faculdade de filosofia, letras e ciÊncias humanas...
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UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA
Louise Walmsley Nery
Liberdade democrtica versus liberdade filosfica: um estudo dos usos do conceito de
eleuthera na Repblica de Plato
So Paulo
2016
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Louise Walmsley Nery
Liberdade democrtica versus liberdade filosfica: um estudo dos usos do conceito de
eleuthera na Repblica de Plato
Dissertao apresentada ao
Programa de Ps-Graduao em
Filosofia do Departamento de Filosofia da Faculdade de
Filosofia, Letras e Cincias
Humanas da Universidade de
So Paulo, para a obteno do
ttulo em Mestre em Filosofia sob a orientao do Prof. Dr.
Roberto Bolzani Filho.
So Paulo
2016
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Folha de aprovao
WALMSLEY NERY, L. Liberdade democrtica versus liberdade
filosfica: um estudo dos usos do conceito de eleuthera na Repblica
de Plato. 2016. Dissertao (Ps-Graduao em Filosofia) - Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas. Departamento de
Filosofia, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2016.
Banca examinadora
Prof. Dr. ________________________________________________
Instituio: __________________ Assinatura: __________________
Prof. Dr. ________________________________________________
Instituio: __________________ Assinatura: __________________
Prof. Dr. ________________________________________________
Instituio: __________________ Assinatura: __________________
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Agradecimentos
Agradeo, primeiramente, ao meu orientador, prof. Dr. Roberto Bolzani Filho, pela oportunidade de desenvolver esta pesquisa e pela
pacincia e compreenso ao longo de todas as etapas.
Agradeo aos meus pais, Rossana Walmsley e Flvio Jos Nery da Silva, pelo contnuo incentivo aos meus estudos, alm do apoio
empreitada de mudar de estado para prosseguir com a minha
formao.
Agradeo ao prof. Dr. Marco Antnio de vila Zingano e ao prof.
Dr. Daniel Rossi Nunes Lopes por terem participado da minha banca
de qualificao com comentrios, crticas e sugestes fundamentais
para o encaminhamento deste trabalho.
Agradeo ao prof. Dr. Anastcio Borges de Arajo Jnior e a
todos os membros do grupo de pesquisa Dnamis.
Agradeo aos meus professores de grego, Paula, Daniel e Jos Marcos, pois o aprendizado dessa lngua foi essencial para o
desenvolvimento de boa parte da pesquisa.
Agradeo aos participantes dos grupos de pesquisa dos quais tive a oportunidade de participar tambm em So Paulo, pois boa
parte da minha formao enquanto leitora de textos clssicos foi
adquirida nesses grupos, especialmente nos grupos do Centro de
Estudos Helnicos Aret.
Agradeo aos meus colegas de instituio pelos encontros,
comentrios e discusses a respeito de nossas pesquisas,
especialmente ao Henrique, ao Marcello e Helena.
Agradeo Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de
Nvel Superior (CAPES) pela bolsa que me foi concedida durante parte
do tempo em que desenvolvi a pesquisa.
Agradeo, por ltimo, but not least, ao meu companheiro, Ney
Victor de Menezes Pinto, pelo apoio incondicional em todos os
momentos da pesquisa, desde a elaborao do projeto at a redao
final desta dissertao.
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Ningum mais escravo do
que aquele que falsamente
se acredita livre..
Johann Wolfgang von Goethe
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RESUMO
WALMSLEY NERY, Louise. Liberdade democrtica versus liberdade filosfica: um estudo dos usos do conceito de eleuthera na Repblica de Plato. 2016. 116 f. Dissertao (Mestrado) - Faculdade de
Filosofia, Letras e Cincias Humanas. Departamento de Filosofia,
Universidade de So Paulo, So Paulo, 2016.
O presente trabalho tem por objeto de estudo os usos do conceito de eleuthera na Repblica de Plato. Tem-se por ponto de partida uma
gama de conceitos relativos noo de liberdade na antiguidade,
propondo-se a analisar o dilogo segundo duas concepes
antagnicas de eleuthera. A primeira delas a mais comum na abordagem dos dilogos platnicos, trata-se da ideia de fazer o que
se quer e esse sentido encontrado, sobretudo, no exame da forma
de governo democrtica e do homem que corresponde a esse regime
poltico. Para uma compreenso adequada desse sentido, prope-se que se entenda o que est em jogo quando se tece uma crtica ao
regime democrtico. Esse sentido tido como essencialmente
negativo, pois traz consequncias indesejveis dentro do contexto em
que apresentado. Supe-se que haja um outro sentido de
eleuthera presente no dilogo, o qual no tratado sistematicamente e que apenas sugerido nas entrelinhas da mais
bela cidade, a kallpolis. Diante da necessidade de mostrar que esse
sentido pode integrar a economia da obra, parte-se de indcios
textuais nos quais a liberdade no est associada forma de governo democrtica para mostrar que a caracterizao de uma liberdade
positiva parece ser possvel. Esse sentido positivo estaria associado a
um certo ideal de excelncia. Por fim, sugere-se que de acordo com
esse sentido positivo a expresso fazer o que se quer possa ser interpretada de uma forma completamente diversa da encontrada no
contexto democrtico.
Palavras-chave: Plato, Repblica, liberdade, eleuthera
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ABSTRACT
WALMSLEY NERY, Louise. Democratical freedom versus philosophical
freedom: a study of the uses of the concept of eleuthera in Platos Republic. 2016. 116 f. Thesis (Master Degree) Faculdade de
Filosofia, Letras e Cincias Humanas. Departamento de Filosofia,
Universidade de So Paulo, So Paulo, 2016.
The present work has as object of study the uses of the concept of
eleuthera in Plato's Republic. As starting point we have a wide range of concepts related to the notion of freedom in antiquity, it is
proposed the analysis of the dialogue according to two antagonical
concepts of eleuthera. The first is the most common in Plato's
dialogues, it is the idea of "to do whatever one wants" and this
meaning is found, above all, when examining the democratic government and the corresponding man to this political regimen. For
an adequate comprehension of this meaning, it is proposed the
understanding of what is at stake when a critique of the democratic
state is made. This meaning is held essentially as negative because it brings undesirable consequences in the context in which it is
presented. It is supposed that there is other meaning of eleuthera
present in the dialogue which is not sistematically addressed and is
only suggested between the lines of the most beautiful city, the kallpolis. Facing the necessity of showing that this meaning can
integrate the economy of the work, starting from textual indications
that freedom is not associated to the democratic way of government
to show that the characterization of a positive freedom seems possible. This positive meaning could be associated to a certain ideal
of excellency. In the end it is suggested that, according to this
meaning the expression "to do whatever one wants" could be
interpreted in a completely diverse way of the meaning found in the
democratic context.
Key Words: Plato, Republic, freedom, eleuthera
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Sumrio
Introduo ..............................................................................8
I. Os sentidos de eleuthera ................................................... 17
1. Do sentido popular do adjetivo eletheros sua apropriao
filosfica ............................................................................... 18
2. A ambivalncia do conceito de eleuthera na Repblica ........ 25
II. A eleuthera em seu principal uso na Repblica ................ 31
1. Contexto do livro VIII ..................................................... 32
1.1. Um paradigma que fundamenta a crtica s formas de
governo ............................................................................. 35
1.2. Princpios que fundam e corrompem as formas de governo
46
2. A eleuthera democrtica ................................................. 51
2.1. Um modo de vida doce: a liberdade e a satisfao dos
desejos .............................................................................. 52
2.2. A eleuthera qualificada e a runa desse conceito ........... 67
III. H eleuthera na mais bela cidade? ................................. 77
1. A possibilidade de uma interpretao positiva .................... 78
2. O aneletheros como o que no digno da kallpolis........... 94
3. O bom ordenamento interno como uma expresso possvel de
liberdade ............................................................................ 101
Consideraes finais ............................................................ 110
Referncias.......................................................................... 112
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Introduo
O dilogo A Repblica um dos textos mais comentados da
tradio filosfica, tendo recebido inmeras classificaes e
interpretaes desde a antiguidade at os nossos dias. Plato j foi
lido como ctico, dogmtico, idealista, realista, socialista e at
mesmo nazista (VEGETTI, 2010). Sem dvida, tal obra nos oferece
uma quantidade exorbitante de contedos: trata-se de um
monumento filosfico que examina temas fundamentais na histria
das ideias, tais como as qualidades da alma (psych), a educao do
homem (paidea), a excelncia (aret), o regime poltico (politea),
entre outros. Essa diversidade de aspectos se acumula com uma
dificuldade que inerente ao prprio modo segundo o qual Plato
escreveu: o dilogo. Resulta que o arco interpretativo por onde
transitam os intrpretes por demais amplo e contraditrio. Alm,
claro, dos chamados recortes textuais, atravs dos quais possvel
construir toda uma nova teoria da filosofia platnica, sem levar em
conta a complexidade do pensamento do autor.
Tratar da liberdade na Repblica um grande desafio.
Primeiramente porque no contexto dos totalitarismos do sculo
passado, os quais esto prximos demais a ns para que possamos
negligenci-los, Plato foi eleito o inimigo nmero um da sociedade
que pe em liberdade as faculdades crticas do homem (POPPER,
1998, p. 15). O autor dos dilogos ocupa, assim, um lugar de
destaque, visto que foi fortemente acusado e combatido pelos
defensores da sociedade cujo valor essencial a prpria noo de
liberdade. Jean-Franois Pradeau explica essa atitude de pura e
simples recusa do pensamento platnico atravs de um certo pthos
democrtico que atingiu os autores do sculo XX (2005, p. 18) e
certamente ainda vigora nesse incio de sculo. Robert Muller resume
bem a frmula utilizada na maior parte desses crticos: somam-se as
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passagens nas quais a liberdade aparece de forma essencialmente
negativa, como o caso do oitavo livro da Repblica, aos trechos que
aludem ao intelectualismo moral. O resultado no pode ser outro:
Plato tido como um inimigo da prpria ideia de liberdade.
