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1 POR UMA ANTROPOLOGIA DO DIREITO, NO BRASIL 1 Roberto Kant de Lima Introdução Antropologia se constitui como disciplina científica nos quadros do pensamento social europeu do século XIX em torno,dentre outras,das problemáticas obrigatórias do “progresso” e da “evolução social”. Competia `a disciplina assim constituída a tarefa de explicar as diferenças entre as diversas sociedades e suas instituições, em especial aquelas pertencentes aos “povos exóticos “ encontrados e dominados no mundo todo, pela Europa. Para cumprir sua tarefa desenvolveu metodologia própria, calcada inicialmente na comparação de relatos elaborados por viajantes, missionários, militares, administradores coloniais etc. e posteriormente naquele obtidos através de observações direta, em trabalho de campo, de profissionais especializados. A questão central da comparação, em torno da qual se organiza o saber antropológico, envolve uma série de problemas delicados e sutis. Na trajetória de sua constituição de muitas maneiras foram respondidas as questões de o quê, como e por quê comparar, Essas respostas se sistematizaram em corpos teóricos e hoje fazem parte do patrimônio da disciplina . O que lhes é comum, no entanto, é que embora dirigida para o conhecimento de outras sociedades, do “ Outro”, a Antropologia é uma ciência européia e 1 Originalmente publicado em Joaquim Falcão (org.) Pesquisa Científica e Direito, Recife, Editora Massangana, 1983, p. 89-116. Republicado em Arquivos de Direito, Nova Iguaçu, Universidade Iguaçu, Ano 2, no. 3, v.1, 1999,p. 223-253. No processo de sua elaboração, o autor agradece à inspiração dos professores Roberto DaMatta e Luiz de Castro Faria (póstumo) do Departamento de Antropologia do Museu Nacional, UFRJ. A este último, especial agradecimento pelas sugestões,empréstimo de material, indicações bibliográficas e estímulos no que diz respeito à discussão aqui empreendida sobre o Tribunal do Júri . Agradeço também a Renato de Andrade Lessa, do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal Fluminense, pelas preciosas indicações no que se refere à tomada de decisões dos jurados e suas implicações políticas mais gerais. Aos Profs. Francisco José dos Santos Ferraz e Marco Antônio da Silva Melo, do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal Fluminense e ao Prof. Augusto F.G.Thompson, da Faculdade de Direito da Universidade Cândido Mendes, meus agradecimentos pelas sugestões, informações e apresentações sem as quais este trabalho não seria possível. Ao Professor Joaquim Falcão, a oportunidade de apresentar, discutir e publicar primeiramente este trabalho.

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POR UMA ANTROPOLOGIA DO DIREITO, NO BRASIL 1

Roberto Kant de Lima

Introdução

Antropologia se constitui como disciplina científica nos quadros do pensamento

social europeu do século XIX em torno,dentre outras,das problemáticas obrigatórias do

“progresso” e da “evolução social”. Competia `a disciplina assim constituída a tarefa de

explicar as diferenças entre as diversas sociedades e suas instituições, em especial aquelas

pertencentes aos “povos exóticos “ encontrados e dominados no mundo todo, pela Europa.

Para cumprir sua tarefa desenvolveu metodologia própria, calcada inicialmente na

comparação de relatos elaborados por viajantes, missionários, militares, administradores

coloniais etc. e posteriormente naquele obtidos através de observações direta, em trabalho

de campo, de profissionais especializados.

A questão central da comparação, em torno da qual se organiza o saber

antropológico, envolve uma série de problemas delicados e sutis. Na trajetória de sua

constituição de muitas maneiras foram respondidas as questões de o quê, como e por quê

comparar, Essas respostas se sistematizaram em corpos teóricos e hoje fazem parte do

patrimônio da disciplina . O que lhes é comum, no entanto, é que embora dirigida para o

conhecimento de outras sociedades, do “ Outro”, a Antropologia é uma ciência européia e

1 Originalmente publicado em Joaquim Falcão (org.) Pesquisa Científica e Direito, Recife, Editora Massangana, 1983, p. 89-116. Republicado em Arquivos de Direito, Nova Iguaçu, Universidade Iguaçu, Ano 2, no. 3, v.1, 1999,p. 223-253. No processo de sua elaboração, o autor agradece à inspiração dos professores Roberto DaMatta e Luiz de Castro Faria (póstumo) do Departamento de Antropologia do Museu Nacional, UFRJ. A este último, especial agradecimento pelas sugestões,empréstimo de material, indicações bibliográficas e estímulos no que diz respeito à discussão aqui empreendida sobre o Tribunal do Júri . Agradeço também a Renato de Andrade Lessa, do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal Fluminense, pelas preciosas indicações no que se refere à tomada de decisões dos jurados e suas implicações políticas mais gerais. Aos Profs. Francisco José dos Santos Ferraz e Marco Antônio da Silva Melo, do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal Fluminense e ao Prof. Augusto F.G.Thompson, da Faculdade de Direito da Universidade Cândido Mendes, meus agradecimentos pelas sugestões, informações e apresentações sem as quais este trabalho não seria possível. Ao Professor Joaquim Falcão, a oportunidade de apresentar, discutir e publicar primeiramente este trabalho.

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ocidental basicamente comprometida com os pontos de vista de sociedade onde se tornou

necessário sua constituição.

A prática sistemática da comparação levantou desde logo o problema das categorias

do discurso antropológico, comprometidas com as línguas e instituições ocidentais e por

isso alvo d permanente suspeição de incapacidade de operar convenientemente a tradução

do “Outro” .Da discussão surgiu uma permanente consciência crítica da disciplina sobre

seus próprios produtos intelectuais, que acaba por caracteriza-la e apontar-lhe papel da

maior relevância metodológica no seio das Ciências Sociais.

As vicissitudes e avanços do método comparativo acabaram por permitir que a

Antropologia assuma integralmente seu papel: utilizando-se do conhecimento das

diferenças entre as sociedades humanas,”estranhar”sua própria sociedade,descobrindo nela

aspectos inusitados e ocultos por uma familiaridade embotadora da imaginação

sociológica. Ao compreender que o discurso comparativo é um discurso fundamental

valorativo,enunciado por um sujeito preso a um sistema de valores (o antropólogo) sobre

um sujeito também enredado em um sistema de valores (o “objeto” de estudo), a

Antropologia pode afirmar sua natureza crucialmente interpretativa, separando-se

definitivo das Ciências Naturais, preocupadas em descobrir leis que expliquem

regularidades observadas.

A imensa diversidade de costumes encontrados em suas investigações permitiu á

Antropologia o exercício crítico da construção de seu objeto teórico16. A arbitrariedade dos

fatos culturais liberta a reflexão antropológica dos liames da “Natureza”, percebida e

reencontrada em tão diversas formas e definitivamente classificada como invenção da

“Cultura”. O domínio do “natural” fica restrito apenas aos fenômenos biológicos comuns

aos indivíduos da espécie humana. É apenas a base comum que nos permite a ousadia de

tentar entender tão fortes distinções e afirmá- las compreensíveis e comparáveis. Os

fenômenos de que se ocupam as Ciências Sociais são de outra ordem,aqueles que

significam e , portanto, aqueles que dizem respeito à vida humana em sociedade, fundada

na heterogeneidade e na oposição. Assim, é possível apreender que a “ Economia” nada

tem a ver com o estômago, a “Religião”,nada a ver com o espírito, a “Política”nada a ver

com o Estado, o “Parentesco”,nada a ver com instintos naturais, relações” de sangue” ou

sexuais,o Direito,nada a ver com Códigos ou tribunais.

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A armadilha, no entanto, está posta: como pensar outras sociedades em termos

comparativos senão em termos dessa compartimentalização inventada por nós para pensar

nossa vida social dividida nesses domínios definidos? Fica clara a impossibilidade de

resolver o dilema da Antropologia em seus termos de nossas categorias, mas pode-se

melhor entender nossas categorias e nossa sociedade ao perceber como elas são exclusivas

e arbitrárias, ao invés de “gerais” e “naturais”. Cumpre-se a vocação primeira da

Antropologia oculta por tanto tempo em seus disígnios explicitados de conhecimento do

“Outro”. Com a Psicanálise tradicional ela forma os limites do conhecimento que se

instituiu em torno do Homem ,embora com opostas trajetórias: A Psicanálise procurando o

conhecimento do “Eu” para entender o “Outro”, a Antropologia buscando o conhecimento

do “Ouro” para entender a si mesma.

