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    PORTO, 1114 1518

    A CONSTRUO DA CIDADE MEDIEVAL

    Helena Regina Lopes Teixeira

    Setembro 2010

    Dissertao de Mestradoem Histria Medieval e do Renascimento

    na

    Faculdade de Letras da Universidade do Porto

    Orientao Cientifica:Prof. Lus Miguel Duarte

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    Informaes para Contacto:

    Helena Regina Lopes TeixeiraFaculdade de Letras da Universidade do Porto

    Via Panormica, s/n4150-564 PortoPortugal

    Tel.: +351 226 077 100Fax.: +351 226 091 610Email: [email protected]

    Porto, 1114 1518: A construo da cidade medieval

    MMX Helena Regina Lopes Teixeira. Todos os direitos so reservados.

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    RESUMO

    A presente dissertao tem como objectivo a reflexo sobre os me-canismos fsicos e humanos que influenciaram e condicionaram aconstruo do Porto medievo, entre os anos de 1114 e 1518.Embora a tentativa de caracterizao do Porto medieval no seja uma

    novidade no panorama historiogrfico portugus, entendemos contudoque a maioria dos estudos existentes mostra uma viso compartimentada

    dos diferentes temas e, consequentemente, limitada na sua abrangncia.Exemplo disso so os vrios estudos que se dedicaram ao Porto dos bis-pos, ao Porto dos mercadores, s Ruas dos mesteres, Judiaria, ou Rua do Rei. Contrariamente a esta viso, o presente estudo procura ana-lisar os vrios factores (naturais, econmicos, polticos, pessoais, de grupo,de actividades) que se confrontaram simultaneamente, tentando percebero crescimento urbano do Porto como resultado destas tenses.

    Nesse sentido estruturmos o trabalho em quatro temas principais:um, de contextualizao, denominado Condies de Desenvolvimento;outro, de anlise, denominado Evoluo Urbana; um terceiro, tambmde anlise, denominado Cidade Espontnea versus Cidade Planeada, e

    um ltimo, de investigao, com o nome de Estratgias de Actuao Ur-bana.Assim, aps uma breve introduo, segue-se o estudo das Condies

    de Desenvolvimento. Este divide-se em dois temas principais: Condi-es naturais, onde o espao estudado de modo a pr em evidncia oselementos naturais que,de algum modo,condicionaram a paisagem urbanado Porto medieval; e Condies humanas, tema que, com o mesmo ob-jectivo de perceber a base da cidade medieval, se centra contudo no espaoconstrudo pelo homem, do qual so exemplo sistemas de povoamento ede circulao.

    A este captulo segue-se o terceiro, denominado de Evoluo Ur-

    banaque, como o nome indica, tem como objectivo perceber a evoluodo Porto medieval atravs de uma estruturao em etapas s quais corres-ponde um tipo dominante de crescimento urbano,equacionado em funode mecanismos poltico-econmicos e das estruturas fsicas existentes, na-turais e urbanas.

    O quarto Captulo, denominado Cidade Espontnea versus CidadePlaneada, procura compreender em qual destes dois tipos principais decidade medieval se encaixava o Porto,e que caractersticas partilhava comas mesmas. Esta anlise permitir-nos-, no captulo quinto, ter as basespara o necessrio entendimento do conceito de urbanismo na cidade me-dieval. Assim, neste ltimo captulo, denominado de Estratgias de Ac-

    tuao Urbana, centrar-nos-emos na anlise dos diferentes meios de ac-

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    tuao, gesto e planeamento da cidade, durante a baixa Idade Mdia,utilizando para isso instrumentos como planos, posturas e contratos depropriedade. Sabendo que estes diferentes instrumentos de controlo ur-bano derivavam de diferentes poderes polticos (assim como econmicose sociais), tentaremos perceber se estes grupos de poder tinham lgicas

    especficas e diferenciadas de actuao no espao. Ou seja, se actuavamsegundo os seus prprios interesses individuais ou, pelo contrrio, se re-

    giam por algum tipo de acordo mtuo, na sua actuao sobre o espaourbano do Porto medieval.

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    CONTEDO

    1 Introduo 11.1 Objecto de estudo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11.2 Ponto da Situao . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31.3 Esclarecimento de Conceitos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 81.4 Metodologia e Fontes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9

    2 Condies de Desenvolvimento 112.1 Condies Naturais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 112.2 Condies Humanas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17

    3 Evoluo Urbana 313.1 O primitivo ncleo medieval Incio sculo XII . . . . . . . . . 323.2 A expanso do Burgo Primitivo 1114/1234 . . . . . . . . . . . . 363.3 Novos ncleos de urbanizao 1234/1316 . . . . . . . . . . . . . 423.4 Incio das preocupaes urbansticas 1316/1355 . . . . . . . . . 493.5 A conformao da cidade a partir da construo da muralha

    1355/1386 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 57

    3.6 Planeamento como ferramenta Urbana 1386/1406 . . . . . . . 683.7 O novo Senhorio 1406/1518 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 79

    4 Cidade Espontnea versus Cidade planeada 894.1 Cidade Espontnea. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 894.2 Cidade Planeada. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 96

    5 Estratgias de actuao Urbana 995.1 Planos Urbansticos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 995.2 Gesto Urbana. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1025.3 Propriedade Urbana. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1115.4 Interesses Particulares versus interesses Comuns . . . . . . . . . 121

    6 Concluso 127

    7 Fontes e Bibliografia 131

    8 Apndice I. Propriedades do Clero 141

    9 Apndice II. Propriedades do Concelho 147

    10Apndice III. Propriedades de Privados 161

    iii

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    INTRODUO

    1.1 Objecto de estudo

    Este estudo centra-se na compreenso dos mecanismos que influen-ciaram e condicionaram a construo do Porto medievo. Para tal,consideraremos, por um lado,o espao fsico e, por outro,os facto-res polticos, econmicos, sociais e naturais que demonstraram ter poderefectivo na sua urbanizao. Procuramos ainda perceber como estes fac-tores, ao representarem diferentes necessidades e vises, se confrontaramna construo do burgo.

    1.1.1 Cronologia

    Os limites cronolgicos escolhidos para enquadrar este estudo situam-se entre o ano de 1114, data da restaurao da diocese1 1. SOUSA, 2000, p. 122., e o ano de 1518,data em que commumente aceite o fim do poder autrquico popular noPorto2 2. MACHADO, 2003; COSTA, 1993.. Como estamos a estudar a cidade durante a poca medieval, esteparece-nos um trmino adequado, at porque, a partir desta data, novasmodificaes urbanas vo ter lugar, modificaes estas que pressupemnovas concepes que no estritamente as medievais.

    Contudo, na tentativa de contextualizar a evoluo da cidade ao nvelde polticas de administrao urbana, no deixaremos de recuar ou avanarno tempo, sempre que necessrio.

    1.1.2 Perguntas orientadoras da tese

    Que factores fsicos e humanos se associaram para a construo da cidadeat ao perodo medieval?

    Qual era o aspecto fsico do Porto medieval? Que factores, geogrficos, polticos e socio-econmicos condicionaram o

    crescimento urbano do Porto na Idade Mdia? A partir de que altura comearam a surgir posturas relacionadas com a

    urbanizao da cidade? E planeamento prvio?

    1.1.3 Escolhas

    Tendo em conta a diversidade de temticas que esta anlise poderia abran-ger, decidimos concentrar-nos, primeiro, no espao fsico da cidade; se-gundo, nos factores que construram este espao e, em ltimo, nas pol-

    ticas urbanas (planos e posturas) tomadas relativamente ao mesmo.Neste contexto o problema recaiu, sobretudo, na escolha de quais dos

    vrios factores intervenientes na construo da cidade se deveriam desta-

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    car, e no modo como iramos estruturar a anlise destes factores,distintos,mas to interligados: agentes, causas, motivos e razes polticas,econmi-cas, sociais, militares, religiosas, culturais. Por fim, chegamos conclusode que, embora estas variveis tenham contribuies de diferente impor-tncia na construo da cidade, elas nunca so independentes. Na reali-

    dade, nada na vida resulta de uma aco isolada, muito menos uma cidade,e ainda menos uma cidade que nunca foi planeada, e cresceu de necessida-des bsicas e pragmticas. Uma cidade espontnea como o Porto semprefoi, at h bem pouco atrs.

    E aqui a nossa incerteza do caminho a tomar neste trabalho. Comoiramos analisar e, ao mesmo tempo, estruturar estes factores? Separada-mente, conjuntamente, ou por grupos (que no Porto sabemos terem-sedividido basicamente em dois, o Clero e o Concelho, ambos exemplaresdos factores atrs mencionados)? Tambm poderamos fazer uma divisopor reas da cidade,como tantos autores fizeram,pois sabemos que a dife-rentes espaos fsicos (a S, a Ribeira, Miragaia, Olival, as duas muralhas),

    corresponderam diferentes lgicas poltico-econmicas e grupos sociais.E aqui mais factores entrariam em jogo, para alm dos atrs mencionados,desde logo os militares, os geogrficos e os funcionais.

    Nesta nossa procura por uma estruturao adequada, compreendemoso porqu de a maioria dos estudos sobre o Porto medieval apresentar umseccionamento e compartimentao dos temas escolhidos (como os v-rios estudos que se dedicaram ao Porto dos bispos, ao Porto dos mer-cadores, s Ruas dos mesteres, Judiaria, ao Bairro do Rei, etc.).E, mesmo nas anlises feitas no contexto europeu, nomeadamente arti-

    gos espanhis, v-se uma anlise um tanto compartimentada, em que oespao fraccionado em ruas, praas, casas, edifcios principais, e no se

    entende como o conjunto indivisvel e contnuo que realmente . Todasestas abordagens acabam por se reduzir ao estudo de grupos sociais, oude zonas especficas, ou de elementos tipo da cidade, o que embora sim-plifique a anlise, torna-a somente adequada a um estudo mais isolado oucomparativo.

    Ns quisemos ir por outro caminho. Uma vez que o nosso objectivoera o estudo da cidade como organismo global, seguindo um entendimentono qual, quer factores, quer espaos urbanos, no podem ser entendidosnuma perspectiva individualista e, portanto, seccionada, acabmos porchegar concluso de que, se no era nosso objectivo fazer o estudo dacidade atravs da diviso dos seus espaos principais (muralha, s, mer-

    cado, ribeira, etc), tambm no era nosso objectivo compartiment-la emfactores econmicos, sociais, polticos ou outros, o que se nos afigura re-dutor e incompleto.

    O nosso objectivo seria sim analisar os vrios interesses que se con-frontaram em simultneo na construo do Porto, tentando perceber oseu crescimento urbano como resultado de tenses, elas prprias marca-das pelos condicionantes naturais e humanos da cidade.