Ao leitor que pretende examinar se essa frmula realmente
resume de forma adequada o contedo dos dilogos platnicos cabe,
portanto, o seguinte um desafio: preciso lidar com as evidncias
textuais que mostram que a liberdade acaba por exercer um papel
pernicioso que leva o homem e a cidade a males indesejveis no
desenvolvimento argumentativo da Repblica. Nossa proposta a de
realizar esse percurso sem os preconceitos daqueles que tentam a
todo preo ver em Plato um inimigo da liberdade. Tambm preciso
velar para que no se cometam os excessos opostos, de forma a
incorrer na atitude que Pradeau e Vegetti resumem como salvar
Plato, apesar dele. O intuito de nossa pesquisa o de fazer uma
leitura atenta ao texto para tentar encontrar atravs de quais
elementos Plato recusa ou integra a liberdade na sua concepo de
filosofia.
Antes de prosseguirmos, cabe uma breve observao sobre
a metodologia que adotaremos para a leitura do dilogo.
Sabemos que Plato no escreveu tratados filosficos, mas
dilogos. possvel supor que, diante de uma tradio que escrevia
sobretudo poemas picos e peas literrias, ambos destinados
apresentao oral, o dilogo teria sido um tipo de intermedirio entre
a tradio oral e a escrita. Contudo, como bem indica Scolnicov
(2003, p. 49-50), na poca que Plato escreveu seus dilogos a prosa
j era comum. o caso das Histrias de Herdoto, escritas em prosa,
ainda que pudessem ser objeto de recitao oral1. Ou mesmo antes,
por exemplo, Anaximandro, cujo texto, em prosa, j veiculava
1 Segundo Maria Helena da Rocha Pereira (2012, p. xxxv-xxxvi), tal obra teria sido recitada em
Atenas e em Olmpia perante um grande auditrio.
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contedo filosfico desde o sculo VI a.c. Tal suposio no parece,
portanto, plausvel. Assim, a forma dialgica parece ser uma escolha
deliberada de Plato para apresentar suas anlises filosficas, mais
ou menos desenvolvidas, ao longo dos dilogos.
H, ao menos, trs estilos consagrados de metodologia para
a abordagem dos dilogos platnicos. Christopher Gill (2006, p. 55-
60) os descreve nos seguintes termos: o primeiro estilo, que de to
difundido parece ser o mais natural, o mtodo analtico. Nessa
perspectiva, Scrates seria o porta-voz das teses platnicas e caberia
ao intrprete fazer a anlise dos argumentos, sem que a forma
dialgica, a escolha das personagens e a mise-en-scne fossem de
grande relevncia para a apreenso do cerne da filosofia platnica. O
segundo estilo aquele que faz a distino entre as doutrinas
exotricas e esotricas da Academia, sendo as primeiras de carter
propedutico e as ltimas destinadas aos estudantes mais avanados.
Caberia aos verdadeiros filsofos encontrar nos dilogos as doutrinas
no escritas e discuti-las. O terceiro e, a nosso ver, mais interessante
dos estilos aquele que atribui maior importncia ao fato de Plato
escrever dilogos (...), que so escritos de modo a estimular o leitor,
a fim de faz-lo refletir sobre as ideias discutidas. Os dilogos
apresentam um autntico exerccio de filosofia (p. 57).
Com efeito, esse terceiro mtodo de abordar os dilogos
platnicos tem sido cada vez mais bem acolhido entre os helenistas.
Da mesma maneira que ns, indivduos, leitores, temos vises de
mundo particulares, as personagens dos dilogos podem representar
modos de ser e de pensar muito diversos, os quais podem e devem
passar pelo crivo da filosofia, de onde a importncia dos
questionamentos ao longo das obras. Uma exortao da vida com
exame, para retomar a expresso da Apologia (38a), seria, segundo
essa perspectiva, o verdadeiro sentido da filosofia platnica. Essa
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abordagem, na qual o Plato dramaturgo e o filsofo se encontram,
foi bem resumida nas palavras de Bolzani:
Essa habilidade (literria), est a servio de uma
filosofia que no se reduz a teses bem formuladas e
argumentos refinados, e que pretende alcanar um certo tipo de leitor, com o pretensioso projeto de faz-
lo aderir a essa nova mentalidade. (...) Por isso, os
recursos da escrita fazem parte dessa disputa, que , afinal, de natureza pedaggica. (2012, p. 5)
nisto que consiste o carter pedaggico da obra platnica:
a incitao da reflexo filosfica por parte das personagens, e, em
ltima instncia, do leitor. O expediente literrio est a servio da
filosofia na medida em que apresentar teses ou, para usar uma
expresso mais forte, fazer asseres com pretenso de verdade, no
seria uma estratgia suficiente para iniciar uma ao transformadora
dentro da perspectiva platnica. Do ponto de vista literrio, seria
muito mais fcil pr na boca de Scrates afirmaes categricas em
defesa do modo de vida que Plato pretende exortar. Mais fcil,
contudo muito menos profcuo. Se o estmulo para tal ao no partir
do prprio indivduo, dificilmente o resultado alcanado ser
satisfatrio. No basta expor determinadas teses, preciso que elas
sejam examinadas, confrontadas, preciso levantar hipteses,
recorrer a analogias, cair em aporia e tentar propor solues aos
impasses a fim de, talvez, persuadir o interlocutor a repensar suas
posies e o seu prprio modo de vida. na problematizao das
teses levantadas ao longo do texto que reside o interesse da forma
dialgica. Nos dilogos platnicos isso se traduz nos questionamentos
das personagens, o que parece ser um modo eficiente de despertar a
reflexo filosfica.
Pois bem, essa postura metodolgica a que nos parece a
mais adequada para a abordagem da Repblica. Isso relevante
porque, entre outras coisas, sabemos que as personagens com as
quais Scrates dialoga ao longo da obra ganham maior ou menor
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destaque, chegando a desaparecer completamente (como o caso de
Clitofonte) ou ganhar maior destaque (Glucon e Adimanto a partir
do segundo livro, por exemplo). De modo que a escolha do
interlocutor para cada passo argumentativo no parece ser fortuita.
Ao contrrio, as personagens parecem representar os possveis
modos de ser na cidade. Alguns dos grandes leitores de Plato
analisaram com bastante pertinncia personagens da Repblica e de
outras obras segundo essa perspectiva pedaggica2, o que levaremos
em considerao durante o desenvolvimento deste projeto. Para fins
do nosso estudo, quanto ao mtodo de leitura, por ora, no
avanaremos mais que isso.
Quanto periodizao do corpus platnico, sabemos que
esta questo est longe de ser ponto pacfico entre os especialistas.
Aristteles j teria feito a distino entre temas socrticos (como a
akrasa no Protgoras) e temas propriamente platnicos (as idea na
Repblica)3. Haveria, portanto, fases no pensamento platnico. A
princpio uma fase socrtica e uma propriamente platnica. Mas a
discusso no se resume a isso, tendo em vista que em algumas
obras Plato teria revisitado algumas de suas hipteses4. Haveria,
ento, um Plato da juventude, socrtico, um Plato da maturidade,
platnico, e um Plato da velhice, que teria modificado alguns
aspectos de sua filosofia. Essa separao, mais ou menos ntida
segundo os comentadores, ganhou destaque a partir dos anos 50 e
sua fora reside na tentativa de conciliar posies aparentemente
contraditrias em diferentes dilogos, tratando-as como abandono ou
refinamento de suas principais teses5.
2 Para uma anlise em um quadro mais geral das personagens platnicas, cf. Scolnicov (2003,
p. 49-59). Para uma anlise muito apurada do papel de Glucon na Repblica segundo essa abordagem, cf. Bolzani (2012, p. 98-116). 3 Sobre a distino aristotlica, cf. Vlastos (1991, p. 91-98)
4 A mais famosa sendo a questo das Formas, que tem um formato na Repblica e revisitada
em dilogos como Parmnides e Sofista. 5 Rowe chama essa abordagem de desenvolvimentista e faz trs crticas a essa postura: se
Plato tivesse abandonado a filosofia socrtica ele deveria abandonar tambm a personagem
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Que h algum grau de diferena entre teses apresentadas
em diferentes dilogos, de diferentes perodos, parece bvio.
Contudo, afirmar que a expresso tpos noets desaparece nos
dilogos tardios de Plato para dar lugar a realidades que so o
antdoto da esclerose prpria ao isolamento (das formas), como faz
Cordero (1993, p. 25), parece-nos um exagero. Para assumir que h
uma esclerose no sistema filosfico do Plato da maturidade,
preciso antes aceitar que h um sistema, uma doutrina acabada, o
que no parece ser o caso. Encontramos na Repblica uma srie de
ponderaes quanto s dificuldades do mtodo empregado e aos
limites inerentes prpria condio humana, de forma que
acreditamos haver nos dilogos proposies, hipteses, no
necessariamente um sistema fechado que, de to isolado da
realidade, esclerosou e precisou de um antdoto.
Alm disso, a prpria forma dialgica das obras nos permite
questionar essa interpretao. Ao pr na boca de diferentes
personagens suas teses, Plato teria se comprometido com todas
elas? impossvel que seja assim. Ento quais seriam as teses
propriamente platnicas? Como podemos notar, estamos transitando
em um terreno rido e espinhoso, que vai muito alm do escopo do
nosso trabalho. No assumiremos esse desenvolvimentismo radical,
no qual as fases esto perfeitamente delineadas e h uma ruptura
brusca entre as teses e o prprio modo de fazer filosofia. H na
Repblica, como veremos, aspectos dos dilogos que com algum
consenso so classificados de juventude e da maturidade platnica.
nessa obra que reside boa parte da filosofia propositiva de Plato,
que vai alm do questionamento de conceitos e aporias e apresenta
mtodos de investigao e hipteses para solucionar os problemas
que surgem ao longo do dilogo.
Scrates; a separao entre os grupos assume as diferenas de forma muito acentuada; o prprio critrio evolutivo incerto (2011, p. 30-31). Concordamos, especialmente, com a segunda crtica e a isso que vamos nos ater na nossa exposio.
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A Repblica uma das obras mais extensas do corpus
platnico e a sua argumentao extremamente bem articulada.
