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5910179 – Biofísica I – Turma de Biologia – FFCLRP – USP – Prof. Antônio Roque Potencial de Nernst 1 Eletrodifusão e Potencial de Nernst Até o momento, consideramos apenas o transporte de solutos neutros (sem carga elétrica) através de membranas. Nesta aula, vamos estudar o transporte de um soluto carregado (íon) por uma membrana. Se as partículas que se difundem através da membrana tiverem carga elétrica e estiverem sob o efeito de um campo elétrico, haverá transporte de partículas provocado por dois mecanismos físicos diferentes: Difusão, devido à existência de um gradiente de concentração de partículas entre os dois lados da membrana celular; e Arrasto, devido à existência de um gradiente de potencial elétrico entre os dois lados da membrana celular. Lembrando das aulas de eletricidade e magnetismo, um gradiente de potencial elétrico está associado a um campo elétrico pela relação (em uma dimensão): E = ΔV Δx . (1) E uma partícula de carga q movendo-se em um campo elétrico E (unidimensional) sofre uma força F dada por: f = qE . (2) Esta força elétrica é a força de arrasto atuando sobre as partículas.

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5910179 – Biofísica I – Turma de Biologia – FFCLRP – USP – Prof. Antônio Roque Potencial de Nernst

1

Eletrodifusão e Potencial de Nernst

Até o momento, consideramos apenas o transporte de solutos neutros (sem carga

elétrica) através de membranas. Nesta aula, vamos estudar o transporte de um

soluto carregado (íon) por uma membrana.

Se as partículas que se difundem através da membrana tiverem carga elétrica e

estiverem sob o efeito de um campo elétrico, haverá transporte de partículas

provocado por dois mecanismos físicos diferentes:

• Difusão, devido à existência de um gradiente de concentração de partículas

entre os dois lados da membrana celular; e

• Arrasto, devido à existência de um gradiente de potencial elétrico entre os

dois lados da membrana celular.

Lembrando das aulas de eletricidade e magnetismo, um gradiente de potencial

elétrico está associado a um campo elétrico pela relação (em uma dimensão):

E = −ΔVΔx . (1)

E uma partícula de carga q movendo-se em um campo elétrico E

(unidimensional) sofre uma força F dada por:

f = qE . (2)

Esta força elétrica é a força de arrasto atuando sobre as partículas.

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2

Como há dois mecanismos de transporte de partículas carregadas através de uma

membrana celular (difusão e arrasto), podemos escrever as expressões

correspondentes aos fluxos de partículas por esses dois mecanismos.

O fluxo por difusão é descrito pela lei de Fick (equação 1 da aula sobre difusão):

φD = −DΔcΔx, (3)

onde c é a concentração de partículas (que tem valores diferentes dos dois lados

da membrana) e D é o coeficiente de difusão. Note que o sub-índice D foi usado

em φD para indicar explicitamente que este é o fluxo por difusão.

Segundo a teoria do movimento browniano, o coeficiente de difusão D pode ser

escrito como (equação 4 da aula sobre difusão):

D =l2

2τ, (4)

onde l é o livre caminho médio entre duas colisões moleculares e τ é o tempo

médio entre duas colisões.

Já o fluxo devido ao arrasto provocado pelo campo elétrico pode ser escrito como

(dedução não mostrada aqui):

φa = cv = ucf , (5)

onde:

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• v = velocidade de arrasto de um mol de partículas;

• f = força elétrica por mol de partículas;

• u = mobilidade mecânica molar (u = v/f).

Note o uso do sub-índice a em φa para indicar explicitamente que este é o fluxo

por arrasto.

Vamos considerar que as partículas são íons (portanto, com carga) de valência z e

que a força f é causada por um campo elétrico com intensidade E = −ΔV Δx , onde

V é o potencial elétrico.

Então, a força elétrica sobre um mol de partículas é

f = qE, (6)

onde q é a carga de um mol de partículas.

