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“GASTRONOMIA E VIZINHANÇA” Palestra pelo DR JOÃO MONARCA PINHEIRO pág. 1 ROTARY CLUB DE ÉVORA . REUNIÃO DE COMPANHEIRISMO NA QUINTA DIMENSÃO EM 25 DE JULHO DE 2006 POVO SULITÁRIO/SOLITÁRIO/SOLIDÁRIO, COZINHA ALENTEJANA E BOA VIZINHANÇA Parafraseando Platão, quando somos convidados para o “banquete do bem” devemos àqueles que nos convidam a gratidão de nos reconhecerem merecedores de nos sentarmos à mesa da melhor humanidade. Assim, solicitado pelo Rotary Club de Évora para apresentar uma comunicação sobre cozinha alentejana, procurei relacionar o objectivo essencial desta organização mundial - a solidariedade universal - com um dos valores mais genuínos da identidade transtagana: a boa vizinhança, uma das nossas maneiras de sermos solidários. Vou, assim, falar-vos primeiro do conceito de solidariedade, tentando a sua caracterização etimológica e conceptual-significativa.

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POVO SULITÁRIO/SOLITÁRIO/SOLIDÁRIO,

COZINHA ALENTEJANA E BOA VIZINHANÇA Parafraseando Platão, quando somos convidados para o “banquete do bem” devemos àqueles que nos convidam a gratidão de nos reconhecerem merecedores de nos sentarmos à mesa da melhor humanidade. Assim, solicitado pelo Rotary Club de Évora para apresentar uma comunicação sobre cozinha alentejana, procurei relacionar o objectivo essencial desta organização mundial - a solidariedade universal - com um dos valores mais genuínos da identidade transtagana: a boa vizinhança, uma das nossas maneiras de sermos solidários. Vou, assim, falar-vos primeiro do conceito de solidariedade, tentando a sua caracterização etimológica e conceptual-significativa.

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Solidariedade, união de solidões

Escrevi em tempos um texto que intitulei Solidariedade, união de solidões, no qual defendo a ideia do homem (indivíduo e humanidade) como ser só - perante Deus e o Universo -, mas que pode superar a sua solidão pela união das solidões particulares, realizando Deus em si (enquanto solidário em absoluto) através do espírito e da prática da solidariedade, quiçá, um religioso sem necessidade do Deus das religiões. Desse texto passo a citar:

Tenho para mim que há um princípio/valor onde cabem todos os princípios/valores: a solidariedade. Nele cabem a honra, a honestidade, a lealdade sem subserviência; a liberdade, a responsabilidade, a criatividade sem libertinagem; a bondade, a humildade, a discrição sem humilhação; a amizade, o amor, a fidelidade, sem inveja ou traição; a justiça, a equidade, o bem sem parcialidade. A solidariedade vejo-a como união de solidões. Porém o homem sentindo-se solitário no universo, entre outras razões, por não poder saber o que é Deus, deve procurar saber o que é ser homem e assim tornar-se solidário, isto é, realizar Deus nas suas acções humanas segundo o princípio/valor da solidariedade. Deus não existe e se é, não sabemos o que é (Quero com isto dizer que Deus - transcendência que está para além de todas as nossas possibilidades gnoseológicas e lógicas - não existe e se existe não é Deus, porque se existe tem

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de existir como qualquer coisa referenciável do nosso universo de conhecimento, e a uma coisa referenciável não concebo reconhecer entidade divina). Dizia, nestes planos (gnoseológico e lógico), Deus não existe e se é, não sabemos o que é, mas seja ele o que for não pode deixar de aceitar o melhor do homem. E se ele é esse juiz universal de que falam as religiões, jamais, por sermos solidários, nos condenará. Como é bom de ver, não é necessário acreditar num Deus ou pertencer a uma religião para se ser religioso, porque, pela via da solidariedade, acreditando no seu espírito e na sua prática, no contexto ético-moral em que a enquadrei, como nos diz Jean-Yves Leloup no educativo livro que escreveu em parceria com Marie de Hennezel, “A Arte de Morrer”, Basta ser profundamente humano, solidário, para se atingirem os mais altos graus de espiritualidade. Continuando a minha reflexão, vou falar-vos, em segundo lugar, do conceito de sulidão/solidão, no contexto da identidade alentejana.

