por uma antropologia do consumo

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Antropolítica Niterói n. 17 p. 1-291 2. sem. 2004 ISSN 1414-7378 A A A NTROPOLÍTICA NTROPOLÍTICA NTROPOLÍTICA NTROPOLÍTICA NTROPOLÍTICA - 17 - semestre 2004

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Page 1: Por uma antropologia do consumo

Antropolítica Niterói n. 17 p. 1-291 2. sem. 2004

ISSN 1414-7378

AAAAA N T R O P O L Í T I C AN T R O P O L Í T I C AN T R O P O L Í T I C AN T R O P O L Í T I C AN T R O P O L Í T I C ANºº- 17 2º- semestre 2004

Page 2: Por uma antropologia do consumo

© 2005 Programa de Pós-Graduação em Antropologia e Ciência Política da UFF

Direitos desta edição reservados à EdUFF - Editora da Universidade Federal Fluminense -Rua Miguel de Frias, 9 - anexo - sobreloja - Icaraí - CEP 24220-000 - Niterói, RJ - Brasil -Tel.: (21) 2629-5287 - Telefax: (21) 22629-5288 - http://www.uff.br/eduff -E-mail: [email protected]

É proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem autorização expressa da Editora.

Normalização: Caroline Brito de OliveiraEdição de texto: Sônia PeçanhaProjeto gráfico, capa e editoração eletrônica: José Luiz Stalleiken MartinsRevisão: Rosely Barrôco e Icléia FreixinhoDiagramação e supervisão gráfica: Káthia M. P. MacedoCoordenação editorial: Ricardo B. BorgesSumário em inglês: Agatha BarcelarTiragem: 500 exemplares

Solange Pinheiro Lisboa

Conselho Editorial da AntropolíticaAlberto Carlos de Almeida (PPGACP / UFF)Argelina Figueiredo (Unicamp / Cebrap)Ari de Abreu Silva (PPGACP / UFF)Ary Minella (UFSC)Charles Pessanha (IFCS / UFRJ)Cláudia Fonseca (UFRGS)Delma Pessanha Neves (PPGACP / UFF)Eduardo Diatahy B. de Meneses (UFCE)Eduardo R. Gomes (PPGACP / UFF)Eduardo Viola (UnB)Eliane Cantarino O’Dwyer (PPGACP / UFF)Gisálio Cerqueira Filho (PPGACP / UFF)Gláucia Oliveira da Silva (PPGACP / UFF)Isabel Assis Ribeiro de Oliveira (IFCS / UFRJ)José Augusto Drummond (PPGACP / UFF)José Carlos Rodrigues (PPGACP / UFF)Josefa Salete Barbosa Cavalcanti (UFPE)Laura Graziela F. F. Gomes (PPGACP / UFF)Lívia Barbosa (PPGACP / UFF)Lourdes Sola (USP)Lúcia Lippi de Oliveira (CPDOC)Luiz Castro Faria (PPGACP / UFF)Luis Manuel Fernandes (PPGACP/UFF)Marcos André Melo (UFPE)Marco Antônio da S. Mello (PPGACP/UFF)Maria Antonieta P. Leopoldi (PPGACP/UFF)

Maria Celina S. d’Araújo (PPGACP/UFF-CPDOC)Marisa Peirano (UnB)Otávio Velho (PPGAS / UFRJ)Raymundo Heraldo Maués (UFPA)Renato Boschi (UFMG)Renato Lessa (PPGACP / UFF - IUPERJ)Renée Armand Dreifus (PPGACP/UFF)Roberto Da Matta (PPGACP/UFF-University of Notre Dame)Roberto Kant de Lima (PPGACP / UFF)Roberto Mota (UFPE)Simoni Lahud Guedes (PPGACP / UFF)Tânia Stolze Lima (PPGACP / UFF)Zairo Cheibub (PPGACP / UFF)

UNIVERSIDADEFEDERAL FLUMINENSE

ReitorCícero Mauro Fialho Rodrigues

Vice-ReitorAntônio José dos Santos Peçanha

Pró-Reitor/PROPPSidney Luiz de Matos Mello

Diretora da EdUFFLaura Garziela Gomes

Diretor da Divisão de Editoraçãoe Produção: Ricardo Borges

Diretora da Divisão de Desenvolvimentoe Mercado: Luciene Pereira de Moraes

COMITÊ EDITORIAL DA ANTROPOLÍTICA

Delma Pessanha Neves (PPGACP /UFF)Eduardo R. Gomes (PPGACP / UFF)Simoni Lahud Guedes (PPGACP / UFF)Gisálio Cerqueira Filho (PPGACP /

UFF)Secretária:

Catalogação-na-fonte (CIP)

A636 Antropolítica : Revista Contemporânea de Antropologia e CiênciaPolítica. — n. 1 (2. sem. 95). — Niterói : EdUFF, 1995.

v. : il. ; 23 cm.

Semestral.Publicação do Programa de Pós-Graduação em Antropologia e Ciência Política da

Universidade Federal Fluminense.

ISSN 1414-7378

1. Antropologia Social. 2. Ciência Política. I. Universidade Federal Fluminense.Programa de Pós-Graduação em Antropologia e Ciência Política.

CDD 300

Page 3: Por uma antropologia do consumo

SUMÁRIO

NOTA DOS EDITORES, 7

DOSSIÊ: POR UMA ANTROPOLOGIA DO CONSUMO

APRESENTAÇÃO: LAURA GRAZIELA GOMES E LÍVIA BARBOSA, 11

POBREZA DA MORALIDADE, 21DANIEL MILLER

O CONSUMIDOR ARTESÃO: CULTURA, ARTESANIA E CONSUMO

EM UMA SOCIEDADE PÓS-MODERNA, 45COLIN CAMPBELL

POR UMA SOCIOLOGIA DA EMBALAGEM, 69FRANCK COCHOY

ARTIGOS

A ANTROPOLOGIA E AS POLÍTICAS DE DESENVOLVIMENTO: ALGUMAS ORIENTAÇÕES, 99JEAN-FRANÇOIS BARÉ

ARQUIVO PÚBLICO: UM SEGREDO BEM GUARDADO?, 123ANA PAULA MENDES DE MIRANDA

A CONCEPÇÃO DA DESIGUALDADE EM HOBBES, LOCKE E ROUSSEAU, 151MARCELO PEREIRA DE MELLO

ASSOCIATIVISMO EM REDE: UMA CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA

EM TERRITÓRIOS DE AGRICULTURA FAMILIAR, 167ZILÁ MESQUITA E MÁRCIO BAUER

DEPOIS DE BOURDIEU: AS CLASSES POPULARES EM ALGUMAS ABORDAGENS

SOCIOLÓGICAS CONTEMPORÂNEAS, 191ANTONÁDIA BORGES

Page 4: Por uma antropologia do consumo

RESENHAS

LIVRO: MODÉRATION ET SOBRIÉTÉ. ÉTUDES SUR LES

USAGES SOCIAUX DE L’ALCOOL, 213LUDOVIC GAUSSOT

AUTOR DA RESENHA: FERNANDO CORDEIRO BARBOSA

LIVRO: GOVERNANÇA DEMOCRÁTICA E PODER LOCAL: A EXPERIÊNCIA

DOS CONSELHOS MUNICIPAIS NO BRASIL, 217ORLANDO ALVES DOS SANTOS JÚNIOR, L. C. DE Q. RIBEIRO ESÉRGIO AZEVEDO (ORGS.)AUTORA DA RESENHA: DEBORA CRISTINA REZENDE DE ALMEIDA

NOTÍCIAS DO PPGACP

NEST – NÚCLEO DE ESTUDOS ESTRATÉGICOS, 227

DISCURSO DO PROFESSOR EURICO DE LIMA FIGUEIREDO, 231

RELAÇÃO DE DISSERTAÇÕES DEFENDIDAS NO PPGACP, 245

REVISTA ANTROPOLÍTICA: NÚMEROS E ARTIGOS PUBLICADOS, 273

COLEÇÃO ANTROPOLOGIA E CIÊNCIA POLÍTICA (LIVROS PUBLICADOS), 285

NORMAS DE APRESENTAÇÃO DE TRABALHOS, 289

Page 5: Por uma antropologia do consumo

CONTENTS

EDITORS NOTE, 7

DOSSIER: TOWARDS AN ANTHROPOLOGY OF CONSUMPTION

FOREWORD: LAURA GRAZIELA GOMES E LÍVIA BARBOSA, 11

THE POVERTY OF MORALITY, 21DANIEL MILLER

THE CRAFT CONSUMER: CULTURE, CRAFT AND CONSUMPTION

IN A POST-MODERN SOCIETY, 45COLIN CAMPBELL

TOWARDS A SOCIOLOGY OF PACKAGING, 69FRANCK COCHOY

ARTICLES

ANTHROPOLOGY AND THE POLITICS OF DEVELOPMENT: SOME DIRECTIONS, 99JEAN-FRANÇOIS BARÉ

PUBLIC ARCHIVES: A WELL KEPT SECRET?, 123ANA PAULA MENDES DE MIRANDA

THE CONCEPTION OF INEQUALITY IN HOBBES, LOCKE AND ROUSSEAU, 151MARCELO PEREIRA DE MELLO

A CHAIN OF ASSOCIATIVISM: IDENTITY CONSTRUCTION

IN FAMILY FARMING LANDS, 167ZILÁ MESQUITA E MÁRCIO BAUER

AFTER BOURDIEU: CONTEMPORARY SOCIOLOGICAL

APPROACHES TO POPULAR CLASSES, 191ANTONÁDIA BORGES

Page 6: Por uma antropologia do consumo

REVIEWS

BOOK: MODÉRATION ET SOBRIÉTÉ. ÉTUDES SUR LES

USAGES SOCIAUX DE L’ALCOOL, 211LUDOVIC GAUSSOT

AUTHOR OF THE REVIEW: FERNANDO CORDEIRO BARBOSA

BOOK: GOVERNANÇA DEMOCRÁTICA E PODER LOCAL: A EXPERIÊNCIA

DOS CONSELHOS MUNICIPAIS NO BRASIL, 217ORLANDO ALVES DOS SANTOS JÚNIOR, L. C. DE Q. RIBEIRO ESÉRGIO AZEVEDO (ORGS.)AUTHOR OF THE REVIEW: DEBORA CRISTINA REZENDE DE ALMEIDA

PPGACP NEWS

NEST – NÚCLEO DE ESTUDOS ESTRATÉGICOS, 219

SPEACH OF PROFESSOR EURICO DE LIMA FIGUEIREDO, 231

THESIS, 245

REVISTA ANTROPOLÍTICA: NUMBERS AND PUBLISHED ARTICLES, 275

PUBLISHED BOOKS AND SERIES – COLEÇÃO

ANTROPOLOGIA E CIÊNCIA POLÍTICA, 285

RULES ON PAPER PUBLICATION, 289

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NOTA DOS EDITORES

Com o número 17 da Revista Antropolítica prosseguimos na divulgaçãode temáticas contemporâneas nas ciências sociais que se constituem tam-bém em linhas de pesquisa nos dois programas do PPGACP. Destaca-mos, no presente dossiê, a linha de pesquisa Antropologia do Consu-mo, apresentada pelas professoras Livia Barbosa e Laura Graziela Go-mes, com três artigos que elaboram algumas das mais importantes ques-tões deste campo que vem se expandindo nos últimos anos.

São também importantes contribuições os demais artigos, tratando detemas variados: políticas de desenvolvimento, associativismo em rede,arquivos públicos e uma reflexão teórica sobre a desigualdade no pen-samento clássico.

Devemos registrar o esforço dos pesquisadores e dos nossos programaspara traduzir os artigos de autores estrangeiros, objetivando sua maiordivulgação, sem contar com recursos especialmente destinados a estefim.

Registramos, ainda, que têm sido fundamentais os subsídios para pu-blicação destinados a nossa revista pela Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação (PROPP), da Universidade Federal Fluminense, através daEduff, obtidos por meio de concorrência no ano de 2004. Este auxíliotem permitido uma maior agilização na produção da revista e a manu-tenção de sua periodicidade.

Finalmente, registramos que nossa revista foi reclassificada pela Co-missão Qualis/Capes como Nacional A, o que muito nos orgulhou. Con-tinuaremos trabalhando em sua permanente melhoria.

A Comissão Editorial

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DOSSIÊ:Por uma

antropologiado consumo

Os três artigos que compõem o Dossiê foram traduzidos por Agatha Barcelar.

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L A U R A G R A Z I E L A G O M E S E L Í V I A B A R B O S A

APRESENTAÇÃO

A expressão “antropologia do consumo”, utilizada nes-te volume para designar o dossiê do qual fazem parteos três artigos que se seguem, pode sugerir ao leitortratar-se de uma perspectiva renovada da antropologiaeconômica ou mesmo de uma nova abordagemetnográfica da Economia. Entretanto, nada seria maisenganoso e distante do que se encontra na tradição clás-sica da antropologia.

Embora desde os primórdios da disciplina houvesseuma preocupação constante dos antropólogos em in-vestigar o modo como a dimensão material dos bensafeta a vida social,1 é preciso ressaltar que a preocupa-ção dominante nesses trabalhos era com a produção e acirculação e, neste contexto, com as dimensões consi-deradas “tradicionais” da troca – a reciprocidade, ogiftgiving – e com a sua identificação com princípios es-truturais a partir das práticas rituais coletivas. Des-cartava-se, naquele momento, o estudo da apropriaçãodiferencial dos bens no interior das sociedades. A aten-ção voltava-se sobre os modos de usos dos objetos des-de que estes reafirmassem a perspectiva holística domi-nante na antropologia, que valorizava muito mais o fa-zer coletivo do que o individual e fundamentalmenteaquilo que nos diferenciava deles: a dádiva da merca-doria, a reciprocidade da compra, a moralidade do in-teresse.

Assim, o consumo enquanto lócus de experiências cole-tivas e individuais singulares, como algo que gera co-nhecimento sobre cada um de nós e o mundo que noscerca não suscitava a atenção nem mesmo no contextodas sociedades modernas industriais.

Ao contrário, a respeito destas últimas, uma perspecti-va menos generosa em termos intelectuais e acadêmi-cos logo se impôs, qual seja, aquela em que o consumo

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e o consumismo modernos são tratados como sintoma do processo deperda dos valores tradicionais (destradicionalização), tudo isso embala-do por um viés altamente moral e pessimista que enfatiza o nosso mate-rialismo em face de uma pureza e autenticidades de relações sociais dassociedades “primitivas”. O que estava e está por trás disso era e é umaconcepção ingênua de que o universo material, principalmente sob aforma de mercadoria, conspurca as relações sociais. O resultado dessaperspectiva é que ela, uma vez tendo atingido uma posição hegemônica,tornou-se praticamente uma ideologia, o que resultou numa ausênciaquase total de pesquisas empíricas e etnográficas que pudessem levar auma relativização do consenso estabelecido.

Aliás, a respeito do materialismo contemporâneo, os textos clássicos deMalinowski, Boas e Mauss, quando lidos de uma perspectiva instruídapelos modernos estudos de consumo, são exemplares no sentido dedeixarem entrever que as sociedades primitivas e tradicionais foram esão capazes de desenvolver formas mais ou menos intensas de materia-lismo. Não importa que essas formas sejam ciclicamente desencadeadas(e controladas) através de um calendário ritual – caso do potlach e dokula – mas o fato é que ele existe. Portanto, o materialismo definidocomo atribuição de importância, apego aos bens materiais e estratégiade atribuição de status não é um atributo exclusivo da sociedade mo-derna, tal como afirma uma vasta literatura contemporânea. Menosainda, é a sua interpretação como sintoma de degenerescência e perdade referências fundamentais. Neste contexto, aprofundarmo-nos na suafenomenologia nos leva a mais do que conhecimentos sobre o consu-mo. Conduz-nos a questões centrais referentes à relação dos homenscom o mundo material e de como esta se desenrola em diferentes uni-versos sociais.

Uma segunda reflexão que estes textos clássicos suscitam é a compara-ção entre consumo, ciclo de vida dos objetos e materialismo entre associedades primitivas e as contemporâneas. Nas sociedades tradicio-nais, observa-se um ciclo de vida mais longo para os objetos (as razõespara tal são várias e não cabe discuti-las aqui) , donde a substituição serigualmente mais lenta, o que não significa, de forma alguma, ausênciade materialismo. Ao contrário, nesses casos onde o ciclo de vida é maislongo e a substituição é mais lenta, o materialismo implica lógicas derelação entre homem e objeto distintas da nossa, como por exemplo, oentesouramento dos bens materiais. Isto pode dar a impressão de queo consumo – entendido, via de regra, apenas como processo de aquisi-ção – não ocorra com a mesma intensidade que nas sociedades moder-

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nas. O que é importante entender, para além das qualificações acercadas diferentes sociedades, é o real significado que a posse dos bensmateriais tem para diferentes grupos sociais e as implicações que de-correm das diferentes concepções.

Nas sociedades capitalistas avançadas, esta relação baseia-se numa lógi-ca oposta, ou seja, o materialismo se expressa através da aquisição cons-tante de novos bens seguida do descarte dos anteriores, o que implicaum ciclo de vida mais curto para os objetos. Na verdade, hoje já emmuitas sociedades, a taxa de descarte é próxima da taxa de aquisição demercadorias. Esta é a razão pela qual no mundo atual o lixo se constituiem um grande problema e tornou-se objeto de investigação sociológi-ca. Além da sua quantidade gerar novos problemas de gestão, de mani-pulação e disponibilidade que anteriormente não existiam, ele denun-cia a forma particular de relação que estabelecemos com os bens mate-riais, na qual consumir não significa exatamente acumular bens ou as-segurar a eles uma durabilidade maior.2

O importante a ser destacado, a partir destas reflexões, é que a relaçãocom o mundo, com o outro e com a sociedade é sempre mediada, emtodas as formações sociais, pelos objetos, mesmo aquelas mais carentesdo ponto de vista dos recursos materiais. Em todas e quaisquer circuns-tâncias sociais, os objetos têm a sua materialidade capturada e classifi-cada para fins simbólicos como bem demonstraram Lévi-Strauss (1970)e Shalins (1979),3 da mesma forma que em todas e quaisquer circuns-tâncias sociais, a força de sua materialidade se impõe de modo indiscu-tível, mesmo que silenciosa e humildemente, como nos chama atençãoMiller em seu clássico Material Culture and Mass Consumption (1987). Éatravés de nossa experiência com eles que construímos parte de nossasidentidades culturais coletivas enquanto povo, sociedade, nação, clas-se/grupo social e parte de nossas subjetividades individuaisidiossincráticas. Portanto, a materialidade é um elemento fundamentaldas nossas vidas – coletivas e individuais –, uma avenida para o nossoautoconhecimento, criatividade e auto-expressão, como nos indicaCampbell (2004) no artigo que consta deste dossiê e em outros traba-lhos (2003), já que por meio dela desenvolvemos toda nossa capacida-de de construir o que somos pelo toque, pela espessura, pelo cheiro,pela densidade, pelas cores e pelas formas das coisas.

Considerando-se, portanto, a importância da materialidade dos obje-tos na constituição das sociedades, das culturas e da própria subjetivi-dade humana tanto no que se refere às diversas formas de materialis-mo desenvolvidas e identificadas, quanto no que diz respeito aos mo-

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dos distintos de apropriação da cultura material pelos diferentes siste-mas simbólicos, fato que aparece com bastante clareza na literatura clás-sica antropológica, é surpreendente que o materialismo tenha sido cui-dadosamente circunscrito ao âmbito das sociedades complexas contem-porâneas e, mesmo assim, dentro de um enquadramento moral comosintoma da desagregação desses universos sociais, algo que tem dificul-tado mais do que contribuído para elucidar a sua fenomenologia (Bar-bosa, 2004; Miller, 2002; Campbell, 2004).4 Esta constatação nos obrigade imediato a perguntar por que esses temas não se tornaram foco deuma atenção maior da antropologia desde então?

Várias são as razões para isto e das quais não nos ocuparemos aqui.Mas se faz necessário registrar que foi preciso esperar a segunda meta-de da década de 1970 para termos os primeiros trabalhos que inaugu-ram o novo campo de estudos do consumo.5 Trata-se de trabalhos fun-damentais para consolidar o crescente entendimento da complexa re-lação entre cultura e consumo.

Uma vez constituído, o campo dos estudos de consumo foi atravessadopor um conjunto de debates, alguns dos quais permanecem relevantesaté hoje e que dizem respeito a questões fundamentais da existênciahumana contemporânea, como é o caso do materialismo e damoralidade, da natureza da sociedade de consumo e do processo decomoditização da realidade. Foi justamente pensando em todas estasquestões que convidamos três autores, cada um exemplar em seus res-pectivos campos de produção acadêmica, para publicarem emAntropolítica e trazerem ao público brasileiro, em primeiro lugar, umdebate sobre o moralismo que tradicionalmente perpassou e aindapermeia os estudos de consumo, por mais populares que eles tenham-se tornado (Daniel Miller); em segundo lugar, uma teorização inovado-ra sobre uma modalidade de consumo e de consumidor contemporâ-neo – o craft consumer (Colin Campbell); e, em terceiro lugar, uma pers-pectiva igualmente inovadora de se pensar culturalmente a mercado-ria, através de um de seus atributos mais óbvios, mas nem por isso socio-logicamente mais compreendido: a embalagem (Franck Cochoy).

OS ARTIGOS DO DOSSIÊ

O primeiro artigo que temos o prazer de apresentar é de autoria deDaniel Miller, antropólogo inglês da University College London, cujostrabalhos na área de consumo e particularmente da cultura material

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figuram hoje entre os clássicos do gênero. Ele já é conhecido do públi-co brasileiro por seu livro Uma teoria das compras, publicado em 2002,no qual, a partir de uma abordagem estruturalista e da teoria do sacri-fício de Georges Bataille, atribui à compra de bens provisionais o statusde sacrifício compreendido como dádiva e devoção.

Miller sugere que o ato do sacrifício é estrutural entre os humanos eque, ao longo da história, alterou apenas os seus sujeitos e objetos dedevoção. Hoje a sociedade contemporânea apresenta idéias de amor ecuidado que sinalizam para mudanças profundas não só quanto ao seusignificado como também na forma como estas se relacionam com aprópria cultura material. Portanto, é possível analisar a nossa relaçãocom o excesso de objetos que utilizamos para mediar nossas relações deafeto como uma forma de somar e não apenas de diminuir essas rela-ções de afeto com os outros.

O artigo de Miller incluído neste número, sugestivamente intitulado“Pobreza da moralidade” (The Poverty of Morality), é inspirado na obrade E. P. Thompson, The poverty of theory (1978). Como o título sugere,Miller investe contra a pobreza analítica que emana da mistura entresenso comum e moralismo que tem permeado os estudos de consumo.Embora o autor sinalize que, nos últimos 20 anos, a quantidade detrabalhos sobre o tema consumo aumentou consideravelmente, estamudança não veio acompanhada, na mesma proporção, da qualidadeesperada. Para Miller, a raiz deste desequilíbrio reside, justamente, nopapel de controle que a moralidade tem exercido no interior das ciên-cias sociais, notadamente no contexto dos estudos e pesquisas sobreconsumo. Este se tornou o “locus” por excelência, a partir do qual aacademia vem vaticinando suas posições relativas ao mundo.

A partir desta constatação, Miller advoga uma mudança de estilo e di-reção para a antropologia, não de uma forma vaga e superficial. Elesugere uma nova postura metodológica na análise da cultura material,das relações sociais e de nossas práticas contemporâneas em relação aoconsumo. Postura esta que se caracteriza pela mesma “atitude respeito-sa, empatia e paciência com que um bom etnógrafo se aproxima deseus ‘outros’”. Quando adotamos tal procedimento, constatamos queuma série de interpretações superficiais e simplistas acerca do tão falado“materialismo contemporâneo” não resistem ao confronto do encontroetnográfico. Neste, a culpa e a ansiedade de grupos específicos da socie-dade sobre a própria vida e o desejo distante de eliminar a pobreza e adesigualdade no mundo cedem lugar à intricadas relações que mante-mos com a nossa abundante cultura material.

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Segundo o autor, a cultura material apresenta uma série de vantagensem relação às pessoas quando é utilizada como veículo para a expres-são de sistemas simbólicos.5 Uma delas é o fato de sua manipulaçãoliberá-las da tarefa de serem elas mesmas veículos para a expressão devalores, permitindo, conseqüentemente, uma maior liberdade para tra-tarmos a nós mesmos e aos outros em termos de nossas característicasidiossincráticas e mais flexíveis em relação às formas mais estereotipa-das e fixas das sociedades tradicionais. Esta argumentação nos remetepara o início desta apresentação, quando afirmamos que uma das dife-renças relativas ao consumo e a manipulação de objetos entre as cha-madas sociedades primitivas ou tradicionais e as sociedades complexase individualistas não está na ausência ou mesmo na pouca intensidadedo materialismo, mas no fato de naquelas o consumo e a relação com acultura material serem, em grande parte, presididos e, portanto, con-trolados, pelos rituais coletivos. Nas sociedades modernas e individua-listas contemporâneas, o consumo e a relação com a cultura material,embora continuem sendo objetos de ritualizações, passaram a ser, emgrande medida, um fato da vida privada e uma decisão individual. Comoenfatiza Miller, “o aumento da cultura material, conjugado ao comple-xo simbolismo das mercadorias de consumo de massa tendem a abran-dar o tratamento das pessoas como estereótipos”.

Miller não teme as acusações de materialismo, capitalismo e americani-zação que perpassam as análises do consumo contemporâneo. Ao con-trário, investe com disposição contra todas elas, não para negá-las deforma simplista e ideológica, mas para destrinchá-las nos seus pressu-postos implícitos, em relação aos quais observa uma adesão irrefletida ecompletamente ignorante quanto ao que se está exatamente rejeitandonessa sociedade, quando a elegemos como o paradigma do poder de-moníaco do consumismo. Como ele afirma, a tarefa hoje é recuperar ahumanidade do consumidor, inteiramente reduzida a uma imagemretórica na crítica do capitalismo. “A crítica moralizante do consumodesumaniza e feitichiza o consumidor, e conseqüentemente, serve à causado próprio capitalismo que se propõe criticar”.

O nosso segundo convidado para participar deste dossiê é ColinCampbell. Seu livro A ética romântica e o espírito do consumismo modernocertamente já é um clássico dos estudos de consumo, tendo sido publi-cado no Brasil somente em 2002, apesar de a edição original inglesadatar de 1987. O livro apresenta uma nova interpretação do consumismoe materialismo contemporâneo, na contramão das tradicionais acusa-ções sobre a qualidade da sociedade moderna individualista. Seguindo

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os passos de Weber, Campbell propõe demonstrar a hipótese de que oconsumismo moderno surgiu no contexto da pequena burguesia, ur-bana e rural, ou seja, no interior do mesmo grupo social que costumavacriticar os hábitos de vida da aristocracia. Esta ironia da história mostrao quanto é perigoso cedermos às evidências do senso comum. Seguin-do a tese de Henry James e tantos outros romancistas do século XIX,essa pequena burguesia, entre uma volta de parafuso e outra, cria parasi própria uma nova subjetividade e moralidade, cuja conseqüência maiscontundente é uma nova concepção de hedonismo, um hedonismobaseado na imaginação, na fantasia auto-ilusória.

Em seu texto para este dossiê, Campbell nos apresenta uma outra teseinspirada e provocativa sob o título de “O consumidor artesão: cultura,artesania e consumo em uma sociedade pós-moderna”, a saber, um su-gestivo contraponto às teorias vigentes sobre o caráter alienante do con-sumo de massas e do consumidor. Além de chamar atenção para a com-plexidade envolvida na atividade de consumo na sociedade contempo-rânea, tradicionalmente ignorada por ser estigmatizada pelos cientis-tas sociais, a tese desenvolvida por Campbell é a de que estamos assis-tindo a uma mudança na natureza da atividade de consumo na socie-dade contemporânea. Esta mudança caracteriza-se pela presença deum componente de artesania no ato de consumir, contrariando, assim,o senso comum, que representa a atividade de consumo inteiramentedominada pelo automatismo, pela alienação, porquanto resultante damanipulação dos consumidores. Não se trata de mais um texto atribuin-do ao consumo um papel de “resistência” de grupos e sociedades aoavanço do capitalismo. Ao contrário, Campbell está preocupado emindicar que o consumo hoje permite a homens e mulheres a possibili-dade de “serem eles mesmos”, ou seja, superarem, pelo consumo, a tãopropalada alienação que lhes foi atribuída.

Partindo da oposição teórica tradicional entre trabalho artesanal e pro-dução em massa, o primeiro representando o que existe de essencial-mente humano, autêntico e criativo, e o segundo, representando o tra-balho mecânico e alienado, Campbell nos apresenta uma versão alter-nativa para o eterno “consumidor manipulado e alienado” da modernateoria de consumo de massa.

O artesão tradicional, pelo menos como foi definido por autores comoMarx, Veblen, entre outros, é aquele que investe sua subjetividade ecriatividade no objeto produzido, ao mesmo tempo que detém o con-trole tanto do design quanto das condições de produção. Campbell su-gere que o consumidor artesão (craft consumer) é aquele que exerce con-

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trole similar sobre a sua atividade de consumo e investe nela sua subje-tividade e criatividade. Assim, enquanto na teoria marxista, na teoriacrítica e na visão romântica é a produção artesanal que detém a possibi-lidade de melhor exprimir a essência do humano através do trabalho,para Campbell, a atividade de consumir, tal como ela vem sendo exercidano mundo contemporâneo, resgata, também, esta possibilidade. Damesma forma que o artesão escolhe o design para o produto, seleciona omaterial necessário e se engaja na produção, o consumidor artesão tam-bém escolhe a matéria-prima, concebe diferentes produtos a partir delae se engaja diretamente em certos tipos de “produção”, colocando tan-to a sua subjetividade quanto as suas habilidades e conhecimentos naobtenção do resultado almejado.

Embora tenhamos tradicionalmente oposto produção e consumo, estasduas atividades não são tão opostas como fomos levados a crer, se nosdispomos a olhá-las de uma outra perspectiva. É claro que não produ-zimos matérias-primas para consumo próprio em todas as esferas denossa vida cotidiana, nem consumimos apenas produtos artesanais, nemmesmo tudo o que existe de uma forma que poderia ser definida comoartesanal. Mas, o que cada dia se torna mais evidente, advoga Campbell,é que uma forma artesanal de consumir está se espraiando pela socie-dade contemporânea. Coleção de objetos, aumento do interesse emgastronomia, decoração de casa, jardinagem, modas são exemplos su-gestivos de que o consumidor não aceita mais o produto obtido nomercado. Ele o customiza, não no sentido tradicional deste termo, ouseja, de ajustá-lo às necessidades do consumidor de um ponto de vistafuncional, pragmático, mas do ponto de vista estético existencial. Aoimprimir seu gosto, sua personalidade, seu estilo ao produto que ad-quire o consumidor artesão funda uma nova estética da existência, umanova “arte de si” que se funde e pode vir a corresponder, de fato, a umprojeto de vida mais amplo, de toda uma vida, que se desenrola aospoucos, com acertos pequenos, com a elaboração de detalhes e o desen-volvimento gradativo de conhecimento especializado.