A carga de um mol de partículas pode ser escrita em termos da constante de

Faraday F. A constante de Faraday é definida como a carga de um mol de

partículas monovalentes (z = 1).

A carga de uma partícula monovalente é a carga elétrica fundamental e:

e = 1,602 × 10−19 C.

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O número de partículas em um mol é o número de Avogadro:

NA = 6,022 × 1023 mol−1.

Portanto, o valor de F é:

F ≡ NA×e = 9,648 × 104 C/mol.

A carga de um mol de partículas de valência z qualquer é então,

q = zF, (7)

de maneira que a força elétrica sobre um mol de partículas pode ser escrita como:

f = qE = zFE = −zF ΔVΔx. (8)

Combinando as equações (5) e (8):

φa = −uczFΔVΔx . (13)

Esta equação é chamada de lei de Planck.

Max Planck (1858-1947) foi um físico alemão, um dos pais da física quântica.

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A lei de Planck descreve o fluxo de partículas carregadas sob a ação de um campo

elétrico em um meio viscoso (note que as partículas não estão se movimentando

no vácuo, mas sofrem colisões com as partículas do meio).

Ela implica que o movimento de cargas elétricas positivas (z > 0) ocorre no

sentido contrário ao do gradiente do potencial elétrico V(x). Já as partículas com

carga elétrica negativa (z < 0) se movem no sentido do gradiente do potencial

elétrico V(x).

Combinando as equações (3) e (13), obtemos a equação que descreve o fluxo de

partículas da espécie iônica n sob ação dos mecanismos de difusão e de arrasto:

φn = −DnΔcn (x, t)Δx

difusão! "## $##

−unznFcn (x, t)ΔV (x, t)Δx

arrasto! "### $#### . (14)

Note que as unidades do fluxo escrito acima são número de moles por unidade de

área por unidade de tempo. Se multiplicarmos o fluxo φn pela carga de um mol de

partículas da espécie n, teremos uma grandeza cujas unidades serão carga elétrica

por unidade de área por unidade de tempo. No SI, essa grandeza tem unidades de

C/m2.s (coulombs por metro quadrado por segundo).

A corrente elétrica I em um dado ponto do espaço é definida como a carga

elétrica que passa por esse ponto do espaço dividida pela unidade de tempo.

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No SI, a unidade de I é o ampère (A): 1 A ≡ 1 C/s. Portanto, as unidades de fluxo

iônico são as de corrente elétrica por unidade de área. No SI, C/m2.s = A/m2.

Estas são as unidades de densidade de corrente (denotada por J):

J = IA, (15)

onde A é a área da superfície perpendicular à direção do fluxo de corrente I.

Voltando à equação (14), multiplicando o fluxo iônico φn pela carga de um mol de

íons da espécie n (znF) teremos a densidade de corrente dos íons da espécie n:

Jn (x, t) = znFφn (x, t) . (16)

De forma explícita:

Jn (x, t) = −znF DnΔcn (x, t)Δx

+unznFcn (x, t)ΔV (x, t)Δx

#

$%

&

'( . (17)

Esta é a chamada equação de Nernst-Planck. Ela é a base teórica para a

descrição do fluxo iônico através de membranas celulares em decorrência do

efeito combinado dos gradientes de concentração e de potencial elétrico.

Walther Nernst (1864-1941) foi um físico alemão, um dos pioneiros da físico-

química mundial.

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O sinal negativo indica que:

a) Íons positivos (z > 0): a corrente elétrica aponta na direção oposta dos

gradientes de concentração e de potencial elétrico. Neste caso a corrente

elétrica coincide com a direção do fluxo dos íons.

b) Íons negativos (z < 0): a corrente elétrica aponta na direção do gradiente de

concentração e na direção oposta do gradiente de potencial elétrico (note que o

segundo termo entre parênteses é multiplicado por zn). Como neste caso a

direção da corrente elétrica é contrária à do fluxo de íons (pois os íons são

negativos), o movimento dos íons vai na direção oposta à do gradiente de

concentração, mas na mesma direção do gradiente de potencial.

