porque eu sou o que convÉm “inconveniente” · que por meio um diálogo anuncia um corpo. um...

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PORQUE EU SOU O QUE CONVÉM “INCONVENIENTE” Ana Letícia Vieira 1 Bruno Rossato 2 Vinicius Reis 3 RESUMO O curta-metragem “Inconveniente” 4 (2015) é uma provocação que já começa pelo próprio título e, em sete minutos, nos convida a transitar pela arte, ciência, ficção e o cotidiano. Nesta encruzilhada de saberes que se misturam, rompem e criam outros modos de existência, múltiplos sentidos são atrelados a alguns aspectos do vídeo, envolvendo os saberesfazeres cotidianos que, por sua vez, vão instituindo significações e lógicas atravessadas nas questões sobre corpo, gênero e sexualidade. Entendemos que estamos imersos em uma cultura que é contaminada pelo audiovisual, onde narrativas circulam por diferentes espaçostempos produzindo agenciamentos e operando na criação de subjetividades, desejos e estéticas de existências. Neste sentido, pensando no audiovisual como um dispositivo para a produção de diferentes saberes, o objetivo deste trabalho é anunciar um corpo, uma vida e uma estética trans 5 que não quer ser apagada e nem silenciada e que para isso precisa gritar, berrar… Um corpo inconveniente que circula em diferentes lugares potencializando e afirmando a vida. Se produzindo, afetando e sendo afetado pelo mundo. Um corpo que insiste em não se enquadrar e que transita no seio das verdades instituídas. Palavras-chave: Transsexualidade 6 ; Cotidiano; Audiovisual; Gênero; Certeau 1 Doutoranda em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (ProPE/UERJ). Email: [email protected] 2 Mestrando em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (ProPE/UERJ). Email: [email protected] 3 Mestrando em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (ProPE/UERJ). Email: [email protected] 4 Visite nossa página: https://www.facebook.com/inconveniente2015/ 5 Neste trabalho, optamos pela expressão trans para nos referir às pessoas nomeadas/enquadradas como “transexuais”, “travestis”, “transgêneros”, “transhomens”, “transmulheres” etc, bem como àquelas que, de alguma maneira, não estão conforme a um metro-padrão e produzem seus corpos nas fronteiras, transbordando as normas de sexo-gênero. 6 A grafia da palavra está com dois “s” propositalmente para mostrar que estamos entendendo a sexualidade, neste caso, de forma expandida ao invés de nomear ou dividir por categorias identitárias (travestis, transexuais, transgêneros etc). Sabemos que a luta identitária é legítima e funciona em alguns aspectos no âmbito das políticas públicas, entretanto gostaríamos de produzir um exercício de um pensar “outro” que nos aponte a possibilidade de podemos usar das categorias identitárias em determinados momentos a nosso favor, entretanto não podemos nos aprisionar a elas pois não dão conta da totalidade, da expansão e da diferenciação constante da vida.

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Page 1: PORQUE EU SOU O QUE CONVÉM “INCONVENIENTE” · que por meio um diálogo anuncia um corpo. Um corpo, uma vida e uma estética ... com ele nossa princesa deixa as telas para se

PORQUE EU SOU O QUE CONVÉM – “INCONVENIENTE”

Ana Letícia Vieira1

Bruno Rossato2

Vinicius Reis3

RESUMO

O curta-metragem “Inconveniente”4 (2015) é uma provocação que já começa pelo próprio título

e, em sete minutos, nos convida a transitar pela arte, ciência, ficção e o cotidiano. Nesta

encruzilhada de saberes que se misturam, rompem e criam outros modos de existência,

múltiplos sentidos são atrelados a alguns aspectos do vídeo, envolvendo os saberesfazeres

cotidianos que, por sua vez, vão instituindo significações e lógicas atravessadas nas questões

sobre corpo, gênero e sexualidade. Entendemos que estamos imersos em uma cultura que é

contaminada pelo audiovisual, onde narrativas circulam por diferentes espaçostempos

produzindo agenciamentos e operando na criação de subjetividades, desejos e estéticas de

existências. Neste sentido, pensando no audiovisual como um dispositivo para a produção de

diferentes saberes, o objetivo deste trabalho é anunciar um corpo, uma vida e uma estética trans5

que não quer ser apagada e nem silenciada e que para isso precisa gritar, berrar… Um corpo

inconveniente que circula em diferentes lugares potencializando e afirmando a vida. Se

produzindo, afetando e sendo afetado pelo mundo. Um corpo que insiste em não se enquadrar

e que transita no seio das verdades instituídas.

