a construcao sentidos

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MARLIA DA PIEDADE MARINHO SILVA

A CONSTRUO DE SENTIDOS NA ESCRITA DO SUJEITO SURDO

MESTRADO EM EDUCAO NA REA DE PSICOLOGIA EDUCACIONAL

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS 1999

MARLIA DA PIEDADE MARINHO SILVA

A CONSTRUO DE SENTIDO NA ESCRITA DO SUJEITO SURDO

Dissertao apresentada como exigncia parcial para a obteno do Ttulo de MESTRE em EDUCAO, na rea de Concentrao: Psicologia Educacional, Comisso Julgadora da Universidade Estadual de Campinas, sob a orientao da Prof. Dr. Luci Banks Leite.

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS 1999

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE EDUCAO

DISSERTAO DE MESTRADO

A CONSTRUO DE SENTIDO NA ESCRITA DO SUJEITO SURDO

AUTORA: MARLIA DA PIEDADE MARINHO SILVA ORIENTADORA: Prof. Dr. LUCI BANKS LEITEESTE EXEMPLAR FINAL CORRESPONDE DA

REDAO

DISSERTAO

DEFENDIDA POR MARLIA DA PIEDADE MARINHO SILVA E APROVADA PELA COMISSO JULGADORA EM ___/___/____. ASSINATURA:________________________

COMISSO JULGADORA: ________________________________________ ________________________________________ ________________________________________

1999

Aquele que aprende a enunciao de outrem no um ser mudo, privado da palavra, mas ao contrrio um ser cheio de palavras interiores. Toda a sua atividade mental (...) mediatizada para ele pelo discurso interior e por a que se opera a juno com o discurso apreendido do exterior. A palavra vai palavra. Mikhail Bakhtin

Para o Majela, pelo amor, carinho, pacincia e colaborao em todos os momentos deste estudo. Para Daniel e Carolina, as criaes mais belas de nossas vidas. Para os meus pais, in memorian Raimundo e Conceio, que, embora ausentes, sempre sero presena em minha vida.

AGRADECIMENTOS Professora Dra. Luci Banks Leite, por sua orientao, paciente e respeitosa, meus sinceros agradecimentos. s professoras: Dra. Maria Ceclia Rafael de Ges, pelas sugestes valiosas durante a minha qualificao, e a Dra. Inghedore Vilhaa Koch, pelos momentos de discusses, amizade, disponibilidade, na realizao deste estudo. A vocs, o meu carinho. Aos professores do Grupo de Pesquisa Pensamento e Linguagem da Faculdade de Educao, especialmente aos Professores: Professora Dra. Ana Luza B. Smolka, Professora Dra. Regina Maria de Souza, Professor Dr. Angel Pino Sirgado e a Professora Roseli A. C. Fontana (Grupo de Pesquisa GEPEC), por todas as oportunidades de dilogo, pelo carinho e receptividade, a minha gratido. Aos professores do IEL, Instituto de Linguagem, Professora Dra. Maria Bernadette Abaurre, Professora Edwiges Morato, pelas sugestes seguras em momentos distintos deste trabalho, a vocs, o meu carinho. Aos professores da UFMG, Dr. Marco Antnio de Oliveira, e Iria Melgao, pelas interlocues iniciais desta pesquisa e pelo incentivo que impulsionou este trabalho, a vocs, a minha gratido. s minhas queridas irms: Marli, Marise, Marta, Mary e Magda, que me apoiaram na realizao desse estudo e me incentivaram sempre nas horas de frustaes. Com o carinho de vocs, a caminhada ficou menos rdua. Aos meus amigos: Adriane Giugni, Eleanor Palhano, Ivana, Luciana, Wladimir Miotello, Ivone Martins, pela solidariedade em me acolher, participar e discutir comigo questes especficas referentes a esta pesquisa. A vocs, um grande beijo. s professoras das Salas de Recurso da Rede Municipal de Ensino de Belo Horizonte, Mnica e Rosngela Elmiro, amigas e colegas de trabalho que contriburam para que os dados desta pesquisa fossem coletadas em seus recintos de trabalho. Muito obrigado pelo apoio e colaborao. Aos amigos do Grupo de Estudos sobre a Surdez da Faculdade de Educao UNICAMP, meus agradecimentos pelas sugestes apresentadas este estudo. Aos amigos e colegas de trabalho da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, que me incentivaram de uma forma, ou de outra na realizao deste estudo. Maria de Lourdes Faleiros, pela presena amiga, um grande beijo. Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel CAPES, pelo financiamento da bolsa de estudos. Aos alunos surdos que participaram com seus textos escritos, o meu agradecimento, pois sem vocs este trabalho no teria realizado.

todos que contriburam de diferentes maneiras para a finalizao deste trabalho, um beijo carinhoso.

SUMRIO

APRESENTAO

.........................................................................................10

CAPTULO 1:

A EDUCAO DOS SURDOS E QUESTES DE

LINGUAGEM .................................................................................................15 1.1 1.2 1.3 CONSIDERAES INICIAIS .............................................................16 DA ESCOLA NORMATIZADORA AOS DESAFIOS ATUAIS ........17 AS QUESTES DA LINGUAGEM E AS CONTRIBUIES DE VYGOTSKY E BAKHTIN ...................................................................21 CAPTULO 2: LNGUA(GEM) ESCRITA DO SUJEITO SURDO: O SEU USO COMO LUGAR DE CONSTRUO DOS RECURSOS LINGSTICOS ............................................................................................36 2.1 2.2 2.3 2.4 CONSIDERAES INICIAIS .............................................................37 ESCRITA E SURDEZ NO CONTEXTO ESCOLAR ..........................38 DIFICULDADES DE APRENDER, OU DIFICULDADES DE ESCREVER ...........................................................................................40 REFLEXO SOBRE COESO TEXTUAL ........................................50

2.5 2.6

A LINGSTICA DO TEXTO PRINCIPAIS MECANISMOS E COESO TEXTUAL ............................................................................51 PRINCIPAIS FORMAS DE COESO TEXTUAL TOMANDO COMO REFERENCIAL A LINGUA PORTUGUESA .....................................53

CAPTULO 3: A PESQUISA E O OBJETO DA INVESTIGAO ........63 3.1 3.2 3.3 PROPOSTA DE TRABALHO ..............................................................64 A CONSTITUIO DO CORPUS DA PESQUISA ............................65 A COLETA DE DADOS E PROCEDIMENTOS GERAIS .................67

CAPTULO 4: ANLISE DOS DADOS 4.1 4.2 4.3

.....................................................70

CONSIDERAES INICIAIS .............................................................71 ANLISE DAS REDAES ...............................................................71 CONSIDERAES GERAIS EM RELAO AO CORPUS DA PESQUISA ............................................................................................88

CONSIDERAES FINAIS

........................................................................91

REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

.........................................................98

RESUMO

Este trabalho discute a importncia da lingua(gem) escrita na educao do sujeito surdo no contexto escolar, focalizando os aspectos coesivos nas produes escritas desses sujeitos e apontando a relao de sentidos contida nos enunciados de suas produes textuais. Partindose de uma reflexo sobre a educao dos surdos, discute-se a questo da lingua(gem) baseando-se nas proposies de Vygotsky e Bakhtin, assumindo-se que somente por meio da lingua(gem) e da relao social possvel a significao do mundo pelo sujeito. Nesse sentido, a lingua(gem) tem um papel fundamental na construo da subjetividade desses sujeitos e no seu processo de construo de conhecimentos. Tomando a escrita como objeto de estudo, so analisadas oito redaes de surdos em nvel de escolaridade de 5a 8a srie, entre a faixa etria de 16 21 anos com o objetivo de observar os aspectos coesivos e o sentido da produo textual, conforme a teoria de Koch. Com base nas anlises, percebe-se a interferncia do portugus nas redaes e a condio bilinge do surdo, intervindo de modo significativo na instncia interativa monolinge atravs dos textos escritos. Neste estudo, h a preocupao de chamar a ateno dos professores e dos profissionais que trabalham com surdos para a necessidade de reavaliar e tecer consideraes a respeito da escrita, de modo a re-significar o trabalho pedaggico realizado nas instituies escolares. Finalmente aponta, sumariamente, as hipteses levantadas em relao ao texto escrito, assumindo que o surdo aprendiz de portugus no apresenta as mesmas caractersticas de escrita de um ouvinte e que a aprendizagem da lingua(gem) escrita faz-se necessria de modo a possibilitar a esses sujeitos a ampliao das condies de indivduos singulares e sujeitos plurais no convvio social.

ABSTRACT

This research discusses the importance of the written language in the education of the deaf person in the school context, focusing mainly on the cohesive aspects of their writings and pointing out to the relation of meaning contained in the statements of their textual production. Starting from a reflection about the deafs education, the language question is discussed based on Vygotsky and Bakhtin proposals, assuming that only through language in social relationship this subject matter can be inserted in the world. In this way, language has a fundamental role in the construction of subjectivity of these people and in their process of knowledge construction. Taking writing as an object of study, it is analysed eight compositions of deaf person of 5th to 8th series of fundamental education, aged 16 to 21 years old. The aim of the research is to launch hypothesis and to observe the cohesive aspects of the composition and the sense of textual production according to Kochs theory. Based on the analysis made, it is noticed the Portuguese interference in composition and the bilingual condition of deaf person intervening in a significant way in the monolingual interative aspects through written texts. This research calls the attention of teachers and of the professionals who work with deaf person to the necessity of reappraisal and to formulate considerations referring to the writing, so that the pedagogical work made in the school institutions is improved. Finally, this research points out to hypothesis formulated in relation to written texts, assuming that the deaf apprentice of Portuguese language doesnt express the same characteristics of writing as the one who has no deafness problem, and that the writing language achievement is needed to make possible to them the enlargement of their condition of singular individuals and plural subjects in the social life.

APRESENTAO

Assim como os instrumentos de trabalho mudam historicamente, os instrumentos do pensamento tambm se transformam historicamente. E assim como novos instrumentos de trabalho do origem a novas estruturas sociais, novos instrumentos do pensamento do origem a novas estruturas mentais. L. S. Vygotsky

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APRESENTAO

A convivncia e o trabalho com alunos surdos, desde a sua fase inicial de escolarizao at a vida adulta, levou-me a uma srie de questionamentos e reflexes sobre a linguagem escrita do sujeito surdo. Em minha experincia cotidiana de trabalho com professores de surdos, tenho percebido a grande dificuldade dos mesmos, em lidar com as questes ligadas linguagem escrita. Esse fato converte-se rotineiramente, em objeto de discusses nas atividades de ensino, gerando, via de regra, reflexes/aes pouco satisfatrias. Tenho observado, tomando por base o trabalho educacional com o sujeito surdo, que um dos grandes desafios ao lidar com a questo da linguagem escrita repousa ainda em uma compreenso limitada a respeito da linguagem e de sua importncia em relao ao processo corretivo de qualquer pessoa. Atualmente, tem crescido o interesse pela pesquisa na rea da surdez, principalmente entre lingustas, educadores, psiclogos, etc., visto que este tema representa um campo frtil de discusses. A discusso destacada nessa pesquisa sobre a escrita atpica dos surdos em contexto escolar, investigando qual a questo inserida na construo dos aspectos coesivos dos enunciados desses sujeitos, j que interagem no plano visuo-gestual. Como tenho observado, sua escrita no segue as mesmas construes dos ouvintes, que se apoiam na linguagem oral para produzir a escrita. Algumas singularidades do texto e j apontado por autores brasileiros, exemplo, Gesueli (1988), Fernandes (1989), Brito (1993), Ges (1994), Sousa (1998). Apesar da relevncia desses estudos h ainda muito a compreender. O modo pelo qual eles criam sentidos para os diferentes signos merece aprofundamento terico mais consistente em pesquisas que demandariam outro espao. Toma-se, como objetivo deste estudo, refletir sobre como o surdo articula a escrita textual, j que o sujeito surdo (em questo nesta pesquisa) interage no plano visuo-gestual, mas precisa integrar-se ao mundo da linguagem escrita, que possui interfaces com a oralidade.