    Assim, o caminho seria o de adoptar um modo, no de separar estestemas, mas antes relacion-los. E como? A resposta que se nos apresentoumais adequada foi a da diviso por pocas. Ou melhor dizendo, por etapasurbanas, procurando sistematizar quais foram as principais realizaes da

    cidade ao longo do tempo, e depois tentar agrup-las em contextos tempo-

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    rais representativos das necessidades e objectivos que as impulsionaram.Pensamos assim que, deste modo, ser facilitada a estruturao e com-

    parao dos factores fsicos com os mecanismos humanos3 3. Usamos o termo humano no sentido deno fsicos, ou seja, de todos os factorespolticos, sociais, econmicos, culturais,etc., que se revelaram importantes na cons-truo da cidade.

    que os pre-cederam. A cada poca faremos assim corresponder um tipo dominantede crescimento urbanstico, assim como de pensamento poltico e econ-

    mico. E claro, conjugar este pensamentos com as estruturas fsicas exis-tentes, quer as naturais e topogrficas, quer as urbanas. Naturalmente de-senvolvemos mais alguns temas que outros, nomeadamente aqueles cujacronologia, por ser menos recuada, se mostra mais receptiva a uma maiorquantidade de fontes, necessrias sua anlise. Tal foi o caso da Alfn-dega do Rei, da muralha gtica, da Judiaria e da Rua Nova. tambmimportante frisar que o nosso estudo no se centra numa anlise arquitec-tnica e construtiva da cidade, mas sim na compreenso das decises queforam tomadas em relao sua urbanizao. Nesse sentido, a referidaanlise espacial importante, mas somente como instrumento auxiliar deinvestigao e no como objectivo final do estudo em si.

    Posto isto, notrio que o urbanismo ser um ponto fulcral do nossoestudo. Tirando partido do conceito polissmico que , iremos utiliz-loem dois campos diferentes, mas intrinsecamente ligados: o da evoluourbana (como crescimento fsico, ao longo dos tempos, da cidade); e o dourbanismo (como organizao e administrao do espao pblico e pri-

    vado). Sendo o primeiro campo analisado nos captulos 2 e 3, o segundocampo ser estudado nos captulos 4 e 5. Assim, no captulo quarto estu-daremos os dois principais tipos de construo da cidade (o espontneoe o planeado), tentando analisar quais dos mecanismos inerentes a cadaum se reflectiram na construo do Porto, para tentar, no quinto captulo,perceber como se desenvolveu uma preocupao efectiva e legal com a ur-banizao da cidade. Este ltimo captulo ser levado a cabo atravs daanlise de planos, posturas e clusulas contratuais relativas fiscalizao ebenfeitoria da urbe.

    Finalmente, no Captulo 6, uma concluso finaliza o nosso trabalhocujo objecto em si, de to complexo, no pode deixar de considerar-secomo um primeiro ensaio sobre o tema. Sabendo de antemo que conse-

    guir uma teoria que seja capaz de explicar tudo declaradamente imposs-vel, tentaremos juntar algumas peas deste puzzle, e assinalar algumas das

    lgicas que dele sobressaram.

    1.2 Ponto da Situao

    A Historiografia sobre a cidade medieval tem j enorme tradio, nomea-damente no que se refere a uma vertente mais global e institucional. Toda-

    via, a sua vertente ligada ao urbanismo e evoluo espacial no se encontrato desenvolvida, nomeadamente em Portugal onde, apesar da sua rica cul-tura urbana, este tema apresenta ainda um atraso de anos relativamente historiografia europeia ou americana4 4. TEIXEIRA, 1998..

    Embora no seja o objectivo desta tese descrever o ponto de situa-o do conhecimento sobre a cidade portuguesa, julgamos contudo im-

    portante fazer uma breve apresentao sobre o tema. Assim, comeamos

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    por chamar a ateno para duas reas em especfico que muito contribu-ram para o avano da disciplina nos ltimos anos, a geografia e a histria5

    5. Exemplo de Jorge Gaspar, cuja obrapublicada em 1969 A morfologia ur-bana de padro geomtrico na IdadeMdia, faz a primeira reflexo so-

    bre a urbanstica medieval portu-guesa. ROSSA e TRINDADE, 2006.

    .Na geografia destaca-se o impulso iniciado por Orlando Ribeiro que,

    embora gegrafo, teve uma investigao profundamente marcada pela im-portncia dada aos factores histricos enquanto elementos explicativos,

    sendo sob a sua orientao que o estudo da cidade em Portugal viria aconstituir-se como tema forte de toda uma linha de investigao6

    6. ROSSA e TRINDADE,2006; RIBEIRO, 1963. .

    No campo da Histria medieval, o interesse pela cidade surge maistarde, devendo-se sobretudo ao investimento de A. H. de Oliveira Mar-ques. Este historiador desenvolveu uma metodologia baseada na articu-lao entre uma base metodolgica e a investigao de base documental,metodologia esta disseminada no seminrio sobre cidades que criou naUniversidade Nova de Lisboa. Da produo monogrfica resultante destesseminrios e do contributo de estudos de outras universidades resultaria,em 1990, uma obra de sntese sobre a forma e a topologia urbana portu-

    guesa, o Atlas de cidades medievais portuguesas. Elaborado sob coor-

    denao de Oliveira Marques, Iria Gonalves e Amlia Aguiar Andrade, provavelmente o mais extenso e contnuo trabalho sobre a histria urbanaportuguesa, fazendo uma anlise incisiva sobre a evoluo e caracterizaoda cidade tardo-medieval7

    7. Nele so analisadas 19 cidades medi-evais, atravs de uma ficha descritiva,

    bibliografia seleccionada e um mapa.Todavia, o carcter sinttico da infor-

    mao exposta, sem referncia para umaterceira dimenso, altimetria, ou divi-so cadastral, acaba por condicionar oseu uso no mbito da histria do urba-nismo, poisimpossibilita o reconheci-

    mento seguro, a estruturao e evoluodas formas, dos programas e dos con-

    textos materiais. TRINDADE, 2010.

    .A partir daqui o interesse pela cidade medieval portuguesa des-

    pontaria em praticamente todos os ncleos universitrios portugueses,incentivando-se de forma sistemtica a produo de monografias, publica-es e estudos de mestrado e doutoramento onde,com base em documen-tao e fontes inditas, se identificavam os respectivos contextos fsicos,polticos, militares, econmicos, administrativos e sociais, atravs dos tra-balhos de Iria Gonalves, Amlia Aguiar Andrade, ngela Beirante, Saul

    Gomes, Conceio Falco, Ansio Saraiva, Jos Marques, Slvio Conde,Rita Costa Gomes, Lus Carlos Amaral, Lus Miguel Duarte e AdelaideMillan Pereira, entre outros8

    8. De entre asrias obras publicadas so-bre esta temtica optamos por mencionarsomente algumas que achamos mais rele-

    antes para o nosso estudo: ANDRADE,Amlia Aguiar,Um espao urbano me-dieval: Ponte de Lima ; BEIRANTE,Maria ngela V. da Rocha,Santarmmedieval evora na Idade Mdia;CONDE, Manuel Slvio Alves,To-

    mar medieval. O espao e os homens;FERREIRA, Maria de Ftima Falco,

    Uma Rua de Elite na Guimares Medi-eval; GOMES, Rita Maria Fernandesda Costa,A Guarda medieval: posi-

    o, morfologia e sociedade (1200-1500). .Com este desenvolvimento da histria urbana, diferentes temas se tor-

    naram foco de reflexo: da vivncia paisagem,das estruturas defensivas habitao, da gesto urbana s relaes de poderes,das estratgias de ocu-pao territorial definio de rede urbana. Neste panorama, embora nodirectamente ligado ao tema do espao fsico e das vivncias urbanas, que-remos destacar as reflexes de Jos Mattoso sobre os conceitos de cidadee sobre a relao entre a cidade medieval e o poder, questes abordadasno ciclo de conferncias Cidades e Histria9

    9.Introduo histria urbana: a ci-dade e o poder e aA cidade medievalna perspectiva da histria das menta-

    lidades, in Cidade e Histria (Lisboa,Fundao Calouste Gulbenkian, 1992.)

    .

    Do mesmo modo, tambm a Arquitectura participou na historiografiada cidade medieval. Esta rea, tal como a geografia, apresenta-se adequada natureza do tema numa vertente mais espacial, baseando a sua anlisenuma leitura mais morfolgica10

    10. Tal justifica o interesse de ar-quitectos, por formao mais oca-

    cionados para a leitura de morfo-logias urbanas e a construo men-

    tal de esquemas e imagens espaciais. do que documental. Tal permite a van-tagem de colmatar a falta de fontes sobre um tema que praticamente noteve expresso na documentao. Contudo, os desenvolvimentos surgi-dos nesta rea disciplinar centram-se mais concretamente numa posturade evoluo urbana global, tocando pontualmente a cidade medieval. Este o caso de Bernardo Jos Ferro, no seu trabalho sobre o Porto na pocados Almadas, que reconhece a necessidade de perceber as realizaes ur-bansticas setecentistas numa tradio de regularidade detectvel desde a

    Idade Mdia11

    11. Este autor tem um trabalho interes-sante na medida em que tenta perceber a

    dinmica de crescimento urbano espont-neo, para a comparar com o crescimento

    planeado setecentista, isvel no papeldisciplinador das ruas novas ou direitas.

    . Dentro de tema similar, nomeadamente na procura de li-

    4

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    nhas de continuidade entre a cidade medieval portuguesa e a compreensoda cidade moderna, temos tambm o trabalho de Walter Rossa, ManuelTeixeira e Jos Manuel Fernandes. Contudo, o problema desta histori-ografia a sua concentrao em estudos que tentam fazer da expressomaterial (desenho de cidades ou de conjuntos urbanos, morfologia dos es-

    paos e tipologias do edificado) o ponto de partida para a compreenso dotodo civilizacional, faltando nestas obras, de um modo geral, a vertente dasociologia, antropologia e estudo das mentalidades, para no falar das me-todologias histricas, necessrias juno das referidas esferas temticas.Do mesmo modo muitas vezes descurada a relao com as pessoas quehabitavam esses espaos, ou os processos sociais que lhes deram origem.

    A rea da Histria da Arte tem tambm abordado a histria da cidade,utilizando, tal como a Arquitectura, a sua vertente espacial. Nesta rearessaltamos os trabalhos de Jos Ferro Afonso, C. Ferreira de Almeida e,mais recentemente, a obra de Luisa Trindade, nomeadamente a sua tesede Doutoramento, que se foca sobretudo na construo do espao fsico,

    nomeadamente das cidades criadas de raiz. Do mesmo modo tambm aarqueologia tem apostado nos ltimos tempos no estudo da cidade medie-

    val, nomeadamente atravs dos trabalhos de Manuel Real (Porto) e Mariado Carmo Ribeiro (Braga).

    Nos ltimos anos tm-se desenvolvimento novas metodologias de an-lise do espao urbano para alm da estruturada por A. de Oliveira Marques,todavia estas tm decorrido de forma dispersa e com base em diferentesmtodos de investigao. Na verdade, tirando casos em que a abordagemse centra em torno das cidades de fundao, (onde a inteno de planea-mento em malhas regulares as converte em nicas passveis de aferir m-todos urbansticos), a anlise do espao urbano, por ser muito baseada em

    fontes documentais, marginaliza, em parte, as potencialidades da docu-mentao grfica, histrica e sobretudo actual. Nesse sentido queramosfazer uma chamada de ateno para a obra de Walter Rossa e Lusa Trin-dade, autores que vm da rea da arquitectura e histria da arte, respec-tivamente, e que tm levado a cabo um estudo exaustivo sobre a cidadeem Portugal. A sua anlise inovadora na medida em que se propemdescodificar as regras de composio e mtodos de ordenar o territrio napoca medieval, atravs essencialmente da imagem, considerando para talo desenho assistido por computador como principal ferramenta, ao qualjuntam a iconografia e a cartografia histrica, assim como relatos de vi-ajantes12

    12. A utilizao do desenho como ferra-menta de interpretao histrica alarga ashipteses de investigao e compreensodo processo evolutivo, em especial paracasos onde as fontes tradicionais (escri-tas e desenhadas) no permitem ir maislonge. O seu uso pode colocar em evidnciaelementos importantes para a compreen-so da forma e do seu desenvolvimento,individualizando-a e clarificando-a. De-pendendo dos casos podem tambm juntarregistos das grandes campanhas de res-

    tauro dos sculos XIX e XX, ou os queresultaram dos processos de renovao eensanche urbana da poca, assim como aprimeira cartografia urbana cientfica comregisto cadastral (oitocentista), e os est-gios exumados pela arqueologia urbana.ROSSA e TRINDADE, 2006.

