acrescenta: “A família, não o indivíduo, nem tampouco o Estadonem nenhuma companhia de comércio, é desde o século XVI ogrande fator colonizador no Brasil, a unidade produtiva, o capitalque desbrava o solo, instala as fazendas, compra escravos, bois,ferramentas, a força social que se descobra em política, consti-tuindo-se na aristocracia colonial mais poderosa da América.” É oque veremos em detalhes no próximo capítulo.

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REGIMENTO DE TOMÉ DE SOUSA (À DIREITA) MARCA INÍCIO DO POVOAMENTO.

MISCIGENAÇÃO ENTRE BRANCOS E NEGROS GEROU CAFUSOS (À ESQUERDA)

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inspirandou t o p i a s

Brasil

VOLTAIRE SCHILLING, HISTORIADOR

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O presente artigo foi escrito em 2005, por oca-sião da passagem dos 450 anos da chegada daexpedição francesa do vice-almirante NicolasDurand de Villegagnon à baia da Guanabara (ba-tizada por ele como Henriquina), em novembrode 1555. O capitão, e mais 600 que o acompa-nharam, veio lançar as bases da França Antárti-ca, a utopia tropical dos franceses. Como se sabe,a intenção deles era fazer do Rio de Janeiro umaEscola de Cristo, voltada para a tolerância e obom convívio entre católicos e huguenotes/calvinistas, com o fim de estabelecer um refúgiopara todos os que se sentiam perseguidos na Eu-ropa em razão das suas crenças. Experiência essaque rendeu dois ensaios que a imortalizaram.

Assim sendo, concentramos nossa atenção em dois autores doséculo XVI que tiveram enorme importância na formação daetnologia e da antropologia brasileira e, mesmo, na universal. Oslivros que eles escreveram, as ideias que ajudaram a difundir, trans-cenderam os tempos e ajudaram na formação dos grandes mitosocidentais: o da possibilidade de alcançar-se a sociedade perfeitae o da bondade natural do ser humano.

Cronologicamente, o primeiro a ser publicado foi o de Jean deLéry (1534-1611), um jovem missionário calvinista que chegou aoForte Coligny em 7 de março de 1557, juntamente com 14 colegasde ofício. Depois de uma curta estadia no Brasil, permanência quenão chegou a completar um ano, retornou à França carregado deanotações, envolvendo-se em seguida na voragem das guerras reli-giosas, travadas naquele reino a partir de 1562 (com o massacre doshuguenotes em Wassy) e estendendo-se por quase 30 anos, até aReconciliação de Henrique III e Henrique de Navarra, ocorridaem 1589. Dele é Viagem à terra do Brasil, provavelmente iniciado em1563, mas somente publicado em 1578, em La Rochele, a fortalezados huguenotes na França.

O outro é apenas um capitulo, o 31º do livro chamado Ensaios, dogrande escritor Michel de Montaigne (1533-1592), vindo à luz ape-nas dois anos depois, em 1580, e intitulado “Dos Canibais”. Logo noprefácio o autor registra o enorme impacto que causou sobre ele oencontro que teve com os índios tupinambás, escrevendo: “Se tivessenascido entre essa gente de quem se diz viver ainda na doce liberda-de das primitivas leis da natureza, asseguro-te que de bom grado me

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Brasil

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pintaria por inteiro e nu.” (Do autor ao leitor: março de 1580).Montaigne decidira escrever sobre si mesmo e registrar as impressõesque o meio circundante e as leituras clássicas lhe causaram.

Os dois livros, portanto, apareceram quase que simultanea-mente, sendo que ambos foram um sucesso. Um era de um pastorcalvinista, o outro, de um filósofo que, se bem que católico, naverdade era um cético e um antidogmático.

A IMPORTÂNCIA DOS DOIS LIVROSTanto o livro de De Léry como o de Montaigne encontram-se

entre as melhores narrativas sobre o encontro de dois mundos: o daCivilização Cristã Europeia com os Selvagens Pagãos do Novo Mun-do – um verdadeiro “choque de culturas”. É o registro do cruza-mento de dois mundos totalmente estranhos entre si, tão diferentescomo se eles fossem, os europeus e os índios, habitantes de planetasdiferentes. Mundo esse com o qual De Léry tomou contato pessoal-mente, enquanto que Montaigne soube dele indiretamente, por meiode informações de um empregado seu que estivera na França Antár-tica e pelo encontro casual que teve com alguns tupinambás, trêsdeles em Rouen, na França, em 1550, nos tempos de Carlos IX.

Se Léry, de certo modo, como tantos outros calvinistas depoisdele, coloca os indígenas fora das possibilidades de serem integra-dos à cristandade, Montaigne os percebe como uma poderosa eilustrativa antítese da civilização europeia. Tratavam-se de exem-plares perfeitos do Mundo Natural, bom e puro, em confronto como Mundo Civilizado, hipócrita e dissimulado. Nesta sua condes-cendência para com os índios, o autor chega inclusive a descul-par-lhes o hábito da antropofagia, visto não querer condenar umaprática não pior para ele do que a utilização das fogueiras, facil-mente acesas durante as guerras religiosas travadas na França con-tra os inimigos caídos, considerados como hereges.

A projeção ideológica e intelectual do livro de De Léry e dofamoso capítulo de Montaigne perdurou pelos séculos. O docalvinista – e é ninguém menos do que Claude Lévi-Strauss quemreitera isso – serviu como o “breviário do etnólogo”, manual a serseguido por todos os antropólogos que se prezem (pode-se até di-zer que De Léry foi o primeiro dos antropólogos do Novo Mundo: oinventor da moderna antropologia), visto que o material coletadopor ele foi levantado empiricamente na baía da Guanabara quan-do das suas incursões pelas aldeias dos tupinambás.

O de Montaigne tomou outros rumos. De certo modo suas obser-vações contidas em “Dos Canibais” reforçou junto aos franceses avisualização da sociedade perfeita descrita anteriormente por ThomasMorus na Utopia, obra de 1516, difundindo entre os seus conterrâneos

I N S P I R A N D O U T O P I A S

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DE LERY NÃO ACREDITAVA NA INTEGRAÇÃO DOS INDÍGENAS. JÁ

MONTAIGNE OS VIA COMO PODEROSA ANTÍTESE DA CIVILIZAÇÃO

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Brasil I N S P I R A N D O U T O P I A S

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DE LERY FUNDOU A

PROFISSÃO DE

ANTROPÓLOGO, ENQUANTO

MONTAIGNE INSPIROU

REFORMADORES

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bem pensantes a possibilidade de algum dia poder-se reconstruir naEuropa o Velho Mundo tido por decadente, as organizações sociaislivres e igualitárias que existiam no Novo Mundo. Assim, enquantoum fundou uma profissão, a de antropólogo, o outro serviu de farolpara todos os reformadores sociais que se seguiram, como J-J. Rousseau,G. Babeuf e E. Cabet.

ESTRUTURA DO LIVRO DE DE LÉRYO livro de De Léry é dividido em 22 capítulos que podem, com

certa liberdade, ser divididos em três blocos mais ou menos separados.O primeiro deles (do capítulo 1 ao 7) trata das agruras da viagem atéa chegada ao forte Coligny, incluindo a prece de Villegagnon, ondeeste expõe o seu sonho de um país calvinista. Em seguida, entre oscapítulos 8 e 20 – e essa é a parte maior e mais famosa – dedica-se oautor a fazer uma detalhada descrição da vida natural e dos nativos(aspecto físico, alimentos, fauna, os hábitos da guerra, a cerimôniaantropofágica, as crenças dos nativos, as núpcias, o sistema de paren-tesco e a criação dos filhos, encerrando com os rituais fúnebres e ainumação dos mortos). Por último, apenas dois capítulos, o 21 e o 22,são reservados ao rompimento final com Villegagnon e os enormesperigos que passaram ao retornar à França, ancorando enfraquecidose famintos no porto de Blavet, na Bretanha, em maio de 1558.

ESTRUTURA DO CAPÍTULO DE MONTAIGNEO autor assegura que suas primeiras informações sobre o Novo

Mundo vieram de um seu servido, homem rude que estivera comVillegagnon. Em seguida, refere-se às Lendas do Continente deAtlântida, sabidas por Sólon e Platão, e ainda Aristóteles, que fazmenção à “Ilha Fértil”, além das Colunas de Hércules. Nada vê debárbaro no relato sobre a vida dos nativos do Novo Mundo, celebran-do sua forma original, intacta, negando-se a chamá-los de selvagens.

Na verdade, representariam a República Perfeita Original, for-mada por homens que saíram “diretamente das mãos de Deus”. Socie-dade sem leis nem regras escritas, perfeitamente adaptada à naturezade um clima suave. Dedica-se então Montaigne a descrever a vidados nativos, seus hábitos e costumes, todos marcados pela simplicida-de, orientados pelos pajés e pelos caciques. Então, dá inicio a minimizara prática do canibalismo, citando em seu socorro Crisipo e Zenão.

Fazem a guerra, disse ele, de “modo nobre e generoso”. A guer-ra que travam não visa à conquista de território, mas sim apenasobrigar o inimigo a confessar-se vencido. Elogia-lhes a poligamia,pois isso evita os infernos do ciúme. O final do capítulo é dedicadoao encontro do autor com um morubixaba em Rouen, quando ochefe indígena lhe expõe o espanto pela imensa desigualdade socialreinante entre os franceses, espantando-se ele com o fato dos infe-lizes famélicos que ele via por toda a parte não se revoltarem contraaquilo. Montaigne encerra tudo com a célebre frase: “Mas que dia-bos, essa gente não usa calças!”.

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canaM O N O C U LT U R A E P O V O A M E N T O

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Três décadas. Esse foi o tempo que durou a po-lítica exclusivamente extrativista adotada pelosportugueses como forma de explorar o novo terri-tório oficialmente descoberto por Pedro ÁlvaresCabral em 1500, a oeste do Oceano Atlântico.Cansado de receber notícias dando conta dos su-cessivos ataques ao litoral brasileiro, em especialde parte dos traficantes franceses de pau-brasil –que simplesmente ignoravam os muitos acordos etratados visando à boa convivência entre as na-ções –, D. João III reuniu seus assessores em 1532e decidiu: era chegada a hora de efetivamente co-lonizar o Brasil.

Para tanto, o governo português adotou inicialmente o modelodas donatarias, mais conhecidas como capitanias hereditárias. As-sim, o território brasileiro foi “fatiado” em 15 enormes porções deterra, demarcadas por faixas horizontais imaginárias que iam da cos-ta leste até os limites de certa forma virtuais estabelecidos pelo Tra-tado de Tordesilhas. Ainda que em sua maioria estivessem fadadasao insucesso – isto porque, com exceção de Pernambuco e SãoVicente, os demais donatários não teriam recursos suficientes, e emalguns casos nem mesmo interesse, em dar conta de suas enormesglebas –, as capitanias garantiram aos portugueses o pioneirismomundial na implantação de um modelo baseado na monocultura(em especial a lavoura canavieira), ocupando grandes extensões deterra e alicerçando-se em mão-de-obra escrava – fator econômicoque demandaria a ampliação do tráfico de negros oriundos da Áfri-ca, prática que Portugal já desenvolvia há algumas décadas.

A substituição da mão-de-obra indígena pela dos escravos africa-nos se deu principalmente porque os nativos, de maneira geral, não seadaptaram ao novo modelo de trabalho, em tudo distinto do serviçode corte e embarque das toras de pau-brasil que, de maneira quasesempre cordial, realizavam em troca de objetos de valor irrisório paraos portugueses (tecidos, facas, colares e outros acessórios). Ao resisti-rem à intensificação da política escravocrata destinada ao trabalhona lavoura, os nativos foram praticamente exterminados, não apenasem decorrência dos conflitos armados, mas também via contato força-do das mulheres índias com doenças as mais variadas, como já citadono capítulo 1. A tal ponto que, hoje, estima-se em no máximo 250 mil

DONATARIAS

GARANTIRAM AOS

PORTUGUESES O

PIONEIRISMO

MUNDIAL DA

LAVOURA

MONOCULTORA E

ESCRAVOCRATA

cana M O N O C U LT U R A E P O V O A M E N T O

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TOMÉ DE SOUSA (ACIMA) FOI O PRIMEIRO

GOVERNADOR GERAL E RESPONSÁVEL

PELO GERENCIAMENTO DO SISTEMA

DE CAPITANIAS HEREDITÁRIAS

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PORTUGUESES SONHARAM DURANTE ANOS

ENCONTRAR OURO E PEDRAS PRECIOSAS

o total da população indígena no Brasil, a qual, na época do desco-brimento, pode ter chegado a 5 milhões de indivíduos.

Cabe enfatizar que, em um primeiro momento, ainda que preo-cupados com a necessidade de povoar o território para interrom-per os ataques de piratas ao litoral brasileiro, os portugueses se-guiam alimentando o sonho de serem os primeiros a chegar àlendária e rica região central da América. Segundo boatos quecorriam à época, haveria ali uma imensa formação natural, quasetoda ela de pura prata. Ou seja, nem só da intenção de povoar onovo mundo se deram os primeiros movimentos feitos pela Coroaportuguesa, quando decidiu se preocupar efetivamente com oque acontecia no Brasil.

A expedição de Martim Afonso de Sousa, por exemplo, quepartiu de Lisboa em 1530, teria zarpado tendo como principal obje-tivo justamente tentar descobrir o caminho por terra até as minasde Potosí, no Peru. Adicionalmente, ou apenas como tarefa secun-dária, caberia a ele percorrer o litoral de Nordeste a Sul, banindoem especial os franceses, que insistiam no assédio ao território bra-sileiro – estes chegaram, inclusive, a se estabelecer em pequenasfortificações ao longo da costa do Atlântico. Em alguns casos, aousadia francesa ganharia ares de invasão, como em 1555, quando

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MAPA DE NICOLAES VISSCHER, RETRATANDO PERNAMBUCO EM 1630

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Nicolas Durand de Villegagnon fundou, na baía da Guanabara, oForte Coligny (imagem abaixo), de onde seria expulso em 1565, an-tes estabelecendo um enclave conhecido como França Antártica.