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Este estudo tambm tem o propsito de apontar os aspectos coesivos em seus textos, observando como so construdas as relaes de sentido por intermdio da escrita desses sujeitos. Os trabalhos de Ges constituem o referencial inicial para essa pesquisa. Em sua tese de livre docncia, Ges (1994), analisando a escrita de sujeitos surdos estudantes do supletivo do 1o grau, identifica a ausncia de reflexibilidade como uma das principais caractersticas dos textos do sujeito surdo. Em sua anlise, a autora observou que os alunos no identificavam autonomamente problemas em seus textos, e mesmo quando eram alertados para o fato ou ainda auxiliados na refaco, os enunciados permaneciam apresentando, freqentemente novos impedimentos para a construo de sentidos. A autora ainda afirma que as sesses de reescritura propiciavam, ainda que rudimentarmente, aes reflexivas dos alunos, as quais apresentavam como dificuldade mais evidente o domnio parcial da lingua portuguesa. Esse trabalho, por sua vez, acarretava longos intercmbios para esclarecimentos relativos ao sentido pretendido e ao vocabulrio desconhecido, desviando a ateno do sujeito produtor do enunciado em si para outros aspectos da situao textual. A autora aponta ainda para a experincia bilinge dos alunos. Essa tarefa propiciaria uma escrita baseada em sinais e da decorria, em grande parte, das caractersticas dos textos produzidos pelos alunos surdos. Ainda nessa direo ela afirma: "muito embora as lnguas de sinais no possuam registro escrito, os alunos estariam poduzindo uma escrita com alternncia e justaposies das duas lnguas envolvidas" (Ges,1994:48), quais sejam: a lngua portuguesa e a lngua brasileira de sinais. De acordo com ela, h tambm a questo relativa s condies de interlocuo. Os alunos de sua pesquisa endereavam seus textos a um interlocutor bimodal a professora. Nesse sentido, " bastante procedente o fato de construir o texto com instncia interativa bimodal, por uma considerao de ordem dialgica em que o interlocutor tomado como igualmente bimodal" (Ges,1994: 49). Em funo da discusso destacada nessa pesquisa, sobre a produo textual de sujeitos surdos, o trabalho da autora constituiu um referencial excelente para minhas reflexes iniciais. A escolha da anlise dos aspectos coesivos na estruturao textual deve-se ao fato de reconhecer que esse fenmeno um dos fatores que garantem a inteligibilidade do texto

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escrito, e, tambm, por reconhecer a importncia da linguagem escrita para os surdos interagirem com os ouvintes, sendo a escola a instncia principal para esta aprendizagem. Partindo das observaes feitas atravs da anlises textuais, verifica-se que possvel construir o sentido do texto dos alunos surdos por meio das hipteses levantadas e a coeso um dos recursos que fazem parte desse processo, (re)construindo sentidos. Considerando a hiptese de que a lngua de sinais a lngua natural dos surdos, este estudo se basear nos seguintes princpios: se o surdo for usurio da lngua de sinais, a Libras assumir um carter mediador e de apoio na aprendizagem do portugus, pois aprender a escrever, para o surdo, aprender em tal caso, uma segunda lngua; assim sendo, a lngua de sinais pode interferir na escrita do sujeito surdo, isto , na sua estrutura superficial do texto (uso de conectivos, preposio, tempo verbal, concordncia nominal e verbal, etc), mas no na sua estrutura profunda, pois como observa Koch (1997:20), "Na atividade de produo textual, social individual, alteridade, subjetividade, cognitivo/discursivo coexistem e condicionam-se mutuamente, sendo responsveis, em seu conjunto, pela ao dos sujeitos empenhados nos jogos de atuao comunicativa ou scio - interativa". Direcionei, ento, minha pesquisa para uma anlise da produo textual do sujeito surdo, reexaminando os dados e construindo reflexes, no prprio percurso do trabalho. Com base nas anlises das redaes, espero que esta reflexo contribua para que os professores reconheam o sentido no texto de seus alunos surdos e possam refletir sobre seu prprio trabalho. O presente estudo foi organizado da seguinte maneira: - no primeiro captulo, teo consideraes sobre o aspecto normatizador da escola, no qual discuto os desafios atuais da educao dos surdos, e sobre a questo da linguagem, tomando como referencial algumas contribuies de Vigotsky e Bakhtin; no segundo captulo, procuro aprofundar as questes da linguagem escrita do sujeito surdo no cenrio atual, fazendo tambm uma reflexo sobre os aspectos coesivos, baseada na concepo terica de Koch; no terceiro captulo, apresento as consideraes metodolgicas, com as descries dos principais aspectos de estudo de campo; no quarto captulo, aponto a anlise dos dados, observando os aspectos coesivos nas redaes dos surdos, e qual o sentido que dado a produo escrita; nas consideraes finais,

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apresento as consideraes finais, com uma reflexo sobre pontos em aberto pelas anlises, enfatizando o trabalho com a segunda lngua.

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CAPTULO 1

A EDUCAO DOS SURDOS E QUESTES DE LINGUAGEM

A pedagogia que me toca a pedagogia que escuta, provoca e vive a difcil experincia da liberdade, reconhecendo que h tambm uma distoro, o autoritarismo. Minha opo por uma pedagogia livre para a liberdade, brigando contra a concepo autoritria de Estado, de sociedade Paulo Freire

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CAPTULO 1 A EDUCAO DOS SURDOS E QUESTES DE LINGUAGEM1.1 CONSIDERAES INICIAIS A pesquisa sobre a educao dos surdos vem tomando um espao cada vez maior nas reflexes tericas dos que trabalham com o sujeito surdo. Encontro-me, h anos, realizando, junto aos professores e alunos surdos da Rede Municipal de Ensino de Belo Horizonte, um trabalho de coordenao e orientao, onde a ao pedaggica se faz presente a todo momento. Durante muitos anos, estive inserida na proposta educacional dos sujeitos surdos, na qual a dicotomia entre o trabalho prtico e as questes tericas sempre me inquietou. Constantemente estive voltada para a grande dificuldade dos surdos em construir conhecimentos no interstcio entre a Lngua Portuguesa e a LIBRAS1, nas instituies escolares. Convivo h anos com os anseios dos professores em lidar com o ensino da Lngua Portuguesa em sala de aula e as dificuldade encontradas na escrita e leitura pelo surdo acabam por gerar grandes entraves no processo educativo. As idias predominantes entre pesquisadores, isto , que a educao dos surdos fracassa pela falta de significados de sua lngua, o que gera, em larga escala, um analfabetismo, e que existe uma mnima proporo de surdos que chega ao ensino superior, faltando-lhes qualificao profissional, so na verdade, questes decorrentes do engendramento das relaes de poder e conhecimento de ouvintes presentes nas instituies educacionais, por meio de prticas ouvintististas. Por ouvintismo e suas derivaes ouvintizao , ouvintistas, etc, Skliar (1999:7) explica que sugerem uma forma particular e especfica de colonizao dos ouvintes sobre os surdos. Supem representaes prticas de

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Lngua brasileira de sinais, segundo a Federao Nacional de Educao de Surdos (FENEIS) Denominao estabelecida em Assemblia, convocada pela FENEIS, em outubro de 1993, tendo sido adotada pela World Fed. Ass. of Deaf e pelo MEC.

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significaes, dispositivos pedaggicos, etc., em que os surdos so vistos como sujeitos inferiores, primitivos, incompletos. Em relao s idias citadas , e nos estudos atuais sobre a surdez, as significaes do que se denomina oralismo e ouvintismo, no se referem s mesmas questes. As prticas oralistas se fundem no discurso clnico sobre a surdez, sendo que a nfase dada oralizao, centra-se na fala, com o propsito de se normatizar as crianas surdas para, pretensamente integr-las comunidade ouvinte. Embora no sendo sinnimas, as duas prticas, o oralismo e o ouvintismo, interrelacionam-se, porque se constituem como relaes de poder e trazem no seu cerne, o interesse em legitimar e centralizar as decises que norteiam a educao dos surdos. Portanto, o processo de escolarizao dos surdos no contexto atual, reflete uma escola normatizadora, atendendo aos princpios legais de uma legislao excludente.

1.2 DA ESCOLA NORMATIZADORA AOS DESAFIOS ATUAIS Atualmente tem-se falado muito em mudanas educacionais dos surdos. Repensar esta proposta, na verdade, uma tarefa desafiadora. A Lei de Diretrizes e Bases da Educao (LDB Lei 9394/1996), em seu artigo 58, captulo V, define a Educao Especial como modalidade escolar para educandos portadores de necessidades especiais, preferencialmente na rede regular de ensino. (...) Estabelece tambm que os sistemas de ensino devero assegurar, entre outras coisas, professores especializados ou devidamente capacitados para atuar com qualquer pessoa especial em sala de aula. Admite tambm que, nos casos em que necessidades especiais do aluno impeam que se desenvolva satisfatoriamente nas classes existentes, este teria o direito de ser educado em classe ou servio especializado. (Souza, R.M. & Ges, M.C. 1999:171). Em relao Educao Especial, os discursos atuais evidenciam uma urgncia em incluir qualquer aluno, independente de sua singularidade (surdo, cego, paralisado cerebral, etc) na escola regular. O argumento mais invocado a Declarao de Salamanca junto com mais 87 outros governos. Na verdade, o que fica no esquecimento o que diz seu artigo 19, assumido pelos nossos rgos oficiais: Polticas educacionais deveriam levar em total

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considerao as diferenas e situaes individuais. A importncia da linguagem de sinais como meio de comunicao entre surdos, por exemplo, deveria ser reconhecida. O fato que os rgos governamentais legitimam o compromisso com a incluso social, mas no provm de recursos para o atendimento educacional das escolas pblicas. O caso do uso da lngua de sinais pelo surdo um exemplo significativo, pois afirma-lhes o direito de uso, mas h apenas uma recomendao para que pais, professores aprendam essa lngua. Ou seja, como cita Souza & Ges (1999:171), o surdo pode ser bilnge por conta de suas prprias experincias, mas o ensino pode ou no se fundar na concepo bilnge da pessoa surda. Outra considerao importante em relao Educao Especial, em que as pesquisadoras citadas fazem meno Declarao de Salamanca em seu artigo 19 enfatiza que:... a educao especial deveria ser escrita ela tambm em um movimento transformador, e oportuno, da educao como um todo, transformado por dentro, no seria assimilada pela educao comum, nem reduzida a um depsito de vidas improdutivas. (...) Portanto no se trata de optar pela incluso na escola regular atual, ou pela escola especial atual. Trata-se na verdade de compor alternativas institucionais que sugerem essa formula simplificadora ( ainda que cheia de controvrsias) de configurar o problema. (pg.176).