Com efeito, a apresentao de determinadas propostas no se d
sem que algumas de suas teses sejam questionadas ao longo do
dilogo, o que faz com que a leitura no possa ser reduzida a uma
mera sequncia de proposies. Trata-se, antes, de um exerccio
filosfico, que exige a retomada de alguns temas a fim de preencher
lacunas que eventualmente possam ter sido deixadas em aberto.
Nesse dilogo isso se d por meio de interrupes das personagens,
as quais exigem esclarecimentos acerca de determinados pontos6.
Resulta disso que ao leitor que aceita o desafio de interpretar essa
obra, faz-se necessria a insero dos temas abordados em
determinados contextos. Assim, como um verdadeiro quebra-cabea,
preciso encontrar as articulaes de cada pea com as demais para
que se possa ter uma viso adequada sobre o todo.
Para a anlise dos usos de eleuthera na Repblica, parece-
nos, portanto, imperativo que analisemos o que est em jogo na
discusso. Afinal, Plato no escreveu uma obra chamada Sobre a
liberdade, mas uma Politea que rege uma cidade excelente, na qual,
entre muitas outras coisas, a forma de governo democrtica, cujo
fundamento uma certa liberdade, considerada um vcio. No h,
portanto, uma discusso isolada a respeito do conceito de eleuthera.
Tal reflexo est inserida dentro de um contexto argumentativo que
relevante para uma compreenso dos usos de liberdade no dilogo.
Pelos motivos acima expostos o nosso plano de trabalho
leva em considerao toda a estrutura argumentativa da Repblica.
Mas, antes disso, no primeiro captulo, iniciaremos com uma breve
anlise dos sentidos de eleuthera na plis ateniense, em seguida,
tentaremos mostrar que esses sentidos podem ser interpretados
6 Por exemplo: 449 b c retoma o que fora apresentado em 423 e 424 a; 543 c 544 b
retoma 445 c e.
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segundo dois eixos de leitura, que representam dois valores rivais no
interior do dilogo.
No segundo captulo, trataremos do principal uso da
liberdade no dilogo, qual seja: a liberdade democrtica. Iniciaremos
com um mapeamento da discusso que norteia a Repblica, a fim de
entendermos os pressupostos da crtica ao regime cujo princpio a
eleuthera. Em seguida, trataremos da liberdade enquanto
fundamento da forma de governo democrtica, para que, a partir
desse sentido, possamos analisar as consequncias da liberdade
democrtica. Procuraremos mostrar que a liberdade nesse contexto
associada licenciosidade e quase sempre qualificada de forma a
amplificar o seu sentido. Esse excesso culmina na destruio desse
regime poltico, por isso a liberdade no contexto do livro VIII e incio
do livro IX da Repblica tem um sentido essencialmente negativo.
No terceiro e ltimo captulo, baseados em algumas
evidncias textuais, procuraremos sugerir que a liberdade, talvez,
no seja unicamente negativa na Repblica. Por um lado, h uma
certa liberdade que aparece como uma sorte de ideal no processo
educativo ao qual os guardies da kallpolis devem se submeter. Por
outro lado, h uma condenao do que contrrio liberdade ou
indigno de um homem livre em algumas passagens que se referem
cidade fundada no lgos. Por fim, procuraremos sugerir que, se todas
as exigncias da cidade paradigmtica forem respeitadas, pode ser
que haja um sentido segundo o qual possvel ser livre na kallpolis e
que, talvez, esse seja o nico sentido autntico de liberdade para
Plato.
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I. Os sentidos de eleuthera
Pensar a principal cidade-estado da Hlade Clssica como
uma democracia, na qual todos os cidados eram homens livres,
hoje um lugar comum. Com efeito, os conceitos de isonoma, isegora
e isokrata so hoje bem conhecidos por caracterizarem o regime de
igualdade no qual viviam os atenienses em seu apogeu. Esses termos
caracterizam a igualdade perante as leis (do sufixo grego iso, que
significa igual, e do substantivo nmos, aqui entendido como lei),
igualdade de direito de manifestao em assembleias pblicas (do
verbo agore, falar em pblico) e igualdade de acesso ao poder (do
verbo krate, que significa ter poder), respectivamente.
O prprio conceito de liberdade, eleuthera, no recebe
assim tanto destaque, apesar de caracterizarmos constantemente
como cidados apenas os homens livres das pleis gregas. Isso se d
porque o substantivo eleuthera teria surgido a partir do prprio
adjetivo eletheros. Com efeito, Pierre Chantraine no seu Dictionnaire
Etymologique de la Langue Grecque (1970, tome II, p. 336) nos
esclarece que o substantivo eleuthera derivado do adjetivo
eletheros, o qual, por sua vez, se contrape ao adjetivo dolos. No
por acaso a primeira acepo do adjetivo eletheros no dicionrio
Bailly (2000, p. 644) tambm : livre, em oposio a dolos.
Assim, h um modo de ser na cidade, o ser livre, que
caracteriza os cidados atenienses. Vejamos, primeiramente, qual o
valor desse adjetivo em seus empregos na cidade. Em seguida,
veremos quais outros termos so ligados liberdade do ponto de
vista semntico. Para terminarmos o captulo, examinaremos a
ambiguidade semntica do que o prprio termo eleuthera comporta.
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1. Do sentido popular do adjetivo eletheros sua apropriao
filosfica
Qualquer manual de introduo Filosofia Clssica no pode
prescindir da caracterizao dos cidados da plis ateniense como
livres. So livres aqueles que nascem de famlias que j integram a
plis como livres e que tm um lugar na participao poltica nas
assembleias, incluindo a possibilidade de se expressar e de votar nos
momentos de tomada de deciso em um governo democrtico. bem
sabido que o predicado livre (eletheros) era uma condio sine qua
non para que os indivduos que viviam na Atenas Clssica pudessem
gozar do estatuto de cidado e, por conseguinte, para que pudessem
exercer a sua plena cidadania na plis. Como resume bem Robert
Muller, esse sentido poltico do adjetivo livre permite que seja
caracterizado de tal forma o homem que possui um certo nmero de
prerrogativas, especialmente no que diz respeito ao direito ao
exerccio da soberania (1997, p. 47).
Essa caracterizao poltica ope, por exemplo, os prprios
cidados com direito participao nas assembleias, os ditos homens
livres, a alguns estrangeiros (ksnos), que, apesar de possurem o
status de livres7, no possuam os mesmos direitos polticos dos
cidados. A caracterizao poltica do homem livre atravs do uso do
adjetivo eletheros , contudo, mais frequente no sentido que Muller
chama de seu uso vulgar (p. 69): trata-se da oposio livre/escravo
(eletheros/dolos), a qual aparece como a primeira acepo da
entrada eletheros em todos os dicionrios consultados8. Com efeito,
7 Essa oposio pode ser atestada em vrias passagens de textos antigos. HANSEN (2010, p.
2, n. 11) elencou vrias passagens nas quais os estrangeiros so tidos como livres. 8 Para o desenvolvimento de nossa pesquisa, consultamos, alm do importante Vocabulaire
des institutions indo-europennes, de mile Benveniste (1993), os seguintes dicionrios: i. BAILLY, Anatole. Le Grand Bailly: Dictionnaire Grec-Franais (2000) ; ii. CHANTRAINE, Pierre. Dictionnaire Etymologique de La Langue Grecque (1970) ; iii. LIDDELL, Henry; SCOTT, Robert. A Greek-English Lexicon (2012), doravante
citado como LSJ.
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trata-se do mais antigo sentido de eletheros, sendo, inclusive,
atestado nos poemas homricos (HANSEN, 2010, p. 2). Essa oposio
se faz importante por diversos motivos, sendo os principais a
possibilidade de se deslocar sem dificuldades para os que so livres e
a exposio a castigos corporais, que era limitada aos escravos.
As suas acepes, so, de fato, numerosas9, e por isso no
parece desprovido de sentido verificar a origem do termo. Claude
Romano (2002, p. 341) esclarece que o durante muito tempo a
origem do termo eleuthera estaria ligada ideia de ir aonde se
deseja, uma vez que o radical eleuth- prximo do radical do futuro
do verbo ir (rkhomai), elth-. Assim, o significado poltico, que
contrape o homem livre ao escravo, teria esse sentido porque o
homem considerado livre era aquele que podia se deslocar como bem
entendesse.
Essa interpretao da origem do eletheros, apesar de
explicar muito bem um dos sentidos desse vocbulo, , contudo,
considerada ultrapassada10. No seu Vocabulaire des institutions indo-
europennes, Benveniste (p. 322-323) associa o eletheros a uma
forma antiga, o *(e)leudheros, cuja raiz, *leudh-, que significa
crescer, se desenvolver, faria com que o eletheros representasse o
homem que conseguiu se desenvolver de forma completa, ampla11.
Essa raiz tambm permitiria que o livre fosse entendido num sentido
social, o qual designaria o pertencimento a uma cepa, o equivalente
de ser nascido em uma determinada comunidade. A contribuio de
Benveniste apresenta um grande ganho para essa noo, visto que
aqui h um ideal de homem que pode se desenvolver e se tornar
pleno, graas ao da educao (paidea).
9 Hansen identifica ao menos nove sentidos em seu artigo Democratic Freedom and the
Concept of Freedom in Plato and Aristotle (2010). 10
O prprio Claude Romano (2002) e Robert Muller (1997) consideram que essa forma foi, primeiramente, superada pela explicao de Benveniste. Contudo, como veremos, h outras interpretaes que parecem mais pertinentes questo. 11
Para explicar esse sentido, Benveniste recorre a uma metfora vegetal: crescer e se desenvolver como uma planta, que desabrocha.
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Contudo, como ressalta Muller (p. 50), mesmo esse
significado parece no fazer jus diversidade dos usos encontrados
na literatura grega. Com efeito, a cada vez que o termo livre
seguido por um determinante, geralmente no genitivo, o seu uso
parece designar o fato de estar livre de alguma coisa: livre do medo,
ou, ainda, livre da ameaa de um inimigo12. Mais do que isso: o
sentido do desenvolvimento pleno implica que no haja impedimentos
para que esse crescimento possa chegar ao seu ponto final. Como
uma planta que poderia crescer e vir a desabrochar dentro de
determinadas condies, o homem tambm precisaria cumprir
determinadas etapas dentro de certas condies para que pudesse
desabrochar e atingir o seu pleno desenvolvimento para que fosse
considerado livre. Se essas condies no forem cumpridas por
qualquer tipo de impedimento, esse ideal de plenitude no poder ser
alcanado, o que significa que esse sentido, por mais tentador que
seja, traz, junto possibilidade de sucesso e de pleno
desenvolvimento, a possibilidade do fracasso.
