pos graduação em letras

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..., .rI .-& li) '& Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários da Faculdade de Letras da UFMG Artigo disponível em hlliJ ://www.letras.ufmg.br/poslit ENTRE OI NSTANTE EO TEMPO: UM POEMA DE CASSIANO RICARDO José América Miranda UFMG ABSTRACT The poem "Serenata sintética" by Cassiano Ricardo is analysed in its phonological aspects and in its imagery. The possibilities of narrative development in the scope of brief lyric forms as well as through the ideogramic method are investigated as mechanisms through which sense is introduced in the structure of the texto REVISTA DE ESTUDOS DE LITERATURA Belo Horizonte, v. 2, p. 147 -15B, ou!. 94. Disponível em http://www.letras.ufmg.br/poslit Disponível em http://www.letras.ufmg.br/poslit

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    Programa de Ps-Graduao em Letras: Estudos Literrios

    da Faculdade de Letras da UFMG

    Artigo disponvel em hlliJ ://www.letras.ufmg.br/poslit

    ENTRE OINSTANTE EOTEMPO: UM POEMA DE CASSIANO RICARDO

    Jos Amrica Miranda UFMG

    ABSTRACT

    The poem "Serenata sinttica" by Cassiano Ricardo is analysed in its phonological aspects and in its imagery. The possibilities of narrative development in the scope of brief lyric forms as well as through the ideogramic method are investigated as mechanisms through which sense is introduced in the structure of the texto

    REVISTA DE ESTUDOS DE LITERATURA Belo Horizonte, v. 2, p. 147 -15B, ou!. 94.

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    Disponvel em http://www.letras.ufmg.br/poslit Disponvel em http://www.letras.ufmg.br/poslit

  • Na literatura, arte do tempo, a obra tende, ao final de seu processo constitutivo, a configurar-se como imagem, onde tudo simultaneidade. A obra de arte literria, se algum recurso possui para insurgir-se contra o tempo, para imobiliz-lo, como o faz uma fotografia, esse recurso o da repetio. O territrio em que a arte literria mais o utiliza aquele em que o estrato fnico, elemento puramente temporal da forma, trabalha contra o tempo: o verso, a poesia, particularmente no gnero lrico.

    A propsito da alta incidncia de repeties na poesia lrica, Mfonso Romano de Sant'Anna, em seu livro dedicado obra de Carlos Drummond de Andrade, observou:

    Parece haver uma relao entre a repetio e o que seja lirismo em poesia. Ou melhor: a repetio um atributo mais encontradio na poesia lrica do que na dramtica ou na pica, pois estas so narrativas em desenvolvimento e em tal processo a linguagem raramente se volta sobre si mesma retardando o avano do enredo. J na poesia lrica a repetio chega a se constituir em elemento estrutural da composio. l

    Destinado fixao da experincia do instante, o gnero lrico utiliza preferencialmente, como observa Emil Staiger2, as formas breves. A repetio, destinada a intensificar e conferir nitidez imagem, , ainda na expresso de Mfonso Romano de Sant'Anna, "uma forma de abolir o tempo". Surpreende, pois, que sua utilizao intensiva no interior de formas breves no tenha sido ainda associada a esta outra forma de fixar o instante: a fotografia.

    Por sua tendncia para afirmar-se contra o tempo, que o aproxima da fotografia, o poema lrico torna-se o lugar privilegiado de aplicao do princpio ideogrmico. Por meio dele, uma lngua como a nossa, linear e analtica, insurge-se contra sua prpria natureza, passando a aspirar simultaneidade da apreenso instantnea.

    Na poesia brasileira, como se sabe, essa prtica chegou poesia concreta atravs da aplicao que encontrara na obra de Ezra Pound, que a recebera, por sua vez, do trabalho de Ernest Fenollosa sobre os caracteres da escrita chinesa como instrumento para a poesia3 e do estudo direto das lnguas orientais. Antes, porm, que a poesia concreta assumisse essas proposies e as transformasse em programa de trabalho, o mtodo

    1. SANT'ANNA, 1972. p. 16. 2. Cf. STAIGER, 1975. p. 19-75. 3. Oensaio de fenolloso pode ser encontrodo em CAMPOS, 1977. p. 115-162.