Decorre dessas afirmaes que, a incluso do aluno surdo, no deve se norteada pela igualdade em relao ao ouvinte, e sim em suas diferenas scio-histrico-culturais, s quais o ensino se ancore em fundamentos lingsticos, pedaggicos, polticos, histricos, implcitos nas novas definies e representaes sobre a surdez. Em outras palavras, que cumpra a proposta de Salamanca e que seja estabelecida uma educao bilinge para surdos, politicamente construda quanto scio lingisticamente justificada. Portanto, que se tenha um currculo em sinais e uma pedagogia centrada no ensino da escrita, no caso dos surdos brasileiros o portugus. Todavia selecionar uma lngua, traz uma srie de tenses, principalmente por se inscreverem um grupo majoritrio de ouvintes, a um outro grupo minoritrio daqueles que no ouvem. A escola ao considerar o surdo como ouvinte, numa

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lgica de igualdade lida com a pluralidade desses sujeitos de uma forma contraditria, ou seja, nega-lhe sua singularidade de indivduo surdo. Tais inconsistncias reivindicam uma reviso educacional, que trace uma nova viso curricular com base no prprio surdo. Em relao polmica discusso acerca da educao dos surdos, configura-se a questo curricular, pois as escolas encontram-se atreladas a uma ideologia oralista, conveniente aos padres dos rgos de poder. Lunardi coloca esta questo da seguinte maneira:Como poltica curricular, como macrodiscurso, o currculo tanto expressa as vises e os significados do projeto dominante quanto ajuda a refor-las, a dar-lhes legitimidade e autoridade. Como microtexto, como prtica de significao em sala de aula, o currculo tanto expressa essas vises e significados quanto contribui para formar as identidades sociais que lhes sejam convenientes. (Silva In: Lunardi, 1998: 8)

Quando se discute as questes curriculares, dentro das instituies educacionais, tanto regulares ou especiais, nunca esto presentes os atores do cenrio da discusso. O grupo de pessoas nunca se faz representar em sua plenitude. Ou seja, ele sempre constitudo por sujeitos que primam pelos "padres normais", o ouvinte, letrado, branco, sem ser convidado o surdo, o ndio, o negro. Nesse cenrio, tem-se a fabricao de um currculo que reflete uma forma hegemnica de representar esses sujeitos, nos espaos escolares e fora deles, criando tenses entre os grupos. No caso da educao dos surdos, o currculo faz parte de prticas educativas e efeito de um discurso dominante nas concepes pedaggicas dos ouvintes. Estas aes materializam-se na afirmao que o currculo um espao contestado de relaes de poder/saber, o que significa dizer que nas prticas escolares, estas questes esto literalmente veiculadas, no sobre uma oposio, mas em uma ordem necessria, como afirma Mc. Laren (1997), " no a escola que reflete a ideologia dominante, mas a constitui". Esse modo de entender a educao dos surdos por intermdio de um vis logocntrico provoca uma rede de lutas e de conflitos nos contextos social e educacional e um afastamento curricular relacionado a tcnicas e metodologias, por conta das ambigidades existentes nos textos dos surdos. O que a escola discute atualmente, por meio de seu currculo, como se

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organizam os saberes e o conhecimento dentro do espao escolar para se ter uma educao de qualidade. Mas, para que estas questes passem a ser legtimas, necessrio ir alm delas, olhando o currculo no apenas como organizao de contedos, pois a educao no politicamente opaca, nem neutra em seus valores. Com um olhar mais atento, verifica-se que o currculo uma arena de lutas e conflitos na compreenso do papel da escola em uma sociedade fragmentada do ponto de vista racial, tnico e lingsticamente. preciso, neste contexto, assumir uma perspectiva sociolingstica/antropolgica na educao dos surdos, dentro a instituio escolar, considerando a condio bilinge do sujeito surdo. Entretanto, nessa discusso, vale reconhecer que no se trata de optar pela incluso, ou no, na escola regular ou especial, do sujeito surdo, mas sim chamar a ateno para as alternativas simplificadas s quais esses sujeitos so expostos, em que as crises etnocentradas ainda se fazem presentes por meio de uma poltica lingstica monolinge. A falta de clareza de no se ter uma poltica bilinge no trabalho pedaggico, acaba por negligenciar o papel central da lingua(gem) em relao ao conhecimento e subjetividade da criana. O propsito, nessa discusso, em dar nfase reflexo sobre uma Nova Escola, ancora-se nas questes em que considera a lngua viva, e marcada por muitas vozes, ou seja, de uma classe que controla o ensino, numa relao de poder e de assujeitamento do indivduo. Sendo a lngua(gem) uma funo cognitiva privilegiada por sua natureza auto-reflexiva e mediadora, que se constitui na relao com o mundo social (Morato, 1996:31), h de se considerar como essencial na educao dos surdos a transformao de uma poltica pedaggica crtica por meio do ensino bilinge. A desconsiderao por parte da instituio escolar em relao questo lingstica desses sujeitos, provm de um "ensino" que privilegia a lngua majoritria, mediante saberes e poderes instaurados nas representaes e significaes dos ouvintes, sobre a surdez e os sujeitos surdos. Em relao s proposies de uma escola normatizadora, tendo em vista os desafios atuais, as questes refletidas podero ser reavaliadas por meio de uma poltica crtica curricular, e efeitos transformadores sero obtidos mediante uma mudana da prtica pedaggica. Nesse sentido, os estudos sobre a surdez, ou seja, sobre uma "escola nova possvel" podem ser investigados por meio de um conjunto de concepes lingsticas,

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culturais, comunitrias e de identidades que definem uma proximidade e no uma "forma" de aproximao com os discursos sobre a surdez. O problema apresentado na presente pesquisa insere-se nessa lgica de uma educao possvel, ou seja, de uma nova escola. A discusso a ser destacada problematiza a escrita do sujeito surdo no mbito educacional e como so consideradas as produes textuais desses sujeitos, tomando como base a lngua de sinais. Para fundamentar a concepo de lngua(gem) procuro, no prximo tpico, discutir os postulados vygostkianos e bakhtinianos, chamando a ateno para a compreenso daquilo que primordial: assumir uma concepo de lngua(gem) nos estudos sobre a surdez.

1.3 AS QUESTES DA LINGUAGEM E AS CONTRIBUIES DE VYGOTSKY E BAKHTIN. Recorrendo aos fundamentos da abordagem histrico-cultural, estarei, nesse momento, olhando o indivduo surdo como sujeito que se constitui nas relaes sociais, assumindo com Morato (1996:20) que o cerne da concepo da linguagem sua atividade constitutiva do sujeito. Tomando - se por base este propsito, busco contribuies em Vygotsky e Bakhtin e outros autores que se aproximam da abordagem scio-histrica, destacando pontos mais prximos dos estudos em relao ao objeto de pesquisa. Embora esses pesquisadores estejam inscritos em postos de observaes diferentes, no so antagnicos e suas contribuies vm ao encontro desse estudo. Vygotsky deteve-se em estudar a natureza da gnese e processos sociais humanos; Bakhtin, em depurar e propor uma teoria de linguagem vinculada constituio da subjetividade humana. Vygotsky desenvolveu seus trabalhos no perodo de 1924 a 1934, tendo, inicialmente, o propsito de elaborar uma psicologia baseada nas idias marxistas. O mestre bielorusso comea seus trabalhos em psicologia, opondo-se s duas correntes da poca: o behaviorismo, que no considera os aspectos da conscincia humana, mas apenas as funes mentais

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inferiores, e o idealismo, que tem como metodologia a introspeo e limitava-se a descrever os fenmenos psquicos sem explic-los. Esse autor passa, ento, a pesquisar a relao entre pensamento, linguagem e suas origens. A concepo histrico cultural, discutindo questes referentes aos trabalhos de Vygotsky, reserva linguagem um papel constitutivo, central, presente no desenvolvimento psicolgico. Da, a importncia desse referencial para este trabalho. Segundo Vygotsky (1989), por meio da linguagem que o sujeito ingressa em uma sociedade, internaliza conhecimento e modos de ao, organiza e estrutura seu pensamento. Nesse sentido, o signo considerado como fruto da necessidade de organizao social, e transforma-se juntamente com a evoluo da sociedade. Bakhtin, por sua vez, prope uma teoria acerca da linguagem vinculada constituio da subjetividade e da conscincia humana, opondo-se a correntes vigentes naquela poca: o objetivismo abstrato e o subjetivismo idealista. Seus estudos trazem tona uma clara noo da relao dialtica entre ideologia e psiquismo, mostrando, assim, que o indivduo formado a partir do contexto ideolgico ao qual ele est exposto. O autor aborda, tambm, o papel do meio social e da lngua, e a importncia das interaes verbais, postulando a dialogia como ncleo que as fundamenta e enfatizando sua importncia na construo da conscincia humana. Ao se referir dialogia, ele afirma que no basta a presena fsica de dois seres humanos para que a palavra ganhe vida no dilogo; indispensvel que o locutor e o ouvinte pertenam mesma comunidade lingstica, a uma sociedade organizada, sendo indispensvel que estes dois indivduos estejam integrados na unicidade da situao social, ou seja, que tenham uma relao de pessoa para pessoa, bem determinada, definida. Bakhtin (1992). Conforme afirma Souza & Ges (1997:22), o terreno lingstico que o autor nos fala, a partilha de um sistema lingstico comum. Segundo as autoras citadas, isto no significa que a lngua se caracterize como um cdigo transparente, mas que ela oferece sistematicidades, a partir das quais o trabalho dos sujeitos tece sentidos sempre nicos em cada situao dialgica. Bakhtin aborda as diferenas culturais que so refletidas nas lnguas e as conseqncias que existem em relao s classes menos privilegiadas. Finalmente, defende a necessidade de estudar os aspectos lingsticos a

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partir dos dilogos em seu contexto social, pois de acordo com sua proposta terica, apenas atravs desse contexto social que as palavras ganham sentido. Os dois estudiosos, no incio de seus trabalhos, rompem com o objetivismo e subjetivismo da poca, sendo que Vygotsky o faz, atravs da psicologia histrico-cultural, e Bakhtin na rea dos estudos da filosofia da linguagem. Ambos tecem suas teorizaes com os fios do materialismo dialtico, compreendendo o homem como ser histrico conferindo linguagem um lugar central na constituio da conscincia. Bakhtin, por sua vez, ao criticar o subjetivismo idealista aponta que o objeto de estudo desta concepo o ato da fala, visto como algo que produzido individualmente pelo falante, segundo as leis de uma psicologia individualista. O pesquisador opta por um caminho diferente; ao invs de privilegiar a langue como fez Sassure2, seus elementos possveis de formao e repetio, tomou como objeto de anlise a heterogeneidade da parole, a complexidade dos mltiplos modos de ocorrncia da linguagem que engendram sentidos novos e no repetveis (Bakhtin, 1992: 35). Entretanto, quando o autor fala de mltiplos modos de ocorrncia que acontecem atravs da linguagem (Bakhtin, 1992:36), ele situa este fenmeno na interao verbal, mas que a mesma necessita da presena de um locutor, de um interlocutor, em uma situao social dada, em contexto historicamente determinado, e um objeto de discurso. Por isso que no basta que dois indivduos se encontrem para que a palavra ou o signo se constitua. necessrio que pertenam a uma mesma comunidade lingstica, a um grupo de pessoas com alguma organizao social, ou que formem uma unidade social. Para o pesquisador russo, a palavra, como fenmeno social, liga-se s condies e s formas de comunicao social, condicionada pela organizao social na qual a interao acontece, trazendo marcas sociais, e se desdobrando entre seus usurios, tornando-se plurivalente e aberta para evoluir.