Campbell conclui seu artigo sugerindo que da mesma forma que exis-tem dois modos contrastantes de produção existem também duas for-mas distintas de consumo. Estas não correspondem ao consumo de di-ferentes modalidades de produtos (o consumo de produtos feitos porartesãos não é a mesma coisa do consumo artesão), mas há, pelo me-nos, duas formas básicas de nos relacionarmos com as mercadorias. Domesmo modo que a produção artesanal é significativamente menor secomparada com as mercadorias produzidas, a oportunidade que ela

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oferece para a auto-expressão e criatividade humanas equivale ao con-sumo artesão em termos da oportunidade que este oferece para a ex-pressão das mencionadas qualidades humanas. Esta forma de consumonão só existe como está florescendo na sociedade de consumo contem-porânea. Se assumirmos que esta tendência irá continuar no futuropróximo, existe a possibilidade de uma sociedade pós-moderna na qualo consumo artesão não é apenas a forma dominante de consumo, mastambém o principal modo de auto-expressão.

Finalmente chegamos ao terceiro autor, Franck Cochoy, francês e pro-fessor de sociologia na Université de Tolouse, que gentilmente nos con-cedeu o direito de traduzir a conferência que proferiu durante o I En-contro Nacional de Antropologia do Consumo. Como os demais textosselecionados para este dossiê, a tese do autor é igualmente provocativa,já que ela vai contra outro lugar-comum estabelecido: o fetichismo damercadoria. De acordo com o autor, nos tempos atuais, ao contrário doque supôs Marx, uma das formas de singularização da mercadoria éjustamente revelar as relações de produção que subjazem a ela, enfim,dar a conhecer ao consumidor o modo como foi produzida. Cochoysugere que ao mesmo tempo que a mercadoria e o consumo estão sen-do politizados – o que não significa que o consumo ganharia mais dig-nidade moral por causa disso –, a política está sendo tambémmercadologizada. Por causa disso, para entendermos melhor esse pro-cesso, torna-se importante tratar comparativamente a política e o con-sumo – o uso dos bens materiais – e captar algumas analogias entre umuniverso e outro. Segundo Cochoy, existe um lugar onde essa analogiajá aparece e onde ela pode ser mais bem compreendida sociologica-mente: trata-se daquele aspecto mais visível das mercadorias, pelo qualelas são expostas para serem olhadas, desejadas e manipuladas. Cochoysugere, então, uma investigação minuciosa das embalagens, pois paraele “a embalagem capta o produto (o envolve, o mascara e o reapresenta)e, portanto, cativa o consumidor (o fascina e o informa, o atrai e odetém, o destaca e o prende)”, sugerindo, com isso, que o mesmo ocor-re com a política. O autor prossegue insistindo no papel da embalagemque, longe de ser anódino ou puramente mercadológico, pode trans-formar profundamente tanto a cognição do consumidor quanto as es-tratégias de oferta do próprio mercado.

Fundamentalmente, Cochoy nos propõe fazer uma sociologia da em-balagem. Segundo ele, esse investimento nos levaria a conhecer algu-mas das virtudes morais e políticas que os produtos encerram – aomesmo tempo que nos ajudaria a entender e a lidar melhor com as

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virtudes mercadológicas que a política possui. Permitiria também des-vendar toda uma história social da produção e daquele produto emparticular que se encontra codificada em um dos atributos mais parti-culares da mercadoria, justamente aquele que a singulariza – onde estáa marca – mas que é ao mesmo tempo o mais descartável. Esse parado-xo que a embalagem encerra – ser o aspecto mais visível, mais funda-mental para a singularização da mercadoria e, ao mesmo tempo, o maisperecível e descartável – é um fator simbólico relevante para entender-mos a fronteira “entre o mercado e o não-mercado, [...] o limite entre oespaço da troca comercial e as outras esferas mais humanas, mais sa-gradas, mais culturais que a antropologia econômica tem reclamadoem identificar e estudar”.

NOTAS

1 Tomemos três estudos considerados clássicos para o surgimento da antropologia, a saber, Argonautas noPacífico Ocidental, de Malinowski, o Ensaio sobre a dádiva, de Mauss, e os estudos de Boas sobre Potlach. Emtodos eles aparece uma preocupação com a cultura material e as suas formas de circulação no interior dassociedades estudadas. Entretanto, esta preocupação posteriormente é relegada a um plano inferior em favorde uma valorização maior dos estudos sobre representações sociais, apesar de os estudos arqueológicos mos-trarem e indicarem o papel relevante que os objetos possuem para o conhecimento das sociedades desapare-cidas e antigas, no sentido de materializarem valores, simbolizarem diferenças sociais e estabelecerem distin-ções entre outros.

2 As razões para esta insaciabilidade por bens têm sido teorizadas por vários autores. Entre as mais recentesteorizações, destacam-se as interpretações de Bauman e Campbell.

3 A apropriação simbólica da cultura material e das relações com ela encontra-se presente também na obra domais ilustre pensador antropólogo contemporâneo, Claude Lévi-Strauss. Em um texto célebre, intitulado “OPensamento Selvagem”, Lévi-Strauss discutiu de forma acurada a importância que os selvagens devotam aoconhecimento dos recursos naturais e materiais. Esse diletantismo, ao mesmo tempo materialista e empiricista,segundo Lévi-Strauss não está fundado numa retórica da necessidade, ou seja, não pode ser explicado comoorientado pela busca de satisfação das chamadas necessidades básicas.

4 The world of goods (1978) de Mary Douglas e Baron Isherwood, La Distinction (1979) de Pierre Bourdieu e ocapítulo final – O Pensamento Burguês – de Cultura e razão prática de Marshall Shalins (1979) podem serconsiderados as certidões de nascimento dos estudos de consumo na antropologia. Embora estes autoresainda não tivessem como tema central especificamente o consumo, eles destacaram a dimensão cultural doconsumo e o próprio materialismo como que precedendo a dimensão prática e econômica (produção), alémde seu papel fundamental no mundo contemporâneo como mecanismo de ordenação, classificação, media-ção e reprodução social. Note-se ainda que, dos três livros, somente o de Marshall Sahlins foi publicado noBrasil ainda na década de 70 (1979). The world of goods teve de esperar mais, sendo aqui publicado somenteem 2004, e La Distinction, a despeito da enorme popularidade de Bourdieu entre os cientistas sociais brasilei-ros e de boa parte de sua obra já ter sido editada entre nós, ainda não tem uma tradução em português.

5 A este respeito, ver Grant McCracken, 2003.

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D A N I E L M I L L E R*

POBREZA DA MORALIDADE**

Este artigo defende a idéia de que o estudo do consumoé freqüentemente regido por uma preocupaçãoideológica de punir a sociedade por seu materialismoem detrimento de uma moralidade alternativa oriundade uma preocupação empática com a pobreza e com odesejo de ampliar o acesso de todos aos recursosmateriais. Exemplos são dados dos benefícios advindosdo aumento da quantidade de bens para as pessoas emcertas circunstâncias. Uma ideologia materialista éfavorecida mais pela associação entre consumo eprodução do que pelo estudo dos consumidores em simesmos e de seus esforços para discriminar entre asconseqüências positivas e negativas das mercadorias.O tipo de moralidade que se contesta aqui está, também,associado a uma crítica generalizada à americanização,que tende a atribuir aos Estados Unidos toda a culpa eresponsabilidade pelo retrocesso do desenvolvimentoglobal e local. A tese da americanização tende, ainda,a ignorar a contribuição de boa parte do resto do mundona produção da cultura de consumo e do capitalismocontemporâneo e a negar qualquer autenticidade dacultura de consumo regional. Paralelos com o ensaiode E.P. Thompson, The Poverty of Theory, e suacrítica às posições ideológicas descomprometidas com oestudo da experiência humana são traçados.Palavras-chave: americanização; cultura de consu-mo; materialismo; moralidade; pobreza.

* Professor de Cultura Mate-rial no Departamento deAntropologia da UniversityCollege London. Atual-mente, conduz uma pesqui-sa de campo sobre o con-ceito de valor na políticaeconômica contemporânea.Seus livros mais recentes in-cluem: Capitalism: An Ethno-graphic Approach (Berg,1997); A Theory of Shopping(Polity/ Cornell UniversistyPress, 1998); Virtualism: ANew Political Economy (ed.),com J. Carrier (Berg,1998); The Internet: AnEthnographical Approach,com Don Slater (Berg,2000); Car Cultures (ed.)(Berg, 2001); e The Dialecticsof Shopping (ChicagoUniversity Press, 2001).Endereço: Department ofAnthropology, UniversityCollege London, GowerStreet, London WC1E 6BT,UK [e-mail: [email protected]]

** Gostaríamos de agradecera Sage Publication a per-missão de tradução e publi-cação deste artigo de DanielMiller anteriormente edita-do no Journal of ConsumerCuedore, vol.1, nº 2, nov.2001.

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Se há 20 anos o consumo era um tema indevidamente negligenciadopor todas as disciplinas, hoje nosso problema parece constituído de umdilúvio de trabalhos escritos sobre nossa relação com bens materiais,proporcional ao enorme fluxo dos próprios bens. Pretendo argumen-tar, no entanto, que este enorme fluxo de trabalhos escritos talvez acres-cente apenas um pingo de compreensão a respeito da natureza do con-sumo, os consumidores e a cultura de consumo. A discrepância entre aquantidade e a qualidade das pesquisas resulta, em grande parte, dopapel central ocupado pela moralidade na pesquisa sobre o consumo,que levou essa área de estudos a tornar-se mormente um espaço emque os acadêmicos possam demonstrar suas posturas diante do mun-do, em vez de um lugar em que o mundo se poste como um possívelcontraponto empírico a nossas hipóteses sobre ele.

Escreverei esse artigo sob a forma de um comentário geral, já que nãodesejo citar qualquer exemplo particular daquilo a que me oponho.Minha desculpa é que essa é uma circunstância inusitada em razão deas pessoas a que eu mais me oponho estarem provavelmente entre asque eu mais admiro e respeito. Prefiro imensamente os moralistas de-clarados que critico aqui às posturas amorais, ou mesmo imorais, da-queles que eles estão criticando. Isto é um apelo para que se mude deestilo e de orientação, mas estou tentando não perder muitos amigoscomo conseqüência! Meus alvos parecem ser interdisciplinares, incluin-do estudiosos de sociologia, estudos culturais, economia e estudos deconsumo. Minha caracterização me parece em grande parte imprecisaem relação à história e eu teria de confessar um viés que me faz pensarque a antropologia tenda a ser mais sutil. A postura que estou critican-do me parece mais característica da – embora de modo algum restrita à– produção acadêmica dos Estados Unidos, onde, eu argumentaria,tem havido uma persistência considerável tanto na forma de moralismoquanto nas crenças sobre o porquê de as pessoas consumirem. Tome-se, por exemplo, a centralidade da competição por status e da emulaçãotanto para Veblen quanto na obra recente de Schor (1998), estando aprincipal diferença entre ambos na extensão em que Schor julga teresse fator se difundido pela população como um todo.

O CONSUMO É MATERIALISTA?Minha posição básica é extremamente simples. Parece-me que os tex-tos sobre consumo estão saturados por uma profunda inquietação, sen-tida de modo mais acentuado por acadêmicos de boa situação econô-

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mica, principalmente nos Estados Unidos, acerca da possibilidade deserem materialistas demais. A isso, combina-se um desejo genuíno decriticar as desigualdades e a exploração decorrentes de vários aspectosdo capitalismo moderno, assim como, mais recentemente, umambientalismo estridente. Juntos, estes fatores produziram uma ver-dadeira indústria, que consiste na crítica a quase todos os aspectos doconsumo como um meio de atacar o tricéfalo Cérbero do materialismo,capitalismo e exploração do planeta. Essa postura moral é tão podero-sa que se recusa a ser alterada pela exposição aos inúmeros estudosconcretos sobre os consumidores e o consumo, nos quais eles aparecemcomo algo muito diferente do que essa crítica exige que sejam para queexpressem sua posição moral.

O resultado é uma visão extraordinariamente conservadora do consu-mo. De certo modo, o consumo, através da história, tem sido visto comoalgo intrinsecamente mau. Enquanto a produção cria o mundo, o con-sumo é o ato através do qual nós o exaurimos. Visões contemporâneasperpetuam o juízo histórico do consumo como uma doença devastado-ra (PORTER, 1993), cujos diagnóstico e prognóstico já foram decreta-dos; o único debate legítimo é o que versa sobre sua cura. Não há nissouma grande surpresa, já que meu argumento segue estritamente a ex-celente história desse mesmo moralismo publicada por Horowitz (1985).Embora ele mostre algumas mudanças na natureza desse moralismoatravés do tempo, são as continuidades na postura ideológica básica atéo crescimento do consumerismo1 que surpreendem. Minha questão nãoacrescenta nada além do argumento de que isso continua a ser válidohoje. Quer dizer, os trabalhos em circulação sobre “mega-shoppings” e“compras na realidade virtual” estão na verdade reciclando textos eargumentos que talvez atravessem milênios (SEKORA, 1977). O quetudo isso impede não é apenas um confronto oportuno com estudosconcretos sobre o consumo e os consumidores, mas o surgimento deuma crítica alternativa, baseada nesse confronto acadêmico, que sejasuficientemente sutil para ser criticada nos complexos e contraditóriosprocessos de consumo que podem ser efetivamente observados(MILLER, 1998b, 2001).

Considerarei estas três hipóteses: o consumo é materialista, o consumoé capitalista, e o consumo é incompatível com o ambientalismo. Tam-bém considero, sucintamente, algumas outras teorias obsoletas que dei-xam rastros no despertar desse moralismo, em particular a hipótese deque o consumo de massa é uma forma de americanização do mundo.Mas o tema central é o materialismo.

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A crítica ao materialismo é extraordinariamente elementar. Há, nessaliteratura, um sentimento persistente de que indivíduos ou relaçõessociais puros são conspurcados pela cultura de mercado. De fato, oprincipal sentido do termo “materialismo” em linguagem coloquial éaquele que indica um apego ou uma devoção a objetos em detrimentode um apego ou uma devoção a pessoas. Deve haver pessoas para quemo problema do materialismo é genuíno. Estou certo de que todos deve-ríamos ser condolentes com a terrível situação dos cosmopolitas quejulgam possuir pares de sapatos em demasia e se sentem culpados por-que seus cereais não eram realmente orgânicos, ou porque compraramum presente para seus filhos em vez de passar com eles a quantidadenecessária de “tempo qualitativo”. Suponho que haja muitas razões pelasquais tais pessoas sejam intimidadas pelo desperdício e pela quantida-de de bens de consumo. Mas o que não é aceitável é que o estudo doconsumo, e qualquer possível postura moral diante dele, seja reduzidoa uma expressão da culpa e das ansiedades dessas pessoas. O que issoindica é uma moralidade totalmente diferente, uma ética baseada emum desejo veemente de erradicar a pobreza. Vivemos numa época emque a maior parte do sofrimento humano é resultado direto da falta debens materiais. A maior parte da humanidade precisa desesperadamentede mais consumo, mais remédios, mais moradias, mais transporte, maislivros, mais computadores. Eu me consideraria um hipócrita se visse aaspiração de qualquer outra pessoa a um nível de consumo semelhanteao que desfruto com minha família como algo acima do razoável. Ja-mais encontrei – e quero dizer jamais realmente – um acadêmico em-preendendo uma pesquisa sobre o tema do consumo que parecessepraticar em sua própria família tal nível de consumo substancialmentebaixo. Assim, numa época em que mais da metade do mundo não pos-sui bens de primeira necessidade, acho difícil respeitar uma aborda-gem do consumo cuja única consideração seja a superfluidade das mer-cadorias.

De fato, penso que devemos começar com uma questão fundamental. Amaioria das mercadorias beneficia a maioria das pessoas? Comecemoscom a própria cultura material. Não acredito em um ser humano pré-cultural, despojado do mundo material. Mesmo as filosofias orientais,que vêem a iluminação como a eliminação do desejo, não corroboramo termo coloquial “materialismo”, já que suas metas são eliminar o de-sejo tanto em relação a pessoas quanto em relação a objetos, enquantose presume que a crítica contemporânea ao materialismo liberte as pes-soas das coisas para que tomem parte em relações puramente sociais.Minha formação em antropologia tem como ponto de partida o conceito

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oposto de autenticidade. Nosso fundamento para relações sociais au-tênticas tende a ser Mauss (1954) que, no Ensaio sobre o dom, parte doexemplo de crianças trocadas como se fossem coisas e então consideracoisas trocadas como se fossem pessoas. Quer dizer, a autenticidade dasociedade não-capitalista é vista na natureza inseparável de pessoas ecoisas. É a trajetória em direção ao capitalismo que leva ao desenvolvi-mento de uma ideologia da pessoalidade pura (e.g. Sennet, 1976), as-sim como um distanciamento cada vez maior das coisas, que, durante oIluminismo, começaram a ser vistas como algo radicalmente diferentedas pessoas, como algo que poderia diminuir nossa humanidade emvez de realçá-la.

Não quero repetir meus próprios passos até chegar à filosofia das rela-ções entre sujeito e objeto que é apresentada como uma teoria geral daobjetificação e, logo, da cultura em Miller (1987). Basta dizer que adotouma visão dialética. A humanidade e as relações sociais só podem sedesenvolver por intermédio da objetificação. Sujeitos são igualmente oproduto de objetos e vice-versa (como exemplificado em BOURDIEU,1977). É possível que estes objetos se tornem opressivos quando sãoseparados de nós, como sugere Marx, sob o capitalismo, ou, como su-gere Simmel, quando, com o desenvolvimento do subjetivo, não pode-mos mais assimilá-los. Como toda cultura, a cultura material é contra-ditória em suas conseqüências para a humanidade, mas isso não deve-ria diminuir sua centralidade para a própria possibilidade de nossahumanidade. No entanto, é claro que esse processo é um tanto diferen-te em uma sociedade com escassez de coisas e em uma sociedade comabundância. Em nossa imagem da cultura material dos aborígines aus-tralianos, pouquíssimos objetos e imagens formam a base de uma redesimbólica tão complexa que eles se tornam o suporte de projetoscosmológicos e sociais altamente sofisticados (MUNN, 1973; MYERS,1986). Em nossa própria sociedade, no entanto, a extrema superabun-dância de coisas parece inviabilizar isso. Podemos, seguramente, ver apossibilidade, vislumbrada por Simmel (1978), de estarmos superficial-mente ligados a tantas coisas que não nos envolvemos profundamentecom nada, levando ao que o sociólogo alemão viu como a condição blaséde um determinado modo de vida urbana. Além disso, a literatura re-cente supõe que as condições sob as quais somos levados a desejar, porexemplo, bens de marca por meio de uma propaganda exaustiva sãotão problemáticas que qualquer relação de identidade subseqüente, for-jada através desses bens, tem de ser inautêntica.

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O que me incomoda é que esse espectro de uma pessoa superficial eludibriada que se tornou um mero manequim para a cultura de merca-do é sempre alguém diferente de nós mesmos. São as pessoas comuns,a ralé, o consumidor de massa, um descendente direto da velha “críticaà cultura de massa” dos anos 1960. Nunca se trata de uma pessoa comoas encontradas no âmbito da entrevista etnográfica. Se, no entanto,abordarmos nossas próprias relações e práticas sociais com o mesmorespeito, a mesma empatia e a mesma paciência que um bom etnógrafose esforça em ter com a evidente autenticidade dos outros, então, vere-mos algo bem diferente: um mundo onde um par de tênis da Nike ouum jeans da Gap podem ser extraordinariamente eloqüentes sobre ozelo que uma mãe tem por seu filho, ou sobre as aspirações de umacriança asmática a participar de esportes.

Devemos começar com o reconhecimento de que há muitas coisas nomundo que vemos quase incontestavelmente como benéficas e que cer-tamente vêm às nossas mentes quando pensamos em termos deerradicação da pobreza, tais como moradias adequadas, remédios ba-ratos, roupas quentes e alimentos nutritivos. Por que tudo isso, de al-guma forma, se tornou outra coisa que não consumo? Por que isso nãoé o fundamento da cultura de consumo? Por que, para usar o título deum livro anterior,2 temos tanto receio de reconhecer que existe o con-sumo? E não se trata apenas de objetos. Vemos pessoas cujas oportuni-dades no mundo aumentam constantemente graças a enormes volu-mes de conhecimento: a biblioteca que oferece infinitas possibilidadesde livros, o transporte que lhes concede uma diversidade de lugares aserem experimentados, o desenvolvimento da tecnologia da informa-ção, que me possibilita levar apenas uma hora, em vez de uma semana,para corrigir minha (terrível!) ortografia e usar e-mails para trabalharcom colegas da Austrália e não apenas os do meu departamento.

Mas o que dizer das coisas do mundo cuja utilidade é menos óbvia?Será que realmente precisamos de centenas de modelos de calças, daculinária de todas as partes do mundo ou de um computador aindamais rápido? Novamente, só podemos considerar tais coisas a partirdaquele mesmo encontro respeitoso. Afinal, não é por reduzirem seumundo objetal à simples necessidade utilitária que respeitamos osaborígines australianos – mesmo que nem todos constituam sociedadesafluentes originais (SAHLINS, 1974). A idéia de que as pessoas daAmazônia, da Melanésia ou da Austrália aborígine foram ou são pessoasde necessidades simples ou básicas é uma distorção tão bizarra de umséculo de antropologia que ultrapassa os limites do crível. A essência

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dos ensinamentos antropológicos está justamente na riqueza do simbo-lismo desses povos, na interpretação das relações sociais e materiais, namaneira como a cosmologia e a moralidade são assimiladas e expressa-das nos mitos, na cultura material e em outros suportes como esses. Oshabitantes das ilhas Trobriand são conhecidos por suas enormes pilhasde inhames notavelmente longos e pelas viagens do kula para a troca debraceletes esculpidos em concha, não por seu apego a um funcionalis-mo estrito. Na maioria das vezes, os pobres são os mais categóricos emafirmar a centralidade do simbólico no consumo. Foram os que viviamnos bairros mais miseráveis da Inglaterra que conservaram o melhorcômodo da casa como um “salão” reservado quase exclusivamente paraexibição (ROBERTS, 1973). Os aldeões camponeses da Índiafreqüentemente contraem dívidas não por direitos fundiários básicos,mas para financiar festas de casamento. É a complexidade dos sistemassimbólicos dos povos do mundo, e não um utilitarismo ordinário, queos antropólogos procuram, esperam encontrar e celebrar em seus estu-dos. Assim, a questão que deveríamos colocar acerca de nossa própriasociedade é se haveria uma estrutura simbólica similarmente rica noâmbito de nossa própria cultura material.

Para responder a esta questão, abordo nossa cultura material no mes-mo espírito que abordaria a da Melanésia ou a da Amazônia, ou seja,através das nuanças da imersão etnográfica. Como exemplos, faço umresumo de duas dessas investigações etnográficas. A primeira (MILLER,1998a) se refere a uma rua comercial no norte de Londres. O que fa-zem os fregueses com o excessivo volume e diversidade de bens? Empoucas palavras, meu argumento é que encontramos uma sociedadeque no último século testemunhou transformações radicais em seusideais de amor e zelo. Se antes se observavam gestos específicos basea-dos em normas sociais, como o marido levar flores à mulher nas sextas-feiras, hoje temos a impressão de que só se pode expressar o amoratravés da sensibilidade demonstrada pelo indivíduo para tudo o queaprendeu sobre a natureza particular da pessoa com quem se relacio-na. Quando uma mãe faz compras para seu filho, ela pode achar quehá centenas de peças de vestuário que seriam ótimas para todos osamigos de seu filho, mas ela o ama o bastante para se importar imensa-mente com o equilíbrio exato entre aquilo que os colegas de seu filhoirão considerar “legal” e o que sua família irá considerar respeitável, obastante para rejeitar tudo o que encontra e continuar procurando atéachar um artigo que satisfaça essa necessidade sutil e exigente. Umamulher que tenha a impressão de que seu namorado prestou atençãosuficiente a ponto de acertar o número dos sapatos que lhe desse de

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presente irá pensar, quando estiver desacompanhada, que realmentetem um namorado a zelar. Como isso está relacionado com o comércioe o capitalismo, examinarei mais adiante; por agora, meu único inte-resse é sugerir que é possível que as pessoas apropriem essa supera-bundância de bens para realçar, em vez de diminuir, nossa afeição poroutras pessoas.

Meu segundo exemplo é extraído de Trinidad (MILLER, 1994), ondeum surto da indústria petrolífera fez com que a ilha deixasse de seruma região em desenvolvimento para se tornar relativamente rica, comacesso a grandes volumes de bens de consumo. Meu argumento é queos habitantes de Trinidad, tal como os aborígines australianos, estãopreocupados em encontrar um meio de objetificar seus valores e suasnormas morais. Antes da chegada do consumo de massa, o principalveículo dessa tarefa eram as outras pessoas. Em suma, os trinidadianostinham visões sólidas e explícitas sobre “como são as mulheres”, “comosão os indígenas”, “como são as pessoas de grande importância”. Emminha análise, sugeri que a maior parte desses vigorosos estereótiposdualísticos sobre gênero, classe, etnia e assim por diante, são o resulta-do da elaboração de um conjunto fundamental de valores igualmentedualísticos que procedeu da experiência radical da modernidade, par-ticularmente através da ruptura com a escravidão e da subseqüentecentralidade da liberdade. Em suma, tal como na maioria das socieda-des, as categorias relativas a pessoas se tornam os objetos que objetificamnossos valores. Analisei, então, os produtos de consumo de massa, oscarros, as roupas, as mobílias que surgiram com o surto da indústriapetrolífera e sugeri que, durante aquele período, as categorias relativasa pessoas foram substituídas por categorias relativas a coisas como omeio de objetificar esses valores e dualismos fundamentais. Como veí-culo para a expressão desses sistemas simbólicos, a cultura material apre-sentou inúmeras vantagens sobre as pessoas. Ademais, isso, em parte,liberou as pessoas do ônus de serem objetificadas para a expressão devalores e levou a uma maior liberdade para que as pessoas sejam trata-das mais em termos de caracteres peculiares e menos como meros sím-bolos ou estereótipos representantes de um determinado valor ou umaposição moral. Assim, nesse caso, o crescimento da cultura material e ocomplexo simbolismo dos bens de consumo de massa tenderam a dimi-nuir o tratamento de pessoas como estereótipos.

Assim, em ambos os casos, o simples desejo de se comportar como umantropólogo tradicional – com isso, quero dizer o desejo de considerarempaticamente a perspectiva das pessoas com quem se trabalha, sejam

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elas londrinas ou trinidadianas – cria a possibilidade de se investigar aapropriação da cultura material nos dois ambientes de modo análogoao como se estuda a cultura material da sociedade aborígine australia-na. Não pretendo sugerir que a perspectiva pós-moderna sobre a su-perficialidade exacerbada seja impossível. Pelo que me é dado saber, seeu fosse realizar uma pesquisa de campo em partes de Los Angeles, eufinalmente encontraria esses, por assim dizer, pobres ricos materialis-tas, que perderam a capacidade para tudo que vá além de relaciona-mentos superficiais com pessoas e coisas. Mas precisamos, no mínimo,considerar a possibilidade de que o volume excessivo da cultura mate-rial contemporânea pode, entre certas pessoas e em certas circunstân-cias, realçar sua humanidade e desenvolver sua sociabilidade.

Durante minha própria pesquisa de campo, verifiquei que o materia-lismo que está sendo combatido é, na verdade, bem mais predominan-te entre os empobrecidos. É quando trabalho com desempregados oucom aqueles que vivem em abrigos governamentais que encontro pes-soas que sacrificaram seu interesse pelos outros, algumas vezes seuspróprios parentes, por um desejo excessivo ou uma necessidade deses-perada de coisas. São as pessoas sem estudo que tendem a ter dificulda-de em apropriar a superabundância de bens porque um conhecimentoe um exame minuciosos são requisitos para se assimilá-los. As pessoasque se achavam incapazes de lidar com seus equipamentos de cozinhaforam as que também tinham dificuldade em fazer amizades e cons-truir uma vida social (MILLER, 1988). Essas experiências me levam ater a impressão de que possuo evidências para argumentar quemelhorias na educação, na riqueza e nos relacionamentos das pessoascom suas culturas materiais também são, freqüentemente, o fundamentopara intensificar suas relações sociais.

Porém, parece-me que as pesquisas sobre o consumo, sobretudo as rea-lizadas nos Estados Unidos, são motivadas por algo completamente di-ferente do desejo de se estudar efetivamente o consumo ou os consu-midores, por algo muito afastado desse comprometimento com a expe-riência etnográfica ou equivalente, baseada em um encontro empáticocom os consumidores. Antes, eu vejo, nas discussões mais recentes so-bre o consumo, uma espantosa continuidade à obra fundamental deVeblen e dos que o precederam.3 A marca dessa crítica “veblenesca” ésempre tomar os exemplos mais extremos de consumo conspícuo comocaracterização de todo e qualquer consumo. Assim, da mesma formaque antes era do minúsculo setor dos nouveaux riches – aqueles que po-diam arcar com as despesas de lacaios e outros empregados semelhan-

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tes – que saíam os verdadeiros consumidores de Veblen, agora é sem-pre o excesso manifesto de consumidores ricos que vem a representaro próprio consumo. Assim como Veblen afirmava o valor puritano dotrabalho e a prioridade da utilidade sobre a exibição, hoje, as expres-sões simbólicas nunca são “necessidades” verdadeiras e estão restritas àexpressão de valores negativos como a competição por status ou umaavidez insaciável. Consumo continua sendo o consumo conspícuo e oconsumo vicário baseado na emulação e no desejo de negar o trabalho.A única coisa que mudou com o passar de um século foram os exem-plos utilizados para ilustrar os argumentos.

Como escrevi em outro lugar (MILLER, 1995), julgo problemática aidéia de que o consumo seja tanto algo intrinsecamente bom quantoalgo intrinsecamente mau. Não pretenderia induzir, a partir dos doiscasos que acabei de apresentar, qualquer tipo de conclusão, sugerindoque o consumo tem de ser sempre visto como uma coisa boa. Esses sãoos dois lados de uma moeda a que o consumo parece interessar apenascomo uma postura diante de um comentário quase sempre simplistasobre a moralidade do Zeitgeist. Quanto a isso, ainda há uma distinçãoconsiderável entre os estudos acerca de uma cultura material, dedica-dos ao encontro etnográfico com as relações dialéticas da cultura comopráticas sociais e materiais, e alguns estudos culturais, que parecemreduzir o estudo do consumo à sua possível contribuição para o que sechama de “debates” e que acomodam diversos exemplos do consumocomo uma luta heróica ou como um ato de resistência. Creio que mi-nha postura diante do consumo tem sido coerentemente dialética(MILLER, 1987, 2001). Suponho que haja elementos igualmente posi-tivos e negativos em todos os avanços desse tipo e que a tarefa da polí-tica seja a de aumentar as possibilidades do bem-estar humano e ame-nizar seus efeitos negativos.

O CONSUMO É CAPITALISTA?O título desse artigo pretende evocar o ensaio clássico de E. P.Thompson, Pobreza de Teoria [The Poverty of Theory] (1978). A importân-cia de Thompson está no fato de que, na época em que ele escreveu suacrítica voraz a Althusser, a teoria – tal como a moralidade – devia serconsiderada como uma coisa intrinsecamente boa para os acadêmicos,de modo que atacar a teoria ou a moralidade seria o mesmo que profa-nar o sacrossanto. De fato, seu ensaio continua sendo exemplar namedida em que, como pretendo demonstrar, o problema da crítica ao

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consumo como uma cultura capitalista tem muito em comum com acrítica ao capitalismo que caracterizou o marxismo ocidental dos anos1970, e aquela está cometendo uma série de equívocos e fazendo juízoserrôneos muito semelhantes aos desta.