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    ideogrmico j produzira, na obra de Cassiano Ricardo, um pequeno grande poema:

    Serenata sinttica

    Rua torta.

    Lua morta.

    Tua porta. 4

    Chamado, por Nelly Novaes Coelho, de "concretista avant la lettre"5, Cassiano Ricardo realizou, efetivamente, nesse poema, aparecido em Um dia depois do outro (1947), algo caro poesia concreta: um mximo de sntese, despojamento discursivo quase absoluto. A inteno de sntese encontra-se no s implcita na forma que assumiu o poema, mas foi anunciada em seu prprio ttulo, que, em termos de extenso, quase o alcana.

    H, entretanto, algo que o distingue da poesia concreta: enquanto esta abolia a distino entre formas primria e secundria (ou entre os planos do significante e do significado), reduzindo ambas ao denominador comum da estrutura, o poema de Cassiano Ricardo aplica o mtodo ideogrmico ao nvel da imagem, que se distingue claramente do enunciado verbal (forma primria) que o instaura. Nesse poema, as palavras, como material significante, distinguem-se ainda das imagens que evocam, embora se conjuguem com elas de modo muito ntimo, para a realizao de um efeito total.

    As imagens evocadas pelas palavras, assim como elas prprias, articulam-se no de acordo com a sintaxe da lngua, mas segundo a parataxe prpria da montagem cinematogrfica e do ideograma. A serenata apresenta-se-nos como o produto da apreenso simultnea da paisagem urbana (rua), da situao temporal (noite) e da localizao da persona do poeta (diante da porta).

    4. RICARDO, 1957. p. 279. Existem diversos verses deste poema; em muitos, odisposio dos versos no pgina, assim coma suo seqncia, no a mesma que utilizamos aqui. Embaro as vorioes sejam relevantes poro osentido, optamos pelo enfoque de apenas uma delas, oque se encontro no edio citado dos Poesias compleros. 5. COElHO, 1972. p. 60.

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  • Composto por trs dsticos, com rimas consoantes e alternadas, o poema situa-se nos confins mnimos do verso e mximos da condensao de linguagem. Trs substantivos concretos, dois adjetivos, um pronome: e eis que imagens impregnadas de sentido por todo um complexo histricoscio-cultural, herana coletiva de um povo, e emocional, dado da memria individual do poeta, apresentam-se ao leitor.

    O verso utilizado, monossilbico, conforme a tcnica de decomposio do verso mais utilizada em lngua portuguesa, bastante raro; costuma ser interpretado como exerccio de virtuosismo e mestria formal; alguns tratados de versificao praticamente o ignoram. Se levarmos em considerao as slabas tonas finais, cada verso assume a conformao de um p troqueu, unidade rtmica em que um primeiro tempo forte seguido por um fraco. Trata-se de um ritmo de andamento clere (do grego "trochaios", rpido), sem dvida relevante para o sentido, adequado rapidez com que as imagens acorrem a nossas mentes.

    O timbre das vogais tnicas, u e o (aberto) alternados, ambas de articulao posterior, lana sobre o quadro das imagens visuais um colorido melanclico e soturno, que confere ao poema um tom elegaco, diramos mesmo de luto. O sentido do poema comea a configurar-se a, no estrato fnico, que constri para ns, em trs golpes, a totalidade da imagem.

    A seqncia sonora, linha meldica dos trs dsticos, quase integralmente repetida trs vezes. Apenas os fonemas iniciais de cada verso )variam, mas, mesmo eles, apresentam qualidades sonoras distintivas que muito os aproximam. Os fonemas dos primeiros versos dos dois primeiros dsticos so lquidas sonoras (r e 1). Durante sua emisso o canal fonatrio permanece metade aberto, metade fechado. No caso do r, essas metades distribuem-se no tempo: durante metade do tempo da fonao, as vibraes mantm aberto o canal, durante a outra metade, fechado. No caso do 1, as metades so espaciais: durante a fonao o canal permanece fechado em sua poro anterior, mas abre-se entre as bordas laterais da lngua e as arcadas dentrias. Esses fonemas lquidos sucessivos convergem, no primeiro verso do ltimo dstico, para o som consonantal t, oclusivo, 'I alveolar e surdo: li

    R ua L ua J T ua

    Como o carter do fechamento dos fonemas 1e r, o poema hesita entre o espao e o tempo; entre o registro lrico, retrato instantneo de

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    uma cena, e o carter narrativo da seqncia de representaes (poderamos compar-las a fotogramas) que se modificam pouco a pouco, perfazendo a totalidade de uma ao.