Alentejano sulitário, solitário

Num livro recente, Os Sulitários, de Paulo Barriga (Poema) e de João Francisco Vilhena (Fotografia), Edição da Fundação Alentejo Terra Mãe, o autor do texto aborda a génese e a essencialidade dos sulitários/solitários, as gentes do sul transtagano, tentando fazer passar a ideia de que os alentejanos são seres de sulidão/solidão. O neologismo sulitários/solitários, que joga com os étimos sul e sol, os do sul são do sol e, por isso, são sulitários/solitários, isto é, sulitários por serem do sul e solitários por serem do sol e da solidão, é interessante mas controverso. Sobre o livro escrevi, afirmando que É um livro bonito mas

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estranho, e, não sei porquê, se calhar porque mexe comigo no que tenho de “sulitário/solitário”, entristece-me até à raiz da alma, embora me desperte para o contraditório, que me alegra e dá esperança, de sermos (os alentejanos) como poucos um povo solidário, dimensão que o autor do texto não aborda (ou aborda de forma lateral, o que lhe retira significado).

Ora, se as planícies transtaganas marcaram a nossa idiossincrasia sulitária/solitária, essa expressão encontramo-la muito bem caracterizada por Florbela Espanca nos seus contos, cartas, sonetos. Reproduzo aqui um texto que escrevi recentemente e que contém muitas alusões da poeta a este ser do sul e do sol. “A expressão Manhã tórrida de Junho inicia a sinfonia de referências directas e indirectas ao astro-rei do sul mediterrâneo, estando presente nas searas maduras, pois é ele que, com os seus fios de calor criadores, as amadurece, e nas perdizes (...), com a filharada atrás, porque sem as quenturas de Maio as mães dificilmente chocariam os seus ovos. Este sol que enche a terra transtagana de luz irradiante aparece também como fogo aceso que esgota os corpos, no trabalhador da charneca enxugando de vez em quando, com o grande lenço de chita vermelha, o suor que, sob o negro chapeirão, lhe inundava a testa. Dizer que a seara madura é um outro céu mais abrasado, é descrever a realidade da participação do sol no seu amadurecimento, criando ao mesmo tempo a transfiguração da paisagem, céu de espigas rebentando de pão, e até As grandes azinheiras escuras, espalhadas aqui e ali, desenhavam desgrenhadas flores de sombra no ouro em pó das suaves colinas, revelando que aquelas desventuradas árvores suportam firmes a torreira do sol, criando frescos oásis, flores de sombra. E o quadro é completado com a inefável alusão à planície, sentida como um vasto e natural templo em silêncio, pagâmente religiosa, cuja abóbada celeste é uma imensidão de azul forte, banhada por uma atmosfera de luz quente em que o homem se sente efémero ente, mas grato à divindade por tanta força telúrica, tanta beleza inebriante: Em volta o silêncio era tão profundo, tão religiosa e extática a paz dos campos, que os olhos do lavrador incrédulos se ergueram da terra numa instintiva acção de graças. Sol nascente (Manhã tórrida de Junho), sol do meio-dia (Meio-dia: O sol a prumo cai ardente), sol poente (Sol posto. O sino ao longe dá Trindades), e Florbela perfaz nestas poesias o ciclo diário do sol no Alentejo, talvez, com a terra-mãe, os símbolos mais fortes da nossa mitologia telúrica, já que o sol é só