De um lado, havia nessa época uma profunda e necessária crítica àdesigualdade, que espero que a maioria dos acadêmicos ainda apóie.As idéias marxistas pareciam constituir, para a maioria dos acadêmicosda Europa ocidental, a própria essência de uma crítica moral, de umsentimento de que os males sociais tinham de ser expostos e combati-dos. Infelizmente, diversas tendências no interior desse movimentopodem ter sido, a longo prazo, contraproducentes para a crítica à desi-gualdade. A primeira era parte do que Thompson chamou de Pobrezade teoria. Ele argumentou que a teoria (hoje eu diria moralidade) pode-se tornar uma forma de enclausuramento, que só reconhece o mundoquando aquilo que se observa é gerado pela postura que se adota dian-te deste mesmo mundo. Se o consumo é capitalista, então apenas osatos de consumo que são coerentes com a imagem predominante docapitalismo são reconhecidos como um consumo verdadeiro. Em se-gundo lugar, a teoria se torna abstraída de sua relação com o empírico.Althusser desconsiderou a pesquisa histórica como mero empirismo.Thompson, pelo contrário, afirma que o fundamento da pesquisa his-tórica está no conceito de experiência que consiste em um compromis-so de se envolver empaticamente e ao máximo com a experiência queas pessoas têm de seu tempo. Enquanto moralidade e teoria parecemnão ter tal encontro como requisito (pois já conhecem aquilo a que seopõem), a investigação etnográfica que pretendo promover, assim comoa investigação histórica promovida por Thompson, representa umabusca por uma investigação empática sobre o que é experimentado(THOMPSON, 1978, p. 199-200). Por isso, hoje eu afirmaria que oencontro empírico tornou-se, com efeito, a fonte mais apropriada parao radicalismo contemporâneo, em contraposição às reivindicações deradicalismo ilegítimas, baseadas em uma teoria ou moralidade. Ainda,estudos acadêmicos sérios e abrangentes que se dediquem a comunicara humanidade dos consumidores – e não a usá-los apenas para testarhipóteses – permanecem conspicuamente raros em quaisquer pesqui-sas disciplinares sobre o consumo.

Por isso, é igualmente importante não presumir que o consumo sob ocapitalismo seja apenas consumo capitalista. Thompson não tinha dú-vidas de que estava estudando o capitalismo, mas ele jamais consentiuque sua descrição da classe trabalhadora inglesa fosse um mero peão

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no jogo da crítica ao capitalismo. Na verdade, seu principal esforço foio de resgatar a descrição dos trabalhadores e levá-los de volta à huma-nidade efetiva do que é experimentado. Foram os teóricos que reduzi-ram o proletariado a um simples tema a ser empregado na retóricaradical. Similarmente, hoje o esforço é o de resgatar a humanidade doconsumidor, impedindo que seja reduzida a um tropo retórico da críti-ca ao capitalismo. Na verdade, a crítica moralista ao consumodesumaniza o consumidor, transforma-o em um fetiche, e, portanto,serve à causa do mesmo capitalismo que alega criticar.

A descrição de Thompson da classe trabalhadora nunca negou a capa-cidade de as pessoas nela incluídas possuírem sua própria perspicácia eseu próprio sentido de luta. No meu primeiro trabalho sobre o consu-mo (MILLER, 1987), meu objetivo era precisamente argumentar queum pequeno grupo de acadêmicos não eram os únicos a sentirem-sealienados e ludibriados pelos excessos do capitalismo. A maioria daspessoas tem a impressão de que tendem a ser desumanizadas e aliena-das pela forma mecanizada e serial que assumiu a produção de massamoderna. Por isso, o consumo moderno não deveria ser meramentedesconsiderado como o ponto final de um processo usado para carac-terizar o capitalismo como um todo. Pelo contrário, eu afirmava que oconsumo era o próprio instrumento usado pelas pessoas para experi-mentar e criar a identidade que julgam ter perdido como operários docapitalismo, usando a massa de bens para agir contra a homogeneizaçãoe a massificação da produção capitalista. Longe de expressar o capita-lismo, o consumo é mais comumente usado pelas pessoas para negá-lo.Criticá-lo simplesmente como uma criatura do capitalismo é, portanto,ignorar a prática efetiva dos consumidores. Mas os moralistas que pre-cisam usar o consumo para criticar o capitalismo não são capazes deentender que, para as pessoas comuns, o consumo é, na verdade, amaneira pela qual elas combatem, no dia-a-dia, seu sentimento de alie-nação.

A concepção de materialismo sustentada por Karl Marx, por exemplo,não poderia ser mais distinta da empregada por boa parte da críticamoderna ao consumo. Como Stallybrass (1998) demonstrou recente-mente, Marx viu que o problema do proletariado era que seus inte-grantes haviam sido separados das pessoas porque haviam sido separa-dos das coisas. O inimigo de Marx era a pobreza e a falta de posses. Elereconheceu o papel vital da cultura material no desenvolvimento dasrelações sociais e culturais. O conceito contemporâneo de materialismoera totalmente alheio ao próprio Marx, já que até um conhecimento

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superficial de sua vida sugere que ele estava muito longe de ser um tipode asceta (WHEEM, 1999).

Pelo contrário, o marxismo ocidental dos anos 1970 adotou uma ver-são de asceticismo que tinha por pressuposto a idéia de que culturamaterial contemporânea – por ter sido criada pelo capitalismo – émaculada e irá conspurcar aqueles que vivem com e através dela. Esseasceticismo se revelou a causa de seu fracasso. Permitiu que os políticosde direita associassem o socialismo com a pobreza. A esquerda ascéticatornou-se extremamente impopular num mundo em que o verdadeiroproletariado ainda se considerava engajado em uma luta por um pa-drão básico de vida. Isso abriu o caminho para a vitória dos governosde direita de Reagan, Thatcher e suas proles. Mais recentemente, umareação a esse asceticismo apareceu sob a forma de um ramo dos estu-dos culturais que parecia celebrar o consumerismo moderno como oextremo oposto – uma forma heróica de resistência ou apropriaçãoque era inevitavelmente benéfica. A profundidade de Thompson eWilliams não impediu o movimento através do qual a cultura de massase tornou cultura popular; e, pelo simples fato de ser praticada porpessoas que trabalhavam, de algum modo esta passou a ser vista comoautêntica e nobre.

Materialismo, no sentido empregado por acadêmicos como Thompson,é precisamente o que devemos abraçar. É um compromisso com a uni-dade entre pensamento e experiência, com nossa existência concreta(THOMPSON, 1978, p. 210). O problema em relação aos críticos doconsumo não está no fato de eles serem materialistas demais – o quevêem como a condição nefasta do mundo. Aos meus olhos, o problemacentral das pesquisas sobre o consumo é que a maioria dos pesquisado-res simplesmente não é materialista o bastante. Eles mostram ter poucacompreensão do tipo de materialismo mais profundo que investigaçõesacadêmicas genuinamente críticas tentaram sustentar no século passa-do, exemplificadas por pesquisadores tais como E. P. Thompson. Elesestão insuficientemente mergulhados na materialidade da experiênciacomum e conduzem trabalhos de campo insuficientes sobre relaçõessociais e cultura material como práxis humanas. Muito do que está sen-do desenvolvido pela crítica contemporânea ao consumo repete, por-tanto, tudo o que saiu errado no desenvolvimento da crítica ocidentalmarxista ao capitalismo, fundada na Europa há 20 anos, correndo exa-tamente o mesmo risco de que o verdadeiro resultado sobre as posiçõesmorais se perca sob o desejo devastador por disposições morais.

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A erradicação da pobreza depende da industrialização e da produçãode massa. Uma infinidade de pequenos ofícios é ótima como hobbiespessoais, mas como base econômica é simplesmente uma receita paraaumentar a pobreza. William Morris produziu trabalhos artesanaismaravilhosos, mas não conheço muitas pessoas que poderiam arcar comas despesas de comprá-los. Minha própria postura deriva das tradiçõesda social-democracia européia. Esta tradição almeja por impostos maisaltos para financiar um aumento no bem-estar e uma redistribuição derenda, assim como por um Estado e órgãos internacionais mais fortespara refrear os efeitos imorais dos competitivos mercados de curto pra-zo, tais como, por exemplo, os fundos de pensão controlarem as em-presas para prover benefícios de longo prazo aos pensionistas, e nãopara drenar dinheiro dos negócios para o mercado de ações (CLARK,2000). Mas essa tradição social-democrata estabeleceu sua complemen-taridade em relação às economias de mercado e à industrialização apósassistir aos efeitos destrutivos da rejeição simplista dos anos 1970.4

O programa social-democrata lutou por um aumento no nível de ri-queza baseado tanto na redistribuição quanto na produção, reconhe-cendo que mesmo em sociedades afluentes a maioria das pessoas tem aimpressão de que suas necessidades não foram atendidas (SEGAL, 1988).Esse programa viu a industrialização como dotada de um potencial paradiminuir a jornada de trabalho. O problema tem sido o declínio dessesavanços em contraposição à crescente influência do modelo norte-ame-ricano que se volta para os mercados de ações e metas financeiras decurto prazo,5 e que foi associada às pressões cada vez maiores sobre otrabalho, descritas por Cross (1993) e Schor (1992). Mas este é um con-junto específico de associações; não é algo intrínseco ao capitalismo, é acombinação particular do capitalismo com o liberalismo característicade regimes neoliberais. A alternativa social-democrata sugere que nãohá nada intrínseco a sociedades de consumo que deveria levar a desi-gualdades ou a maiores pressões sobre o trabalho; o que se exige é umapolítica que permaneça firme em considerar o bem-estar humano comosua meta.

UMA CRÍTICA À CRÍTICA DA AMERICANIZAÇÃO

Imaginemos que estamos realizando um estudo do consumo contem-porâneo entre a classe média da Tailândia (poderia ser igualmente naNigéria ou no Sri Lanka). Documentamos o envolvimento dessa classeem uma ampla gama de produtos de consumo modernos. Observamos

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seus filhos assistindo a Pokemon, vemos o chefe de família conseguirfinalmente comprar aquela Mercedes em que ele estava de olho haviaalgum tempo. Presenciamos uma festa muito bem regada a garrafas deuísque. Após acumular nossas evidências, escrevemos um artigo acadê-mico usando isso como um estudo de caso sobre a americanização.

Displicentemente ignoramos o fato de que nem o Pokemon, nem o uís-que, nem a Mercedes (não mais que a maioria da cultura de consumomoderna) são oriundos dos Estados Unidos. A cultura de consumo con-temporânea é de fato produzida por todo o mundo. No entanto,enfocamos os seguintes aspectos. Primeiro, a perda do que considera-mos uma cultura autêntica, que deduzimos ser aquela que caracteriza-va historicamente as pessoas dessa região específica. Somos da opiniãode que esta cultura autêntica foi substituída pelo que consideramos comouma cultura inautêntica que não pode ser um verdadeiro meio de ex-pressão para as pessoas da região como a cultura material substituídaera capaz de sê-lo. Em segundo lugar, enfocamos as evidências demercantilização e do que vemos como o surgimento de materialismo,hedonismo e individualismo, todos por nós associados com a mesmasubstituição da cultura material autêntica pela inautêntica. Em terceirolugar, enfocamos as evidências de globalização e de incorporação des-sas pessoas no capitalismo de mercado global. Em quarto lugar, chama-mos a atenção para o desenvolvimento de distinções de classe e de status,e para outras diferenças no interior dessa sociedade tal como expressaspelos padrões de consumo. Finalmente, concluímos que a combinaçãode todos estes fatores comprova a contínua expansão da americaniza-ção, acreditando que contribuímos para a crítica a esse processo.

Seria possível que tais textos aparentemente bem-intencionados e mo-ralmente corretos fossem, em um outro âmbito, formas altamente inte-resseiras, condescendentes, ou mesmo racistas de uma produção aca-dêmica que projeta principalmente os interesses dos acadêmicos norte-americanos de classe média? Presumo que os autores de materiais comoesses acreditam piamente que tais artigos são uma expressão de suainquietação genuína com o bem-estar das outras pessoas e com o danoque eles crêem ser infligido aos outros por poderosas forças que associamcom sua própria sociedade. Assim, não desejo impugnar suas motiva-ções de modo algum. Pretendo simplesmente sugerir que eles podeminterpretar mal as implicações de sua própria produção acadêmica. Alémdisso, o que tais artigos acabam concretizando é a predominância con-tínua de uma postura norte-americana específica sobre o tema do pró-prio consumo – postura que critiquei antes –, mas, nesse caso, exporta-

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da para o resto do mundo. Em certo sentido, isso pode significar umaexploração do mundo em benefício da postura moral de um grupo.

Meu argumento baseia-se na questão de até que ponto a crítica à ame-ricanização faz as seguintes suposições. Primeiro, que a única popula-ção a ter o direito de reivindicar uma relação autêntica com a modernacultura de consumo são os cidadãos norte-americanos. Em segundolugar, que as pessoas negras (com a possível exceção dos negros declasse média “made in USA”) não são capazes de usar tais coisas paraexpressar sua própria autenticidade. Em terceiro lugar, que o únicolugar a ter produzido e a reivindicar o crédito pela construção dessacultura de mercado são os Estados Unidos. Em quarto lugar, que ape-nas os Estados Unidos e sua forma própria de capitalismo estão aptos areivindicar a “culpa” pela criação de diferenças sociais e de classe ondequer que elas possam ser encontradas. Em quinto lugar, que tal riquezaé em si e por si mesma um atributo inautêntico para pessoas dos paísesem desenvolvimento que, portanto, têm menos direito a ela que os “na-turalmente” ricos do Primeiro Mundo. Com efeito, negros ricos nospaíses em desenvolvimento são uma anomalia – aparecem na academiacomo uma aberração horrenda em meio à pureza da alteridade maisautêntica. Em sexto lugar, que todas as relações do resto do mundocom a cultura de mercado podem ser caracterizadas como uma relaçãode “consentimento” – que é, então, sintomática dos “povoamentos” co-loniais ou pós-coloniais – ou de “resistência” – ocasião em que as outraspessoas são estimadas por terem respondido “apropriadamente”. Porúltimo, todas as outras sociedades são estimadas por serem “natural-mente” boas, de modo que, se duas tribos da África tentam cometergenocídio ou se um governo coreano oprime seu povo, não se trata deuma expressão da complexa história dessa região, mas tem de ser oefeito colateral ou do colonialismo (hoje, de modo mais usual, pós-colonialismo), ou do capitalismo, ou da influência norte-americana. Sobessa atitude condescendente, apenas os Estados Unidos e a Europa oci-dental podem ser autenticamente maus.

Wolf (1982) escreveu sobre os povos sem história, e era um antropólo-go profundamente apaixonado, preocupado com o bem-estar das pes-soas pelo mundo afora, assim como com os efeitos do colonialismo e dadependência. Ainda, é curiosamente a atribuição mecânica da culpa/crédito ao Ocidente (não obstante o emprego algumas vezes contradi-tório do termo “pós-colonial”) pelo que quer que continue a acontecer,e onde quer que continue a acontecer, que garante que, se depender denós, esses povos permanecerão sem história. O paradoxo da crítica à

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americanização é que, em essência, ela é em si mesma uma forma deamericanização. O paradoxo é que, ao reivindicar toda a responsabili-dade pela cultura moderna, os norte-americanos podem, com efeito,levar todos os créditos. Seu ponto de partida é que toda cultura deconsumo é, de algum modo, profundamente americana. Já observeique nenhum dos bens em meu exemplo declaradamente ficcional eraoriundo dos Estados Unidos. Tive conhecimento de tal absurdidadequando fiz a resenha do livro Re-Made in Japan (TOBIN, 1992). Trata-va-se de uma série de estudos sobre a cultura de consumo no Japão.Fica claro que, não obstante a obviamente enorme contribuição dosjaponeses para a produção contemporânea de bens de consumo, osjaponeses deram um jeito de se convencerem de que a cultura de con-sumo é, na verdade, algo que veio dos Estados Unidos e, por isso, cons-tituía uma ameaça à autenticidade nipônica.

Potencialmente, essa negação da contribuição do resto do mundo paraa produção da cultura moderna é uma circunstância desastrosa, já que,na medida em que as pessoas de cada região do mundo se tornamusuárias da cultura de mercado, elas passam a ter a impressão de que,de alguma forma, se tornaram menos autênticas, de que essa culturanão lhes pertence realmente por mais que elas a possuam. Lembro-mede perceber um efeito patológico disso quando falava com umtrinidadiano que, durante o surto petrolífero, havia comprado 25 cal-ças jeans. Por mais calças que ele comprasse, ele jamais conseguia terposse delas, já que o jeans permaneceria sempre norte-americano, e elenão o era. O que está sendo exportado é o sentimento de alienação.

Quando estudava em Trinidad, tomei como ponto de partida os senti-mentos expressos no romance The Mimic Men [Os homens imitadores]de V.S. Naipaul (1967). Naipaul parecia sugerir que, sem uma profun-da história própria, essa mistura de pessoas deslocadas não tinha qual-quer esperança de um dia ser algo mais que a imitação da cultura demercado e das aspirações desenvolvidas em outro lugar. É a implacávelsuperficialidade dessa emulação constante que é ridicularizada em suaobra. Não surpreende que, mais tarde, Naipaul se encontre quaseinexoravelmente atraído pela região do santuário de Stonehenge – omanancial da única cultura que precisamente ele considerava autênti-ca, a britânica. Em um livro inspirador, The Enigma of Arrival [O enigmado nascimento] (1987), ele começa a entrar em acordo com a percep-ção de que, na verdade, tinha simplesmente se recusado a aprovar aautenticidade da mudança e a fluidez da cultura, manifesta até nos ar-

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redores de Stonehenge. Só então ele começou a pensar na própriaTrinidad como ao menos potencialmente autêntica.

Grande parte de meu trabalho de campo em Trinidad foi uma tentati-va de demonstrar que o consumo pode ser um processo de construçãode uma cultura inalienável e autêntica sob uma perspectiva regional enão apenas individual. Escrevi deliberadamente sobre os exemplos maismaculados e menos plausíveis da cultura local: uma telenovela produ-zida nos Estados Unidos, Coca-cola, a celebração do Natal, as opera-ções de firmas capitalistas e, mais recentemente, a Internet (MILLER,1994, 1997; MILLER, SLATER, 2000). Em cada caso, destaquei o quedeveria ser chamado de cultura a posteriori em vez de a priori. Ou seja,temos de reconhecer que a cultura pode ser o produto de uma localiza-ção ulterior de formas globais, em vez de apenas o que tem profundastradições históricas locais. Argumentava que não só a Coca-cola tem deser entendida em Trinidad como “um líquido doce e preto” que vemda própria Trinidad,6 mas que o próprio capitalismo, como um sistemade produção e de distribuição, é ativamente consumido e localizado damesma forma que os bens por ele produzidos. Até o último exemplo deevidente globalização – a Internet – transforma-se em um instrumentopoderoso para o estabelecimento das qualidades específicas de práticasculturais altamente provincianas e nacionais, assim como para objetificaruma forma de nacionalismo estridente. Precisamente por isso, tenteienfocar as exportações trinidadianas não apenas de música e estilo,mas de administradores de empresas e de web designers.

Minha conclusão é que a crítica à americanização tornou-se, na verda-de, um dos exemplos mais perniciosos de americanização. Suspeito quepovos por todo o mundo sejam completamente oprimidos por umacrítica à americanização que lhes diz constantemente que a cultura poreles cada vez mais habitada jamais lhes pertencerá, e nega qualquerpapel que possam ter desempenhado em sua produção. Além disso,chegamos a um estágio absurdo em que a única atividade que concedeautenticidade à maior parte do mundo é a “resistência”.

CONCLUSÃO: A MORALIDADE DA POBREZA CONTRA

A POBREZA DA MORALIDADE

Em minha experiência de campo, seja em aldeias de camponeses naÍndia ou em abrigos governamentais de Londres, nada me sugere quehaja benefícios sociais advindos da pobreza. Não posso aceitar que aluta cotidiana da maioria das pessoas desse mundo para aumentar suas

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rendas seja ludibriada. Meu problema é, antes, definir por que o ramode investigação acadêmica do qual me ocupo parece partir da premissade que bens são prejudiciais a seus donos. Só posso explicar isso pelaseguinte lógica. Primeiro, que muitos desses acadêmicos pertencem aominúsculo grupo que realmente tem a impressão de possuir o suficien-te. Em segundo lugar, que muitos deles vêm de uma tradição históricaem que a produção empresarial de riquezas se desenvolveu em e atravésde uma ideologia protestante de asceticismo. Que Weber continue sen-do o melhor fundamento para analisar a ideologia dominante dessesacadêmicos, Horowitz o confirma historicamente e isso permanece evi-dente hoje em dia. Além disso, ainda há raízes mais antigas no medo doconsumo como uma atividade intrinsecamente destrutiva, o lugar emque os objetos são exauridos. Em terceiro lugar, parece justo acrescen-tar que o medo do materialismo é compartilhado pela maior parte daspessoas mundo afora, mesmo durante suas procuras por posses. O quetem sido ignorado são as medidas que a maioria das pessoas toma paraagir contra o potencial anti-social de sua cultura material.7 Contraria-mente, eu argumentaria que o ponto de partida apropriado ao estudodo consumo é precisamente esta e inúmeras outras contradições queparecem fundamentais tanto para o consumo quanto para as relaçõessociais modernas. O que a riqueza traz consigo não é apenas um efeitobom ou ruim, mas o aparecimento claro de contradições históricas, porexemplo, a incompatibilidade entre um sentimento de liberdade e odesejo por reciprocidade social, ou a substituição dos interesses do con-sumidor por uma multidão de consumidores “virtuais” tais como audi-tores, consultores, economistas e grupos litigiosos que reivindicam seros representantes dos consumidores mas usurpam seus interesses. Aosmeus olhos, essas contradições estão muito próximas das verdadeiraslutas dos consumidores contemporâneos.8

Neste artigo, não abordei em qualquer detalhe as críticas ambientalistas,basicamente porque as reconheço como uma preocupação oportunapelo bem-estar de nossos descendentes e por nossa própria responsabi-lidade em relação ao ambiente em que vivemos. Mas até essa crítica éenfraquecida quando fica claro que ela se torna a linha de frente de umrepúdio ascético da necessidade de bens. A essa altura, pode se tornarum inimigo em vez de um aliado na luta contra a desigualdade e apobreza, como quando a necessidade de mostrar de que modo os resul-tados de regulamentações estruturais na transferência de provisões parao bem-estar dos pobres se perde em uma maré de preocupações verdessobre a Organização Mundial do Comércio, ou quando os defensores

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de florestas fecham os olhos para as necessidades dos habitantes dasflorestas empobrecidos. Não há, no entanto, razões para que oambientalismo simplesmente siga a antiga suspeita diante do consumo,visto como o processo pelo qual exaurimos os recursos, e que, portan-to, o rotula como um mal intrínseco. Uma verdadeira medida desustentabilidade que acolha a capacidade da ciência de encontrar mé-todos para aumentar a riqueza sem prejudicar o planeta é certamentecompatível. Similarmente, o desejo de dar crédito ao modo como osconsumidores consomem e à autenticidade de alguns dos seus desejospor bens não necessariamente diminui a crítica acadêmica à maneiracomo as empresas tentam vender bens e serviços, ou exploraram traba-lhadores ao fazê-lo. Não vejo nada neste artigo que, por exemplo, con-tradiga a crítica recentemente lançada por Klein (2001).

Finalmente, espero que realmente não haja nada neste artigo que pos-sa sugerir que eu tenha qualquer desejo de reduzir a centralidade damoralidade para a análise acadêmica do consumo. Meu próprio pontode partida para tornar-me um profissional foi o argumento de Habermas(1972) contra a ilusão de tal neutralidade moral na academia. O queataquei foi a pobreza dessa moralidade, que, em seu desejo de atacar omaterialismo, afastou-se aos poucos de uma consideração das experi-ências de pobreza, do combate à desigualdade, do grito por justiça e danecessidade de se aumentar o padrão de vida. Em suma, do reconheci-mento de que, entre outras coisas, a pobreza é constituída por umacarência de recursos materiais. Isso pode ser moderado pelas preocu-pações ambientalistas, em que elas permaneçam orientadas para o bem-estar tanto da população quanto do planeta. O que aprendemos com oestudo acadêmico do consumo não é que a cultura material seja boa ouruim para as pessoas. Antes, aprendemos que as pessoas têm de tomarparte em uma luta constante para criar relações com coisas e com ou-tras pessoas, e que um empático levantamento de dados sobre essaslutas tem muito a oferecer. Por outro lado, uma literatura que permiteque as ansiedades dos ricos obscureçam o sofrimento dos pobres e queparece presumir constantemente que os bens são intrinsecamente mauspara as pessoas simplesmente não é a minha idéia de uma abordagemmoral do tema do consumo. É, antes, um indício de que uma disciplinaacadêmica perdeu o contato com a razão de ser de seus estudos.

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ABSTRACT

This article contends that the study of consumption is often subsumed withinan ideological concern to castigate society for its materialism at the expenseof an alternative morality that emerges from an empathetic concern withpoverty and the desire for greater access to material resources. Examples aregiven of the benefits that accrue to populations from an increased quantityof goods in certain circumstances. An anti-materialism ideology is favouredby associating consumption with production rather than studying consumersthemselves and their struggles to discriminate between the positive and nega-tive consequences of commodities. The Americanization thesis also tends toignore the contribution of much of the rest of the word to the production ofconsumer culture and contemporary capitalism, and to deny the authenti-city of regional consumer culture. Parallels are drawn with E. P. Thompson’sessay The Poverty of Theory and its critique of similarly disengaged ideo-logical critiques that led academics away from the study of experience.Keywords: Americanization; consumer culture; materialism; morality;poverty.

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NOTAS

1 Sobre o vocábulo “consumerismo”, ver nota da tradutora ao texto de Franck Cochoy supra p. XXX.2 Acknowledging Consumption.3 Ver HOROWITZ (1985).4 Cf. NOVE, 1993.5 Cf. HENWOOD (1997) e HUTTON (1996).6 Ver também WATSON (1997).7 Ver GELL (1986) e WILK (1989), sobre o papel da casa a respeito disso.8 Ver MILLER (2001).

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C O L I N C A M P B E L L*

O CONSUMIDOR ARTESÃO:1

CULTURA, ARTESANIA E CONSUMO

EM UMA SOCIEDADE PÓS-MODERNA

Este artigo propõe que os cientistas sociais deveriamreconhecer explicitamente a existência de consumidoresque tomam parte no “consumo artesanal” e, portanto,de mais uma imagem do consumidor a ser posta aolado das imagens do “tolo”, do “herói racional” e do“consumidor pós-moderno em busca de uma identida-de”. O termo “craft” [artesanal] é usado para fazerreferência à atividade de consumo em que o “produto”em questão é, em essência, percebido como sendo “idea-lizado e fabricado pela mesma pessoa”. Trata-se de umaforma de consumo para a qual o consumidor emprestasua habilidade, conhecimento, discernimento e paixãoao ser motivado por um desejo de se expressar. Tal con-sumo artesanal genuíno distingue-se, pois, de práticasestreitamente associadas, tais como a “customização” ea “personalização”, e é identificado pelo fato de serusualmente encontrado em áreas específicas de consu-mo tais como decoração de interiores, jardinagem, cu-linária e na escolha do vestuário. Enfim, após notarque consumidores artesãos tendem a ser pessoas dota-das de capital tanto monetário quanto cultural, toma-se a sugestão de Kopytoff, de que a mercantilização pro-gressiva poderia induzir a uma “reação desmercantili-zadora”, como ponto de partida para algumas especu-lações sobre as razões do recente crescimento do consu-mo artesanal.Palavras-chave: artesania; consumo; customização;personalização; desmercantilização; criatividade; ex-pressão da individualidade.

* Professor de Sociologia daUniversity of York, na In-glaterra. Autor do livro Aética romântica e o espírito doconsumismo moderno (Rocco,2001)

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INTRODUÇÃO

Por muito tempo, duas imagens do consumidor prevaleceram na lite-ratura das ciências sociais sobre o consumo. Uma, central na teoriaeconômica, é a do consumidor como um ator ativo, que calcula e racio-cina, alguém que cuidadosamente aloca recursos escassos para a com-pra de bens e serviços de modo a maximizar a vantagem obtida. Aoutra, encontrada com maior freqüência nos textos de críticos da “so-ciedade de massa”, é a do consumidor passivo, manipulado e explora-do, o súdito das forças do mercado; alguém que, por conseguinte, étotalmente “constrangido” a consumir em conformidade com tais for-ças. Don Slater referiu-se a essas duas imagens como “o herói” e “otolo” (SLATER, 1997a, p. 33). No entanto, no decorrer das últimasdécadas, uma terceira imagem passou a ocupar uma posição impor-tante, em grande parte como conseqüência do impacto da filosofia pós-moderna sobre o pensamento social. Essa última não representa o con-sumidor nem como um ator racional nem como um tolo indefeso, mascomo um manipulador dos significados simbólicos vinculados aos pro-dutos, dotado de autoconsciência. Alguém que seleciona os bens com aintenção específica de usá-los para criar ou manter uma dada impres-são, identidade ou estilo de vida (FEATHERSTONE, 1991). Por maispreponderantes que essas três imagens sejam, elas não esgotam as for-mas de se representar o consumidor nas ciências sociais contemporâ-neas, nem parecem corresponder – em separado ou em conjunto – deum modo particularmente rigoroso à descrição do comportamento doconsumidor revelada pelas pesquisas.2 Pois tem sido cada vez maior onúmero de evidências a sugerir que uma quarta imagem pode ser umguia melhor para a compreensão da prática de consumo na sociedadecontemporânea, uma imagem que talvez pudesse ser chamada de “oconsumidor artesão”.

Poder-se-ia dizer que esse modelo se aproxima mais do herói que dotolo de Slater, já que rejeita qualquer sugestão de que o consumidorcontemporâneo seja simplesmente um indefeso fantoche de forças ex-teriores. Por outro lado, também não confere grande importância àconduta racional e auto-interessada, nem presume, como ocorre como modelo pós-moderno, que o consumidor tenha uma arrebatadorapreocupação com sua imagem, estilo de vida ou identidade. Pelo con-trário, a hipótese aqui é a de que indivíduos consomem principalmen-te por um desejo de tomar parte em atos criativos de expressão de suaindividualidade. Assim, embora esse modelo contenha a suposição deque os consumidores respondem ativamente a mercadorias e serviços,

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empregando-os conscientemente como um meio de alcançar seus pró-prios fins, não há a hipótese de que eles estejam tentando criar ou mes-mo manter necessariamente um senso de identidade.3 Pelo contrário,sustenta-se que esses consumidores já possuem um senso de identida-de claro e estável, e, ainda, que é isso que ocasiona seu modo de consu-mo distinto.