    . Do mesmo modo pensava Ferreira de Almeida1313. ALMEIDA, 1992, p. 141.

    em relao

    compreenso das muralhas portuguesas, referindo a sua incompletude, e anecessidade de dispor de uma boa equipa de desenho para se efectuar umaboa anlise.

    Ainda assim, todos parecem considerar o prprio objecto, a cidade,como a fonte mais rica de informao, pois ao mesmo tempo reposi-trio e resultado de um permanente processo de evoluo, que permiteentender na sua expresso actual sinais e vincos das etapas anteriores14

    14. Todavia, precisamente pela sua grandedimenso, complexidade e permanentemutabilidade, julgam essencial o recursoa outros processos de abstraco (at por-que por definio o objecto da histriado urbanismo j deixou de existir, per-manecendo apenas o seu resduo). Aindaassim consideram que na cidade que temque ser possvel erificar todo o tipo deinterpretaes que advenham dos dadosrecolhidos em outras fontes. ROSSA eTRINDADE, 2006.

    .Mas, apesar dos ltimos progressos e do recente interesse pelo tema da

    histria urbana, o quadro de conhecimento parece continuar ainda muitofragmentado e incompleto, e s um pequeno nmero de obras publicadasse pode classificar, sem quaisquer ambiguidades, no domnio da histria

    urbana15 15. TEIXEIRA, 1998.. Do mesmo modo, muitos dos autores que escrevem a histria

    5

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    da cidade, fazem-no mais como parte dos seus interesses histricos maislatos, como exemplo a obra de historiadores sociais, polticos ou eco-nmicos, como Jos Mattoso e Oliveira Marques, do que procurando acompreenso do seu espao urbano. E, embora a investigao nesta reatambm venha sendo levada a cabo por investigadores de outras discipli-

    nas, como a sociologia, economia, arquitectura e geografia, estes investi-gadores usam sobretudo a histria urbana para introduzir uma dimenso

    temporal, ou apenas um prefcio, sua principal rea de estudo.Concentrando-nos agora na historiografia relativa cidade do Porto,

    durante o perodo medieval em particular, temos como referncia a obrade Armindo de Sousa, onde destacamos os Tempos medievais da Hist-ria do Porto dirigida por Lus Ramos. Embora este autor d grande relevoao papel das mentalidades na poca medieval, nomeadamente s relaesentre o poder eclesistico e o poder concelhio, desenvolve sempre umaperspectiva global que nos ajuda a perceber o ambiente urbano e social quenos interessa verdadeiramente. A sua obra contribuiu com novas ideias

    e concepes para esta historiografia, como resultado duma perspectivapessoal acompanhada da documentao factual. Ressaltamos da sua obraa vvida descrio do que era a realidade, sobretudo scio-poltica, mastambm espacial, da poca medieval, e o privilegiar dos grupos do poderlocal como os principais catalisadores do sucesso, transformaes e ritmosda histria da cidade.

    Em relao histria poltica e institucional do Porto medieval, res-saltamos a obra de Torcato Sousa Soares e A. de Magalhes Basto numaprimeira fase, e de Maria de Ftima Pereira Machado e Maria AdelaideMillan Costa, numa segunda. A nvel econmico destacamos a recenteobra de Arnaldo Melo1616. MELO, Arnaldo Rui Azevedo de

    Sousa.Trabalho e Produo em Portu-gal na Idade Mdia: O Porto, c. 1320- c. 1415, Tese de Doutoramento em

    Histria, Universidade do Minho,Instituto de Cincias Sociais, 2009.

    (cuja tese de doutoramento sobre o trabalho e a

    produo no Porto medieval foca um tema de estudo ainda muito recenteem Portugal).

    Relativamente rea do patrimnio urbano temos o trabalho de JosMarques (Patrimnio Rgio no Porto) e a obra de Lus Miguel Duarte eLus Amaral (Prazos do Sculo e Prazos de Deus e os Os homens quepagaram a Rua Nova), entre muitas outras.

    Quanto ao tema da evoluo espacial e urbanismo, destacamos a obrade Manuel Real, Jos Ferro Afonso, Rui Tavares, Maria Isabel Pinto Os-rio, e, como no podia deixar de ser, Pereira de Oliveira com a sua tese dedoutoramento O Espao Urbano do Porto, que embora no se foque noperodo medieval, e esteja j desactualizada em alguns pontos, a obra que

    mais profundamente estuda a evoluo espacial da cidade. importante referir que para a anlise deste trabalho nos basemos

    tambm em historiografia naturalmente alargada a obras estrangeiras,como objectivo conjunto de contextualizar o tema em estudo, estabelecercomparaes e ao mesmo tempo analisar diferentes metodologias de an-lise urbana. Todavia, tendo em conta que esta tese se centra no estudodo Porto medieval, consideramos que no este o local apropriado parafazer um ponto de situao centrado na historiografia estrangeira. Assim,faremos somente uma breve apresentao das obras analisadas relativas aeste temtica.

    Relativamente histria do Urbanismo e da Cidade no geral utiliz-

    mos sobretudo as obras de Charles Delfante, Spiro Kostoff, F. Chueca

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    Goitia, Lewis Mumford, Leonardo Benvolo e Aldo Rossi. Relativamenteao tema do Urbanismo e Cidade Medieval, centramo-nos nos estudos deautores franceses como Pierre Lavedan, Jacques Heers, Jacques Le Goff,

    Jeanne Hugueney e J.P. Leguay. Utilizmos tambm obras de autores es-panhis, com relevo para a obra de Beatriz Arzaga Bolumburu y Jess

    Angel Solrzano Telechea.

    No cenrio atrs descrito, notrio para ns o muito que ainda estpor explorar em relao ao trabalho de investigao urbana em Portugal.Tal deve-se em parte ao facto da histria do urbanismo no se ter aindaestabelecido como uma disciplina autnoma, com o seu prprio corpo deideias, metodologias e objectivos. Existem ainda muitos problemas de de-finio de contedos e de objectivos e uma grande impreciso de termi-nologia de referncia. E continua a haver uma falha de interligao detemas, vendo-se, por um lado, a histria urbana como histria do desen-

    volvimento espacial de cidades e, por outro, como histria social, em que

    a cidade entendida como o palco em que tais processos se desenvolvem.Assim, torna-se cada vez mais importante a investigao inter-disciplinar,

    o dilogo entre vrios ramos do conhecimento, pois o estudo da cidade,como campo multidisciplinar, deve ultrapassar as barreiras existentes en-tre os vrios ramos da histria e incentivar a colaborao entre diferentesdisciplinas. S atravs do estudo sistemtico de um grande nmero de

    variveis que as dinmicas dos processos urbanos podem ser compreen-didas, sendo a tarefa do historiador sintetizar os resultados das diferentesabordagens disciplinares num todo coerente.

    Notamos contudo que no estudo da cidade e do urbanismo medie-

    val ainda se usa muito a metodologia definida e desenvolvida por OliveiraMarques. Do mesmo modo, tambm notamos que algumas universidadespblicas, como Coimbra e o ISCTE de Lisboa, parecem estar mais con-centradas na rea da histria urbana, nomeadamente na sua vertente fsicae espacial, que outras universidades, que se concentram mais em vertentesinstitucionais, econmicas, sociais e polticas do tema. Em relao Uni-

    versidade do Porto, temos a obra de Ferreira de Almeida e Ferro Afonso(Tese de Doutoramento), mas poucos mais tm sido os trabalhos que secentram na dimenso espacial da cidade, ou no tema do urbanismo medi-eval. E, embora Lus Miguel Duarte e Lus Carlos Amaral analisem estetema, ele mais uma parte dos seus interesses histricos, que o objectivo

    final.

    Para terminar queramos somente destacar o avano que nas ltimasdcadas se deu na compreenso dos primrdios do desenvolvimento ur-bano do Porto, graas s mltiplas intervenes arqueolgicas que, desdeos anos oitenta, vm tendo lugar no morro da S e na sua envolvente. Domesmo modo, tambm se desenvolveu todo um ambicioso trabalho dereconstituio do burgo medieval, nomeadamente em maqueta e planta,para o qual milhares de informaes documentais sobre topografia e or-

    ganizao do burgo antigo tiveram de ser recolhidas e analisadas17

    17. Investigao para a execuo da ma-queta e planta do Porto Medieval mostra-das na exposio Um olhar sobre o Portomedieval, que esteve patente, de Junho aNovembro de 1999, no Centro Regional deArtes Tradicionais do Porto, e actualmentese encontra em exposio permanente naCasa do Infante do Porto. REAL, 2001. Estas

    duas linhas de pesquisa, s quais podemos juntar as obras atrs menciona-

    das, muito contriburam para compreender como seria o Porto no passado.

    7

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    1.3 Esclarecimento de Conceitos

    A nossa formao-base em arquitectura. Assim, inevitavelmente, a nossaprioridade de estudo o espao, ou melhor dizendo, a procura da compre-enso do mesmo atravs dos factores que estiveram na base da sua configu-

    rao visual. Por isso, sempre que utilizarmos termos como espao, cons-truo, territrio, organizao, urbanismo ou urbanizao, e no havendoindicao contrria, referimos-nos sua dimenso fsica e visual.

    Deixar isto bem claro desde o incio essencial, tendo em conta queesta dissertao do domnio da histria, e a nossa formao em ar-quitectura, duas reas que embora partilhem conceitos, estes nem sempretm os mesmos significados. Portanto, focando-nos na principal termino-logia utilizada neste trabalho, a relacionada com o conceito urbano, jul-

    gamos importante comear por definir o seu significado, tendo em contaque um daqueles conceitos que pode ter vrios sentidos dependendo doenquadramento onde se insere18

    18. O termo urbanismo est carregado deambiguidades. Absorvido pela linguagemcorrente actual, designa atravs dela tantoos trabalhos do gnio civil, como os planos

    de cidades ou as formas urbanas caracte-rsticas de cada poca. CHOAY, 2000.

    . Comeando pelo termo urbano, sabe-

    mos que se refere a tudo quanto diga respeito cidade, nomeadamentes relaes que cada um dos seus utentes estabelece com os demais entesdessa comunidade e com o ambiente que o rodeia. Nesse seguimento, ur-banismo corresponde realidade do espao edificado que, em constantetransformao, suporta e influencia aquelas relaes19

    19. ROSSA, 2002. p. 1315.

    . Assim, no que toca construo da cidade, utiliza-se o termo urbanizao; no que toca aoseu desenho e organizao prvia, denomina-se planeamento urbano, enaquilo que diz respeito regulamentao de regras de actuao sobre aurbe, chama-se gesto urbana20

    20. NaGrand Larousse Encyclopdi-que, urbanismo definido como a arte

    de arranjar e organizar as aglomera-es urbanas (...) de tal modo que as

    funes e as relaes entre os homens seexeram da maneira mais cmoda, eco-

    nmica, e harmoniosa possvel. Domesmo modo tambm definido como

    conjunto das regras jurdicas que per-mitem aos poderes pblicos controlar a

    utilizao do solo em meio urbano. GrandLarousse Encyclopdique, Paris, 1964.