Tais reflexões tornam-se possíveis condicionadas por fatores muitas vezes

independentes das correntes teóricas centrais da disciplina. A formação de quadros de

Antropólogos profissionais nas sociedades periféricas aos núcleos de produção do saber

científico impôs tarefas das mais difíceis a essas profissionais, pois a Antropologia

evidentemente não conseguiu produzir nenhum estudo etnográfico de peso sobre a própria

Europa ou os Estados Unidos. Isso faz com que a medida e o padrão ocultos da

comparação, tão “natural” para as sociedades centrais, seja inexistente para quem tem sua

origem cultural nas sociedades periféricas. Há que constituir um espaço teórico que

viabilize a conjunção do saber antropológico com o saber nativo através de seu produtor,

ele mesmo antropólogo-nativo. A relação sujeito-objeto de conhecimento, já complicada

na Antropologia porque seu objeto é também um sujeito de valores, complica-se ainda

mais quando o sujeito-antropólogo pertence ao sistema nativo e sua tarefa é produzir um

discurso por todos compreensível.

Os problemas que se colocam para a disciplina antropológica continuam

extremamente excitantes e traçar-lhe a trajetória futura é sempre arriscar o incógnito e a

surpresa. A tarefa se impõe, no entanto, ainda mais devido ao papel crítico desempenhando

por esse saber frente às outras disciplinas das Ciências Sociais .

A Tradição Antropológica e o Estudo do Direito :

Como já foi apontado, o estudo dos “compartimentos”(Economia, Religião,

Parentesco, Política, Direito, etc.) foi estendido à investigação de outras sociedades onde

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sempre se procurou identificar instituições e práticas semelhantes às nossas.Esse

processo,mais ou menos velado,mais ou menos etnocêntrico, oculta sistematicamente um

dos pólos da comparação: a sociedade do observador, seus valores e instituições. A rigor,

não se trata de um esforço de conhecimento,mas de re-conhecimento, de observação de

possíveis reflexos do observador no observado. A reação ao não encontrar o “mesmo” é

sempre valorativa-negativa: ou contra a sociedade do observado, apontada como “

pervertida” e “ impura” diante de supostas inocências e “ naturalidade “ perdidas.

O recapitular da trajetória antropológica no estudo do Direito passa por extensa

enumeração e crítica de trabalhos de variada tradição intelectual em especial aqueles

realizados na França, Alemanha, Inglaterra e Estados Unidos. Não é meu objetivo aqui

enumerá-los, catalogá-los e criticá-los exaustivamente. Aqueles que por essa tarefa se

interessem devem consultar algumas resenhas disponíveis(Nader, 1965; Moore, 1978).

Meu objetivo será fazer uma reflexão metodológica, a “ posterior “, sobre algumas das

tendências que se verificaram na especialidade, no intuito de obter material que possibilite

a formulação de sugestões para seu possível desdobramento.

O início das reflexos antropológicas sobre o Direito verifica-se nos quadros do

evolucionismo social do século XIX (Maine, 1861; Bachofen 1861; Maclennam, 1865;

Durkheim, 1893). Tal perspectiva teórica, mais ou menos nítida de acordo com tendências

intelectuais individuais, caracteriza-se por atribuir ao tempo a responsabilidade por

transformações necessárias vistas como “ estágios” de evolução social. Mais ou menos

oculto nessa perspectiva, dependendo do autor, está o fato de que no topo da escala

evolutiva situam-se sempre formas “ superiores” e “complexas” de organização social

encontradiças na sociedade do observados.

Exemplo quase caricatural dessa tendência teórica pode ser encontrado no texto de

Morgan sobre a “Sociedade Primitiva”, vulgarizado por Engels em seu trabalho sobre as

origens da família , da propriedade privada e do Estado (Morgan, 1877; Engels, 1884,

Leacok, 1978;). Morgan imagina a Humanidade evoluindo em uma única linha evolutiva

que pode ser dividida em estágios denominados de “selvageria”, “barbárie” e “civilização”,

cada um deles dividido em inferior, médio e superior de acordo com característica

tecnológicas distintas,escolhidas, obviamente, por Morgan. No topo do esquema evolutivo,

a “civilização superior”, estava “naturalmente” a sociedade vitoriana do século

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XIX,monoteísta, parlamentar, monogâmica, capitalista, contratual e claro, conhecedora e

apreciadora das teorias do autor. No estágio mais “baixo” estava a “ selvageria inferior”,

que era exatamente o oposto disso, caracterizando-se por “promiscuidade

sexual”,”comunismo primitivo”,”anarquia” política e jurídica,”supertições”, incoerentes

etc. É evidente que nunca nenhum evidência empírica foi encontrada da existência dessas

formas desorganizadas de vida humana em sociedade.

O esquema se revelou absolutamente fantasioso na medida em que foram ficando

disponível mais e mais informações sobre as sociedades ditas “primitivas”,em que ficou

patente a necessidade de, no mínimo, proceder-se à criação de vários esquemas evolutivos

para dar conta da diversidade do desenvolvimento das culturas e sociedades humanas. A

utilização do critério tecnológico como redutor da as demais esferas das relações sociais,

admitindo-se, de início, que à simplicidade tecnológica correspondem simplicidades

políticas, jurídicas, religiosas,de parentesco, etc., também não sustentou. Sem entrar na

discussão de que a técnica se mede por sua eficácia e adequação a contextos dados e não

por sua sofisticação, encontraram-se sistemas culturais de extrema complexidade e

sofisticação(como o parentesco australiano, por exemplo) aliados a economias de

tecnologia considerada não sofisticada e”primitiva” (mas eficaz...) como é a dos aborígines

australianos . O que ficou desta perspectiva, algumas vezes rotulada de “evolucionismo

unilinear do século XIX”ou de “falso evolucionismo “ (Lévi-Strauss, 1960), foi a certeza

das dificuldades em se tentar estabelecer linhas gerais que dêem conta da evolução

supostamente uniforme de todas as sociedades, ou da “Humanidade”, como foi possível

estabelecer no campo da Biologia em relação à espécie humana. Na mesma medida em

que se acentuou a unidade psíquica do homem, considerando-o genericamente apto a

atingir os diferentes “ estágios” evolutivos, acentuou-se o vínculo entre as diferentes

instituições e domínios das relações sociais, embora considerando-as erroneamente como

interligadas de maneira necessária e sucessiva.

A questão fundamental na Antropologia do Direito nesse quadro, teórico era como

descrever e classificar as diferentes formas de controle social bem como descobrir a

origem e leis de seu desenvolvimento. O modelo do falso evolucionismo quando

empregado nesta tarefa opera duas reduções arbitrárias: a primeira, de ordem especial,

colocando o espaço europeu no espaço dos outros continentes; a segunda, temporal, ao

tornar civilizações e sociedades contemporâneas no passado europeu, negando-lhes,desta

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maneira, a História. Os costumes, culturas, regras de conduta, diferentes da sociedade

européia são o “ Outro”, o “Exótico”, o “Estranho”, a quem não se reconhece o direito de

existir diversamente. Toda a diferença é reduzida temporal e espacialmente em um

processo de re-conhecimento de reflexos de uma mesma sociedade, identificada como

detentora da única Humanidade possível.

Herdeiros intelectuais e sofisticados dessa perspectiva são os esquemas

evolucionistas multilineares, que estabelecem tipologias distintas de evolução social para

diferentes grupos ou tipos de sociedades. A par da insistência na redução tecnológica para

definir a evolução, essas perspectivas estão em geral associadas intimamente às categorias

e instituições de nossa sociedade . As coisas, afinal, sempre evoluem do simples para o

complexo, sendo simples o que é “indiferenciado”, “homogêneo”,”descentralizado”,”não-

especializado”, etc.