O PENSAMENTO SOCIAL E O CONCEITO

DE CONSUMO ARTESANAL

A visão tradicional da relação do artesanal com a cultura – ou seja, a doséculo XIX e do início do século XX – provavelmente encontra suamelhor expressão nos textos de críticos da sociedade como Karl Marx eThorstein Veblen. Para esses pensadores, a forma de trabalho empre-endida pelos artesãos era a mais pura de todas as atividades humanas.Era vista como enobrecedora, humanizadora e, portanto, como o meioideal pelo qual indivíduos expressariam sua humanidade. Segue-se aisso que a substituição da produção artesanal pela produção mecaniza-da e organizada em fábricas, um processo que constituiu a essência darevolução industrial, era vista por esses mesmos pensadores como umprocesso necessariamente desumanizador, que conduziu, em termino-logia marxista, ao estado de alienação. Em decorrência da ampla ado-ção dessa visão de mundo, a atividade artesanal se tornou o própriosímbolo da era pré-moderna, com a conseqüência de que defender asvirtudes desse modo de produção era equivalente a fazer oposição àprópria modernidade. Daí a tendência de se rotular os atuais defenso-res do artesania de românticos, apreensivos com o mundo moderno,seja almejando um retorno a uma era pré-industrial mais antiga, sejanutrindo sonhos irrealistas de utopias em um futuro pós-industrial.Ora, está claro que essa maneira particular de ver a atividade artesanalainda é corrente na sociedade atual, de modo que a hipótese de umadicotomia básica entre as produções artesanal e mecanizada, ou demassa, ainda sustenta boa parte do pensamento contemporâneo. O ar-tista-artesão continua sendo contraposto a uma divisão do trabalho queenvolve a separação dos processos de concepção e de manufatura. Umadicotomia que traz consigo o contraste tácito, se não explícito, entre otrabalho inalienável, humano e criativo de um lado, e o labor pura-mente mecânico, insatisfatório e alienante de outro.

Ora, os escritores que primeiro formularam essa visão essencialmentemaniqueísta da natureza do trabalho desconsideraram completamente

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a esfera do consumo. As sociedades que eles estavam preocupados emcompreender eram, pelo que podiam ver, manifestadamente domina-das pela atividade de produção, ao passo que o consumo – em socieda-des cuja maior parte da população era malnutrida, além de parcamen-te vestida e alojada – não parecia ser um tema que justificasse muitainvestigação. No entanto, quando, nos anos seguintes à Segunda Guer-ra Mundial, os cientistas sociais de fato começaram a dar mais atençãoà arena do consumo, havia uma tendência de transferir essa românticavisão de mundo predominantemente antimoderna e aplicá-la no outrolado da equação econômica. A hipótese tendia a ser a de que, se a pro-dução mecanizada e de larga escala, estabelecida em fábricas, era umaexperiência essencialmente alienante para os envolvidos, então pareciaseguir-se a isso que o consumo de mercadorias produzidas dessa formatinha de ser similarmente alienante. Ou, se a atividade de consumo nãofosse em si mesma considerada como algo que contribuísse para a alie-nação da produção, de qualquer modo, também não serviria paradissipá-la ou contra-atacá-la. Portanto, nas sociedades modernas, o con-sumo, geralmente rotulado de “consumo de massa”, passou a ser visto,ao menos por intelectuais e cientistas sociais de esquerda, como uma“coisa ruim”. À mesma época, os consumidores eram geralmente des-critos como pessoas à mercê dos anunciantes e publicitários que, aoexplorar a mídia de massa, eram capazes de manipulá-la em favor deseus próprios fins. Assim, os consumidores eram, em grande parte,descritos como tolos que caem no conto-do-vigário ao comprarem umaprofusão de produtos padronizados, desprovidos de inspiração estéti-ca, dos quais, na maioria das vezes, não tinham nenhuma necessidadeefetiva, e que raramente eram capazes de trazer qualquer satisfaçãoreal ou duradoura (SLATER, 1997, p. 63). No entanto, as últimas déca-das testemunharam o desenvolvimento gradual de uma interpretaçãoum tanto diferente do papel do consumo nas sociedades modernas decapitalismo tardio, interpretação em que essa associação do consumocom a repressão de modos autênticos de expressão da individualidadeé totalmente invertida.

A RECUSA AO MODELO DO CONSUMIDOR COMO UM TOLO

A primeira mudança de opinião a significar um passo nessa direçãosurgiu com o desenvolvimento de um programa de trabalho sobresubculturas jovens, cuja maior parte foi empreendida nos anos 1960 e1970. Esse trabalho visava a ressaltar até que ponto os jovens membrosdesses grupos usavam os produtos do mercado de massa não de um

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modo simples, sem uma postura crítica, mas, pelo contrário, emprega-vam-nos para expressar sua rebeldia ou resistência à “ideologia domi-nante” (HALL, JEFFERSON, 1976). Em seguida, na segunda metadeda década de 1980, à medida que a sociologia do consumo começava adespontar como um campo de estudo distinto, surgiu a sugestão deque os consumidores estavam fazendo mais que simplesmente resistiràs pressões dos anunciantes e publicitários. Pois, como demonstrouDaniel Miller, em Material Culture and Mass Consumption (1987), a ativi-dade de consumo contemporânea poderia ser considerada como de-tentora de um potencial desalienante. Ele sustentava que o consumodeveria ser visto como um processo em que um objeto genérico, abstra-to e alheio – uma mercadoria – seria transformado em algo que erajustamente o seu oposto. Ele escreveu: “como atividade, o consumopode ser definido como aquela que transfere o objeto de uma condiçãoalienável, ou seja, a de ser um símbolo de estranhamento e valor mone-tário, para a de ser um artefato investido de conotações particulares einseparáveis” (1987, p. 190). Como Miller sugere, o que de fato trans-forma o objeto não é apenas o processo de tomar posse dele, mas suaincorporação em um arranjo totalmente estilizado, tal como um domritual ou memorabilia. A tal processo, ele se refere como o que envolve arecontextualização da mercadoria de tal modo que os bens são“transmutados” em uma “cultura potencialmente inalienável” (1987,p. 215).4 O foco de Miller era o consumo como “prática cultural”, coma conseqüente ênfase na maneira como o significado de um produtopoderia ser transformado pelo contexto e pela maneira de seu uso.Portanto, atividades como colecionar, presentear ou estilizar poderiamser vistas como ações que, com efeito, “negam” o status mercantil doproduto (1987, p. 192). Ora, embora Miller não se refira a essa formade consumo como artesania (ele de fato se refere a ela como “ativida-de”), muito menos como “consumo artesanal”, este termo poderia pa-recer apropriado para designar a atividade de consumo tal como ele aconsidera. Portanto, este seu perceptivo insight será tomado como pon-to de partida para o argumento a ser desenvolvido aqui, de que grandeparte do consumo empreendido por indivíduos nas sociedades ociden-tais contemporâneas deveria ser concebida como uma atividadeartesanal, ou seja, como uma atividade em que indivíduos não apenasexercem o controle sobre o processo de consumo, mas também trazemhabilidade, conhecimento, discernimento, amor e paixão à ação de con-sumir, tal e qual, como sempre se supôs, os artesãos tradicionais abor-davam sua atividade.

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O QUE É CONSUMO ARTESANAL?O verbo “to craft” significa “fazer ou modelar com habilidade, especial-mente com as mãos” (HANKS, 1979), ao passo que o tipo de atividadeque se costuma considerar correspondente ao rótulo “artesanal” in-cluiria a tecelagem, a impressão xilográfica manual, trabalhos borda-dos, ourivesaria, joalheria, encadernação, confecção de móveis e simi-lares. Tanya Harrod (1995) define “craft” como “feito e concebido pelamesma pessoa”, uma definição que parece convir às atividades listadasacima, embora a autora observe que esta definição também se aplica àsbelas artes, como a pintura ou a escultura, de modo que a fronteiraentre estas duas esferas é difícil de identificar. O aspecto crucial dessadefinição, no entanto, é a ênfase dada ao fato de o produtor artesanalser alguém que exerce pessoalmente o controle sobre todo o processoenvolvido na manufatura do bem em questão. Portanto, o trabalhadorartesanal é alguém que escolhe o projeto do produto, seleciona o mate-rial necessário e, em geral, confecciona pessoalmente o objeto em ques-tão (ou ao menos supervisiona diretamente sua confecção). Daí ser pos-sível dizer que o produtor artesanal é aquele que investe sua personali-dade ou individualidade no objeto produzido. E é, decerto, essa a ra-zão por que tal forma de atividade de trabalho tem sido tradicional-mente considerada como expressiva dos aspectos mais humanos, cria-tivos e autênticos da natureza humana. Segue-se a isso que o termo“consumo artesanal” é usado similarmente para fazer referência a ati-vidades em que os indivíduos ao mesmo tempo concebem e fazem osprodutos que eles próprios consomem. No entanto, é importante res-saltar que o termo “produto” está sendo usado aqui – conforme o usoque Daniel Miller faz da expressão “arranjo estilizado”, citada acima –para fazer referência a uma criação que pode consistir de diversos itensque, em si mesmos, são mercadorias produzidas em massa e vendidas avarejo. Isto é, o consumidor artesanal é tipicamente uma pessoa queadquire um certo número de produtos fabricados em massa e os em-prega como “matérias-primas” para a criação de um novo “produto”,que é, em geral, destinado ao consumo próprio. Assim, se fizermos oparalelo com a produção artesanal, poderíamos dizer que o consumi-dor artesão é alguém que transforma “mercadorias” em objetos perso-nalizados, ou, poder-se-ia dizer, “humanizados”. E é pelo fato de essetipo de consumo ser usualmente caracterizado por um nítido elementode habilidade e maestria, ao mesmo tempo em que dá margem àcriatividade e à expressão da individualidade, que se justifica descrevê-lo como “consumo artesanal”.

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Ora, o termo “craft” é, de fato, uma versão abreviada da palavra“handicraft” [arte manual], vocábulo que imediatamente chama a aten-ção para o contraste entre o trabalhador tradicional, que produz obje-tos “manualmente”, e o moderno trabalhador industrial, que os pro-duz com o auxílio de uma máquina. E, decerto, é justamente aprevalência e supremacia da máquina na sociedade contemporânea aprincipal razão pela qual o termo “craft” pareceria de tal modoinapropriado para qualificar qualquer aspecto da vida moderna. Po-rém, seria equivocado tomar atividade “manual” equivalente a umaausência de máquinas, pois artesanias tradicionais, tais como a olaria ea tecelagem, implicam claramente o uso de “máquinas” (isto é, a rodado oleiro e o tear). Portanto, não é a ausência de máquinas que distin-gue a arte manual das formas mais modernas de manufatura, mas, pelocontrário, o fato de, na primeira, as máquinas serem movidas manual-mente (ou, de modo mais acurado, “pelo pé”) e – traço de maior im-portância – estarem diretamente sob o controle de quem as opera. Comefeito, este último ponto é exatamente o mais crucial, já que é o sistemaindustrial, com as formas de disciplina e controle que lhe são associa-das (como a linha de montagem), que estabelece o verdadeiro contras-te com a produção manual. Portanto, o contraste não ocorre entre aprodução manual e a mecanizada, mas, antes, entre um sistema de pro-dução em que o trabalhador assume o controle da máquina e outro emque a máquina assume o controle do trabalhador. Sob essa perspectiva,é possível ver em que medida um dos aspectos intrigantes da modernasociedade de consumo é a maneira como máquinas têm sido rea-propriadas à tradição artesanal, auxiliando e incentivando consumido-res artesãos, em vez de privá-los de sua tradicional autonomia. Assim, aferramenta elétrica se tornou um auxílio crucial para todos os entusias-tas do “Faça você mesmo”, a batedeira elétrica para os chefs amadores eos cortadores elétricos de sebe e de grama para os entusiasmados jardi-neiros. O que é significativo em todos estes exemplos é o fato de ohumano controlar a máquina, e não a máquina controlar o humano.Embora isso seja um traço assaz óbvio do processo pelo qual as tarefasdomésticas têm sido cada vez mais “mecanizadas”, há uma tendênciade se negligenciar sua importância potencial para o desenvolvimento ea expressão da individualidade, em prol de uma ênfase sobre seu papelem reduzir “o fardo” da “labuta” doméstica.

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APROPRIAR, CUSTOMIZAR E PERSONALIZAR

Falar do consumo artesanal não é, em primeiro lugar, se referir a estesprocessos através dos quais indivíduos primeiro selecionam e depoiscompram produtos e serviços. Alguém poderia, talvez, se referir àque-las pessoas que dedicam uma porção de tempo, esforço e inteligênciapara descobrir “a melhor compra” ou garantir que estão “fazendo va-ler” o seu dinheiro como consumidores artificiosos [crafty], mas não sãoessas as atividades discutidas aqui. Antes, o interesse é por aquilo queos indivíduos de fato fazem com os produtos comprados uma vez queos levam para casa. Ora, isso só começou a ser um objeto de investiga-ção sociológica séria nos anos recentes. No entanto, foi demonstradoque os consumidores freqüentemente tomam parte no que se chamade “rituais de posse” (MCCRACKEN, 1990, 85 et seq.), isto é, ativida-des que desempenham a importante função de habilitar os consumido-res para adquirir o “título de propriedade” dos bens em questão. Umacordial recepção caseira pode ser precisamente considerada um ritualde posse, assim como a prática comum de se experimentar as roupasnovas que acabaram de ser trazidas das lojas (muito embora essa nãoseja a ocasião em que o consumidor pretenda usá-las). Estes rituais aju-dam no processo de superar a natureza inerentemente alheia dos pro-dutos fabricados em massa e de assimilá-los no mundo de sentido quepertence ao consumidor. Esta função é então reforçada pelo que se temchamado de “rituais de tratamento”, que abrangeriam atividades comolavar e limpar o carro, polir móveis e, naturalmente, lavar e passar asroupas. Todas estas atividades cumprem a mesma e importante funçãode ajudar os consumidores a apropriar mercadorias padronizadas ouproduzidas em massa a seu próprio mundo de sentido individual.5 Noentanto, não se pode dizer que todas as atividades em que os indivíduostomam parte após a aquisição de um bem se enquadram na categoriadas que revelam o consumo artesanal. Na verdade, há que fazer distin-ções importantes entre atividades como “customizar” e “personalizar”produtos e o verdadeiro consumo artesanal.

CUSTOMIZAÇÃO

Um meio convencional pelo qual se poderia dizer que consumidoresconquistam o “efeito de apropriação” é o processo de “customizar” pro-dutos padronizados. Aqui, produtos fabricados em massa são “marca-dos”, seja pelo varejista ou pelo consumidor, de modo a indicar que sãopropriedade particular de um indivíduo específico. Por exemplo, grafar

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o nome ou as iniciais do freguês em produtos como um relógio, umacaneta ou pasta é uma prática que há muito tem seu lugar estabelecidono rol de serviços oferecidos por varejistas. Sob uma perspectiva pura-mente instrumental, esta prática poderia ser considerada como equiva-lente a um mero artifício para garantir que os objetos em questão per-maneçam em posse de seus donos, como no caso das etiquetas comnomes afixadas nas roupas das crianças quando entram na escola. Noentanto, também está claro que, na grande maioria dos casos, o acrésci-mo do nome ou das iniciais do dono ao produto é, por si só, um impor-tante ritual de posse e, portanto, uma indicação direta de que ocorreualguma “apropriação” subjetiva do item em questão. Naturalmente, emalguns casos, como, por exemplo, na versão da etiqueta de identifica-ção especialmente arrogante e auto-afirmativa que é a placa de carroparticularizada, o ritual de posse envolvido também pode ser visto comodotado de uma vantagem adicional (do ponto de vista do consumidor):a de permitir que se tome parte no consumo conspícuo. No entanto,está claro que estes exemplos não podem ser tomados como verdadei-ros casos de consumo artesanal, simplesmente porque não foi feita ne-nhuma modificação significativa na natureza do que continua sendoum produto padronizado. Antes, seria mais apropriado considerar taisatividades como meros resultados da “customização” de mercadorias.

PERSONALIZAÇÃO

Atividades mais próximas do que se poderia considerar casos de consu-mo artesanal seriam aquelas em que consumidores “ajustam” os pro-dutos no intuito de adaptá-los para atender suas necessidades. Subir abainha de um vestido ou apertar o cós de uma calça são exemplos demodificações em itens de vestuário “confeccionados” que pareceriamjustificar esta designação. Entretanto, trata-se de um tipo de serviçooferecido com uma freqüência cada vez maior pelos próprios varejis-tas, de modo que é importante estabelecer a distinção entre tal ativida-de quando empreendida pelo varejista e o que, por contraste, poderiaser qualificado como uma legítima alteração do próprio usuário. Noentanto, aqui também ainda não é o caso de os consumidores tomaremparte em atividades que resultam em uma modificação significativa naconcepção original do produto, embora possam ter de exercitar algu-ma parcela de habilidade. Nesse sentido, a “personalização” efetuadapelo próprio usuário ainda não é necessariamente o mesmo que o tipode ação criativa implicada no termo consumidor artesão, como defini-do acima. O aspecto mais crucial de qualquer atividade de consumo

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que mereça ser rotulada de “artesanal” é o elemento de modificação naconcepção do produto e, mesmo assim, somente quando empreendidapelos próprios consumidores. É claro que, por muito tempo, se os con-sumidores possuíssem recursos, poderiam adquirir um “serviço perso-nalizado”, tanto dos produtores quanto dos varejistas; isto é, um servi-ço em que os produtos eram especificamente concebidos e manufatu-rados para atender os gostos e preferências de um indivíduo. Por mui-to tempo, as aristocracias da maior parte dos países puderam assegurarque a maioria de seus bens estivesse incluída nessa categoria, ao passoque, hoje, até as classes medianas podem, muitas vezes, arcar com asdespesas de ter certas aquisições fundamentais projetadas e fabricadasde modo personalizado, cujos principais exemplos são a casa projetadapor arquitetos e os ternos sob medida. No entanto, aqui também aindaé o caso de os produtos serem feitos por outros, não pelos própriosconsumidores, embora estes últimos possam expressar claramente suaspreferências quanto à concepção dos produtos em questão (assim como,quanto ao material usado em sua “construção”). Portanto, se seguir-mos estritamente a definição de atividade artesanal como aquela emque objetos são “feitos e concebidos pela mesma pessoa”, este tipo depersonalização ainda não deve ser levado em conta. O consumo artesanalremete claramente a mais que à simples customização ou personalizaçãode produtos, ou seja, tem de significar mais que meramente ter umproduto marcado com o nome ou as iniciais de alguém, ou mesmo con-tratar um especialista para projetar um produto especialmente paravocê. Para que se justifique a descrição de uma atividade de consumocomo artesanal, o consumidor tem de estar diretamente envolvido tan-to na concepção quanto na produção do que será consumido.

PERSONALIZAÇÃO SUBVERSIVA

Há, entretanto, outro sentido em que se poderia dizer que produtosmanufaturados foram “personalizados”: quando são usados de umamaneira diferente da planejada pelos fabricantes. Decerto, vários moti-vos distintos poderiam induzir indivíduos a usar produtos de uma for-ma excepcional ou imprevista e nem todas essas adaptações poderiamser vistas como decorrentes de um desejo de expressão da individuali-dade ou de criatividade. Em muitos casos, podem simplesmente repre-sentar um equívoco da parte do consumidor ou uma resposta a cir-cunstâncias excepcionais. Por outro lado, os consumidores podem sim-plesmente possuir mais engenhosidade e criatividade do que os fabri-

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cantes e varejistas lhes atribuem.6 Um exemplo particularmente inte-ressante desse tipo de personalização é a adaptação ou o emprego deprodutos padronizados de maneiras diferentes das planejadas pelosfabricantes de modo a servir de marcas ou “distintivos” para os mem-bros de uma subcultura. Um exemplo óbvio desta prática seria vestirum boné com a aba “ao contrário”. É claro, dificilmente se poderiadizer que uma modificação desse tipo representa um exemplo decriatividade individual, embora sua inauguração e adoção por um gru-po possam ser consideradas um exemplo de “personalização subversi-va”. Outros exemplos clássicos desta prática seriam a desafiante modi-ficação, típica de estudantes “rebeldes”, das normas de vestuário quedevem ser adotadas nos uniformes. Práticas como vestir as meiasemboladas no tornozelo, em vez de esticadas até o joelho, camisas parafora da calça ou da saia, em vez de para dentro, gravatas folgadas, emvez de justas em volta do pescoço etc. Tais exemplos são úteis parademonstrar que anunciantes e varejistas não são as únicas forças queinfluenciam a maneira como os consumidores escolhem fazer uso debens. Não que esta tendência seja especialmente nova. Por exemplo,membros de subculturas jovens – como sugere a referência ao boné aocontrário – têm se demonstrado propensos a agir como consumidoressubversivos já há algum tempo. Os chamados “teddy boys”7 dos anos 1950,por exemplo, realmente pediam aos alfaiates para ajustar seus ternosde acordo com seus próprios modelos eduardianos, ignorando o con-selho profissional concernente ao que era considerado esteticamenteaceitável no vestuário masculino. As roupas singulares que distinguiamgrupos como os hippies, assim como as dos punks, também não foramintroduzidas pelos estilistas da moda, mas pelos próprios jovens. Emcada um destes exemplos, os usuários conceberam suas roupas, algoque ainda é válido atualmente e se manifesta no conhecido fenômenoda “moda de rua”. O que talvez seja novo é a tendência de uma faixamais larga de consumidores, que não inclui apenas os estudantes deartes ou membros de algum grupo jovem, de também começar a que-rer agir dessa forma. Isto é, começar a assumir um grau de controlepessoal sobre a natureza e o modelo das roupas que usam e, ainda,sobre uma ampla gama de produtos consumidos no dia-a-dia. Tal fatopoderia parecer decorrente de um desejo de imprimir a própria perso-nalidade, através da afirmação de seu gosto, no produto. Assim, as evi-dências sugerem que sobretudo as consumidoras querem cada vez maispersonalizar suas próprias roupas, como no exemplo da mulher que sepôs a alterar a alça da bolsa Gucci que tinha acabado de adquirir – e por

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um preço bem elevado (CRAIK, 2000). Outros exemplos similares cita-dos no mesmo artigo incluíam encurtar apenas uma manga de um ves-tido novinho em folha, acrescentar apliques de renda em uma saia efazer fendas e rasgos em uma calça jeans nova. Tais “modificações” empeças de vestuário que foram cuidadosa e deliberadamente concebidaspara ganhar determinada aparência revelam claramente a existênciade um desejo intenso de customizar os bens de consumo.8 Ora, o que éespecificamente interessante nestes exemplos é poderem ser vistos comoações que visam a recuperar a “singularidade” ou a “unicidade” queeram tradicionalmente a marca de autenticidade do objeto produzidomanualmente [handicrafted]. Assim, pode-se dizer que os consumidorestomam parte nessas ações não apenas para “tornar sua” a mercadoriaem questão, mas também para distingui-la de suas inúmeras gêmeasidênticas que foram fabricadas. Para a maioria das pessoas que nãopodem arcar com as despesas de uma alta costura original, a singulari-dade é, então, alcançada através do trabalho empreendido pelo consu-midor, uma vez que o objeto aparentemente finalizado está em sua posse.

CONSUMO ARTESANAL COMO UMA ATIVIDADE

DE FORMAR CONJUNTOS

No entanto, personalizar mercadorias individuais não é típico da maiorparte do consumo artesanal contemporâneo. É muito mais provávelque este modo de consumo tome a forma de novos “produtos estilizadosem um conjunto”, formados a partir de matérias-primas ou de merca-dorias finalizadas, do que a modificação direta destas últimas, comopode ser percebido se passarmos a considerar, na sociedade contempo-rânea, as áreas mais evidentes e importantes da atividade de consumoem que uma dimensão artesanal existe claramente. Tais áreas podemser identificadas no mundo do “Faça você mesmo” e das modificações emelhorias domésticas, assim como a jardinagem, a culinária e a cons-trução e manutenção de um guarda-roupa. O que é significativo nessasformas de consumo é ser possível comprar um produto finalizado, oude “pronta entrega”, em cada caso. Ou, alternativamente, contratarespecialistas tanto para projetar quanto para supervisar a “manufatu-ra” do produto final. No entanto, parece que um número cada vezmaior de pessoas está rejeitando essas opções em prol de “fabricarartesanalmente” tais produtos para si mesmas. Quer dizer, elas estãodecidindo tanto conceber quanto “fazer” o resultado final. A própriapopularidade dos programas de televisão sobre comida e culinária, ousobre reprojetar e redecorar interiores e jardins, assim como os diver-

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sos livros e revistas a eles associados, tudo isso sugere que existe umagrande população de consumidores que quer ser bem-sucedida em criarseus próprios produtos finais, esteticamente significativos.9

O preparo de comida é um exemplo bem característico. De um lado,trata-se, naturalmente, de uma atividade de produção tanto quanto(ou ainda, em vez de) uma atividade de consumo. No entanto, quandonão empreendida como um trabalho remunerado e por aqueles quepretendem comer o produto final, tal distinção é difícil de estabelecer.É patente, porém, que cada vez mais consumidores estão predispostosnão apenas a tomar parte no considerável esforço necessário para sele-cionar os ingredientes, mas também a empreender as etapas subseqüen-tes (e com freqüência complexas, como o preparo, o cozimento e a apre-sentação) necessárias à entrega desse conjunto de pratos culinários cul-turalmente prestigiosos que constituem a entidade chamada “refeição”.Comida que, mesmo sem ser destinada apenas ao consumo próprio,não costuma ter em vista a venda no mercado. E parece que não have-ria grande dúvida de que é razoável chamar esta atividade de artesanal.Afinal, o produto final é feito ou moldado com habilidade e manual-mente, e, mesmo se a “concepção original” for retirada de outro lugar(i. e., um livro de receitas), alguma improvisação freqüentemente ocor-re. Também se trata de uma ocasião em que habilidade e conhecimentopodem influenciar a escolha das “matérias-primas” (i. e., os ingredien-tes) e em que há grande espaço para a criatividade. Ao mesmo tempo,existe uma estratégia alternativa de consumo, fácil e prontamente aces-sível, que evita a via artesanal, dado que há tanto uma ampla gama derefeições prontas no mercado, quanto inúmeros restaurantes e estabe-lecimentos de pronta entrega. No entanto, o que é crucial notar acercade grande parte desse “consumo artesanal” é que normalmente ele nãoenvolve a “criação” física de um produto – mesmo se tal traço for algu-mas vezes menos aparente na culinária que em áreas como decoraçãode interiores, vestuário pessoal ou jardinagem. Antes, o que é realmen-te “criado” é um “conjunto”, ou uma “reunião” de produtos, cada umdos quais pode ser em si mesmo um item padronizado ou produzidoem massa. Ainda, é esse tipo de “criatividade para juntar” que é tãotípico do consumidor artesanal moderno, patente, por exemplo, nomodo como indivíduos escolhem combinar as roupas que formam um“conjunto”, ou na maneira como eles dispõem móveis e itens decorati-vos para criar um determinado “estilo” em um cômodo, ou mesmo emsuas casas como um todo.

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COLECIONAR COMO CONSUMO ARTESANAL

Por outro lado, o reconhecimento de que grande parte do consumoartesanal contemporâneo assume a forma de uma construção de con-juntos tem a utilidade de chamar a atenção para a atividade de colecio-nar, o que, por colocar em evidência essa atividade particular, ajuda aesclarecer certos aspectos distintivos do consumo artesanal moderno. Aatividade de colecionar tem sido definida como “o processo de adquirire possuir, de forma ativa, seletiva e apaixonada, coisas afastadas do usocomum e percebidas como parte de um conjunto de objetos ou experiên-cias não-idênticos” (BELK, 1995, p. 67). Ora, a partir desta definição,fica claro que colecionar – com sua ênfase em uma orientação ativa e noenvolvimento apaixonado – é, em si mesma, uma forma de consumoartesanal, sendo a “coleção” o resultado final, produzido “manualmen-te”. Também fica claro que este processo requer não apenas habilidadee conhecimento, mas é essencialmente criativo, pois os colecionadoresrecontextualizam ativamente produtos individuais, situando-os em umacriação maior chamada “a coleção”, atribuindo-lhes, portanto, um novosignificado e valor. Este processo implica não apenas os rituais de possee de tratamento, mas também um investimento considerável da “indi-vidualidade” do consumidor-colecionador em sua nova criação. Comotal, pode ser confrontado com a atividade criativa do entusiasta do “Façavocê mesmo”, da jardinagem ou da culinária, ainda que cada produtoindustrializado comprado no mercado (nem todas as coleções são com-postas por produtos vendáveis, bem entendido), considerado como umaentidade à parte, não sofra qualquer modificação. Aqui também, pode-mos notar que colecionar é outro traço das sociedades de consumo con-temporâneas, amplamente difundido e de crescimento acelerado. Es-tes comentários também servem para chamar a atenção para mais umtraço distintivo do consumo artesanal, que é o de ter uma dimensãoautotélica e estética que lhe é crucial e, como tal, apresentar uma seme-lhança fundamental com a ação de “brincar”. Como observou BjarneRogan, colecionar é “muito mais que uma questão de distinção e emu-lação social. É também divertimento e brincadeira” (1998, p. 440).

DA PERSONALIZAÇÃO AO CONSUMO ARTESANAL

Embora existam, à disposição de cada consumidor, inúmeros caminhosque o levariam a tomar parte em atividades do tipo artesanal, o maiscomum é o caminho do desenvolvimento “natural”, a partir de rituais

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normais de tratamento e de posse. Assim, se o ato de redecorar umcômodo envolve a mudança da cor escolhida quando de sua primeiraocupação, poder-se-ia dizer que a atividade em questão se aproxima doprocesso de “personalização”,10 ou seja, mudar o produto de algumamaneira para atender as necessidades, gostos ou desejos particularesde um indivíduo. Já isso, por sua vez, poderia despertar um interessemais duradouro pela decoração de interiores, que leva à aquisição deum conhecimento especializado e de habilidade, de modo que o sim-ples ato de personalizar se transformou em um projeto com um prazomais longo que é o “consumo artesanal”. Entretanto, um cuidado comrituais de posse e de tratamento também pode, naturalmente, ser sin-toma de um hobby ou passatempo preexistente, que é, em si mesmo,construído em torno de uma mercadoria produzida em massa. Portan-to, este interesse conduz diretamente à atividade de personalizar e, emseguida, ao genuíno consumo artesanal.11

CONSUMO ARTESANAL E A CULTURA MAIS ABRANGENTE

Ora, não se pretende sugerir que, nas sociedades ocidentais contempo-râneas, a maioria dos consumidores seja composta por consumidoresartesãos. Tudo o que se sustenta é que uma parcela significativa e cres-cente dos consumidores modernos encontra-se nesta categoria.Manifestadamente, como se notou acima, a opção não-artesanal nãoapenas continua a existir como também é a forma de consumo adotadapor muitos. Assim, ainda é o caso de um número considerável de con-sumidores modernos jamais praticar jardinagem, redecoração, ou mo-dificar fisicamente suas habitações de modo algum, ou mesmo levarmuito tempo escolhendo roupas e preparando refeições. E, para mui-tas destas pessoas, tal consumo não-artesanal é imposto pelo empobre-cimento de seu modo de vida. Assim, elas podem carecer tanto de di-nheiro quanto de tempo para preparar artesanalmente [to craft] umarefeição, ao passo que, talvez, elas simplesmente não tenham um jar-dim ou habitem imóveis alugados. Por outro lado, também há um nú-mero de pessoas abastadas com casa própria que, apesar de possuir osrecursos (inclusive o tempo) para tomar parte no consumo artesanal,escolhem não fazê-lo, e assim continuam a agir conforme o estereótipodo consumidor de produtos de massa moderno. Entretanto, a ausênciade tempo ou de riqueza suficiente não é, bem entendido, o único fatora impedir muitos consumidores de adotar a opção artesanal. Comoobservou Bourdieu, também é necessária uma certa quantidade de “ca-

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pital cultural” para se estar em posição de re-apropriar produtos demassa a ponto de expressarem a individualidade de uma pessoa ouservirem como um meio de realização pessoal. Mais especificamente,pode-se dizer que um certo tipo de capital cultural é necessário paraperceber mercadorias como “matérias-primas” passíveis de serem em-pregadas na construção de “entidades estéticas” compostas, assim comopara saber quais princípios e valores são relevantes para o empreendi-mento dessas construções maiores. Com efeito, o mais provável é queconsumidores artesãos sejam pessoas não só dotadas de tal capital cul-tural, como também mais preocupadas do que a maioria com os possí-veis efeitos “alienantes” e homogeneizantes do consumo de massa. Algoque ajuda a justificar seu entusiasmo com a opção artesanal, já que elassão propensas a vê-la como a forma apropriada de resistir com êxito atais pressões (HOLT, 1997). No entanto, isto não significa que, nas socie-dades modernas, indivíduos de posições mais pobres (tanto no sentidoconvencional quanto no sentido cultural do termo) estejam, todos, ne-cessariamente excluídos do consumo artesanal. Nem todas as ativida-des deste tipo requerem um capital ou uma despesa considerável, nemtodas as subdivisões dos menos abastados carecem de tempo de lazer.Além disso, o capital cultural requerido é, com freqüência, relativa-mente fácil de se obter, quase sempre através dos meios de comunica-ção mencionados anteriormente. Enfim, é importante notar que, emreferência a alguns aspectos do consumo artesanal, este capital podeinclusive ser de natureza popular em vez de elitista.