    ROSSA, 2002, pp. 1315. CHOAY, 2000.

    .Mas, antes de continuar, importante chamar a ateno para o carc-

    ter recente do termo urbanismo, que ter entrado no vocabulrio lin-

    gustico apenas no incio do sculo XX. Todavia, a disciplina que simbo-liza este conceito existe desde sempre, em todos os lugares, com mais oumenos rigor de acordo com as aspiraes e os modos de associao daspopulaes2121. Pelo menos Roma e Alexandria j

    colocavam para seus habitantes certosproblemas que ivemos hoje. Mas de

    facto, a palavraurbanismo recente,remontando G. Bardet a sua criao a1910. Este termo novo corresponde ao

    surgimento de uma realidade nova emfins do sculo XIX - a expanso da soci-edade industrial - dando origem a uma

    disciplina que se diferencia das artes

    urbanas anteriores atravs de um ca-rcter mais reflexivo e crtico e pela sua

    pretenso cientfica. CHOAY, 2000.

    . Logo aqui podemos inferir que, provavelmente, na pocamedieval o termo urbanismo no seria conhecido, mas provavelmente apreocupao com o espao da cidade e o bem-estar da populao exis-tiriam. Sob que forma, isso o que vamos investigar no decorrer desteestudo. Assim sendo, consideramos que no do interesse deste traba-lho alongar-se a falar de urbanismo pois, como vimos, a sua designao recente, pelo que as suas definies so mais adequadas poca modernaque ao perodo medieval, e normalmente associadas criao ab initio da

    cidade, ou sua revitalizao sob uma orientao planificada.Todavia, para melhor explicar a dimenso histrica do urbanismo, que

    a que nos realmente interessa, teremos que nos estender para outroscampos com este tema relacionados, ainda que distintos: por um lado aHistria urbana, que inclui no seu estudo uma srie de outras disciplinas,como a poltica, a economia, a sociologia, visando acima de tudo a com-preenso da cidade como organismo global; e por outro lado, a Histriado Urbanismo, que procura compreender o processo pelo qual ocorreuo desgnio, a instalao, o desenvolvimento e a permanente transforma-o espacial de um ncleo urbano. O nosso trabalho pretende situar-senum patamar intermdio entre ambas histrias, sendo contudo realada

    a vertente urbanstica ainda que atravs da vertente urbana. No campo do

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    urbanismo estudaremos sobretudo a evoluo urbana (como crescimentofsico, ao longo dos tempos, da cidade), o planeamento urbano (que pres-supe fazer um plano prvio da imagem que se quer para a cidade, ou partedela), e a gesto urbana (ou polticas de administrao urbana), que nestetrabalho abordado sob o tema de posturas municipais,termo usado como

    expresso da actuao do Concelho relativamente fiscalizao e benfei-toria urbana, principalmente naquilo que diz respeito ao espao pblico,ou comum a toda a populao.

    Ainda assim, voltamos a frisar que o que nos interesse perceber quaisos mecanismos que estiveram por detrs da construo/crescimento fsicoda cidade, e se haveria um planeamento prvio, ou algumas regras ou pos-turas que poderemos comparar hoje em dia com o nosso PDM (Plano Di-rector Municipal), que funcionariam como uma primeira aproximao aum instrumento de gesto do territrio, organizando o espao da cidadeatravs da vinculao das entidades pblicas e dos particulares.

    1.4 Metodologia e Fontes

    Quanto metodologia usada, ela assenta antes de mais na agregao deelementos informativos (bibliografia, fontes documentais, cartografia), nacompreenso e anlise dessa informao, acompanhada pela elaborao dedesenhos tcnicos e esquemas relativos evoluo do Porto medieval. Domesmo modo, tambm foi importante conhecer o espao, caminhar pelacidade antiga, desenhar e pensar sobre o que vimos.

    Relativamente a recolha de informao bibliogrfica consultamos umasrie de autores ligados ao tema em questo, nomeadamente Armindo de

    Sousa, Lus Miguel Duarte, Lus Carlos Amaral, Manuel Real e FerroAfonso, Pereira de Oliveira. Quanto s principais fontes para o estudo

    desta problemtica, procedemos a uma seleco da vasta documentaomanuscrita e impressa relativa ao Porto medieval, nomeadamente nos Li-

    vros de Vereaes, prazos religiosos (Livros de Pergaminhos do ArquivoHistrico Municipal do Porto e os documentos do Cartrio do Cabidoda S do Porto, nomeadamente os que se encontram nos denominadosLivros dos Originais), prazos camarrios e Corpus Codicum. O m-todo seguido na recolha de dados dos documentos no publicados consis-tiu na transcrio do(s) extracto(s) que nos interessavam. Nos casos dosdocumentos publicados tal dispensava-se. Para facilitar a nossa anlise

    das fontes documentais, estruturmos uma base de dados que sistematizaa informao contida em prazos e actas de vereao relativamente infor-mao urbana. Esta sistematizao em relao anlise de prazos levouem conta a identificao da data, tipo de prazo, proprietrio, arrendat-rio, tipos de obrigaes e localizao. Quando anlise das vereaes, estapassa somente pela data e pelo tipo de postura e condies urbanas nelaspresentes.

    Quanto elaborao de desenhos, estes foram necessrios para perce-ber o crescimento urbano do Porto e, acima de tudo, para perceber por-que determinadas construes foram edificadas em determinados locais,focando condies geogrficas e humanas. Como se deve entender, ex-

    tremamente complexo o conjunto de factores que actuaram no processo

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    de evoluo urbana da cidade. Nesta evoluo os elementos fundamentaisso exactamente os factores urbansticos e dentro destes, especialmentea abertura de arruamentos e o seu povoamento. Nesse sentido elabor-mos tambm plantas, imagens e esquemas da cidade, com o auxlio deCAD (desenho assistido por computador), atravs do qual utilizmos a so-

    breposio grfica para colocar esquemas urbanos mais recentes sobre osmais antigos e assim apreender melhor, e visualmente, as transformaesocorridas na cidade. Para a elaborao destas plantas foi usada a meto-dologia regressiva, atravs da anlise de plantas posteriores, e da vivnciado espao actual, e tambm o mtodo comparativo (sucesso regular dasdiferenas) na anlise de plantas de diferentes etapas urbanas do perodomedieval. Para esta ltima anlise foi especialmente importante a informa-o grfica e histrica contida no trabalho de Pereira de Oliveira2222. E embora os seus estudos j estejam

    desactualizadas em relao a algumastemticas (principalmente em relao a

    uma cronologia anterior Idade Mdia,poca para a qual se fizeram recentemente

    novas descobertas), a nvel geogrficoe de interpretao urbana tm ainda

    muita relevncia. OLIVEIRA, 1973.

    , pois,at 1813, no existe nenhuma planta do Porto que contenha o mnimo rigorcartogrfico, pelo menos que se conhea. Portanto atravs de diferen-tes tipos de bibliografia, documentos (desde prazos a censuais, tombos,

    de decises camarrias s rgias), da anlise comparativa de gravuras depanormica geral, assim como da informao arqueolgica e dos vestgios

    visveis na cidade actual, que recolhemos os elementos necessrios nossaanlise. E de entre eles, de algum modo, foi possvel entrever-se com al-

    guma segurana vrios dos traos mais significativos da evoluo urbana eat alguns aspectos das razes e das causas especficas de certos problemasdessa evoluo.

    Tal estudo apresenta as seguintes dificuldades: (a) externas: falta deestudos que permitam enquadrar, historicamente, a evoluo das polti-cas urbanas e (b) internas: de mtodo a difcil compatibilidade entreelementos e fontes diferentes as leis e as posturas, os prazos, as mono-

    grafias versus os artigos, a realidade construda, e por fim, o brilho daspessoas importantes e a opacidade da gente humilde.

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    CONDIES DE DESENVOLVIMENTO

    Este captulo tem como objectivo a anlise das condies naturais ehumanas que serviram de matriz configurao e desenvolvimentoda cidade medieva. Estes factores representaram-se, ao longo dostempos, como os que imprimiram uma presena mais forte paisagemfsica e mental do territrio onde mais tarde se consolidou a urbe medieva.

    Esta anlise divide-se em duas partes, uma primeira, denominadaCondies naturais, onde o espao estudado de modo a pr em evi-dncia os elementos geogrficos e os factores naturais que, de algummodo, condicionaram a paisagem urbana do Porto medieval, e uma se-

    gunda parte, denominada Condies humanas, com o mesmo objectivode perceber qual a base da cidade medieval, mas, ao invs de se focar noespao natural, centra-se no espao construdo pelo homem, como os sis-temas de povoao e as vias de circulao.

    2.1 Condies Naturais

    essencial para ns comear este captulo por chamar a ateno para a

    clara e decisiva importncia que as condies naturais (topografia, clima,vegetao natural e hidrografia) tiveram, primeiro na gnese e depois nodesenvolvimento, de qualquer cidade.

    Embora o tema da geografia seja normalmente abordado nos estudossobre a cidade, quer histricos, quer de arquitectura, pensamos que a suareferncia no passa, na maioria dos casos, disso mesmo, de uma breve e

    generalizada referncia que depois acaba por no ser aprofundada no de-senvolvimento do estudo. Mesmo estando, de um modo geral, presentesos temas do relevo e da hidrogafia, acreditamos que as condies natu-rais tiverem um papel bem mais complexo que este, e sempre constanteno desenvolvimento da cidade. Nesse sentido, e ainda que centrado num

    sub-captulo denominado condies naturais, este tema vai ser recorrenteneste trabalho, uma vez que o consideramos intrinsecamente ligado ao de-senvolvimento da cidade medieval.

    Portanto, aqui responderemos somente pergunta quais foram ascondies naturais que estiveram na base do espao fsico do Porto medi-eval, e no pergunta como tero as condies naturais influenciado oespao fsico da cidade. Esta ltima ser respondida medida que vamosdesenvolvendo a nossa anlise relativamente ao territrio que se tornou oPorto medievo.

    Do mesmo modo, tentaremos no s perceber estes factores natu-rais como base do espao fsico, mas tambm do espao econmico e so-

    cial. O porqu desta escolha reside no s nas potencialidades, j sobeja-

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    mente conhecidas, que estes factores podem ter na economia, mas tam-bm no modo como podem influenciar as caractersticas de um povo e,aqui, lembramo-nos das palavras de Armindo de Sousa ao notar que, pelomenos desde a poca medieval, os homens se referem s escarpas agrestese m qualidade do solo do Porto como dificultadoras da sua vida, cons-

    tatao que no conseguimos deixar de associar a uma certa resistnciafsica e mental.