O economista Celso Furtado, autor do clássico Formação Eco-nômica do Brasil, destaca que Portugal não dispunha de grandesrecursos para efetivar o povoamento do imenso território. Por essarazão a exploração agrícola em grandes extensões seria a opçãomais viável: “É fato universalmente conhecido que aos portu-gueses coube a primazia neste empreendimento”. Não fosse isso,destaca Furtado, “dificilmente Portugal teria perdurado comogrande potência colonial na América”. Até porque, como enfatizaFurtado, a única alternativa a este modelo econômico seria apos-sar-se das tão sonhadas grandes minas de prata e ouro. Mas esteacabou sendo um privilégio dos espanhóis, mais especificamentede Francisco Pizzarro – consequentemente, motivo de grande frus-tração para o ambicioso Martim Afonso, ele próprio dono de uma

EXPLORAÇÃO

AGRÍCOLA EM

GRANDES EXTENSÕES

FOI PRIMAZIA DOS

PORTUGUESES

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capitania, a qual terminou por abandonar para viver na Índia.Foi partindo do Panamá que o explorador espanhol conseguiuchegar, via Oceano Pacífico, ao Peru, destruindo em 1532 a civi-lização inca e se apoderando dos grandes mananciais de prata daregião de Potosí.

Na mesma linha de análise, Gilberto Freyre destaca o caráterinédito da política econômica que passaria a vigorar no Brasil, masacrescenta um viés sociocultural relevante: “... iniciam os portu-gueses a colonização em larga escala dos trópicos por uma técnicaeconômica e por uma política social inteiramente novas, apenasesboçadas nas ilhas subtropicais do Atlântico. A primeira: a utili-zação e o desenvolvimento de riqueza vegetal pelo capital e peloesforço do particular; a agricultura; a sesmaria; a grande lavouraescravocrata. A segunda: o aproveitamento da gente nativa, prin-cipalmente da mulher, não só como instrumento de trabalho mascomo elemento de formação da família.”

MARTIM AFONSO DE

SOUSA (ACIMA) PERDEU A

CORRIDA DA PRATA PARA

PIZZARRO. ABAIXO, O

FORTE COLIGNY NA VISÃO

DE JOYCE GOLD, EM 1813

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cana M O N O C U LT U R A E P O V O A M E N T O

Vai mais longe Gilberto Freyre, para enfatizar a relevânciadaquele momento histórico: “A nossa verdadeira formação socialse processa de 1532 em diante, tendo a família rural ou semi-rural por unidade, quer através da gente casada vinda do reino,quer das famílias aqui constituídas pela união de colonos commulheres caboclas, com moças órfãs ou mesmo à toa, mandadasvir de Portugal pelos padres casamenteiros.”

O fato é que, a partir de então, e por mais de um século, comoregistra o brasilianista Thomas Skidmore, o país seria o maior produ-tor e exportador mundial de açúcar. “De 1600 a 1650 o açúcar respon-dia por 90% a 95% dos ganhos brasileiros com exportações.” Mesmono auge da exportação do ouro, o açúcar continuou a ser o produtomais importante, pelo menos no comércio legal. Em 1760, correspondeua 50% do valor total das exportações, contra 46% do ouro.

Para alcançar este patamar de relevância e protagonismo no ce-nário mundial, a parceria com os holandeses (que justamente poresta proximidade e interesse comercial mais tarde viriam a trair es-tes laços de união) seria fundamental. Se é verdade que Portugal jáhavia absorvido o know-how do cultivo da cana nos Açores e na ilhada Madeira, inclusive do ponto de vista do desenvolvimento da res-pectiva indústria de equipamentos, também é preciso destacar queos holandeses – ou flamengos, ou ainda batavos, como também eramconhecidos à época – recolhiam o açúcar em Lisboa, refinavam-no efaziam a distribuição por toda a Europa.

Celso Furtado especula: “Tudo indica que capitais flamengosparticiparam no financiamento das instalações produtivas no Brasil,bem como da importação da mão-de-obra escrava.” E acrescenta:“Se se tem em conta que os holandeses controlavam o transporte(inclusive parte do que ocorria entre Brasil e Portugal), a refinaçãoe a comercialização do produto, depreende-se que o negócio doaçúcar era na realidade mais deles que dos portugueses.”

Bahia e Pernambuco logo se destacariam como “os dois grandescentros de opulência econômica e social, dois grandes portos brasi-leiros de expressão internacional no século XVI”. Para se ter uma

FRANS POST DEDICOU-SE

ÀS PAISAGENS DE RECIFE

(ABAIXO). AO LADO,

PEQUENO ENGENHO DE

AÇÚCAR, DE THIERRY

FRÉRES (1835)

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OS HOLANDESES

CONTROLAVAM O

TRANSPORTE, O REFINO

E O COMÉRCIO DO

AÇÚCAR, ALÉM DE

FINANCIAREM OS

MOINHOS DO BRASIL

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ideia de sua importância, basta dizer que os ricos colonos portugue-ses que se instalaram nestas capitanias mantinham, em Pernambuco,23 engenhos movidos a bois ou água, produzindo, em 1576, de 50 a70 mil arrobas de açúcar. Na Bahia, seriam 18 engenhos, cada umdeles com em média 50 escravos e 15 ou 20 juntas de boi, produzin-do anualmente entre 6 e 10 mil arrobas de açúcar mascavo.

PERFIL DA LAVOURA MONOCULTORA E ESCRAVOCRATADiferentemente do trabalho realizado pelos pequenos agriculto-

res, que se dedicavam à lavoura de subsistência tendo como recursoapenas os braços da própria família, a grande propriedade, célulafundamental da exploração agrária e mote da colonização do Brasila partir de 1530, foi sempre monocultora e escravocrata e “inteira-mente concentrada na produção de um gênero para exportação”,conforme Alice P. Cannabrava. Os engenhos do Nordeste, por exem-plo, produziam apenas açúcar, adquirindo no mercado todas as de-mais mercadorias necessárias à sua manutenção, o que incluía fru-tas frescas e em conserva, ovos e galinhas, mel e farinha de mandio-ca, e inclusive os tecidos grosseiros para as roupas dos escravos.

Antes que se intensificasse o tráfico de negros trazidos da África,a escravização do índio predominou, em especial na região da Capita-nia de São Vicente. Os indígenas, muitas vezes capturados em grandenúmero após ataques dos bandeirantes paulistas às reduções jesuíticaslocalizadas na bacia do rio Paraná, eram trocados justamente pelosprodutos manufaturados que os senhores de engenho importavam daEuropa. Em pouco tempo, porém, a melhor adaptação do negro africa-

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TRANSPORTE DE UM COMBOIO DE NEGROS (G. HENGELMANN, 1835)

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OS ENGENHOS PRODUZIAM APENAS AÇÚCAR,

SENDO NECESSÁRIO ADQUIRIR NO MERCADO

TODAS AS DEMAIS MERCADORIAS,

MUITAS VEZES TROCADAS POR ÍNDIOS

CAPTURADOS NAS MISSÕES

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LITOGRAFIA DE G. HENGELMANN RETRATANDO A CAPOEIRA (1835)

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cana M O N O C U LT U R A E P O V O A M E N T O

no às rotinas da lavoura canavieira faria com que recaísse sobre eles apreferência na mão-de-obra, ainda que um escravo negro custassemais caro que um nativo do Brasil. A frase famosa do jesuíta Antonil,de que o negro africano era ao mesmo tempo "as mãos e os pés dosenhor de engenho", resume aquele momento.

OS ENGENHOS DO NORDESTEFoi a maior proximidade em relação à Europa, bem como as con-

dições naturais favoráveis, que fizeram do Nordeste brasileiro a re-gião de desenvolvimento extraordinário da grande lavoura, aindaque também no Maranhão e no Rio de Janeiro o mesmo modelotivesse grande importância econômica. Do ponto de vista dasustentabilidade e da preservação do meio ambiente, não havia amenor preocupação, até porque terra havia em abundância. Quan-do a produtividade dava sinais de esgotamento ou diminuição acen-tuada, era mais barato destruir a floresta e abrir novas áreas de

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A MELHOR

ADAPTAÇÃO DOS

NEGRO À LAVOURA FEZ

COM QUE RECAÍSSE

SOBRE ELES

PREFERÊNCIA COMO

MÃO-DE-OBRA

MOINHO DE AÇÚCAR RETRATADO POR G. HENGELMANN EM 1835

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plantio do que investir na melhoria dos processos de cultivo.Alice Cannabrava descreve com riqueza de detalhes a estrutura

do engenho de açúcar, a qual forma um pequeno aglomerado huma-no ou núcleo de população: “A casa-grande, residência do senhor deengenho, é uma vasta e sólida mansão térrea ou em sobrado; distin-gue-se pelo seu estilo arquitetônico sóbrio, mas imponente, que ain-da hoje empresta majestade à paisagem rural, nas velhas fazendas deaçúcar que a preservaram. Constituía o centro de irradiação de todaa atividade econômica e social da propriedade. A casa-grande com-pletava-se com a capela, onde se realizavam os ofícios e as cerimôniasreligiosas. Estas congregavam todas as pessoas da comunidade, aosdomingos e dias santificados, como também por ocasião dos batizados,casamentos, funerais e sepultamentos, pois estes se faziam na própriacapela, quanto se tratava dos membros da família do senhor de enge-nho. Próximo se erguia a senzala, habitação dos escravos, os quais, nosgrandes engenhos, podiam alcançar algumas centenas de 'peças'. Pouco

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CASA DE SENHOR DO ENGENHO (C. SHOOSMITH, 1821). ABAIXO, RETRATO DE NEGRO (ECKHOUT)

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cana M O N O C U LT U R A E P O V O A M E N T O

Page 72: POVOAMENTO E CIVILIZAÇÃO MOVIDOS A

além serpenteava o rio, traçando através da floresta uma via de co-municação vital. O rio e o mar se mantiveram, no período colonial,como elementos constantes de preferência para a escolha da situaçãoda grande lavoura. Ambos constituíam as artérias vivificantes: pormeio delas o engenho fazia escoar suas safras de açúcar e, por elassingravam os barcos que conduziam as toras de madeira abatidas nafloresta, que alimentavam as fornalhas do engenho, ou a variedade ea multiplicidade de gêneros e artigos manufaturados que o engenhoadquiria alhures.”

Entre os trabalhadores brancos que gravitavam em torno dosengenhos, havia artesãos (ferreiros, carpinteiros, serralheiros) emestres-de-açúcar, mas o grupo mais numeroso era o dos peque-nos plantadores de cana, produtores independentes sem condi-ções de manter um engenho. “Dependiam, portanto, dos senho-res, mas às vezes tinham algum poder de negociar quando a pro-dução de cana nos engenhos era escassa”, aponta Boris Fausto.

FUMO, ALGODÃO E GADOComo aponta o historiador Boris Fausto, “do ponto de vista

econômico e social o Nordeste colonial não foi só açúcar, até por-que o próprio açúcar gerou uma diversificação de atividades, den-tro de certos limites.” O historiador refere que a escassez de ali-mentos, em consequência da especialização imposta pela cana,incentivou a produção de gêneros alimentícios, especialmente amandioca. “A criação de gado esteve também em parte vinculadaàs necessidades da economia açucareira”, assim como a extraçãoda madeira e o cultivo do fumo.

A lavoura do fumo, a propósito, ocupa o segundo lugar em im-portância econômica no Brasil colonial. Tal como o açúcar, era pro-duto de exportação, com uma vantagem adicional: tinha valor detroca na compra de escravos africanos. Ademais, pelo baixo peso,apresentava custos mais baixos no frete de travessia do Atlântico. Aprodução do fumo disseminou-se em várias partes da colônia, mas amaior produção se dava na Bahia. Alagoas também possuía núcleos,assim como o Rio de Janeiro, na primeira metade do século XVIII.

NOS GRANDES ENGENHOS, A

PRESENÇA DOS ESCRAVOS POR

VEZES CHEGAVA ÀS CENTENAS

73

PLANTA BAIXA PUBLICADA EM CASA-GRANDE & SENZALA, DE GILBERTO FREYRE

Page 73: POVOAMENTO E CIVILIZAÇÃO MOVIDOS A

canaTambém do século XVIII são os primeiros registros da lavoura de

algodão, a terceira na hierarquia de importância econômica do perío-do colonial. Havia a vantagem de que a variedade nativa do Brasil(Gossypium brasiliense) vegetava naturalmente em todo o território,sendo cultivada em pequena escala para a manufatura de tecidosgrosseiros. Com o advento da Revolução Industrial e os progressos datecnologia no setor têxtil, em especial na Inglaterra, a produção emescala passou a ser um negócio de vulto. Os maiores centros produto-res foram o Maranhão e Pernambuco, servindo-se ambos da favorávelposição estratégica para embarque das cargas para a Europa.

Além do açúcar, do fumo e do algodão, que eram responsá-veis pela quase totalidade da produção agrária brasileira, haviaainda o cacau, o arroz e o anil, também produzidos nos mesmos

VENDEDOR DE

ALGODÃO, EM DESENHO

DE FERDINAND DENIS

OU MONNIN(1846)

M O N O C U LT U R A E P O V O A M E N T O

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CRIAR E VENDER

GADO ERA UM BOM

NEGÓCIO: O PRODUTO

TRANSPORTAVA

A SI MESMO

moldes da grande lavoura, mas com impactos menores na econo-mia colonial. Da mesma forma, a pecuária se constitui em ativi-dade secundária no período. Mas é a ela que se deve o povoa-mento das zonas de caatinga no Nordeste e as campinas no Suldo país, além de outras regiões menores. A atividade ganharáoutra dimensão a partir da descoberta das riquezas minerais,quando então será a responsável pela ligação do Norte com o Sul(veja no capítulo 3). De qualquer forma, desde sempre a pecuáriaofereceu possibilidades para os que não dispunham de meios parase dedicar à agricultura de exportação. Ademais, como eramimensas as dificuldades de transporte à época, criar e vendergado era um bom negócio, já que o produto a ser comercializadose transportava a si mesmo.