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um nas suas “voltas”, e desde o nascer ao pôr há nele a identidade de “deus do sul”, quiçá criação desse Deus Infinito a que o alentejano reza como Providência Universal: Tardinha… “Ave-Maria, Mãe de Deus…”/E reza a voz dos sinos e das noras…/O sol que morre tem clarões d’auroras,/Águia que bate as asas pelos céus (soneto: Sol Poente). É este sol, que a poeta quase idolatriza, que nos dá a morte e a vida: o Sol que, pelas tardinhas solitárias, adormece cansado, imperador aborrecido do seu trágico gozo de incendiar (conto: O Regresso do Filho).” Noutros poetas encontramos a dimensão solitária, a da solidão da terra e do homem. Solidão da terra devido às grandes extensões de campo aberto, de montados ou até de aldeias e vilas onde não se vê, numa expressão regionalista, viv’alma, aludindo a expressão à raridade de seres vivos animais, inclusive o homem, já que neste “país” que é o Alentejo, no dizer de Manuel Brito Camacho, os habitantes por quilómetro quadrado são escassos. Manuel da Fonseca, o poeta de Cerro Maior (Santiago do Cacém), em dois poemas belíssimos, quer pelo seu valor estético, quer pela certeira caracterização da terra e do homem alentejanos, fala-nos dessa solidão de campos e povoações, do deserto e do despovoamento: No postigo do monte/inquieto rosto acode/estreitando para longe/o descampado aberto.//(Quem vem lá na distância,/que nem a seara mexe/nem o pó se levanta/dos caminhos sem vento?...;) Nove casas,/duas ruas,/ao meio das ruas/um largo,/ao meio do largo/um poço de água fria.//Tudo isto tão parado/e o céu tão baixo/que quando alguém grita para longe/um nome familiar/se assustam pombos bravos/e acordam ecos no descampado (Poente, Aldeia - Poemas Completos, Manuel da Fonseca) Solidão do homem porque vive fechado numa terra de “solidão sozinha”, “terra de pouca gente e de pouca gente com terra”, em tão grandes e rasgadas planícies, um mundo em que campos, montes e povoações parecem desabitados, o que levou Manuel Alegre a inventar a expressão “Alentejo e Ninguém”, título do seu livro de poesia sobre o Alentejo. Solidão do homem bem expressa nestes versos de José Régio: Alentejo, ai solidão,/Solidão, ai Alentejo,/Convento do céu aberto,/Nos teus claustros me fiz monge./Perdeu-se-me a terra ao longe,/Chegou-se-me o céu mais perto.//Alentejo, ai solidão,/Solidão, ai Alentejo,/Padre-nosso de infelizes!/Vim coberto de cadeias,/Alentejo-ai-solidão.../Coberto de vis cadeias,/Deram-me asas e raízes (Fado Alentejano, José Régio), invocando o poeta a natural solidão do Alentejo e dos alentejanos, nele, forma de libertação pessoal-

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espiritual e de ligação radical à província, que assim se chamava então (1950/60) ao todo alentejano. Onde, talvez, melhor se expressa esta solidão do homem alentejano é nos cantares, uma grande parte, designada por vários etnógrafos e antropólogos “cantares de sulidão/solidão”, cantares do sul e do sol, cantares de tristeza mas duma força telúrica inabalável, na expressão de Vergílio Ferreira, “a música mais bela do meu país” (“Bom Dia Évora” – O Corvo, 1991). Nunca me canso de citar a quadra do nosso cancioneiro popular que melhor expressa a profundidade desta sulidão/solidão e da relação de vida e de morte do alentejano com o seu torrão: Eu devo o meu corpo à terra/A terra mo está devendo/A terra mo pague em vida/Que eu pago à terra morrendo – este é o hino mais belo da pátria alentejana. Mas, como vos disse, embora a nossa idiossincrasia esteja estigmatizada na “sulidão/solidão” e no “sulitário/solitário”, tal desperta-me para o contraditório, que me alegra e dá esperança, de sermos (os alentejanos) como poucos um povo solidário. É por isto que, em terceiro lugar, quero aqui defender esta dimensão, pouco reconhecida, da nossa personalidade colectiva, a de “povo solidário”, em particular na relação com a cozinha alentejana e sob a forma de “boa vizinhança”.