Assim são sistematicamente construídas as tipologias que apontam para o crescente

“progresso” das sociedades no sentido da especialização de suas funções jurídicas, como é

o caso daquelas em que podem ser encontrados mediadores, árbitros, juízes, tribunais,

códigos, etc.(Diamond,1935,1951,1965;Hoebel,1954;Gulliver,1963; Bohannan,1957,1965,

1967). Como aponta Clastres sobre a discussão da origem do Estado na Antropologia

Política, continua-se a lidar das “ausências” para as “presenças” no próprio idioma da

disciplina (Clastres, 1974). O pensamento social, encarregado da tarefa de descobrir,

classificar e comparar o exótico, reproduz em suas categorias a fala do etnocentrismo. À

semelhança de nossos descobridores, que vêem nossos “índios” apenas “sem lei nem rei”

apesar de seus vinte mil anos de civilização, qualificam-se sempre as sociedades diferentes

de “simples”e “ primitivas” por definição e obrigação, imputando-lhes as ausências:

sociedades sem Estado, “sem escrita”, “sem instituições jurídicas especializadas”,etc.

O método antropológico traz suas surpresas, no entanto. Eis que a princípio a

maioria das informações disponíveis sobre sociedades “não européias” eram catalogadas

por não especialistas, em geral envolvidos de alguma forma com a sociedade descrita em

virtude de suas ocupações como missionários, militares, viajantes, administradores

coloniais, etc. A constituição da Antropologia como um campo legitimado do saber social

vai tornar possível a transferência desta tarefa para antropólogos profissionais.

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O catálogo dessas “ausências” vai então ser preenchido por observação direta, “in

loco”,quase sempre longa, participante e envolvente, que tem fundamentalmente a

conseqüência genérica de transformar esse “Outro” exótico em algo cotidiano e familiar.

Teoricamente, a conseqüência é a incorporação das teorias sociais nativas ao discurso

antropológico, até mesmo como pano de fundo para considerações de ordem mais geral

que envolvem a sociedade do observador.

A marca dessa reflexão é a compreensão da inter-relação dos fenômenos sociais,

que não podem ser explicados separadamente, atomizadamente, mas devem sempre ser

referidos a seu contexto e significação específicos. Sem abandonar as categorias em que

compartimentalizamos nossa sociedade, passa-se a reconhecer a funcionalidade e a

interdependência dos fatos sociais. O direito aparece como um caso privilegiado de

controle social, não só para reprimir comportamentos indesejáveis mas também como

produtor de uma ordem social definida. A instância jurídica não só reprime, mas produz

(Malinowski, 1922, 1926, 1942; Radcliffe-Brown,1952).

A percepção da diferença, entretanto, leva freqüentemente este tipo de reflexão a

dilemas insolúveis: Um deles, a constratação teoricamente inútil de que as coisas em uma

sociedade “funcionam” de uma determinada maneira, embora diferentemente em cada uma

delas, o que apenas nos garante que as sociedades têm estratégias próprias de reprodução.

A garantia da especificidade é, no entanto, inibidora da generalização. Descamba-se muita

vez em um relativismo radical que implica em admitir a impossibilidade do saber

antropológico pela inviabilidade da comparação entre heterogeneidades irredutíveis

(Bohannan, 1957, Gluckman, 1965). Tais posturas algumas vezes até mesmo parecem

ignorar o fato de que nas raízes do saber antropológico está a dominação política dessas

sociedades, que é preciso melhor conhecer para melhor controlar. Acobertados na razão

instrumental, prática, em que tudo é “ útil” quando “ funciona”, confundam-se os objetos

de análise, nas Ciências Sociais voltados para a interpretação de significados somente

possíveis na diferença e não para a descoberta de regularidades e semelhanças organizadas

em tipologias, infinitamente ameaçadas por sub-categorias da diversidade, como em

imensa coleção de borboletas. O “Outro” resgata sua identidade às cultas de uma diferença

irredutível que nada nos pode ensinar. Na esteira dessas reflexões etnocêntricas e

colonialistas estão as tentativas de “ preservação dos objetos de “ pesquisa” em seu “

estado natural “, a saber, as sociedades e costumes “ primitivos” e “ tradicionais”, como se

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o próprio reconhecimento e instituição de sua existência não fossem já sua incorporação e

utilização. Como se a “invenção” dessas sociedades como objeto de poder-saber já não

fosse a antecipação de sua dominação.

O aprofundamento metodológico da questão da comparação leva a outros caminhos

o problema da diversidade. Após tornar o “exótico”, semelhante, mas “primitivo”, para

depois torná-lo familiar, mas “diferente”, há que tornar o familiar, exótico, e finalmente

realizar em sua plenitude a proposta do saber antropológico de contemplar-se com os olhos

do outro, implodindo, definitivamente, a “Natureza” na “Cultura”. A diferença é um

artefato heurístico vivido em fenômenos específicos e experimentado de maneira intensa

nessa operação da experiência para o conhecimento. O processo de produção do saber é

uma eterna segmentação de um “Sujeito”, que torna sempre possível mais uma divisão,

produtora de diferença e de oposoções significativas, passíveis de novas interpretações. A

“Humanidade” originalmente objetificada, após diluir-se em infinitas combinações de

“sociedades”, recupera-se na instância do específico, da construção da interpretação

daquilo que é apenas e sempre mais uma de suas alternativas viabilizada concretamente.

A própria sofisticação da técnica antropológica na construção de seus objetivos

concebidos como manifestações que se atualizam de maneira particular em certos lugares,

de onde as sociedades se oferecem melhor à compreensão,permite a discussão mais rica em

termos da questão da generalização sociológica. Embora estudando um lugar em que

método o leva a trabalhar em “pequena escala”, não é esse o seu “objeto” embora como tal

muitas vezes fosse tomado. Não está ali estudando “um sistema de parentesco”, “um

sistema jurídico”, “uma comunidade”, sobre os quais enunciará um discurso limitado pela

sua “pouca” capacidade de generalizar. A passagem da quantidade à qualidade não é

empírica, mas teórica. É porque está estudando “em um tribunal”, com experiências

específicas e concretas, estabelecendo relações que se podem exprimir em “casos” e a

partir deles, é que a experiência qualitativa da Antropologia é geral e desvendadora da

capacidade das generalizações ocas e das especificidades rasteiras.

É assim que a Antropologia volta seus olhos para formas de Direito das”sociedades

complexas”, munida de toda essa trajetória crítica. Incrementa-se o exercício da diferença

dentro da própria sociedade, refundo-se as classificações sempre etnocêntricas a que está

submetida em sociedades modernas, urbanas e industriais, divididas ou não em classes

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sociais. Refutam-se os abjetivos de “tradicionais”, “primitivos”, “ embrionários”, para

rotular as formas dominadas de saber existentes nas “sociedades complexas”; mostra-se

dinâmica da complementaridade e a lógica paradoxal da construção das identidades em

sociedades divididas. Questiona-se o mito da centralização e progressiva racionalização

das práticas do poder, que oculta sua capacidade de inscrição e homogeneização de

unidades sociais, súbita e surpreendentemente identificadas com “indivíduos” erigidos em

sujeitos de direitos e obrigações. Põe-se a nu os paradoxos encerrados na percepção do

Estado como “organizações” e sua imagem de todo homogêneo e centralizador: quanto

mais complexa a sociedade, tanto mais centralizada, mas tanto mais camadas de regras, e

mais adjacentes, numerosas e diversas as jurisdições, instâncias e campos autônomos. À

aparência de centralização e controle racional corresponde uma efetiva delegação no

governo e na administração, constituindo-se mais áreas de discrição e semi-autonomia mas

assim constituídas subpartes da sociedade, sejam formalizadas ou informais.

Acima de tudo, entretanto, o olhar antropológico é crítico e impiedoso com seus

próprios produtos intelectuais e aqueles das suas companheiras Ciências Sociais. A

permemente etnografia de seu próprio conhecimento, o desvendamento das categorias que

organizam seu saber e sua sistemática implosão são os objetivos definitivos da

Antropologia, enquanto disciplina científica.

A Contribuição da Antropologia para a Pesquisa Jurídica no Brasil

A tradição antropológica prima, como se viu, por incorporar aspectos de seu objeto

de estudo a suas reflexões teóricas. Tal tarefa se realiza no plano prático pelo utilização do

método etnográfico, cujo ponto ecentral é a descrição e interpretação dos fenômenos

observados com a indispensável explicitação tanto das categorias “nativas” como aquelas

do saber antropológico utilizado pelo pesquisador. Tal método pode exercer-se não só

sobre fenômenos sociais de que participa diretamente o observador como também sobre

quaisquer produtos culturais de uma dada sociedade, oque inclui tanto discursos orais

como escritos. A convivência e participação na vida dos grupos costuma-se denominar de

“observação participante”. O fato de que a Antropologia tenha privilegiado sociedades de

tradição oral (“sem escrita”...) fez com que esse aspecto do método etnográfico fosse

privilegiado, em especial nas tradições Inglesa e Americana do Norte.