Palavras-chave: Transsexualidade6; Cotidiano; Audiovisual; Gênero; Certeau

1 Doutoranda em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de

Janeiro (ProPE/UERJ). Email: [email protected] 2 Mestrando em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de

Janeiro (ProPE/UERJ). Email: [email protected] 3 Mestrando em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de

Janeiro (ProPE/UERJ). Email: [email protected] 4 Visite nossa página: https://www.facebook.com/inconveniente2015/ 5 Neste trabalho, optamos pela expressão trans para nos referir às pessoas nomeadas/enquadradas como

“transexuais”, “travestis”, “transgêneros”, “transhomens”, “transmulheres” etc, bem como àquelas que, de alguma

maneira, não estão conforme a um metro-padrão e produzem seus corpos nas fronteiras, transbordando as normas

de sexo-gênero. 6 A grafia da palavra está com dois “s” propositalmente para mostrar que estamos entendendo a sexualidade, neste

caso, de forma expandida ao invés de nomear ou dividir por categorias identitárias (travestis, transexuais,

transgêneros etc). Sabemos que a luta identitária é legítima e funciona em alguns aspectos no âmbito das políticas

públicas, entretanto gostaríamos de produzir um exercício de um pensar “outro” que nos aponte a possibilidade de

podemos usar das categorias identitárias em determinados momentos a nosso favor, entretanto não podemos nos

aprisionar a elas pois não dão conta da totalidade, da expansão e da diferenciação constante da vida.

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“Inconveniente” foi produzido como trabalho final de uma disciplina no âmbito da Pós-

graduação em Educação da UERJ (ProPEd) que abordou a metodologia das pesquisas

nos/dos/com os cotidianos que é influenciada e embasada fortemente pelo pensamento de

Michel de Certeau. É um curta de aproximadamente 7 minutos que mistura elementos literários

e artísticos. A produção se deu a partir de uma poesia (escrita com inspiração no texto de Fauzi

Arap com interpretação de Maria Bethânia e fundamentada nas ideias de Michel de Certeau)

que por meio um diálogo anuncia um corpo. Um corpo, uma vida e uma estética trans que não

quer ser apagada e nem silenciada e que para isso precisa gritar, berrar… Um corpo

inconveniente que circula na cidade, no trem, no metrô, no museu, na escola potencializando e

afirmando a vida. Se produzindo, afetando e sendo afetado pelo mundo. Um corpo que insiste

em não se enquadrar e que transita inconveniente no seio das verdades instituídas.

“O corpo é o suporte primeiro da mensagem social proferida. É um quadro-negro onde

se escrevem e se fazem legíveis o respeito aos códigos ou o desvio com relação ao

sistema dos comportamentos” (CERTEAU; GIARD; MAYOL, 2013).

O curta Inconveniente é uma videoarte que mistura ciência, poesia, sons, música e artes

visuais. Como o próprio título sugere, o curta é uma provocação e se baseia no conceito de

“conveniência” que, segundo Certeau (2013), “mantém relações muito estreias com os

processos de educação implícitos a todo grupo social” (pág.49). Entendendo a conveniência

como norma, então “ela reprime o que ‘não convém’, o que ‘não se faz’. A inconveniência neste

caso é o que não está dentro da norma, portanto sujeito a ter sua reputação pessoal destruída.

Nesta perspectiva, inconveniente, é aquele corpo que está em “dissonância no jogo de

comportamentos” (pág. 49).

Partindo deste princípio, tomamos como base um texto de Fauzi Arap eternizado na voz

de Maria Bethânia que vociferava: “Eu vou lhe contar que você não me conhece”. No caso do

curta, o texto reinventado nos revela uma personagem que diz: “Quero falar sobre um corpo”.

Mas que corpo?

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O corpo que se anuncia, gritando, berrando...