Esta equação pode ser reescrita usando-se a chamada relação de Einstein (obtida

da teoria para o movimento browniano desenvolvida por Einstein em 1905):

uRTD = , (18)

onde D é o coeficiente de difusão, R é a constante universal dos gases (= 8,314

J/mol.K), T á a temperatura absoluta e u é a mobilidade mecânica molar (equação

11 da aula 13).

Usando a relação de Einstein a equação de Nernst-Planck fica escrita como:

Jn (x, t) = −unznF RT Δcn (x, t)Δx

+ znFcn (x, t)ΔV (x, t)Δx

#

$%

&

'( . (19)

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Eletrodifusão no Equilíbrio

Uma situação importante que pode ser estudada com o auxílio da equação de

Nernst-Planck é aquela em que o fluxo dos íons da espécie n é zero, ou seja, a

situação em que há equilíbrio eletrodifusivo do fluxo dos íons da espécie n.

Fazendo Jn = 0 na equação (1) obtemos a condição,

unznF RT Δcn (x, t)Δx

+ znFcn (x, t)ΔV (x, t)Δx

"

#$

%

&'= 0 . (12)

Existem várias maneiras de satisfazer esta condição. Três delas são triviais: (1) se

un = 0, ou seja, se as partículas da n-ésima espécie iônica estiverem fixas, com

mobilidade zero; (2) se zn = 0, ou seja, se as partículas não tiverem carga, de

maneira que mesmo que haja difusão de partículas não exista eletrodifusão; e (3)

se cn = 0, que é o caso quando não há partículas da n-ésima espécie iônica.

Quando nenhuma dessas condições triviais existe, o equilíbrio só é possível

quando,

RT dcn (x, t)dx

+ znFcn (x, t)dV (x, t)dx

= 0 , (13)

onde passamos a denotar as derivadas usando a notação usual.

Separando as variáveis, obtemos

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dxxdV

RTFz

dxxdc

xcnn

n

)()()(

1−= . (14)

Integrando esta equação entre x0 (o ponto de referência para o potencial) e x

obtemos:

( ))()()()(

ln 00

xVxVRTFz

xcxc n

n

n −=⎟⎟⎠

⎞⎜⎜⎝

⎛. (15)

Resolvendo esta equação para cn(x), obtemos a distribuição espacial de partículas

da n-ésima espécie iônica no equilíbrio,

( ))()(

00)()(xVxV

RTFz

nn

n

excxc−−

= . (16)

Esta equação nos diz que, se não houver diferença de potencial entre os dois

pontos, x e x0, e/ou se zn = 0, a concentração da espécie iônica n é uniforme no

espaço.

Equilíbrio e o Potencial de Nernst

Vamos considerar agora que o processo de eletrodifusão ocorre através de uma

membrana.

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Vamos supor que a membrana separa os lados interno e externo de uma célula e

que esses dois lados contêm soluções iônicas com concentrações do íon n iguais

a, respectivamente, inc e e

nc . A densidade de corrente associada a esta espécie

iônica é Jn. O modelo está ilustrado na figura abaixo.

O potencial de membrana será definido como

)()0( dVVVm −= , (17)

isto é, como o potencial do lado de dentro menos o potencial do lado de fora da

célula.

Vamos considerar que o fluxo eletrodifusivo dos íons da espécie iônica n através

da membrana está em equilíbrio, ou seja, ele é descrito pela equação (15) acima.