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Mas a reflexão etnográfica sobre textos tem também sue lugar no saber

antropológico, o desvendar de sua lógica e das categorias centrais que o organizam,

acompanhamento ou não de observação participante, tendo sido objeto de especial atenção

por parte, por exemplo, de Marcel Mauss e seus discípulos. Em ambas as situações,

entretanto, a boa técnica é a mesma: utiliza-se o familiar para estabelecer diferenças e dele

descobrir significados insuspeitados, que aparecem por contraste onde haviam sido

confundidos pelo olhar opaco da familiar idade cotidiana.

A contribuição que se pode esperar da Antropologia para a pesquisa jurídica no

Brasil será evidentemente vinculada à sua tradição de pesquisa. Desde logo há a advertir

que o estranhamento do familiar é um processo doloroso e esquizofrênico a que

certamente não estão habituadas as pessoas que se movem no terreno das certezas e dos

valores absolutos. A própria tradição do saber jurídico no Brasil, dogmático, normativo,

formal, codificado e apoiado numa concepção profundamente hierarquizada e elitista da

sociedade, reflita numa hierarquia rígida de valores autodemonstráveis, aponta para o

caráter extremamente etnocêntrico de sua produção, distribuição, repartição e consumo.

Constitui-se, mesmo, o “mundo do Direito” em domínio afirmado como esfera à

parte das relações sociais, onde só penetram aqueles fatos que, de acordo com critérios

formulados internamente, são considerados como jurídicos. Essa identidade formal do

objeto a que devo dirigir minha reflexão tam conseqüências imediatas. É evidente o fato de

que seus contornos nítidos apontam para facilidades empíricas na definição preliminar de

meu campo de análise, como representado pelo “nativos”: o Direito é ensinado em

Faculdades de Direito, que usam tratados didáticos sistemáticos em que se inscreve seu

saber e formam profissionais que praticarão atividades classificadas de jurídicas, em

lugares também determinados e específicos, como tribunais, delegacias, cartórios, etc. A

essa aparente facilidade se opõe, de imediato, a questão de que essa nítida definição de

limites não pode ser tomada ao pé da letra se quero exercer coerentemente a observação

antropológica: se as agências específicas tratam do Direito, elas não tratam, certamente, só

do Direito. É óbvio que os profissionais do Direito estabelecem uma teia de relações entre

si e com os grupos que os circundam, que as Faculdades se ligam a ministérios, que os

Cartórios e Delegacias não são apenas instâncias “auxiliares” do “Poder Judiciário”, etc.

Impõe-se também raciocínio inverso. A experiência antropológica ensina que o Direito é

parte do controle social, que reprime mas também pedagogicamente produz uma ordem

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social definida, embora freqüentemente desarmônica e conflituosa. Se o estudo dos

Tribunais e demais agências especializadas não é só o estudo do Direito, o estudo do

Direito também não se no estudo dessas agências especializadas. Mais: é inútil tentar

compreendê-las sem contextualizá-las.

Preliminar à investigação é também a própria representação que o Direito tem em

nossa sociedade. O que ele representa para a sociedade brasileira, quais são as expectativas

que se tem em relação a seu significado e papel e aos das instituições judiciárias em geral?

O Direito, também, não pode ser visto como um saber monolítico. Ele estará

necessariamente fragmentado em diferentes codificações substantivas e processuais,

descobertas atrás de uma aparente homogeneidade: os princípios que informam o Direito

Fiscal, Tributário, Trabalhista, Penal, Comercial, não são os mesmos, nem se aplicam nos

mesmos contextos, Tribunais e casos concretos. Cada domínio destes aglutina diferentes

saberes eventualmente incompatíveis. O mito da coerência e sistematicidade do Direito

serve a sua instituição como saber dogmático e fonte de poder.

O problema de que o direito de uma sociedade capitalista tem características

comuns a todos os Direitos de todas sociedades capitalistas, em especial àquelas que

apresentam configurações jurídicas semelhantes, não frustra meu ímpeto antropológico.

Pelo contrário, o , discurso da antropologia é sempre ancorado em uma experiência

específica, onde se descobrem aspectos inusitados dos significados sociais que se quer

interpretar. Se o fato de por estarmos estudando em uma sociedade capitalista e dependente

um Direito adequado a essas condições gerais não pode ser ignorado, não se deve recusar o

conhecimento de suas especificidades para melhor exercitar nossa tarefa sociológica (Da

Matta, 1979, especialmente Introdução).

Minha reflexão passará a se desdobrar em torno de três eixos, procurando apontar

para a perplexidades que nos esperam no decorrer de uma etnografia: o primeiro deles, a

questão do saber jurídico, como se constitui e reproduz na Brasil; a segunda, a questão da

aplicação desse através de instituições e práticas especializadas; a terceira, a questão da

relação entre esse saber jurídico e sua aplicação e os outros saberes jurídicos

eventualmente existentes na sociedade e por eles dominados, onde se coloca basicamente o

problema do acesso ao Direito.

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Os dados utilizados provêm de minha experiência como aluno e bacharel em

Direito (1964 – 1968), de uma curta experiência de campo no Pará (1977) e de dados

recolhidos em pesquisa de campo que realizo atualmente no Estado do Rio de Janeiro

desde setembro de 1981. Como pano de fundo atua certamente minha recente permanência

nos estados unidos, que me serve de padrão de contrate (1979-1981).

Quanto à questão do saber jurídico, é preciso primeiro defini-lo não como saber

restrito e especializado a ocupar espaço limitado dentro da sociedade brasileira, ma como

saber que se difunde e pervague todas suas esferas e camadas sociais, enquanto sistema de

representações sobre a sociedade, seus fundamentos e seu modo de existência e operação.

Nesse sentido constitui-se em representação consensual, em termos formais, dos formatos

que organizações em geral devem incorporar, por exemplo, desde times de futebol a

empresas públicas. A manipulação técnica desse saber pertence a uma hierarquia de

especialistas que com maior ou menor eficiência “explicam” o arcabouço jurídico em que

estamos envolvidos em nossas atividades cotidianas.

Conseqüência imediata dessa situação é o sentimento comum de que a ordenação

de nossas atividades não é algo passível de surgir de um consenso imediato entre os

diretamente interessados, que contratualmente estabeleçam regras para sua convivência,

mas deverá sempre ser fruto de uma “adequação” a desconhecidas fórmulas legais para que

possa ter eficácia. Por isso esse saber é um poder difuso mas nem por isso menos eficaz em

produzir conteúdos e orientações formais para a ação social de uma maneira geral. Seu

exercício é instrumental e formal em sua capacidade de agregar conteúdos aparentemente

contraditórios em torno de eixos de significação específicos, destinados a “resolver”

paradoxos observados em casos particulares. Incorpora facilmente outros saberes,

atualizando-se, sem perder suas propriedades fundamentais, que não residem

exclusivamente em seu conteúdo mas nas formas de sua utilização como poder.

Sua impregnação na sociedade brasileira, que se representa legalista e formal,

evidencia-se em nossa prática social densamente povoada de normas, regulamentos, artigos

e parágrafos que pairam em existência ainda mais ameaçadoras a nossos desígnios

imediatos porque contraditórios, difusos, desordenados e implícitos. Há sempre a

possibilidade de que desconheçam normas (em geral, de formal e “obrigatório”

conhecimento de todos) que possa ser subitamente invocada para nos impedir (ou

Page 13: Por Uma Antropologia Do Direito

13

favorecer ....), uma atividade muitas vezes corriqueira e diuturnamente repetida. Nossa

única possibilidade de sucesso, então, deixa de repousar em nossa única possibilidade

individual e coletiva, para deslocar-se sistematicamente para a habilidade e prestígio de

nossos patronos do momento, capazes de sempre e sistematicamente “controlar” a

situação, mas dificilmente de fazer valer nossos direitos.