O trem se aproxima. O barulho vem dos trilhos. Um violino afinado. Os trilhos

arranham. O trem está próximo da plataforma. Em meio a flores e um castelo um corpo se

enuncia. A personagem surge na tela, desfocada. Uma princesa? O trem está partindo e junto

com ele nossa princesa deixa as telas para se tornar uma pessoa comum, praticante, ordinária...

(CERTEAU, 1994)

Em primeiro plano. O trem corre cada vez mais rápido. Com ele vão-se os estereótipos.

Nossa personagem está engasgada. Ela quer falar, quer ser ouvida, mas em meio a multidão ela

se torna invisível. Ela precisa gritar, berrar... Todos parecem surdos e ninguém a ouve. Ela

denuncia e nos provoca a olhar/sentir/perceber os corpos trans que habitam o mundo, porém

são a todo tempo silenciados e impedidos de circular. Não possuem direito de ir e vir. São a

todo tempo apontados, discriminados, violentados porque não estão conforme as normas e as

expectativas com relação a sexo-gênero (BUTLER, 2003; PRECIADO, 2014; BENTO, 2004,

2008).

Quero falar sobre um corpo

Mas preciso gritar, berrar...

Porque você está surdo e não me escuta.

Me deram um nome

Imposição!

Verdade?

Realidade?

Identidade?

Besteira...

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Na plataforma trens circulam a todo o momento. Nossa personagem está pensando em

meio a sons e pessoas a imposição de um nome que lhe foi dado arbitrariamente. Não só um

nome civil, mas uma nomeação, uma categoria, uma identidade. Entretanto, ela nos aponta que

isso não passa de uma “besteira”. É uma produção, uma construção que almeja nos colocar,

todos, em caixinhas específicas e nos enquadrar em determinado gênero, sexualidade e prática

sexual. O que nossa personagem denuncia é que nem todos estão de acordo com um

sistema/norma que associa compulsoriamente gênero, sexualidade e desejo. Associa o “sexo”

(macho ou fêmea) a determinado gênero (masculino ou feminino) e atrela, por sua vez, a um

desejo, a heterossexualidade (BUTLER, 2003). Há aqueles que rompem e evidenciam que este

processo não é natural, mas sim naturalizado.

Entre eu e você há um abismo

Abismo do Ser

Porque você, é.

Eu sou quando quero.

Você é um rosto, uma parte, um número na multidão.

Eu estou...

Estou contaminando, invadindo, misturando.

Na multidão, sou aparência, em perspectiva.

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Nossa personagem já saiu do metrô e agora caminha na cidade. Ela se mistura em meio

a sons, texturas, gestos e corpos que transitam no centro do Rio de Janeiro. Sua memória e seus

pensamentos estão borbulhando. Ela insiste na negação e na rejeição de um discurso identitário.

Ela não quer “Ser”, não quer se enquadrar para sempre. Ela quer “Ser” quando quiser “Ser”.

Ela quer ser afetada, contaminada, invadida pela vida e a partir dela se autoproduzir, diferir...

Em meio à multidão ela se torna aparência em perspectiva. Quem ela é depende de quem

vê. Ela é somente aparência. Ela é superficialidade, artificialidade. Seu gênero é produzido em

ato, em prática (BUTLER, 2003). Sua pele é o que há de mais profundo. Com isso, ela nos

aponta que os discursos não produzem “verdades” fixas e imutáveis mesmo quando pretendem.

Que tudo depende do direcionamento e da perspectiva adotada. Que normas e padrões não

atingem a todos do mesmo jeito e ao mesmo tempo. Que determinadas normas podem ou não

serem seguidas. Que é possível o uso, a seu favor, de determinados padrões, de maneira

conveniente, para burlar sistemas e discursos estrategicamente pensados e produzidos

(CERTEAU, 1994).

Você é seu nome.

Você diz que eu não sou ninguém.

Ninguém?

Mas, ao contrário, você me dá o poder.

Poder de inventar, criar, escolher... meu nome.

Poder ser quando quiser ser.

Porque eu sou o que convém.

Conveniente

Inconveniente.