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O termo social utilizado por Sassure se refere apenas a condio de a lingua ser compartilhada por toda a comunidade lingstica, no tendo o indivduo condies de modific-la.

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As diferentes sociedades criam especificidades lingsticas de acordo com suas necessidades. Por exemplo, de acordo com Goldfeld (1997:49), os ndios que vivem na selva nomeiam a cor verde de diversos nomes, dependendo da tonalidade; os esquims possuem diversas palavras para denominar a cor branca da gua, em estado slido. A realidade scio histrica e a lngua constituem num mesmo momento dialtico a conscincia individual e social de uma comunidade. Por exemplo, crianas de classe mdia ou baixa percebem com muita naturalidade o uso da comunicao atravs de um aparelho de TV, como se esse fosse parte de um lazer indispensvel em suas vidas. A forma de comunicar e o valor que atribudo mensagem so determinados pelo momento scio - histrico em que esto inseridos. Para Bakhtin (1992), os valores sociais, a ideologia3, as caractersticas singulares dos sujeitos no se separam, e os signos agem como mediadores desta relao, uma vez que no a realidade material que internalizada pelo homem, e sim o material semitico. Ao afirmar que sem o signo no h conscincia4, Bakhtin, revela a importncia dada linguagem e semitica na constituio da subjetividade. Por isso, importa desnudar a relao da linguagem na comunicao verbal concreta e socialmente determinada. Ao atribuir tal importncia linguagem e ao signo lingstico, o autor afirma:

Os signos s emergem, decididamente, do processo de interao entre uma conscincia individual e outra. E a prpria conscincia individual est repleta de signos. A conscincia s se torna conscincia quando se impregna de contedo ideolgico (semitico) e consequentemente, somente no processo de interao verbal. (...) todo fenmeno que funciona como sujeito ideolgico tem uma encarnao material, seja com o som, massa fsica, cor, movimentos do corpo ou outra coisa qualquer (Bakhtin,1992:34)

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Espao de contradio e no de ocultamento. Um produto ideolgico faz parte de uma realidade, portanto a ideologia uma forma de representao do real (B.M. Volochinov, 1992: 31) 4 Para Bakhtin a conscincia individual nada pode explicar, a nica definio possvel de ordem sociolgica. A conscincia, assim no deriva diretamente da natureza como vista pelo materialismo mecanicista e pela psicologia objetivista, nem a ideologia deriva da conscincia como quer o idealismo e a psicologia subjetivista (B.M. Volochinov,1995:35)

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Bakhtin referencia um sujeito ativo configurado por uma ideologia e, como filsofo da linguagem, procura desvelar e problematizar a linguagem, em situao de comunicao verbal e social, concreta. Portanto, seu sujeito participante, atuante, faz parte de uma cadeia viva de enunciados, da qual integrante e membro, ou seja, sujeito da ao do outro. O sujeito bakhtiniano faz parte de uma determinada classe social, que encontra, no uso da lngua, lugar responsivo integrado numa determinada coletividade organizada, possuindo, assim, espao para se compor como agente de transformao. Sobre esse sujeito, Smolka & Ges (1993) e Pino (1990) realizam a seguinte reflexo citada por Costa Val (1996:3): o indivduo se torna sujeito configurado pelo outro, pela palavra, pelo discurso. Essa compreenso no implica a negao da individualidade, nem da criatividade subjetiva, ao contrrio, reafirma o indivduo em suas condies histricas, culturais e ideolgicas. S a localizao histrica e social torna um homem real e determina o contedo de sua criao pessoal e cultural (Bakhtin, 1992:31). Desta noo de indivduo constitudo historicamente, Costa Val afirma:A noo de uma conscincia individual, configurada na e pela relao com o outro, povoada por muitas e diferentes vozes ou palavras dos outros, abre para o sujeito a possibilidade de uma constituio muito singular, como lugar nico de articulao de tais vozes. O sujeito povoado de outras vozes emite sua prpria voz no coro polifnico: conceito, embora harmnico, caracterizado tanto por movimentos sincrnicos, quanto por vozes distintivas, conflitivas e dissonantes. (Costa Val, 1984:3)

Para Bakhtin (1992:108), os sujeitos no adquirem sua lngua materna; nela, e por meio dela, que ocorre o primeiro despertar da conscincia; e o processo pelo qual a criana assimila sua lngua materna um processo de integrao progressiva da criana na comunicao verbal. medida que esta integrao se realiza sua conscincia formada e adquire contedo.

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Citando Geraldi (1998),... os recursos lingsticos disponveis pelo trabalho social e histrico de produo de discursos constituem-se em recursos para a produo de discursos contemporneos, mas por esta produo estes recursos no passam inclumes, como se estivessem sendo usados. O trabalho contemporneo, por seu turno, se faz histria e como histria reinveste os signos lingsticos de novos significados, cria novos signos lingsticos para novas realidades sociais, rearticula as formas gramaticais de estruturao de enunciados e produz novos gneros de discursos, j que a complexidade destes corresponde o das relaes sociais. ( Geraldi, 1998:51)

Voltemos s seguintes questes: os processos interativos produzem novos recursos e elementos lingsticos no contexto social. Por exemplo: a) atravs de mudanas de significados e expresses; nesta perspectiva, os significados de nossas falas somente se definem no contexto da situao em que elas ocorrem, porque seus temas no so determinados somente pelas formas lingsticas, mas tambm pelos elementos no verbais presentes nas interaes, em que os papis de nossos interlocutores5, o assunto, o lugar de conversao, os outros sujeitos envolvidos, etc, esto em jogo. No entanto, a radicalidade desta posio poderia levar a uma defesa de pontos que, muitas vezes, no pode ser aceita. Parece-me compreensvel que o significado nico dos nossos enunciados dependem sempre das situaes, mas os recursos lingsticos que usamos nestes contextos trazem, em seu cerne, a histria de seus usos anteriores, por isso, no fixa, nem permite uma mobilidade estvel. Observa-se, assim, que as lnguas so quase - estruturas, e seus elementos no tm relaes biunvocas, correspondendo a cada recurso um significado, sendo que as expresses lingsticas, impregnadas de mudanas, variam muito seus significados. Em razo disso, que a comunicao possvel, pois a lngua fornece recursos maleveis, cuja compreenso no se d pelo seu reconhecimento, mas pela articulao de seus significados a cada diferente situao. Um exemplo interessante dessa situao pode ser5

Uma pessoa muito prxima de ns, um amigo, um familiar, apenas um mero olhar ou uma s palavra podem expressar inmeros significados.

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encontrado nas grias de jovens adolescentes. Barzotto (1997) analisa a incorporao, pelas propagandas da revista Realidade [no perodo de 1966 a 1976], da linguagem da Jovem Guarda, em que as palavras morou?, brasa, etc, tm significados totalmente diferentes daqueles encontrados nos dicionrios. Atualmente, o sujeito que utiliza esses termos pertencentes Jovem Guarda pode ser identificado como um indivduo que pertenceu a esta gerao. b) na criao de novos signos lingsticos; interessante observar nesta rea alguns exemplos relacionados ao lxico na linguagem computacional: acessar, deletar, printar, justificar; estes itens lexicais so novos na lingua portuguesa, mas j adquiriram seu lugar garantido entre os usurios dos computadores. c) na elaborao de novos gneros; Na verdade, os gneros do discurso so relativamente estveis e apresentam determinadas formas composicionais. Em uma carta, por exemplo, espera-se uma saudao de despedida, pois o sujeito que domina este tipo de gnero reconhece os elementos que constituem essa forma composicional. Ao longo da histria, as atividades vo se tornando mais complexas e os gneros discursivos saem selecionados e reestruturados em novos tipos. A linguagem da propaganda um exemplo tpico, pois exige uma dinamicidade, com elementos enfatizadores para uma leitura rpida, mas, ao mesmo tempo, produtiva. Neste sentido, a propaganda bem sucedida aquela que fixa no leitor o nome do produto da propaganda.Todas as esferas da atividade humana, por mais variadas que sejam, esto relacionadas com a utilizao da lngua. No de surpreender que o carter e os modos dessa utilizao sejam to variados como as prprias esferas da atividade humana[...] O enunciado reflete as condies especficas e as finalidades de cada uma dessas esferas, no s por seu contedo (temtico) e por seu estilo verbal, ou seja, pela seleo operada nos recursos da lngua recursos lexicais, fraseolgicos e gramaticais- mas tambm, e sobretudo, por sua construo composicional . (Bakhtin, 1992:179)

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Esses exemplos citados do uma viso clara de como no processo interativo, ou seja, atravs do uso da linguagem, vai-se reconstruindo os recursos lingsticos que servem de base aos sujeitos falantes. O que se pretende, por intermdio dessa reflexo, mostrar como o movimento dialtico, reiterao/mudana, estabilidade/instabilidade, constante na constituio das lnguas naturais. Aceitando o ponto de vista bakhtiniano, mais uma vez reiteramos que a conscincia se constitui materialmente por meio dos signos, nos processos de interao social. Prosseguindo a reflexo proposta, possvel realizarmos um encadeamento das idias de Bakhtin sobre a linguagem e os estudos realizados por Vygotsky sobre pensamento e linguagem, reafirmando pontos essenciais, e concebendo a linguagem na constituio dos sujeitos, em suas relaes sociais. A essncia dos estudos de Vygotsky est na proposta de uma viso social da linguagem, tanto na sua funo, como em sua gnese. Embora suas idias se reportem s formas de comunicao e ao pensamento, em seus ltimos trabalhos ele aponta para a idia de que o indivduo no significa o mundo para represent-lo, mas sim, para construir sua prpria significao pela linguagem. Em seus trabalhos em psicologia, ele vincula a linguagem formao das funes psicolgicas superiores, abordando-a nesse contexto como instrumento no processo de trabalho ou, atividade consciente o que difere o homem dos demais animais. Baseado nas idias marxistas e hegelianas sobre o uso dos instrumentos, ele estende a noo de mediao instrumental aplicando-a ferramentas psicolgicas (signos). Para ele, os instrumentos so dirigidos ao mundo externo, conduzindo o homem para o objeto de sua atividade, transformando a natureza, enquanto signo (ferramenta psicolgica), alm de construir relao do homem com o outro, influi psicologicamente na conduta do prprio sujeito, alterando-a e configurando-a como meio de atividade interna dirigida. O mestre bielorusso aponta os signos como um fenmeno capaz de alterar por completo o fluxo e a organizao das funes psicolgicas superiores, considerando que a participao da linguagem em uma funo psicolgica que causa uma transformao fundamental nessa funo. Sendo assim, os signos no so considerados como meramente meios auxiliares que facilitam uma funo psicolgica superior existente, deixando-a