    A segunda srie de fonemas iniciais, os que comeam o segundo verso de cada dstico, toda composta por oclusivos: o primeiro, t, surdo e alveolar; o segundo, m, sonoro, nasal e labial; e o ltimo, p, surdo e labial:

    t arta marta parta

    Repare-se, no caso do ltimo fonema, na ocluso do canal fonatrio em seu ~xtremo anterior, fechamento mximo possvel. Insistimos nessas qualidades porque, como veremos, elas importam para a configurao final do sentido do poema. Quanto aos demais fonemas, todos repetem-se nos trs dsticos:

    R ua t orla.

    L ua m orla.

    T ua porIa.

    Dos 24 pontos fonolgicos constitutivos do poema, no menos que 18 (75 por cento) esto comprometidos em repeties ternrias; um ndice muito alto, para poema to breve. A repetio contribui, sem dvida, para a impresso de simultaneidade, para a ligeireza com que pintado o quadro apresentado no poema.

    No plano das imagens, vamos consider-lo, inicialmente, pelo alto ndice de repeties que apresenta, como um todo instantneo: rua, lua no cu, casa da mulher amada - realidades que coexistem e se distribuem no espao. Assim considerado, o poema comporta dois elementos que Roland Barthes assinalou em fotografias: o primeiro expresso da cultura, inevitavelmente encontrado, seu cdigo conhecido, por meio dele a inteno do criador/poeta/fotgrafo pode ser identificada (Barthes o chama de sludium); o segundo algo distinto, que nem sempre pode ser

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  • encontrado, que rasga o pano de fundo do primeiro e vem atingir o espectador, sem que os cdigos culturais o expliquem e traduzam; trata-se da singularidade (Barthes o chama de punctum)6. Em "Serenata sinttica", o studium encontra-se na serenata (cdigo cultural); o punctum consiste na singularidade desta serenata; o studium, no que, nas serenatas em geral, pode ser reduzido a um quadro esttico; o punctum, na narrativa que se inscreve no cenrio descrito; o studium instantaneamente reconhecido por todos; o punctum irrompe do poema de maneira imprevista, no codificado de maneira usual.

    Examinaremos, em primeiro lugar, os dados de ordem cultural, os cdigos dominados pela coletividade, contidos no poema e anunciados em seu ttulo pela palavra "serenata". "Rua/torta", realidade mencionada no primeiro dstico, encontra-se j em nosso esprito, como que prefigurada, anunciada pelo ttulo do poema; sua meno vem apenas tornla ntida e concreta, conforme a expectativa. Ela um saber prvio do leitor, que conhece a realidade de no se fazerem serenatas em grandes cidades, ao lado de grandes vias com trfego intenso, ou ao p de edifcios de muitos andares. As serenatas so prticas prprias das pequenas cidades, so hbito antigo, tradicional, anterior existncia da luz eltrica e do automvel. Nessas cidades o desenho das ruas determinado pelo relevo do solo, sinal de um tempo em que o homem ainda no dispunha de meios tcnicos para impor natureza as linhas retas ditadas pela razo. Tpicas dos sculos passados, essas cidades conservaram-se intactas, na maioria dos casos, pela pobreza que impossibilitou a renovao de sua arquitetura e urbanismo. O caso exemplar a cidade dos tempos coloniais.

    "Lua/morta", tanto quanto o primeiro dstico, vem apenas confirmar a expectativa do leitor, que conhece a serenata como prtica prpria das noites de luar. O dstico, entretanto, introduz algo novo, inesperado, o adjetivo "morta" qualificando "lua". O tom enlutado do poema, que atribumos, nas observaes sobre seu estrato fnico, articulao posterior de todas as suas vogais tnicas, comea a ser preenchido semanticamente na forma secundria do poema (ao nvel da significao). A "morte" associada lua pode ser interpretada de vrias maneiras. Nelly Novaes Coelho, na obra j citada, concordando com o autor do poema7, entendeu-a como lua j posta, ou em vias de se pr, como sinal de madrugada, situao temporal da serenata. Essa , sem dvida, uma leitura apropriada, que leva em conta a forma secundria do

    6. Cf. BARTHES, 19B1. 7. Cf. RICARDO, 1964. p. 3S.

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    poema em sua relao com a realidade; ela o interpreta luz dos dados culturais implicados pela palavra "serenata".