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Ela retoca a maquiagem. Em frente ao espelho mostra o seu poder. Poder que lhe é dado

pelo próprio discurso que tenta lhe enquadrar, impor uma fôrma. Discurso que também tenta

excluir quem não se adequa. O mesmo discurso que se alimenta de uma estratégia possibilita a

produção de táticas (CERTEAU, 1994). Poder de criar, inventar, escolher e ser quando quiser

ser. Transitar nas esferas e nos discursos hegemônicos de poder e promover uma ruptura que

acontece no seio, dentro, no cotidiano. De dentro para fora (BHABHA, 1998). Poder ser

conveniente/ inconveniente denunciando que as fixações podem ser temporárias e também a

precariedade dos discursos que tentam impor lógicas e padrões binários hegemônicos

(BUTLER, 2003).

Após se produzir, nossa personagem, sente vontade de urinar. Aproxima-se da privada,

abre as pernas e “mija” em pé mesmo, porque ela pode!

As rosas se desfazem numa explosão de vida

Diva. Princesa. Boneca.

Fera. Bicho. Demônio.

Sou anjo. Homem. Mulher.

Sou minha mãe e minha filha.

Sou processo

Multiplicação…

Não sou produto, nem resultado.

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Neste ponto da narrativa, acontece uma grande virada. Até aqui, o curta adotava um

modelo de narrativa mais lento, mais linear. Uma vez que nossa personagem “brinca” com a

inconveniência, com as formas de ser e estar no mundo, uma explosão de vida acontece na tela,

seja pelas imagens ou através dos sons.

É importante, aqui, ressaltar a importância do som no cinema e o destaque que ele teve

neste filme. Segundo Garcia e Oliveira (2015) em uma publicação sobre o pensamento de Nilda

Alves, os praticantes nos espaçostempos cotidianos, para as pesquisas nos/dos/com os

cotidianos, ganham o estatuto de personagens conceitos. Compartilhamos da ideia de que até

mesmo um som é um personagem conceito, ou seja, em nossas pesquisas, um som pode ser

entendido como um outro que é preciso estar ali e permanecer para que se possa desenvolver o

pensamento e criar conhecimento. Portanto, ruídos são interrompidos, deslocados e até mesmo

o silêncio dialoga com a narrativa que se apresenta, completando-a.

Voltemos, pois, ao momento do que chamamos de explosão de vida. Nossa personagem,

até então mostrada em cenas cotidianas, misturada em meio à multidão, fica em evidência,

sensualizada, com uma roupa íntima provocante. O discurso ganha ritmo, transforma-se num

funk carioca; as imagens, fotografias da personagem em trajes e poses sensuais, inundam a tela.

Conveniente e inconveniente o corpo da personagem produz a sua beleza e afirma-se, em

palavras e gestos.

O funk, pano de fundo destas imagens, também provoca. O funk é tão inconveniente

quanto nossa personagem e incorpora um som de violino, instrumento geralmente associado à

música erudita, e reafirma que aquele corpo “não é produto, nem resultado”, mas sim “processo

e multiplicação”.

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A tela se quebra. Estilhaços cortantes voam e caem misturando-se a pétalas de rosas.

Para Certeau (2013), a conveniência é o gerenciamento simbólico da nossa face pública quando

estamos em local público (na rua, no bairro). Entre pétalas de rosas e estilhaços de vidro na

imagem, apontamos que nossa personagem faz uso da “conveniência” quando ela julga

necessário para se tornar inteligível (BUTLER, 2003) e transitar nas verdades instituídas, mas

que sua “inconveniência” evidencia uma tentativa repetitiva de padronização dos corpos e dos

comportamentos. Denuncia o quanto determinados discursos são entendidos como naturais

quando na verdade foram produzidos e naturalizados culturalmente.

O corpo que denuncia

Uso meu corpo.

Modifico. Transformo.

Não estou conforme.

Ao toque. Me toco. E sinto…

Tesão. Prazer. Loucura.

Caminhar pela cidade, misturar-se na multidão. Envolver-se nesse cotidiano que é

plural, que é uma teia onde a vida se produz dia após dia.

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Ela usa seu corpo inconveniente, mergulha nas relações com esse espaço. Podemos

vislumbrar como o cotidiano traz algo com deslizes de impulsos não ambicionados, em

contraposição a um rigorismo normativo e suas respectivas condutas esperadas.