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Povo solidário – cozinha alentejana e boa vizinhança Como vimos, a solidão do alentejano é um facto em termos geográficos, paisagísticos, demográficos, idiossincráticos, mas é também demonstrada pelos modos característicos de relacionamento com o outro, vizinho ou forasteiro, pela necessidade de partilha que a solidão ela mesma gera, partilha da alma, da palavra, do vagar, da festa, dos bens e males do corpo e do espírito, dos bens e males da vida e da morte. No que se relaciona com a partilha da alma e da palavra são relevantes algumas expressões populares que denotam o sentido recíproco dessa partilha, tais como, “dizer o que me vai na alma”, “falar ao sentimento”, “se a gente não fala rebenta”, “dar umas lérias com os vizinhos/as”, “desabafar com os amigos/as”, expressões que remetem para o afastar da solidão e mostram a procura da solidariedade pela comunhão das confissões mútuas, porque quem fala também ouve o outro, e o importante é pôr em comum, como tradicionalmente se diz, “o que nos vai no sentido”, aqui com o duplo significado de “o que nos vai no pensamento”, “o que nos vai no sentimento”. Não posso esquecer a referência à necessidade de partilha do alentejano, para afastar a solidão criando solidariedade, que o médico-escritor Bento Caldeira, de Sto. Aleixo da Restauração, faz num dos seus livros de contos. Ele põe um dos seus personagens arrancados à vida a dizer - um paciente campaniço-idoso que o procura muitas vezes no seu consultório com a desculpa das doenças, mas que na verdade busca a sua agradável companhia -, depois de vazar a alma, as seguintes palavras de despedida: “Dôtôri, gosto munto da su conversa”. É que “conversar sozinho”, “conversar com os meus botões” embora aconteça, não é muito do nosso temperamento, por isso se recorre, perante a falta de gente, a “conversar com os animais” (os cães, os gatos, os machos, os bois, os pássaros), ou então a procurar na taberna ou na venda os habituais companheiros de copos, a quem o vinho liberta os corações e as línguas, quantas vezes atrapalhadas para as confissões íntimas ou afiadas para a maledicência verrinosa. Mas o alentejano também procura a partilha nos momentos de vagar e de festa, bem como nos momentos de nojo e trabalho. Relativamente aos momentos de vagar e de festa, para além da procura dos amigos na taberna, há também o falar do amor e da vida, nas noites de semana depois do trabalho ou nas tardes de domingo de folga, à janela ou à porta, com a namorada ou a noiva, e ainda o encontro entre casais a apalavrar ou já apalavrados nos bailes de rua ou de sociedade recreativa nos tempos das festas cíclicas. Se o vagar e a festa se consubstanciam nestas circunstâncias, o nojo dá origem à partilha da tristeza - velórios nocturnos onde se trata de tudo: pêsames,

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negócios, doenças, namoros, novidades, anedotas, compadrios, etc.; acompanhamento do funeral respeitando o compromisso de conterranidade, amizade, admiração, gratidão pelo falecido ou pela família do falecido. Mas também o trabalho reunia vizinhos que ajudavam aos domingos, com o seu esforço, como serventes e pedreiros, a erguer a casa de alguém, familiar ou amigo, que precisava, em particular de jovens casamenteiros. Aqui chegados, perguntarão, o que é que a cozinha alentejana tem a ver com tudo isto? Não se esqueçam que vos disse no princípio que, quando somos convidados para o “banquete do bem” devemos àqueles que nos convidam a gratidão de nos reconhecerem merecedores de nos sentarmos à mesa da melhor humanidade”, e que vos prometi associar o objectivo essencial da vossa organização mundial – a solidariedade universal - a um dos valores mais genuínos da identidade transtagana: a boa vizinhança, uma das nossas maneiras de sermos solidários. Vou tratar, pois, duma das tradições mais belas, moralmente mais profícuas e marcantes da nossa identidade: a tradição secular, provavelmente de origem cristã, de partilhar a abundância em bens comestíveis com aqueles que, mais perto de nós, necessitam da nossa ajuda, digo mesmo, a obrigatoriedade religiosa (religiosamente, não dar constituía pecado) e moral (moralmente, não dar constituía uma falta maior) de, tendo uma família bens de sobra, dever repartir com os vizinhos ou familiares que precisavam. Estes rituais de boa vizinhança (não falo aqui do patrocinato sob a forma de “parentesco espiritual”, referido por José Cutileiro em “Ricos e Pobres no Alentejo”, que instituía a figura do padrinho ou da madrinha de baptizo – habitualmente terra-tenentes ou gente de posses -, obrigados moralmente a cuidar dos afilhados nas mais diversas situações de precisão: trabalho, casamento, educação, tropa, doença, alimentação, etc.), que configuram um povo solidário, relacionam-se quase todos com as festas cíclicas.