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qualitativamente inalterada, mas, ao contrrio, os signos so capazes de transformar o funcionamento mental. Para o autor o desenvolvimento das funes mentais superiores no visto como algo linear, que sofre incrementos quantitativos, mas como processo que sofre transformaes qualitativamente associadas s mudanas nos signos (Lacerda, 1996:65) Assim, as formas de mediao permitem ao ser humano realizar operaes mais complexas sobre os objetos. Vygotsky (1993) v o signo como um instrumento originalmente usado com fins sociais, um instrumento para influir sobre os demais, e que s mais tarde se converte em instrumento para influir sobre si mesmo. Com base nesses pressupostos desse contexto, Vygotsky aponta a linguagem como a ferramenta psicolgica mais importante do desenvolvimento psicolgico; a mesma tem como funo principal a comunicao social e o contato entre os sujeitos, tanto adultos como crianas, enfim, a influncia entre indivduos que esto em uma mesma esfera social. Sendo assim, entende-se que os instrumentos de mediao se formam de acordo com as demandas da comunicao. No entanto, as afirmaes de Vygotsky sobre a mediao semitica passaram por vrias transformaes.

As formulaes iniciais remetem s categorias do ato instrumental, estmulo auxiliar, parcialmente emprestados da reflexologia da poca. A noo de signo-instrumento apoia os estudos de dupla estimulao, em que o sujeito exposto ao estmulo-tarefa e a um recurso semitico auxiliar (da o carter duploda estimulao). Depois, a aluso s categorias de estmulo e resposta vai sendo abandonada, em, decorrncia de mudanas na noo de mediao. O carter mediador deixa de ser interpretado em termos da participao de um estmulo a mais (ainda que fundamental) (Ges, 1994:94).

Vygotsky, em seu artigo Pensamento e Palavra, avana no sentido de perceber que, alm da instrumentalidade, a palavra sentido/significao, anunciando aspectos que hoje se configuram como discursividade. Enfatiza, tambm, o estudo da formao dos significados das palavras, considerando-a como um microcosmo. De acordo com a citao acima, o que se observa o fato de a linguagem passar de uma instncia de significao a outra na relao dos sujeitos com outras culturas. A noo de instrumento cognitivo ou comunicativo evolui

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e o autor busca explicar a formao da conscincia atravs do papel que a palavra exerce sobre ela.A conscincia est refletida na palavra como o sol numa gota dgua. A palavra um microcosmo da conscincia, relacionada conscincia como uma clula viva a um organismo, como um tomo ao cosmos. (Vygotsky, 1989:285).

Esta afirmao traz a idia de que a relao dos sujeitos consigo mesmos mediada pelo signo, no sendo portanto, direta. Alguns pesquisadores tem fundamentado suas pesquisas nas idias de Vygotsky e atribuem linguagem lugar central em seus construtos tericos. Por exemplo, Smolka (1993):... uma caracterstica fundamental (da linguagem) a reflexividade isto , a propriedade/ possibilidade que a linguagem apresenta de remeter a si mesma. Ou seja, fala-se da linguagem com e pela linguagem. Ainda, o homem fala de si, (re) conhece-se, volta-se sobre si mesmo pela linguagem, a qual pode falar de seu prprio acontecimento.[...] usamos a lngua/linguagem para configurar, estudar, analisar a prpria atividade na qual estamos imersos, da qual no podemos desprender e que circunscrevemos como objeto de estudo. Se possvel um certo distanciamento, se a reflexividade possvel, no podemos nos situar fora da linguagem. Mais do que objeto e meio/modo de abordagem, a linguagem constitutiva dos processos cognitivos e do prprio conhecimento, ima vez que a apropriao social da linguagem, condio fundamental do desenvolvimento mental. Isso permite conceber a linguagem como condio de cognio, e leva-nos a indagar sobre a linguagem como origem da conduta simblica. (Smolka, 1993:41-42).

Assim, os indivduos de uma mesma cultura partilham de um sistema de signos, ou seja, a mesma lngua, permitindo que eles interajam entre si. Essa lngua, esses signos, ou palavras, tm um significado mais ou menos comum para os membros dessa comunidade, mas teriam sentidos diferentes de pessoa para pessoa. Por exemplo, quando se fala famlia, todos tem em mente um significado razoavelmente comum. Contudo, para cada membro dessa comunidade esse mesmo significado pode suscitar diferentes fatos psicolgicos em relao

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situao familiar. Algum pode, pensando em famlia associ-la com desunio, solido, separao, brigas, segundo suas referncias em relao a suas experincias. Assim, ao significado famlia podem ser atribudos mltiplos sentidos que tornam as interlocues ricas em trocas, no completamente transparentes. Em suma, aquilo que falado, pensado pelo indivduo e generalizado pelos outros em diferentes situaes, gera a construo de conceitos, que sero resignificados nas novas experincias desses indivduos. Entretanto, esses processos geram um continuum de transformaes e

desenvolvimentos, pois os indivduos se transformam, por meio dos conhecimentos construdos, em seu modo de lidar com o mundo e com a cultura. A linguagem a chave para a compreenso do modo pelo qual ocorre o processo de construo e desenvolvimento do conhecimento por meio dos conceitos. E, na concepo de Vygotsky o estudo dos diferentes sentidos atribudos a palavra o caminho para a realizao concreta da compreenso de relao pensamento/linguagem. Importa observar conforme Morato (1996:45) a forma como Vygotsky postula a linguagem, no inserindo-a apenas como forma de comunicao, mas como uma funo reguladora do pensamento. Seu conceito de fala, refere-se linguagem em ao, a produo lingstica do falante do discurso. Ao referir-se fala, o autor a divide em trs tipos: a comunicativa , a egocntrica e a interior. Assim, em seus estudos sobre pensamento e linguagem, o autor afirma que na fase inicial da vida do beb, estas funes se encontram dissociados e tem razes genticas distintas. Pode-se afirmar atravs de uma perspectiva vygotskyana que nos momentos iniciais de vida, o beb possui apenas reaes instintivas. Quando ele chora, balbucia ou tenta apanhar objetos, sua me cria um significado para estes atos. Por exemplo: quando o beb chora, a me amamenta-o, criando assim um significado de fome para o choro do beb, o que na verdade um reflexo desencadeado pela situao fisiolgica da criana. Diante de tais elementos significativos que a me confere, a criana comea a compartilhar desses significados; assim todas as sua aes, como o choro, o balbucio, passam a ter uma funo comunicativa para a criana. Estas aes, resignificadas pela me, marcam um incio dos processos mentais possibilitando as formas de raciocnio desenvolvidas atravs da linguagem. A partir da fala do adulto e de todos os outros inseridos

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na comunidade, a criana comea a desenvolver sua prpria fala desenvolvendo a comunicao da criana, favorecendo-a no seu desenvolvimento intelectual, ajudando-a nas tarefas que no realiza sozinha. Vygotsky configura esse momento como o incio do desenvolvimento cognitivo (interpsquico), surgido na relao entre o psiquismo do adulto e da criana. A etapa seguinte do desenvolvimento, deriva da diferenciao das funes da fala exterior em fala social e fala egocntrica. Para Vygotsky, a criana comea a utilizar a fala social com fins de comunicao por volta dos dois anos de idade. Entretanto, esta mesma fala se desenvolve de duas maneiras; em relao a estruturas lingsticas utilizadas na comunicao, e em relao a sua internalizao, ou seja, a criana passa a substituir a fala do adulto na sua prpria fala. Nessa mesma direo, ao observarmos crianas, na faixa etria entre dois a seis anos, podemos encontr-las brincando e falando sozinhas. o que se costuma chamar de fala egocntrica, termo empregado primeiro por Piaget e retornado e discutido por Vygotsky. Dse o incio da funo cognitiva da linguagem em nvel intrapsquico. Nesse momento, os fenmenos, pensamento e linguagem passam a ser interdependentes, possibilitando a criana, atravs da linguagem, organizar o pensamento, ou seja, pensar consigo mesma. Sabe-se que, no incio da fala egocntrica, sua estrutura assemelha-se fala social, e seu desenvolvimento se modifica. Por exemplo: sua estrutura gramatical se torna gradativamente diferente, abreviada, j que o interlocutor da criana ela mesma, no havendo necessidade de ela explicitar todos os significados da palavra. A fala egocntrica adquire tendncias predicativas sendo que o sujeito no precisa ser mencionado. Durante esse processo em que a criana envolvida em uma atividade, ela ainda utiliza a fala relativa ao. A ao passa a ser dominada e a fala refere-se quilo que j foi feito. Quando a fala se desenvolve, ela passa a ocupar o meio da atividade at anteceder a ela, surgindo, assim, a fala como funo planejadora, sendo a ao dirigida pela fala. A criana ento passa a planejar conscientemente, atravs da fala, suas prximas aes. Com o desenvolvimento da criana, ela passa a utilizar menos a fala egocntrica, pois est interiorizando-se; com a evoluo da fala interior, a criana organiza suas atividades, planejado-as internamente, utilizando o pensamento verbal.