Isso porque, em relação à totalidade do complexo sistema cultural dassociedades modernas, poder-se-ia dizer que a atividade artesanal exis-te na interseção de um conhecimento folclórico genuíno com a moda ea arte sofisticada. Quer dizer, de um lado, há um corpo de conhecimen-tos práticos adquiridos pessoalmente, do tipo que é freqüentementetransmitido boca a boca, hereditariamente ou de praticante a pratican-te. Exemplos incluiriam a receita da vovó para o pudim de Yorkshireou para o bolo de gengibre, ou ainda os segredos do mais antigo pro-prietário de um sítio sobre como cultivar alhos-porós dignos de prê-mio. De outro lado, encontram-se aqueles artistas e designers cuja ativi-dade inovadora tende a estabelecer a moda ou o estilo vigente, sejapara banheiros, mobília, plantas de jardim ou maneiras de servir comi-da. Poder-se-ia dizer que o ponto em que essas duas influências se cru-zam representa o “meio-termo cultural”, geralmente ocupado pelo con-sumidor artesão.

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POR QUE PARECE HAVER UM CRESCIMENTO

NO CONSUMO ARTESANAL?Igor Kopytoff sugeriu que não apenas há “claramente uma ânsia pelasingularização nas sociedades complexas” (1986, p. 80), mas que esseprocesso não deveria ser visto como uma simples oposição àmercantilização. Antes, ele sugere que ambos deveriam ser vistos comoprocessos que existem em um tipo de relação dialética, de modo que ofortalecimento progressivo de um não serve tanto para eliminar o ou-tro, mas antes para estimular uma reação oposta e equivalente. O argu-mento baseia-se no fato de ambos serem essenciais se uma “ordem socialsignificativa e harmoniosa deve existir” (ibid.). Trata-se de uma suges-tão intrigante que oferece uma explicação possível para o aumento doconsumo artesanal nas sociedades em que a mercantilização segue empasso acelerado. Não somente este último processo tem sido repetida-mente “contestado” – algumas vezes com um êxito considerável –, comoé mais que possível que sua intensificação induza os indivíduos a buscarformas novas e mais eficazes de combater seus efeitos. Quer dizer, maisformas de “tornar as coisas preciosas”, “especiais”, “singularmente sig-nificativas” ou “sem preço”. Ao mesmo tempo, é óbvio que isso nãopode ser facilmente alcançado apenas com um “virar as costas” para asociedade comercial, ou com uma recusa em se envolver no “mundodos bens materiais”. Antes, a estratégia mais realista é “abraçar” o mun-do das mercadorias e usar seus próprios recursos culturais e pessoaispara transformá-las em “singularidades”.

Decerto, é possível ver como o crescimento do consumo artesanal nassociedades ocidentais contemporâneas poderia representar tal reaçãoà mercantilização progressiva. É possível que, à medida que cada vezmais aspectos da vida moderna se tornam sujeitos a esse imperativoeconômico, cada vez mais indivíduos venham experimentar a necessi-dade de escapar deste processo ou, mesmo, de contra-atacá-lo. Querdizer, eles poderiam vir a desejar que algum recanto de sua existênciacotidiana fosse um lugar onde objetos e atividades possuíssem signifi-cados por serem percebidos como únicos, singulares ou mesmo sagra-dos. Vista dessa forma, a arena do consumo artesanal poderia tornar-se extremamente valorizada por ser percebida como um oásis de ex-pressão da individualidade e autenticidade pessoais em meio a um “de-serto” de mercantilização e mercadização em incessante ampliação.

Bem entendido, sugerir isso não significa negar que o crescimento doconsumo artesanal seja, ao mesmo tempo, plenamente funcional para

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a expansão contínua do capitalismo de consumo, ou que – ironicamen-te – possa, na verdade, servir para fornecer ainda mais oportunidadesà mercantilização. Como já vimos, tais atividades artesanais geram, elasmesmas, um aumento na demanda de uma ampla gama de bens e ser-viços de consumo, de tintas a utensílios especializados de cozinha, delivros de receitas a novas espécies de plantas. Simultaneamente, seriapossível argumentar que, como todas as atividades de lazer e hobbies, talatividade também funciona como “recreação”, já que permite que indi-víduos recuperem suas faculdades e energias, de modo que sejam no-vamente “qualificados” para cumprir seus papéis produtivos (SLATER,1997a, p. 2). Entretanto, seria possível que o consumo artesanal possuísseuma relação um tanto diferente com o mundo do trabalho, relação estaque também ajuda a explicar seu crescimento até a proeminência.

O que também está claro é que, em grande parte, são pessoas de classemédia e profissionais que têm abraçado o consumo artesanal com tantoentusiasmo, exatamente os grupos que nos anos recentes têm experi-mentado não apenas uma desprofissionalização, mas também aburocratização elevada, o monitoramento externo e a avaliação formaldo desempenho. Como resultado, seria possível que tais pessoas este-jam cada vez mais se retirando para o mundo privatizado da expressãoda individualidade como uma conseqüência direta do decréscimo dasoportunidades de exercer uma atividade expressiva, criativa e inde-pendente em seus papéis profissionais? Essas são justamente as pessoascujo trabalho tinha tradicionalmente muitos dos atributos de uma “vo-cação”, ou seja, não era um mero “ganha-pão” mas uma atividade vistacomo algo que oferecia tanto um claro senso de identidade quanto sa-tisfações pessoais intensas. No entanto, suas ocupações foram perden-do progressivamente seu caráter profissional – em grande parte comoconseqüência da intervenção administrativa –, o que poderia explicar atendência desses indivíduos de buscar na esfera privada justamente assatisfações que eles percebem não estarem mais disponíveis na esferapública. Quanto a isso, seria possível sustentar que a desprofissio-nalização está fazendo à classe média exatamente o que Hoggart (1957)sustentou que a industrialização fez às classes trabalhadoras: desviar asenergias humanas e criativas, antes expressas no mundo do trabalho,para o mundo do lazer.

Entretanto, talvez seja possível argumentar, bem mais cinicamente, queo crescimento do consumo artesanal é apenas uma evidência de comoas classes média e alta tiveram êxito em adaptar a sociedade de consu-mo pós-moderna para que pudessem continuar a manifestar seu tradi-

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cional senso de superioridade cultural. Assim, em vez de apenas la-mentar “a ganância e o materialismo grosseiros” do consumismo de-senfreado (algo que, a seus olhos, se tornou por demais difundido, emgrande parte como conseqüência da voracidade e do hedonismodesinibidos dos socialmente inferiores); ou, alternativamente, em vezde apenas tentar escapar dos piores efeitos de uma sociedade materia-lista e consumista através do corte de despesas ou da adesão ao movi-mento de viver com simplicidade, elas cooptaram e adaptaram oconsumismo de modo que pudessem manifestar seus próprios valorese tradições culturais distintivos. Em essência, isso envolve estetizar etornar ético (se não espiritualizar) tal mundo. Desde que o consumopassou a ser visto como uma arena em que prevalecem motivos dúbiosde voracidade, inveja e luta por status, tornou-se necessariamente algoexecrável para pessoas com uma sólida herança cultural, ética e moral.No entanto, se o consumo pudesse ser redesenhado como uma esferaem que dominassem considerações sobre gosto, beleza, autenticidade eexpressividade pessoal, seria possível assimilá-lo a essa mesma tradi-ção. Sob tal perspectiva, a distinção entre o consumo artesanal e o con-sumo mercantil não chega a representar uma nova clivagem social, masuma clivagem antiga sob uma nova forma.

CONCLUSÃO

Por muito tempo, as hipóteses derivadas das obras de ciências sociaisescritas no século XIX e no início do século XX estruturaram o pensa-mento sobre a produção e o consumo em sociedades industriais mo-dernas. Uma de suas contribuições mais significativas foi o mododicotômico de conceitualizar a criação de bens e mercadorias, conven-cionalmente expresso através do contraste entre produção artesanal eprodução não-artesanal ou industrial. Este contraste é, em geral, per-cebido não como uma simples divisão entre dois modos de produçãodistintos, mas como duas formas fundamentalmente contrastantes deos seres humanos se relacionarem com o mundo dos objetos, formasque se opõem diametralmente em relação a seus efeitos sobre os envol-vidos. Assim, enquanto o trabalho artesanal é visto como humano elibertador, como aquele que permite aos indivíduos tomar parte emuma atividade autêntica, expressiva e criativa, a produção automatizadae baseada em fábricas é considerada como a que possui o efeito inverso,não apenas eliminando essa possibilidade, mas também criando umaclasse de trabalhadores alienados. Este é o modelo que, por extensão,foi freqüentemente transportado para o domínio do consumo. Assim,

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enquanto o consumo de objetos artesanais é visto como um indício dediscernimento são e culto ou de “bom gosto”, o consumo de bens ma-nufaturados em massa é comumente percebido tanto como um sinto-ma quanto como uma contribuição adicional ao estado geral de “alie-nação”. O que se sugere aqui é que tal descrição deveria ser radical-mente modificada em favor do reconhecimento de que assim como hádois modos contrastantes de produção, há também dois modos distin-tos de consumo. Estes últimos não correspondem, no entanto, ao con-sumo de diferentes tipos de bens (consumo artesanal não é, neste sen-tido, equivalente ao consumo de bens artesanais), mas antes a formasdiferentes de se relacionar com as mercadorias. Assim como a produ-ção artesanal é mais significativa por oferecer uma oportunidade àcriatividade e à expressão da individualidade humana do que pelo modocomo o bem é efetivamente manufaturado, da mesma forma, o consu-mo artesanal é importante por apresentar uma oportunidade para amanifestação de qualidades humanas igualmente apreciadas. O consu-mo, tal como geralmente o trabalho ou a “atividade produtiva”, podeser experimentado como nada mais que um “afazer”, uma mera neces-sidade. Por outro lado, também pode ser a parte mais significativa davida íntima de uma pessoa, ou, para usar as palavras de C. Wright Mills,“uma exuberante expressão da individualidade [...] o desenvolvimentoda natureza universal do homem” (Mills, 1951: 215). Tal modo de con-sumir não apenas existe na sociedade de consumo moderna, mas está,na verdade, florescendo, e pode ser visto como parte da amplamentedifundida estetização da vida cotidiana e da tendência atual de os im-perativos do consumo, em vez dos da produção, moldarem a culturacontemporânea. Além disso, são cada vez mais as necessidades de con-sumo daqueles que dispõem de renda e de um longo tempo livre queditam a natureza do mundo mercantil e a maneira como estes produtossão anunciados pela publicidade e utilizados. E está claro que muitasdessas pessoas querem ser capazes de usar os produtos de maneirascada vez mais criativas e expressivas; ou seja, querem ser capazes de“atingir seu potencial” e “expressar seu verdadeiro eu” através de “ade-reços” do consumidor. Elas desejam, com efeito, se tornar consumido-res artesãos, e, se supomos que esta tendência irá continuar no futuropróximo, então existe o prospecto de uma sociedade pós-moderna emque o consumo artesanal não só é a forma dominante de consumo, mastambém o principal modo de expressão da individualidade.

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ABSTRACT

This article proposes that social scientists should explicitly recognise the exis-tence of consumers who engage in “craft consumption” and hence of anadditional image of the consumer to set alongside those of “the dupe”, “therational hero” and the “post-modern identity-seeker”. The term “craft” isused to refer to consumption activity in wich the “product” concerned isessentially both “made and designed by the same person” and to which theconsumer typically brings skill, knowledge, judgement and passion whilebeing motivated by a desire for self-expression. Such genuine craft con-sumption is then distinguished from such closely associated practices as “per-sonalisation” and “customisation”, and identified as typically encounteredin such fields as interior decorating, gardening, cooking and the selectionof clothing “outfits”. Finally, after noting that craft consumers are morelikely to be people with both wealth and cultural capital, Kopytoff ’s sugges-tion that progressive commodification might prompt a “de-commodifyingreaction” is taken as a starting point for some speculations concerning thereasons for the recent rise of craft consumption.Keywords: craft; consumption; personalisation; customisation;de-commodification; creativity; self-expression.

NOTAS

1 No original, The Craft Consumer, o termo craft pode designar uma habilidade tradicional para confeccionaralgo manualmente, o objeto assim produzido ou, ainda, determinada habilidade necessária ao exercício deuma profissão; é usualmente traduzido por “arte, perícia, destreza, ofício etc.”. Neste artigo, como ficaráclaro no decorrer do texto, está sendo utilizado para descrever um tipo de atividade de consumo paralelo aum tipo de produção, a artesanal, daí a opção pelas traduções “artesão, artesania e artesanal”. Craft possui,ainda, os sentidos de “artifício, esperteza, manha, astúcia”, mais patentes em derivados como craftiness e crafty(“artificioso, astuto”), sentidos a que os vocábulos “artesão” e seus derivados não remetem em português.Nos casos em que não foi possível conservar essas traduções, o termo craft e seus derivados vêm entre chavesno corpo do texto; quando, porém, o autor faz referência direta ao vocábulo, manteve-se o original seguido,se necessário, da tradução entre chaves [N. da T.]

2 De fato, Gabriel e Lang propõem um conjunto de imagens do consumidor bem mais complexo (ver GABRIEL,LANG, 1995). Essas três são, no entanto, as mais comumente encontradas na literatura.

3 Isso não nega que a atividade de consumo possa estar relacionada com questões de identidade. Trata-se,apenas, de rejeitar a hipótese pós-moderna prevalecente de que o ato de consumo seja motivado por umdesejo de se criar uma identidade (ver CAMPBELL, 2004).

4 Danny Miller recupera, aqui, o conceito hegeliano de “contradição” ou reabsorção (MILLER, 1987, p. 12,28); ver também a discussão de Tim Dant (1999, p. 32-34)

5 Indivíduos também tomam parte em “rituais de despojamento”, como por exemplo um “tratamento paradespojar”, que abrange atividades como limpar, consertar e decorar itens que se pretende vender(MCCRACKEN, 1990, p. 83-87).

6 Certamente, divergências entre o uso anunciado e o uso efetivo dos produtos podem decorrer simplesmentedas estratégias de propaganda empregadas pelos próprios fabricantes. Assim, fabricantes de computadorespodem anunciar sua importância como suporte educacional no intuito de persuadir pais a comprá-los paraseus filhos; estes, no entanto, usam-no para se divertir com jogos, algo que, com efeito, os fabricantes jáhaviam previsto (SILVERSTONE, 1994).

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7 Assim são chamados os membros do primeiro movimento de subcultura jovem na Inglaterra; seriam, decerta forma, equivalentes à “juventude transviada” norte-americana [N. da T].

8 O subtítulo do artigo publicado no exemplar de The Guardian de onde foram retirados esses exemplospostula: “Você o comprou, agora faça com que seja seu. A editora de moda Laura Craik explica como perso-nalizar roupas” (CRAIK, 2000).

9 Reconhece-se que boa parte do apelo de tais programas também reside em sua função de entretenimento eque as pessoas podem assistir a eles por simples diversão, em vez de instrução. No entanto, também é impor-tante notar que a televisão é um meio de comunicação especialmente importante para a transmissão destetipo de capital cultural, porque boa parte do conhecimento necessário é tipicamente discursiva e, portanto, énecessário mostrar – em vez de dizer – aos aprendizes como fazer.

10 Isso poderia parecer equivalente ao que Dale Southerton designa por “improvisação pessoal” (2001, p. 165).11 A distinção entre empreender um consumo artesanal e simplesmente tomar parte em um hobby não é muito

fácil de estabelecer. Se um hobby é definido como uma atividade que se busca durante o tempo de folga paraprazer e relaxamento, então isso também seria claramente verdadeiro sobre o consumo artesanal. No entan-to, o termo hobby não necessariamente traz a sugestão adicional de que o indivíduo envolvido desenvolveuqualquer perícia especial ou conhecimento. O termo hobby também não implica que o indivíduo manifeste apaixão e o compromisso que, como se sugeriu aqui, caracterizam o consumidor artesão. Ver Slater (1997b)sobre consumo e hobbies; ver também Bert Moorhouse sobre como hot-rodders de elite adotam seu hobby deuma forma que justifica descrevê-los como “artesãos” (1999, p. 293).

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F R A N C K C O C H O Y*

POR UMA SOCIOLOGIA DA EMBALAGEM**

Este artigo aborda o universo do consumo através deuma sociologia da embalagem. Para demonstrar aimportância de uma tal sociologia na análise dos dis-positivos e recursos da captação mercantil, tomam-seexemplos simples, concretos e politicamente incorretos:o álcool, o tabaco, o café e a política. Através dessesexemplos, busca-se discernir a participação da emba-lagem na formação de preferências e no estabeleci-mento das relações de mercado, assim como verificaras relações de influência mútua entre as embalagens ea política. Com isso, espera-se mostrar como os meca-nismos de captação do consumidor presentes nas em-balagens vão além da oposição clássica entre cálculo erotina, investindo muitas vezes em uma combinaçãode ambos.Palavras-chave: embalagem; escolha do consumidor;mercantilização da política; politização do mercado.

* Agradecemos ao autor apermissão de publicaçãodeste artigo. Versões ante-riores deste texto foramapresentadas no âmbito docolóquio Elusive consump-tion, tracking new researchperspectives (Center forConsumer Science, Univer-sity of Göteborg, Göteborg,Sweden, June 23-26, 2002),do seminário do CERLIS(Desjeux, D. (Dir.), CER-LIS, Paris, 3 février 2003)e do Seminar on Innovatingmarkets (Barry, A., Callon,M. and Slater, D., (Ed.),London School of Econo-mics, London, England,Friday 28th March 2003).Agradecemos profunda-mente aos organizadoresdesses diferentes eventospor suas observações cons-trutivas. Por fim, explici-tamos que o presente textoé uma versão francesa doartigo publicado em inglêsem uma obra coletivaadvinda do colóquio deGöteborg (“Is the modernconsumer a Buridan’sdonkey? Product embala-gem and consumer choice”,In Ekström, K. & Brem-beck, H. (Ed.), ElusiveConsumption, Berg Publi-sher, no prelo).

** O título original, “L’embal-lage ou comment capter enchaque homme le baudetqui sommeille”, não temsentido em português.Optamos, assim, por outrotítulo.

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Como “atrair”, compreender e apreender o comportamento do consu-midor? Eis uma questão que interessa a muita gente: sem dúvida, aoespecialista em ciências sociais (a atração como compreensão), mas tam-bém aos profissionais do mercado (a atração como preensão), e sobre-tudo, no que diz respeito aos dispositivos que estes últimos empregampara apreender as disposições do cliente, e que informam o conjuntode outros atores (pesquisadores, profissionais, consumidores). Para com-preender o comportamento do consumidor, sugiro, paradoxalmente,que se prefira o objeto ao sujeito, que se “observe” menos o consumi-dor que aquilo que o consumidor “observa”, mas também aqueles queo “observam”, de que modo fazem-no “observar”; em suma, que seestude a maneira como os artefatos mercantis atraem a atenção do con-sumidor. Propor que se “observe” aquilo que o consumidor “observa”pode parecer incongruente, tamanha a inutilidade aparente da propo-sição: o consumidor “observa” os produtos, evidentemente! Mas estamosrealmente certos disso? Sem dúvida, o consumidor “observa” os pro-dutos, mas os produtos que ele “observa” não são realmente produtos,são produtos embalados. ao propor que se “obeserve” aquilo que o con-sumidor “observa”, não sugiro esquecer o consumidor para passar di-retamente ao produto, mas , pelo contrário, sugiro deter-se entre um eoutro, demorar-se nestas embalagens que todo mundo toma pelaespressão dos próprios produtos e que, depois, todo mundo joga forasem outra forma de atenção. Aqui, gostaria de mostrar que a embala-gem é, talvez, um dos dispositivos de atração mais poderosos que exis-te: a embalagem captura o produto (envolve-o, mascara-o, representa-o) e cativa, então, o consumidor (fascina-o e informa-o, atrai-o e detém-no, prende-o e o libera).

Meu programa consiste em subordinar, de certa forma, a sociologia doconsumidor e dos produtores a uma sociologia da embalagem1

(COCHOY, 2002a). Para demonstrar o interesse de uma tal sociologiapara a investigação dos dispositivos e recursos da atração mercantil,partirei de exemplos bem simples e bem concretos. Meus exemplosserão politicamente incorretos, pois proponho estudar quatro produ-tos inseparáveis nos bares: o álcool, o tabaco, o café e a política. Paraperceber a contribuição particular da embalagem na formação de pre-ferências e no estabelecimento das relações de mercado, falarei do pastis2

“Ricard” e dos cigarros “Galoises”, para então chegar às discussõespolíticas que favorecem seu consumo (a saber, a escolha entre Chirac,Jospin ou Le Pen). Veremos como Ricard coloca o problema da escolhado consumidor e situa a importância da embalagem nessa escolha; ve-remos como os cigarros Galoises permitem “desembrulhar” tudo o que

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está em jogo nas inscrições das embalagens; veremos, enfim, em tornode um debate eleitoral e de uma xícara de café, como as embalagenssão convocadas na política e vice-versa.3 Ao descobrir até que ponto aembalagem participa na construção das preferências do consumidor ena ativação de seus modos de ação, poderemos, eu o espero, compre-ender em que medida as operações de atração consistem em ultrapas-sar a oposição clássica entre cálculo e rotina, e até mesmo em descobriroutras dinâmicas que apostam na possível combinação de ambos.

UM RICARD? A SEDE DO ASNO E SEU ENCADEAMENTO

O provérbio é conhecido: não se faz beber um asno que não tem sede.Mas o que acontece se o asno do qual se fala é o asno de Buridan? Oasno de Buridan, ao contrário de seu primo proverbial, é um asno quetem sede – muita sede: trata-se de um animal tão racional quanto se-quioso e que, situado a uma mesma distância entre dois recipientesidênticos, se deixa morrer de sede por não saber qual escolher (ADAM,1985). Assim, a fábula do asno de Buridan nos ensina que, se é difícilfazer beber um asno que não tem sede, é igualmente árduo fazer beber(bem) um asno que tem sede! Ora, o problema do asno de Buridan,indeciso entre dois bens similares, não é apenas um velho exemplo filo-sófico, destinado a mostrar pelo absurdo a existência do livre-arbítrio.Este problema também é confrontado cotidianamente pelos profissio-nais do mercado, cuja profissão consiste em ajudar os consumidores aescolher entre produtos concorrentes, mas com freqüência difíceis dediscernir (Coca contra Pepsi, Fuji contra Kodak, Canon contra Nikonetc.). Para compreendê-lo, vejamos um cartaz (ver figura na página aseguir) do fabricante da bebida alcoólica Ricard.

O cartaz recorre de modo muito claro à intriga clássica do asno deBuridan: estamos diante de duas garrafas do mesmo tamanho, da mes-ma cor, situadas a uma mesma distância do eixo com o qual me defron-to. Em suma, o problema colocado é de fato o do asno – o problema dahesitação entre o mesmo e o mesmo. Mas o problema também é supe-rado por seu enunciado e sua solução imediata. À esquerda, uma ques-tão “Um Ricard?”; à direita, uma resposta “Sim”. No entanto, a evidên-cia da resposta (a escolha de Ricard) só é comparável à extraordináriapolissemia da questão. Perguntar em duas palavras “Um Ricard?” pode,com efeito, ter nada menos que três significações diferentes:

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a) “Você gostaria de beber este Ricard que eu lhe ofereço?” Nesse caso,trata-se de escolher entre tornar-se ou não consumidor, indepen-dentemente do próprio produto; ou melhor, trata-se de fazer umasno que ainda não tem sede comprar, colocando-o, por antecipa-ção, diante do convite para o aperitivo; que, de alguma forma, ante-cipa o aperitivo real por meio de um aperitivo figurado;

b) A segunda significação prolonga a primeira: “Você gostaria de be-ber um Ricard ou um uísque... ou, é claro, um martíni, um gim-tônica, ou mesmo um suco de laranja, ou qualquer outra bebida?”Nesse caso, trata-se de fazer um asno que tem sede escolher entrediversos produtos que ele percebe como distintos em função de suaspreferências subjetivas. Aqui, também, a estratégia comercial con-siste em “aliciar” o consumidor, relacionando sua apreciação pre-sente com uma cena futura de consumo e, simultaneamente, ladean-do um pouco essa escolha: a questão “O que você gostaria de be-ber?” é habilmente substituída por um “Você gostaria de um Ricardou de outra coisa?”, não sendo, além do mais, a outra coisa nemnomeada nem mostrada;

c) Enfim, a terceira significação da questão é a mais crucial: “A garrafaque está na minha frente é mesmo uma garrafa da marca Ricard, ou

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se trata de um de seus clones?”. Assim colocado, o problema do asnode Buridan é denunciado como um “engana trouxas”: já não háescolha entre a garrafa da esquerda e a da direita, pela simples ra-zão de serem exatamente a mesma! Nessa propaganda, descobre-seque o problema espacial da hesitação do asno entre dois recipientesdistintos e eqüidistantes foi astuciosamente substituído pela figura-ção seqüencial de uma única e mesma garrafa. Aqui, como na fábulado asno, ainda está em jogo a questão dos pontos de vista, mas tantoo sujeito da enunciação quanto o ângulo de visão não são mais osmesmos: à questão que me é dirigida sucede um problema que mecoloco; ao problema da eqüidistância sucede o falso enigma da rota-ção. Após reflexão e uma meia-volta mais tarde, uma vez que penseinisso e uma vez que a garrafa foi girada como convém, a adivinha-ção é resolvida e a boa escolha se impõe: sim, trata-se realmente deum Ricard! Eu o havia reconhecido antes mesmo que ele fosse gira-do; é este o pastis que eu conheço, que quero e que vou consumir.

Toda essa retórica visa a lembrar com malícia a cada um aquilo que elesupostamente conhece (ou melhor, se esforça em fazê-lo, de modo quecada um crê saber aquilo que se quer que ele saiba), visa a informar quea bebida Ricard é um produto quase genérico, cujo nome vale – oudeveria valer – por “álcool anisado”, da mesma forma que o nome demarca “Bic” é utilizado para designar uma caneta esferográfica. O fa-bricante de álcool recorre aqui a uma estratégia particular de atraçãoque nomearemos “encadeamento”:4 trata-se de mobilizar/construir omodo da tradição e da conivência (o encadeamento como sujeição), derelacionar a recepção da publicidade presente com um continuum entreos consumos passado e futuro (o encadeamento como sucessão/ repro-dução de práticas).

Implicitamente, essa publicidade visa, sem dúvida, aos possíveis substi-tutos de Ricard, em primeiro lugar, seu principal concorrente, o “Pastis51”. A iconografia publicitária busca apresentar o problema do asno deBuridan – a escolha entre o mesmo e o mesmo: Ricard e Pastis 51 – aomesmo tempo em que indica, de imediato, como resolvê-lo: Ricard faz/deveria fazer parte de um esquema incorporado, estar inscrito nos há-bitos de consumo e não poderia ser, conseqüentemente, confundidocom nenhum outro produto.

Mas como esse problema é resolvido, e por quem? O problema é resol-vido primeiro no tempo. Os profissionais do mercado certamente sa-bem que a hesitação do consumidor é um momento muito raro e muito

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fugaz, que convém, conseqüentemente, administrá-lo com destreza,rapidez e delicadeza. Todo o problema dos profissionais do mercadoconsiste em suscitar uma hesitação para sobrepujá-la imediatamente,de modo a subordinar o exercício da escolha e então evitar, é claro, queos consumidores escolham sozinhos. Assim, conquistar um consumi-dor é, a princípio, fazer vacilar os apegos ao produto, inclusive àquelesa que os consumidores são fiéis, um pouco como nesses jogos infantisem que é preciso deslocar pequenas bolas de gude sobre um tabuleiropara fazê-las alcançar as cavidades que lhes são destinadas: não se podecolocar todas as bolas uma por uma; para ganhar, para alojar todas asbolas em todos os buracos, é preciso, primeiro, aceitar que se desalojemtodas. Mas, aqui, o publicitário substitui rapidamente a possível hesita-ção do olhar entre a esquerda e a direita por um deslizamento narrati-vo conforme o sentido da leitura (“– UM RICARD? – SIM”) e pela rota-ção de uma mesma garrafa. Ao fazê-lo, ele consegue de uma só vezrecriar a cena da escolha e beneficiar-se inteiramente dela, impor aevidência de sua solução. O problema é, em seguida, resolvido no espa-ço. A solução proposta não é apenas a resposta à adivinhação, mas opróprio instrumento dessa resposta: a solução é dada por intermédioda embalagem, da etiqueta, o único elemento que permite ir “além” dasaparências e estabelecer uma diferença entre dois produtos similares.Com efeito, como o consumidor poderia escolher por si só entre bebi-das visualmente indiscerníveis e que ele não pode provar no momentoda compra?

Assim, da água do asno ao pastis do consumidor de aperitivos, desco-bre-se que a embalagem é de uma só vez a condição e a solução daescolha: ela intervém no posicionamento do problema e em sua resolu-ção. Esse ponto é importante, pois nos mostra em que medida omimetismo é o complemento indispensável da diferenciação: para di-ferenciar os produtos, é melhor apresentá-los a princípio como seme-lhantes sob toda uma série de relações (POINTET, 1997). Ora, o usocombinado do mimetismo e da diferenciação nos ensina que o cálculoeconômico do consumidor, longe de ser pura fantasia de economista, é,pelo contrário, cuidadosamente arranjado pelos atores da oferta. Comefeito, estes últimos se empenham energicamente para tornar possíveiscálculos “de mais a mais, todas as coisas são iguais”, dotando seus pro-dutos de todos os atributos de seus concorrentes (odor, cor, composi-ção...) para melhor ressaltar “a” diferença que eles intentam privilegiar:um nome de marca, no caso do pastis, características técnicas, no casode um automóvel, etc.