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cana

RESSIGNIFICANDO O BRASILA escravidão no Brasil não se iniciou com os negros vindos da

África. Como já mencionado, foram, antes deles, os indígenas osprimeiros a terem sua liberdade cerceada, tendo que colocar suaforça de trabalho a serviço dos exploradores do pau-brasil, em umprimeiro momento, e em seguida dos colonizadores e grandes pro-prietários de terras no Nordeste. Basta dizer que em 1574 apenas7% da força de trabalho escrava era formada por negros, percentualque sobe para 37% em 1591, e continua crescendo, até chegar a1638, quando 100% dos escravos eram africanos ou afro-brasileiros.

Ainda que as populações indígenas tenham sofrido inomináveisperdas, a escravização do negro, que se intensificaria em especial coma implantação da lavoura de cana-de-açúcar, é que deixou as marcasmais indeléveis na sociedade brasileira. No período colonial, o desejode ter um escravo perpassava todas as camadas. Havia desde os se-nhores de engenho ou proprietários de minas, que possuíam centenasde escravos, passando pelos pequenos lavradores, com dois ou trêscativos, até se chegar aos moradores das cidades, com um escravo.

O preconceito generalizado contra todos os negros (fossem ounão escravos) cruzou gerações. No dizer de Boris Fausto, chegou mo-dificado aos nossos dias. Basta dizer que, "até pelo menos a introdu-

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FIGURAS DE ÍNDIOS E NEGRO, NA VISÃO DO HOLANDÊS ALBERT ECKHOUT

M O N O C U LT U R A E P O V O A M E N T O

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PRECONCEITO FEZ

COM QUE O TRABALHO

MANUAL NO BRASIL

FOSSE DURANTE

SÉCULOS

DESPREZADO COMO

“COISA DE NEGRO”

ção em massa de trabalhadores europeus no centro-sul do Brasil, otrabalho manual foi socialmente desprezado como 'coisa de negro'".Gilberto Freyre, em Casa-Grande & Senzala, reforça que no Brasil seconfunde a questão da raça com a da condição social. No entenderdo estudioso, ser negro e ser escravo são situações distintas – mas nãoo eram no Brasil colonial: "O negro nos aparece no Brasil, através detoda nossa vida colonial e da nossa primeira fase da vida independen-te, deformado pela escravidão (...), pela capacidade imensa dessesistema para rebaixar moralmente senhores e escravos".

Do ponto de vista do perfil dos escravos que cruzaram aos mi-lhões as águas do Atlântico, viajando em embarcações cujas con-dições eram as mais abjetas possíveis, há distinção entre aquelesque foram alvo do tráfico feito por ingleses em relação aos captu-rados pelos portugueses. Na colonização inglesa, o critério de im-portação de escravos foi quase exclusivamente o agrícola, o deenergia bruta, animal. No Brasil, a importação atendia outras ne-cessidades e interesses. Segundo Gilberto Freyre, pretendia-se tam-bém dar conta da falta de mulheres brancas, e atender ainda asnecessidades de técnicos em trabalhos de metal, em especial apósa descoberta das minas de pedras preciosas.

A propósito das mulheres, é também Gilberto Freyre quem afir-

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ESCRAVOS NO FUNDO DE UM NAVIO (POR G. HENGELMANN, 1835)

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cana

NEGROS NAS MOENDAS (ACIMA) E VISTA DO

INTERIOR DE PERNAMBUCO, POR FRANS POST

M O N O C U LT U R A E P O V O A M E N T O

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ma: "Não há escravidão sem depravação sexual". O historiador serefere àqueles que eram donos de escravos como tendo "imoderadodesejo de possuir o maior número possível de crias". Consequênciadesta dura realidade foi a ampla miscigenação, gerando-se gera-ções e gerações de filhos de brancos com negros (que por sua vezgerariam filhos com os filhos de brancos e índios). Também vemdaí a explicação para as escravas, muitas vezes ainda recém saídasda infância e entrando na adolescência, serem involuntariamentetransmissoras de doenças venéreas, depois de serem sifilizadas porseus senhores. "O que explica ter se alagado de gonorreia e desífilis a nossa sociedade do tempo da escravidão", acrescenta Freyre.

Na composição do quadro da degradação humana dos cativos,Boris Fausto relata que estes desempenhavam principalmente asatividades mais pesadas no campo, mas quem trabalhava namoenda, nas fornalhas e nas caldeiras convivia, entre outras situ-ações, com o risco de perder a mão ou o braço, episódios nadaincomuns. "Muitos observadores que escreveram sobre os enge-nhos brasileiros notaram a existência de um pé-de-cabra e de umamachadinha próximos à moenda para, no caso de um escravo serapanhado pelos tambores, estes serem separados, sendo a mão ou obraço amputados, salvando-se a máquina de maiores estragos."

RESISTÊNCIA E LEGADOOs padres jesuítas que combatiam a escravidão dos indígenas, e

que acabaram sendo favoráveis a que se buscasse na África a mão-de-obra para a lavoura canavieira, concordando com a tese de que

MISCIGENAÇÃO

RESULTOU EM

GERAÇÕES E

GERAÇÕES DE FILHOS

DE BRANCOS COM

NEGROS E BRANCOS

COM ÍNDIOS

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os negros eram mais resistentes que os nativos brasileiros, não esta-vam de todo errados. De fato, os milhares de homens e mulheresque atravessaram à força o Oceano Atlântico eram dotados de umacapacidade de trabalho e de adaptação impressionantes. O que nãosignifica, como durante algum tempo se pensou, que aceitaram debom grado a submissão ao homem branco. O mais emblemático sím-bolo da resistência foi o quilombo dos Palmares, onde o nome deZumbi acabou se transformando em ícone.

Apesar da correlação de forças absolutamente desigual, fugir dasgrandes fazendas e se reunir em comunidades quilombolas foi umaentre tantas maneiras que os negros encontraram de se opor às condi-ções desumanas em que eram obrigados a viver na senzala. Muitos sesuicidaram, outros tantos quebraram equipamentos ou atacaram seussuperiores, vários incendiaram senzalas e libertaram os rebanhos. Aresistência de quase um século em Palmares, um conjunto de 12quilombos a pouco menos de 100 quilômetros de Alagoas, em Maceió,entrou para a história como a marca da inconformidade. Provavel-mente erguido em 1602, o conjunto das comunidades teve uma desuas mais importantes lideranças na pessoa de Gamga Zumba, porvolta de 1650 a 1680. Ele terminou por ser destituído pelo sobrinho,Zumbi, por este não ter concordado com um acordo de paz fechadopelo tio em Recife. Zumbi, então, liderou heroicamente os negrosrebeldes, inúmeras vezes atacados pelos portugueses (e mesmo pelosholandeses), até que Palmares fosse destruído pelo implacável ban-deirante Domingos Jorge Velho, em 1694. Zumbi escapou, mas termi-nou suicidando-se ou sendo morto em combate por André FurtadoMendonça, quase dois anos depois, em 20 de novembro de 1695, dataque se transformou no Dia da Consciência Negra.

cana

SUBMETIDOS A

CASTIGOS EM

PRAÇA PÚBLICA,

NEGROS NÃO SE

CONFORMARAM

JAMAIS COM A

ESCRAVIDÃO

80

M O N O C U LT U R A E P O V O A M E N T O

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Falar sobre a presença dos negros na sociedade brasileira e dainfluência que tiveram e seguem tendo em nossa sociedade é ta-refa fácil e, ao mesmo tempo, das mais complexas. A profundidadecom que se deu a imersão dos homens e mulheres africanos navida da então colônia portuguesa teve um efeito tão avassaladorao longo dos anos que se seguiram que atualmente é muito difícilapontar um brasileiro que, de alguma forma, não tenha algum tipode relação com aqueles primeiros escravos vindos da África. OBrasil, pode-se dizer, não foi influenciado pelos negros: a nação seconstruiu com e a partir deles.

SOCIEDADE COLONIALFoi somente com a instituição do governo geral, em 1549, que

a sociedade brasileira começou a ganhar seus primeiros contornosformais de organização. Abaixo do governador-geral, destacavam-se os governadores de capitanias, cujos poderes incluíam, por exem-plo, a concessão de sesmarias, ficando os critérios de escolha dosfavorecidos a seu livre arbítrio. Em parte foi graças a este expedi-ente que surgiram os grandes latifúndios, muitas vezes improduti-vos, que marcaram a economia brasileira durante séculos.

Nas Câmaras Municipais da época, uma das poucas instituiçõesque se perpetuaria ao longo do tempo, haviam membros natos e outroseleitos. Mas somente votavam nas eleições (em geral indiretas) oschamados "homens bons", ou seja, proprietários residentes na cidade,excluídos os artesãos e os considerados impuros pela cor e pela reli-gião, isto é, negros, mulatos (mestiços) e cristãos-novos. A pureza dosangue vigorou até 1773, quando se extinguiu a diferenciação entrecristãos antigos e novos (judeus), ao menos do ponto de vista legal.

O fato é que, como atesta Boris Fausto, a tentativa de transpor aorganização administrativa lusa para o Brasil chocou-se com inú-meros obstáculos, dada a extensão da colônia, a distância da metró-pole e a novidade dos problemas a serem enfrentados. "O Estado foiestendendo seu alcance ao longo do tempo, diríamos melhor ao lon-go dos séculos, sendo mais presente nas regiões que eram o núcleofundamental da economia da exportação. Até meados do séculoXVII, a ação das autoridades somente se exerceu com eficácia nasede do governo geral e das capitanias à sua volta". E enfatiza oautor: “Nas outras regiões, predominaram as ordens religiosas, espe-cialmente a dos jesuítas, esta considerada um Estado dentro do Es-tado, ou os grandes proprietários rurais e apresadores de índios".

Sérgio Buarque de Holanda refere, entretanto, que mesmo oscentros urbanos sofriam influência do modelo ditatorial vigentena área rural. Afinal, o título de senhor de engenho era considera-do por muitas autoridades locais tão alto quanto os títulos de no-breza do Reino, e não raro funções elevadas nas Câmaras Munici-

cana

EXTENSÃO DA

COLÔNIA E

DISTÂNCIA DA

METRÓPOLE

DIFICULTAVAM A

ADMINISTRAÇÃO

82

MAPA DE FREDERIK DE VIT

MOSTRA O LITORAL

BRASILEIRO EM 1657

M O N O C U LT U R A E P O V O A M E N T O

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pais eram ocupadas pelos grandes lavradores, para protesto e des-contentamento dos comerciantes das cidades.

Do ponto de vista da ocupação efetiva do território, até mea-dos do século XVIII o Nordeste (ou o "Norte", como era identifi-cado à época) concentrava praticamente todas as atividades eco-nômicas relevantes e também a vida social. O Sul era quase terri-tório periférico, ao menos do ponto de vista da economia exporta-dora. De qualquer forma, pode-se dizer que o Brasil era então umpaís praticamente desabitado. Estima-se que Salvador, capital dopaís até 1763, tinha cerca de 14 mil habitantes em 1585, passandopara 25 mil em 1724 e cerca de 40 mil em 1750 (a propósito, 50%deles escravos). Pode parecer pouco, mas para efeito de compara-ção, a cidade de São Paulo possivelmente não tinha mais de 2 milhabitantes em 1600.

Ademais, a concentração populacional da época se dava nocampo, e muito pouco nas cidades. Um padre jesuíta, citado porBoris Fausto, refere-se à pobreza da pequena São Paulo do séculoXVII como resultado justamente da constante ausência dos habi-

cana

84

VISTA DE SALVADOR EM 1780, POR J. K. SHERWIN

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tantes: "Fora por ocasião de três ou quatro festas principais, elesficam em suas herdades ou andam por bosques e campos, em buscade índios, no que gastam suas vidas".

Do ponto de vista do urbanismo, em nada se compara o dese-nho das então recém criadas cidades brasileiras com o modelo es-panhol. Enquanto estes aplicavam conceitos de planejamento ur-bano, com base em linhas retas, no Brasil a regra era uma totalfalta de planejamento. Sérgio Buarque de Holanda cita um via-jante que esteve na Bahia no princípio do século XVIII e notouestarem as casas dispostas segundo a vontade de cada morador."Tudo ali era irregular, de modo que a praça principal, onde seerguia o Palácio dos Vice-Reis, parecia estar só por acaso no seulugar". Também em São Vicente e Santos há referência sobre ca-sas em completo desalinho, de tal sorte que o primeiro governa-dor-geral do Brasil, Tomé de Sousa, queixava-se de não poder muraras duas vilas, pois tal medida demandaria muito trabalho e incô-modos aos moradores já estabelecidos.

Ainda em Raízes do Brasil, Buarque de Holanda analisa com

URBANISMO DA

ÉPOCA COLONIAL

TINHA A MARCA

DA TOTAL FALTA DE

PLANEJAMENTO

85

DESENHO DA CIDADE DE SÃO PAULO POR VOLTA DE 1700 (AUTOR DESCONHECIDO)

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exatidão o cenário urbano brasileiro: "A cidade que os portugue-ses construíram na América não é produto mental, não chega acontradizer o quadro da natureza, e sua silhueta se enlaça na li-nha da paisagem. Nenhum rigor, nenhum método, nenhuma pre-vidência, sempre esse significativo abandono que exprime a pala-vra 'desleixo' – palavra que o escritor Aubrey Bell considerou tãotipicamente portuguesa como 'saudade' e que, no seu entender,implica menos falta de energia do que uma íntima convicção deque 'não vale a pena...'."

Simultaneamente, em meio a este cenário de apenas relativocontrole da sociedade por parte do Estado, a família patriarcalexerceu papel preponderante, ao menos entre a classe dominantedo Nordeste. E com ela foi se amalgamando, ao longo dos anos, aformação de redes de relacionamento baseadas não apenas naconsanguinidade, mas também nos interesses e nos conceitos sub-jetivos da lealdade. Uma rede formada por padrinhos, afilhados,protegidos e amigos terminaria por se aproximar das esferas de po-der, contaminando com os interesses privados o que deveriam serações com foco no benefício público.