Identificando x0 = 0 e x = d na equação (15), temos:

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( ))()0()0()(ln dVV

RTFz

cdc n

n

n −=⎟⎟⎠

⎞⎜⎜⎝

⎛. (18)

Como esta equação vale apenas para o equilíbrio, vamos chamar a diferença de

potencial entre o interior e o exterior da célula neste caso de Vmeq:

Vmeq =V (0)−V (d). (19)

Portanto, a equação (18) nos diz que, no equilíbrio, o potencial de membrana da

célula é dado por:

Vmeq ≡

RTznF

ln cn (d)cn (0)"

#$

%

&'. (20)

Vamos assumir que nas interfaces da membrana com as soluções interna e

externa temos a seguinte relação,

en

nin

nn c

dccc

k)()0(

== , (21)

onde kn é o coeficiente de partição do íon n na interface entre a membrana e a

solução. Usando esta relação, temos que )())0()(( in

ennn cccdc = , de maneira que a

equação (20) pode ser reescrita como:

Vmeq ≡

RTznF

ln cne

cni

"

#$

%

&'. . (21)

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Definindo o potencial de Nernst do íon n como

En ≡RTznF

ln cne

cni

"

#$

%

&', (22)

temos que a equação (21) nos dá,

En =Vm. (23)

Portanto, quando há equilíbrio no fluxo da espécie iônica n, o potencial de

membrana deve ser igual ao potencial de Nernst do íon n.

Por isso, o potencial de Nernst do íon n é também chamado de potencial de

equilíbrio para a espécie iônica n.

O potencial de Nernst determina o valor do potencial de membrana para o qual o

fluxo líquido dos íons da espécie n através da membrana é nulo.

Para entendermos como o potencial de equilíbrio de Nernst pode ser gerado,

vamos considerar uma situação como a mostrada na figura a seguir.

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Imaginemos uma cuba contendo uma solução eletrolítica separada em dois

compartimentos por uma membrana permeável apenas ao íon n. Por simplicidade,

vamos assumir que o íon n tem valência positiva. Vamos supor que a

concentração deste íon é maior do lado 2 do que do lado 1.

Em t < 0, a membrana está envolvida por uma partição impermeável que não

deixa passar o íon n. Em t = 0, retira-se essa partição e a solução dos dois lados

fica em contato com a membrana. Porém, apenas os íons n podem fluir pela

membrana (existem outras espécies iônicas, que não podem passar pela

membrana, mas que fazem com que a carga líquida dos dois lados da membrana

seja nula).

Como existem mais íons do tipo n do lado 2 da membrana, inicialmente haverá

um fluxo iônico difusivo do lado 2 para o lado 1. Já que os íons passando pela

membrana têm carga positiva e, em t = 0 , as duas soluções estão neutras, este

fluxo inicial irá levar a um acúmulo de cargas positivas do lado 1 e deixará um

excesso equivalente de cargas negativas do lado 2.

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Como, supostamente, as soluções dos dois lados da membrana são boas

condutoras elétricas, esses excessos de carga irão rapidamente se distribuir ao

longo dos dois lados da membrana, gerando uma configuração como a mostrada

na figura para t > 0.

A separação de cargas entre os dois lados da membrana gerará um potencial

elétrico através dela, com o lado 1 estando a um potencial positivo em relação ao

lado 2.

Uma vez gerado, esse potencial elétrico irá dificultar o fluxo dos íons positivos do

lado 2 para o lado 1. Porém, ainda assim continuará a haver fluxo líquido de íons

do tipo n do lado 2 para o 1. Este fluxo só será zero quando o acúmulo da cargas

positivas do lado 1 (e o acúmulo equivalente de cargas negativas do lado 2) for tal

que o valor do potencial gerado impeça um deslocamento líquido de partículas.

Este valor particular do potencial através da membrana é o potencial de Nernst En

para o íon n.

Este exemplo nos diz que, para íons de valência positiva, como é o caso do

exemplo, o potencial de Nernst gerado é tal que o lado com menor concentração

do íon fica a um potencial mais elevado do que o lado com maior concentração do

íon.

Por outro lado, para íons de valência negativa, o lado com maior concentração do

íon deve ficar a um potencial mais elevado.