Ao transformar o corpo e transitar pela cidade, misturar-se na multidão, vemos a

personagem rompendo, desnaturalizando ou melhor dando golpes na conformidade do sistema

“sexo-gênero-orientação-sexual” (BUTLER, 2003) socialmente construído e padrozinado, e

que, no contexto de relações de poder, produz outros binarismos tais como masculino e

feminino, heterossexual e homossexual, cisgênero e transgênero, por exemplo.

Este corpo inconveniente continua caminhando pela cidade quando um 'flash' de cenas

se sobrepõe ao percurso na cidade, enaltecendo a memória. Esta memória busca dar golpes nas

imposições e nos mostra um conjugado de possibilidades em meio aos movimentos do

cotidiano. Um corpo inconveniente que ao tocar-se tem sensações, que constitui mundo,

misturando 'prazer e loucura'. Neste mote, esse corpo transita pela cidade em meio a qual se

engendra essa problematização de um corpo que não está conforme, partindo das experiências

individuais e coletivas tecidas no/com o cotidiano. Assim, ao vislumbrarmos o trânsito de um

corpo inconveniente pela cidade, estamos afirmando a ruptura, o escape do padrão.

E provoco você porque transito na sua verdade.

Desloco suas palavras e interdito seus escritos.

O caminho pela cidade segue seu percurso. Gestos e imagens causam tensão ao que está

valorizado como padrão. A personagem faz uma denúncia a essa fôrma rígida, fechada e nos

provoca apontando algumas imagens fálicas coladas em um telefone público (“orelhão”) - um

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corpo fixo da cidade que com essas imagens acopladas colocam em xeque os códigos relativos

ao gênero e à sexualidade normatizados. Conforme Preciado (2014) a sociedade contrassexual

demanda que se apaguem as denominações 'masculino' e 'feminino' correspondentes as

categorias biológicas [...] Os códigos da masculinidade e da feminilidade se transformam em

registros abertos à disposição dos corpos falantes no âmbito de contratos consensuais

temporários (2014, pág .35). Balizado em Preciado (2014), uma atitude inconveniente é aquela

que provoca, que questiona verdades, que não entra numa lógica, que busca trazer afirmação.

Meu corpo se movimenta e dança,

dança a sua dança.

Movimenta a sua estratégia

E como uma tática te denuncia

A caminho de casa e com um olhar de quem após um dia de provocações - que

acontecem cotidianamente - movimenta o corpo no balanço do trem. Corpo que não apenas se

movimenta, mas que dança ao compasso de estratégias e táticas, denunciando.

Ao pensar nessa produção constante de um ideário de corpo, realizada por diferentes

instituições e contextos da vida social, vemos como as cenas de inconveniente reforçam a

problematização elencada por Certeau (1994) nos fazendo pensar que na vida ordinária

cotidiana os modos de usar produzem derivas, desvios, apropriações e diferenças em

contraposição à severidade normativa e suas respectivas condutas esperadas bem como

planejamentos estrategicamente calculados por uma autoridade política, econômica, cultural,

militar, religiosa,etc. Deste modo, o corpo inconveniente traz em afirmação esse entrelace

constante entre os conceitos de tática e estratégia pensados por Certeau (1994).

Ao pensarmos no movimento dessa estratégia, Certeau (1994) discorre que essa ação se

manifesta fisicamente por seu clima de operação e os produtos que emergem desse ambiente

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(linguagem, leis, literatura, arte, discursos). A estratégia concebe um investimento enorme de

espaço (construções) e de tempo (as histórias e suas tradições), sendo assim, o modo de operar

com as identidades já estão determinados. Contudo, Certeau nos descreve sobre um modelo

tático em que os indivíduos ou grupos que são fragmentados em termos de espaço são capazes

de desempenhar de forma ágil um aglomerado de ações para responder a uma necessidade que

surja. Portanto, a necessidade faz uma tática "surgir" no mundo, uma criação que traz consigo

golpes ao que está instituído. A estratégia tem a ver com um cálculo, um planejamento, uma

determinação, uma produção que atua como uma ordem a partir de um lugar próprio (confere

e é conferida por uma autoridade desse lugar). A tática é o tipo de ação que possibilita a

sobrevivência dos que precisam praticar esse lugar sob essa ordem. Eles só podem agir

aproveitando a ocasião, com o repertório dominante, mas ao agir, marcando um desvio com sua

prática em relação ao que foi imposto, produzem uma ruptura, uma brecha no instituído e nos

discursos que são produzidos como hegemônicos. (CERTEAU, 1994)