    2.1.1 Contextualizao Territorial

    A rea qual correspondia o Porto medieval estende-se na margem Nortedo rio Douro, a cerca de 4 km da sua foz, e encontra-se na rota de trs li-nhas estratgicas e territoriais: duas verticais (martima e terrestre) e umalinha horizontal (acesso ao interior da Pennsula). A rota vertical martima representada pelos trajectos que seguiam entre o mar Mediterrneo e oNorte da Europa, e a rota vertical terrestre pela ligao entre o Norte e o

    Sul da zona Oeste da Pennsula. A linha horizontal representada pelo rioDouro que, juntamente com o Tejo, apresenta o melhor modo de penetra-o no interior da Pennsula Ibrica, facto que, pela fcil navegabilidade,confere grande importncia foz de cada um, e tambm s suas margens.

    A zona onde se implantou a cidade medieval encontra-se junto a umponto de atravessamento de excelncia do rio (devido sua estreiteza),servida por uma praia fluvial que permitia o ancoradouro das embarcaes,e a partir da qual se podia aceder facilmente a cotas superiores atravs do

    vale do rio da Vila. Este ltimo era contudo contornado por ngremesdeclives, que se revelavam bastante adequados defesa da cidade.

    2.1.2 Topografia

    A urbe medieval, e a castreja e romana antes dela, formaram-se em tornodo morro da Penaventosa, elevao que faz parte de um conjunto de co-linas coroadas de planaltos de maior altitude a nordeste, baixando suave-mente em direco ao oceano e foz do Douro, e de modo mais abrutojunto ao rio Douro11. RAMOS, 1995, pp.

    5055. BASTOS, 1938. p. 4.. Esta topografia possui indubitavelmente a marca da

    rede hidrogrfica da cidade, cuja maior parte drenada para o rio Douroatravs de pequenos afluentes, como o caso do rio da Vila que, contor-nando por ocidente os morros da cividade e da S, enquadrou o ncleoembrionrio do Porto22. RAMOS, 1995, pp. 5055 . Este conjunto de colinas, que apresentam altitu-

    des de cerca de 70 a 80 metros nos seus pontos mais altos33. OLIVEIRA, 1973, pp. 2933. , formam amplose fundos vales nas cotas mais baixas. Atravs da carta de declives da cidade

    vemos que o conjunto referido se encontra na zona de maior declive da ci-dade (chegando a alcanar valores na ordem dos 45), ou seja, na rea queserve de limite sudoeste cidade do Porto, e se situa junto ao Douro44. RAMOS, 1995, pp. 5055. .

    Como o rio Douro muito estreito, e as suas encostas bastante abrup-tas, fica-se com a impresso que a cidade se estende sobre um terrenomuito mais acidentado. Tal caracterstica precisamente acentuada juntoao morro da Penaventosa, local onde o Douro apresenta maior estreiteza,o que confere a este local uma sensao de difcil obstculo 55. BASTOS, 1938, p. 4.

    OLIVEIRA, 1973. p. 18, no obstante,

    devido sua menor largura, ser provavelmente o ponto de travessia mais

    usado desde tempos romanos66. OLIVEIRA, 1973, pp. 183216. .

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    Todavia, vendo-se o Porto do cu, repara-se que o terreno se dispecomo um anfiteatro, no sendo to ngreme e abrupto como parece aonvel do rio7 7. OLIVEIRA, 1973, pp. 3133..

    Focando-nos no morro da Penaventosa como ncleo embrionrio doPorto medieval, sabemos que este um esporo de difcil acesso, com

    uma altura de 76 a 78m nas cotas mais altas, e defesas naturais exceptopor Norte, onde forma uma plataforma convidativa fixao de casas edelineamento de ruas. As curvas de nvel nas encostas so propensas for-mao de percursos virios de envolvimento (Bainharia, S. Sebastio), ouento ao corte perpendicular do declive, facultando acessos directos (Ruade Santana)8 8. CARVALHO, 1996. p. 19..

    No morro da Penaventosa, trs locais se mostram adequados topogra-ficamente ocupao humana: a plataforma superior (onde est a S); asplataformas que rodeiam a referida catedral e se encontram a um nvel in-ferior a esta, e os percursos a Oeste do morro, que fazem parte do valedo Rio da Vila. Sabendo que a morfologia da Pena Ventosa escarpada, o

    vale do Rio da Vila tem a cadncia e, consequentemente, o trajecto, queoferece melhores condies topogrficas para uma circulao de pessoase mercadorias em direco a Norte.

    Com o decorrer do perodo medieval a cidade desenvolveu-se para osvales envolventes ao morro da Penaventosa. A Poente temos o vale situ-

    ado entre o morro da Penaventosa e o morro da Vitria, dividido a meiopelo rio da Vila, seguindo-se-lhe a zona entre as Virtudes e Monchique. ANorte temos o morro da Cividade, ainda mais alto mas no to escarpadocomo o morro da Penaventosa, e a Nascente a zona dos Guindais, esta simtambm bastante escarpada.

    O substrato litolgico da zona onde se encaixava o Porto medieval

    constitudo essencialmente por rochas granticas e xistosas, o que permi-tiu a sua utilizao como matria-prima de construo, conferindo a estalinhas austeras que acabaram por modelar o aspecto fsico da cidade9 9. OLIVEIRA, 1973, pp. 2033. Jna documentao do sculo XIV, se lia a referncia ao granito da cidadecomo: cidade sobre pedra, lugar spero e sem abastana de mantimen-tos, seco, estril e maninho assento10 10. SOUSA, 2000. p. 122..

    Em relao a factores de proteco, sabemos que o morro da Pena-ventosa, tendo o morro da Cividade a Norte a servir de proteco contra

    os ventos fortes deste quadrante, e tendo a encosta que dava para o rioDouro voltada a Sul, seria uma zona relativamente confortvel, no obs-tante o burgo se implantar no cume de um morro, e ser constantemente

    varrido por ventos.

    2.1.3 Hidrografia

    A rea do Porto , desde tempos muito recuados, servida no s pelo cau-daloso rio Douro mas tambm por pequenos ribeiros que nele desaguam,muitos deles entretanto encanados11 11. RAMOS, 1995, BASTOS, 1938, pp.

    311..

    Comeando pela anlise do rio Douro, sem dvida o principal eixohdrico da cidade, sabemos que este funcionou no s como manancialde gua, mas tambm como veculo de comunicao (com navegabilidadeatestada pelas fontes clssicas), e como veculo comercial. Localizaes

    junto a margens de rios e a costas martimas proporcionaram, desde sem-

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    pre, actividades comerciais, uma vez que o transporte atravs de embar-caes facilitava a circulao dos produtos e matrias-primas numa alturaem que os transportes terrestres ainda no apresentavam um grande graude desenvolvimento. Assim, as embarcaes permitiam transportar pro-dutos mais pesados e em maior quantidade1212. VALLA, 2000. . Do mesmo modo, e citando

    Orlando Ribeiro, sabemos tambm que a existncia de um rio asseguraao longo do vale a convergncia dos caminhos, mostrando que os cursosde gua no so somente vias de circulao, mas que com a sua presenachamam toda uma rede viria da zona onde se inserem. De acordo como mesmo autor, outro factor caracterstico dos rios era o relativo defesa,reforando a proteco1313. RIBEIRO, 1963. . E o Douro, junto zona medieval, era dissoexemplo, no s devido condio de fosso a transpor, mas tambm de-

    vido s suas margens escarpadas no local da Penaventosa, tomando assim oaspecto de verdadeira fortaleza, o que permitia tambm um bom controle

    visual.Mas na rea em estudo, correspondente ao burgo medieval,

    implantavam-se mais cursos de gua alm do Douro: o rio da Vila, o rioFrio, o ribeiro de Miragaia, o ribeiro das Hortas e o ribeiro do Poo dasPatas1414. O territrio que envolvia o Porto

    medieval, nomeadamente o seu termo,era ainda rodeado de mais ribeiros, (en-

    tretanto desaparecidos ou encanados),que no entanto no iremos analisar

    tendo em conta que nos concentramos so-mente na zona correspondente cidade

    medieval. BASTOS, 1938, pp. 311.

    .O primeiro seria o mais importante, sendo provavelmente o canalem

    Maiorem j referenciado na carta de doao do senhorio da cidade porD. Teresa a D. Hugo. Este tinha origem em dois ribeiros, que se uniam emfrente Igreja dos Congregados, aumentando assim o seu caudal e des-cendo, depois, pelas traseiras da Rua da Bainharia, onde est hoje a RuaMouzinho da Silveira, continuando para o largo de S. Domingos, e depois

    virando em ngulo recto para Sul, onde seguia sensivelmente o percursoda Rua de S. Joo at desaguar entre a Ribeira e a Reboleira1515. CARVALHO, 1996. p. 19;

    SOUSA, 2000. pp. 163165.

    .A signifi-

    cativa designao deste afluente, que era tambm chamado rio da Civi-dade,dos Carros, ou dos Pelames, mostra desde logo a sua importn-cia, possuindo um esteiro que possibilitava boas condies de desembar-que, e tendo por leito uma inclinao suave, que o torna o mais adequadoaos condicionalismos dum percurso de ligao entre a zona baixa e alta dacidade16

    16. FERRO, 1989. p. 119; OLI-VEIRA, pp. 185209, OSRIO, 1994 . Todavia, encontramos tambm indicaes que o referem como

    a precipitar-se em cascata atravs do velho burgo17

    17. BASTOS, 1938, pp. 311; CAR-VALHO, 1996. p. 19; OLIVEIRA,

    1973, pp. 2033; REAL, 2001; TA-VARES, 1987; SOUSA, 2000.

    . De qualquer modo, oseu caudal seria forte o suficiente para o funcionamento de moinhos nassuas margens18

    18. OLIVEIRA, 1973.

    .O rio Frio passava pelo acidentado vale situado entre Monchique

    e a Cordoaria. Tambm chamado de ribeira das Virtudes, este curso

    originava-se no terreno compreendido entre as ruas de Cedofeita, Tor-rinha, Boa Hora, Rosrio e do Breiner, e foi em parte coberto no ano de1769 para se poder construir a cerca do Hospital de S. Antnio. Desaguavaprimitivamente junto velha fonte da Colher, tendo sido depois desviadaa sua foz para o stio onde esteve a Porta Nobre em Miragaia, quando seconstruiu um edifcio para a Alfndega1919. BASTOS, 1938, pp. 311. .

    O ribeiro de Massarelos, situado entre Cedofeita e Massarelos, corrianum terreno menos acidentado que os anteriores cursos. Seria um extensoe ramificado valeiro que, na parte terminal, era conhecido como o rio deVilar ou ribeiro de Miragaia. A sua origem situava-se na zona da Carva-lhosa, seguindo depois, paralelamente, pelo lado norte, rua dos Bragas

    e da Torrinha, indo desaguar em Massarelos. Junto sua foz, local onde

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    assenta hoje a Alameda marginal, existiam, no sculo XIII, as antigas ma-rinhas de sal, clebres por causa dos conflitos que originaram entre os c-negos de Cedofeita, a Coroas e o Bispado do Porto20 20. BASTOS, 1938, pp. 311..

    O ribeiro das Hortas desaguava junto aos Lios, perto do rio de Vila.Ambos os cursos eram formados pelas guas que corriam pelos Vales de

    Fradelos e de Germalde21 21. BASTOS, 1938. pp. 311..Quando ao ribeiro a Nascente do morro da Penaventosa, e o mais ori-

    ental de todos, este desaguava no Douro entre o Monte do Seminrio eas Fontainhas, sendo antigamente conhecido como o ribeiro do Poo dasPatas. Vinha desde Costa Cabral, seguia entre o Monte dos Congregadose os montes das Antas e do Bonfim, passando depois pelo Campo de 24de Agosto, local onde criava uma zona pantanosa22 22. BASTOS, 1938. pp. 311..