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É assim que, quando uma família matava porco pelo Natal, era costume a dona da casa assentar no seu caderninho de lembranças, os nomes dos parentes e amigos a quem devia mandar “um jantarinho de carne”, isto é, carne do porco (partes menos nobres: chispes, vísceras, ossos, toucinho), com que se podia fazer um cozido de couve ou repolho, que levava também cenoura e batata, ou umas vísceras para a refeição de “rechina” (bofes, fígado, pâncreas, coração, sangue, cozidos com gorduras das molejas, alhos, especiarias, e vinagre). No Carnaval, nas famílias abastadas era comum fazer-se os fritos da tradição: azevias (pasteis recheados de massa de grão adocicado), filhós com açúcar, bêbados com aguardente e canela, pinhoadas com mel. Os bolos da Páscoa também se faziam com devoção: queijadas, bolo de requeijão, enxovalhada, folares (lagartos e pintainhas), folhados, pironilhas, etc. Os parentes ou vizinhos de estimação, ou a quem se devia favores, devido a morte recente de familiar próximo, estando proibidos, pelo luto, de festejar, eram habitualmente obsequiados com presentes de fritos ou bolos, acondicionados em bandejas ou tabuleiros de metal cromado, trabalhados com efeitos geométricos ou floridos e cujos fundos eram de papel recortado, fritos e bolos tapados com toalhetes de linho arrendados ou bordados, levados em mão por crianças da casa, que os iam entregar de porta em porta recebendo em troca a recompensa: como se dizia então, “o convite” ou a “milhadura” – cinco tostões, dez tostões. Ainda na Páscoa, também era uso, na matança do borrego, oferecer ao mestre matador algumas vísceras, para fazer arroz de fressura (refogado de alho e cebola com banha, louro, cravinho e as ditas estufadas no caldo sanguíneo; fervendo a água deixava-se o arroz cozer até ficar solto), a cabeça para assar no forno e partes da barriga e costelas para o ensopado. Oferta que o mestre matador aceitava agradecido, pois em casa havia muitas bocas para matar a fome.