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Por meio de suas prprias leis gramaticais, sua sintaxe, a fala interior gera uma cadeia de significados, e o aspecto fontico adquire um aspecto secundrio, sem importncia. A aquisio da linguagem dentro da abordagem vygotskiana, segue a orientao do exterior para o interior, passando de social, a comunicativa, fala egocntrica at se tornar a principal forma de se pensar por meio da fala, ou seja, por intermdio do pensamento lingstico. Nessa perspectiva, a gnese da linguagem vista como um processo gradual de construo atravs do qual a criana vai pouco a pouco assumindo papis dialgicos desempenhados pelo adulto e, portanto, convertendo o discurso do outro em discurso prprio. Na abordagem scio cultural em psicologia, seus defensores conferem linguagem no apenas uma funo comunicativa, mas tambm organizadora e planejadora do pensamento. A aquisio da linguagem interfere e muda qualitativamente o desenvolvimento cognitivo da criana. As funes mentais inferiores, tais como a percepo natural, a ateno involuntria, a memria natural, transformam-se em funes mediadas. Assim, a cognio passa a ser determinada pela linguagem. Mas especificamente no que diz respeito criana surda, Vygotsky, em seus textos intitulados "Fundamentos da Defectologia" (1989) aponta mudanas na sua maneira de pensar o desenvolvimento da criana, que vista, em conseqncia do seu contato com esses sujeitos, em seu processo de aprendizagem. Em seu texto inicial, "Princpios da educao social para crianas surdas" (1925), ele se apresenta favorvel oralizao. Neste momento dos seus construtos tericos, ao se referir educao dos surdos, ele afirma que a mesma deve se iniciar desde a pr - escola, pois isto seria uma forma de estmulo para o surdo incorporar-se linguagem oral do ouvinte. Em torno de 1931, o pesquisador publicou o texto "O Coletivo como fator no desenvolvimento da criana anormal", e faz uma reviso da relao entre os diferentes tipos de linguagens do surdo, destacando a mmica (como se referia Lngua de Sinais, pois ela ainda no tinha esta denominao), e prope, ainda, poliglossia, ou seja, a utilizao de mltiplos recursos para que o surdo tenha acesso linguagem. Percebe-se, desse modo, que ele j no defendia mais o mtodo oral e sim sua substituio. Assim, ele afirmava:

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A linguagem devora como parasita todos os demais aspectos da educao, se converte em objetivo prprio, por isto perde sua vitalidade, a criana surda (...) aprende a falar, a utilizar a linguagem como um meio de comunicao do pensamento (...) A luta da linguagem oral contra a mmica, apesar de todas as boas intenes dos pedagogos, como regra geral, sempre termina com a vitria da mmica, no porque precisamente a mmica, desde o ponto de vista psicolgico, seja a linguagem verdadeira do surdo, nem porque a mmica seja mais fcil, como dizem muitos pedagogos, mas sim, porque a mmica uma linguagem verdadeira cheia de riquezas e de sua importncia funcional e a pronncia oral das palavras, formadas artificialmente, est desprovida da riqueza vital s uma cpia sem vida da linguagem viva. (Vygotsky,1989:190)

Vygotsky, em dado momento de seus estudos, pensou que a educao dos surdos deveria estar voltada exclusivamente para uma educao social, ou seja, inserindo esse indivduo na sociedade, devido s experincias lingsticas dessas crianas . S mais tarde percebeu que esta insero ficaria prejudicada se no fosse dado um lugar bsico ao desenvolvimento lingstico desses sujeitos, premissa psicolgica fundamental, tendo como soluo a utilizao da Lngua de Sinais. No conjunto das anlises de Vygotsky, pode-se constatar mudanas nas convices do autor. Para ele, "os sinais passam a ser uma instncia da linguagem, j que esta pode se realizar sob forma no vocal (Ges, 1994:100). A autora ainda afirma que as anlises da atribuio do estatuto da lngua de sinais, e as proposies da decorrentes, so sistematizadas na literatura a partir da dcada de 60, e no explorada a participao dos sinais no desenvolvimento psicolgico, e as proposies educacionais permanecem orientadas ao propsito primordial de propiciar ao surdo o domnio da lngua falada (Ges, 1994:100). Vygotsky tambm aponta que no existe uma psicologia especfica para os casos de deficincia e sim particularidades que devero ser investigadas no desenvolvimento educacional desses sujeitos. Nesse aspecto, percebe-se atravs dos pressupostos vygotskyanos, que o professor que trabalha com deficincia deve estar atuando atravs da zona de desenvolvimento proximal, ou seja, interatuando em um contexto de construes, em que se possa buscar caminhos para uma educao de qualidade.

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Nesta mesma lgica, especialmente no caso das deficincias sensoriais, a partir da linguagem de sinais que o sujeito surdo ir construir significados para sua aprendizagem. Importa tambm mencionar a questo da plasticidade do funcionamento mental humano, que objetiva mostrar que as leis de desenvolvimento de crianas normais e de deficientes so as mesmas, e a presena de um dficit, no significa uma patologia. De fato, para se chegar a alguma proposta pedaggica, deve-se conhecer a lei da transformao do menos da deficincia para o mais da compensao que proporciona a chave para chegar a essa peculiaridade (Vygotsky, 1989c). Poder-se-ia dizer que esta viso aponta para a importncia da lngua de sinais, nas interaes ou nas relaes sociais para a construo da subjetividade do sujeito surdo. Com base nas discusses apresentadas, observa-se que Vygotsky e Bakhtin transitam por caminhos diferentes, mas possuem similaridades em seus pressupostos filosficos e lingsticos. Bakhtin e Vygotsky apontam a necessidade de uma nova postura pedaggica, enquanto nos orientam para uma concepo de lingua(gem) do surdo: o seu uso e o lugar de construo dos recursos lingsticos. Em relao prtica, temos a lngua de sinais, como lngua natural responsvel pela mediao e resignificando a construo do trabalho com a segunda lngua , a escrita do portugus. Muitos pesquisadores, j apontam que no se pode ser ingnuo em relao ao sujeito surdo, considerando que a lngua de sinais resolvera todos os problemas que encontramos em sala de aula (ver Souza & Ges, 1996 e Skliar, 1997). Portanto dentro dessa lgica, necessrio assumir uma dimenso scio-poltica-antropolgica na educao dos surdos, entendendo que a Libras no seja apenas tolerada, e que a fala no seja seu objetivo principal na instituio escolar. O ideal seria que houvesse uma linguagem comum entre professor e aluno.

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CAPTULO 2

LINGUA(GEM) ESCRITA DO SUJEITO SURDO: O SEU USO COMO LUGAR DE CONSTRUO DOS RECURSOS LINGSTICOS

Ento escrever modo de quem tem a palavra como isca: a palavra pescando o que no palavra. Quando essa no palavra morde a isca, alguma coisa se escreveu. Uma vez que se pescou a entrelinha, podia-se com alvio jogar a palavra fora. Mas a cessa a analogia: a no palavra, ao morder a isca, incorporou. O que se salva ento ler distraidamente. Clarisce Lispector

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CAPTULO 2LINGUA(GEM) ESCRITA DO SUJEITO SURDO: O SEU USO COMO LUGAR DE CONSTRUO DOS RECURSOS LINGSTICOS

2.1 CONSIDERAES INICIAIS A presente pesquisa trata da questo da lingua(gem) escrita do sujeito surdo. So abordadas algumas questes relativas escrita desses sujeitos no contexto escolar, partindo da hiptese de que a Lngua de Sinais a lngua natural dos surdos. A partir dessa hiptese geral, apresento as questes principais que orientaram o percurso desta investigao: . os surdos que possuem uma lngua de sinais, incluindo os que so oralizados, escrevem melhor, produzindo um texto mais coeso? . qual o sentido reconstrudo na escrita desses sujeitos, levando-se em considerao o seu uso como lugar de construo dos recursos lingsticos? Tendo em vista esse propsito, acredito ser necessrio que se faa uma reflexo terica em relao escrita desses sujeitos e que aponte pesquisas atuais envolvendo a temtica. Relativamente produo textual e aos aspectos coesivos, busco contribuio no referencial terico de Koch, que importante para essa pesquisa. Koch aponta uma (re)classificao dos recursos de coerncia e coeso textual (1990), na linguagem escrita, propondo que se olhe o discurso ou o texto como linguagem em uso; o trabalho realizado por sujeitos ativos, que constrem sentidos.

Poder-se-ia, assim conceituar texto como uma manifestao verbal, constituda de elementos lingsticos selecionados e ordenados pelos falantes, durante atividade verbal, de modo a permitir aos parceiros, na interao, no apenas a depreenso de contedos semnticos, em decorrncia da ativao de processos e estratgias de ordem cognitiva, como tambm a interao (ou atuao) de acordo com prticas socioculturais. (Koch, 1990:22)

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Em relao aos aspectos citados, a opo foi destacar pontos mais prximos dos estudos em relao ao objeto de pesquisa, que constitui o referencial deste captulo.

2.2 ESCRITA E SURDEZ NO CONTEXTO ESCOLAR Tomando-se por base a noo de linguagem que se constitui na relao do homem com o meio social, ou seja, num sentido bastante amplo, podemos concluir que a linguagem tudo que envolve significao, que tem valor semitico e no se restringe apenas a uma forma de comunicao. por meio da linguagem que se constitui o pensamento, embora no possa ser reduzida a ela. Assim, a linguagem est sempre presente no sujeito, mesmo quando ele no est se comunicando, pois a mesma significa a forma como este sujeito recorta e percebe o mundo e a si prprio. Ao mesmo tempo, linguagem e pensamento esto indissoluvelmente unidas na prtica social sob a forma de pensamento verbal. Poder-se-ia argumentar tambm, como aspecto relevante, que a lingua(gem) fundamentalmente constituda pelo contexto social, que se d entre indivduos reais em momentos singulares e histricos, trazendo marcas e significaes. importante destacar que por meio das interaes desses indivduos que a lngua se desenvolve, evolui ou at mesmo morre. Em relao s prticas pedaggicas e ao ensino apenas com o concreto, ou mesmo com a terapia de fala a que o surdo vem sendo exposto, essas aes pedaggicas tendem a reforar a deficincia do sujeito surdo. Nas diversas instituies pedaggicas encontram-se situaes que evidenciam isso. Um modelo exemplar desse fato o que evidencia relaes concretas com objetos do mundo fsico, em prticas escolares em que, para escrever ou falar do objeto, necessrio ter uma experincia sensvel com ele. o que ocorre em sala de ouvintes. As crianas ensaiam, escrevem o nome dos objetos, depois a professora apresenta o objeto. A maneira como a professora conduz o trabalho impede a converso desse momento em atividade interacional de experincias partilhadas, no permitindo ao aluno lanar hiptese sobre o objeto lingstico. A preocupao da docente de facilitar o aprendizado, servindose do objeto fsico para o aluno compreender o significado da palavra escrita. Ao assumir o

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trabalho dessa maneira, a docente no oportuniza a construo de significao do aprendizado que leva em conta a relao do sujeito com o mundo e com o outro. Assim, neste ltimo aspecto, podemos concluir com Franchi (1988), que a linguagem caracteriza-se por seus trs momentos constitutivos: os que dizem respeito construo da significao, quer pela remisso ao prprio sistema lingstico (atividade metalingstica), quer pelo fato da linguagem ser um exerccio pessoal e intersubjetivo (atividades epilingsticas e lingsticas). Neste texto, Franchi sugere que as atividades escolares nas sries iniciais deveriam ser voltadas s atividades lingsticas e epilinglsticas, mas na verdade o que se observa so os exerccios voltados para a metalinguagem (conceitos, regras, excees). De fato, h uma grande controvrsia: as informaes sobre a linguagem acabam se confundindo com a prpria linguagem. Otimizando uma variedade culta (sempre), ensina-se primeiramente uma metalinguagem dessa variedade, com exerccios de descrio gramatical ou estudo de regras. As instituies escolares dedicam os primeiros anos de vida escolar atividade de metalinguagem, em detrimento das duas outras, descaracterizando o momento propcio at para o exerccio metalingstico. A partir de uma viso crtica desse tipo de prtica pedaggica, o ensino da lngua (escrita) para surdos no deveria estar desvinculado do uso da linguagem. Os exerccios de linguagem (gramtica, textos, formao de frases) poderiam constituir-se em um momento de produo e significao, tornando o sujeito imbudo do fenmeno social da interao. Nessa lgica, estariam presentes as condies de produo e significao, de representao do interlocutor e o valor social da linguagem. Como afirma Souza (1998:47), a linguagem pode ser expressa atravs da escrita, atravs da fala, atravs dos gestos. Ento existem lnguas orais e gestuais. Muitas lnguas orais, talvez a maioria, como no ocorre com as gestuais, possuem uma escrita prpria. Nesses casos, o surdo pode se valer da escrita do Pas em que fixe residncia. Prossegue ainda a autora:

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a escrita da pessoa surda reflete, em certa medida, os conhecimentos que possui, ou no, da comunidade ouvinte. Ou, o quanto a escrita tem funo em sua vida, ou ainda reflete o prprio processo de alfabetizao a que foi submetida. Nesse contexto, o ensino da Lngua Portuguesa freqentemente levado a termo como uma lngua morta, pois ao ensinar apenas substantivos, adjetivos, advrbios na produo de textos, esquece-se de se considerar uma premissa bsica: o intercmbio entre o papel do autor e do leitor para esse aprendizado. (Souza, 1998:147)

Isto torna-se ainda mais relevante no caso da surdez, pois esses sujeitos so detentores de uma linguagem visuo gestual, que se apresenta com possibilidades limitadas de se constituir na linguagem oral. Ao me posicionar frente a estas questes, levo em considerao o objetivo dessa pesquisa, que consiste em refletir sobre as produes de escrita atpicas do sujeito surdo, abordando como so construdas as relaes de sentido e discutindo aspectos da coeso textual desses sujeitos.