Sérgio Buarque de Holanda refere-se à preponderância do pátriopoder na sociedade colonial rural, classificando-o como virtualmenteilimitado, havendo poucos freios para a tirania. "Não são raros oscasos como o de um Bernardo Vieira de Melo, que, suspeitando anora de adultério, condena-a à morte em conselho de família e mandaexecutar a sentença, sem que a Justiça dê um único passo no senti-

cana

MENTALIDADE DA

CASA-GRANDE,

BASEADA NO PÁTRIO

PODER RURAL,

INVADIU TAMBÉM

AS CIDADES

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do de impedir o homicídio ou castigar o culpado, a despeito de todaa publicidade que deu ao fato o próprio criminoso".

Acrescenta o historiador que a mentalidade de casa-grande,depois de consolidada no campo, invadiu também as cidades e con-quistou todas as profissões, sem exclusão das mais humildes. Buarquede Holanda exemplifica com o caso de um oficial de carpintaria quese vestia como se fosse um fidalgo, "com tricórnio e sapatos de fivelae que se recusava a usar as próprias mãos para carregar as ferramen-tas de seu ofício, preferindo entregá-las a um preto".

EFEITOS SOBRE OS ÍNDIOSSe nas primeiras três décadas o índio teve papel altamente

relevante na economia extrativista do pau-brasil, e se de algumaforma naquele momento encontrou tratamento cordial de boa par-te dos colonizadores, a implantação da monocultura em grandesextensões de terra traria consequências nefastas para os nativos.Gilberto Freyre aponta: "O trabalho sedentário e contínuo, as doen-ças adquiridas ao contato dos brancos, (...) a bexiga, a disenteria,os catarros, foram dando cabo dos índios: do seu sangue, da suavitalidade, da sua energia. (...) O sistema escravocrata, por umlado, e o missionário, por outro, continuariam sua obra de devasta-ção da raça nativa, embora mais lenta e menos cruel do que naAmérica espanhola ou na inglesa. E com aspectos criadores que seopõem aos destruidores."

O historiador ressalta que os primeiros anos do contato com o

ACIMA, RETRATO DE INDÍGENA,

POR ECKHOUT, E ABAIXO

PAISAGEM DE RECIFE, POR

FRANS POST

Page 87: POVOAMENTO E CIVILIZAÇÃO MOVIDOS A

cana

88

homem branco e a ocupação portuguesa alteraram o modo de vidados nativos, mas sem arrancá-los pela raiz do seu meio físico e doseu ambiente moral. "O desenraizamento viria com a colonizaçãoagrária, isto é, a latifundiária: com a monocultura representadaprincipalmente pelo açúcar". É de Freyre uma frase emblemática:"O açúcar matou o índio". E foi para tentar livrar os indígenas datirania do engenho que os missionários os segregaram em aldeias,em muitos casos inutilmente, pois mais tarde acabariam sendo cap-turados pelos bandeirantes. Mas ressalta Freyre: "O imperialismoportuguês – o religioso dos padres, o econômico dos colonos –, sedesde o primeiro contato com a cultura indígena feriu-a de morte,não foi para abatê-lo de repente, com a mesma fúria dos inglesesna América do Norte. Deu-lhe tempo de perpetuar-se em váriassobrevivências úteis."

Na visão de Florestan Fernandes, ao substituírem o escambopela agricultura, os portugueses passaram a encarar os índios comoobstáculo à posse da terra, "uma fonte desejável e insubstituívelde trabalho e a única ameaça real à segurança da colonização.Passamos, então, do período das tensões encobertas para a era doconflito social com o índio."

HERÓIS OU BANDIDOS?Das muitas figuras que na história (ou histórias) do Brasil apa-

recem mitificadas, talvez a dos bandeirantes, ou paulistas, seja umadas mais emblemáticas. Retratados por artistas do século XX comose fossem heróis de capa e espada, teriam sido eles os responsáveisdiretos pela ampliação das fronteiras do país para bem além dalinha imaginária do Tratado de Tordesilhas. Uma visão menos es-tereotipada e idealizada dá conta que os líderes destas interminá-veis marchas pelo sertão brasileiro andavam descalços, e na rotinadiária de caçar e apreender (ou prear) índios, cometeram todotipo de atrocidade. É bem verdade que, na prática, ao chegaremantes de qualquer outro colonizador a regiões até então inex-ploradas, terminaram por fazer do Brasil um país maior do que eraaté então, em especial quando entrou em vigor o critério do utipossidetis – quem chegava primeiro, passava a ser dono da porção(ver detalhes no capítulo 3).

Os bandeirantes, ou paulistas, habitavam São Paulo dePiratininga, cidade fundada por jesuítas que ficava em posiçãoestratégica em relação ao acesso ao sertão. A proximidade tam-bém com o Paraguai deixava-os a uma distância razoável das re-duções, onde os missionários facilitavam – sem querer, obviamen-te – o trabalho dos caçadores de homens, ao manterem reclusosmilhares de índios – calcula-se que em torno de meio milhão de-les terminaria por ser aprisionado pelos bandeirantes.

QUADROS PINTADOS

NO SÉCULO XX

CONTRIBUÍRAM

PARA A IDEALIZAÇÃO

DA FIGURA DOS

BANDEIRANTES

O BANDEIRANTE

DOMINGOS JORGE VELHO

(À ESQUERDA NA IMAGEM

AO LADO) COMANDOU

ATAQUE A PALMARES

M O N O C U LT U R A E P O V O A M E N T O

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cana

90

BARTOLOMEU

BUENO DA SILVA (À

ESQUERDA NA

IMAGEM AO LADO),

FOI UM DOS

BANDEIRANTES

QUE ENFRENTOU

A RESISTÊNCIA

DOS ÍNDIOS

MISSIONEIROS

(ACIMA)

Foi, a propósito, a partir da invasão em 1637 de uma das redu-ções jesuíticas – a de San Antonio, que integrava um conjunto cha-mado Guairá –, que se iniciou a sanha escravagista daqueles ho-mens que se consideravam abandonados pela Coroa no planaltopaulista. Desprovidos de qualquer tipo de pudor, estabeleciam elessuas próprias leis, e de forma alguma importavam-se em contar coma ajuda de muitos indígenas para atingirem seus objetivos. Aprovei-tavam-se, assim, do espírito naturalmente guerreiro de alguns nati-vos para aprisionar outros tantos. A grande bandeira de ManuelPreto e Raposo Tavares que atacou Guairá, por exemplo, era forma-da por 69 brancos, 900 mamelucos (filhos de pai branco e mãe índia)e 2 mil indígenas.

Como aponta Boris Fausto, os paulistas não constituíram uma"raça especial". Sua coragem e arrojo, ou o fato de que tenhamcontribuído para a extensão territorial do Brasil, estão fora de dú-vida, mas o simples relato de suas façanhas (e crueldades) mostraque eles não tinham nada a ver com a imagem de heróiscivilizadores. "Os paulistas construíram uma sociedade rústica, commenor distinção entre brancos e mestiços, influenciada pela cul-tura indígena. Não devemos porém confundir (...) com uma socie-dade democrática, pois uma hierarquia das melhores famílias e adominação sobre os índios prevaleceram."

E o que era feito dos milhares de índios apreendidos? A maio-ria provavelmente era vendida como mão-de-obra escrava em SãoVicente e no Rio de Janeiro, onde também houve produção decana-de-açúcar. Dados mais recentes dão conta de que teriamsido utilizados na própria economia paulista, em especial nas la-

M O N O C U LT U R A E P O V O A M E N T O

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vouras de trigo, no século XVII. No alvorecer do século XVIII,cumpririam os bandeirantes nova etapa – desta feita na busca doouro (ver capítulo 3).

DE PARCEIROS A INVASORESComo já apontado, Portugal e Holanda foram, durante muitos

anos, parceiros na partilha da riqueza gerada pela indústria doaçúcar. Um fato político, entretanto, terminaria por azedar as rela-ções entre os dois países. Acontece que, de 1580, quando se en-cerra a Dinastia de Avis, a 1640, o reino de Portugal passou a estarsob a tutela da Espanha, no período que ficou conhecido comoUnião Ibérica. E como a Espanha e os então chamados Países Bai-xos estavam em guerra desde 1568, a participação relevante dosholandeses (ou flamengos) na indústria açucareira do Brasil jánão seria mais possível. Estava por se iniciar um período de suces-sivos conflitos entre os até então fraternais parceiros comerciais.

As primeiras investidas dos holandeses foram pilhagens à costa

cana

EM 1624,

HOLANDESES

OCUPARAM

SALVADOR, MAS

FORAM EXPULSOS

NO ANO SEGUINTE

M O N O C U LT U R A E P O V O A M E N T O

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da África, em 1595, e a Salvador, em 1604. Após um breve períodode trégua entre Espanha e Holanda, e com a criação da Compa-nhia Holandesa das Índias Ocidentais, em 1621, os flamengos in-tensificaram suas ações no sentido não apenas de ocupar as princi-pais zonas de produção açucareira na América portuguesa, comotambém de controlar o suprimento de escravos que vinha da costaoeste da África. Seguiram-se, então, as tentativas de invasão.

Em 1624, os holandeses ocuparam Salvador, e durante um anoenfrentaram forte resistência, até se renderem, em maio de 1625.Mas não desistiram de seu intento. Cinco anos depois, o alvo mu-dou. Em 1630, atacaram Pernambuco (a maior e mais rica regiãoprodutora de açúcar do mundo, à época com 130 engenhos), econquistaram Olinda. O domínio holandês na região, entretanto,só se consolidaria em 1637, pois durante sete anos os portuguesesofereceram resistência aos invasores, encastelados em suas proprie-dades rurais, onde possuíam mais recursos. Finalmente vitoriosa, aHolanda assumiu o controle de um território mais amplo: exata-

FRANS POST PINTOU O

BRASIL DA ÉPOCA DO

GOVERNO DE MAURÍCIO

DE NASSAU

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mente a região compreendida entre o Ceará e o Rio São Francis-co. É só então que começa a Era Nassau, a qual leva o nome doconde holandês, depois príncipe, que, apesar de breve passagempelo Brasil (1637-44), deixaria uma importante marca cultural.

AMSTERDÃ EM PERNAMBUCONascido na Alemanha, mas tendo vivido boa parte de sua

carreira na Holanda, João Maurício de Nassau teve sólida for-mação humanista. O início de seu governo à frente da NovaHolanda se deu com a transferência para Recife da sede de seugoverno (e tirando de Olinda a condição de capital da capita-nia). Apesar de calvinista, foi tolerante com os católicos e con-cedeu liberdade de culto aos cristãos-novos (judeus), que atéentão só podiam professar sua fé às escondidas. Concedeu finan-ciamento a quem quisesse assumir a produção nos engenhos deaçúcar abandonados em razão da disputa com os portugueses, eobrigou que se plantasse também mandioca nas lavouras, na pro-porção de escravos de cada engenho.

Uma das mais emblemáticas marcas de Nassau se deu no cam-po das artes e das ciências humanas. O governante foi o responsá-vel pela vinda ao Brasil de muitos cientistas, naturalistas e artistasplásticos, como Frans Post, o primeiro a retratar as paisagens e ce-nas da vida brasileira, e Albert Eckhout, célebre por suas obrasmostrando tipos humanos, plantas e animais. As obras de Post eEckhout como que se complementam para, com arte e apuro téc-nico, registrar e eternizar uma época. Outros dois nomes de gran-

cana

94

ACIMA, MOEDA DE

OURO CUNHADA

ESPECIALMENTE

PARA MARCAR A

ÉPOCA HOLANDESA

VISTA DE OLINDA POR VOLTA DE 1650

M O N O C U LT U R A E P O V O A M E N T O

Page 94: POVOAMENTO E CIVILIZAÇÃO MOVIDOS A

MAURÍCIO

DE NASSAU

(AO LADO)

TRANSFORMOU

A PAISAGEM

DO NORDESTE

BRASILEIRO

95

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cana

AO LADO, CAPA DA

OBRA DE

MARCGRAF E PISO

SOBRE HISTÓRIA

NATURAL DO

BRASIL, PUBLICADA

EM 1648. ABAIXO,

OUTRA OBRA DE

FRANS POST

M O N O C U LT U R A E P O V O A M E N T O

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de relevância na comitiva de Nassau foram os de Georg Marcgrafe Willem Piso, que anos depois publicaram na Alemanha uma obraexcepcional, chamada Historia Naturalis Brasiliae. EnquantoMarcgraf estudou o clima e classificou centenas de espécies dafauna e da flora, Piso estudou profundamente as doenças tropicaise ervas medicinais brasileiras. Ao todo, a comitiva trazida pelogovernante holandês era formada por 46 homens, das mais diver-sas formações na área das ciências e das artes.

Tais foram as transformações urbanas capitaneadas por Nassau emRecife – a cidade ganhou traçado geométrico e inclusive canais que,de alguma forma, lembravam a bela Amsterdã, na Holanda – que olugar chegou a ser oficialmente rebatizado como Cidade Maurícia, ouMauritiópolis. Nassau construiu um zoológico, plantou dezenas e de-zenas de árvores frutíferas, promoveu apresentações artísticas e cultu-rais de toda ordem. No dizer de Sérgio Buarque de Holanda, "institu-tos científicos e culturais, obras de assistência de toda ordem e impor-tantes organismos políticos e administrativos (basta dizer que em 1640se reunia em Recife o primeiro Parlamento de que há notícia no he-misfério ocidental) davam à sede do governo da Nova Holanda umesplendor que a destacava singularmente no meio da miséria ameri-cana". Cabe salientar, entretanto, que semelhante transformação nãoultrapassava os muros das cidades. Como refere Buarque de Holanda,"o esforço dos conquistadores batavos limitou-se a erigir uma grande-za de fachada, que só aos incautos podia mascarar a verdadeira, adura realidade econômica em que se debatiam."

SEDE DO GOVERNO

DA NOVA HOLANDA

OSTENTAVA UM

ESPLENDOR QUE

A DESTACAVA EM

MEIO À MISÉRIA

DA AMÉRICA

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O FIM DE UMA ERAAdorado não só por portugueses e brasileiros, mas também por

índios, negros africanos e europeus de diversos países que haviamaportado em Pernambuco e região por aqueles tempos, Maurício deNassau não conseguiu um perfeito entendimento com a Companhiadas Índias Ocidentais, a quem se reportava, hierarquicamente falan-do. E por isso decidiu renunciar à chefia de governo do enclave ho-landês no Brasil, em maio de 1644. Coincidência ou não, não demo-raria mais do que um ano para que os portugueses decidissem que erachegada a hora de retomar o controle que haviam perdido em 1630.