Alm disso, o sentido que Arajo Jr. (2012, p. 33) chama de
popular tambm um sentido muito diverso daquele que fora
estabelecido por Benveniste, o que mostra que o termo j
apresentada uma grande pluralidade semntica ainda na antiguidade,
alm de indicar que no devemos nos guiar apenas pelo seu sentido
originrio. Trata-se do sentido que permite que cada homem livre
viva da maneira que ele quiser: dzn hs boleta tis. Esse sentido
aparece em fontes muito diversas13, o que corrobora a ideia de que
essa seja, de fato, a acepo mais popular do eletheros. Hansen
(2010, p. 6) ressalta, contudo, que esse tambm o sentido mais
controverso do termo, pois em algumas passagens o seu uso parece
12
O prprio Muller traz esses exemplos da obra de Eurpedes (cf. p. 50, n. 4). 13
Hansen (2010, p. 6, n.19) elenca vrias passagens em Herdoto, Tucdides, Plato, Iscrates e Aristteles. Muller (1997, p. 70, n. 3) tambm apresenta uma lista de passagens. Alm das j citadas, Muller traz ainda Xenofonte, Demstenes, Sfocles e vrias outras passagens em Plato.
-
21
estar restrito ao modo de se viver publicamente no regime
democrtico, em outras esse princpio parece ser usado apenas na
esfera privada e no na pblica. De toda forma, dado o elevado
nmero de fontes que se valem desse sentido do termo, essa
acepo parece ter um valor importante ao menos na plis ateniense.
No temos a inteno aqui de examinar todos os sentidos
possveis do adjetivo eletheros na antiguidade, uma vez que nossa
pesquisa visa, sobretudo, a anlise de alguns usos precisos do
substantivo que derivado desse adjetivo: a eleuthera. Tendo em
vista o nosso objetivo, parece-nos importante ressaltar que o
eletheros era uma noo que integrava a vida comum na plis e,
assim como acontece com boa parte dos termos que acabam
ocupando um lugar central no exame filosfico, a apropriao
filosfica s acontece em uma etapa subsequente, a qual pode
aprofundar um determinado significado, especificar o sentido de uma
determinada palavra ou de um determinado uso, ou ainda subverter
completamente o seu significado mais comum. O que nos parece
importante ter em mente o que Muller nos adverte: Plato utiliza
uma palavra e uma noo que j existiam antes dele e que fazem
parte das vrias outras noes que ele herda (p. 46-47). Ou seja,
ainda que a filosofia tenha como tarefa o exame de determinados
conceitos, h um valor inerente a esses termos que precedem o
exame filosfico e esse valor no pode ser negligenciado.
O que peculiar no tratamento platnico da noo de
eleuthera que, como se trata de um substantivo derivado de um
adjetivo cujo uso era frequente e entendido por todos os que
estavam em contato com a obra platnica, nas suas aparies no h
uma preocupao maior em definir esse conceito, tudo acontece
como se o essencial j tivesse sido dito e como se houvesse um
consenso implcito sobre o significado desse termo. Ou seja,
pressupe-se que o leitor ou ouvinte dos dilogos j tivesse em
-
22
mente o contedo semntico do adjetivo eletheros. Isso
problemtico porque, como dissemos, a palavra provm da
linguagem comum, ordinria, e a apropriao filosfica do termo no
pode ser dissociada de uma nova elaborao. Muller (p. 64) lembra
ainda que essa apropriao que o discurso filosfico faz do termo
eleuthera impe ao seu uso uma significao e uma determinao
especficas dentro de um sistema considerado.
No caso de Plato, o que se segue desse uso sem um
tratamento elaborado, sem o cuidado de definir o termo e de
desenvolver a discusso sobre os seus significados que, apesar da
introduo de determinados usos de eletheros e eleuthera ser
discreta, o significado que dado a esses termos so essenciais para
que se possa compreender o sentido de determinadas crticas que so
tecidas ao longo dos dilogos. No caso da Repblica, o caso mais
evidente o da crtica democracia, a qual se vale do conceito de
liberdade em muitos trechos, sem que se discuta, de fato, o que
significa essa liberdade e o que significa dizer do homem que habita
uma cidade democrtica que ele livre.
Acreditamos que, embora o contedo semntico
pressuposto desses termos no seja explicitado, o autor dos dilogos
sabia exatamente o que estava em jogo quando fez a opo de
empreg-los em determinados contextos da Repblica, uma vez que,
como veremos, em algumas passagens o sentido de eleuthera e
mesmo de eletheros muito diverso do sentido popular. Por isso
concordamos com Muller quando ele afirma que Plato percebeu
lucidamente as implicaes da noo, da qual ele faz questo de
expor os riscos do uso desmedido, e que ele consegue, alm disso,
atravs de uma anlise que decorre desse uso, traar os contornos
essenciais de um uso contrrio ao desmedido, o que talvez seja o
nico autntico (p. 68).
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23
Parece-nos, portanto, haver um significado de eleuthera
que integra a economia da Repblica, o qual decorre do sentido
popular como um desdobramento filosfico. Com efeito, Hansen
(2010, p. 1) tambm ressalta que, em contraste a um sentido
popular de liberdade poltica, h um sentido filosfico alternativo da
concepo de eleuthera que aparece nos textos de Plato e
Aristteles14. Para Hansen, esse seria o nico tratamento que poderia
identificar do que realmente se trata quando se fala da eleuthera15.
Esse pretenso significado autntico da liberdade filosfica,
no entanto, ocupa um lugar de pouco destaque nos estudos
platnicos. Com efeito, ao analisar a situao da literatura quanto
noo de eleuthera nas principais obras que se dedicam ao autor dos
dilogos, Muller nota que a situao est longe de ser considerada
favorvel:
Sem ter a inteno de tecer uma lista exaustiva [da falta de ateno que a noo de liberdade
recebe nesses estudos], preciso notar que as
obras de referncia mais utilizadas16 no contm
mais do que algumas breves pginas sobre a liberdade, isso quando no se restringem a simples
aluses, alm do fato de que se trata apenas, na
maior parte dos casos, do sentido poltico da
liberdade (1997, p. 21).
Quase vinte anos se passaram desde a publicao da obra
de Muller e o quadro hoje no muito diferente. Alguns artigos
isolados tm sido publicados, mas a questo da liberdade enquanto
conceito filosoficamente relevante ainda est longe de ser
considerada essencial nas pesquisas que se dedicam ao corpus
platnico. Como o tema de nossa pesquisa justamente os usos do
14
Apesar de reconhecermos o quo rica seria uma abordagem que pudesse expor tambm como Aristteles se apropria dessa noo popular de eleuthera, no mbito de nossa pesquisa nossa dedicao ser exclusiva ao tratamento do conceito de liberdade em Plato, mais especificamente na Repblica. 15
In particular Platos and Aristotles understanding of what freedom is really about (Hansen, 2010, p.1. Destaque nosso). 16
Cf. p. 21, n.3 para algumas dessas referncias.
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24
conceito de eleuthera na Repblica, faremos a seguir uma breve
introduo dos usos desse termo no dilogo, a fim de fixarmos a
termologia que utilizaremos ao longo de nosso trabalho.
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25
2. A ambivalncia do conceito de eleuthera na Repblica
Depois de verificarmos que uma ampla gama de sentidos
faz parte do significado de eletheros na cidade antiga, de se
esperar que boa parte dos diversos sentidos evocados na seo
anterior tambm integre a construo dialgica da Repblica. De fato,
nesse dilogo encontram-se quase 70 passagens nas quais o conceito
de eleuthera se faz presente. Verifiquemos, ainda que de forma
breve, como eles se apresentam nessa obra.
O sentido que chamamos de vulgar de eletheros, que se
contrape ao escravo, dolos, est presente, por exemplo, no oitavo
livro da Repblica, no qual as formas de governo corrompidas so
analisadas. Depois de caracterizar o regime timocrtico, baseado na
honra, trata-se do homem correspondente a essa forma de governo.
Em 549a dito que com os escravos (dolois) o homem que vive em
uma timocracia rude (grios), ao passo que com os homens livres
(eleuthrois), ele civilizado, pois foi educado de maneira adequada
(hsper ho hikans pepaideumnos). Aqui fica clara a oposio entre,
por um lado, o homem que integra a classe dos livres e possui alguns
privilgios, e, por outro lado, o escravo, que, por sua vez, no
merece receber o mesmo tratamento dispensado aos homens livres.
Tambm no oitavo livro da Repblica, depois de explicar o
surgimento do regime democrtico, quando a cidade oligrquica
adoece e passa a lutar contra ela mesma, essa forma de governo
caracterizada da seguinte forma:
Em primeiro lugar, os homens no so livres (eletheroi) nessa cidade? No vigora em toda a
cidade a liberdade (eleutheras) e a garantia do
direito de livre expresso e tambm a licena de
nela se fazer o que se queira (ka eksousa en auti poien hoti tis boletai)? (557b4).
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26
Assim, possvel notar que o sentido popular da eleuthera, segundo
o qual cada um tem a liberdade para agir da forma que desejar,
tambm faz parte da economia do dilogo.
Ainda no oitavo livro, aps o exame da forma de governo
democrtica, cujo fundamento, como vimos, a prpria eleuthera,
as personagens do dilogo passam a analisar de que maneira a pior
das formas de governo, a tirania, vem a ser. Nessa passagem dito
que at os animais em uma tal situao so livres, por esse motivo
at os cavalos (hppoi) e os burros (noi) tm o costume de andar
com toda a liberdade (pny eleuthrs) e altivez pelas estradas
(563c-d). Aqui, apesar de se tratar de uma passagem que um misto
de comicidade e ironia, sobre a qual nos deteremos mais adiante,
parece que podemos encontrar o sentido que liga o radical eleuth- ao
radical futuro do verbo rkhomai: elth-. Com efeito, aqui o sentido do
adjetivo eletheros que representa aquele que pode ir e vir sem
restries encontrado.