2.3 DIFICULDADES DE APRENDER, OU DIFICULDADES DE ESCREVER.... As questes relativas linguagem de surdos e desenvolvimento cognitivo so muito controversas. A idia mais corrente, em Psicologia, a que assinala a perturbao psicofisiolgica global que afeta o surdo e acaba provocando um retardo, relacionando a impossibilidade de alcanar um pensamento abstrato. A surdez motivo de retardo da linguagem ou da perturbao que ela provoca no desenvolvimento geral, indiretamente, pois, lembrando Morato (1996:54), acreditar que o surdo no desenvolva o pensamento abstrato (ou que o ensino seja pobre) acreditar que o pensamento chins, pelo fato de ter inventado categorias (espirituais?) lingsticas como o yin e o yan, no seja capaz de assimilar conceitos da dialtica materialista. possvel dizer que as dificuldades dos surdos acontecem pelo fato de que as lnguas orais serem as nicas utilizadas pela grande maioria das comunidades, sendo que, no caso do surdo no h a possibilidade de adquiri-las espontaneamente. Assim, Luria (1986:94), referese ao desenvolvimento filogentico; - no incio do desenvolvimento da espcie humana a

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comunicao era feita atravs de gestos; com a evoluo da espcie humana, o sistema fonador passou a ser utilizado na comunicao entre as pessoas. De fato, vrios pesquisadores afirmam que a qualidade comunicativa dos surdos e a constituio do pensamento est nas mos (e em todo esquema corporal), pois os mesmos podem executar com perfeio o mesmo papel atribudo ao sistema fonador por meio da lngua de sinais. Vygotsky, em seus trabalhos sobre a defectologia, atribui os problemas da surdez s questes socioculturais. A tarefa da educao consiste precisamente em trabalhar estas questes. evidente que toda a gravidade e todas as limitaes criadas pela surdez no tm sua origem na falta de audio por si mesma, mas sim nas conseqncias, nas complicaes secundrias provocadas pela surdez. A surdez, por si mesma, poderia no ser obstculo to penoso para o desenvolvimento intelectual da criana surda, mas causa a mudez e a falta de linguagem um obstculo muito grande nesta via. Por isso, a linguagem posta como ncleo do problema onde se encontram todas as particularidades do desenvolvimento da criana surda. (Vygotsky, 1984:89) necessrio enfatizar, que, as condies de aprendizagem de leitura e escrita no processo de escolarizao do sujeito surdo, dependem, via de regra, do modo pelo qual so encaradas suas dificuldades e as diferenas ocorridas no processo educacional pelas instituies, levando-o a adquirir confiabilidade nas dificuldades encontradas. Nessa mesma tica preciso destacar que o surdo, antes de ter dificuldades na escola, apresenta dificuldades de aquisio da lngua, instalando-se a grande diferena de escolarizao entre o surdo e o ouvinte. Tambm afirma-se, de maneira bastante equivocada, que o surdo apresenta dificuldades de compreenso em Histria, Geografia ou Portugus, porque ele tem atraso de aprendizagem. Na verdade, suas dificuldades, em quaisquer disciplinas, esto relacionadas s estruturas lingsticas pouco desenvolvidas (pela dificuldade de acesso lngua oral, ou mesmo lngua de sinais) repercutindo na sua educao de modo geral. Entre as pesquisas salientam esta realidade, esto aquelas que apontam os sujeitos surdos, filhos de pais ouvintes, como a maioria da populao surda. O grande problema enfrentado pelos pais ouvintes a comunicao, com as crianas surdas. Outra questo sintomtica so os profissionais que lidam com a surdez, com a linguagem, dos surdos,

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tomando a lngua como se esta fosse um cdigo totalmente artificial, que pudesse ser ensinado em circunstncias totalmente artificiais, agravando mais esse problema. De fato, outra situao referente aos problemas de educao do sujeito surdo seria a falta de condies ambientais, importantes para facilitar o acesso desse indivduo ao mundo letrado. Ouve-se muito o discurso nas instituies escolares, e at mesmo entre pais de alunos, sobre as dificuldades desses indivduos na aprendizagem da escrita, como um problema secundrio em relao aquisio da linguagem oral. Entretanto, percebe-se que, por trs dessas falas, o que se espera que o indivduo aprenda primeiro a falar, para depois escrever. o poder do colonizador, em detrimento do indivduo a ser colonizado. Desse modo, o que acaba acontecendo, na maioria dos casos, que esses sujeitos, alm de no aprenderem a falar, o que esperado, aprendem apenas a ler pequenos textos, frases simples, apresentando inmeras dificuldades na escola. Assim, a instituio escolar, para recuperar essas dificuldades, estrategicamente tenta trabalhar a escrita por meios de exerccios de repetio, usando tais exerccios, como se o fato de repetir pudesse fazer esses sujeitos aprenderem a ler e escrever. Em toda esta situao, percebe-se que um dos maiores problemas da educao dos surdos a maneira como concebida a linguagem pelos professores e a maneira como so apresentadas as atividades de leitura e escrita, grande responsvel pelas dificuldades desses indivduos. Notadamente, em nossos dias, milhares de docentes, presos s amarras institucionais6 ou at mesmo por acreditarem que a educao dos surdos est restrita ao acesso da fala, continuam afirmando que o surdo oralizado tem menos dificuldades na escola. Percebe-se, por trs dessa lgica, a perpetuao de um discurso j cristalizado, no qual a preocupao dos educadores o da transmisso de conhecimentos, ensino por meio de exerccios de memorizao e prticas de tarefas solicitadas pela escola. Focalizando a educao da pessoa surda, Behares (1995) prope que a surdez seja vista como um dficit de audio que apresenta diferena com relao ao modelo esperado, e no mais como patologia. O surdo que utiliza Libras, segundo o autor, deve ser visto como

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Refiro-me a currculos impostos pelas instituies particulares e pblicas, nvel micro ou macro.

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pertencente a uma minoria lingstica e cultural, que se utiliza de uma outra modalidade de linguagem. Neste sentido, preciso lembrar que a criana surda, filha de pais ouvintes ou tambm filha de pais surdos, no adquire a linguagem da mesma maneira que a criana ouvinte, pois a linguagem oral que a criana adquire de forma natural, nos casos dos surdos ensinada nas clnicas, escolas, num processo longo, podendo ter resultados decepcionantes. A melhor maneira de se trabalhar com o surdo, deve ser por meio de uma lngua que pode ser adquirida naturalmente por intermdio dos membros da comunidade. Muitas vezes as crianas surdas no participam inicialmente do processo de leitura, em virtude do fato de os pais ou mesmo os adultos acabarem por rotul-las como sujeitos incapazes de compreender o cdigo escrito, ou at mesmo por sentimento de superproteo. Como exemplo, temos: os pais e irmos sempre esto prontos a executar a tarefa de leitura para as crianas surdas, e isto vem impedir o crescimento das mesmas de exercitar a funo social da escrita, de levantar hipteses, de perceber diferenas entre a fala (no caso dos surdos, os sinais) e a escrita, o que os faria crescer. Este fato vem acarretar vrias complicaes. Esses indivduos, mesmo estando vrios anos na instituio escolar, desconhecem a funo social da produo escrita, no conseguem perceber que, para produzir um texto, no basta a justaposio de palavras ou sentenas soltas, mas que o mesmo exige operaes complexas, como a de manipular recursos para articular, de forma coesa e adequada, de modo a produzir sentido. Alm disso, necessrio explicitar que na atividade discursiva, seja oral (gestual) ou escrita, o interlocutor o sujeito ativo, e os participantes dessa interlocuo tendem a dividir o contexto temporal e espacial, reelaborando este discurso. Sendo assim, os sujeitos tm possibilidades de voltar a uma questo anterior e reorganizar os recursos utilizados na sua prpria lngua, como a utilizao de recursos faciais e gestos que auxiliam na compreenso da expresso dos seus discursos. Entretanto, o mesmo no acontece na escrita, pois a linguagem escrita no dispe dos dados do contexto e da situao interativa, em que a voz (audio) se faz presente. Para

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atenuar ou mesmo suprir esta falta, em que os elementos extratextuais so subsdios para garantir a inteligibilidade do texto, o texto escrito deve apresentar mecanismos lingsticos que permitam uma leitura coerente para se extrair um significado. Deste modo, necessrio salientar que a tarefa de escrever no se reduz apenas traduo da fala em sinais grficos, pois existem especificidades prprias de cada modalidade. A escrita no a transposio da fala e o fato de as crianas (ouvintes) terem dificuldades na produo de textos escritos no significa que tenham dificuldades na lngua oral. A linguagem escrita tem sua prprias regras, e os recursos da linguagem necessitam ser revistos para garantir seu desenvolvimento. Outra observao importante, no processo de educao do sujeito surdo, a expectativa dos pais em relao ao sucesso dos filhos nesse processo. Todavia, com um olhar atento sobre este cenrio, percebe-se que a maioria desses pais pertence classe menos privilegiada, tendo um poder aquisitivo muito baixo, e os mesmos muitas vezes no so nem alfabetizados. Assim a aceitao de uma baixa escolarizao se faz presente, pois os mesmos nem ao menos sabem avaliar quais os problemas inerentes surdez de seus filhos. Os mais esclarecidos, geralmente, ainda fazem essa discusso, de modo que os filhos surdos consigam chegar ao menos ao segundo grau, embora no discutam a qualidade dessa promoo. Silva destaca em seus estudos que... esta [questo acima citada] parece ser a segunda etapa da negao da surdez que as famlias enfrentam, desde o nascimento do filho (a primeira aquela que sentem ao descobrirem a surdez), e por isso fica to difcil de explicar para essas famlias que o processo escolar do surdo pode ser diferente, e que a falta da linguagem pode acarretar srias conseqncias na vida de seus filhos. (Silva, I. R. 1998:27)