A disputa entre Portugal e Holanda passava por uma trégua desde1641, a qual havia sido formalizada um ano depois dos portuguesesse desvincularem da Espanha, pondo fim a 60 anos de União Ibérica(1580-1640). Além de recuperar sua autonomia, Portugal desfazia,assim, seu vínculo com os tradicionais inimigos dos batavos, o quepoderia significar a possibilidade de reatar boas relações com aHolanda, como no início do ciclo do açúcar. Acontece que,endividados com a Companhia das Índias Ocidentais e vendo opreço do açúcar desabar no mercado internacional, senhores deengenho se articularam para enfrentar os batavos. Desta feita, aocontrário do que havia ocorrido em 1630, quando os portugueses seentrincheiraram no campo para tentar fazer frente aos ataques ho-landeses, a disputa mais demorada se deu na zona urbana, ondedurante anos os holandeses resistiram às incursões portuguesas, de-pois de facilmente se deixarem dominar na zona rural.

Um primeiro enfrentamento bélico se deu em agosto de 1645,mas os confrontos que ficariam célebres ocorreriam apenas em 1648,quando os rivais se confrontaram na primeira batalha dos Guararapes(nome dos montes nos arredores de Recife onde o conflito aconte-ceu), e logo em seguida, em 1649, na segunda, ambas as disputasvencidas pelos lusos. Sitiados em Recife, os holandeses resistiramaté janeiro de 1654, quando finalmente se entregaram. Oficialmen-te, entretanto, só abriram mão do território brasileiro em 1661.

CONSEQUÊNCIAS DA EXPULSÃO DOS HOLANDESESA retomada da soberania sobre o território que havia sido ocupa-

do pela Holanda teve duas implicações principais, uma de carátersociológico e cultural, outra com viés econômico e estratégico.

A primeira: a guerra contra os holandeses reuniu, pela primei-ra vez na história do Brasil, lideranças de diferentes raças. Co-

cana

ENDIVIDADOS E

VENDO O PREÇO

DO AÇÚCAR CAIR,

SENHORES

DE ENGENHO

ARTICULARAM

A GUERRA CONTRA

OS BATAVOS

DESENHO DE PISO, À ESQUERDA, E QUADRO QUE RETRATA A BATALHA DOS

GUARARAPES, À DIREITA: PRESENÇA HOLANDESA DUROU 24 ANOS

M O N O C U LT U R A E P O V O A M E N T O

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mandaram os batalhões nomes ilustres entre os lusos, comoFernandes Vieira e Vidal de Negreiros, mas contaram eles, entre-tanto, com a prestimosa colaboração de Henrique Dias, que che-fiou um batalhão formado apenas por negros, e de Felipe Camarão,potiguar que liderava um pequeno e bravo grupo de guerreirosindígenas. Vem daí a tese de que as batalhas dos Guararapes te-riam sido o primeiro episódio do nacionalismo brasileiro, por reuni-rem do mesmo lado representantes de três raças.

A segunda consequência da vitória sobre os holandeses foi a ime-diata tentativa destes de se reposicionarem no mercado mundial doaçúcar. Nas palavras de Celso Furtado, "senhores da técnica de pro-dução e muito provavelmente aparelhados para a fabricação de equi-pamentos para a indústria açucareira, os holandeses se empenhariamfirmemente em criar fora do Brasil um importante núcleo produtor".A situação que encontram nas Antilhas francesas e inglesas foi tãofavorável que eles optaram por colaborar com os colonos dessas re-giões, em lugar de tentarem ocupar novas terras e instalar por contaprópria a indústria." Assim, em pouco tempo – menos de um decêniodepois de terem sido expulsos do Brasil – os holandeses estariam àfrente de poderosos grupos financeiros que controlavam grandes quan-tidades de terras e possuíam engenhos açucareiros de grandes propor-ções. A competição internacional, portanto, seria o próximo e grandedesafio a ser enfrentado por Portugal na colônia a oeste do Atlântico,uma vez que a dependência da cultura da cana era quase completa –e os preços do açúcar estavam por despencar.

cana

100

BOLSA DE AMSTERDÃ,

AO LADO, ONDE

SE NEGOCIAVAM

AÇÕES DOS

PODEROSOS GRUPOS

FINANCEIROS

HOLANDESES

M O N O C U LT U R A E P O V O A M E N T O

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Os 7 BrasisO historiador Evaldo Cabral de Mello, um

emérito especialista sobre o Brasil holandês, costu-mava ser inquirido sobre quais teriam sido os desti-nos do nosso país caso a ocupação holandesa doNordeste tivesse frutificado. E sua resposta invari-avelmente era de que tal dependeria do ponto devista das intenções pretendidas. Se a preocupaçãodaquele que formulou a pergunta fosse com umpadrão de vida mais elevado e uma formação cul-tural bem superiores aos existentes atualmente en-tre os brasileiros, talvez fosse interessante que cer-tas áreas do Brasil tivessem ficado sob administra-ção dos batavos ou mesmo dos franceses. Mas, sefor obedecido o quesito da continuidade territoriale administrativa, da integração racial e da unifor-midade religiosa e linguística, a resposta seria outra,e favorável, é claro, à colonização portuguesa.

Inspirando-se na primeira parte da resposta deEvaldo Cabral de Mello, isto é, a possibilidade dehaver um Brasil subdividido entre diversas naçõeseuropeias, segue-se um resumo, puramenteespeculativo, do possível traçado territorial desseBrasil, ou Brasis, caso vingassem outras ocupações,povoamentos ou conquistas registradas na histó-ria do Brasil Colonial.

VOLTAIRE SCHILLING, HISTORIADOR

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os 7 Brasis

A AMAZÔNIA ESPANHOLANa medida em que foram dois exploradores espanhóis, primeiroVicente Pinzón, em 1500, depois Francisco Orellana, em 1542, quepercorreram a foz do “Mar Dulce” e os grandes rios da região, aquem Orellana chamou de Amazonas, é possível que a grande flo-resta se tornasse parte efetiva do Império Espanhol da América. Olitoral atlântico dessa Amazônia espanhola provavelmente se es-tenderia do Rio Oiapoque, no limite com a Guiana Francesa, até oRio Gurupí, fronteiro ao Maranhão.

A FRANÇA EQUINOCIALCaso o povoamento do Maranhão, impulsionado pelo armador fran-cês Jacques Riffaut, em 1594, seguido, em 1612, da fundação deSão Luís por Daniel La Ravardière, vingasse, toda a costa doMaranhão, do Rio Gurupí até o Rio Parnaíba, formaria a FrançaEquinocial, de fé católica.

A NOVA HOLANDAResultado da operação militar de ocupação ordenada pela Com-panhia das Índias Ocidentais, comandada pelo Almirante Lock,em 1630, e assegurado por José Maurício de Nassau, a partir de1637, o empreendimento batavo ocuparia todo o litoral do Nor-deste de hoje. Seus limites partiriam do Rio Parnaíba, bem aoNorte, até a fortaleza de Penedos, na margem esquerda do RioSão Francisco, ao Sul, na atual Alagoas. Sua capital seguramentecontinuaria a se denominar Mauritiópolis (atual Recife).

O ESTADO DO BRASILA cidade de Salvador, fundada por Tomé de Sousa em 1549, e queconseguiu resistir por duas vezes aos assaltos dos holandeses (umaem 1624, outra em 1637), provavelmente continuaria sendo a ca-pital do Estado do Brasil, ou da Nova Lusitânia, um Estado queteria a margem direita do São Francisco como seu marco ao Nortee a foz do Rio Paraíba do Sul como seu limite mais meridional.Formaria, juntamente com a Pauliceia, os dois estados coloniaisportugueses do Brasil.

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A FRANÇA ANTÁRTICANo atual estado do Rio de Janeiro, se encontraria ainda a Fran-ça Antártica, que o almirante Villegagnon, ao fundar na Baíada Guanabara o forte de Coligny, em 1550, sonhou tornar umaNova Jerusalém para os huguenotes franceses e todos aquelesperseguidos por motivos religiosos na Europa de então. É bomlembrar que tal estado pró-calvinista estaria envolvido boa par-te do seu tempo em guerras contra seus vizinhos portuguesescatólicos. Pouco auxilio lhe poderia vir da outra colonização fran-cesa mais ao norte, a do Maranhão, porque a França Equinocialcontinuaria católica.

O II º ESTADO DO BRASIL, OU PAULICEIAIniciada a ocupação do litoral paulista por Martim Afonso deSousa, em 1532, com a vila de São Vicente, e com o domínio doPlanalto de Piratininga com a fundação do Colégio Jesuíta (emseguida, Vila de São Paulo - 1554-1560), esse 2º Estado do Brasil,ou Pauliceia, formaria uma administração independente da deSalvador, a quem só estaria ligado pelo mar. Seus prováveis limi-tes se estenderiam da Baia da Ilha Grande até a cidade de Lagu-na, no atual Estado de Santa Cataria, ou quiçá até Torres, noextremo nordeste do Estado do Rio Grande do Sul.

O ESTADO CISPLATINOConcretizada a ocupação do Continente do Rio Grande do Sul,feita pelo espanhol D. Pedro Ceballos, em 1763, e se a regiãointeira não fosse depois permutada pela Cidade de Colônia doSacramento (Tratado de Santo Ildefonso, de 1777), o atualEstado do Rio Grande do Sul pertenceria ao Vice-Reino doPrata e, depois da Independência, à Republica Oriental doUruguai, com capital em Montevidéu. A extensão dele iria doRio da Prata, ao sul, até Torres. Talvez fizesse ainda parte des-te Estado Cisplatino, como uma espécie de posto avançado, aatual Ilha de Santa Catarina, pois ela fora descoberta pelonavegante espanhol Juan Diaz de Solis, quando da sua viagema caminho do Rio da Prata, em 1515.

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7

OCUPAÇÕES, POVOAMENTOS E CONQUISTAS

DIVERSAS PODERIAM TER ALTERADO

SIGNIFICATIVAMENTE O MAPA DO BRASIL

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ouroG A R I M P A N D O U M N O V O P A Í S

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ouro G A R I M PA N D O U M N O V O PA Í S

A descoberta das lavras de ouro nas Minas Ge-rais, nos finais do século XVII e início do séculoXVIII, seguida dos achados em Jacobina e no Riodas Contas, na Bahia, nos de Forquilha e Sutil, noMato Grosso, e o que se extraiu no sertão de Guaiás,em Goiás, foi o acontecimento mais espetacular dahistória econômica do Brasil colônia. E tudo porqueprovocou enorme repercussão, tanto para a própriametrópole como para boa parte do mundo. Desde osprimórdios da colonização, acreditava-se que o Brasiltinha ouro e outros metais e pedras preciosas. Só que,passados já dois séculos de ocupação, não haviamsido encontrados em volume significativo.

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Lentamente, a economia colonial abandonou sua predominân-cia extrativista e coletora dos primeiros tempos, do tráfico com pau-brasil e das drogas do sertão, para uma exploração mais racional eestável, graças à implantação dos engenhos de açúcar e das lavou-ras de tabaco que se espalharam por todo o litoral do Nordeste.

Ao redor do final do século XVII, a população brasileira eraestimada em algo como 300 mil povoadores, grande parte delesconcentrados no Nordeste. Calcula-se que havia ainda em tornode 1,5 milhão de índios. Outro pequeno núcleo populacional lusoencontrava-se no Planalto de Piratininga, na atual São Paulo, for-mado pelos bandeirantes. Tipos mamelucos que se dedicavam aprear índios pelo sertão afora, indo inclusive atacar as missõesguaranis, organizadas pelos jesuítas desde os séculos XVI e XVII,no Paraguai e no atual Estado do Rio Grande do Sul.

Foi nesse quadro, de limitado progresso econômico (os portu-gueses começavam a enfrentar a concorrência da produção colo-nial dos holandeses, franceses e ingleses, que implantaram enge-

NO FINAL DO SÉCULO

XVII, POPULAÇÃO

DO BRASIL CONTAVA

COM 300 MIL

POVOADORES E 1,5

MILHÃO DE ÍNDIOS

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nhos açucareiros nas Antilhas), que a Coroa de Portugal decidiu-se por pressionar seus funcionários e demais habitantes, no sentidode estimulá-los, particularmente os paulistas, a que desbravassemo sertão em busca do precioso ouro.

A CORRIDA DO OUROO Padre Antonil, no clássico Cultura e Opulência do Brasil, apon-

ta um mulato que teria acompanhado uma bandeira paulista como oprimeiro a ter encontrado ouro no Cerro Tripuí, nas Minas Gerais.Eram “granitos cor de aço”, que ele vendeu em Taubaté a um preçoirrisório, sem saber o que havia encontrado. Mandaram umas amos-tras para o governador do Rio de Janeiro, Arthur de Sá, e verificou-se que “era ouro puríssimo.” Outros indicam o nome de AntônioRodrigues Arzão, que por volta de 1693 teria garimpado substanciallavra na Casa da Casca, da qual também não chegou a tirar provei-to. Seu concunhado, porém, um certo Bartolomeu Bueno Siqueira,conseguiu tal intento, só que nas barrancas de Itaverava.

Neste cenário, uma data importante foi a emissão da CartaRégia de 27 de janeiro de 1697, que enviava uma ajuda de custos

ouro G A R I M PA N D O U M N O V O PA Í S

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PLANTA DA CIDADE DE OURO PRETO, DOCUMENTO DE AUTOR DESCONHECIDO E PRODUZIDO POR VOLTA DE 1800

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de 600.000 R$/ano ao governador-geral Mem de Sá para auxiliarnas buscas. Dar-se-iam aos paulistas beneméritos “as mesmas hon-ras, e mercês de hábitos, e foros de fidalgos da Casa”, desde queencontrassem e explorassem as lavras auríferas.

Finalmente, em 1º de março de 1697, o agitado governador doRio de Janeiro, Castro Caldas, remetia ao rei o resultado das últi-mas façanhas dos paulistas que haviam encontrado nos sertões deTaubaté “de 18 a 20 ribeiro de ouro da melhor qualidade”.