No terceiro livro da Repblica, Scrates e seus
interlocutores esto preocupados com a educao que deve ser
dispensada ao guardio da cidade que eles esto a fundar no
discurso. Uma das qualidades que deve integrar o carter dos
guardies a coragem e por isso alguns versos homricos utilizados
na educao precisam ser eliminados. Como esses homens corajosos
no devem temer a morte, preciso que esses homens sejam livres
(hos de eleuthrous 387b5). Nessa passagem, atravs de um
aperfeioamento que pode ser alcanado graas a um determinado
procedimento paidutico, encontramos o sentido de eletheros que,
de acordo com Benveniste, seria derivado de uma forma antiga, cujo
radical seria *leudh. Nesse caso o livre tem por significado aquele
que pode crescer e se desenvolver para atingir um certo ideal de
homem.
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27
Pois bem, constatamos assim que o uso desse conceito na
Repblica contempla ao menos uma boa parte da gama de
significados que o eletheros pode assumir. Porm, mais do que
elencar as passagens nas quais a liberdade est em jogo, o que nos
interessa , antes, dar um sentido a essa pluralidade de significados
no interior da obra.
Embora esse conceito seja mencionado apenas
esporadicamente e sem um desenvolvimento argumentativo na maior
parte do texto, encontramos, de fato, tanto o sentido vulgar, que
ope o homem livre (eletheros) ao escravo (dolos), quanto o uso
cujo sentido atribui ao homem livre um certo ideal de
aperfeioamento, o qual permite que o indivduo se desenvolva
dentro de determinadas condies, entre elas a paidea. Acreditamos
que esse ideal de pleno desenvolvimento, que est associado ao seu
sentido etimolgico segundo Benveniste, possa ser identificado, na
maior parte do seu emprego nesse dilogo, com o sentido vulgar da
eleuthera.
Com efeito, na maior parte dos casos em que se ope o
eletheros ao dolos na Repblica, Plato no est simplesmente
atentando para o fato de que certos homens possuem direitos
polticos e outros so excludos da tomada de deciso na plis. H
uma sorte de valor que est por trs do uso do adjetivo eletheros
nesse caso. Esse valor nos parece ser fortemente positivo, uma vez
que ele aparece em contextos nos quais o que est em jogo o tipo
de homem que se espera formar na mais bela cidade, cujo objetivo
fazer com que ele seja, como a cidade, a kallpolis, to excelente
quanto possvel.
Assim, ao que nos parece, possvel reunir esses dois
significados distintos de eleuthera em torno do valor que est por
trs do seu emprego na economia do dilogo. Como observa Muller
-
28
(1997, p. 45), a liberdade no uma noo como as outras, pois ao
falarmos de liberdade j pressupomos que o que est em jogo um
valor17. De fato, ningum, ainda em nossos dias, assumiria uma
posio contrria liberdade. Seja qual for o significado que
dispensamos ao termo, a liberdade aparece sempre como um valor
essencial a ser resguardado. Na Repblica, a liberdade como um ideal
de desenvolvimento parece encontrar o seu lugar, embora a
explorao desse significado ainda seja discreta nos estudos
platnicos. Essa liberdade a que chamaremos de liberdade positiva
no desenvolvimento de nossa pesquisa, pois ela visa a alcanar um
ideal de aperfeioamento humano, limitado, verdade, dadas as
condies que envolvem a nossa prpria existncia material, mas,
ainda assim, supomos que esse sentido se faz presente em
determinadas passagens do dilogo e um dos objetivos de nossa
pesquisa determinar em que consiste essa liberdade, se que
possvel caracteriz-la.
Se falamos, em um certo sentido, de uma liberdade
positiva, porque supomos que tambm exista no interior da obra
um sentido antagnico, o qual chamaremos de liberdade negativa.
Esse tipo de liberdade, ao que nos parece, pode ser identificado com
o seu sentido popular, segundo o qual o homem livre pode fazer
aquilo que deseja (poien hti tis boletai). Como veremos, em parte
significante das passagens que se referem a esse sentido de
eleuthera, especialmente no oitavo e no incio do nono livro da
Repblica, a liberdade aparece associada a excessos e prpria
noo de licena (eksousa), a qual permite que o indivduo aja de
acordo com a sua organizao interna e se dirija para aquilo que lhe
apraz. Esse sentido de eleuthera parece-nos ser essencialmente
negativo, pois as aes regidas por esse tipo de liberdade geram
17
Muller supe ainda que a liberdade o valor supremo, mas no vamos entrar nesse aspecto da discusso.
-
29
consequncias que no so desejveis para o prprio homem e nem
para a cidade que ele habita.
Segundo o que expusemos, parece haver, ento, dois
valores antagnicos associados eleuthera no dilogo que nos
propusemos a estudar, por isso que passamos de uma pluralidade
de significados a uma ambivalncia do conceito de liberdade. Esses
sentidos so chamados por Arajo Jr. de rivais (2012, p. 28).
Acreditamos que essa caracterizao muito feliz, pois quando se
examina a eleuthera na Repblica exatamente isto o que se
encontra: h, por um lado, um sentido de liberdade que permite que
o indivduo se aprimore e se desenvolva, sendo essa liberdade,
portanto, benfica e essencialmente positiva; ao passo que h, por
outro lado, uma liberdade que permite que o indivduo dirija a sua
ao da forma como ele queira e, dentro das circunstncias nas quais
essa liberdade aparece de forma mais importante no dilogo, esse
sentido essencialmente negativo e rivaliza, portanto, com o
primeiro.
Parece-nos, entretanto, importantssimo ressaltarmos que
no a prpria formulao fazer o que se queira (poien hti tis
boletai), quando utilizada para caracterizar a liberdade, que a torna
essencialmente negativa. Seria apressado adiantarmos que essa
formulao pode, dentro de uma srie de condies, representar a
ao do homem que , de fato, autenticamente livre, pois essa
suposio depende de uma srie de argumentos que sero
desenvolvidos ao longo de nossa pesquisa. Mas preciso, desde j,
que se entenda que no o fato de fazer o que se deseja que
determina essa liberdade como sendo necessariamente negativa.
dentro do contexto dialogado da obra que veremos que so as
condies dentro das quais se faz o que se quer que essa liberdade
poder ser caracterizada como negativa, e isso o que acontece na
maior parte do tratamento da liberdade na Repblica.
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30
Antes de passarmos anlise do texto, gostaramos de
ressaltar que a dupla caracterizao da eleuthera que apresentamos
nesta seo no uma inveno nossa. Com efeito, Robert Muller
(1997) publicou o resultado de uma longa pesquisa no corpus
platnico na qual o seu objetivo precpuo parece ser a caracterizao
do sentido positivo da liberdade. Esse sentido positivo muito
prximo do que trataremos em nossa pesquisa. O escopo do seu
trabalho , no entanto, muito diferente do nosso, uma vez que ele
visa a encontrar uma doutrina platnica da liberdade e para isso
percorre diversos dilogos a fim de dar um sentido geral
compreenso de liberdade na totalidade da obra platnica. Tambm
Arajo Jr. (2012), como j citamos, prope essa organizao dos
vrios sentidos de liberdade em torno de dois eixos rivais. Embora os
objetivos de nossa pesquisa sejam similares, a metodologia de nossa
pesquisa parece ser, no entanto, muito diferente. Ainda Hansen
(2010) distingue a liberdade positiva da relativa dentro do estudo dos
dilogos platnicos. O seu intuito, contudo, a compreenso da
liberdade democrtica, por isso tambm julgamos que o nosso
trabalho fundamentalmente diferente.
Dito isso, passemos, finalmente, anlise do texto da
Repblica, a fim de vermos se possvel distinguir os dois valores do
conceito de eleuthera e, se for o caso, qual o ganho dessa
interpretao para a compreenso da noo de liberdade.
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31
II. A eleuthera em seu principal uso na Repblica
Para entendermos em que sentido o termo eleuthera
empregado na Repblica, iniciaremos pela anlise da parte da obra
na qual esse conceito mais abundante. Das 67 passagens de
eleuthera e seus derivados18, mais da metade do seu uso se faz na
anlise das formas de governo corrompidas que se encontra no livro
VIII e no incio do livro IX. O fato de 34 ocorrncias desse vocbulo
estarem presentes na descrio do processo degenerativo das
possveis politeai no fortuito. Com efeito, a liberdade o princpio
constitutivo da forma de governo democrtica e tambm a causa de
sua prpria corrupo.
Como sabemos, o livro VIII da Repblica retoma uma
discusso que havia sido interrompida no final do livro IV. Trataremos
de situar a discusso do livro VIII dentro da estrutura da obra, para
em seguida procurarmos entender qual o sentido da eleuthera
democrtica no dilogo.
18
Inclumos nesta contagem as ocorrncias e derivados do substantivo eleuthera, do adjetivo eletheros e de todas as formas verbais do verbo eleuther.
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32
1. Contexto do livro VIII
As principais ocorrncias de eleuthera e seus derivados na
Repblica, como dissemos, encontram-se no livro VIII da Repblica, o
qual examina as formas viciosas de governo segundo uma forma de
governo paradigmtica estabelecida nos livros centrais da obra.
Tratemos, portanto, de situar primeiramente o contexto no qual se d
a discusso sobre as formas de governo, a fim de que possamos, por
um lado, examinar de forma mais profcua o sentido da liberdade
apresentada na forma de governo democrtica e, por outro lado,
entender com base em quais argumentos as formas de governo
viciosas so sistematicamente desqualificadas.
A primeira vez em que feita uma aluso s formas de
governar uma cidade se encontra no livro I, quando a personagem
Trasmaco defende que ser justo significa agir de acordo com o que
vantajoso para o que mais forte (338c), o qual, na passagem
seguinte, identificado com aquele que est no poder (338e 339a).