Essa prática geral, que poderíamos rotular de clientelística e hierarquizante em

nosso cotidiano,pode ser observada em sua produção e reprodução nas instituições

“jurídicas” de maneira geral e , em especial, nas Faculdades de Direito. Esse é o lugar por

excelência da instauração e constituição explícita desse saber e de suas formas de

operação. Por essas instituições e por seu processo socializador passam, no Brasil não só os

profissionais do Direito, como juízes, advogados, promotores e juristas, mas também

delegados, escrivães, policiais, funcionários públicos, donas de casa, empresários,

políticos, enfim membros os mais diversos das camadas dominantes e dominadas da

sociedade, que ali vão em busca de “status” e reconhecimento social em seus respectivos

grupos de referência. Mas, se o obtém, será sempre às custas da iniciação nessas práticas

dogmático-formais de representar a sociedade ideal como um conjunto de lógicos em

harmonia com razão, que detém, em princípio, um conhecimento definitivo sobre as

origem e o conteúdo das formas de vida humana em sociedade.

Na prática, essa socialização se complementa tecnicamente no cotidiano do

exercício profissional, mais ou menos bem sucedido de acordo com as posições que se

consiga ocupar em uma estrutura hierarquizada e corporativa que é como se representam

organizadas as profissões jurídicas. A Faculdade, sempre “acusada” de ineficaz para o

ensino da “prática do direito”, cumpre eficazmente seu papel de socializar, iniciar,

consagrar e ampliar para além da esfera propriamente jurídica as representações

consensuais ali apresentadas como parte de uma “Ciência do Direito”.

O saber assim produzido será a base na qual se fundamentarão leis, regulamentos,

sentenças e acórdãos judiciais, pereceres e projetos políticos, inclusive aqueles de ordem

constitucional, assim como a chamada doutrina – princípios básicos que orientam a prática

supostamente técnico-jurídica. Mas também será a base em que serão exercidas atividades

“extra-jurídicas”, como as policiais, de serviços públicos e particulares, de associações e

organizações particulares, consciente ou incoscientemente.

Page 14: Por Uma Antropologia Do Direito

14

A forma de instituição desse saber implica em aparente distanciamento formal da

realidade social, que tem que ser atingida por sucessivas operações de redução lógica a

suas configurações normativas. É a realidade que se deve adaptar, em cada caso, ao

Direito. O que nos coloca diante da legitimidade dos processos de constituição dessas

representações. Cabe a nós antropólogos explicitar os mecanismos que informam as regras

de operação desse saber.

Para demonstrar como percebo operando a relação entre o conteúdo desse saber e a

legitimação de práticas sociais em nossa sociedade, deverei exemplificar com duas

situações em que o saber jurídico, através de princípios doutrinários, se inscreve em

instituições judiciárias e recusa o que explicitamente se propõe, regular “juridicamente” o

comportamento social através de regras gerais a todos aplicáveis, fundamentadas em

princípios explícitos. Ao dar tais exemplos pretendendo contribuir para uma explicitação

do tipo de contribuição que a Antropologia pode dar à pesquisa jurídica, tornando

conscientes processos que se ocultam atrás de formalismo que apenas podem servir ao

reforço do arbítrio e da exploração em nossa sociedade. Autores e situações citadas,

portanto, são aqui considerados como representativos de uma situação geral, nenhum

propósito havendo além do interesse acadêmico na interpretação de nossa sociedade, na

exposição e discussão nesse doloroso processo de estranhamento.

O primeiro exemplo dirá respeito à área de parentesco, por guardar íntima relação

com a tradição de estudos de minha disciplina. Na Antropologia Social se estabeleceu em

definitivo a convicção de que o parentesco é um fenômeno social, que diz respeito à

organização de grupos dentro da sociedade, em termos de direitos, obrigações, atitudes,

residências, alianças, inclusão e exclusão de membros. Nada tem a ver, portanto, com

“instintos individuais” ou com “leis naturais” (Lévi-Strauss, 1959, entre vasta

biblliografia).

Mas em consagrado texto de Filosofia do Direito, largamente utilizado nas cadeiras

de “Introdução à Ciência do Direito”, obrigatória no currículo das faculdades, como

comprova sua 26a. edição de 1980, encontra-se exposição sobre a “origem da família”. O

autor faz referência, sem contextualização cultural alguma, a casos de “promiscuidade”

entre melanésios para exemplificar supostas divergências entre antropólogos e sociólogos

quanto ao “estatuto originário das relações sexuais na espécie humana”, (Lima, 1980:17).

Page 15: Por Uma Antropologia Do Direito

15

Segundo ele, alguns alguns admitem a existência de um alegado estado de

“promiscuidade” e “comunismo sexual” anterior à constituição da família, como Gunther,

( autor que não merece nenhuma indicação bibliográfica assim como todos os demais,

impossibilitando qualquer tentativa de conferência, contextualização e discussão

acadêmica de suas afirmações, tomadas dogmaticamente, portanto), enquanto outros (sem

indicação) afirmariam o “patriarcado” como mais antiga forma de família. Está fornecida e

estabelecida a fórmula evolucionista de pensar a instituição familiar em termos de

organização de suas regras. Após dissertar sob formas de casamento poligâmicos, o autor

volta a fazer citações. E os autores escolhidos são Westermarck e Briffault, o primeiro

afirmando a existência de um “instituto monogâmico” enraizado na natureza humana e o

segundo, que estabelece em relações transitórias e “promíscuas” os aspectos

predominantes das relações entre os sexos no “estágios inferiores da cultura” (Lima, 1980).

Outro tratadista, especialistas em Direito de Família, ensina que o parentesco

“natural” decorre apenas da consangüinidade, sendo pai e filho, por exemplo, “parentes

naturais”; seu parentesco foi criado pela própria natureza, através do sangue (Monteiro,

1964: 242) Os vínculos sociais e os direitos e obrigações jurídicas que decorrem da relação

de parentesco, estritamente sociais, parecem ter sua legitimação na Natureza. Numa

suposta natureza humana encontram também justificação os estabelecimentos arbitrários

das várias idades em que se adquire a responsabilidade civil e a habilitação para a plena

capacidade jurídica.

Na prática, o que esse saber faz é veicular certas representações, oriundas de

concepções acríticas dos fenômenos sociais, de maneira dogmática. Como é esse saber que

vai ser invocado na confecção das leis, e preencherá as justificativas que serão

apresentadas em juízo, ele tenderá a reproduzir concepções etnocêntricas e ultrapassadas

das instituições sociais. Mais que isso, ele é ensinado hoje, nas Faculdades, como atual e

base para a realização da finalidade do Direito como habitualmente definido: campo de

estabelecimento do dever social.

Entretanto, a operação dessas premissas de conteúdo discutível não se constitui nem

ao menos em regra geral pela qual podemos orientar nosso comportamento, estejamos ou

não de acordo com ele. Pois, se um pai ajuíza uma causa para livrar-se do pagamento de

pensão ao filho, por este ter atingido a maioridade, o filho, embora parte sociológica e

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16

crucialmente envolvida no processo, dele não é parte legítima, formalmente falando, pois o

pacto que estabeleceu pensão foi firmado entre mulher e marido, na minoridade do filho.

Embora se comprovando a necessidade da pensão a despeito da maioridade, o argumento

formal prevaleceu, sendo decidida favoravelmente ao pai a causa, realmente ajuizada no

Estado do Rio de Janeiro em 1982.

Onde, então, buscar a legitimidade das regras capazes de assegurar orientação

segura para este domínio supostamente “natural” do parentesco, que em nossa sociedade se

apresenta, por isso mesmo, como de domínio do Direito Público, regido por normas rígidas

e não contratuais? Pois a característica desse saber é também ser impermeável ao exame

concreto e empírico das condutas, a pretexto de dirigi-las. Assim, uniões que não se

realizam segundo as “formalidades legais” também não são admitidas ao Direito em suas

condições particulares, pois estas fazem parte de um elenco limitando, de enunciação

restrita. “ Contratos de casamento” que pude manusear no Pará, em que estipulam

condições para uma vivência temporária de um casal com explicitação de deveres e

direitos mútuos e compreensíveis para ambos os contraentes, inclusive no que diz respeito

a serviços sexuais, econômicos e sociais a serem prestados por ambos os cônjuges, são

elaborados e “registrados” em cartórios ou escritórios de advogados. Servem para fundar

relações duradouras e explicitamente controladas pelas partes, uma vez que renovam ou

não periodicamente o pacto, alterando-o ou não. A garantia da vigência, entretanto, é de

ordem puramente social, constituindo-se em geral em impedimento de contrair novo pacto

na comunidade em virtude de perda da credibilidade da parte inadimplente. Eis aqui um

novo significado contratual de que não só à realidade social mas também a sua suposta

finalidade reguladora. Na prática, os contratos são incorporados sempre de maneira

implícita e sub-reptícia, às discussões e conflitos que originam. Não podem, no entanto,

aparecer explicitamente como prova ou indício no processo. Fica, de novo, inteiramente no

arbítrio dos agentes processuais sua consideração ou não.