A notícia da descoberta do metal precioso no interior do Brasil, omaior manancial até então encontrado em todo o Ocidente, provo-cou a primeira corrida do ouro da história moderna – achados só su-perados depois pelos da Califórnia (EUA), em 1848, e o do Yukon(Canadá), em 1890. Antonil observou que a “cada ano vêm nas frotasquantidades de portugueses e de estrangeiros, para passarem às mi-nas. Das cidades, vilas, recôncavos e sertões do Brasil, vão brancos,pardos e pretos, muitos índios de que os paulistas se servem.” Foi ta-manho o fluxo que o rei D. João V resolveu, por lei de 1720, controlara saída dos seus súditos, com medo do despovoamento das aldeias edos campos portugueses. Não evitou porém que, ao longo do século

NOTÍCIA DA

DESCOBERTA DO

METAL PRECIOSO

PROVOCOU A

PRIMEIRA CORRIDA

DO OURO DA HISTÓRIA

MODERNA

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AFLUXO DE EXPLORADORES PARA A REGIÃO DE DIAMANTINA FOI ENORME

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XVIII, 800 mil deles viessem parar nos garimpos. Os navios “da Re-partição do Sul” dirigidos ao porto do Rio de Janeiro, passaram a servigiados e vistoriados, terminando por adotar-se as licenças especiaise o passaporte em 1709 como uma maneira de refrear o fluxo dosaventureiros.

Mesmo na colônia a disparada em massa dos moradores emdireção às minas provocou alarme das autoridades. Gente vinhade Taubaté, de Guaratinguetá, de Santos, do sertão da Bahia e demais longe ainda. Em 1702, o governador-geral do Brasil, D. RodrigoCosta, comunicou ao rei D. Pedro II que a situação tornava-secalamitosa, constatando que as capitanias achavam-se quase de-sertas porque seus moradores, “esquecendo-se totalmente da con-servação das próprias vidas e segurança dos seus mesmos domíni-os”, rumavam para os garimpos. Chegavam lá pessoas de todas ascondições, homens e mulheres, moços e velhos, pobres e ricos,nobres e plebeus, clérigos e religiosos de várias instituições (ospadres foram convidados a se retirarem das Minas em 1738). Inici-ava-se a ocupação do interior do Brasil. A população, naqueleséculo, decuplicou, atingindo a mais de 3 milhões de habitantes,sendo que 650 mil concentravam-se na área das minas.

EVOLUÇÃO DEMOGRÁFICA DA COLÔNIA

ANO ESTIMATIVA DE POPULAÇÃO

1690 184 MIL A 300 MIL

1780 2,5 MILHÕES

1798 3,2 MILHÕES (*)

(*) SUBDIVIDIDOS EM: BRANCOS, 1.010.000 (31%); ÍNDIOS, 250.000 (7,7%); LIBERTOS,

406.000 (12,5%); PARDOS-ESCRAVOS, 221.000 (6,8%); NEGROS-ESCRAVOS, 1.361.000 (42%).

FONTE: CONTRERAS RODRIGUES (IN R. SIMONSEN, HISTÓRIA ECONÔMICA DO BRASIL, P. 271)

OS CAMINHOS DAS MINASDois caminhos para chegar às minas logo foram definidos: o Ca-

minho Geral do Sertão, que acompanhava o vale do Paraíba atravésda Serra da Mantiqueira, e o Caminho Novo, por Pindamonhangaba,de onde se levava uns 20 dias para chegar às lavras.

Para melhor administrar e fiscalizar os achados, a Coroa indicoucomo seu representante um Procurador da Coroa e um Guarda-mor.Estabeleceu ainda uma Casa de Quintar, para arrecadar o quinto (im-posto real). Essa Casa, também conhecida como das Contas, tinha umadministrador, um escrivão e um fundidor, que transformava o ouroem barras, afixando-lhe o cunho real.

ouro G A R I M PA N D O U M N O V O PA Í S

POPULAÇÃO DO

PAÍS DECUPLICOU

NO SÉCULO XVIII,

PASSANDO DOS

3 MILHÕES DE

HABITANTES

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MAPA DA ESTRADA REAL,

ATUAL DESTINO TURÍSTICO,

MOSTRA OS DOIS CAMINHOS

QUE LEVAVAM À REGIÃO DA

EXPLORAÇÃO DE MINÉRIOS

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EMBOABASInevitavelmente, atritos se dariam entre os paulistas, os pri-

meiros chegados às lavras, e os emboabas, expressão que desig-nava os reinóis ou adventícios recém vindos de fora. Diga-seque, desde o início, os paulistas tentaram se precaver fazendocom que a "Gente de Algo" da Paulistânia enviasse, como apoioda Câmara local, em 16 de abril de 1700, uma solicitação aogovernador da praça do Rio de Janeiro, na intenção de resguar-dar para eles as minas recém encontradas, "expondo os direitosplanaltinos acerca das terras minerais e pleiteando para os mes-mos o monopólio delas".

Acontece que, com a chegada quase à galope de forasteiros, omonopólio dos paulistas tornou-se insustentável. Numa populaçãoestimada em 70 mil pessoas por volta de 1710, os paulistas nãoperfaziam mais de mil. Em pouco tempo, a região virou o "País daDesordem". Um dos governadores-gerais da época, D. João deLencastre, estimou, em carta ao reino, ser perigoso para os interes-ses de segurança de el-Rei a enorme concentração de riqueza eopulência em mãos dos paulistas, pois "são capazes de apetecersujeitar-se a qualquer Nação estrangeira que (...) os conserve naliberdade e na insolência com que vivem".

ouro G A R I M PA N D O U M N O V O PA Í S

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CIDADES MINEIRAS VIVENCIARAM GRANDE PROGRESSO E MELHORIAS NO ASPECTO ARQUITETÔNICO

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Deu-se então, como resultado das crescentes desavenças e ri-validades, a chamada Guerra dos Emboabas (1709-10), quando aCoroa apoiou sua gente contra os paulistas, aproveitando-se paraexercer um controle mais firme, semipolicial, sobre a região.

Derrotados, muitos dos paulistas resolveram emigrar para ou-tras áreas, em busca de outros campos, como os de Goiás e doMato Grosso, onde novas jazidas foram descobertas, ou ainda de-dicar-se à pecuária e ao tropeio do gado, indo se estabelecer naspartes mais meridionais da colônia, nos campos de Curitiba e, bemmais ao sul, no Rio Grande do Sul. Vezes sem conta entraram noUruguai adentro, e mesmo em Corrientes e Missiones, na Argen-tina, para chegarem-se às bestas. Lá, aproveitaram-se da existên-cia de imensas manadas de gado chimarrão, isto é, animal selva-gem, xucro, que crescia vegetativamente nas várias vacarias co-nhecidas: a das Missões, a dos Pinhais e a do Mar.

Assentaram-se eles, a partir de então, como estancieiros, cria-dores, tropeiros e comboieiros de gado, que vendiam nas feiras deSorocaba (SP). Outros ainda irão se fixar em regiões mais próxi-mas às minas, tanto no interior de São Paulo, dedicados às “drogasda terra”, como na atual área do triângulo mineiro, também ca-racterizada pela terreno apropriado à criação.

PRESENÇA DE MILHARES DE FORASTEIROS E PAULISTAS TRANSFORMOU A REGIÃO NO “PAÍS DA DESORDEM”

EXPULSOS DAS

MINAS, MUITOS

PAULISTAS VIRARAM

ESTANCIEIROS,

CRIADORES E

TROPEIROS

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VILA RICA DE OURO PRETOA política da Coroa portuguesa na região das minas recém-des-

cobertas foi procurar fixar a população em aldeamentos. Para tanto,o governador Antônio Albuquerque tratou de fundar vilas, tais comoa de Ribeirão do Carmo, chamada Mariana (abril de 1711), VilaRica de Ouro Preto (julho de 1711), Vila Real de Sabará (tambémjulho de 1711) e, entre 1713-18, as vilas de Nova Rainha, de Pitanguí,a de São João del Rei, de São José e a Vila do Príncipe.

De certa forma esse trabalho foi facilitado pela mudança no pro-cesso de extração do ouro. Numa primeira fase, de 1693 a 1720, oschamados faiscadores (que trabalhavam de forma avulsa) formavamuma população ambulante, cigana, que se deslocava atrás do ouroaluvial, indo de lavra em lavra, de barranca em barranca. Posterior-mente, após 1720, com o esgotamento desse processo, restava o ouroda montanha, que exigia outros recursos técnicos de mineração, es-cavação e estocagem, obrigando os garimpeiros a construírem suascasas próximas das datas de minas a que tinham direito explorar.

Situada na Serra de Ouro Preto, esporão da Serra do Espinhaço,a 1.061 metros de altitude, Vila Rica de Ouro Preto converteu-serapidamente no maior garimpo da lavra do ouro da região. A par-tir de 1711, tornou-se a capital da Província, situação que man-teve até 1897. Nela construíram-se as mais belas igrejas das Minas

ouro G A R I M PA N D O U M N O V O PA Í S

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VILA RICA POR VOLTA DE 1835 (ACIMA). AO LADO, IMAGENS QUE MOSTRAM O

MODO DE MINERAR E RETIRAR (ALTO) E DE LAVAR DIAMANTES

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Gerais, tornando-se um centro cultural e civilizador. Acolheu asliras musicais, os escultores, pintores, artesãos e os arquitetos. Foitambém a sede do primeiro movimento literário expressivo do Bra-sil, a chamada Escola Mineira, ou Movimento Arcadiano, que teveem Cláudio Manuel da Costa, Tomás Antônio Gonzaga e AlvarengaPeixoto seus representantes mais retumbantes e consagrados. Tor-naram-se o núcleo da consciência nacional, quando um grupo deintelectuais, funcionários, padres e militares imaginaram a possi-bilidade de livrar as Minas do colonialismo português, no mal-sucedido episódio da Inconfidência Mineira de 1789.

A INCONFIDÊNCIAA revolta anticolonialista, antecedida pela rebelião malograda de

Felipe dos Santos, de 1720, também na Vila Rica, foi planejada paraeclodir no dia do lançamento do odiado “imposto da derrama”, umataxação suplementar criada pelas autoridades portuguesas para com-pletar a cota tributária da região. Traídos que foram os conspiradorespor Joaquim Silvério dos Reis, que os denunciou em carta às autori-dades, o único entre os prováveis insurgentes a ser executado foi oalferes Joaquim da Silva Xavier, o Tiradentes. Enforcado e esquartejadono Rio de Janeiro, em 21 de abril de 1792, seus restos foram expostosna estrada que ligava o Rio à região das minas. Os demais patriotasforam condenados ao degredo em Angola e Moçambique, na África.

Ouro Preto também foi onde dois grandes mestres da arte bar-roca atuaram: Aleijadinho, considerado o único gênio artístico doBrasil colonial, cujas obras-primas podem ser apreciadas na Igrejade São Francisco de Assis e na fachada da Igreja da Nossa Senho-ra do Carmo, e Mestre Ataíde, pintor das abóbadas das mesmasigrejas. Na música, destacaram-se José Joaquim Emérico e o PadreJosé Maurício, este considerado o primeiro da tríade de grandescompositores brasileiros, com Carlos Gomes e Villa Lobos.

SONEGAÇÃOA legislação que tratava da exploração das minas derivava das

Ordenações Filipinas (Título XXXIV, livro 2) e determinava queo descobridor de veeiros ou minas de prata, de ouro ou qualqueroutro metal – considerados propriedade da Coroa – necessitavada autorização especial do provedor de metais para sua explora-ção. Cabia a este demarcar ao concessionário um quadrilátero de60 x 8 varas. Os regimentos posteriores, de 1603 e 1618, aumenta-ram a extensão do quadrilátero, até que, com o 3º regimento, o de1702 , fixou-se a medida entre 178m x 88m, introduzindo tambémas chamadas datas-inteiras.

O descobridor do veio era obrigado a ceder uma data parael'Rei e outra para o Guarda-mor; além disso, era constrangido a

ouro G A R I M PA N D O U M N O V O PA Í S

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TIRADENTES (ACIMA) FOI

O ÚNICO INCONFIDENTE

PRESO E MORTO. AO

LADO, IGREJA DE SÃO

FRANCISCO DE ASSIS,

LEGADO ARQUITETÔNICO

DO BARROCO MINEIRO

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pagar o quinto de tudo aquilo que garimpasse. Devido a tais ex-cessos tributários, foi fatal que a sonegação imperasse. O sábioAlexander von Humbold conjecturou que de 20% a 35% do ourofoi contrabandeado do Brasil.

O VOLUME EXTRAÍDOQuanto ao teor do ouro brasileiro, ele alcançava a média de 21

a 22,5 quilates, sendo de cor variável. Havia, em abundância, omais chamativo deles, o brilhante ouro amarelo, e também um corde latão, outro, chamado de ouro preto, e finalmente um aver-melhado ou cor de bronze. Existia até um que apelidavam de ouropodre, pela inexistência de brilho.

Quanto às avaliações do seu valor e do peso extraído, são muitodiversas as cifras. O Barão von Eschwege estimou em 130 milhõesde libras esterlinas, para um total de 951.255 toneladas, entre 1600-1800. Pandiá Calógeras calculou algo próximo: 135 milhões de librasesterlinas e 983 toneladas entre 1700-1801. Já o Barão von Humboldchegou a um valor de 194 milhões de libras esterlinas, mas cobrindoum período maior – de 1500 a 1803. Seja como for, para Roberto C.Simonsen, em História Econômica do Brasil, entre 1700 e 1770 aprodução do ouro brasileiro alcançou cerca de 50% do que o restodo mundo extraiu entre os séculos XVI e XVIII.