O que se segue no discurso de Trasmaco visa a enfrentar as
objees da personagem Scrates. A bibliografia especializada h
muito discute sobre a interveno enrgica de Trasmaco no primeiro
livro da Repblica. Para ns, no interessa discutir se Trasmaco
sustenta uma ou duas teses ao longo de sua exposio19, mas cabe
notar que a defesa de sua tese, a saber, que a justia aquilo que
vantajoso apenas para quem est no poder, problemtica porque
vai de encontro ao que Scrates e seus interlocutores acreditam ser o
melhor para a cidade e para o indivduo ao longo do dilogo20. Essa
passagem nos interessa porque, alm de ser nela que aparece a
primeira aluso s formas de governar uma cidade (338d6-7), ela
aponta para uma questo central que ser discutida ao longo do
19
Cf. Trabattoni (2011). 20
Para eles o governo em uma cidade excelente no deve ser estabelecido apenas em vista de uma ou mais classes, mas da cidade como um todo (Cf. 420b).
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33
dilogo. Nessa passagem, Trasmaco pretende explicar que por mais
forte (krettn21) ele entende os que esto no poder, os governantes
(rkn22). Para ele, a justia em uma cidade no depende de sua
forma de governo: seja em uma tirania, seja em uma democracia,
seja em uma aristocracia, o que importa no seu discurso que o
vantajoso para quem est no governo o que justo. A segunda
parte de seu argumento ou o que seria o seu segundo argumento23,
mostra que, ao menos na viso de Trasmaco, os governantes no
agiro em funo de um bem alheio a eles, por isso eles sero
necessariamente injustos (344 a-c). Na fala da personagem
Trasmaco, embora o modo de agir tirnico se sobressaia nas aes
individuais (344a6), no h a defesa de um modo de governar a
cidade em detrimento dos demais. H, ao contrrio, o
estabelecimento de uma ligao necessria entre estar no governo e
ser injusto. Nas palavras de Trabattoni: cada um deseja o prprio
til, enquanto a justia s e sempre a virtude dos fracos que
realizam o til do mais forte; quem detm o poder ser
naturalmente, automaticamente e necessariamente injusto (2011, p.
96). Essa uma das razes pelas quais a tese trasimaqueana no
pode ser aceita por Scrates e demais interlocutores. Para rejeit-la,
no apenas ser necessrio encontrar o que a justia nela mesma e
demonstrar que a vida justa mais feliz que a injusta, mas, talvez,
tambm seja preciso mostrar que h uma forma de governo na qual
h maior probabilidade de se obter justia para a cidade como um
todo e, assim, fazer a cidade ser feliz. Essa forma de governo a
aristocracia, o governo dos melhores, e ela est exemplificada na
kallpolis, a mais bela cidade, fundada no discurso, na qual o poder
no est necessariamente contaminado pela injustia. Assim, a
primeira apario dos modos de governar a cidade no parece ter um
21
. (338c1-2) 22
, (338e6 338a2) 23
Se levarmos em conta que Trasmaco sustenta duas teses, como defende Vegetti (apud Trabattoni, 2011).
-
34
peso relevante na argumentao de Trasmaco, mas serve para
desencadear uma discusso que vai muito alm daquela das formas
de governo, embora no prescinda dela.
No que tange discusso sobre as politeai, no final do livro
IV, as outras formas de governo, diferentes da excelente, so
enumeradas para que sejam comparadas com o que havia sido
desenvolvido at ento. Aqui h, claramente, a primazia de um
modelo de cidade em detrimento dos demais. Nessa passagem,
Scrates afirma que h apenas uma excelncia, enquanto o vcio
pode assumir inmeras formas, dentre as quais, quatro merecem
destaque (445c). A partir disso, a forma de governo excelente
descrita at ento no dilogo elogiada e em seguida h a pretenso
de mostrar que as outras formas de governo correspondem
necessariamente a quatro tipos de vcio:
Boa e reta como chamo tal cidade e tal forma de governo, e o mesmo digo de tal homem. E, se essa
forma boa e reta, as outras so ms e falhas em
relao administrao das cidades e formao da alma dos indivduos, sendo quatro as espcies de vcio
que as atingem. (449a)
Nesse momento Scrates pretendia enumerar os regimes
polticos viciosos, como foi pedido pelo interlocutor Glucon. No
entanto, essa discusso interrompida para tratar do que comum
aos amigos (koin t phln) e s retomada no livro VIII.
Trataremos de ressaltar as caractersticas da cidade
paradigmtica que so relevantes para o nosso estudo, para que
possamos, em seguida, entender de que forma as formas de governo
surgem e se corrompem. Dentre tais formas est a democracia, cujo
fundamento a liberdade.
-
35
1.1. Um paradigma que fundamenta a crtica s formas de governo
Como vimos, Scrates e seus interlocutores se propem a
fundar uma cidade no lgos, a fim de saber em que consiste a justia
na cidade. A primeira constatao de Scrates que os homens no
so autossuficientes (autarkh24 - 369b8), mas carentes de muitas
coisas e, por isso mesmo, se estabelecem em cidades. Para fundar a
cidade, preciso que as necessidades bsicas dos homens sejam
supridas. Para tal, dois critrios so estabelecidos: o primeiro que
cada indivduo dever dispor o seu trabalho para toda a cidade
(369e) e o segundo que de cada indivduo dever cumprir apenas
uma funo para que isso seja feito de maneira excelente (370c). Em
seguida, so delineados os contornos da kallpolis. Destacaremos a
seguir alguns pontos dessa cidade que so relevantes para a nossa
pesquisa.
Na elaborao da mais bela cidade, Scrates enumera as
qualidades que tal cidade deve ter. So elas: a sabedoria, a coragem,
a temperana e a justia. Esses atributos so tidos como
fundamentais para a excelncia da cidade. A anlise das duas
primeiras qualidades no apresenta maiores dificuldades. A sabedoria
(sopha) a cincia (epistm) dos guardies, que faz com que esses
homens tomem decises judiciosas. A coragem (andrea) a fora e
preservao constante da opinio reta e legtima sobre o que
constitui um perigo. No passo 430e, a temperana (sphrosn)
definida como ordem e domnio de certos prazeres e desejos25. O
domnio aqui a enkrteia, termo que caracteriza o homem que
capaz de exercer o poder sobre si mesmo, ter controle sobre si
mesmo. A caracterizao da temperana mais elaborada, como
veremos a seguir, pois supe que h partes distintas na cidade. Por
24
Gigon (2003) destaca a importncia desse conceito, associado, de certa forma, liberdade, uma vez que a autarkh indica a independncia com relao aos outros. 25
, ' ,
-
36
ora, limitemo-nos a dizer que definida como cidade temperante
aquela que submete a pior parte de si mesma melhor. A quarta
qualidade estava presente desde que as personagens decidiram
iniciar a fundao da cidade, quando eles estabeleceram que cada
indivduo deveria cumprir apenas uma funo na cidade, assim essa
funo poderia ser cumprida da melhor maneira possvel. Scrates d
ento, a sua definio do que lhe parece ser a justia (dikaiosn):
Eis, meu amigo, o que, de certa maneira, pode ser o que a justia:
cada um cumprir a tarefa que a sua (433b). Assim, essas quatro
qualidades devero estar presentes na cidade para que ela possa ser
excelente.
A cidade e a alma temperantes, como dissemos, so
compostas por partes. Para tratar da temperana, Scrates examina
a expresso segundo a qual um homem ser dito temperante se for
mais forte do que ele mesmo (krett d hauto)26. Acontece de tal
expresso ser digna de riso, pois quem mais forte que si mesmo
tambm mais fraco que si mesmo27. Em outras palavras, aquele que
detm poder sobre si mesmo tambm aquele que se submete a si
mesmo. preciso dar um sentido a essa expresso para que ela
deixe de ser ridcula. Dizer que algum mais forte que si mesmo,
de acordo com a sequncia do dilogo, significa que h uma
hierarquia natural que diz respeito aos elementos constitutivos da
alma e essa hierarquia deve ser observada para que o indivduo
venha a ser temperante. Essa expresso significa que dentro do
prprio homem (ni), em sua alma, h algo (ti) que melhor e algo
26
Optamos por traduzir krett em seu sentido mais literal: o que mais forte. Para htt, optamos por: o que mais fraco. Acreditamos que essa escolha denota melhor o sentido do vocabulrio que est em jogo do que a traduo da Anna Lia Amaral de Almeida Prado, que sugere traduzir a expresso krett d hauto como senhor de si mesmo. No se trata de uma simples relao de subservincia, o que est em jogo antes uma verdadeira guerra (krat) que travada no interior do prprio homem, assim como da cidade que habitada por esse tipo de homem. Sobre o uso deste termo na Repblica, ver ARAJO JNIOR (2011, p. 197-207). 27
-
37
que pior28. Para ser mais forte que si mesmo, preciso que o que
melhor por natureza exera o seu poder sobre o que pior29 (431a).
Assim, essa passagem parece indicar que h, dentro do prprio
homem, ao menos duas partes: uma melhor e uma pior.
Para saber se h os mesmos modos de ser no indivduo e na
cidade, se indaga sobre trs faculdades humanas (432a-b): uma que
nos torna capaz de aprender (manthn), outra que permite que nos
irritemos (thym) e uma terceira, responsvel pelos nossos desejos
(epithym). Cada uma dessas atividades realizada graas a uma
mesma faculdade ou h trs faculdades diferentes? Realizamos cada
uma dessas atividades com a alma inteira ou com uma parte dela?
O primeiro passo que dado na inteno de responder a
essas indagaes a enunciao do princpio da no contradio: o
mesmo30 no pode realizar eventos contrrios (enanton) ao mesmo
tempo (hma) em relao mesma coisa. Sendo assim, ser tomado
em direo a algo e recusar esse algo so contrrios (437b).