O formalismo processual, portanto, só contribui para prolongar o arbítrio e o clima

de permanente ilegalidade que se respira em toda a sociedade brasileira, oriundo longínqua

e provavelmente de um espírito fiscalista do Império português, mais recentemente

atualizado em termos de nossa triste tradição de regimes republicanos de execução.

Page 17: Por Uma Antropologia Do Direito

17

Meu segundo exemplo refere-se mais explicitamente ao trabalho que atualmente

desenvolvo sobre o júri no Brasil.

As representações sobre a instituição do júri destacam sempre sua característica de

“Instituição democrática”, em que o “povo” participa das decisões judiciais,

“humanizando” a lei. As suas decisões devem, por isso mesmo, ser obtidas através do

compromisso dos jurados, como forma reconhecida de exercício democrático e de

legitimação de instituições e normas jurídicas. Não seria muita ousadia afirmar que o júri

no Brasil reflete, conscientemente, em sua organização, nossa idéia de democracia. Tal

hipótese é reforçada pelo acirramento das polêmicas que tem suscitado, desde sua origem,

a instituição e suas práticas,inclusive aquelas originadas em sua omissão da Constituição

de 1937 (Franco, 1956).

O que demonstrarei é que o júri brasileiro se organiza e toma suas decisões de

acordo com normas e práticas associadas a certo saber jurídico, fundado em determinadas

concepções do século passado, que se atualizam através da legislação e práticas judiciais.

Para os propósitos desse trabalho tomarei apenas normas e práticas relacionadas à

incomunicabilidade dos jurados e à constituição de uma lista anual pelo juiz, de onde são

sorteados aqueles que vão assim servir.

Nas disposições dos artigos 458, parágrafo 1º e 476, do Código de Processo Penal

Brasileiro, encontram-se as disposições sobre as fórmulas prescritas para tomada de

decisão dos jurados, que incluem o instituto da incomunicabilidade. No art. 439 do mesmo

Código encontra-se a regra para a elaboração das listas de jurados.

No art. 458, parágrafo 1º, lê-se que o juiz advertirá os jurados de que uma vez

sorteados, não poderão comunicar-se com outrem, nem manifestar sua opinião sobre o

processo, sob pena de exclusão do Conselho e multa, de quatrocentos a mil cruzeiros.

Informantes solicitados a esclarecer o significado desse artigo, ligados às tarefas do júri,

foram unânimes em afirmar, que esta é a maneira de preservar os jurado de eventuais

influências que possam interferir em seu julgamento. Resulta, na prática em seu

confinamento ao recinto do Tribunal do Júri pelo período que durar o julgamento, muitas

vezes prolongado por dias seguidos. Um comentarista consagrado faz referência à

“severidade” dessa medida em relação a outras legislações, como a francesa e algumas

norte-americanas que permitem intervalos no julgamento, podendo o jurado retirar-se a

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18

sua casa, “sujeito, então a influências as mais diversas” (Noronha, 1979: 265). O mesmo

tratadista argumenta que não seria demais que essa incomunicabilidade se estendesse aos

jurados entre si, “de modo que o voto fosse exclusivamente o resultado de sua convicção”,

mas a lei pátria, com as cautelas tomadas, cuida para que a comunicação entre os jurados

não chegue ao ponto de um influir sobre o outro. Tais cautelas são as do art. 476 do CPP,

que estipula que o juiz deve estar presente à sala secreta onde se realiza a votação dos

requisitos referentes ao julgamento para “evitar a influência de uns sobre os outros”.

A chamada quebra da incomunicabilidade, quando provada por quem a alega, é

motivo de anulação do julgamento e a realização de um outro, o que tem sido

sistematicamente ratificado pelo saber jurídico expresso nas decisões jurisprudenciais,

inclusive do Supremo Tribunal Federal (Jesus, 1982: 270 – 272 e 279).

Ora, tal característica foge inteiramente às representações que os brasileiros leigos

têm sobre o júri, inclusive réus, a maioria delas oriundas do que se vê em filmes, no

cinema ou na televisão, quando todo o encanto e força dos longos e acalorados debates

entre os jurados vão constituir-se em expressão dos valores de uma determinada sociedade.

Tais debates também veinculam a idéia de que a decisão final é fruto de um compromisso

entre jurados, após veiculação explícita de suas diferenças. O júri mesmo “bloquear-se”,

não conseguindo chegar a um veredito, caso em que o julgamento é repetido (Jacob, 1972).

Essa característica do debate permeia as várias formas que o júri toma nos estado Unidos,

enquanto processo pedagógico destinado à obtenção de compromisso entre as partes, ou de

um “senso comum” representativo do grupo.

A perplexidade diante do cerceamento da comunicação entre pessoas escolhidas a

dedo, por indicação pessoal do juiz ou de pessoas de sua confiança, como dispõe a

legislação, (art. 439 CPP) que se constituem em grupos de vinte e um, dos quais se

sorteiam em cada julgamento sete e que supostamente representam a idoneidade média da

sociedade, desaparece quando se vê o motivo da medida não reside em desconfiança

pessoal mas na eventual possibilidade de influência que possam exercer uns sobre os

outros. É bem verdade que a categoria influencia, no Dicionário de Aurélio Buarque de

|Hollanda é assemelhada a “sugestão” e também ao exercício de ascendência de uns sobre

os outros. Tal visão parece denunciar certa desconfiança com a prática da discussão entre

pessoas iguais, onde não se “influencia”, mas se convence através de argumentação.

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19

A desconfiança com a influência, ou sugestão, não é nova, entretanto. Desde o

século passado faz parte de teorias da chamada “psicologia coletiva”, que entendia a

sociedade não a partir de sua constituição em grupos sociais mas como composta de

agregados de indivíduos, estes as verdadeiras unidades sociais. Tais concepções não fazem

senão radicalizar a invenção ideológica do indivíduo como sujeito de direitos e obrigações,

que aparece na ideologia ocidental como parte do processo de compartimentalização e

autonomização com que se representa (Dumont, 1960; 1967; 1977).

Explicava-se o comportamento social coletivo como comportamento de “multidão”

tendendo a ver quaisquer movimentos de massa como formas de “loucura” coletiva,

“anormalidades” psíquicas, e não como resultado de conflitos sociais emergentes.

Ora, as vinculações sobre o saber-poder do Direito e os da Psiquiatria e da

Psicologia tem sido objeto de reflexão metodológica sistemática (Foucault, 1963,

1972;1975;1977). Tendem essas associações especialmente em direito criminal, à

transformação de conflitos sociais e políticos em fenômenos relacionados ao “homem”, a

sua “personalidade” ou a seu “meio”. Cria-se com isso figura do “criminoso” do

“delinqüente, do “louco”, que vem substituir a noção clássica de “crime”,

individualizando, no campo jurídico, os procedimentos essenciais a seu controle. Passa-se,

assim, de um a estratégia repressiva e exemplar à verdadeira “produção” de certo tipo de

indivíduos úteis ao sistema. Reflexo deste movimento é o conceito de periculosidade,

utilizado para constituir um discurso médico-psíquiátrico-jurídico capaz de justificar o

controle indeterminado de desviantes ou dissidentes (Thompsom, 1983).