    Outras leituras, porm, podem ser feitas, sem que se negue a anterior. Se considerarmos o poema em suas relaes com a srie literria a que pertence, a da poesia lrica, a "lua" pode ser considerada um dos elos entre o poema e a srie, e um elo especial, j" que, por meio do adjetivo "morta", o poema novo introduz modificaes nas conotaes mticas de que a lua se revestia na poesia do passado. bastante conhecido o esforo dos poetas modernos para desmitific-la. Manuel Bandeira, num poema ("Satlite"), escreveu:

    Ah Lua deste fim de tarde, Demissionria de atribuies romnticas, Sem show para as disponibilidades sentimentais!

    Fatigado de mais-valia, Gosto de ti assim: Coisa em si, _ Satlite.8

    Carlos Drummond de Andrade, por sua vez, em "Casamento do cu e do inferno", referiu-se a ela nos seguintes termos:

    No azul do cu de metileno A lua irnica diurtica uma gravura de sala de jantar.9

    Nas condies de trompe l'oeil, gravurakitsch de uma sala dejantar, e de coisa em si, satlite, a lua perde sua dimenso mtica. Por isso ela poderia estar "morta", morta como fonte de inspirao para poetas.

    Um outro fator, extraliterrio, que poderia ter contribudo para sua morte enquanto mito, o incio da corrida espacial e da disputa pela conquista da lua entre americanos e russos, nos tempos da guerra fria. Esse fator no pode ser desprezado, se considerarmos a data de publicao do poema (Um dia depois do outro, 1947) e o interesse que seu autor, nas dcadas subseqentes, dedicaria s viagens espaciais. Outros poetas cantaram a "morte" da lua, associando-a corrida espacial, que significaria

    8. BANDEIRA, 1970. p. 232. 9. ANDRADE, 1967. p. S4.

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  • o fim do "romantismo" das noites de seresta. Numa cano que fez muito sucesso, intitulada "Lunik 9", Gilberto Gil, entre nostlgico e irnico, diria:

    Poetas seresteiros namorados Correi chegada a hora de escrever e cantar Talvez as derradeiras Noites de luar (...) A lua foi alcanada Afinal, muito bem Confesso estou contente tambm! A mim me resta nisso Tudo uma tristeza s Talvez no tenha mais luar pra clarear Minha cano O que ser do verso sem luar? O que ser do mar, da flor, do violo? Tenho pensado tanto mas nem sei... "lo

    Portanto, morta poderia estar tambm a serenata, ao tempo em que poema foi composto; no s porque o pas se urbanizara, mas tambm porque o luar j se encontrava ameaado em sua dimenso mtica. No faltam, pois, razes parajustificar a "morte" da "lua"; todas elas, entretanto, so exteriores ao poema.

    Cassiano Ricardo, contudo, foi dos mais ardorosos defensores da autonomia do poema, de sua auto-suficincia como objeto, de sua compreenso como

    objeto de palavras que obedece a um sistema peculiar, com solues de linguagem que s ele realiza, com recursos compositivos que a tecnologia, a ciberntica, os 'mass media' lhe suscitam, com as suas 'montagens', seu apelo s 'metforas radicais'; com a incorporao do espao da pgina sua estrutura (dialtica do espao em branco com o em preto); com a incluso, no verbal, do no-verbal; com ingredientes plsticos e visuais que o 'diversificam' ,'desprosificam' e lhe do fisionomia autnoma entre as demais criaes artsticas e lite rrias. lI

    Diante desses argumentos, que nortearam grande parte da produo potica do autor, e considerando que "Serenata sinttica" situase na raiz mesma dessas questes, as razes assinaladas para a "morte" da

    10. Gil, 1975. DislO long Ploy, lbum duplo. 11. RICARDO, Cassiano. Autonamismo. In: BRAYNER, 1979. p. 43.

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    "lua" parecem-nos insuficientes; h ainda uma outra, interna e inerente estrutura do poema. Ela relaciona-se com o que o poema traz de singular, com seu punctum, com a experincia que ele narra, que nos atinge em meio aos elementos culturalmente codificados.