Dado o princpio da no contradio, como explicar o fato de
algumas pessoas por vezes estarem sedentas, mas ainda assim no
quererem (ethl) beber? (439c) A isso, Scrates responde com as
seguintes palavras:
Na alma deles h um elemento que lhes ordena que
bebam e um outro que os retm, j que no o mesmo e tem domnio sobre o que lhes d ordens?31 (439c)
28
, 29
, 30
Aqui nos parece importante ressaltar que se trata efetivamente do mesmo (tautn) e no do mesmo sujeito, segundo a traduo de Prado (2006). Tambm Guinsburg (2012) e Pereira (2012) fazem essa opo. Isso porque o mesmo sujeito, o mesmo indivduo, poder sim, de acordo com a sequncia do dilogo, dirigir-se a algo e ao mesmo tempo recus-lo. A mesma parte do indivduo que no poder realizar aes contrrias simultaneamente, portanto manteremos apenas o mesmo no lugar de o mesmo sujeito. Pabn e Fernndez-Galiano (2006) traduzem tautn por mesmo e Leroux (2004) introduz o mesmo princpio, o que evita o problema do mesmo sujeito, mas, de certa forma, j antecipa o que est por vir. 31
, , ;
-
38
Ou seja, aquilo que havia sido indicado agora
demonstrado: h pelo menos dois elementos na alma. O que retm
os apetites o que procede da razo (k logismo) e o que busca a
saciedade dos apetites causado pelas afeces e doenas (di
pathmthon te ka nosmtn). Nota-se que aqui, o uso de um
vocabulrio essencialmente negativo em relao ao elemento
apetitivo da alma j prepara o terreno para o que vir a seguir.
Segundo o princpio da no contrariedade, preciso que esses
elementos sejam distintos, pois exercem aes contrrias ao mesmo
tempo, ento necessrio que tais foras se exeram em partes
diferentes de nossa alma. Trata-se de dois elementos distintos: um
racional (logistikn) e um outro que gira em torno dos apetites
(epithymai) tais quais a sede, fome e de relaes sexuais, o qual
desprovido de razo e apetitivo (alogistn te ka epithymtikn
439d).
At ento foram analisadas as faculdades responsveis pelo
aprendizado e pelos apetites. A fim de dar conta da natureza humana
como um todo, resta tratar de uma terceira faculdade, aquela
segundo a qual nos irritamos. A histria de Lencio parece mostrar
que h algo no homem que o impulsiona a fazer uma determinada
ao, nesse momento a sua razo tenta fre-lo, ao passo que o seu
desejo levar adiante o seu impulso. H ento um terceiro elemento
na alma, que o mpeto (thyms 439e). Se a razo o melhor
elemento de nossa alma, ao mpeto cabe ser aliado dessa primeira,
de forma a auxili-la a combater o pior elemento, o apetitivo.
Se o que expusemos do livro IV estiver correto, a cidade e a
alma dependem de qualidades e de um certo ordenamento de suas
partes para que sejam excelentes. H uma parte racional, que a
melhor, uma apetitiva, que a pior, e uma terceira, impetuosa, que,
no caso do bom ordenamento, estar em funo da primeira para
auxili-la. As qualidades da alma e da cidade excelentes parecem
-
39
cumprir uma funo importante para garantir a observncia dessa
hierarquia fundamental das suas partes. precisamente por cada
uma de suas partes cumprir a funo que lhe prpria, que a alma e
a cidade sero consideradas justas. Assim, a excelncia nelas
depende do respeito a essa hierarquia fundamental, que em ltima
instncia garantida pela justia.
Quanto cidade paradigmtica, a temtica da saciedade dos
apetites, que est relacionada com a liberdade, tratada sobretudo
no incio do livro IV. Por isso, parece-nos importante ressaltar at que
ponto a saciedade de determinados apetites lcita no contexto da
cidade excelente.
No incio do livro IV, Adimanto pergunta a Scrates se os
guardies dessa bela cidade, que est sendo plasmada no discurso,
sero felizes ainda que renunciem a bens, riquezas e mesmo ao ato
de receber um salrio. Para responder a tal indagao, a personagem
Scrates precisa recorrer a um dos pilares fundamentais da cidade, a
saber, a sua unidade. A unidade da cidade excelente fundamental,
por isso eles devem cuidar para que a cidade cresa somente at o
ponto que, mesmo crescendo, possa ser uma s (423b).
Com efeito, a tarefa que cabe a eles a guarda da cidade e
de suas leis (421a), por isso eles devem privilegiar essa tarefa em
detrimento do usufruto de bens ou riquezas. Eles devem fazer isso
porque a meta que foi estabelecida quando a cidade foi fundada a
felicidade da cidade como um todo e no apenas de uma das classes
que a compem (420b). Fazer com que apenas uma classe seja feliz
seria desrespeitar a unidade fundamental da cidade. Para que a
cidade inteira seja feliz preciso respeitar aquilo que ser definido
posteriormente como a justia: que cada um cumpra a tarefa que a
sua. Dessa forma, os guardies e as demais classes participaro da
felicidade o tanto quanto for possvel segundo a natureza (421c).
-
40
De acordo com essa passagem, podemos verificar que
desde o ponto de partida do livro IV o tema do controle dos apetites
j est, de alguma forma, sugerido nas linhas da Repblica: ao
renunciar ao salrio, os guardies esto tambm abrindo mo daquilo
que poderia ser objeto de desejo. No receber salrio significa no ter
a licena de dedicar parte do seu esforo satisfao de apetites
pessoais. Para eles a felicidade no plano individual garantida pela
felicidade de toda a cidade e por isso se faz necessrio que o trabalho
de cada um seja posto disposio da cidade. Essa perspectiva
confirmada nas pginas seguintes do texto, quando se afirma que os
guardies cheios de ouro e se entregando aos prazeres se tornariam
camponeses felizes (421b) ou qualquer outra coisa que no guardies
(420d).
O rigor com o qual esses apetites devem ser repreendidos
ainda maior porque, no que diz respeito cidade, os guardies so
os nicos que tm a oportunidade de bem administr-la e faz-la
feliz (421a). Se os guardies se dedicassem s tarefas que no so
as suas, isso corresponderia perda de unidade na cidade, o que de
forma alguma seria considerado uma vantagem.
A educao dos guardies recebe um grande destaque no
interior da obra, especialmente nos livros II e III. O que consta no
livro IV no como deve ser essa educao, mas a importncia da
mesma para que uma cidade possa ser considerada excelente. Com
efeito, nele dito que a educao a nica ordem que os guardies
devero respeitar, pois ela suficiente (hkanos) para que os homens
venham a ser moderados (metros 423e-424a). Acreditamos que a
escolha do termo moderado no foi feita de forma fortuita. Ao
contrrio, em tal cidade preciso velar para que tais homens no
cometam excessos, pois cedendo aos apetites, os guardies estariam
fazendo qualquer coisa que no sua funo precpua, a de guardar a
unidade da cidade acima de todas as coisas. De onde vemos mais
-
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uma vez a importncia do controle dos apetites. Tal controle deve ser
feito desde cedo atravs da educao, pois ela o impulso (horm)
que determina a direo que os homens seguiro posteriormente
(425b-c).
Gostaramos de pontuar ainda, que ao longo da fundao da
cidade algumas normas so propostas. H como que um esqueleto,
um esquema bsico de regras destinadas organizao da cidade
atravs da harmonia das classes que a compem (426d). Para
garantir a ordem na cidade, essas leis devem ser conservadas.
Parece-nos que essas normas tm o propsito de impedir a
transgresso de determinados tipos de apetite, uma vez que elas
devem ajudar os que habitam a bela cidade a manter intacto o que
foi fornecido na educao.
O exemplo utilizado pela personagem Scrates para
caracterizar tal situao bastante significativo. Ele fala de homens
que esto doentes e por no controlarem o que fazem, por falta de
regras e por no quererem abandonar um mau regime de vida,
acabam sendo medicados por todos os tipos de remdios e at
mesmo encantamentos sem, no entanto, conseguir resultado algum
(425e-426b). Esses doentes precisam abandonar a embriaguez, o
excesso de comida e os prazeres do amor para encontrar a cura. O
controle dos excessos por meio da educao e das normas o
verdadeiro remdio para esse tipo de doena. Da mesma forma,
por meio do regramento e do controle dos apetites que uma cidade
poder estabelecer uma harmonia capaz de garantir a ordem e a
felicidade no interior da mesma.
Conforme o que expusemos at ento, o tratamento da
questo dos apetites, apesar de no ser feito de maneira explcita,
determinante para a direo que a cidade deve tomar se quiser se
aproximar o tanto quanto possvel da cidade feliz. Vejamos agora, a
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relevncia da problemtica dos apetites, considerando as qualidades
da cidade e do homem excelente.
Como vimos, a temperana ordem (ksmos) e domnio
(enkrteia) no controle de determinados prazeres (hdona) e
apetites (epithymai). S que acontece de no serem todos os
prazeres e apetites que devem ser controlados, mas apenas alguns
(tines). evidente que controlar alguns prazeres fundamental para
que a cidade possa ser temperante e, por conseguinte, excelente.
Mas quais so esses prazeres? A resposta para tal questo no nos
ser dada de imediato32. Em ltima instncia, s a partir do livro VIII
encontraremos a distino dos apetites necessrios e no
necessrios, e essa discusso s ser encerrada no livro IX, aps a
comparao dos modos de vida do filsofo e do tirano. Contudo,
acreditamos encontrar indicaes claras de quais apetites so lcitos
na kallpolis j no livro IV.
Das trs partes que compem tanto o homem quanto a
cidade, h uma delas que ligada diretamente aos apetites: o
epithymtikn. Parece-nos importante ressaltar que, de antemo, a
faculdade apetitiva descrita em 436a-b como sendo aquela,
segundo a qual desejamos os prazeres da comida e da gerao de
filhos e tambm outros similares33. Essa lista reiterada em 439d34.
Um sinal deque essa lista j aponta para o que ser desenvolvido
posteriormente na obra que ela reaparece aps toda a
argumentao que visa a mostrar que a vida mais justa e mais feliz
a do homem que reina (basile), no livro IX, no contexto da
tripartio da alma, em 580e dito que a parte apetitiva assim
32
KAHN (1987, p. 88) chega a afirmar que Plato no poderia apresentar a tese do governo da razo de forma mais forte no livro IV antes de desenvolver sua concepo de filosofia, o que s ocorrer nos livros centrais do dilogo. Contudo, para condenar os regimes polticos no livro VIII, faz-se necessrio que a obra apresente antes desse livro argumentos que tornem essa desaprovao legtima. isso que procuramos evidenciar agora. 33
34
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chamada por seu forte apetite no que diz respeito comida, bebida,
relaes sexuais e outros derivados destes35.