    Todos estes cursos de gua que serviam a urbe medieval traziam muitasvantagens, desde serem fontes de abastecimento colectivo e de irrigao

    (permitindo a fertilidade dos campos), mas tendo tambm uma funomotora (permitindo a instalao de moinhos e o desenvolvimento de in-

    dstrias que deles dependiam), uma funo de limpeza (caso dos pelamese da lavagem da roupa), circulao, defesa e de trfego comercial.

    Todavia a sua existncia no teria somente vantagens, havendo a con-siderar os factores que afastariam a cidade destes cursos, nomeadamenteas cheias ordinrias e extraordinrias, e o modo como condicionou a utili-zao do porto fluvial e a urbanizao das zonas mais ribeirinhas e envol-

    ventes aos ribeiros. Miragaia e Ribeira seriam ambas condicionadas igual-mente pelas consequncias do regime do Douro, nomeadamente no que serefere a cheias, pois por serem zonas de fcil acesso por barco, praias por-tanto, so ao mesmo tempo zonas facilmente inundveis. Alm das cheias,outro problema eram as reas alagadias da cidade, como o Campo de 24

    de Agosto (antiga zona das Mijavelhas), onde ao lado de moinhos convi-viam zonas pantanosas e muito poludas. Este local era to rico em guas

    que foram aproveitadas para moinhos, tal como as do rio de Vila o forampara os pelames23 23. OLIVEIRA, 1973..

    Para terminar, queramos chamar a ateno para o modo como a redehidrogrfica influenciou as formas de relevo, delineado, os seus cursos degua, escarpas e rasgos na superfcie topogrfica na cidade.

    2.1.4 Vegetao Natural

    O tipo de vegetao natural do Porto seria, predominantemente, o men-

    cionado na toponmia: Carvalhos, Souto, Olival, Loureiro, entre outros.Todavia, durante a poca medieval, esta paisagem estaria j pontualmentehumanizada por terrenos de cultivo, representadas na toponmia com de-nominaes como Faval, Hortas, Vimial ou Ch das Eiras24 24. RIBEIRO, 1989; REAL, 1987, p. 394.

    Ainda assim, a ideia da riqueza agrcola no parecia ser compartilhadapelos moradores do Porto medieval, que sempre clamaram a sua pobreza.Mas tendo em conta que poca o burgo se limitava zona topogrficamais acidentada do casco actual, precisamente onde o substrato geolgico

    grantico mais se concentrava, parece-nos lgica a opinio destes homensmedievos. Ainda assim o interior do burgo seria ocupado com quintais, en-

    xido e hortas onde se encontrava o cultivo de verduras e frutas de pomar25 25. OLIVEIRA, 1973.

    Quanto ao territrio envolvente ao primitivo ncleo, este apresentaria ver-

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    dejante agricultura, onde os campos seriam frteis devido aos vales fundose hmidos e existncia de vrios ribeiros2626. OLIVEIRA, 1973. .

    2.1.5 Condies climatricas

    O clima da cidade ameno, apresentando temperaturas mdias entre 3e 22 graus. Relativamente pluviosidade, o nmero de dias com precipi-tao elevado, sendo os meses mais chuvosos Dezembro e Janeiro. Emcontrapartida, os meses mais secos so Julho e Agosto, sendo o Vero nor-malmente breve e moderado. Os nevoeiros tm um nmero mdio de 120dias por ano, sendo a sua distribuio quase uniforme, com um ligeiro m-nimo entre Maio e Junho, e dois mximos, um em Agosto e outro emDezembro2727. RAMOS, 1995. .

    Relativamente aos ventos,sabemos que a sua distribuio fortementevariada ao longo do ano. Nos meses de Abril a Agosto so mais fortes osventos de Oeste e Noroeste enquanto que nos restantes meses se nota a

    predominncia dos ventos do quadrante Este2828. RAMOS, 1995. .Estas condies climatricas, tpicas da zona atlntica,de precipitao

    copiosa e estiagem breve e moderada, favorecem a constituio de solosespessos, onde a humidade se conserva, e onde se constituem grande re-servas de gua. A proximidade do mar assegura chuvas abundantes durantea maior parte do ano e facilita a rega no tempo seco.

    A exposio solar do Morro da Penaventosa essencialmente voltadaa Sul, conferindo-lhe grande luminosidade. J Orlando Ribeiro salientaa localizao das principais cidades litorais portuguesas na margem nortedos rios, localizao esta que mais no mostra que uma predileco peladisposio solar voltada a Sul2929. RIBEIRO, 1989. .

    2.1.6 Concluses finais

    Na anlise dos factores naturais que caracterizaram a Penaventosa ressalta,desde logo, o seu relevo na implantao duma primitiva povoao. Pri-meiro a topografia,que juntamente com o aspecto defensivo da localizaonum ponto alto, escarpado, e de difcil acesso, proporcionava ainda con-trole visual dos percursos virios e fluviais. Alm disso formava nas cotasmais altas uma plataforma convidativa fixao de construo. Em se-

    gundo, a hidrografia, privilegiando o morro da Penaventosa pela abundn-cia de gua, e pela facilidade de circulao e transporte comercial. Todas

    esta caractersticas, alm de contriburem para a escolha do local, tambminfluenciaram o seu crescimento, principalmente se tivermos em conta ascondicionantes da topografia no traado dos arruamentos e na ocupaohumana que segue as curvas de nvel nas encostas, ou as corta perpendicu-larmente ao declive.

    Relativamente ao seu espao econmico, a principal contribuio foisem dvida a existncia do Douro e a proximidade do mar, que permiti-ram a circulao e troca de produtos comerciais. A importncia dos riosna origem e no desenvolvimento de uma cidade indiscutvel, pois servemde catalisadores e, ao mesmo tempo, de condicionantes, do crescimentoda cidade, directa ou indirectamente. O Porto um exemplo flagrante

    disso, dado que as caractersticas fsicas do rio condicionaram a morfolo-

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    gia, os sistemas de navegao, atravessamentos, eixos e percursos da urbemedieval.

    Terminamos assim este captulo que, como referimos no incio, se focanos factores existentes e no nas suas repercusses futuras. Salientamos,contudo, a concentrao de potencialidades que a sua situao geogrfica

    proporcionou, potencialidades estas que lhe conferiram o factor essencialpara o crescimento de qualquer cidade: o papel como ponto de conver-

    gncia de vias e ligao com outras terras e regies.

    2.2 Condies Humanas

    Neste captulo faremos a anlise das principais linhas de fora da ocupa-o humana no territrio da cidade desde os tempos mais recuados comopovoao at ao perodo medieval. Assim a anlise enquadrada entre apoca castreja (1. metade do I Milnio a.C) e o sculo XII, mais propria-

    mente 1114, data que atribumos ao incio do perodo medieval no Porto,como foi j referido.O nosso objectivo principal analisar a formao do espao que ser-

    viu de base cidade medieval e, nesse sentido, perceber quais foram osprincipais elementos espaciais e estratgicos que se mantiveram ao longodos tempos, o porqu da sua permanncia e da sua reutilizao na cidademedieval e, se possvel, relacion-lo com aspectos de poder, econmicos eestratgicos coevos.

    2.2.1 Os primrdios Perodo Castrejo

    Os vestgios mais remotos de povoamento na rea que se tornou mais tardeo Porto medieval, situam-se no Morro da Penaventosa, e datam do I Mi-lnio a. C., o que os enquadra no denominado Perodo Castrejo30

    30. Referimos-nos aqui aos primeiros

    estgios de povoamento organizado, eno os primeiros estgios humanos narea do Porto actual. REAL, 2001 p. 9;CARVALHO, 1996..

    , ,

    Figura 2.1: Esquema espacial da Povoao Castreja.

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    Segundo Manuel Real, ao contrrio do que se supunha, acredita-seagora que as primeiras construes tero sido levantadas no no morroda Cividade, ponto mais alto da zona, mas sim no da Penaventosa, junto S3131. REAL, 2001. p. 9. . E embora tenha havido outras zonas de ocupao humana na regioenvolvente (zonas martimas, fluviais e planaltos propcios agricultura,

    como a zona das Antas, Campanh, Foz, e Gaia), este o local escolhidopara a fixao populacional. Quais foram as razes por trs desta escolha?

    A proximidade s zonas agrcolas e de explorao dos recursos natu-rais no seria certamente um factor exclusivo da Penaventosa, mas sabe-mos que, em relao Cividade, este morro apresenta melhores defesasnaturais, devido ao relevo mais acidentado e a menores pontos de acessi-bilidade. O morro da Penaventosa tem tambm um controle maior sobreos cursos de gua da zona, visto estar rodeado por trs como j vimos.Todavia, na nossa opinio, o seu destaque em relao aos demais morrosenvolventes assenta no facto de dominar um dos pontos mais estreitosdo rio Douro e, por isso, um dos mais acessveis de atravessamento3232. OSRIO, 1994. . E,

    embora o morro do lado de Gaia tambm partilhe deste factor, no vamosaqui deter-nos na discusso acerca de qual das margens ter sido a primeiraa povoar3333. Na poca castreja, em que a organiza-

    o territorial era ainda dbil e as popula-es se dispersavam em aldeamentos loca-

    lizados em pontos altos e a pouco distanciaentre si, era natural haver castros em am-

    bas as margens, perto de linhas de guas.TAVARES, REAL,1987. pp. 389391.

    . Interessa-nos sobretudo perceber que factores contriburamaqui para o desenvolvimento do burgo medieval do Porto, e parece-nosque em relao a Gaia, este destaca-se pela existncia do rio de Vila e pelaexposio solar mais favorvel, voltada a sul.

    Este morro, embora seja escarpado, forma nas cotas mais altas umaplataforma convidativa fixao de construes,permitindo um equilbrioentre a defesa,para a qual a altura importante,e a vivncia do quotidiano,que procura um fcil acesso restante envolvente, nomeadamente rios ecampos.

    O principal acesso ao morro da Penaventosa seria,para quem vinha deNorte, pelo morro da Cividade, que apresentava uma ligao estvel como primeiro. Para quem vinha de Sul, o acesso principal seria pelo vale dorio da Vila que apresentava uma cadncia menos acidentada e, consequen-temente, melhores condies de circulao e acesso.

    Por todos os factores apontados, podemos ver que a Penaventosa se-ria o exemplo perfeito do tipo de fortificao da cultura castreja. Esteperodo, decorrente de movimentos migratrios, desenvolveu-se durantea Idade do Bronze (2.000 a 800 a. C.), e era caracterizado pelos castros,povoados fortificados com muralhas localizados no alto dos montes3434. FERRO, 1989. p. 117. . Doponto de vista espacial, estes povoados assumem normalmente uma planta

    circular ou oval e os seus edifcios so construdos em pedra3535. A utilizao deste material perdu-rvel em detrimento de materiais pere-cveis, como at a era costume, marca

    uma intencionalidade de fixao a longoprazo, em flagrante contraste com o ca-rcter precrio da instalao humanaem perodos anteriores. SILVA, 1986.