Sendo assim, podemos destacar o uso das táticas na inevitabilidade desse corpo

inconveniente junto aos processos de subjetivação. Pensamos como subjetivação a partir da

visão que "o capitalismo produz formas-subjetividade, modelizações subjetivas" (BARROS;

PINTO, 2004, pág. 2). Esses modelos abarcam as percepções e a memória. Envolve a dinâmica

das relações sociais, o campo das práticas. Nesse entendimento, os processos de subjetivação

ao mesmo tempo são produzidos em instâncias coletivas e institucionais. No entanto,

concomitantemente, tal produção ao mesmo tempo, se choca com modos de subjetivação

singulares que, como tal, é recusa, é resistência, construindo sensibilidades outras, modos de

relações outros. Ocasionando assim, outras formas de produção da existência (BARROS;

PINTO, 2004).

Eu quero que você me veja nua!

Existe um relato, uma representação que nos separa, nos distancia.

A minha vontade, o meu desejo é que você me veja nua.

Eu abandono o que você diz, sobre mim…

E meu corpo nu, corpo trans, em movimento…

Mais uma vez te denuncia, te provoca, nos engendra, nos afeta.

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Eu me confesso.

Você me descreve.

Eu nos condeno e me entrego por nós.

Assim, me salvo do discurso que você tenta, tenta...

Tenta me impor e não consegue.

Nossa personagem, ao fim do dia, retorna para casa. Entra no apartamento. Acende a

luz. Lava a louça. Coloca um prato de comida no micro-ondas e vai até o banheiro. Olha para

o espelho e prende o cabelo em leves movimentos circulares. Aos poucos ela se despe, não

somente da roupa, mas dos discursos, do que dizem sobre ela. Entra no banho. A água que corre

pelo seu corpo lava, enxagua e limpa as tentativas de imposições, as regras, as convenções que

ali estavam mesmo que temporariamente. Ela nos condena e se entrega por nós num movimento

tácito, onde propositalmente se entrega quando na verdade está dando uma rasteira nos

discursos e práticas que tentam a aprisionar.

Compartilhamos do pensamento do cineasta espanhol, Pedro Almodóvar (2008), que

acredita no desejo das pessoas. O cineasta não se refere ao desejo sexual. Como exemplo,

Almodóvar menciona a fé de suas irmãs. Ele acredita naqueles que creem, pois no ato de

acender uma vela para um santo católico, como fazem suas irmãs, neste gesto, está contido o

desejo. E os desejos possuem uma força incomensurável. O desejo aqui é uma espécie de força

vital, transformadora.

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Foucault (2014) nos alerta que para conta-atacar os dispositivos hegemônicos de

sexualidade, neste caso, a heteronormatividade, os pontos de apoio que temos à nossa

disposição são os corpos e os prazeres. Pois é aí que reside a força vital da nossa personagem.

Após o banho, nossa personagem se despede. Fecha a porta do banheiro e interrompe

nosso olhar voyeurístico. Tela preta. Em certo tom de impaciência e querendo reiterar o que já

foi dito dispara seu último comentário:

Ah...

E não venha falar de normalidade, essência ou neutralidade.

Nem arte, nem ciência são puras.

Os relatos são poderosos instrumentos (CERTEAU, 1994). São “histórias” que nos

revelam práticas cotidianas. Por isso, optamos em usar como fio condutor do filme esta espécie

de poesia-relato, narrada em primeira pessoa. Certeau (1994) também afirma que a arte e a

ciência estabelecem uma relação de complementaridade e, sempre que possível, articulação.

Como um último suspiro ou como um desabafo, nossa personagem, se despede dizendo:

“nem arte, nem ciência são puras”. Um manifesto contra qualquer tentativa de normalização,

essencialização, neutralização ou purificação dos corpos e dos comportamentos que neguem ou

não permitam a expansão e diferenciação da vida.

Referências Bibliográficas

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trabalho docente – As comunidades ampliadas de pesquisa como estratégia privilegiada.

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