    Antes, porm, de abordarmos esse ponto, passemos ao ltimo dstico do poema. "Tua/porta" traz-nos outra surpresa. Embora a palavra "porta" venha emparelhar-se com as rimas dos dois dsticos anteriores, satisfazendo uma expectativa auditiva, sua presena, no poema, surpreende, j que o lugar diante do qual se faz a serenata , tradicionalmente, ajanela. Pode-se pensar que em muitas casas h portas contguas ajanelas, e que o procedimento retrico da metonmia justifique a tomada de uma pela outra. H que objetar-se, entretanto, que tais janelas so as da sala, no as da alcova. Fosse a rima ajustificativa nica para a presena da palavra "porta" no poema, concluiramos, lembrando Drummond, que o poeta teria encontrado a rima, sem encontrar a soluo. No obstante, o poema melhor do que poderamos imaginar. A porta tambm se explica.

    Por meio dajustaposio de trs imagens, mtodo ideogrmico, poema apresenta-nos, de modo estilizado, como numa pintura ou fotografia, a cena anunciada em seu ttulo. Ele conforma-se, em grande parte, ao cdigo convencional de uma prtica cultural popular, mas apresenta uma dissonncia, seupunctum: falta-lhe o tom de jbilo inaugural prprio de um amor que se inicia (e se anuncia). Pois a serenata, excetuados os casos em que feita para relembrar, para nostalgicamente reviver outros tempos, prtica prpria dajuventude; no s dajuventude do seresteiro, mas da juventude, da infncia mesma, do prprio amor. Ela um procedimento de corte amorosa, um galanteio que o amante dirige mulher pretendida; portanto, freqentemente, quela de cujo amor ainda no tem certeza. O gesto de assentimento da bela, nessa espcie de sobrevivncia romntica dos cdigos do amor corts, consiste em abrir discretamente, entreabrir, apenas para que passem a luz e o som, um para fora, outro para dentro, uma de suas janelas.

    As perguntas que nos surgem, que nos incomodam e perseguem, so estas: de onde vem o tom soturno, elegaco, o lamento que perpassa o poema? o que narrado por ele? A melancolia talvez se explique pelo fato de o poeta j contar 52 anos de idade quando comps o poema. Tal explicao, entretanto, como as outras, que associamos ao studium, seria exterior ao poema. nele mesmo, naquilo que ele narra, que vamos encontrar o inesperado, dele que vem a dor pungente que nos atinge. em sua estrutura que devemos procurar o porqu daquela "lua/morta" e

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  • daquela "porta".

    Temos considerado que a brevidade do poema nos apresenta um "quadro" esttico, para o qual contribui o alto ndice de redundncia introduzido pela repetio, sem alteraes, de 18 dos 24 pontos fonolgicos que o compem. Como vimos, apenas as consoantes iniciais de cada verso se alteram no decorrer do poema. Se h algo de novo, uma experincia particular, se h uma dor ntima, que vincularia fortemente o poema tradio de um lirismo romntico, esse algo s pode surgir desses elementos que introduzem uma dissonncia no quadro padro, socialmente codificado, da serenata. No nos esqueamos daquele "tua" no terceiro dstico, que compromete diretamente o "eu" que fala no poema. Tudo isso nos instiga investigao, a no nos contentarmos com uma leitura que nos revele apenas o bvio, o studium, que forma o pano de fundo, o cenrio, sobre o qual se inscreve a narrativa.

    No brevssimo poema de Cassiano Ricardo, como vimos, a cada novo verso algo se altera: a consoante inicial. Portanto, se algo a narrado, s o pode ser pela informao trazida por essas transformaes, que podem ser comparadas s pequenas alteraes nos fotogramas sucessivos de um filme. So elas, as discretas alteraes, que permitem a reconstituio do movimento e instauram o regime temporal da narrativa por imagens. Hesitando entre a apreenso simultnea da totalidade e a possibilidade de, ainda assim, desenvolver uma narrativa, o poema parece hesitar entre o instante e o tempo.