QUANTIDADES DE OURO EXTRAÍDAS

VINTÊNIO TOTAL EM KG

1691– 1700 15.000

1701– 1720 55.000

1721– 1740 177.000

1741– 1760 292.000

1761– 1780 207.000

1781– 1800 109.000

FONTE: ROBERTO SIMONSEN, HISTÓRIA ECONÔMICA DO BRASIL, P. 237

ouro G A R I M PA N D O U M N O V O PA Í S

120

NA PÁGINA AO LADO,

DESENHO QUE RETRATA A

MINERAÇÃO DE

DIAMANTES, DE AUTORIA

DO INGLÊS JOHN MAWE

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O TRATADO DE MADRIO ano de 1750 não se caracterizou apenas ser esta a metade cro-

nológica do século XVIII. Foi também um divisor de águas. Nas rela-ções do reino de Portugal com o reino da Espanha, marcou a revisãodo Tratado de Tordesilhas, o qual, desde o final do século XV, separouos interesses dos dois reinos ibéricos. É também o ano em que chegaao cargo de primeiro-ministro português o Marquês de Pombal. Man-dão e autoritário, classificado por boa parte da historiografia como “odéspota esclarecido”, Pombal praticou, durante os 27 anos em queempalmou o governo, a mais completa concentração do poder porparte do Estado que Portugal até então conheceu.

A revisão do Tratado de Tordesilhas deu-se pela assinatura, emjaneiro de 1750, do Tratado de Madri, mais tarde retomado, revisadoe aperfeiçoado pelo Tratado de Santo Ildefonso, de 1777. O represen-tante português, o Visconde de Cerveira, instruído pelo secretário dorei D. João V (o brasileiro Alexandre de Gusmão), propôs que umnovo critério fosse adotado para a delimitação das fronteiras entre osdois impérios. Nada mais de tentar inutilmente seguir ao meridianode Tordesilhas, que ninguém mais obedecia, mas buscar, dentro dasmodernas normas do direito internacional, limites concretos, aciden-tes geográficos facilmente identificáveis, "como a origem do curso dosrios e os montes mais notáveis". Além disso, concordaram em seguir oprincipio denominado utis possidetis, em que se reconhecia como parteintegrante de determinado reino aquele território que já estivesseocupado majoritariamente por alguns dos seus súditos. A propostacompreendia uma mudança figurativa da linha da fronteira: a substi-tuição de uma linha reta (a de Tordesilhas) por uma curva (acompa-nhando a sinuosidade das margens dos rios). No que tange às ques-tões fronteiriças do Mato Grosso e da Amazônia, não houve maioresproblemas. A vastidão da área selvática, desolada e escassamentepovoada, praticamente não produzia atritos entre os lusos e os espa-nhóis. Tanto é que o governador-geral do Grão-Pará, Mendonça Fur-tado, irmão do Marquês de Pombal, nem compareceu ao encontro docomissário espanhol para acertar as tratativas dos limites em meioàquela mata toda. Fato que ele atribuiu à má vontade dos jesuítas,que não lhe cederam a tempo os índios remeiros, atiçando a fúria dopoderoso irmão contra os padres da Companhia de Jesus.

Na fronteira sul dos dois impérios a situação, entretanto, foibem outra. O verdadeiro entrave histórico a qualquer acordo eraa existência da cidade portuguesa de Colônia do Sacramento, fun-dada em 1680, em frente a Buenos Aires. Ela não só marcava apresença lusa no rio da Prata, como atuava como um centro decontrabando na tentativa de se obter parte da prata originada dasminas de Potosí, que por ali desaguava em barcos. Colônia do Sa-cramento foi palco de árduas e renhidas disputas, até que ambas

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APELIDADO “O DÉSPOTA

ESCLARECIDO”, MARQUÊS

DE POMBAL NUTRIA FORTE

ANTIPATIA PELOS JESUÍTAS.

AO LADO, MAPA DE SAMUEL

FRITZ, DE 1707,

MOSTRANDO A REGIÃO DO

RIO AMAZONAS E A

LOCALIZAÇÃO DE UMA

MISSÃO JESUÍTICA

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MESMO COM A REVISÃO DO TRATADO DE TORDESILHAS, REGIÃO DO

RIO AMAZONAS NÃO CAUSOU DISCUSSÕES ENTRE LUSOS E ESPANHÓIS

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as partes convenceram-se da necessidade de fazer uma permuta.Como os espanhóis, desde o século XVII, graças às penetra-

ções jesuítas vindas do Paraguai, mantinham o controle de quasea metade do território que hoje pertence ao estado do Rio Grandedo Sul, propuseram trocar esta fatia de terra pela posse definitivada Colônia do Sacramento, que ainda continuava na guarda dosportugueses. Pode parecer estranho, mas é isso mesmo: uma sócidade por metade de uma província!

No que toca aos grande rios, pode-se dizer que acertou-seque o rio Amazonas, quase na sua integridade, pertenceria a Por-tugal e, em troca, os lusos reconheceriam que o rio da Prata fica-ria no controle definitivo da Espanha.

AS MISSÕESA região que hoje engloba o estado argentino de Missiones e a

República do Paraguai formava, até a metade do século 18, o notá-vel complexo socioeconômico das Missões Jesuíticas. Estes enormesaldeamentos, muito bem edificados, dotados de infraestrutura au-tônoma e voltados para o cultivo da erva-mate, com vastas estân-cias para a criação de gado e regidos por um padre jesuíta, erampovoados majoritariamente por índios guaranis e dominaram aque-las vastas extensões de terra por dois séculos.

Reconhecidas como um extraordinário experimento social, semno entanto proporem-se a ser comunidades comunistas, as mis-

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PROJETO DOS JESUÍTAS ERA INSTALAR UMA REDE DE REDUÇÕES DO PARAGUAI ATÉ O ATLÂNTICO

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sões, desde então, foram objeto de vastos e divergentes estudos etornaram-se a mais bem sucedida síntese do projeto de catequizaçãodos indígenas; as pérolas mais valiosas do que o padre Montoyaclassificava como “a conquista espiritual”.

A primeira implantação deste projeto, no lado que hoje perten-ce ao Brasil, deu-se em 1610 na região de Guaíra, no atual estadodo Paraná. Ali ficaram pouco tempo, até 1628, quando retiraram-separa mais ao sul, para as chamadas reduções do Tapê, fugindo dasinvestidas dos mamelucos paulistas. Em 1626 o jesuíta RoqueGonzales, com a imagem da Nossa Senhora da Conquista em pu-nho, atravessou o rio Uruguai em direção ao Rio Grande do Sul,inaugurando a redução de São Nicolau. Terminou ele sendo marti-rizado, juntamente com o padre Alonzo, pelos guaranis em 1628.Sabe-se que a ambição deles era instalar uma rede de reduçõesque, saindo do interior do Paraguai, chegasse até ao litoral atlânti-co, uns mil quilômetros adiante.

Objetivo que não se concretizou, devido aos sucessivos assaltosdos mamelucos paulistas que vinham atrás da mão-de-obra guarani,amansada pelo catecismo e pelo sedentarismo. No século XVIII, osjesuítas retomaram a construção da missões do lado esquerdo dasmargens do rio Uruguai, formando os chamados Sete Povos das Mis-sões (São Nicolau, São Luis, São Lourenço, Santo Ângelo, São João,São Miguel e São Borja). Era exatamente essa área que a Espanhaentregou para o império português.

ROQUE GONZALES

FUNDOU SÃO NICOLAU

EM 1626, QUE MAIS

TARDE, NO SÉCULO

XVIII, FORMARIA

OS SETE POVOS

DAS MISSÕES

125

ÁREA DOS SETE POVOS DAS MISSÔES (ACIMA, SÃO MIGUEL) FOI PERMUTADA PELA COLÔNIA DE SACRAMENTO

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A ERA POMBALO ano de 1750, como já se disse, também assinalou uma pro-

funda alteração na política interna de Portugal, com reflexos emtodo o seu império colonial. Foi a data em que Sebastião de Carva-lho, o Conde de Oeiras, mais tarde Marquês de Pombal, tornou-seo primeiro-ministro do Reino de Portugal, no reinado de D. José I.Foi-se D. João V, o rei bonachão, carola e perdulário, e sucedeu-ono mando de fato do reino o referido ministro tirânico. O ReinoLuso, abalado pelo terremoto que destruiu Lisboa em 1755, vendo,impotente, diminuírem ano a ano os proveitos da extração do ourobrasileiro, não podia, segundo ele, vacilar.

Entre outras coisas, era insuportável para Pombal a existênciade uma casta aristocrática independente da vontade do rei, e,mais ainda, a existência de uma poderosa ordem religiosa como aCompanhia de Jesus, completamente autônoma, vivendo como umEstado dentro do Estado. Como lembrou Charles Boxer, "Pombalnão admitia nenhuma tirania além da sua".

A alta nobreza ele neutralizou com a prisão e brutal execuçãopública dos Marqueses de Távora e do Duque de Aveiro, suspeitosde envolvimento no atentado que D. José I sofreu, sem maioresconsequências, ocorrido em setembro de 1758. Atacou-lhes a se-guir, como detalhou Maria Tucci Carneiro, o espírito de casta,através do Alvará de Lei Secretíssimo, de outubro de 1768, e pelaCarta de Lei de 1773, que, retomando as antigas posições do padreAntônio Vieira a favor da “gente da Nação”, como se designavamos judeus e muitos dos conversos, abolia a separação existente en-tre cristãos-velhos (em geral gente da nobreza) e os cristãos-novos(pertencentes à burguesia e às classes médias mercantis).

Pombal repreendeu fortemente a prática dos casamentos fe-chados, exclusivos dos assim auto-designados Puritanos, famíliasdas grandes linhagens que se gabavam de não serem “infectas”,isto é, de não correr em sua veias qualquer sangue judeu ou mouro,orgulhosas de serem “fidalgo e cristão velho de tempo imemorialsem fama ou rumor em contrário”. Desta forma, complementadopelos alvarás de 1755 e 1757, que diziam que "o comércio nãoprejudica a fidalguia de quem o exerça”, Pombal abriu caminhopara a igualdade social e política entre aristocratas e burgueses,dando foros de nobreza às gentes vindas das práticas mercantis. Odinheiro originado do mercado e dos investimentos, contrapondo-se ao das rendas fundiárias e sinecuristas, deixou de ser estigmati-zado, prenunciando o capitalismo burguês moderno.

Nas colônias, tais medidas conduziram à gradativa superação dosentraves que impediam os miscigenados (mulatos e cafuzos) de as-cenderem na estrutura administrativa e jurídica, bem como estimula-ram a tolerância para com a mistura racial, especialmente no Brasil.

ouro G A R I M PA N D O U M N O V O PA Í S

POMBAL ABRIU

CAMINHO PARA A

IGUALDADE SOCIAL E

POLÍTICA ENTRE

ARISTOCRATAS E

BURGUESES

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PADRE ANTONIO VIEIRA FICOU CONHECIDO POR SUAS POSIÇÕES FAVORÁVEIS À “GENTE DA NAÇÃO”, COMO

ERAM DESIGNADOS OS JUDEUS. NO ALTO, IMAGEM DA RUA DOS JUDEUS, EM RECIFE, POR VOLTA DE 1600

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ouro G A R I M PA N D O U M N O V O PA Í S

A CAMPANHA ANTIJESUÍTICAA vez dos jesuítas sentirem a pesada mão do ministro chegou

no ano seguinte. Em 3 de setembro de 1759, adotando de maneiraintransigente os princípios do estado secular, Pombal os prescreveude todo o Reino de Portugal, sequestrando-lhes os bens, fechan-do-lhes os colégios e as missões, prendendo ou expulsando a maioriados padres. Somente do Brasil mais de 500 deles foram desterra-dos, muitos conduzidos presos, acusados de viverem à custa dosindígenas, a quem Pombal emancipou definitivamente.

O pretexto encontrado por Pombal era de que os jesuítas, alémde viverem de privilégios e isenções, estavam sabotando o Tratadode Madri, negando-se a abandonar as missões, insuflando osguaranis à resistência. Lançou também sobre eles as suspeitas deterem maquinado diabolicamente, com os invisíveis fios da intri-ga, o atentado contra D. José I.

Não satisfeito, Pombal ativou o corpo diplomático para con-vencer os monarcas da França e da Espanha a associarem-se naliquidação da Companhia de Jesus em seus respectivos reinos,o que eles o fizeram, entre 1764 e 1767, marcando assim a defi-nitiva vitória do moderno estado secular, um dos axiomas bási-cos do Iluminismo, sobre aquela sobrevivência da teocraciacontra-reformista.

No campo da propaganda política patrocinou ele igualmente apublicação de uma enorme obra em três volumes, a Dedução Cro-nológica, que imputava aos jesuítas todas as desgraças que ocorre-ram em Portugal naqueles últimos dois séculos. O ataque que de-terminou fosse feito aos Sete Povos das Missões, complexo das re-duções jesuíticas situado no oeste do Rio Grande do Sul, foicelebrizado num poema épico chamado O Uraguay, composto pelojovem Basílio da Gama, que enaltecia o feito pombalino.

O JESUITISMO E O ILUMINISMOAtribui-se a maior parte da lenda sobre os grandes tesouros

que o “governo de Los Padres” teria amealhado nas reduções ame-ricanas às falsas informações que Pombal divulgara pelo resto daEuropa. Inclusive o filósofo Voltaire dedicou-lhes, talvez por forçadessa propaganda negativa, uma denegridora passagem na suacélebre novela, aparecida em 1759, sobre as atribulações do jovemCândido, dizendo que, durante a curta passagem do anti-heróipelo Paraguai, ele e o superior jesuíta que o recebeu para um al-moço fizeram sua refeição “em baixela de ouro, enquanto osparaguaios comiam milho em escudelas de pau, ao ar livre, sob oardor do sol". No capítulo 154 do seu Essai sur les moeurs, Voltairevoltou à carga contra os jesuítas, batendo na tecla de que viviama tripa forra, explorando aqueles desgraçados.