    . O burgosurgiu assim num lugar estratgico face necessidade de defender a po-

    voao e ser ao mesmo tempo um lugar de passagem. Como refere Or-lando Ribeiro em relao a diversas cidades do Noroeste, tambm aqui aproximidade de um rio refora a proteco e assegura ao longo do vale aconvergncia dos caminhos36

    36. RIBEIRO, 1989.

    .A esta funo estratgica desde cedo se juntou a vocao comercial,

    pois sabemos que a povoao estaria includa nas antigas redes comerciaisdos fencios e dos cartagineses, devendo ter consolidado esta posio comas instalaes porturias construdas pelos romanos, s quais se juntariamas vias terrestres, possibilitando a interaco econmica com o territrio

    envolvente. Actividades como a agricultura, a pastorcia e a metalurgia

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    ocupavam tambm um lugar importante na economia destas comunida-des, juntamente com actividades transformadoras, como a ourivesaria, atecelagem, a olaria e a moagem37 37. RAMOS, 2000. pp. 7077.

    Devido sua grande longevidade, a chamada cultura castrejadesenvolveu-se em trs fases, nas quais sofreu vrias influncias externas

    de povos mais evoludos tecnologicamente.Na primeira fase de ocupao, durante o I Milnio a.C., o povoamento

    ocuparia a parte mais alta do morro, e deveria resumir-se a um ncleomuito pequeno38 38. CARVALHO, 1996.. A segunda fase, situada entre 500 e o incio do quadroda romanizao (que se poder localizar a partir da campanha de Dcimo

    Jnio Bruto, por volta de 138-136 a.C.), mostra-se como a fase da afirma-o do castro. Nesta poca o aldeamento do Morro da S ter conhecidouma notria expanso da superfcie ocupada, certamente como resultadoda existncia da sua posio geogrfica, podendo representar um caso dehierarquizao no esquema da evoluo do poder regional. A tal no terosido alheias as relaes comerciais com outros povos, como os cartagine-

    ses39 39. RAMOS, 2000. pp. 6874. A terceira fase j desenvolvida no quadro da romanizao (que,como referimos, se poder localizar entre 138-136 a.C. e o sculo I), come-ando com uma organizao de carcter proto-urbano e alterando-se coma crescente assimilao de modelos impostos pelo domnio romano. 40 40. Uma casa de planta circular encon-

    trada na Rua D. Hugo e datvel do s-culo I, demonstra precisamente, atravsda existncia de um trio, caractersticamediterrnea, e de um aparelho mais s-lido, que a ltima fase da cultura castrejater sido coeva dos primeiros contactosdo povoado com a civilizao romana.RAMOS, 2000. pp. 6877.

    . para este perodo que se conhecem mais detalhes sobre a organizao dospovoados castrejos, nos quais era usual o espao organizar-se em funode um arruamento central, que se ramificaria em arruamentos transver-sais formando uma espcie de quarteires. Estes quarteires subdividem-se depois em unidades intermdias que integram diversos ncleos com-postos por quatro ou cinco casas circulares que convergem para um ptiocomum. Para alm dos edifcios habitacionais, haveria outros com funes

    pblicas, talvez de carcter religioso, poltico ou simplesmente de uso co-munitrio, como os balnerios41 41. RAMOS, 2000. p. 79..

    Estas comunidades teriam j uma organizao complexa, dirigidas porum poder central e com um elevado grau de especializao tcnica. Tersido durante esta poca que surgiram as primeiras associaes de artesos,nomeadamente daqueles que estavam ligados estaturia e construodas obras pblicas, como os balnerios ou os sistemas defensivos42 42. RAMOS, 2000. p. 80..

    Do sculo II a.C. datvel o troo mais antigo da muralha desta po-voao. Embora se tenha acreditado durante muito tempo que a primeira

    muralha do Porto teria sido construda pelos suevos, e depois, na dcada de80 do sculo XX, que a muralha era romana do sculo III d.C., descobriu-

    se recentemente, em 2009, vestgios da cerca como pertencendo ao sculoII a.C., mostrando que a primeira muralha de todas foi castreja43 43. SEQUEIRA, 2010. p. 25..

    Assim, a escolha do Morro da Penaventosa ter-se- devido ao facto deser um ponto estratgico e defensivo, mantendo contudo a relao comas zonas de aptido agrcola e explorao mineira, e o acesso a vias depenetrao e comercializao, revelando um sistema econmico de largoalcance.44 44. RAMOS, 2000. p. 69..

    2.2.2 A evoluo - Perodo Romano

    A ocupao que teve lugar em seguida foi a romana, a partir do sculo II

    a.C (138-136 a. C.). Como vimos, e muito em parte devido s excelentes lo-

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    calizaes estratgicas e naturais dos castros, era normal a sua reconversosob a influncia do modelo romano, nomeadamente em povoaes parti-cularmente vocacionadas para a explorao intensiva das potencialidadesdo solo e do subsolo e dos recursos flvio-martimos.

    Durante o perodo romano, com o reordenamento que se deu no Nor-

    deste do territrio,abriram-se importantes vias estratgicas45

    45. As estradas romanas continuaram aser utilizadas muito depois do referido pe-

    rodo. Provavelmente devido aos fortesconhecimentos e experincia deste povo,

    estasias, que inicialmente apenas liga-am os grandes centros administrativos,

    posteriormente persistiro servindo aeconomia regional e os interesses locais,j no contexto do reino portugus. E seinicialmente a importncia da ia foi

    militar e administrativa, a sua utiliza-o ter evoludo a ponto de ir a ultra-

    passar aquelas funes e persistir paraalm do domnio romano com estrada

    comercial. FERRO, 1989. pp. 117.

    , nas quais sedestaca como elemento estruturador, a estrada que, vinda do Sul, passavaem Lisboa e, transpondo o rio Douro, se dirigia a Braga, donde derivavapara Astorga. Assim, na passagem desta via pelo Douro, sobressaram osaglomerados urbanos implantados nos morros da Penaventosa e do Cas-telo. Achados romanos em ambas as margens do rio levam a acreditar queestes dois estabelecimentos se desenvolveram em comum como um nicoporto de passagem sediado nos dois lados da travessia. Em todo o caso, athoje, o maior nmero de vestgios aparecem do lado norte, no morro daS, no Barredo e na Praa da Ribeira4646. TAVARES, 1987; FERRO,

    1989. p. 117; RAMOS, 2000. p. 90., sendo provvel, segundo Manuel

    Real, que na margem sul se situasse a zona pretoriana, e do lado norte as

    grandes construes porturias e a zona monumental da cidade4747. REAL, 2001. .Sabendo que a estao desta estrada romana se localizaria no sop do

    morro da S (na foz do rio da Vila), pensa-se que o percurso desta via pelarea que hoje a rea do Porto se iniciaria nesse ponto, seguindo depoisem direco a Norte. Algumas interpretaes, baseadas em anlises to-pogrficas e na conjuno de vrios factores, como a acessibilidade e aproximidade dos locais que procurava unir, avanam mais na descrio doque seria o percurso deste troo da estrada, elegendo o vale do Rio da Vilacomo eixo mais penetrvel, atravs do leito traado pela Rua dos Merca-dores, continuando pela Bainharia e bifurcando-se sensivelmente na Cruzdo Souto4848. REAL, 2001. AFONSO, 2000. . Neste ponto definiam-se duas sadas muito utilizadas pelasromanos: para Braga, atravs da Rua dos Almadas, e outra, seguindo pelaporta de Vandoma, por Valongo at Penafiel, onde se documentam troos

    , t ,

    Figura 2.2: Esquema espacial da Povoao Romana.

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    e pontes da via romana. Outra possibilidade seria pela margem Oeste doRio da Vila, de pendor mais suave, num traado prximo do da rua dasFlores49 49. Esta hiptese foi levantada por se

    considerar que o eixo Bainharia/Rua Es-cura seria muito ngreme para os animais ecarros, e que somente o facto de este antigocaminho a Oeste do rio deVila ser deno-minado de Azinhaga e logo associado a umcaminho pedonal de serventia s hortas ecampos, ter afastado a sua possibilidadecomo troo romano. OSRIO, 1994.

    .A urbe seria ainda servida por mais duas vias secundrias, uma conhe-

    cida na documentao medieval como Via Veteris que sairia de Cale para

    noroeste, em direco Maia, e outra que seguiria um traado litoral (estaatravessaria o Douro entre Afurada e a Foz, seguindo por Ramalde), oque prova que a travessia no era somente efectuada na zona da Ribeira.Presume-se tambm que existiria uma via paralela ao curso do Douro,que passava por Campanh e fazia a ligao zona mineira de Valongo.

    Juntando-se s referidas vias terrestres as vias martima e fluvial, renem-se as condies para Cale emergir como plo altamente estratgico de umimportante contacto cruciforme, criado pelo eixo fluvial do Douro e peloitinerrio principal lanado entre Lisboa e Braga. Como ponto central eracapaz de articular uma rede econmica composta por espaos e recursosdiferentes, assim como actividades econmicas principais, ligadas explo-

    rao da terra, do rio e do mar, e dos recursos do subsolo50 50. RAMOS, 2000, pp. 87-92..Devido a esta situao estratgica, possvel que o Morro da S tenha

    desempenhado, desde incios do sculo I. d.C, as funes de capital decivitas do territrio dos calaicos em que se inseria. Durante esse perodoter levado a cabo obras de renovao necessrias transformao de umpovoado pr-romano em povoado imperial. Assim, foi palco de obras de

    grande investimento, que utilizaram mo de obra especializada e quadrostcnicos superiores para fazer obras desconhecidas dos indgenas (como aesquadria e corte da pedra, preparao da argamassa ou reboco de cal, amoldagem e cozedura da cermica de construo)51

    51. Tal significa que se transformou emcapital de um asto territrio limitadoa norte pelos rios Ave e Vizela, e a leste,pelo Vale do Rio Sousa e Baixo Tmega. importante aqui isar que a localiza-o privilegiada do Morro da S, quer doponto de ista defensivo, quer como pontode encontro de ias fluviais e terrestres,ter pesado nesta transferncia. TAVA-RES, 1987, p. 391. RAMOS, 2000, pp.

    8788.

    .Um grande desenvolvimento urbanstico deve ter ocorrido a partir de

    fins do sc. III, no qual as caractersticas topogrficas da herana pr ro-mana tero determinando uma organizao territorial bastante peculiar, qual se juntam reorganizaes urbansticas e arquitectnicas a nvel de no-

    vos traados de ruas e casas de planta rectangular. Deste desenvolvimentoso exemplo os vestgios de muralha do sc. III, estrutura que mostravasimultaneamente a necessidade de organizao do espao urbano e a ne-cessidade de defesa derivada da crise imperial desse sculo52

    52. CARVALHO, 1996.

    .A partir do sc. IV ter-se- dado a expanso urbana desta povoao,

    nomeadamente para o morro da Cividade e para a zona da Ribeira53

    53. A implantao romana na actual reacitadina parece tambm ter incidido so-bre outros locais alm dos envolventes daPenaventosa, como o atestam alguns to-pnimos de raiz latina como Germalde eCampanh. CARVALHO, 1996. RA-

    MOS, 2000, pp. 8788.