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UM GAULOISE? DO APEGO AO INTERESSE

Sem dúvida, o exemplo que utilizei até aqui é elementar; a embalagemaciona muito mais que o mimetismo pela aparência e a diferenciaçãopela marca; ela mobiliza muitos outros modos de percepção, além dadinâmica clássica dos encadeamentos. Para avançar em nossa investiga-ção da economia da embalagem, proponho, então, mudar de produto,dar uma baforada após ter bebido um trago, em suma, passar do Ricarda seu companheiro indispensável: o maço de Gauloises.5

COMO A CRÍTICA DISSIPA A CORTINA DE FUMAÇA

DAS ESTRATÉGIAS DE APEGO COMERCIAL

O que pensar e o que dizer de um maço de Gauloises? Qual é a contri-buição de tal artefato à cognição do consumidor? Para um conhecedor,Gauloises é um codinome, que mascara o nome da sociedade que fabri-ca e distribui os cigarros: a SEITA antigamente, ALTADIS hoje em dia(um nome que se encontra certamente sobre a embalagem, mas em

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letras miúdas). Esta defasagem entre o nome de marca e o do fabrican-te me incita à suspeição. De um lado, interrogo-me sobre o sentido daprópria palavra galoises, que estabelece uma ligação duvidosa entre oscigarros e a maneira ancestral de designar os franceses (uma impressãode identificação nacional que é confirmada pela inscrição das palavras“liberdade, sempre”, que retoma, sobre um dos lados do maço, um dostrês termos da divisa nacional: “liberdade, igualdade, fraternidade”).De outro lado, a minha desconfiança aumenta na medida em que mi-nha primeira impressão se encontra confirmada pelo emprego de umsímbolo, o “capacete” gaulês, e muitas outras conotações.

O gaulês e seu capacete lembram-me, inevitavelmente, o herói de his-tória em quadrinhos Asterix, cuja imagem se assemelha espantosamen-te à logomarca de meu maço de cigarros, inclusive cores e grafismos!Encorajado por tal excesso de significações simbólicas, prossigo nessesentido, interessando-me, desta vez, pelo jogo sobre o gênero: enquan-to o capacete representa um guerreiro másculo e viril, que é para ofumante francês manifestadamente o mesmo que o caubói da Marlboroé para seu homólogo americano, o feminino das cigarettes “gaulesas”6

introduz, sem qualquer dúvida, uma significação erótica, ainda maisevidente aqui na medida em que é preciso abrir o maço para tocar oproduto – despir as “blondes” [louras] para tocá-las/senti-las melhor. Meuguerreiro másculo deve sentir um desejo ainda mais forte, já que asGauloises são consideradas “légères” – um perfeito adjetivo ambivalente.7

Melhor: uma mulher frívola não é uma allumeuse [mulher provocante,sedutora], como a allumette [o fósforo], o complemento indispensáveldo cigarro? Mas é claro! Já faz bastante tempo que os fabricantes decigarros e de fósforos – que, aliás, são freqüentemente os mesmos –especulam com as palavras e as imagens, forçam a analogia entre aallumette e a allumeuse, tiram proveito do simbolismo sexual como o de-monstram estas três caixas de fósforo antigas:

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Em suma, assim que tomamos as embalagens por seu lado simbóliconão podemos mais parar, encontramo-nos presos na excitante verti-gem do desvelamento crítico, passamos da imagem ao símbolo, daconotação à manipulação, reencontramos os ensinamentos de todosaqueles que nos instruíram, de Ernest Dictcher (1960) a Naomi Klein(2001), passando por Sidney Levy (1959), Herbert Marcuse (1964) ouJean Baudrillard (1970), de que os produtos são comprados não peloque são, mas pelo que significam; logo somos persuadidos de que osatores do mercado nos influenciam, de que os simulacros nos alienam,de que a cortina de fumaça publicitária nos nega todo discernimento,nos faz tomar as logomarcas pelos produtos, a ponto de nos convencerde que um veneno mortal é um vetor de fantasias e prazer! Evidente-mente, a atração exercida pela embalagem emprega uma dupla estra-tégia de apego: apego coletivo, em termos de identificação nacional;apego individual, em termos de relação erótica.8

COMO A CRÍTICA CORRE A CORTINA SOBRE

A PERCEPÇÃO DAS INFORMAÇÕES COMERCIAIS

No entanto, se, por certo, é preciso desconfiar das miragens publicitá-rias, não seria também preciso se abster de ceder um pouco rápidodemais aos alarmes da crítica? Uma cortina de fumaça poderia bemesconder outra. Desde que se tomam as embalagens por seu lado sim-bólico, tudo é esclarecido, dizíamos. Mas, por nos esclarecer tanto, acrítica nos cega; por nos mostrar tanto o lado simbólico das coisas, elaacaba por ocultar o outro lado. Qual é o outro lado? Este se refere atudo aquilo que a crítica não vê, todas as outras menções feitas na em-balagem que ela esquece de registrar, de tanto se concentrar na dimen-são simbólica e manipuladora dos produtos. Para levar em conta essaoutra face das embalagens basta, portanto, proceder por simples sub-tração, adotar a regra de método que consiste em inventariar sistema-ticamente tudo aquilo que a crítica não inventaria. Ao fim de tal opera-ção, obtém-se, sem esforço, a dupla lista do que a crítica considera e doque ela negligencia:

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Ao fim de tal inventário, descobre-se um surpreendente paradoxo: háaproximadamente duas vezes mais coisas na coluna daquilo que a críti-ca não vê ou se recusa a ver que na coluna daquilo que ela vê e quer,exclusivamente, nos fazer ver! Se considerarmos agora não apenas osnúmeros – 13 contra 6 – mas também a natureza desses elementos,descobre-se uma oposição igualmente impressionante. À dimensão sim-bólica, que supostamente nos afasta da materialidade dos produtos,opõe-se a dimensão informativa, que, pelo contrário, designa, com al-gumas poucas exceções, os atributos substanciais do mesmo: a menção“20 cigarros filtro” nos indica muito precisamente o que o maço con-tém; as rubricas “Tabaco”, “Papel de cigarros”, “Agentes de sabor e detextura”, “Nicotina” e “Alcatrão” nos detalham de modo exaustivo acomposição dos cigarros; as advertências “Prejudica gravemente a saú-de” e “Fumar provoca câncer” nos assinalam seus efeitos a longo prazoas inscrições “Altadis”, “Fabricado na França”; e “Venda na França” nosespecificam seu nome, origem e destinação.

Conseqüentemente, as certezas que eu expressava acima vacilam, tudose inverte: ao levar em conta o conteúdo dos maços – a caixa contémcigarros e somente cigarros –, percebo que os adjetivos “blondes” e“légères” remetem talvez mais a um tipo de tabaco que a uma cor de

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cabelo, eles designam mais um modo de fabricação que costumes levia-nos. Finalmente, chego a me perguntar se a crítica não é mais fumanteque meus cigarros, se não me enganei de coluna, ou se, pelo menos,não deveria ter feito certas informações figurar duas vezes, à esquerdado lado dos símbolos, à direita do lado das informações. Se, há pouco,me referia a imagens polissêmicas que apostam na possível manipula-ção do consumidor via suas pulsões inconscientes, estou, de agora emdiante, em presença de referências muito factuais e monossêmicas des-se mesmo produto, que, pelo contrário, apostam na informação do con-sumidor e em suas capacidades de cálculo: graças ao que leio, sei o quecompro, em que quantidade, com quais efeitos; estou equipado paraexercer minha racionalidade, minhas preferências, e para fazer umaescolha entre os produtos concorrentes. O dispositivo de sedução trans-forma-se em dispositivo de cálculo, a atração-apego tem como concor-rente uma atração que especula com o interesse (no caso específico,trata-se de um interesse negativo, que visa a afastar o consumidor doproduto).

A embalagem dos maços de cigarros mescla, portanto, três modos deatração: combina encadeamento, apego e interesse; oscila entre o obje-to e a marca, o gosto e as referências simbólicas, a composição do pro-duto e temas de saúde pública.9 Este último tema é particularmenteinteressante, na medida em que parece concentrar questões políticasno próprio produto. Daí a questão: onde se situa atualmente a frontei-ra entre o mercado e a política? Se a política invade o espaço do merca-do, o próprio mercado não ganharia a esfera política? Qual seria o pa-pel da embalagem em tal confusão de fronteiras? Com que conseqüên-cias? No meu bar, os efeitos do álcool e do tabaco se conjugam paraesquentar os espíritos, a discussão sobre os méritos e os supostos peri-gos dos produtos toma outro rumo, em direção a um debate políticoem que o problema da escolha de um presidente para a França acabapor substituir o do pastis ou dos cigarros, em última análise, bem maisinofensivos.

UM PRESIDENTE? EM DIREÇÃO AO ENGAJAMENTO DO

CONSUMIDOR-CIDADÃO

Mercantilização da política

Até aqui, insisti bastante sobre o papel da embalagem, sobre a maneirapela qual esse invólucro aparentemente inofensivo consegue de fato

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transformar muito profundamente tanto a cognição do consumidorquanto as estratégias da oferta. Mas o modo de ação particular da em-balagem também não demarcaria seu limite? Extremamente poderosaem relação a tudo o que ela pode cobrir, a embalagem não perderiatodo o seu poder diante daquilo que lhe resiste – tudo o que se recusaa ser colocado em uma caixa? A embalagem demarcaria, então, a fron-teira entre o mercado e o não mercado, ela traçaria o limite entre oespaço da troca comercial e outras esferas mais humanas, mais sagra-das, mais culturais, que a antropologia econômica tem prazer em iden-tificar e em estudar (TROMPETTE; BOISSIN, 2000; ROUSTAN, 2002).Para responder a estas questões, para testar os limites da economia daembalagem e a resistência do mundo à sua extensão, tomarei o exem-plo da política, visto que no meu bar é este o tema que vem natural-mente após o uso do álcool e do tabaco.

Partamos da capa de uma célebre publicação consumerista10 que saiudias antes da eleição presidencial. Evidentemente, basta essa capa parafazer ir pelos ares minha hipótese de que a política não seria absorvidapelo mercado e suas embalagens. Nela, vêem-se duas figurinhas, umacom os traços do antigo presidente Jacques Chirac, a outra com a cara

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do ex-primeiro-ministro Lionel Jospin. Ora, estas figurinhas estão de-vidamente embaladas, como qualquer boneca Barbie; além do mais, ascaixas seguem estritamente as normas da embalagem, não lhes faltanada: nem as cores e os logotipos de suas respectivas marcas – descul-pem-me, de seus partidos! –, nem o rótulo de embalagem ecológica,nem o código de barra, nem um certificado de conformidade com asnormas européias, nem mesmo um pictograma indicando que essesbrinquedos não convêm a menores de 18 anos! Graças à embalagem,cada boneco é vestido de acordo com um slogan, “Inaction man” paraChirac, “Moralisator” para Jospin, e cada um traz uma menção “flash”,destinada a sublinhar suas respectivas vantagens: as fotos comprovam,Chirac-Inaction-man é “garantido: 3.000 apertos de mão por hora!”;Jospin-Moralisator é a “Novidade 2002: sorriso incluído!”. O jornal apre-senta, portanto, a perfeita cena política do asno de Buridan, reforçadapelo nome da publicação, Quem escolher, e confirmada pelo próprio títu-lo do teste comparativo: “Presidencial. Programas defeituosos, víciosocultos, ausência de garantia: uma partida realmente empatada!”.

Mas, de repente, detenho-me em um pequeno detalhe e franzo a testa.Eu quase confundi um “em” com um “e”, embaralhei a cópia e o origi-nal,11 tomei um Quem escolher paródico pelo muito sério [O] Que escolher!Por uma pequena consoante, o sacrilégio estava quase consumado: umadas duas maiores publicações francesas sobre consumo havia ousadoembalar a política – no sentido literal e no figurado!12 –, o jornal tinhaousado submeter os candidatos ao banco de testes, como objetos vulga-res de consumo corrente (MALLARD, 2000). Finalmente, a faixa supe-rior da publicação caricata me tranqüiliza: “Mais um plágio vulgar assi-nado por Jalons”. Estou diante de um pastiche, de uma falsificação cheiade ironia, cujo humor e impertinência reforçam finalmente a autono-mia do político: se nós sorrimos, é porque a situação nos parece incon-gruente, porque consideramos que políticos não são escolhidos comobrinquedos, que as pessoas (“Quem”) não poderiam receber o trata-mento reservado aos objetos (“Que”); em suma, que política e mercadosão dois universos radicalmente distintos.

Todavia, antes de chegar a uma conclusão definitiva sobre a singulari-dade radical e tranqüilizante da política e do mercado, tenho de verifi-car se o verdadeiro jornal [O] Que escolher não teria cometido o mesmocrime, se um dos principais órgãos de imprensa do consumerismo na-cional não teria cedido à tentação de confundir o voto e a compra, depassar os candidatos pelo crivo, como se testam os aparelhos eletrodo-mésticos. E aí, surpresa! Eu me deparo com o asno de Buridan número

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dois, descubro que o jornal [O] Que escolher fez – mais discretamente,porém também mais seriamente – aquilo que seu clone Quem escolher sóousava fazer com alarde e humor:

Dito isso, o verdadeiro jornal [O] Que escolher não dramatiza seu bancode testes. Ele adota um procedimento mais prudente pelo menos sobrequatro pontos: primeiro, a caixa de bonecas é substituída pela caixaeleitoral (a urna); em seguida, o teste proposto na capa é bem maisprudente: o duelo entre Chirac e Jospin é estendido aos 17 candidatos(então)13 no páreo; além disso, o jornal se contenta em examinar oscandidatos apenas nas questões que lhe interessam, nas quais se julgacompetente. Essa restrição é perceptível nas menções inscritas nas cé-dulas eleitorais – “chèques payants” [“cheques tarifados”], “OGM”[“transgênicos”] – e confirmada pelo exame das páginas interiores: [O]Que escolher procede, de fato, a um teste comparativo, mas apenas nasquestões susceptíveis de interessar os consumidores e seus represen-tantes (alimentação, dinheiro, consumo, ambiente, justiça, saúde, ser-viços públicos). Enfim, os políticos não são “testados” sem consentimento,mas segundo as respostas que eles mesmos forneceram a um questio-nário enviado pela redação do jornal ([O] Que escolher concede, assim,para esta categoria particular de produto, a possibilidade de um

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autoteste!). Portanto, e a priori, o procedimento de [O] Que escolher sequer muito discreto, benevolente, depreciativo e limitado, como se ospolíticos não pudessem ser impunemente tomados como produtos or-dinários, como se a avaliação consumerista dos candidatos impusesseconsiderações particulares, ou ainda como se o mercado e a políticanão estivessem completamente imiscuídos um no outro. Em suma, umexame minucioso da prática de [O] Que escolher mostraria que amercantilização da política não vai tão longe quanto a capa da mesmapublicação inclinava-se a julgá-la.14

No entanto, duas questões importantes subsistem.

A primeira é a que o jornal [O] Que escolher levanta ao interpelar oscandidatos sobre temas de consumo que eles negligenciam. Essa ques-tão assinala, por antífrase, a embalagem implícita, operada por tododiscurso político-mediático. Com efeito, do mesmo modo que cada em-balagem propõe ao consumidor uma série limitada de critérios de ava-liação que exclui outras dimensões possíveis, o discurso político seleci-ona arbitrariamente as dimensões do debate e, às vezes, deixa na som-bra questões igualmente cruciais. Por exemplo, se a eleição presidenci-al de 2002 chamou amplamente a atenção dos eleitores para as ques-tões de segurança, ela ocultou completamente os temas de consumo,

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assim como a construção européia e a política exterior. A intrusão ines-perada de [O] Que escolher nos faz assim descobrir, de um lado, a expan-são considerável da economia da embalagem, que assume com freqüên-cia formas imateriais, e, de outro lado, a importância do jogo que pre-side, acima das escolhas econômicas ou políticas, a seleção dos critériossegundo os quais nós formamos nossas preferências e nossas escolhas.

Enfim, a segunda questão é a levantada, até a caricatura, pelo confron-to paródico entre Chirac-Inaction-man e Jospin-Moralisator. Essadramatização da escolha não faz nada além de retomar a antecipaçãodas sondagens e dos comentários, que projetavam, todos, um dueloentre estes dois candidatos no segundo turno da eleição, ao mesmotempo que nos apresentavam tal duelo como uma escolha entre o mes-mo e o mesmo. Assim, percebe-se que acima do enquadramento doscritérios de escolha operado pelas embalagens intervém umenquadramento ainda menos perceptível, que consiste em arranjar ascenas de escolha, as alternativas; em privilegiar certos produtos entreoutros possíveis. Mas a história da eleição presidencial também nos en-sina que as operações de enquadramento excessivo podem produzirtransbordamentos (CALLON, 1998b), ela nos mostra que os consumi-dores-eleitores podem-se mostrar recalcitrantes (LATOUR, 1997), comrisco de reações adversas: convencidos de que o primeiro turno estavadecidido, persuadidos pela retórica buridanesca e suicida das mídias –mas também dos próprios candidatos! – de que o segundo turno opo-ria dois candidatos similares, os eleitores aproveitaram para fazer valerpequenas diferenças... pequenas diferenças cuja acumulação acabouproduzindo um resultado ridículo para o presidente deposto, a elimi-nação de seu primeiro-ministro e a promoção surpresa do abominávelLe Pen. O olhar deslocado do consumerismo e os caprichos trágicosdos eleitores nos fazem, assim, descobrir toda a importância da emba-lagem clandestina das escolhas políticas: a democracia põe em jogo nãoapenas a contagem dos votos a favor de uma determinada oferta políti-ca, mas também a construção das preferências e possíveis escolhas.

Mas o que vale para a política decerto também vale para o mercado. Aatração do público e o arranjo de suas escolhas, sejam elas políticas oumercantis, são um assunto político por, pelo menos, duas razões: de umlado, a importância do enquadramento das cenas e dos critérios deescolha estabelece uma relação conflituosa entre representantes da ofertae da demanda, e esta relação conflituosa merece ser reconhecida e ana-lisada; de outro lado, o possível uso das embalagens, como um espaçopara o debate público, as torna acessíveis a inúmeras formas de expres-

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são, inclusive as políticas. Estas duas razões fazem, então, da embala-gem um vetor privilegiado de politização do mercado.

POLITIZAÇÃO DO MERCADO

Falar de politização do mercado pode surpreender, na medida em queo mercado e a política nos parecem a priori estranhos um ao outro.Sabe-se, desde Adam Smith, que o mercado se constrói como uma al-ternativa à política, como um meio de obter a ordem social fazendo aeconomia da autoridade pública, graças à combinação virtuosa dos in-teresses privados e à orientação de cada um em direção às coisas(HIRSCHMAN, 1980). Sabe-se, desde Polanyi, que o mercado smithianofoi instituído e depois regulado politicamente: a utopia liberal só pôdese inscrever nos fatos a partir do momento em que ela se tornou umverdadeiro projeto político sustentado pelas autoridades públicas; emseguida, a economia de mercado só pôde se manter com o suporte deinstituições públicas destinadas a controlar e garantir seu funcionamento(POLANYI, 1983). Ora, no rastro ou à margem dessas duas evoluções,uma nova constatação emerge: paulatinamente, os atores do mundoeconômico inscrevem as questões políticas no próprio mercado.

Mas como se opera a politização do mercado? A inscrição de advertên-cias obrigatórias sobre os cigarros nos deu as indicações necessárias, namedida em que essas advertências efetuam uma transferência das ques-tões públicas para o próprio corpo dos produtos. Porém, este primeirotipo de transferência permanece parcial, pois as questões públicas sãomais “sobrepostas ao produto” do que “confundidas” com suamaterialidade. Decerto, com as advertências obrigatórias, o Direito sefaz mais presente na troca, ele deixa a esfera abstrata da pura regulaçãopara reencontrar o próprio produto. Mas se o Direito não está mais“em torno” do mercado, ele permanece “em torno” do produto, à ma-neira de uma faixa claramente discernível, como as advertências dotipo “De acordo com a lei no 9.132 é prejudicial à saúde”. Para compre-ender como se opera a inscrição definitiva da política no mercado, émelhor, paradoxalmente, mudar de produto, nos voltarmos para mer-cadorias, a priori, menos carregadas de questões políticas que os cigar-ros ou o álcool. Tomemos, então, seu companheiro de estrada, o café:para quem bebeu, fumou e falou demais, o que seria de fato melhorpara voltar a si e ver de forma mais clara que uma pequena xícara decafé? O único problema é que, como sempre, antes de beber, é precisoescolher a bebida, e eis que o asno em nós adormecido reaparece, eis

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que a escolha dos pacotes precede e condiciona mais uma vez o ato debeber:

Estamos diante de dois pacotes como sempre estranhamente similares.Dos dois lados, temos o mesmo tipo de café (“100% arábica”, duplicadopelo mesmo “código-cor”, o mesmo matiz castanho-escuro destinado aessa variedade), as mesmas sonoridades exótico-latinas (“Gringo”,“Kalinda”) e as proveniências distantes (“América Latina e África”,“Haiti”). Porém, como sempre, o mimetismo está aí para tornar bemmais salientes os signos de diferenciação. Enquanto um pacote apostatudo na imagem e recorre à sedução (apego), o outro utiliza mais overbo e recorre à reflexão (interesse). O café da esquerda põe o foconos grãos de café gigantescos, tendo uma geografia exótica como panode fundo... grãos de café que remetem astuciosamente ao próprio nomeda marca, da qual eles são o logotipo (o grão de café desenha o círculoda letra “Q” em “JACQUES VABRE”). O pacote da direita, pelo contrá-rio, se contenta com expressões impressas (de uma forma que sugereuma tipografia artesanal) que visam a qualificar de uma só vez o café(“Fino e aromático”) e seu modo de produção: “torrefação tradicionalartesanal”. Aqui, o produto e sua produção são indissociáveis, comotentam dar a entender tanto o único elemento gráfico aqui presente – o

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desenho de um camponês bigodudo com uma saca de café nas costas –quanto a inscrição de um slogan binário “um grande café, uma grandecausa”.15

Estabelecer um paralelo entre um “café” e uma “causa” é propor que seestabeleça uma relação entre um prazer pessoal (e material) e uma ques-tão coletiva (e moral). A chave dessa relação é dada no verso do pacote,em que lemos a seguinte explicação:

O que é a garantia Max Havelaar?

A certeza de beber um café de alta qualidade, que recebeu todos oscuidados desde o cultivo até a torrefação.

A certeza de permitir que os pequenos produtores de café vivam dig-namente de seu trabalho.

De fato, o café que você irá consumir foi comprado diretamente depequenos produtores a preços superiores às cotações mundiais, após umfinanciamento parcial de suas colheitas.

Ao comprar esse café:

• Você permite a manutenção de um alto nível de qualidade do café.

• Você contribui para trocas comerciais mais eqüitativas entre o Nor-te e o Sul.

• Você favorece a melhoria das condições de vida das famílias depequenos produtores do Sul.

Max Havelaar é, além do mais, apresentada não como uma marca, mascomo uma associação16 que “controla o respeito a essas condições”.

Até este momento, tínhamos descoberto a ação da marca ou do Estado,do mercado ou da política. Agora, eis-nos diante de uma outra lógica,que se fundamenta em um mecanismo e em uma instituição. O meca-nismo propõe uma combinação particular de mercado e política, deexigências ao mesmo tempo materiais (“um café de alta qualidade”, “amanutenção de um alto nível de qualidade do café”) e sociais (“permi-tir que os pequenos produtores de café vivam dignamente de seu tra-balho”, “contribui[r] para trocas comerciais mais eqüitativas entre oNorte e o Sul”, “favorece[r] a melhoria das condições de vida das famí-lias de pequenos produtores do Sul”). Trata-se, aqui, de relacionar asescolhas com uma preferência nova, a preferência pelo “comércio eqüi-tativo”, que designa o conteúdo ético e político dos produtos. A institui-ção é a associação “Max Havelaar”, que milita a favor da defesa de um

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comércio internacional mais justo e que vem trazer sua “garantia”, as-segurar as condições da troca, instaurar uma certificação de “terceiraparte” (MINVIELLE, 2001).

Para legitimar a politização dos produtos, para relacionar as preferên-cias dos consumidores com o futuro dos produtores, Max Havelaarnavega, portanto, entre duas lógicas: a das marcas, sempre suspeitas deagir e falar na qualidade de “juiz e uma das partes”, e a da regulamen-tação ou dos rótulos oficiais, estabelecidos sobre bases bem mais largase transparentes. Para além de uma atração fundada no emprego demecanismos de encadeamento ou de apego (Altadis, Jacques Vabre), des-cobrimos aqui uma atração que tenta ativar o modo do engajamento, daexpressão de valores cidadãos, sociais e humanitários. Quanto ao quar-to modo de ação/atração – o interesse (interesse negativo com as adver-tências sanitárias nos maços de cigarros; interesse positivo com o apeloà razão em Max Havelaar) –, ele aparece aqui como uma estratégiaintermediária; o apelo à razão, à reflexão, à argumentação aparece aquicomo um meio de romper um eventual apego prévio para dar acessoao engajamento a favor do/através do produto portador de valores po-líticos.

Assim, o pacote de Max Havelaar nos faz compreender a importânciapotencial dessa politização “mercantil” dos produtos, atualmenteconduzida por um número considerável de atores e instituições: as açõesde boicote destinadas a recompensar as empresas virtuosas(FRIEDMAN, 1999), a “clean clothes campaing”17 (MICHÈLE LALANNE,2003), os códigos voluntários de conduta (DAUGAREILH, 2002), oreferencial SA 800 de certificação social (COCHOY, 2003), os fundosde investimento éticos (GIAMPORCARO, 2002), os promotores da res-ponsabilidade social da empresa (SALMON, 1999).

Esses procedimentos possuem quatro pontos em comum. Primeiro,todos se engajam em uma ação de politização voluntária e substancialdos produtos, que não poderia ser confundida nem com a antiga formade inscrever a política no mercado, a partir do exterior e pela força,nem com velhas estratégias como o “cause-related marketing”, que pro-põe, por exemplo, dar uma esmola a uma obra de caridade para cadaBig Mac vendido (VARADARAJAN; MENON, 1988). Com a politizaçãodos produtos, não se trata nem de fazer política por trás das coisas nemde fazer marketing por trás das causas, mas de vender o conteúdo polí-tico dos produtos. O segundo ponto deriva do primeiro e liga estreita-mente a politização dos produtos à progressão de uma economia da(ou das) qualidade(s) (KARPIK, 1989; CALLON; MÉADEL;

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RABEHARISOA, 2000): a apreciação das qualidades substanciais ouutilitárias dos bens e serviços é aqui completada pela consideração desuas qualidades éticas e sociais. O terceiro ponto em comum das açõesde politização do mercado consiste em inverter o fetichismo das merca-dorias: enquanto Marx denunciava que os bens mercantis, como tantosídolos, mascaram o escândalo das relações de produção de que, no en-tanto, eram o produto, a venda de produtos se apóia na própria ruptu-ra do fetiche, e a relação de produção se encontra, por sua vez,fetichizada e serve de argumento comercial (COCHOY, 2002b). O quartoponto em comum desse conjunto de procedimentos consiste, conse-qüentemente, em fazer do mercado o único meio que permite lutarcontra seus próprios abusos e substituir a crítica política da globalização:na ausência de instituições jurídicas internacionais eficazes, apenas apromoção de uma concorrência fundada nas preferências éticas e polí-ticas parece suscetível de sustentar e preservar os valores humanos ecidadãos.

O QUE AS EMBALAGENS NOS OBRIGAM A FAZER

E COMO ELAS O FAZEM

Definitivamente, de garrafas a maços de cigarros, de bonecos políticosao pacote de café eqüitativo, percebemos a que ponto a intermediaçãodo atraidor-embalagem instrumenta e transforma nossas escolhas: asembalagens nos ensinam a perceber os produtos de outra forma, elasnos enganam e nos informam, nos arrastam para a sedução dos símbo-los, mas também nos revelam as propriedades escondidas dos produ-tos, nos prendem aos prazeres egoístas e materiais do consumo, mastambém nos revelam a face política e cidadã das coisas. A atração daembalagem, no final das contas, mescla quatro dimensões: uma dimen-são sociológica, que se fundamenta na ativação dos habitus, das trajetó-rias individuais e de seu encadeamento; uma dimensão afetiva, que apos-ta na sedução, no afeto e no apego; uma dimensão lógica, que recorre àscapacidades de reflexão, de cálculo e de interesse; e uma dimensãoaxiológica, que se orienta em direção aos valores, o senso coletivo, oengajamento do consumidor.18 Estas quatro dimensões, que descobrimosem ordem dispersa no decorrer de nossa investigação da economia daembalagem, podem de fato ser reagrupadas e ordenadas segundo duasdimensões. A primeira dimensão opõe o tempo longo da reflexão cons-ciente ao tempo curto da resposta imediata ou impulsiva. A segundadimensão opõe comportamentos voltados para si a comportamentosorientados para o exterior (para as coisas e/ou para os outros). Ao cru-

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zar estas duas dimensões, conseguimos situar em um mesmo espaçocognitivo e estratégico as quatro lógicas de atração:

Encontramos, então, distribuídos sobre a superfície das embalagens,esses diferentes modos de ação que julgávamos reservados às pessoas:o cálculo dos economistas e a rotina dos sociólogos, mas também o afe-to e a política caros aos atores de campo.19 Cada uma das dimensõesdistribuídas sobre a embalagem tenta ativar um motor particular daação, retirar o consumidor da rotina para fazê-lo passar ao cálculo (in-teresse/informação), pôr fim ao cálculo para provocar um engajamentocidadão (engajamento/convicção), transformar uma compra refletidaem compra familiar (encadeamento/fidelização), romper um hábito emtroca de um novo prazer (apego/sedução) etc. Às vezes, um desses mo-dos domina (Ricard); outras vezes, eles estão (quase) todos presentes edisputam a atenção do consumidor (o caso dos cigarros). Às vezes, elessão articulados ou combinados; outras, um serve de passarela para fa-vorecer o deslocamento entre dois outros (Cf. o apelo ao interesse pararomper o encadeamento às grandes marcas de café e, em seguida, ba-

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lançar em direção ao engajamento militante do café eqüitativo). Desdeentão, onde se formam nossas preferências? Em cada um de nós ou nasuperfície das embalagens? Onde devemos procurar o modelo do con-sumidor? No consumidor ou nos objetos que lhe são oferecidos?

Para responder a essas questões delicadas já não é preciso, como hápouco, permanecer nos bares reservados aos adultos para proteger ascrianças, mas antes ouvir as crianças quando se preocupam com a saú-de dos adultos, quando se inquietam com a tendência deles para falardemais, beber demais, fumar demais. Bruno Latour (2000) citava, as-sim, uma história em quadrinhos comovente, em que se vê um pai di-zer à sua filha pequena que ele fuma, e a menina responde a seu paique ela pensava que era ele que era fumado por seu cigarro. E BrunoLatour rejeita a alternativa entre o ativo e o passivo ao propor a seguin-te solução: nós nem fumamos os cigarros nem somos por eles fumados– simplesmente, os cigarros nos “fazem fumar”. O que vale para oscigarros vale mais ainda para as embalagens que condicionam a esco-lha: nós nem escolhemos entre dois pacotes nem somos por eles esco-lhidos, simplesmente, as embalagens – e por trás delas os diferentesmotores da atração – nos fazem escolher. Para Bruno Latour, a contri-buição particular dos objetos na ação reside precisamente nesse “fazerfazer”, nessa capacidade que as coisas têm de levar as pessoas para alémde si mesmas, sem, para tanto, lhes negar a iniciativa e o controle desuas ações. Considerando-se essa atração da embalagem que nos fazescolher, compreendemos a que ponto os modelos de atores são distri-buídos e mudam na ação. Compreendemos também por que o consu-midor escapa à identidade do asno de Buridan: graças aos estratage-mas de atração concentrados no corpo das embalagens, sua hesitaçãosó dura uma fração de segundo, o tempo de a oferta suspender sualógica de ação, lhe propor outras referências à guisa de preferências,para, em seguida, ajudá-lo a fazer sua escolha, a escolher como (lhe)convém.