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Podemos verificar isto olhando para a tabela abaixo, que dá os valores das

concentrações de alguns íons e dos seus respectivos potenciais de Nernst para o

axônio gigante da lula, a 20°C. Considerando que o valor do potencial é tomado

como o valor no interior da célula menos o valor no exterior, os dados da tabela

(os sinais dos potenciais) estão consistentes com a análise feita acima.

Dentro

(mM)

Fora

(mM)

Potencial de Equilíbrio

(Nernst)

K+ 400 20 −75 mV

Na+ 50 440 +55 mV

Cl- 40-150 560 −66 a (−33) mV

Ca2+ 0,4x10-4 10 +145 mV

No processo de geração do potencial de equilíbrio para o íon n, uma quantidade

líquida de íons n foi transferida do lado 2 para o lado 1 da membrana. Podemos

estimar o número de íons por unidade de área que teve que ser transferido para

gerar um potencial de equilíbrio da ordem do medido para uma célula típica.

Note que o acúmulo de carga de um sinal de um lado da membrana e de carga do

sinal oposto do outro lado faz com que a membrana se comporte como um

capacitor.

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Se a capacitância por unidade de área da membrana for Cm e o potencial elétrico

de equilíbrio for En, o excesso de carga acumulada na membrana por unidade de

área da membrana é

Qm =CmEn. (24)

Um valor típico medido experimentalmente para a capacitância por unidade de

área de membranas de células é Cm ≈ 1µF/cm2.

Usando En ≈ 100 mV, a equação (24) nos dá que Qm ≈ 0,1 µC/cm2.

Com este valor, podemos estimar o número de moles do íon n por unidade de área

que se deslocou através da membrana para gerar o potencial En.

Lembrando que znF é a carga de um mol de íons da espécie n, o número de moles

do íon n por unidade de área deslocado é (supondo que o íon n tem valência

unitária, zn = 1, e usando F ≈ 105 C/mol):

Nn =Qm

znF≈1 pmol/cm2.

Este é um número de moles bem pequeno.

Um valor típico para a concentração de uma espécie iônica n em solução

biológica é cn ≈ 10−4 mol/cm3.

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17

Considere um volume cilíndrico de solução com área da base unitária (= 1 cm2) e

comprimento l. Supondo que cada seção reta desse cilindro tenha densidade de

moles do íon n por unidade de área igual a 1 pmol/cm2, o comprimento l do

cilindro deve valer:

lcn = Nn ⇒ l = Nn

cn=10−8 cm = 1 Å.

Portanto, basta que uma pequena pastilha cilíndrica de solução, com área de 1

cm2 e espessura de 1 Å, contendo íons da espécie n seja transferida de um lado

para o outro da membrana para carregá-la de modo a provocar uma diferença de

potencial de 100 mV.

O potencial de Nernst para o íon n pode ser escrito em termos do logaritmo da

razão das concentrações na base 10, de maneira que:

⎟⎟⎠

⎞⎜⎜⎝

⎛=⎟⎟⎠

⎞⎜⎜⎝

⎛= i

n

en

nin

en

nn c

ceFz

RTcc

FzRTV 10

10

loglog

ln . (25)

Substituindo nesta expressão os valores das constantes, R = 8,31 J.K-1.mol-1, F =

9,65 x 104 C/mol e T = 273,15 + tc, onde tc é a temperatura em graus centígrados,

temos que, a uma temperatura de 24 ºC, RT/F ≈ 26 mV e RT/(F log10e) ≈ 59 mV.

Portanto, se a razão entre as concentrações do íon n dentro e fora da célula for 10,

o potencial de equilíbrio de Nernst vale (59/zn) mV.

Já se a razão for igual a 100, o potencial de equilíbrio vale (118/zn) mV.

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18

E se a razão entre as concentrações for igual a 0,01, o potencial de equilíbrio vale

(−118/zn) mV.

Em geral, as razões entre as concentrações iônicas dentro e fora das células estão

na faixa entre 0,01 e 100. Portanto, os cálculos feitos acima explicam porque, em

geral, os valores do potencial de Nernst estão em torno de ±100 mV.