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Perante situações de tragédia, morte de um pai de família, a parentela mais chegada e os amigos íntimos, dias depois do funeral, iam visitar a viúva levando consigo dádivas de géneros alimentares – feijão, grão de bico, chouriços, queijos de guarda, pão -, deixando, aqueles que podiam, algum dinheiro (nas noites dos funerais, em alguns casos, a família do falecido, num acto de agradecimento, organizava pequenos banquetes para matar a fome àqueles que ficavam toda a noite – chá, café e leite com bolos para as senhoras, açordas para os homens, regadas a vinho, ou aguardente com nozes e passas na estação azada. No tempo dos meloais e das uvas a vizinhança da rua do lavrador ou hortelão, com fartura em casa, enchia a barriga de belos melões e melancias e de cachos redondos maduros, pois havia o hábito e a obrigação íntima de dar. Pelos Santos também as famílias ricas ou remediadas nunca se esqueciam de mandar algum presentinho de nozes, amêndoas e passas aos primos pobres, para fazer os chamados “casamentos”, apreciando-se, quando havia, um pouco de licor de poejo ou bagaço nas noites frias do Outono. Na época do vinho novo, pelo S. Martinho, convidavam-se os amigos, e os amigos dos amigos a degustar graciosamente a abertura das talhas em noitadas de pão, azeitonas, entrecosto e linguiça assados, quando não de caldeiradas de feijão com bacalhau e poejos. Exemplos plenos de significado eram as “adiafas” ou “diafas”, festas de bebianas, comezainas e bailaricos de fins de colheitas – ceifas, vindimas, apanha da azeitona – que os patrões ofereciam aos ranchos de homens e mulheres (alentejanos ou ratinhos – homens e mulheres da Beira-Baixa que vinham para o Alentejo trabalhar) que lhes tinham recolhido os frutos com o esforço do seu trabalho. Os Reis e as Janeiras, depois do Ano Bom, cânticos ao Menino Jesus e aos lavradores beneméritos, para além do seu significado religioso, constituíam um meio de os pobres pedirem com alguma dignidade. Em troca dos cânticos de um rancho de homens que, de porta em porta, de monte em monte cantavam loas, estes recebiam pães, chouriços, nozes, queijos, toucinho, azeitonas, dinheiro, vinho, dos proprietários comovidos. São ainda referências deste “povo solidário” e de “boa vizinhança”, no domínio da alimentação, os usos de “pedir um raminho de hortelã, coentros ou de salsa, uma pinguinha de azeite, um punhadinho de sal, um bocadinho de pão”, à vizinha do lado, com a promessa de pagar assim que se fizesse o avio da semana, bem como a oferta às parturientes das “fatias paridas” (fatias de pão frito, molhadas em água e polvilhadas de açúcar e canela, ou embebidas em ovo, fritas e cobertas também de açúcar) e o repartir do almoço, da merenda, do

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jantar ou da ceia entre trabalhadores do campo, dos que tinham alguma coisa para comer com os que tinham pouco ou nada, a bucha de pão com queijo ou chouriça, as sopas de gaspacho, as migas, os catacuzes com arroz, o cacho de uvas, as talhadas de melão ou melância, etc. – a solidariedade da pobreza. Mas não devo esquecer o caso dos padrinhos de casamento que, não raras vezes assumiam as despesas de dois dias de festa (sopa da panela, canja de galinha, borrego assado, ensopado de borrego, pasteis de bacalhau, empadas, presunto, enchidos, queijos, saladas, frutas, doçaria variada, etc.,) para centenas de pessoas como prova da sua benemerência mas também como manifestação de abundância de dinheiro. Outros haverá, mas estes são os exemplos mais significativos do “povo solidário” e de “boa vizinhança”, que os alentejanos constituem, embora saibamos que nestas dádivas tradicionais, algumas delas ritualizadas, estava, por vezes, presente a manifestação de poder, quando não, até de ostentação, por parte de quem dava. É claro que estas tradições, se não desapareceram completamente, estão em fase acentuada de desuso, mas tal não implica que este traço característico da nossa personalidade colectiva não se manifeste ainda, sob outras formas, no nosso quotidiano relacional, em particular nas nossas aldeias, onde ainda se vive, nalguns casos, em comunidade de “boa vizinhança”, não sob a forma ritualizada, mas informalmente e com pouca ou nenhuma visibilidade pública. Eis a solidariedade enquanto união de solidões, da sulitária/solitária/solidária gente do sul e do sol transtaganos, representada inteligente e afectivamente nos versos de José Gomes Ferreira e através do elogio do cante: Nunca ouvi um alentejano cantar sozinho/com egoísmo de fonte.//Quando sente voos na garganta,/desce ao caminho/da solidão do seu monte,/e canta/em coro com a família do vizinho (Circunstanciais, IV – José Gomes Ferreira (Poeta Militante, 3º). Uma sulidão/solidão solidária.

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ROTARY CLUB DE ÉVORA . REUNIÃO DE COMPANHEIRISMO NA QUINTA DIMENSÃO EM 25 DE JULHO DE 2006