Para Silva I. R. (1998:27), a contraparte que eles conhecem sempre comunicativa, esquecendo-se ou desconhecendo que a cognitiva (ao sobre o mundo) a prpria atividade epilingstica da criana sobre a lngua, to importante quanto a comunicao. Prossegue, ainda, afirmando que, para os pais e professores que lidam com esses sujeitos, a comunicao a parte mais afetada pela surdez. Esquecem-se que ela apenas parte do iceberg, a parte

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mais visvel, e, talvez por isso mesmo, aquela com a qual pais e professores mais se preocupam. Outros estudos feitos por vrios pesquisadores assinalam que os surdos, a exemplo dos ouvintes, podem se desenvolver lingisticamente, desde que sejam expostos Lngua de Sinais o mais cedo possvel; se isto no acontecer, o desenvolvimento global do sujeito surdo poder ser afetado de modo significativo. Tomando-se por base essa lgica, nota-se que no se pode separar as dificuldades que o surdo apresenta com a escrita, sem estar atento quilo que aconteceu com o processo de aquisio da lingua(gem) que ele faz uso, e o que ocorreu com o processo da alfabetizao. necessrio lembrar que, at recentemente, entre meados de 60 e 80, a questo da escolarizao do sujeito surdo s teria sentido se ele conseguisse falar, ou seja, dominar os sons da lngua. Comprovada a ineficcia desta abordagem, tanto em relao escrita quanto em relao fala, a pesquisa de Lacerda (1996:101) traz questes importantes, entre elas apontando para entender que no preciso falar bem, para escrever bem. Comeam, ento, a surgir vrias pesquisas com questionamentos diversos. Nesse cenrio, o surdo passou a ser visto como um indivduo em condies de obter um desenvolvimento global, no mais como um sujeito com dficit clnico interpelado pela falta de audio. Em relao s pesquisas, na dcada de 60, muitas questes eram observadas . Merece destaque a nfase dada aos estudos das diferenas observadas entre crianas surdas de pais ouvintes. Os estudos demonstraram que os surdos, filhos de pais surdos, tinham melhor capacidade para o desempenho na escola, tanto nas atividades orais e escritas, quanto ao serem oralizados, ao contrrio dos surdos de pais ouvintes, que demonstravam maior dificuldade. Os surdos, filhos de pais surdos, logicamente conseguiam avanar mais, fazer ou lanar hipteses, pois eram expostos a uma mesma lngua, promovendo, assim, mais eficazmente, sua aprendizagem. Em razo destas citaes, chega-se seguinte lgica: os filhos e pais surdos so mais bem preparados, emocional, social e culturalmente, pois tem uma identidade que dada pela sua lngua.

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Tambm no exame da produo escrita, alguns pesquisadores, na dcada de 80, detiveram-se em apontar o atraso do surdo em relao ao ouvinte na aquisio e desenvolvimento da estrutura sinttica da lngua oral. Brown, (1984), fez um estudo comparativo sobre os morfemas gramaticais presentes na linguagem dos surdos. O objetivo de seus trabalhos foi verificar se a criana surda difere das ouvintes, em relao sua competncia gramatical, em usar morfemas, desde que as mesmas estejam no mesmo nvel do desenvolvimento da linguagem. Observou, tambm, como os morfemas eram utilizados pelos surdos, pois o uso correto desses elementos contribui para a produo de um maior nmero de sentenas adequadas. Ao observar como eram utilizados esses morfemas, verificou-se que eles poderiam favorecer ou no a escrita dos surdos. Foi tambm observada a ordem dessa aquisio com o intuito de constatar se eram iguais nos dois grupos. Os sujeitos surdos estavam em desvantagem em relao aos ouvintes, embora a ordem de aquisio fosse a mesma. Powers & Wilgus (1985) tiveram como propsito relatar a complexidade lingstica da produo escrita, inseridos em um programa na rea educacional que trabalhava com a Comunicao Total. Nessa pesquisa, os autores analisaram amostras de textos escritos por alunos surdos do 1 grau com a idade de 7 anos at 12 anos. O corpus foi obtido atravs de desenho animado, que serviu de pr-texto para sua escritura. Os dados, estatisticamente comprovados, revelaram um aumento significativo da complexidade lingstica7. Dentre os resultados obtidos, os pesquisadores apontaram tambm que a complexidade sinttica estava relacionada ao aumento da idade cronolgica dos sujeitos surdos: quanto mais velhos, melhor sabiam usar os recursos da lingua(gem) em uso. Outro detalhe importante que os sujeitos pertenciam classe econmica e sociocultural alta, possibilitando o contato desses sujeitos com recursos importantes no desenvolvimento da aprendizagem, sendo que os pais estavam envolvidos com a educao dos seus filhos. A meu ver, este fato muda provavelmente o status lingstico desses sujeitos.

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Segundo o autor, so categorias de difcil domnio, para o indivduo surdo, o uso de negao, pronominalizao, conjuno e, principalmente o uso de sentenas subordinadas.

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Outras pesquisas se fazem presentes nesse novo cenrio educacional, mas importa destacar que muitas das que foram citadas anteriormente apontavam para aspectos ligados correo da linguagem, tais como ensinar o surdo a escrever; igual ou semelhante ao ouvinte. Como exemplo deste fato, ainda esto em evidncia os programas de terapia de fala, que ensinam o aluno a falar, depois a formar palavras, sentenas curtas, etc. Dessa forma, o ensino assume um carter paliativo, pouco eficaz, pois no se formula hipteses, nem se busca compreender porque surdo escreve de forma atpica em relao s usuais. De fato, para dominar toda a complexidade da linguagem escrita, o sujeito surdo precisa fazer uso da lngua de sinais, pois a aprendizagem precoce da mesma favorece seu desenvolvimento na aprendizagem. Acontece, porm, que, para um grande nmero desses sujeitos, isto no ocorre. Como exemplo, possvel observar que crianas que freqentam desde cedo programas de estimulao precoce8 chegam s instituies escolares com problemas de escrita. Estes aspectos mencionados evidenciam mais ainda o pressuposto j mencionado de que a escrita envolve uma relao dinmica entre o sujeito que aprende e o mundo. Gesueli (1988) relata em sua pesquisa, ancorada em uma viso construtivista, a experincia sobre o processo de alfabetizao de crianas no ouvintes cuja fala no estava desenvolvida, contrariando a tradio oralista de que preciso oralizar antes da criana entrar em contato com a escrita. A pesquisadora ainda observa que a criana no ouvinte, mesmo quando no oralizada, capaz de pensar sobre a escrita, levantando hipteses, muitas vezes semelhantes quelas observadas em crianas ouvintes. Os sujeitos da pesquisa mostravam-se capazes de lidar com a escrita produzindo e interpretando textos. Nesse trabalho atravs dos fatos observados a autora aponta para a necessidade de se repensar o trabalho com o no ouvinte, respeitando-se suas diferenas e recusando-se a uma rotulao de deficincia e incapacidade. A esse respeito, outra pesquisa que merece ser citada de Fernandes (1989), na qual a autora constata a falta de raciocnios analgicos por parte dos sujeitos surdos, evidenciado pela pouca experincia que os mesmos tinham com atividades escolares que beneficiam esse tipo de raciocnio. Ao coletar dados, a autora solicitou que os surdos8

Estimulao Precoce -Trabalho voltado para a produo e compreenso dos sons antes mesmo da alfabetizao.

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reproduzissem, com suas prprias palavras, o texto lido. Alguns informantes se negavam a realizar tal tarefa. Entretanto, esse fato se deve no a problemas de ordem cognitiva, mas de afinidade com o tipo de linguagem usada. Nessa mesma pesquisa, a autora citada destaca, de uma maneira geral, a omisso ou a dificuldade dos sujeitos surdos de usarem categorias gramaticais. Segundo ela, esse problema no se restringe apenas ao surdo, mas tambm aos ouvintes quando aprendem uma lngua estrangeira. Dessa maneira, ela conclui que os surdos tm considerveis limitaes na utilizao das estruturas da lngua portuguesa, que podem ser comprovadas pela dificuldade com o lxico, falta de conscincia no processo de formao da palavra, uso inadequado de verbos e das preposies, omisso de conectores em geral, e que podem ser evidenciados como resultado da falta da lngua de sinais. J em 1993, Rampelotto apresenta, em sua pesquisa, uma anlise das abordagens metodolgicas usadas no ensino de surdos. Nessa anlise, a autora se baseia num trabalho experimental que investigou a compreenso de produo de textos por adolescentes surdos. Os dados obtidos foram analisados com base em gravaes de histrias simples e complexas contadas em Lngua Brasileira de Sinais e em Portugus oral e em Comunicao Bimodal. Essas histrias eram recontadas em Lngua Brasileira de Sinais e em lngua portuguesa escrita. Entre os aspectos examinados, as histrias narradas em Comunicao Bimodal foram as que os sujeitos apresentaram maior dificuldades em reproduzir, tanto em Lngua Brasileira de Sinais como em portugus escrito. As histrias narradas em Lngua de Sinais foram as que os sujeitos reproduziam melhor. Relata, ainda, a pesquisadora que os sujeitos surdos ao reproduzirem as histrias, o fizeram melhor em Lngua Brasileira de Sinais do que em lngua portuguesa escrita. As histrias simples, em geral, ofereceram menor dificuldade para serem lembradas e reproduzidas do que as complexas. Os resultados obtidos diante dos dados reiteram a importncia da Lngua de Sinais na educao da criana surda, apontando para o fracasso da abordagem oralista e a ineficcia da comunicao bimodal (uso simultneo de sinais e fala), no desenvolvimento da competncia lingstica do estudante surdo. Outra pesquisa que traz indicaes nessa rea a de Ges (1994:3). A autora verificou que as dificuldades de escrita dos alunos surdos podiam ser entendidas pelo uso hbrido e

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indiferenciado das duas lnguas, ou seja, se relacionavam estreitamente com as condies de interlocuo em sala de aula. Importa ainda enfatizar, na pesquisa de Ges, que muitas de suas constataes se aplicam aos dados desta pesquisa, em razo da proposta deste estudo em verificar a produo de escritura dos sujeitos surdos em ambiente escolar, e como considerado o sentido textual, diante de tal tarefa, abordando os aspectos coesivos. Nessa tica, procuro chamar a ateno do professor para esse aprendizado, considerado nessa pesquisa como de uma segunda lngua. Outra pesquisa que redimensiona o trabalho com o aluno surdo, a escola e a linguagem o de Souza (1998). A autora enfatiza os aspectos constitutivos da linguagem na construo do conhecimento, ou sistemas de referncias sobre si prprio, sobre o outro e sobre sua prpria linguagem. No seu trabalho, ela desmistifica valores cristalizados sobre a lngua dos surdos, apontando o trabalho social como premissa bsica para a instalao da li