128

BASÍLIO DA GAMA

ENALTECEU O ATAQUE

AOS SETE POVOS DAS

MISSÕES EM SEU

FAMOSO POEMA. NA

PÁGINA AO LADO, A

FUNDAÇÃO DE SÃO

PAULO POR

MISSIONÁRIOS DA

COMPANHIA DE JESUS

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PROPAGANDA ANTIJESUÍTICA FEITA POR POMBAL INFLUENCIOU

ATÉ MESMO O FILÓSOFO VOLTAIRE. A PRESSÃO DO PORTUGUÊS

SURTIU EFEITOS TAMBÉM JUNTO À FRANÇA E ESPANHA

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Portanto, bem ao contrário do que durante algum tempo umaparte da historiografia afirmou, de terem sido as reduções jesuíticasdestruídas pelo crescimento dos interesses mercantilistas, não fo-ram as razões estreitas e mesquinhas da economia as responsáveispelo desastre social que a supressão delas representou. Em verda-de, pesaram motivos de Estado e de concepção de mundo. Comomostrou Arno Kern, o emergente despotismo ilustrado, con-centrador e autoritário, não podia conviver pacificamente com umaordem religiosa que reservara para si amplas responsabilidades nagestão das coisas seculares.

O CONFLITO ENTRE DUAS CONCEPÇÕES DE MUNDOA Companhia de Jesus, nos dois séculos em que atuou como

um empreendimento de catequese auxiliar da política colonial,tornara-se um enorme empreendimento, um Estado dentro do Es-tado, que formou um verdadeiro império teocrático administran-do uma confederação de reduções espalhadas por boa parte daAmérica Ibérica. Além disso, os inacianos eram produto da Con-tra-reforma católica – os filhos do Concilio de Trento do séculoXVI –, exatamente o que os administradores e pensadores do sé-culo XVIII desejavam superar na sua expectativa de modernizar oEstado e a sociedade. O modelo que os jesuítas aplicavam nasreduções era cristão-coletivista, quando, desde a expansão dasideias das luzes no século XVIII, elaborava-se, para superá-la, umanova concepção de sociedade: a visão burguesa do mundo, secu-lar e individualista. Desta forma, os guaranis foram vitimados pelodesacerto entre dois projetos: o dos sacerdotes católicos e o dosiluministas deístas, que se excluíam mutuamente e que termina-ram por fazer desabar as reduções.

CONSEQUÊNCIAS E EFEITOS DA DESCOBERTA DO OUROPodemos dividir os efeitos da descoberta do ouro sobre o Brasil

colônia em três grandes dimensões: o primeiro deles é de ordemgeoadministrativa, na medida em que deslocou em definitivo ocentro da atividade econômica e o aparelho político-administrati-vo para o eixo centro-sul do país. O Rio de Janeiro tornou-se em1763 a capital do Vice-reino devido à supressão do Estado doMaranhão e sua integração ao Estado do Brasil, formando ambosuma nova entidade político-administrativa. Estimulou a fixaçãoda população, que até então vivia, como já foi dito, tal um caran-guejo preso ao litoral ou como erráticos nômades vagando aos ban-dos pelos sertões e pradarias do país. Minas Gerais tornou-se, porsua vez, um ponto de partida para a ocupação de outras regiões atéentão desertas de civilização, como Goiás e Mato Grosso. Foi látambém que se gerou o primeiro complexo urbano composto pelas

MINAS GERAIS

TORNOU-SE PONTO DE

PARTIDA PARA A

OCUPAÇÃO DE

REGIÕES COMO GOIÁS

E MATO GROSSO

ouro G A R I M PA N D O U M N O V O PA Í S

130

AO LADO, MAPA DA

REGIÃO DAS MINAS, POR

VOLTA DO SÉCULO XVIII

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vilas auríferas e diamantíferas, fazendo nascer uma sociedade di-ferenciada da que existia no Nordeste ou em São Paulo. Demo-graficamente, segundo Contreras Rodrigues, deu-se o maior saltopopulacional até então visto: de 300 mil habitantes em 1690, para3,25 milhões em 1798!

Ouro branco! Ouro preto! Ouro podre!De cada ribeirão trepidante e de cada recostoDe montanha o metal rolou na cascalhadaPara fausto d’El-Rei: para a glória do impostoQue restou do esplendor de outrora? Quase nada:pedras....templos que são fantasmas ao sol-posto.

Manoel Bandeira, em Ouro Preto – Lira dos 50 anos

Economicamente, representou a formação do primeiro merca-do interno do Brasil colonial. Até então, toda a produção – açú-car, tabaco, algodão e produtos de extração diversos – tinha desti-no externo. Como as terras ao redor das minas eram estéreis, osalimentos custavam fortunas. Estimulou isso a expansão da cria-ção do gado para corte e para carga, fazendo com que vastas re-giões fossem transformadas em estâncias de criação, desde Campi-nas, em São Paulo, até Vacaria e Soledade, no Rio Grande do Sul.Foi também para abastecer as minas que surgiu a indústria docharque, ao redor de 1780, na área de Pelotas, espalhando-se parao Vale do Jacuí, também em território sul-rio-grandense.

ouro G A R I M PA N D O U M N O V O PA Í S

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ACIMA, VISTA DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO EM 1775, EM DESENHO A BICO DE PENA DE AUTORIA DE LUÍS DOS SANTOS VILHENA.

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CICLO DO OURO GEROU PELA PRIMEIRA VEZ UM MERCADO

INTERNO FORTE E ESTIMULOU PRODUÇÃO DE GADO

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ABAIXO, HABITANTE DE GOIÁS, NA VISÃO DE JOSEPH-LOUIS LEBORNE (1835)

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ouro G A R I M PA N D O U M N O V O PA Í S

DESPERDÍCIOO Rio de Janeiro tornou-se o principal porto do país, simulta-

neamente o maior mercado escravista e exportador de mineral pre-cioso da colônia. Nunca se importaram tantos escravos de uma vezsó como no auge da exploração aurífera, entre 1730-50, fazendocom que, juntamente com os pardos escravizados, atingissem ototal de 1,58 milhão, ou 48,8% da população existente!

Social e culturalmente, a descoberta das minas fez com quesurgisse pela primeira vez no Brasil colônia uma classe média deartesãos, de profissionais das minas, de comerciantes e funcionári-os, de militares, de artistas e músicos, além de uma poderosaplutocracia que enriquecera com o ouro. Foram eles que esboça-ram, ainda que fracassada, a primeira tentativa de independên-cia do Brasil. Os seus intelectuais e poetas tiveram atuaçãomarcante na vida cultural das Minas Gerais, mesmo que temáticae esteticamente dependentes do movimento arcadiano europeu.O barroco mineiro, estilo predominante na construção de casas,de igrejas e de palácios, tem sido apontado como a mais bela he-rança dos tempos do ouro.

A maior crítica feita à descoberta é a de que bem pouco doouro sobrou para o Brasil. Ou, como disse o poeta, restaram-nos“Pedras....templos que são fantasmas ao sol-posto”. Gastou-seem escravos e oferendas religiosas, capelinhas e igrejas. Ao con-trário de outras regiões do mundo, onde se descobriram minasvaliosas, como na Califórnia em 1848-9; na Austrália, em 1851;na África do Sul, em 1886; e no Alasca, em 1896, o ouro brasi-leiro não provocou a emergência de uma sociedade fabril. NoBrasil, o ouro veio e foi-se com o vento. Alguns responsabilizamo Tratado de Methuen, assinado por Portugal com a Inglaterraem 1703; outros, ainda, o decreto anti-industrial da rainha D.Maria I, de 1785, que vedava a instalação de manufaturas nacolônia. A resposta a essas questões encontra-se em Portugal enão só no Brasil.

AS CONSEQUÊNCIAS PARA PORTUGALOs historiadores apontam D. João V, um rei carola gastador,

como um dos responsáveis pelo completo desperdício do ouro vin-do do Brasil. Desbaratou-o em igrejas, capelinhas, doações aospadres, em missas de encomenda e no faustoso Palácio-conventode Mafra, com 4 mil metros quadrados de área construída, inau-gurado em 1730. Como Voltaire deixou dito dele, "D. João V, quan-do queria uma festa, ordenava um desfile religioso. Quando que-ria uma construção nova, erigia um convento...". Manteve, ainda,como casta privilegiada, um corpo sacerdotal de 200 mil integran-tes, em um país cuja população beirava 3 milhões de habitantes.

DESCOBERTA DO

OURO FEZ SURGIR O

BARROCO MINEIRO E

UMA ATÉ ENTÃO

INÉDITA CLASSE

MÉDIA NO BRASIL

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DECORAÇÃO DE IGREJAS

DEIXOU HERANÇAS VIA

BARROCO, MAS FOI

UM DOS ELEMENTOS

QUE CONTRIBUIU PARA

O DESPERDÍCIO DO

OURO BRASILEIRO

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... quanto maior for a massa de ouro na Europa, tantomais Portugal será pobre, tanto mais será uma provínciada Inglaterra, sem que por isso ninguém seja mais rico.

Montesquieu, em Enciclopédia (Século XVIII)

D. João V, rei faustoso, entre fidalgos e criados, calculagrandes despesas para os festins projetados. Ai, quantoveludo e seda, e quantos finos brocados!(...) ai, como está com seus cofres completamente arrasados.Ai, que mosteiro, ai, que torres, ai, que sinos afinados!

Cecília Meirelles, em O Romanceiro da Incofidência

Igualmente responsabilizam o Tratado de Methuen, de 1703,que tornou Portugal dependente dos "panos ingleses" e um virtual"vassalo econômico" da Inglaterra, inibindo-lhe a possível indus-trialização. Como escreveu então o Abbé de Pradt: "Portugal exis-tia somente para a Inglaterra. Estava, por assim dizer, inteiramenteabsorvido por ela. Foi para ela que o vinho floresceu no Porto, quea árvore das Hespérides carregou-se com seus frutos dourados,que a oliva difundiu suas ondas doces e ricas: foi para ela que o soldo Brasil endureceu o diamante no seio da terra e foi para ela quePortugal tornou suas margens e seu solo inóspitos para a indústria".

Na verdade, a responsabilidade deve ser assumida coletivamen-te, isto é, por toda a sociedade portuguesa. Nem um rei ou um trata-do podem ser apontados como os exclusivos culpados. Ela, a socie-dade lusa, desde os tempos medievais adotara uma posição deatravessadora, na medida que seus portos, Lisboa e o Porto, torna-ram-se simples intermediários entre as riquezas vindas, primeiro, daÁfrica, e, em seguida, das Índias e do Brasil, e o restante da Europa.Com a expulsão final dos judeus – exigência da Inquisição, acatadapor D. João III em 1536 – ficaram desprovidos de uma elite de finan-cistas e de pessoas de classe média empresarial que poderiam teraplicado mais produtivamente o ouro brasileiro. Carentes detecnologia, de engenho e de capacidade de empreenderem fábricasmodernas que superassem a rotineira e limitada produção artesanal,terminaram por desbaratar tudo em gastos improdutivos.

Fernando Novais, por sua vez – numa tese original – afirma queaquela ligação com a Inglaterra, que muitos historiadores reputa-ram como nociva, foi de fato o que salvou Portugal de perder seuimpério colonial bem antes do tempo. A histórica subordinação dapolítica portuguesa aos interesses ingleses permitiu que o pequenoreino encontrasse abrigo no amplo guarda-chuva protetor do pode-roso Império Britânico, dando-lhe uma inesperada sobrevida.

ouro G A R I M PA N D O U M N O V O PA Í S

APESAR DOS GASTOS

EXORBITANTES, DOM

JOÃO V NÃO FOI O

ÚNICO RESPONSÁVEL

PELO DESPERDÍCIO DO

OURO BRASILEIRO

136

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D. JOÃO V (ACIMA) FOI

ACUSADO DE PERDULÁRIO

COM A RIQUEZA EXTRAÍDA

NO BRASIL. AO LADO,

MAPA DO POVOAMENTO

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ouro G A R I M PA N D O U M N O V O PA Í S

O FRACASSO DO INDUSTRIALISMOSe fossem os lusos dotados, ainda que minimamente, dos mo-

dernos conhecimentos mecânicos, ou que pelo menos demonstras-sem interesse neles, seria inevitável que os trouxessem na atravessiado Atlântico e os aplicassem no Brasil, como ocorreu com os ingle-ses que emigraram para as colônias americanas e implantaram naNova Inglaterra um respeitável parque fabril ainda antes da Inde-pendência.

Exemplo dessa inapetência lusa foi o fracasso da políticamanufatureira estimulada pelo Marquês do Pombal a partir de 1759– uma retomada do pequeno surto fabril de 1720-40 –, quando odéspota, com o fito de limitar a influência do ingleses, determinouque se concedessem insumos para a instalação de fábricas "de pa-nos de lã, tecidos de algodão, sedas, chapéus, tapeçarias, fundi-ção, serralharia, relojoaria, botões e vidro". Esperava ele que aproliferação delas, graças à importação de técnicos estrangeiroslargamente favorecidos pelo estado, servissem "de escola e incen-tivo para os nacionais".

Infelizmente, como se constatou, isso não se verificou: as ma-

CHARQUEADAS

(ACIMA) SE

DESENVOLVERAM

EM ESPECIAL NA

METADE SUL DO

TERRITÓRIO

GAÚCHO

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nufaturas não prosperaram, não conseguiram superar o universoartesanal majoritário, nem fizeram com que "se apresentassem vo-luntários a querer copiar-lhes o exemplo." Por Pombal negar-se aaceitar a dolorosa realidade que dizia da falta absoluta de vocaçãodos súditos de D. José I pelas artes mecânicas, e pelas artes domoderno capitalismo em geral, o tesouro real foi obrigado a dis-pender "rios de dinheiros" na manutenção daquela ficção que setornara a política industrial portuguesa.

Enquanto isso, nas 13 colônias dos ingleses na América do Norte,apesar das proibições e punições estabelecidas pela metrópole, oscolonos desenvolveram um adiantado sistema de fabricação autô-nomo. O resultado é que o déficit da balança comercial de Portu-gal com a Inglaterra fez com que o ouro terminasse nas mãos dosbanqueiros ingleses, que chegaram a receber 50 mil libras por se-mana. Virgílio Noya Pinto calcula que da produção aurífera regis-trada entre 1735-39, numa média de 14 toneladas anuais, os ingle-ses ficaram com 60% dela. Estes, sim, deram um fim útil àquelariqueza toda: financiaram com o ouro extraído do Brasil a Revolu-ção Industrial do século XVIII.

INDÚSTRIA DO

CHARQUE NASCEU

PARA ALIMENTAR A

REGIÃO DAS MINAS,

MAS A INDÚSTRIA

MANUFATUREIRA NÃO

PROSPEROU

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