Pois é nessa direção da individualização de conflitos e dos procedimentos teóricos

da chamada criminologia positiva que encontramos o campo intelectual onde se constitui

como saber a “psicologia das multidões”. Não foi necessário procurar muito para encontrar

no mesmo tratadista anteriormente mencionado, agora na parte de Direito Penal (em 1982

em sua 40ª edição) referência, em seu parágrafo 141, aos “crimes de multidão” (Noronha,

1982). Não é também surpresa encontrar ali referência (como é de hábito nesse saber

dogmático sem indicação de obra ou página) aos autores “especialistas” da matéria: Lê-

Bom, Sighele e Tarde. O autor repete-lhes o conceito de multidão: “É a multidão um

agregado, uma reunião de indivíduos, informe e inorgânico, surgido espontaneamente

desaparecendo ( Noronha, 1982). Tornam-se “espontâneos” caos de perda das faculdades

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mentais, objeto portanto de estudos psicológicos para detectar as origens dessa

anormalidade das consciências individuais sadias, momentaneamente ensandecidas,

A relação desta discussão sobre multidões com a forma de julgamento pelo júri

popular é conclusão expressa de um dos autores citados pelo tratadista e ditado entre nós

em 1954 sem nenhuma introdução crítica, passando portanto, tranqüilamente, seu

conhecimento por contemporâneo. Sighele, referindo-se a supostos erros de julgamento

cometido pelo júri afirma: “todos estes fatos (...) provam simplesmente isto: que doze

homens de bom senso e inteligentes podem dar um sentença estúpida e absurda, uma

reunião de indivíduos podem (sic) dar uma resultante oposta à que teria dado cada um

deles” (Sighele, 1954: 16).

Prossegue o autor dizendo que o único caso em que os caracteres do “agregado e

das unidades que o compõe se correspondem é quando existe semelhança,

“homogeneidade, entre suas unidades. (Sighele, 1954: 21).

“Uma reunião cosmopolita não pode evidentemente refletir em seu conjunto os

diversos caracteres dos indivíduos que compõe, com a mesma exatidão que uma reunião de

indivíduos todos italianos, ou todos alemães, refletiria no seu conjunto os caracteres

particulares desses italianos ou desses alemães. O mesmo se poderá dizer de u júri, no qual

o acaso cego colocou o tendeiro junto de um homem de ciência, em comparação com uma

Assembléia de peritos” (Sighele, 1954:22, Grifo nosso).

Vê-se bem porque a tendência da homogeneização em termos de classe social,

profissão, etc, que se constata nas listas de jurados, muitas vezes conscientemente desejada

no Brasil, não se constitui em preocupação de obter a maior representatividade social,

estimulando-lhe a composição diferenciada, como nos procedimentos até mesmo aleatórios

de escolha nos EUA ( Jacob, 1972:124).

Não são menos arraigadas no tempo e nos conceitos da psicologia coletiva as

normas e práticas que tendem a formas um permanente corpo de jurados, para que melhor

se adeque as suas finalidades julgadoras. Não é portanto o julgamento do “homem comum”

ou do “homem médio” que se procura, mas o julgamento de um jurado profissional:

“Mas não basta que as unidades sejam muito semelhantes entre si, para estabelecer

analogia entre seus caracteres e os do agregado que os compõe; é necessário ainda que

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essas unidades estejam unidas entre si por uma relação permanente e orgânica” (Sighele,

1954:22). E mais ...” as reuniões adventícias e inorgânicas de indivíduos, como as que

temos num júri, num teatro, numa multidão – não podem reproduzi nas suas manifestações

os caracteres das unidades que as compõe, do mesmo modo que o ajuntamento confuso e

desordenado de uma determinada quantidade de tijolos não podem reproduzir a forma

retangular de um sé desses tijolos. Por conseguinte neste último caso é necessário a

disposição regular de todos os tijolos, para construir uma parede do mesmo modo, no

primeiro caso, para que um agregado dê as qualidades dos indivíduos que compõe, é

necessário que nestes indivíduos estejam unidos entre si por meio de relações permanentes

e orgânicas, como, por exemplo, os membros de uma mesma família, os indivíduos que

pertencem à mesma classe da sociedade” ( Sighele, 1954: 23, grifos do autor).

A seguir, citando Bentham a propósito das Assembléias políticas e do júri inglês,

diz que ele já “fazia notar a grande diferença que há entre as manifestações dos corpos

políticos que têm um existência permanente, e as manifestações dos corpos políticos que

têm uma existência na ocasião e passageira e dizia que os primeiros dão mais facilmente

que os segundos resultados que correspondem aos verdadeiros interesses e às verdadeiras

tendências de seus membros” (Sighele, 1954:23, nota 19, grifos do autor).

Para esses autores, como se vê, a sociologia não tem um objeto que lhe seja próprio,

como já desde 1888 estabelecera Durkhein (1888; 1895). O comportamento social não é

fruto de representações coletivas diferentemente apropriadas pelos grupos, e existentes

apesar dos indivíduos que os compõem, mas fruto de contato entre os indivíduos, ou de

imitação. A grande preocupação de Sighele, aliás, é retirar da sociologia spenceriana, que

estabelecia que os agregados eram resultado do comportamento dos indivíduos, o estudo

dessas “multidões”, segundo ele regidas pela lei da intimação e pelo mecanismo da

sugestão. Pela imitação se verifica o “contágio moral”, responsável, por exemplo pelas

euforias e depressões econômicas e políticas (Sighele, 1954: 35) A imitação é atualizada

em comportamento através da sugestão, pela qual os homens se influenciam

reciprocamente. No caso da multidão, entretanto, essa sugestão atua sempre

negativamente, perdendo as melhores influências para as más. Isto porque: “a média de

muitos números não pode ser igual aos mais elevado desses números, do mesmo modo que

um agregado de homens não pode refletir nas suas manifestações as faculdades mis

elevadas, próprias de alguns desses homens; refletirá apenas as faculdades que se

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encontram em todos ou no maior número de indivíduos. As últimas e melhores

estratificações do caráter, diria Sergi, as que a civilização e a educação conseguiram

formar alguns indivíduos privilegiados estão eclipsadas pelas estratificações médias que

são patrimônio de todos: na soma total estas prevalecem e as outras desaparecem (...).

sucede, na multidão, no ponto de vista intelectual. A companhia enfraquece – em relação

ao resultado total – tanto a força do talento como os sentimentos caritativos (Sighele, 1954:

58 – 59).

Justificada está a fiscalização permanente dos jurados, para que não se

“influenciem” apesar de selecionados com todo o rigor. Não dependendo de sua vontade

mas de simples fato de sua reunião a decadência moral e a decadência moral e intelectual

a que estarão submetidos. É claro que o fato de se tratarem de brasileiros, e não de

americanos e franceses faz com que essa fiscalização certamente se exerça com maior “

rigor e cautela” fechando-os portanto no recinto do Tribunal enquanto dura o julgamento ...

Tais idéias opõem-se evidentemente à idéia liberal clássica de que indivíduos livres

e iguais entre si deverão atingir um compromisso através de discussão de que participem

argumentando e contra-argumentando explicitamente. O compromisso surge dessa

discussão e a decisão não se constitui em manifestação, através de suas consciências

individuais, de um consenso anteriormente imposto pela socialização pré-existente e de

cujo conteúdo são receptáculos supostamente passivos, acríticos e repetidos. A diferença é

um mal a ser evitado, a homogeneidade um bem em si. Ais que isso, a diferença implica em

uma hierarquia “natural” entre os indivíduos, classificados de acordo com uma tabela de

valores definidos, evidentemente, Poe camadas dominantes na sociedade. São esses valores

aqueles que cumpre reproduzir através de engenhosos esquemas de poder-saber,

pedagogicamente destinados a veiculá-los eficazmente, inclusive através de suas

instituições mais democráticas. É evidente que o domínio do Juiz singular está

resguardado, pois juízes, por formação e profissão, são “homogêneos” e “permanentes”.

Mas não é necessário para que se tenha uma justiça elitista e anti-democrática, reprodutora

de um mesmo saber comprometido com a homogeneidade e a estratificação.

Tais representações sobre a prática da tomas de decisões em grupo se atualizam

concretamente no júri, pedagogicamente informando aos jurados como deve ser sua

atuação enquanto grupo. A permanência de unas mais que os outros nas listas de jurados,

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ao arbítrio do juiz, reflete que esse processo de socialização tem mesmo um fiscal de sua

incomunicabilidade e sugestionabilidade. De outro lado, essas visões individualizadoras do

crime e de “ multidões” são freqüentemente levadas à tribuna por advogados e promotores,

que freqüentemente citam idéias, num processo de convencimento e inscrição sobre um

grupo social do saber-poder de que estão dotados.