Voltando ao livro IV, em seguida, busca-se saber qual o
objeto desses apetites primordiais36. A sede o apetite analisado no
dilogo, mas supomos que o mesmo vale para a fome e os apetites
sexuais. Sabemos que a sede o desejo de beber algo e a bebida ,
portanto, o seu objeto natural. Contudo, Glucon traz para a
discusso o fato de algumas pessoas quererem beber algo frio,
quente ou bom, em suma, algo que venha como um acrscimo,
tornando um apetite simples, como a sede, em um apetite especfico,
como o desejo de beber algo quente. A resposta de Scrates a essa
colocao simples: todos desejam o que bom (438a). Simples e,
no entanto, enigmtica. Ou, como bem nota Lorenz (2006, p. 29-30),
o Scrates dessa passagem no suficientemente cuidadoso com o
significado do predicado bom: h uma falta de preciso atpica
sobre um tema que bastante caro a essa personagem. Por outro
lado, entre as vrias qualidades atribudas bebida por Glucon
(quente, fria, boa, em maior ou menor quantidade), justamente o
fato de desejar beber algo bom que interessa a Scrates.
Ao afirmar que todos desejam o que bom, Scrates no
est simplesmente concordando com Glucon, mas est antes
delimitando a esfera do que bom: bom aquilo que naturalmente
pertinente a algo, pois cada objeto de desejo s pode ser pertinente a
uma coisa (438b). Assim, ter apetite por algo especfico, como algo
quente ou frio, um acrscimo ao apetite, algo que extrapola aquilo
que natural para a saciedade da sede. De forma que os objetos de
35
36
Ao falar de desejos primordiais aqui estamos nos referindo aos que visam satisfao dos prazeres da comida e da gerao de filhos. O que est em jogo aqui a anlise da faculdade desiderativa, ento importante no anteciparmos outros possveis tipos de desejo, como o do mpeto e o da razo, que, como bem viu ROBINSON (2007, p. 96), s no livro IX sero enunciados de forma clara: cada parte da alma tem seus prprios prazeres, desejos princpios especficos.
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apetite que devem ser buscados so aqueles pertinentes satisfao
dos apetites primordiais, ou seja, aqueles que so ligados nutrio
ou gerao de filhos. Os demais apetites, inclusive aqueles que vm
como um acrscimo, por consequncia, no so necessariamente
bons e devem ser evitados.
Se a razo o melhor elemento de nossa alma, ao mpeto
cabe ser aliado dessa primeira, de forma a auxili-la a combater o
pior elemento, o apetitivo. Ocorre de este ltimo representar a maior
parte da alma, cuja natureza insacivel (442a). Assim, retomando o
mesmo procedimento adotado na cidade, no interior do homem
preciso que a razo, que a menor das partes e a mais sbia, se una
ao mpeto para de um lado combater (propolem) e de outro
deliberar (boule) sobre quais so os apetites que podem ser
saciados, ou, nas palavras do dilogo, quais so os inimigos externos
(tos ksthen polemous 442b) que devem ser combatidos.
Parece-nos que os verdadeiros inimigos so os apetites que
no so naturalmente pertinentes a cada um dos apetites
primordiais, que por sua vez, so aqueles cuja satisfao
responsvel pela manuteno da vida (prazeres da nutrio em geral)
e da espcie humana (prazeres da reproduo). Esses inimigos que
devem ser combatidos so justamente aqueles que vm como um
acrscimo ao objeto natural do apetite. Sendo assim, a saciedade dos
apetites caracterizados como bons pela personagem Scrates parece
ser lcita, ainda que deva antes passar pelo crivo da razo, a nica
capaz de deliberar a respeito dessa importante questo.
Assim, o que nos parece importante para o desenvolvimento
de nossa pesquisa que h uma cidade paradigmtica fundada no
discurso por Scrates e seus interlocutores, para que se encontre o
que a justia e que torne possvel mostrar que a vida justa mais
feliz que a injusta. Essa cidade deve integrar as quatro qualidades
-
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fundamentais, a saber: a sabedoria, a coragem, a temperana e a
prpria justia. Uma tal cidade deve ainda ser composta por trs
partes, as quais devem estar dispostas segundo uma hierarquia
fundamental a ser observada para que a mais bela cidade seja
excelente: a parte racional deve governar, a parte impetuosa deve
auxiliar a parte racional e a parte apetitiva deve se submeter s duas
primeiras. O homem que vive nessa cidade, dada a analogia
estrutural entre homem e cidade, deve tambm organizar-se
internamente de acordo com a hierarquia fundamental. Ele pode
saciar alguns apetites, mas somente os apetites primordiais, a saber:
o apetite por alimentos, bebidas e relaes sexuais, para que no
venha a cometer excessos e desequilibrar a hierarquia fundamental,
imprescindvel para a manuteno da excelncia dentro da sua
prpria alma.
-
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1.2. Princpios que fundam e corrompem as formas de governo
No incio do livro VIII Scrates descreve, enfim, quais
seriam os vcios responsveis pelas doenas na cidade. Este livro
repleto de metforas37 e trata das outras formas de governo como
uma espiral descendente: cada uma delas regida por um princpio
que as conduz a uma inexorvel degenerao em uma forma de
governo ainda pior. Mas no s isso: as formas de governo aqui
descritas se afastam paulatinamente do regime excelente, fazendo
com que os pilares que garantiam a excelncia da kallpolis entrem
em eroso e, assim, a felicidade em tais cidades seja uma meta cada
vez mais difcil de ser alcanada.
Este , pois, o sentido da investigao das formas viciosas
de governo: tendo visualizado a justia na mais bela cidade, conhecer
a injustia na sua forma mais extrema, de forma a saber em qual das
cidades o modo de vida dos que a habitam ser mais feliz. Assim,
ser possvel comparar a cidade mais justa com a mais injusta e
decidir se a felicidade na cidade estar de acordo com a afirmao de
Trasmaco ou de acordo com o que construram no lgos (545b).
O homem que semelhante aristocracia, que o melhor,
j foi analisado ao longo dos livros anteriores do dilogo e expusemos
os seus traos relevantes para o nosso estudo na seo anterior. Com
efeito, a alma desse homem corresponde constituio excelente,
que, se regida pela justia, ordenar as suas partes de acordo com
uma hierarquia fundamental.
Para justificar a passagem de um regime descrito como
perfeito para um que no o , Scrates recorre s Musas, que narram
num tom jocoso o processo degenerativo. Trata-se de um regime que
no inabalvel como o seu paradigma, mas que foi criado apenas 37
Como a do desenvolvimento dos filhos em relao aos pais e a dos zanges, a qual exploraremos a seguir.
-
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na semelhana deste e como tudo o que nasce, sofrer corrupo. A
dissoluo do regime aristocrtico acontecer quando os guardies da
cidade no se derem conta que existem ciclos aos quais todos os
seres vivos esto sujeitos e, assim, as crianas nascidas em perodos
no propcios no tero uma natureza homognea segundo as raas
de Hesodo38, mas sero impuras. Dessa forma, mesmo os melhores
dessa gerao tero uma natureza ambgua, j que os seus
elementos constitutivos esto misturados, e a partir disso todo o
equilbrio da cidade, que era mantido na aristocracia devido ao
respeito da funo que cada um deve cumprir na cidade, estar
comprometido.
A primeira forma de governo a ser analisada a cretense e
laconiana, conhecida por privilegiar as honras. Chamado de
timocrtico, tal regime aparece como uma degenerao do
aristocrtico. Dada a mistura das raas, os guardies de uma tal
cidade estaro mais propensos guerra e ao dio (547a) e se
voltaro para prioridades diferentes. Naqueles em que predomina o
ferro (sdros) e bronze (khalks), o lucro, a posse de riquezas e
terras sero visados. J naqueles cuja constituio
majoritariamente de ouro (khrseos) e prata (argreos), a riqueza
inerente s suas almas tentar conter os excessos dos demais.
Apesar da violncia e oposio presentes em uma tal cidade, os
guardies conseguem chegar a um acordo atravs da diviso de
terras e casas, de forma que a excelncia da antiga constituio pode
ser mantida. De fato, alguns elementos da aristocracia sero
mantidos, mas devido ao desequilbrio interno dos indivduos, a
educao deles privilegiar a ginstica em detrimento da msica, o
que acarretar em graves problemas, como veremos a seguir.
Principalmente, nos homens que vivem na timocracia faltar o
comando da razo e, por isso, eles sero governados no pelo
38
Lembremos que a histria fencia j havia sido aludida em 414c-415d.
-
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princpio racional das suas almas, mas pelo mpeto, e assim se
tornaro amante das honras.
O governo oligrquico se forma a partir do momento em que
os homens da timocracia, que j no eram perfeitos, passam a
esconder tesouros e prestar-lhes honras s escondidas. A partir da a
riqueza passa a ser apreciada e a excelncia vai perdendo o seu
valor, pois cuida-se sempre do que apreciado, mas descuida-se do
que desprezado (551a). A constituio oligrquica ento definida
atravs de uma lei censitria que determina que preciso ter fortuna
para participar do governo. Uma cidade sob tal regime deixa de ser
uma, pois os governantes, ricos, e aqueles que no possuem riqueza
suficiente para exercer o poder passam a dividir o mesmo espao
sem ter em vista o bem comum, mas apenas o da classe qual
pertencem. H aqui, portanto, o rompimento do carter unitrio que
era essencial na cidade excelente.
Apesar de buscarem saciar o desejo de enriquecimento, os
homens que vivem sob esse governo so capazes de reprimir os
apetites no necessrios para alcanar a riqueza (554a), que o
princpio valorizado nesse governo, de forma que ainda haja algum
grau de coero do elemento apetitivo nesse governo, mas, ainda
assim, esse elemento que governa a cidade e a alma oligrquicas.
A degenerao da oligarquia inerente ao seu prprio
princpio constituinte: no possvel saciar o desejo de riquezas. Os
governantes, vidos pelo acmulo de fortuna, no impem limites ao
des