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ABSTRACT

This article approaches the world of consumption through the sociology ofpackaging. In order to show the importance of such sociology in analyzingthe consumer capturing devices and resources, simple, concretes and politi-cally incorrect example are taken: alcohol, tobacco, coffee and politics. Bythese examples, the author intends to discern the package’s role in theestablishement of market relationship and preferences formation, as well asexamine the relations of mutual influence between packaging and politcs.As a result, the author hopes to show how the packaging mechanisms forconsumer capturing are beyond the classical contrast between calculationand routine, often investing in a conbination of both.Keywords: packaging; consumer’s choice; commoditization of politcs;politization of markets.

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NOTAS

1 O vocábulo, em língua francesa, tem sua acepção restrita a técnicas de embalagem que cuidam da apresenta-ção em uma perspectiva publicitária. [N. da T.]

2 Bebida alcoólica à base de anis. [N. da T.]3 Os produtos escolhidos têm como marcas Ricard, Seita-Altadis, Jacques-Vabre/Max Havelaar. É divertido

notar – mesmo que isso seja involuntário! – que cada um desses produtos possui uma ligação com a vidaparticular de um político (de direita): Charles Pasqua com o Ricard, Jacques Chirac com a Seita (via oscigarros Gitanes), Jean-Pierre Raffarin com Jacques Vabre. Agradeço a Isabelle Bazet por ter chamado mi-nha atenção para a existência dessa outra ligação entre os produtos que me interessam e o universo político.

4 Um uso próximo desta mesma noção é encontrado em Jean-Claude Kaufman (1997, p. 201).5 Esta ilustração representa um maço de cigarros comercializado em 2001, que está, portanto, em acordo com

as normas em vigor nessa época. A aparência das embalagens dos cigarros Gauloises foi recentemente modi-ficada para responder às exigências da nova diretriz européia que entrou em vigor em setembro de 2003.

6 Cigarette é uma palavra feminina em francês. [N. da T.]7 O adjetivo léger, -ère tem ampla gama de sentidos; ao qualificar os cigarros, indica baixos teores (como light

nos maços brasileiros), mas, ao qualificar pessoas, significa leviana, frívola, delicada, fraca. [N. da T.]8 Utilizamos a noção de apego [attachement] em um sentido bem mais restrito do que os pesquisadores do CSI

(CALLON; MÉADEL; RABEHARISOA, 2000; LATOUR, 2000). Enquanto estes não explicitam, ou explicitampouco, a definição que dão à noção, que, para eles, parece poder designar todo tipo de laço, todas as relaçõesque ligam [rattachent] uma pessoa a coisas, preferimos restringir o apego [attachement] à sua dimensão afetiva,conservando o sentido amigável, familiar ou amoroso de expressões populares como “ter laços” [“avoir desattaches”] “ser apegado” [“être attaché”] ou “ter uma ligação” [“avoir une liaison”] (nessa última expressão, aligação designa de uma só vez o laço e o conteúdo afetivo desse laço). Veremos, na conclusão, quais são asrazões (e talvez as vantagens) desta restrição.

9 Sem excluir outros modos de qualificação não encontrados aqui, mas que descobriremos mais tarde, taiscomo os certificados de qualidade e os códigos voluntários de conduta.

10 Embora ainda não dicionarizados em língua portuguesa, os vocábulos “consumerismo” e “consumerista”vêm sendo amplamente empregados. A Cartilha do Consumidor (OAB/RJ) registra ambos (o Código de Defesado Consumidor é, inclusive, aí chamado de lei consumerista) e o primeiro consta do Vocabulário Ortográfico daLíngua Portuguesa, da Academia Brasileira de Letras (3. ed., de 1999). [N. da T.]

11 A confusão não tem nada de retórica: tendo visto o cartaz na vitrine de uma tabacaria, fui comprá-lo imedia-tamente, perguntando pelo número de “Que choisir” [“O que escolher”] sobre a eleição presidencial, muitodecepcionado por não encontrá-lo e, em seguida, muito contente em descobrir, com a ajuda do vendedor,dois jornais onde eu só procurava um!

12 O sentido figurado da expressão francesa mettre en boîte (encaixotar) é “caçoar, zombar”. [N. da T.]13 Alguns dias depois, Charles Pasqua foi “retirado de venda” por motivo de número insuficiente de assinaturas

de eleitos, para retomar a expressão satírica de Quem escolher, mais bem informado que seu modelo!14 Notemos, todavia, o pequeno problema colocado pela proximidade entre os “candidatos” e as “coifas de

cozinha”, as “escovas de dentes elétricas” e as “ampolas de longa duração”: há aí uma espécie de zeugmaincômodo, como uma contaminação que restabelece de um lado a mercantilização que se nega de outro.

15 Deixaremos de lado a questão dos preços. Jacques Vabre: 2,10 euros; Max Havelaar: 2,68 (27% mais caro,porém custo pequeno) (Preço Monoprix Toulouse em 06/06/2002).

16 No original, association loi de 1901, lei francesa que regula as associações sem fins lucrativos.

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17 Não há uma tradução para o termo; a expressão refere-se a roupas que são feitas em tecidos politicamentecorretos (que não implicam morte, tortura, extinção de espécies animais, por exemplo). [N. da T.]

18 Por trás desse quádruplo modo de captação, encontra-se cada uma das modalidades de atividade socialidentificadas por Max Weber: comportamento afetivo, no caso do apego; comportamento tradicional, nocaso do encadeamento; comportamento racional relativo a fins, no caso do interesse; comportamento racio-nal relativo a valores, no caso do engajamento. É reconfortante constatar a que ponto a observação dos atorese dos dispositivos ordinários nos leva a reconhecer a pertinência do conjunto desses modos de ação quediversos sucessores de Weber se obstinam em apresentar, durante várias décadas, como excludentes entre si.

19 Nossa dívida para com os pesquisadores do Centre de Sociologie de l’ Innovation é sem dúvida imensa, namedida em que são esses pesquisadores que por cerca de 20 anos têm problematizado sucessivamente asdinâmicas de interesse (CALLON, 1986), de apego (CALLON; MÉADEL; RABEHARISOA, 2000; LATOUR,2000) e mesmo de engajamento das pessoas (CALLON, 1999), ainda que, pelo que sabemos, eles não tenhamexplicitado nem as razões que para eles fundam a passagem de uma terminologia a outra, nem o parentescoou as relações que esses diferentes termos poderiam manter. Precisamente: a idéia de captação não pretendeacrescentar nada, ela não visa a abarrotar o léxico com um conceito suplementar, senão sob a forma de umsignificante que permite reunir os significados disponíveis, senão como meio de refletir nos fundamentos ena possível articulação de diferentes modos de encaixe econômico das pessoas. Precisemos, enfim, que nãopretendemos de modo algum fixar a lista dos registros cognitivos possíveis; mais importante que estabelecersua descrição é perceber a circulação de motivações e de comportamentos que eles são susceptíveis de engen-drar.

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ARTIGOS

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J E A N - F R A N Ç O I S B A R É*

A ANTROPOLOGIA E AS POLÍTICAS

DE DESENVOLVIMENTO: ALGUMAS ORIENTAÇÕES**

O artigo apresenta algumas reflexões sobre as possíveiscontribuições da antropologia para a observação e aanálise das políticas ditas de desenvolvimento e, maisgeralmente, da ação econômica pública.Palavras-chave: antropologia; políticas dedesenvolvimento; diversidade cultural; intervençãosocial.

* Directeur de Recherche àl’Institut de Recherchepour le Développement(France).

** Este texto retoma as gran-des linhas de uma exposi-ção no seminário da UMR,“Regards”, em fevereiro de1995. Foi preliminarmentepublicado em Terrain, 28,mars 1997, p. 139-152.Para esta edição, foi tradu-zido por Regina Vascon-cellos.

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POR QUE A ANTROPOLOGIA?Antecipando o que virá a seguir, gostaria primeiramente de responderrapidamente a uma pergunta que certamente será feita: por que a an-tropologia teria de tratar desses assuntos? Existem várias respostasadmissíveis, sendo que a primeira delas também pode assumir a formainterrogativa: “E por que a antropologia não o faria?”. A vocação daantropologia é o estudo de formas de organização específicas e de esque-mas conceituais “determinados, mas que nunca são os únicos possí-veis” (SAHLINS, 1980), aos quais estas formas de organização estãoassociadas. Seu campo não é, conseqüentemente, definido por objetosempíricos (ver, por exemplo, AHMED, SHORE, 1995; SAHLINS, 1980).Deste ponto de vista, a ação pública, por mais universal que possa pare-cer (e onde não haveria uma ação pública?), constitui um campo deestudo exemplar não apenas em si (no mínimo em razão das histórias edas “tradições” nacionais ligadas ao Estado), mas igualmente em razãodos agentes não menos específicos constituídos pelas situações de en-contro entre instituições públicas e sociedades.1 Como observei em 1987,não somente é “possível” tratar da ação pública, da economia do de-senvolvimento e do “desenvolvimento induzido” de maneira antropo-lógica, como seria difícil fazê-lo de outra forma.

Vêm acrescentar-se a esta primeira razão – e ela, de certo modo, fazparte do bom senso – outras razões mais pragmáticas. Para mim, a pri-meira delas se deve ao fato de que a antropologia – no aspecto daetnografia e da reconstituição da ação social através das categorias dosatores – tem uma capacidade descritiva que pode perfeitamente se apli-car ao objeto “políticas de desenvolvimento”. A segunda, logicamenteligada à primeira, é a de que na prática todos concordam em que nãose conhece bem, de um ponto de vista estrutural e comparativo, o queacontece na instauração e na aplicação do incentivo público. Gostariade citar aqui duas testemunhas importantes a fim de fundamentar estaconstatação passível de suscitar muitos comentários. O interesse destesdois testemunhos reside no fato de que eles se comunicam, emboraestejam separados por 30 anos de intervalo. Albert Hirschman, um dosinventores da economia do desenvolvimento, publicou nos anos 1960um livro célebre, Development Projects Observed, cujo tema principal eraa ausência de transparência nos sistemas de ação econômica que ope-ram a mediação entre a reflexão macroeconômica, de um lado, e arealização de políticas ou de projetos, de outro. Cerca de 30 anos de-pois, um conselheiro sênior do Banco Mundial em social policy, MichaelCernea (1991), escreveu, no prefácio de um livro muito conhecido,

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publicado pelo próprio Banco Mundial, que “nenhuma teoria do de-senvolvimento induzido [...] foi algum dia formulada apesar da multi-plicação de toda sorte de intervenções públicas”.

O que é possível apreender dos resultados das políticas de desenvolvi-mento procede evidentemente tanto desses processos de ação comodas premissas intelectuais destas políticas. Entre as decisões ou orienta-ções macroeconômicas e a instalação de políticas e projetos de incenti-vo existe todo um conjunto de mediações institucionais e humanas, enão há razão para que elas não tenham igualmente uma relação com oque se pode perceber em suas conseqüências. Apresentei diferentesexemplos deste fato em um pequeno texto intitulado “O incentivo aodesenvolvimento é bem humano” (CERNEA, 1991): o funcionamentodas hierarquias burocráticas, o confronto de diferentes ethos nas políti-cas e projetos de incentivo, a definição e propagação do que devemosdenominar – na falta de melhor – “modos” econômicos, o nível e asmodalidades de remuneração dos especialistas e consultores, a compe-tência lingüística dos funcionários do desenvolvimento, as modalida-des de coerência entre as formas organizacionais de intervenção e osatores sociais locais etc. Em resumo, pode-se pensar que os fins depen-dem dos meios tanto no desenvolvimento como em outros campos. Naspalavras de Paul Veyne (1971), “se a teoria tem as mãos puras, não épor isso que ela deixa de ter mãos”.

Decorre daí necessariamente a idéia de que é possível e útil contribuirpara a discussão sobre a avaliação de projetos e políticas. Este aspectofinalizado do procedimento será retomado a seguir.

O tema é necessariamente amplo visto que as políticas públicas de de-senvolvimento constituem uma dimensão universal do pensamentoeconômico. Ele será ilustrado por diferentes exemplos concretos, ex-traídos de estudos precedentes.

O PROBLEMA DA CONSTRUÇÃO DO OBJETO

A necessidade de construir o objeto de estudo se faz sentir logo que seevocam as expressões “política pública”, “política de desenvolvimen-to”, “projeto de desenvolvimento”. A realidade representada por umaexpressão não salta aos olhos, a despeito do que pensam os sociólogos!Existe certamente uma definição que pode ser chamada de canônica:uma política de desenvolvimento seria uma extensão da política públi-ca fora de seu campo de intervenção de origem, para citar a expressãodo sociólogo J. P. Chauveau. Mas nem mesmo esta definição está desti-

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tuída de ambigüidade. Historicamente, a ação do Estado francês doséculo XIX em relação ao que denominamos campesinato – ou seja, apopulação dos “campos” franceses – se assemelha bastante às políticasde desenvolvimento. No início, as idéias de modernização e progresso,ou ainda de elevação do que se convencionou chamar de “nível de vida”,se situam no interior mesmo das nações. Ainda historicamente, é certoque a extensão de que fala Chauveau se manifesta com a expansãoeuropéia, mas há um retorno a um diálogo euro-europeu no quadro,por exemplo, de instituições como o FED (Fundo Europeu de Desen-volvimento), que intervém tanto na Europa como externamente – é aprópria Europa que se desenvolve. Pode-se, pois, ter sérias dúvidas deque noções como “ação pública” ou “política de desenvolvimento” pos-sam ser definidas, ainda que de maneira canônica, em termos pura-mente geopolíticos, mesmo porque uma definição incontestável de paísesem desenvolvimento não é fácil de formular. Permanecendo no domí-nio das definições de escola, uma política de desenvolvimento podeconter múltiplos aspectos. Analisei os aspectos denominados setoriais,como os problemas de incentivo para a criação de PME [Pequenas eMédias Empresas] mas não estudei verdadeiramente as políticasmacroeconômicas que, stricto sensu, podem parecer verdadeiras políti-cas de desenvolvimento; o desenvolvimento econômico é uma noçãoestrutural e, portanto, macroeconômica.2 Durante muito tempo, po-rém, o Banco Mundial, que é um organismo com funções notoriamen-te macroeconômicas, fez uma distinção entre os projetos de desenvolvi-mento (que são “setoriais”, ou seja, que fazem parte de setores de ativi-dade como a agricultura, a indústria etc.) e os programas (considera-dos “nacionais”). O objetivo do jogo era, de certa maneira, fazer comque financiamentos de projetos e de programas se cruzassem sem quehouvesse grave colisão (ver, por exemplo, BRÉTAUDEAU, 1987). Em-bora esta taxonomia de base tenha sido posta em questão, ela pode serencontrada implicitamente nas posteriores formas de organização doBanco.

O mundo do desenvolvimento, o mundo das instituições de desenvol-vimento tal como ele se expressa nos diferentes conceitos, nem sempreé traduzível de uma para outra dessas grandes línguas veiculares quesão o francês e o inglês. A Caisse française de développement, por exemplo,tinha até recentemente linhas orçamentárias intituladas “incentivosextraprojeto”, uma noção dificilmente traduzível em anglo-americano,dado que procede da história bastante específica da “cooperação” en-tre a França e suas antigas colônias da África. Assim também a noção de

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“países do Sul”, que faz sentido para o mundo do desenvolvimentofrancês, é bastante idiomática.

Essas especificidades, características de objetos culturais, são perceptí-veis não somente na confrontação entre línguas e sistemas semânticos,mas também na arquitetura mesma das significações em uma dada lín-gua. É o que acontece com noções como as de “políticas”, “público” e“Estado”, cujo estudo antropológico faz indissoluvelmente parte de umaespécie de filologia histórica (BENVENISTE, 1969). O que dizer daprópria definição em economia do conceito de desenvolvimento? Fuilevado a seguir de perto (BARÉ, 1987) a discussão conscienciosa reali-zada por Patrick Guillaumont a esse respeito em Economie dudéveloppement (1985), a partir de referências múltiplas. Pude concluirque o desenvolvimento, enquanto fenômeno, pode ser definido como“uma espécie de brinde Bonux3 que se pode encontrar por acaso emum pacote de crescimento econômico” (BARÉ, 1987). De fato, as no-ções “crescimento” e “desenvolvimento” formam juntas um tipo de táxonterminológico tão indissociável quanto “ateísmo” e “crença”.

Isso não quer dizer que o aumento da renda per capita, a assistênciamédica, a escolarização, tudo o que a posteriori se considera como “indi-cadores” do desenvolvimento seja ficção. Significa, de fato, que o de-senvolvimento não é uma realidade que existe independentemente dosprocedimentos lingüísticos que servem para apreendê-la, e sim que setrata, ao contrário, de uma categoria lingüística que depende de proce-dimentos de definição. Estes, ao menos em ciências sociais, não são maisdo que meios de relacionar, graças ao “uso culto” dos gramáticos, pala-vras com outras palavras (as da definição), e mesmo lexemas (ou cate-gorias mínimas de sentido dificilmente traduzíveis) com outros lexemas.G. Lenclud (1995), que o demonstrou de modo admirável a propósitodos conceitos em antropologia, começando acertadamente pela dificul-dade de “definir uma definição”, cita a apóstrofe do epistemólogo W.Quine: “Definição, define a ti mesma.”

As próprias noções de desenvolvimento, de ação pública etc. veiculambem as ambigüidades semânticas. De fato, alguns economistas duvi-dam que uma “economia do desenvolvimento” exista enquanto corpusautônomo da economia política exclusivamente; o próprio Hirschmanescreveu um artigo intitulado “The rise and decline of developmenteconomics” (reproduzido em 1984), título que supõe a emergência e odesaparecimento de “paradigmas” no sentido de Kühn, ou seja, de siste-mas de sentidos específicos.

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Já é possível deter-se aqui neste ponto bastante banal das indecisões dosentido. Os sistemas conceituais que servem de base para as políticas dedesenvolvimento parecem ser constituídos muito mais pelo que se de-signa como categorias locais em antropologia, isto é, por maneiras es-pecíficas de denominar as coisas, do que por noções teóricas que presu-midamente subsumem os contextos e as experiências particulares. Con-sidere-se a noção econômica de intensidade no trabalho, à qual medediquei em estudos anteriores. Trata-se de uma noção definida poruma taxa, a taxa de intensidade capitalística, que é a relação entre ocapital fixo (ou seja, para resumir, as máquinas e as infra-estruturas) eo número de empregos. Quanto mais baixa a taxa, mais as empresassão consideradas como labor intensive. Não há dúvida de que se podecompreender intuitivamente que uma oficina tunisiana de conserto depneus que emprega dez pessoas em seus dez metros quadrados é umaempresa intensa em trabalho; e que uma empresa de software onde ape-nas três programadores encarregados da criação trabalham em máqui-nas extremamente caras é uma empresa intensa em capital. O proble-ma concerne ao que acontece exatamente entre os dois extremos, nafronteira entre intensidade em trabalho e intensidade em capital. Apartir de que momento se passa de um ao outro? A resposta clássica é aseguinte: convém basear-se em uma taxa de intensidade capitalísticamédia em um dado número de empresas e observar, em seguida, asque se encontram de um lado e de outro da média.4 Mas esta média éum critério arbitrário: o que acontece exatamente no limite da médiapode ser considerado como intenso em capital ou como intenso emtrabalho segundo o ponto de vista. Trata-se de uma operação intelectualanáloga à que consiste em delimitar o que é azul em relação ao que éverde, ou em definir numa dada língua as espécies e as subespécies dotaro.5 Em taitiano, por exemplo, distingue-se um taro branco de umtaro preto ou de um taro vermelho; se o taro branco é branco, vãodizer que afinal ele é branco porque, para a maioria das pessoas, não épreto ou vermelho.6 Em outros termos, uma noção como a de intensi-dade em trabalho procede mais de um saber popular, de um sabertaxonômico que de uma ciência propriamente dita. Acredito que sejaeste o caso de muitos conceitos que organizam o mundo do desenvolvi-mento e da ação pública.

Dentro dos limites dos problemas de definição, pode-se mencionar oramo da antropologia denominado antropologia cognitiva, a propósitoda qual tenho dúvidas de que constitua um corpus de proposições autô-nomo. Cabe assinalar que não sou o único a pensar assim (BOYER,

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1991). Com efeito, é difícil imaginar o que poderia ser uma antropolo-gia não cognitiva! De qualquer forma, penso que se é levado a admitiresta constatação quando do exercício de inversão de perspectiva, queconsiste em questionar a que se assemelham as categorias da economiado desenvolvimento se traduzidas em uma língua que não seja capazde comunicá-las. Assim, como traduzir certos conceitos de base da eco-nomia política, tais como “salário”, “renda”, “comércio externo”, emuma língua como o taitiano (BARÉ, 1992)? A resposta é que se, por umlado, esta operação é sempre possível tecnicamente falando (MOUNIN,1963), é, todavia, preciso um ato de autoridade, que é aquele, inconscien-te, do “uso”, para efetuar uma passagem para a linguagem corrente(“quando alguém disser prestação assimétrica do mês fechando um ciclo detroca, você deve compreender que isto significa ‘salário’ em francês”).Enfim, esta definição interlingüística, que é o outro nome da tradução,acarreta necessariamente mal-entendidos semânticos.

Esse primeiro “desenvolvimento” leva a duas constatações: de um lado,as populações ou as pessoas, sem as quais as instituições públicas, a açãopública e as políticas de desenvolvimento não são pensáveis, comparti-lham maneiras de dizer e, pois, de pensar, especializadas e dificilmentedefiníveis; de outro lado, estas maneiras de dizer e de pensar são difi-cilmente traduzíveis. Pode-se dizer que este é um “campo” bem familiaraos antropólogos.

Tudo isso pode parecer um pouco provocador, mas afirmo não ser estaa minha intenção. Não só tenho amigos que são economistas e aprendimuitas coisas interessantes trabalhando numa unidade de pesquisa pre-dominantemente econômica, como não tenho qualquer projeto de agres-são pérfida em relação à economia política. Constatar que a economiado desenvolvimento e o que constitui o seu braço armado – as políticasde desenvolvimento – têm sua origem mais nos saberes populares doque na ciência, não constitui, em absoluto, uma crítica elaborada porum antropólogo. Estou apenas expressando, em outras palavras, o queafirmam inteligências de larga audiência como Thomas Kühn que, numarecente entrevista para o jornal Le Monde, ao falar não das ciências so-ciais, mas das ciências experimentais, lembrou que, por um lado, a lin-guagem constitui a condição de possibilidade da ciência e que, por ou-tro, “nem sempre existe uma lingua franca no interior da qual se possacomparar duas teorias dadas”.7 Afinal, é exatamente o que afirmo aquiao dizer que o mundo do desenvolvimento é um universo conceitualou “categorial” muito específico, o que traz conseqüências para as polí-

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ticas de desenvolvimento, quando consideradas como sistemas de açãohumanos.

Embora a sociologia (e não a antropologia, até recentemente)8 tenhaconsagrado uma literatura considerável às “organizações”, existem di-ficuldades de definição do mesmo tipo quando as políticas de desenvol-vimento são vistas como sistemas de ação. Deve-se lembrar que, estrita-mente falando, ninguém jamais viu uma política de desenvolvimentoou então a “ação pública”. Uma política de desenvolvimento se definepelo que dizem as pessoas que a fazem: trata-se, portanto, de um con-junto de interações complexas entre lugares de reflexão ou de decisãomacroeconômica, burocracias e administrações, grupos ou atores sociais.Seria possível descrever este conjunto em termos etnográficos, ou seja,recorrendo à conceitualização dos próprios atores e às palavras queutilizam na linguagem oral (sem deixar de utilizar igualmente a docu-mentação disponível)? A resposta é: “Depende.” Há aqui umaconstatação surpreendente, visto que este conjunto é considerado comoum objeto concreto e maciço; ele apresenta, contudo, muitos proble-mas de descrição. Assinale-se que podem surgir problemas semelhan-tes no caso de objetos antropológicos, aparentemente dos mais clássi-cos, como a “linhagem”, que não é constituída por um conjunto depessoas, e sim por um conjunto de relações entre pessoas, vivas e mor-tas.

Se for o caso de um projeto setorial – que pode ser exemplificado atra-vés dos projetos de incentivo às pequenas empresas como aqueles emque trabalhei na Tunísia e no Pacífico Sul –, será possível, efetivamente,identificar a maior parte dos atores. Isso porque, no que diz respeito,por exemplo, aos empréstimos de incentivo, há uma determinada clien-tela passível de ser delimitada, através de dossiês de demanda de aces-sos, dossiês bancários etc. Entretanto, essas pessoas não dizem nempercebem a mesma coisa; há uma heterogeneidade considerável, queum trabalho de observação pode reduzir. Contudo, no final das contas,restam sempre resíduos heterogêneos que dizem respeito aos pontosmais centrais. Assim, para os próprios responsáveis administrativos, nocaso de uma linha orçamentária de incentivo à criação de PME, a maiortaxa de intensidade de capital aceita variava de 1 a 1,5. Entre os empre-sários, o conhecimento das taxas de juros praticadas e a circulação dainformação quanto às condições de acesso eram extremamente variá-veis. Conseqüentemente, as condições mesmas de criação de suas em-presas também variavam muito, embora se tratasse de um quadro ad-ministrativo que supostamente deveria ser o mesmo para todos.

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Se, no sentido estrito, não quisermos nos contentar com a definiçãopuramente orçamentária (e tautológica) de um projeto – ou seja, a con-cessão de créditos –, tal instrumento não comporta um início, um meioe um fim nem possui uma coerência bem delimitada. Ele é um conjun-to de interações entre atores com objetivos e competências heterogêneas.O que a antropologia pode fazer, através da abordagem direta, é des-crever estas interações bem como a sua relação com o que é possívelapreender dos resultados. Mas a própria apreensão dos resultados tam-bém não constitui uma tarefa fácil por razões que se devem, grosso modo,às dificuldades mesmas da análise causal em história. De um lado, por-que um projeto se inscreve em uma conjuntura macroeconômica geralque pode variar (e com ela as taxas de câmbio); de outro, porque odinheiro é “fungível”. Em outras palavras, nada se parece mais comuma bicicleta comprada por um assalariado tunisiano de uma PME,criada por uma linha de crédito do Banco Mundial, do que uma bici-cleta comprada pelo mesmo operário graças às economias de seu ir-mão que vive na França. Na verdade, a “simples” descrição de um pro-jeto setorial é um objeto de pesquisa em si.

Caso se tome o exemplo da reforma fundiária empreendida na ilha daReunião9 (que estou atualmente estudando), a heterogeneidade dospontos de vista e dos atores é considerável. De um lado, há a SaferRéunion, o Crédit agricole, as estruturas de enquadramento rural que, namedida do possível, se encontram ligadas por definições programáticasfuncionais; e de outro, para os pequenos plantadores créoles, este con-junto é o “band’bougre gouvernment” (literalmente, “todos esses sujeitosda administração”). A multiplicidade das definições funcionais(enquadramento, promoção, gestão etc.) desaparece no contexto deoutras percepções ligadas a outras significações. O diálogo se constituifreqüentemente de mal-entendidos fundamentais como, por exemplo,os que surgem em torno da concepção créole da liberdade. Para osbeneficiários da reforma, isto é, para os novos proprietários que sãosubmetidos a um controle do enquadramento rural durante dez anos,este controle traz uma espécie de decepção em relação à liberdade queacreditavam ter obtido. Como eles dizem: “tem sempre alguém man-dando na gente”. Essa retórica da liberdade pode ir longe; assim, al-guém me disse: “Se existisse liberdade, eu não seria proprietário” [Syavait la liberté mi serais pas propriétaire].

No que concerne ao dispositivo administrativo, um dos objetivos cen-trais da reforma é tornar a “pequena agricultura” da ilha mais produ-tiva. É neste aspecto que se trata de um projeto ou de uma política de

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desenvolvimento, embora os pequenos plantadores não sejam propria-mente agricultores no sentido das políticas setoriais. São pessoas quefazem agricultura, de certo modo como M. Jourdain10 fazia prosa. Aliás,uma terra agrícola ou uma exploração é, indissoluvelmente, um “tra-balho” em créole. Para ver a confusão que noções como “setor agrícola”ou “desenvolvimento rural” podem suscitar quando aplicadas a estemundo, gostaria de citar o diálogo entre um beneficiário e um de seusamigos, que lhe dava como exemplo as manifestações camponesas di-ante das prefeituras11 da metrópole, em cujos pátios, dizia ele, se costu-ma despejar alcachofras. Comentário que provocou no outro o seguin-te questionamento: “Mas e as prefeituras, o que elas fazem depois comas alcachofras?”.

A reforma fundiária da Reunião não faz, portanto, parte de uma des-crição realizada de um ponto de vista neutro por um observador situa-do fora do contexto. Trata-se de um conjunto de interações entre ato-res de culturas diferentes, se compreendermos aqui o que se pode cha-mar de cultura ou de culturas do desenvolvimento.

Gostaria de insistir no fato de que minhas observações não estão, demodo algum, vinculadas à crítica que geralmente se faz com relação àspolíticas de desenvolvimento: a de que elas não levam em conta asespecificidades locais e as culturas. Se me abstenho de formular estacrítica, não é porque ela me parece falsa, e sim porque, embora elareflita atualmente uma posição que predomina nos organismos públi-cos anglo-saxões, se trata, a meu ver, de uma questão mal colocada. Aspolíticas de desenvolvimento são por essência universalistas, já que sedestinam a zonas da atividade social cuja existência pode ser universal-mente estimada. É justamente por esta razão que os camponeses créolesda Reunião podem falar com um quadro administrativo que, parado-xalmente, tem objetivos inteiramente diversos. Mas as duas partes fa-lam a respeito de um mesmo problema, que pode ser definido como“reivindicação à propriedade [da terra]”. O que é cultural nas culturasdo desenvolvimento é, entre outras dimensões, a invenção mesma dauniversalidade. É o que assinala Anarthya Sen (1988), quando lembraque, apesar da variabilidade das culturas, existe um caráter objetiva-mente preferível e preferido de certas situações, como, por exemplo, oaumento da expectativa de vida e da renda, a segurança física, a segu-rança alimentar. Quando falo destas interações, estou falando daquilopor que é preciso passar para chegar a designar ou tratar, de um pontode vista praxiológico, esta zona virtual do universal.