Tal socialização, que se estende ao “aprendizado” na resposta a quesitos e na

circunstância de que a maioria dos jurados, em cidades grandes, é “bacharel”, mostra que o

sentido pedagógico deste julgamento está perfeitamente de acordo com aquilo que seus

ardorosos defensores propugnam. Ele é realmente o espelho de nossa “democracia”,

tutelada e hierarquizada.

Conclusão

A etnografia do judiciário passa pela compreensão de que suas instituições, práticas

e representações estão inseridas na sociedade brasileira e com ela mantêm uma relação de

influência e interdependência. Também passa pelo paradoxo de verificar as causas de que

essa “ineficiência” secularmente atribuída às instituições judiciárias se alia seu imenso

potencial reprodutor e difusor, para todas as áreas da sociedade, desse saber-poder.

É necessário fazer a etnografia dos mecanismos que presidem a formação dessas

decisões milagrosamente racionais e imparciais num de “jeitinho” e privilégio, enumerado

cuidadosamente suas circunstâncias e sue agentes, formal e informalmente admitidos ao

processo. Problemas e discussões familiares à Antropologia no estudo das instituições

jurídicas em geral e no seio das chamadas sociedades mediterrâneas em particular, com sua

elaborada processualística e seu característico sentimento de honra que, afinal se atualiza

em qualquer litígio e entre seus agentes, bem como com sua infindável multiplicação de

instâncias mediadoras associadas com freqüência e erroneamente a sociedades “simples” e

“irracionais”.

Certamente deveremos analisar as conseqüências que uma ordem jurídica liberal,

supostamente fundada na igualdade de indivíduos diferentes e na isonomia das partes

apresenta quando aplicada a sociedade que se representam hierarquizadamente.

Individualidade associada a representações igualitárias da sociedade constitui-se em

discurso sustentador de liberdades individuais e respeito a diferenças. Individualidade

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associada a representações hieráquica da sociedade significam sempre distorções atribuídas

a ordens da efetividade “egoísmo” ou da insanidade (genialidade e loucura), resultando

quase sempre em “necessidade” de imposição de ordens autoritárias, freqüentemente

associada à exploração selvagem dos mais fracos, a quem não se dá nem a proteção da

casta e a garantia de uma posição e identidade sociais quaisquer (DaMatta, 1979; 1982;

Falcão, 1981).

Estaremos também problematizando as definições e limites dos domínios do

público e do privado, tradicionalmente operados em uma ótica personalizante no seio da

magistratura brasileira (Schwartz, 1979).

Será preciso, pois, rasgar os véus do poder e implodir suas férreas categorias a que

sempre correspondem práticas casuísticas e arbitrárias, mas eficazes em sua manutenção e

reprodução. É preciso tornar todas as práticas jurídicas, substantivas e processuais,

conhecidas e explícitas, para que regras definidas e a todos acessíveis governem as

atividades judiciárias. A democracia do judiciário passa pelas concepções de democracia

arraigadas na sociedade e portanto por esse poder-saber difuso que se inscreve em seus

objetos a cada instante.

Será preciso abandonar concepções legalistas de que decretos e leis são a melhor

forma de governar, privilegiadas via de transformação social, em vez de conceber esse

processo invertido de produção legal como um abdicar de direitos, não sua expressão. É

preciso libertar-nos de concepções positivas e naturalistas na representação dos fenômenos

e saberes que se produzem socialmente, e que resultam sistematicamente em mitos como

os de neutralidade de partes e agentes de decisões, individualizações de conflitos sociais,

criminosos, processos e prisões.

Será preciso desfazer-se, finalmente, da idéia funcional-instrumental de que o

judiciário é um lugar de “resolução de conflitos”, suposto promotor de uma harmonia

social sempre ameaçada pelo litígio e pela diferença dos indivíduos e dos grupos sociais

capazes de exprimir, criar e extinguir diferenças e semelhanças fundamentais ao convívio

social e ao exercício da diferença e da heterogeneidade (Nader, 1965).

É preciso fazer a etnografia das instituições judiciárias. É preciso percorrer seus

Espaços, as salas e os corredores, assistir audiência, reparar em quem lá comparece, como

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se veste e comporta. É necessário contar as presenças e as ausências, descrever-lhes

significados e utilização. Depois, é preciso entender seu tempo, seus prazos infindáveis,

suas audiências formalmente ininterruptas, seus hierarquizantes rituais de espera e poder.

É imperioso contar-lhes os servidores e serventuários, descrever suas práticas,

observe suas transformações no contato contagiante do poder. Perceber a rede de suas

relações pessoais e sua expressão na maior ou menor facilidade de acesso às informações e

‘as decisões processuais. É preciso fascinar-se com o jogo do formal e do informal,

contaminar-se com ele, vestir-se como um deles e com eles se confundir. Portar-se

diferentemente e deles se diferenciar.

É preciso ir além: saber quem vai aos tribunais e porque. Contar-lhes os números,

os motivos, os valores morais e financeiros envolvidos, por quê vale e por quê não vale a

pena litigar judicialmente. É preciso ir ‘as varas cíveis e criminais, de Família e de

Falências, à Defensoria Pública e ás Promotorias. Depois é preciso ir aos cárceres. Às

Repartições Públicas e mais uma vez percorrer tudo como policial, como advogado, como

antropólogo e como cidadão e deslindar essa mágica transformação dos serviços da

Admistração em Poder Administrativo.

E nesses casos observar como o Poder se organiza súbito, coerente, frente a casos

concretos que investe, organiza e silencia. É preciso ouvir os silêncios desse saber-poder, o

que nele está implícito naqueles procedimentos sempre tão ritualizados, abertos e formais,

de quem nada teme porque nada deve, expressão máxima de seu arbítrio definitivamente

impune e irresponsável.

Fundamentalmente, é preciso não deixar nada de lado, nem um recanto e nem um

escaninho, não para que se reproduza a realidade no anseio de sua transparência positivista,

nem para que surja renovada de uma quimeira racional. Apenas para finalmente perceber

que não estamos diante de nenhum “judiciário”, mas diante de uma janela de onde é

possível constituir u interpretar alguns dos aspectos de nossa sociedade, aprofundando seu

conhecimento e ocupando afinal, um espaço vago.

Depois de nos ver pelos Tribunais, é preciso não esquecer a sociedade. É preciso

percorrer-lhe as formas urbanas e rurais de legislar, judicar e executar a lei no silêncio

embrutecido de um Direito elitista. É preciso aprender com sua variedade, colaborando em

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sua distinção e nunca temendo sua diversidade e autonomia que afirma “a priori” sua

capacidade para o exercício do Poder. É preciso aprender com essas formas jurídicas,

sofrer com elas, deixar-se educar por seu conhecimento que antropologicamente se

desvenda. Colabora-se assim na destruição das estratificações injustas e na construção de

hierarquias expressivas da realidade social. É preciso tomar desses saberes dominados a

implosão dessa razão instrumental, oportunista e impiedosa sistematicamente utilizada para

dominar e explorar.

Há que conhecer-se com os olhos do “Outro” .

Numa outra perspectiva é urgente e imprescindível encetar e encorajar estudos

comparativos nessas áreas e nesse espírito, pensando antropologicamente em outros

sistemas de sociedades aparentemente semelhantes ou muito distintas da nossa. A

perspectiva comparada precisa do exercício da convivência com a diferença para afiar seus

instrumentos. Só assim será possível produzir um saber, a partir de nossas especificidades

culturais e a elas adequado.

Se queremos levar a sério a proposta de pensar democraticamente a diferença em

nossa sociedade, libertando-nos dos prismas do colonialismo econômico e cultural, interno

e externo, bem como explicitar as tendências etnocêntricas e homogeneizantes por ele

suscitadas há que aprender com a perspectiva antropológica a valorização heurística das

diferenças. Começar por descobri-las e pó-las a nu em nosso cotidiano, estranhando o

“natural” e familiarizando-nos com o exótico, eis o longo caminho democrático a

percorrer. Na área do direito, como apontei, o percurso é tanto mais árduo porque implica

na transformação das próprias bases onde se ancora um saber-poder que se difunde muito

além do “jurídico” em nossa socialização.

Não há glória ou fama nessa luta, nem objetivo a ser alcançado. Em nossa melhor

tradição, “porfia-se porquanto é bom porfiar”.

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