    As consoantes iniciais dos primeiros versos de cada dstico, como vimos, evoluem de lquidas a oclusiva (r, I, t), e as iniciais dos ltimos versos so todas oclusivas (t, m, p), alcanando uma ocluso mxima ao fim da seqncia. A presena de oclusivas anteriores (t e p), reforando-se mutuamente, no ltimo dstico, e a referncia amada (tua) justaposta ao substantivo concreto (porta), agora no segundo verso, ao contrrio do que sucedera nos versos anteriores, em que os substantivos vinham nos primeiros versos e eram atenuados por adjetivos nos versos seguintes, conduzem-nos concluso de que o poeta se deparou com algo slido sua frente. No s a porta se encontrava fechada, mas tambm o corao pretendido.

    Acrescente-se a essas observaes o fato de que os trs substantivos concretos que formam os ncleos das imagens que compem ideogramicamente o panorama imagtico do poema (rua, lua, porta) variam de uma dimenso csmica a uma dimenso compatvel com a estatura fsica do homem. Enfim, a janela no se abriu, o "poeta", como se diz

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    popularmente, deu com a cara na porta. Ao homem pequeno coube uma dor grande.

    O poema no relata, pois, como quer Nelly Novaes Coelho, "um encontro de amor"l), ou seu prprio autor, "um idlio"13 . A hesitao entre fechamento e abertura, expressa no carter ambguo das consoantes lquidas, r e 1, que iniciam o primeiro e o terceiro versos, respectivamente, encontra sua soluo no fechamento total da oclusiva t. Essa tendncia j se encontrava anunciada nas oclusivas tem dos segundo e quarto versos. A dvida de quem temia ouvir um "no" encontrou expresso nessas escolhas. Nos versos pares, o percurso fez-se no sentido da oclusiva posterior para as anteriores, culminando a srie em p. A hesitao, pois, justificava-se; e mais, indica que o poeta, intuitivamente,J recebera sinais do "no". A negativa total e final, janelas, porta e corao fechados, no foram surpresa completa: h, na estrutura do poema, indcios de que eram previsveis.

    Da o tom de doloroso lamento, da a qualidade de "morta" aplicada lua daquela noite. Da a presena, ao final do poema e da jornada, do substantivo concreto com que o poeta se depara: a "porta",~ evidentemente, fechada. H

    REFERN(IAS BIBLIOGRFICAS

    ANDRADE, (orlas Drummond de. Obra completo. Rio de Janeiro: Jos Aguilar, 1967. BANDEIRA, Manuel. Estrelo do vida inteira. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1970. BARTHES, Rolond. AcOmora clara. Lisboa: Edies 70, 19B1. BRAYNER, Snia (Org.). Cossiono Ricordo. Rio de Janeiro: Civilizoo Brasileira, 1979. CAMPOS, Haroldo de (Org). Ideograma: lgico, poesia, linguagem. Sfia Paulo: (ultrix, 1977. COELHO, Nelly Navaes. Org. Cossiono Ricordo: seleto em proso e verso. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1972. GIL, Gilberto. Aarte de Gilberto Gil. Rio de Janeiro: Phonagram, 1975. Disca Long Play, lbum duplo. RICARDO, (assjana. Poesias completos. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1957.

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    12. COELHO, op. ci!. p. 61 13. RICARDO, 1964. p. 35. 14. (abe observar, ottulo de esclarecimento, que em suo primeira versfio, "A intil serenata", (reproduzido no pgina seguinte), publicado no livro Um dia depois do outra, de 1947, o poema na to sinttico como o que analisamos. Opoema narro o desventuro do trovador. Seu sentido concordo, em termos gerais, com os conclusfies o que chegamos no anlise do verso mais sinttica. Ou seja, 00 reduzir opoema, opoeta agiu corretamente, pois ofarma mais simples foi capaz de ciizer tudo oque havia paro ser dito. Devo o lembrana dessa primeira versfio do poema 00 Prof. Antnio (orlas Secchin, oquem agrodeo.

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