    . Em-bora a zona ribeirinha provavelmente fosse j ocupada como cais de pas-sagem fluvial onde estaria sediada a estao viria citada no Itinerrio de

    Antonino, a sua ocupao seria reduzida inicialmente, desenvolvendo-sesobretudo com o decorrer do perodo romano. Aqui especialmente im-portante, como j vimos, a sua situao como incio da via romana do ladonorte do rio. A sua situao no sop do morro da Penaventosa, junto ao rioDouro e ao rio da Vila, oferecia condies naturais que podiam responders razes funcionais de escolha: localizao sobre a margem permitindo

    varadouro; condies topogrficas propcias ao lanamento de um per-curso capaz de vencer sem grandes dificuldades o desnvel entre a margemdo Douro encaixado e as superfcies onde se inseriu, tendo em conta ossistemas de transporte e de traco. O vale da Vila era o nico que facili-taria o segundo aspecto, j que no respeitante ao primeiro, qualquer outro

    esteiro teria sem dvida as mesmas possibilidades, como j vimos54

    54. Os sistemas de traco animal estavamlonge de oferecer as possibilidades que ie-ram a conhecer-se aquando a intervenoda coalheira. O problema dos declives,portanto, contava muito; a capacidadede transporte dos carros era funo do seuprprio peso e da capacidade de traco dosanimais, bois ou cavalos. OLIVEIRA,1973. p. 218.

    .

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    Retomando a opinio de Manuel Real, que situa na margem norte asgrandes construes porturias e a zona monumental da cidade5555. REAL, 2001. , vemos

    que tambm a riqueza dos materiais recolhidos na Rua de D. Hugo mostrao carcter urbano do Morro da Penaventosa nesta poca. Mas a existn-cia de um templo junto S, confirmada pelo aparecimento de diversos

    elementos religiosos como uma ara votiva com dedicatria aos Lares ma-rinhos, assim como a descoberta de materiais nobres, como o mrmore(normalmente aplicado nos prticos dos fruns ou de templos) na zona,que demonstra o seu carcter monumental5656. RAMOS, 2000, p. 89;

    TAVARES, 1987, p. 392..

    Do mesmo modo, tambm as escavaes arqueolgicas realizadas naCasa do Infante vm mostrar a importncia da zona ribeirinha nesta poca,atravs de vestgios de um pavimento em mosaico policromtico do sculoIV. Estes vestgios encontrados na Casa do infante mostram um horizontecultural paralelo ao do Morro da S, apoiando a sua correspondncia cro-nolgica e cultural. A probabilidade de terem existido na zona ribeirinhainstalaes porturias, juntamente com alojamentos e servios de fisca-

    lidade, mostrando desde logo a vocao comercial da urbe, mimetiza afuno mais tardia da Alfndega Rgia5757. RAMOS, 2000, pp. 8589. .

    Aqui importante mencionar, ainda que seja no domnio das conjun-turas, a possibilidade da existncia dos tpicos eixos virios romanos, ocardo e o decumano, na povoao da poca. Baseando-nos em con-

    versas com Manuel Real, consideramos provvel a existncia destes eixoscardeais Norte-Sul (Cardo e via principal) e Este Oeste (Decumano), que,existindo, se implantariam, respectivamente, na Rua dos Mercadores e naRua do Infante D. Henrique. O seu traado,direco, suavidade de decliveem relao restante zona, apoiam esta hiptese. E assim sendo, ser in-teressante perceber como tal ter influenciado o crescimento urbano da

    zona em que esto inseridos, nomeadamente at, e durante,a poca medi-eval. Precisamente na poca medieva comea-se a construir a Rua InfanteD. Henrique, poca denominada rua Nova, chamando a ateno para aquesto da influncia que poder ter tido de um antigo traado romano.E para o traado da Rua dos Mercadores poderamos fazer o mesmo ra-ciocnio. Pegaremos neste assunto novamente, numa fase posterior desteestudo. Tambm no domnio das hipteses, e decorrente da referida con-

    versa com Manuel Real, queramos ainda referir a hiptese da existnciade uma srie de equipamentos romanos na envolvente dos referidos eixos.Para comear, um palcio ou um equipamento de relevo, no stio ondehoje se encontra a Casa do Infante, hiptese apoiada tambm pelos mo-

    saicos policromados do sculo IV d.C. encontrados no lugar; mais a Norte,na zona entre o Mercado Ferreira Borges e a Rua do Infante, o frum dacidade, com relao directa com o cardo (Rua do Infante); a Oeste, pertoda zona da Igreja de S. Francisco, estariam as termas da Cidade. Para almdo cardo (Rua dos Mercadores), no ponto mais alto da cidade, e ondeanteriormente estaria a fortificao castreja, estaria o provvel templo ro-mano.

    interessante observar esta rea conotada com a urbe romana e ver oque l existia na poca medieval, e na poca actual. A riqueza dos materiaisrecolhidos no Morro da Penaventosa (nomeadamente na Rua de D. Hugo),contrastante com o esplio de outras estaes castrejas contemporneas

    que apresentam menor grau de romanizao, poder aduzir-se como ar-

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    gumento significativo da importncia da urbe, que se destacou sobretudopela via econmica e comercial. Tal deveu-se sobretudo localizao ge-ogrfica estratgica, funcionando como ponto de articulao entre vriosterritrios, junto ao Atlntico, o que lhe dava privilgios no acesso ao co-mrcio martimo de longa distncia, e tambm a um dos pontos de me-

    lhor navegabilidade do Douro, permitindo assim o contacto entre as duasmargens do rio, distintas tnica e administrativamente. Estava igualmenteprximo das reas de explorao dos recursos martimos, agrcolas e au-rferos. Por todas estas razes, o povoado de Cale conheceria um grandedesenvolvimento e expanso ao longo do perodo de domnio romano, quedurou mais de quatro sculos.

    2.2.3 A cidade e os poderes na Alta Idade Mdia

    Em incios do sculo V, com as invases dos povos germnicos e com a fi-xao dos Suevos na Galcia a partir de 419, d-se uma radical alterao da

    situao poltica peninsular, emergindo uma poca de instabilidade regi-onal. Todavia, surge um certo protagonismo portucalense, cada vez maispatente no decurso da Alta Idade Mdia, durante o domnio suevo e vi-sigtico e, posteriormente, no reino asturiano-leons at formao dePortugal. Segundo Jos Mattoso, durante os referidos perodos verifica-se a progressiva deteriorao do sistema administrativo imperial, que os

    germanos no destroem, mas ignoram ou paralisam58 58. RAMOS, 2000, p. 9899..Numa crnica do sculo V, da autoria do bispo flaviense Idcio, refere-

    se pela primeira vez o topnimo Portucale como povoao fortificadacom o seu porto no esturio do rio, o que leva a acreditar na sua exis-tncia como acrpole militar, e na existncia de dois plos de desenvol-

    vimento urbano em pleno sculo V, o setentrional, localizado no morroda Penaventosa e acrpole militar, e o localizado no seu sop, junto aorio Douro, mimetizando a ocupao romana anterior59 59. FERRO, 1989. p. 119.. Tambm Rui Ta-

    , t ,

    Figura 2.3: Esquema espacial da Povoao da Alta Idade Mdia.

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    vares e Manuel Real, analisando as condies defensivas deste morro e aonomstica evidenciada nos textos antigos, referem a existncia de umaacrpole militar no morro da Penaventosa durante o sculo V6060. TAVARES,REAL, 1987. p. 392. . Ou seja,posteriormente ocupao romana, muito provvel que, quando os sue-

    vos chegarem ao interposto de Calem (que se havia implantado em ambas

    margens do Douro), tero escolhido a margem direita para seu estabele-cimento militar, tendo em conta as condies defensivas e construtivasexistentes. Todavia, importante aqui reter que nesta altura ao aglome-rado de Portucale corresponderiam as duas margens do rio6161. OLIVEIRA, pp. 183216. .

    Com a progressiva pacificao do territrio, advinda da conquista pe-los visigticos do reino suevo, e com a organizao territorial e adminis-trativa introduzida e fixada pela implantao do sistema paroquial comS. Martinho de Dume, novos elementos regeneradores da vida urbanaevidenciam-se no burgo durante a 2 metade do sculo VI. Um dos pri-meiros ter sido a escolha de Portucale pelos monarcas visigodos para ins-talar uma oficina monetria de cunhagem de moeda, em meados do sculo

    VI. Mas o principal acontecimento que traduz a importncia da povoaodo Morro da S ser a transferncia para o Porto do bispado de Meinedo,ocorrida entre 572 e 589, acontecimento que se ir constituir como princi-pal estmulo para o desenvolvimento da cidade6262. Tudo indica que a promoo de Por-

    tucale a diocese teria tido lugar aindasob domnio suevo, mas a confirmao

    indubitvel data j do perodoisi-godo. RAMOS, 2000, pp. 100101.

    .Todas estas modificaes tero propiciado a construo de uma S (er-

    mida), que ter dado novo impulso ao povoamento e, embora no tenha-mos grande conhecimento da organizao urbana desta poca, vestgiosdos sc. V e VI indicam um povoamento disperso em torno de pequenasermidas e mosteiros, como o mosteiro de Cedofeita, que ter sido sagradoem 5596363. RAMOS, 2000, pp.

    98100; CARVALHO, 1996..

    Apesar da escassa informao disponvel, sabemos que a urbe do s-

    culo VII seria, como j vimos, uma estrutura bipolar. Esta seria compostapelo ncleo urbano situado no lugar do primitivo burgo castrejo, servindocomo acrpole militar e sede episcopal6464. Este seria o denominadoCastro

    Novo suevo, que possuiria um redu-zido quantitativo populacional, e quese elevou a diocese, podendo servir de

    refgio, se necessrio, aos habitantesdesprotegidos do aglomerado ribeirinho

    , e pela zona ribeirinha, situadasensivelmente na desembocadura do rio da Vila, sem qualquer fortificaoe servindo de ancoradouro a quem atravessava o curso de gua. Embora ararefaco de vestgios que se verifica na zona ribeirinha aponte para umabandono desta rea at ao sculo XIII, que parece coincidir com a reno-

    vada expresso urbana da zona alta da S, importante ter em conta que,ainda assim, deveria aqui existir uma pequena agregao de construesligadas actividade do porto, com actividades econmicas rudimentares.Mas tambm natural que, diluda a antiga presena romana, esta zona

    tenha perdido alguma fora, principalmente com a vinda dos povos ger-mnicos, e a busca por locais com melhores condies de defesa.

    O espao que a primitiva cintura murada continha no seria muitogrande, todavia, a criao da diocese e a constituio da S, bem como o

    Bispo portucalense residente e do seu pequeno cabido, contriburam parase constituir um ncleo de povoamento intramuros, tambm compostopelos servidores leigos e homens interessados na proteco da muralha,proteco esta que no lhes era oferecida na povoao da zona ribeirinha,e no restante povoamento rural6565. OLIVEIRA, pp. 218. . Este reduto muralhado ter sofrido con-tudo muitas investidas ao longo dos tempos, sendo natural que a organiza-o do seu espao edificado no fosse muito sofisticada antes de conhecer

    a relativa tranquilidade que o afastamento, para Sul, da reconquista lhe

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    trouxe, e ainda mais tarde, com a conquista por inteiro.Entre os dois plos em formao, ligados pelo troo inicial da via

    romana, ligao justificada por razes topogrficas e funcionais, ten-dem a acentuar-se relaes de complementaridade urbana - contextomuito comum formao das nossas cidades de origem espontnea -

    desenvolvendo-se o burgo baixo numa perspectiva porturia e comerciale assum