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Gostaria então de assinalar que problemas de descrição análogos seapresentam por vezes aos dirigentes econômicos. Cabe lembrarnotadamente o primeiro relatório da comissão parlamentar de inqué-rito sobre o Crédit Lyonnais, consecutiva às consideráveis perdas des-cobertas no balanço do primeiro banco francês do setor públicoconcorrencial, e presidida pelo próprio presidente da Assembléia Na-cional. Este relatório pode ser citado, já que foi publicado pela Assem-bléia Nacional em 1994. A questão central é em suma: “O que aconte-ceu no Crédit Lyonnais?” Encontramos também neste relatório, im-pregnado, aliás, de uma espécie de sociologia selvagem (as “oligarquias”do Crédit lyonnais), a busca da qualificação de um evento econômicode grande importância através dos depoimentos de múltiplos atorescuja sinceridade, a despeito de seus pontos de vista diferirem comple-tamente, não deve ser posta em dúvida. Em razão da qualidade intelec-tual das pessoas em causa – dirigentes do Banque de France, diretoresdo Tesouro, membros da comissão bancária, ministro das Finanças etc.–, pode-se constatar que as lacunas na descrição de um processo econô-mico-administrativo não estão diretamente ligadas à competência in-telectual dos atores. Além disso, a despeito dos milhares de documen-tos consultados, a comissão de inquérito não dispensou o procedimen-to da audiência (tomo II), muito mais ilustrativo, por alusões sucessi-vas, que as densas análises do relatório propriamente dito (tomo I).Trata-se de uma leitura fascinante, que aconselho àqueles que tiveremcoragem para nela mergulhar (SÉGUIN, 1994).

POLÍTICAS, CONCEPÇÕES E EVENTOS MACROECONÔMICOS

No que diz respeito às políticas macroeconômicas (sempre incluindo oponto de vista dos atores), vê-se que sua descrição se torna extraordi-nariamente complexa e quase impossível por abordagem direta. Poroutro lado, com base apenas na abordagem direta dos responsáveispelas políticas de desenvolvimento em diferentes níveis – deixando porenquanto de lado as dificuldades da abordagem e da pesquisa de cam-po –, esta descrição é perfeitamente possível e assume os aspectos deuma análise retrospectiva que faz parte, como já assinalei, de uma es-pécie de antropologia cognitiva. Ela fornece uma visão ampla da ma-neira como a causalidade macroeconômica é percebida e das razõespelas quais se esboçam itinerários causais diferentes.

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Surge freqüentemente, neste caso, o problema do raciocínio causal emeconomia, em razão da multiplicidade das variáveis. Mas existe igual-mente a possibilidade de encontrar aí o que eu chamaria de “pontoscegos” da economia, percebidos como tais pelos próprios economistas,que demandam – ao que me parece – um olhar antropológico. Tomoum exemplo clássico franco-alemão que empresto de Alain Jessua (1982).Na França, as fases de crescimento são proporcionais a um déficit dabalança comercial, ao passo que na Alemanha, a um excedente. Issoocorre porque a França deve importar mais equipamentos para res-ponder ao aumento da demanda interna, enquanto a Alemanha dispõede uma indústria de equipamentos proporcionalmente mais importan-te. Qual a razão? Ninguém sabe (ver também KOLM, 1987).

Cabe perguntar se não existiriam na Alemanha modalidades específi-cas de socialização e de formação que se projetariam na população ati-va e, conseqüentemente, nos grandes componentes da atividade eco-nômica. Na minha opinião, a resposta é afirmativa. É ainda possível areferência aos debates comparativos sobre o famoso controle das des-pesas com a saúde que, na Alemanha, é orientado pela ideologia “racio-nal” da co-gestão, que também orienta a ação sindical.

Um outro exemplo, agora concernente à Ásia continental e insular e aoextraordinário savoir-faire histórico ligado ao arroz, notadamente naChina e na Tailândia. Apenas o ponto de vista evocado anteriormentepermite compreender as modalidades de difusão e de integração dasvariedades de alto rendimento que tiveram um papel determinante naemergência de capacidades exportadoras. Tem-se aqui uma dessas acu-mulações históricas, de que fala Claude Lévi-Strauss em Raça e história.Pesquisas sobre as denominadas mediações necessárias da atividadeeconômica – como a formação, a socialização em vista da atividade pro-fissional – e, portanto, da dimensão macroeconômica das coisas, fazemdiretamente parte, nesse sentido, da descrição antropológica. Assim, osresponsáveis pelo Bundesbank – que são pessoas com influência direta-mente macroeconômica – foram recentemente qualificados pelo antigoprimeiro-ministro francês Raymond Barre de “paroquianos”, em vir-tude de sua reticência em baixar as taxas básicas de juros. Trata-se aqui,igualmente, de uma alusão aos estilos observáveis entre os responsáveispor esta poderosa instituição, caracterizados pelas virtudes recomen-dadas pelo protestantismo alemão, ou seja, por modelos de comporta-mento específicos.

Quando se fala de políticas de desenvolvimento e, portanto, de institui-ções de desenvolvimento, evocam-se, conseqüentemente, de certo modo,

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obras culturais, exatamente no sentido que lhes dá Roger Bastide emsua Antropologia aplicada. É este o primeiro ponto que gostaria de assi-nalar aqui: uma descrição antropológica de políticas de desenvolvimentobaseia-se no que contam os atores que gravitam em torno da ação pú-blica e que estão ligados no interior do que Victor Turner chamava decampo político. Trata-se de uma antropologia de modelos heterogêneos,para retomar a expressão de Olivier de Sardan que, todavia, mereceriaser especificada – se a heterogeneidade fosse radical, toda ação públicaseria conseqüentemente impensável; a qualidade essencial desta expres-são é o fato de ser imagística...

AÇÃO PÚBLICA E PERSPECTIVA DIACRÔNICA

Gostaria agora de chamar a atenção para o fato de que tentar descreverpolíticas ou projetos de desenvolvimento significa necessariamente terde descrever fenômenos diacrônicos. Mais exatamente, estes sistemasde atores se inscrevem em uma temporalidade que lhes é constitutiva.Fala-se da “estrutura de uma história” tanto quanto da “história deuma estrutura”, exatamente no sentido em que Sahlins (1981) empre-gava estas palavras no caso do Pacífico insular.

Essa temporalidade fica bem clara na maneira como diferentes orga-nismos definem a avaliação de um projeto. Para o pensamentodesenvolvimentista, há sempre um início, um meio e um fim, a despei-to da dificuldade em defini-los. Tem-se então a noção de termos dereferência, que define o que é possível estruturar de um projeto nostermos da missão atribuída a seu chefe ou a especialistas, e que consti-tui, portanto, uma projeção no futuro. É igualmente encontrada a no-ção de pre appraisal, que pode ser traduzida como avaliação ex ante, de-pois a instalação e, enfim, a avaliação ex post. Existe sempre um antes eum depois nas políticas e projetos de desenvolvimento, mesmo quandotambém há recorrências.

A propósito dessa noção de termos de referência, gostaria de mencio-nar o que conta o economista do Banco Mundial Robert Klitgard, en-carregado, em 1987, de um projeto de reabilitação econômica na Guinéequatorial, em um livro intitulado Tropical Gangsters, que constitui, ameu ver, um notável testemunho. Os termos de referência que Klitgarddescobre por ocasião da sua chegada consistem principalmente na fór-mula “ligar um empréstimo flexível (soft loan) e imediato à estratégia dedesenvolvimento de médio prazo da nação”. Mas, como não havia es-tratégia de desenvolvimento a ser consultada, caberia a Klitgard cons-

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truí-la. Isso me parece bem ilustrativo do que é uma política de desen-volvimento, isto é, a projeção de instrumentos semânticos particularessobre um real que não seria “reconhecível” de outra forma. Este fatome levou irresistivelmente a pensar na história dos irmãos Marx, emque um dos irmãos diz ao outro: “– Escuta, tem um tesouro na casa aolado. – Como, pergunta o outro, se não tem nenhuma casa ao lado?”. Eo primeiro responde: “– Ora, isso não tem importância, a gente vaiconstruir uma!”.

As políticas e projetos de desenvolvimento possuem uma temporalidadefundadora, se posso me expressar assim, a que se urde no momentomesmo em que eles são definidos. Mas esta temporalidade tem outrosaspectos: elementos macroeconômicos e monetários como a variaçãodas taxas financeiras ou das taxas de câmbio; o fato de que os quadrosdirigentes podem mudar; o fato de que os interlocutores do projetopodem mudar – por exemplo, quando se passa de uma associação detrabalhadores rurais a outra, de uma região a outra, de um serviço doEstado recipiendário a um outro.

Mas existem temporalidades que englobam ainda mais, e que estão li-gadas ao fato de que a reflexão e a decisão macroeconômica que defi-nem um projeto ou uma política também procedem de uma história.12

Assim – e que esta banalidade seja desculpada –, uma política deprivatização procede de uma história específica do setor público. Paraprivatizar, é preciso que haja alguma coisa pública para ser privatizada.As pessoas que conduzem as políticas econômicas estão, pois, constan-temente fazendo a história sem que verdadeiramente o saibam e for-mulem explicitamente. Trata-se de uma espécie de história “selvagem”,e esta dimensão é uma dimensão intrínseca e comum às políticas dedesenvolvimento. Este aspecto diacrônico me parece particularmentepresente na definição das famosas políticas de ajuste estrutural, tão ca-ras ao coração de alguns de nossos colegas economistas ou, para sermais exato, que constituem o objeto de toda a sua atenção. O que sepode chamar de a “religião do ajuste estrutural” emerge em uma con-juntura particular, a crise da dívida dos anos 1980. A partir daí, segue-se uma espécie de processo de invenção macroeconômica. Parece-memuito difícil descrever o ajuste estrutural sem evocar este processo.Ora, ele pertence mais à bricolagem – a bricolagem intelectual no sen-tido do Pensamento selvagem de Lévi-Strauss – que à experimentação,pela simples razão de que não é possível experimentar, propriamentefalando, em macroeconomia. Acredita-se, talvez, que se está fazendoteoria, mas ela está sendo feita com “o que se dispõe”, em função do

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neoliberalismo dominante nas instâncias internacionais dos anos 1980,sem o conhecimento preciso dos efeitos gerais. O que se diz em subs-tância é o seguinte: há uma crise fenomenal da dívida que vai acabaratingindo todo o sistema mundial, então vamos tentar descobrir comofazer economia de dinheiro público (são as políticas de privatização ede deflação), como dissimular ou mascarar o montante real da dívida(são as caixas de amortização ou as estruturas ditas de cantonnement,13

como também as moratórias). De onde vem, no entanto, o elementopropriamente desencadeador, a crise dos pagamentos das dívidas in-ternacionais? Também ele provém de um processo diacrônico, ligadoao fato de que tomadores e emprestadores se enganam ou fingem quese enganam (entre dezenas de exemplos, o “diálogo” entre bancos ame-ricanos e bancos brasileiros no início dos anos 1980). Por conseguinte,também aqui, o elemento desencadeador tem origem em uma conjun-tura que não faz parte, estritamente falando, da análise macroeconômica,mas de fatores como a falta de seriedade, a avidez, a dissimulação, anegligência, a arrogância, a ambição, a imprevidência etc., que infor-mam sistemas de ação teoricamente neutros. Ele procede, em suma, doethos e do habitus, coisas em princípio familiares aos antropólogos.

Retornando à questão dos projetos “setoriais” (como o incentivo às pe-quenas empresas, o desenvolvimento rural etc.), observa-se constante-mente um processo em desenvolvimento; não estamos diante de umaação sincrônica, como os termos “políticas” ou “projetos” fariam crer.Gostaria de dar um outro exemplo a respeito da reforma fundiária nosD.O.M.14 franceses. Em razão do tempo decorrido desde os anos 1960,data em que a ação teve início, houve uma renovação do quadro encar-regado de realizá-la. Duas gerações estão em presença. A geração atualconsidera que, em certos aspectos, está fazendo a mesma coisa que aanterior porque trabalha em um quadro administrativo estruturalmentesemelhante; no entanto, tudo mudou. As duas primeiras gerações doenquadramento se dedicam a todo tipo de avaliações recíprocas. A pri-meira admite que os mais jovens sejam considerados conselheiros deagricultura, mas julga que são incapazes de fazer crescer um único péde tomate; já na opinião dos mais jovens, os primeiros são verdadeiroshomens de ação, mas não conhecem coisa alguma a respeito de gestãode empresa. Deve-se também levar em conta a evolução das formasinstitucionais. Nos anos 1960, o Crédit Agricole ainda não estavaprivatizado, o que já tinha se concretizado nos anos 1990, e atualmentea orientação da Agricultura já não alcança os mesmos reflexos ou amesma filosofia a propósito do reembolso fundiário. Nos anos 1960, oque era chamado de “crédito de custeio”, ou seja, a quantia necessária

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para a implantação do processo produtivo e a primeira colheita, eragerido diretamente pelos agentes do enquadramento agrícola que es-tavam muito próximos do pequeno agricultor, o que já não acontecehoje. Este empréstimo comportava uma parte não penhorada no preçoda propriedade agrária – isso não existe mais. Nos anos 1960 haviataxas de lucro reais nulas ou negativas – estas taxas são hoje amplamen-te positivas...

No que concerne aos beneficiários, observa-se também um efeitogeracional. A primeira geração de beneficiários tem agora filhos, e oproblema da transmissão das terras devolutas se apresenta. Vê-se en-tão se desenrolar, no interior do próprio quadro administrativo, pro-cessos característicos das transmissões no seio das famílias créoles: asnovas linhagens locais dão início à construção “informal”, em terras devocação agrícola, de casas “provisório-definitivas”, que têm como fun-ção essencial marcar a qualidade de residente, sobretudo para os filhosque permanecerão “junto aos seus velhos pais”. Este movimento é ain-da mais notável porque se inscreve em um período de forte crescimen-to demográfico e, portanto, de escassez do espaço habitável. A adminis-tração da agricultura vê esse movimento como “mitage”,15 e tambémaqui todo o mundo tem mais ou menos “razão”, no sentido em queestamos na confluência de duas lógicas, sobre as quais é difícil saber sesão antagônicas ou complementares. Assim, a reforma, de vocaçãouniversalista, tende paradoxalmente a recriar espaços sociais particula-res. Em longo prazo, as políticas e projetos de desenvolvimento emgeral se assemelham muito pouco ao seu ponto de partida, emboracontinuem inelutavelmente a participar dele.

Resumamos esse segundo ponto concernente à dimensão histórica oudiacrônica das políticas de desenvolvimento. Pensei poder afirmar maisacima que elas reuniam atores heterogêneos em torno de formasinstitucionais específicas. As observações precedentes parecem demons-trar que estes atores surgem – ou desaparecem – num lugar central,numa cena; a sociologia do desenvolvimento fala de uma “arena” paradesignar este lugar central de confrontação (Long, Olivier de Sardan).Tudo isso só pode ser percebido na medida em que as pessoas, ou osdocumentos, o mencionem – mas trata-se essencialmente de pessoas,de atores que, a partir de um início hipotético, narram suas relaçõescambiantes: grosso modo, trata-se de um romance. Tecnicamente falan-do (no sentido da técnica literária), as políticas e projetos de desenvol-vimento são romances ou capítulos de romances, com a diferença deque esses romances são tão realistas quanto possível e contam a história

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sempre renovada da ação pública. Esta observação não me parece me-nos científica que a definição que Paul Veyne deu da história, e que seencontra na primeira página de Comment on écrit l’histoire: a história éum romance verdadeiro. Uma resposta que, acrescenta ele, dá a falsaimpressão de ser insignificante. Quando a antropologia reconstrói his-tórias a partir da memória coletiva, de uma memória coletiva essencial-mente oral, dá-se a isso o nome de etno-história.

A QUESTÃO DA AVALIAÇÃO

Para terminar, gostaria de abordar a questão da avaliação no sentidotécnico, ou seja, do diagnóstico sobre a adequação entre objetivos eresultados. Trata-se certamente de um campo a que o procedimentoantropológico pode trazer muitas contribuições, se considerarmos quehá ao menos alguma coerência nas observações que precedem. Con-vém, todavia, nuançar esta observação. Com efeito, ouvem-sefreqüentemente comentários aproximativos sobre os serviçosespecializados, por exemplo, sobre o Departamento de Avaliações doBanco Mundial. Afirmam alguns que se trata de coisas sem importân-cia, ou então que essas avaliações não são feitas. E caso o sejam, seria demaneira enviesada e/ou inadequada. De acordo com a minha experiên-cia, pode se tratar de um trabalho sério que mobiliza freqüentemente acontribuição de motivações antropológicas no sentido amplo do termo.Não acredito de modo algum que a antropologia chegue ao campo daavaliação como se os antropólogos estivessem em terra de missão; alémdisso, uma proposição antropológica não é sempre e necessariamentepertinente nas questões que concernem à ação econômica (BARÉ,1995b).

Parece-me simetricamente bastante evidente o fato de que reina no in-terior desses serviços um silêncio ensurdecedor sobre a natureza dospróprios processos de ação, tais como foram evocados há pouco. Citouma obra de referência relativamente recente, cuja reflexão pode serconsiderada como particularmente inovadora: “Um estudo etnológicoem profundidade da cultura das agências de desenvolvimento permiti-ria determinar os lugares recorrentes do aparecimento dos problemas”(CERNEA, 1991, p. 460). É o mesmo que dizer que até recentementetudo permanecia, mesmo para os planejadores com idéias inovadoras,em estado de programa, ou de simples desejo, e isso quando essas no-vas abordagens não eram simplesmente ignoradas, o que é mais fre-qüente.

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Deve-se também observar que um recente relatório do Banco Mundial16

provocou uma sensação considerável, sendo que o essencial de suasmotivações serviu de argumentação para a atual reforma de estrutura.Ele simplesmente relaciona a importância crescente dos projetos e dosempréstimos “problemáticos” e a “cultura” do Banco. No caso, uma“propensão” (trend) a consagrar muito mais esforços na preparação dosdossiês de empréstimo do que na asseguração do seu controle perma-nente.17

O antropólogo tem certamente vocação para realizar pesquisas nestecampo, mas em condições diferentes. Ele precisa, entre outros fatores,reencontrar o equivalente do objeto do procedimento antropológicoem campos que não são centrais à sua “tradição”. E também nutrir seuprocedimento com a ajuda dos recursos descritivos da posiçãoetnográfica, de que o estudo de Klitgard (1991) fornece, sem saber ousem explicitar, excelentes esboços. Em suma, valorizar o estudo, emlugar de tratar da intervenção como uma atividade de segunda classeou de fracos resultados. Enfim, e principalmente, uma condição neces-sária para a abordagem antropológica nestes domínios é a aprendiza-gem dos jargões e das técnicas de incentivo econômico, com os quais osantropólogos têm pouca familiaridade.

A própria noção de avaliação está sujeita a diferentes dificuldades dedefinição e, portanto, de interpretação, às quais se aplicam as observa-ções precedentes. Quanto a isso, basta consultar o que escreveram deum lado os politólogos (por exemplo, MENY, THOENIG, 1989), deoutro, os econometristas (CHERVEL, LE GALL, 1989). Em ciênciassociais, e particularmente no que se convencionou chamar de “antro-pologia do desenvolvimento”, discussões consideráveis e apaixonadascercaram a voga crescente de “métodos rápidos de avaliação”. Ao mes-mo tempo, discussões, cujo ponto de partida é a preocupação com aeconomia ou a melhor eficácia da avaliação, levaram à formação deescolas. Lembro o boletim número 8 de uma associação de antropolo-gia do desenvolvimento, a APAD, onde se pode verificar o surgimentode noções como a de “avaliação participativa”, evocando, se compreen-di bem, o fato de fazer com que se encontrem, segundo diferentes mo-dalidades, o quadro administrativo e os clientes de um projeto parafalar sobre o que aconteceu; ou ainda o fato de pedir a opinião daspopulações referidas, embora esta seja uma prática pouco freqüente.Estes procedimentos são certamente louváveis, mas observarei simples-mente que após todas as reuniões possíveis e imagináveis é preciso queno final “alguém”, um sujeito, ainda que seja coletivo, diga o que acon-

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teceu, e que um texto, no sentido amplo, seja escrito. Assim, estes no-vos procedimentos apenas remetem para estágios intermediários daobservação, a preocupação central da avaliação de um projeto, isto é, ade produzir uma imagem racional e argumentada “do que aconteceu”.

Acredito, de qualquer forma, que a abordagem através da memóriaoral, mencionada aqui por diversas vezes, constitui um complementoprecioso em relação aos procedimentos clássicos da avaliação adminis-trativa, com a condição de que um trabalho de pesquisa historiográficarelativo aos documentos acompanhe esta pesquisa oral. Parece-me queassim deve ser por diversas razões. Em primeiro lugar, porque a pes-quisa oral dirigida a pontos concretos e localizados é, com evidência, aocontrário do que possa parecer, perfeitamente adaptada à dimensãodiacrônica das políticas e dos projetos de desenvolvimento. Isso acon-tece porque, com freqüência, atores importantes não se encontram maispresentes, e ainda porque, de maneira mais geral, a participação emum projeto consiste em uma mistura complexa de atos empíricos e dereflexões que não deixam traços nos documentos. Em seguida, por-que, se a busca de informações orais for bem conduzida, ela será infini-tamente mais viva e, de certa maneira, infinitamente mais precisa emais pertinente do que o revelado por volumes de estatística econômi-ca (sem os quais, afirmo mais uma vez, não se pode passar). Se as polí-ticas e os projetos são também sistemas de ação social, não são nem asestatísticas nem mesmo os organogramas que vão falar sobre isso. Apren-di muito mais sobre projetos de incentivo ao ouvir pessoas dizendo quenão estavam de acordo com uma taxa de intensidade em trabalho, ouentão empresários falando sobre a sua vontade de estar em situação demonopólio de importação, do que pesquisando documentos adminis-trativos.

O “CAMPO”: BREVES OBSERVAÇÕES

Surgem objeções no sentido de que a abordagem com a finalidade deentrevistar responsáveis administrativos, algumas vezes de alto nível,não é uma tarefa fácil. E, sobretudo, de que as instâncias político-admi-nistrativas são mundos fechados e proibidos. Isto é verdade, mas é pre-ciso lembrar que retraçar a genealogia de um camponês malgaxe tam-bém não é nada fácil. Tanto no caso dos responsáveis administrativoscomo no dos camponeses malgaxes, é preciso que se desenhe uma es-pécie de zona de comunicação comum que permita ao interlocutor sereconhecer no entrevistador. Nos dois casos, trata-se, pois, de uma ques-tão de aproximação, de capacidade para criar uma certa confiança, e

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não de um problema de metodologia. Não se deve exagerar a parte de“segredo” consubstancial à ação pública. Com freqüência, quando res-ponsáveis administrativos não falam sobre este ou aquele ponto é sim-plesmente porque não foram perguntados a respeito. Por outro lado,nem o antropólogo nem, em certos aspectos, o historiador, estão à pro-cura de notícias jornalísticas sensacionais, e sim em busca de coisas co-tidianas e aparentemente banais. De fato, de modo bastante surpreen-dente, tenho encontrado com freqüência pessoas interessadas nas mi-nhas perguntas e mesmo satisfeitas de poderem falar com uminterlocutor externo, o mais tolerante possível, sobre um trabalho, afi-nal, bastante ingrato, já que o incentivo público ao desenvolvimento éuma espécie de tarefa de Penélope, sempre recomeçada.

ABSTRACT

This article highlights the possible contributions of the anthropological analy-sis to the understanding and evaluation of the so called developmentalpolicies and, in a broader perspective, of the state economic practices.Keywords: anthropology; developmental policies; cultural diversity; so-cial intervention.

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NOTAS

1 Esta questão foi recentemente focalizada por J. P. Olivier de Sardan (1995).2 O termo macroeconomia é entendido a minima seja como “a explicação das interações entre os agregados da

contabilidade nacional” (JESSUA, 1982), seja como dimensão do real relativa a essas interações.3 Alusão a uma antiga e famosa publicidade de uma marca de sabão em pó que oferecia brindes-surpresa em

suas embalagens. [N. da T.].4 Como me foi observado, este exercício estatístico deveria em princípio ser operado por tipos de empresas,

porque é absurdo comparar taxas de intensidade em trabalho em atividades que requerem equipamentosdiferentes. Entretanto, observei pessoalmente esta aberração lógica praticada, apesar de tudo, no quadro deformulação de um diagnóstico geral sobre o emprego em um dado país.

5 Planta comestível da família das aráceas nativa de regiões tropicais das Américas. [N. da T.].6 Que me permitam lembrar aqui, com emoção, de uma senhora idosa da costa sul de Huahine, nas ilhas Sous-

le-Vent do Taiti, grande conhecedora da cultura dos tubérculos, a quem quase fiz perder a paciência quantoa essa questão.

7 “A verdade científica não precisa ser única.” Le Monde, 06 de fevereiro de 1995.8 Cito, no que diz respeito à Inglaterra, as reflexões e os trabalhos realizados na British Association for

Anthropology in Policy and Practice. Ver, por exemplo, Wright (1994).9 Ilha do oceano Índico a leste de Madagascar, antiga colônia francesa, hoje departamento ultramar. [N. da T.].10 Personagem principal do Bourgeois gentilhomme de Molière. [N. da T.].11 Sede da administração de departamento ou de região na França. [N. da T.].12 Alguns desses desenvolvimentos foram evocados em uma mesa-redonda da APAD, “Política econômica?

Vocês disseram política econômica?”, em Montpellier, em 1992.13 De limitação dos direitos do credor. [N. da T.].

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14 Departamentos ultramar, antigas colônias francesas. [N. da T.].15 Em geografia, multiplicação de residências dispersas em um espaço rural. [N. da T.].16 Effective Implementation: Key to Development Impact. Report of the World Bank’s Portfolio Management Task Force

1992.17 Esta fascinante conjuntura será comentada in “L’évaluation et la Banque mondiale. Eléments d’une chronique”,

[A avaliação e o Banco Mundial. Elementos de uma crônica]. Aguardando publicação.

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A N A P A U L A M E N D E S D E M I R A N D A*

ARQUIVO PÚBLICO: UM SEGREDO BEM GUARDADO?**

Este artigo apresenta os resultados da análise das in-formações obtidas em etnografia acerca das práticasem Arquivos Públicos do Rio de Janeiro. Seus objeti-vos são observar como se desenvolvem os processos deprodução, guarda e circulação de documentos, visan-do compreender e explicitar a lógica que os rege. Comohipótese considerei que esses procedimentos estão rela-cionados a uma tradição mediterrânea, que se caracte-riza pela coexistência de dois códigos opostos, mas com-plementares, em que um sistema público de burocraciaconvive com um sistema privado baseado em relaçõespessoais de amizade e parentesco. Essa convivência decódigos paralelos, ambos socialmente legítimos, alteraa função do arquivo, transformando-o no local da cris-talização do segredo.Palavras-chave: arquivo público; segredo; informa-ção; burocracia; relações pessoais.

* Bacharel e licenciada emCiências Sociais pela Uni-versidade Federal Flumi-nense. Doutora do Progra-ma de Pós-Graduação emAntropologia Social – USP.

** Este artigo foi classificadoem 3º lugar no 1º Concur-so de Monografias sobre In-formação e Documenta-ção Jurídica do Rio de Ja-neiro, tendo como tema“Informação Jurídica –O que se pensa é o que sefaz? ”, promovido peloCentro de Estudos Jurídi-cos da Procuradoria Geraldo Estado do Rio de Janei-ro, em 1997. Trata-se deuma versão resumida acer-ca da etnografia realizadasobre as práticas arquivís-ticas em Arquivos Públicosdo Rio de Janeiro, possibi-litada por bolsa de Aperfei-çoamento do CNPq, no pe-ríodo de março de 1993 afevereiro de 1995, no Pro-jeto Religião, Direito e Socie-dade em uma Perspectiva Com-parada, sob a orientação doprofessor doutor RobertoKant de Lima.

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O presente artigo apresenta os resultados de uma etnografia realizadano período de 1993-1995, sob orientação do professor Roberto Kantde Lima e financiada com uma bolsa de Aperfeiçoamento pelo CNPq,acerca das práticas arquivísticas em Arquivos Públicos do Rio de Janei-ro, cujos objetivos eram observar como se desenvolviam os processosde produção, guarda e circulação de documentos, e explicitar a lógicaque regia estes procedimentos.

Como hipótese, considerei o Arquivo Público como uma instituição emque esses processos se dariam sob a influência de uma tradição ibérica/mediterrânea,1 cuja característica é a existência de dois códigos2 opos-tos, mas complementares, onde um sistema público de organização bu-rocrática convive com um sistema privado baseado nas relações pessoaisde amizade e parentesco, e o “sistema de produção de verdades”3 pos-sui características inquisitoriais e interpretativas.

O Arquivo, por ser considerado uma instituição pública, deveria ga-rantir plenamente o direito de acesso ao seu acervo. No entanto, pudeconstatar que este acesso era limitado e modificado por critérios implí-citos às práticas de funcionamento da instituição, que alteravam o cará-ter impessoal das regras públicas, introduzindo elementos personalistase particularizantes ao seu funcionamento. Conseqüentemente, a convi-vência desses códigos paralelos, ambos socialmente legítimos, modifi-cava o papel do Arquivo,4 transformando-o no local da cristalização dosegredo, e não da divulgação da informação.

Esta pesquisa foi realizada seguindo uma tradição de trabalho antro-pológico fundamentada na possibilidade de interpretações da realida-de, buscando não apenas a observação comportamental do grupo estu-dado, mas principalmente a percepção da perspectiva que ele tem acercade sua própria realidade.

Nesse sentido, a análise não se restringiu à compreensão da

representação que os agentes têm do mundo social, mas também, demodo mais preciso, a contribuição que eles dão para a construção davisão desse mundo e, assim, para a própria construção desse mundo,por meio do trabalho de representação (em todos os sentidos do termo)que continuamente realizam para imporem a sua visão do mundo oua visão da sua própria posição nesse mundo, a visão da sua identida-de social (BOURDIEU, 1989, p. 139).

As questões abordadas neste trabalho surgiram a partir dos depoimen-tos de funcionários e usuários entrevistados, bem como da análise da

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bibliografia relativa à questão do acesso à informação, enriquecida coma participação em diversos seminários e congressos das áreas deArquivologia, Biblioteconomia e Museologia.

O ARQUIVO COMO UM DEPÓSITO DOCUMENTAL

Tradicionalmente, os Arquivos Públicos foram criados com a função deguardar documentos. Somente na década de 1990 foi implantada umapolítica de gestão da informação com as funções de gerir e proteger adocumentação pública e/ou privada, já que estas podem servir comoinstrumentos de apoio à administração, à cultura e ao desenvolvimentocientífico, bem como elementos de prova no âmbito judicial.

O que se observa, no entanto, é a representação do Arquivo apenascomo um depósito documental, não havendo a preocupação com a ela-boração de estratégias de divulgação de informações. Alguns acervos,por exemplo, se encontram em caixas, que nunca foram abertas desdeseu recolhimento, das quais não se sabe qual é o conteúdo, conformepude verificar em pesquisa realizada no Arquivo Municipal do Rio deJaneiro e no Arquivo Nacional. Outro exemplo, citado por AntoniaHeredia, refere-se aos arquivos em Sevilha:

Temos salvo e recuperado, através de sua organização e descriçãocentenas de arquivos das municipalidades da Província de Sevilha.Muitos deles, por não contarem com arquivista, têm permanecidozelosamente guardados, inclusive fechados a chave (1992, p. 114).

Os fatos acima citados têm um ponto em comum – a dificuldade deacesso –, mas apresentam uma sutil diferença. No primeiro caso, nãohá nenhum tipo de organização, os documentos, depois de recolhidosdas instituições que os produziram, foram encaixotados, e nunca maisforam vistos ou utilizados, caracterizando o que se costuma chamar deum “depósito documental”, como se tivessem sido lançados a um porãoonde são guardadas as “velharias” que já não nos servem mais. Entre-tanto, no segundo caso, há referência a um trabalho de organização, demodo que a documentação recebeu um tratamento arquivístico quenão ofereceu muita utilidade, pois o que se criou foi um depósito arru-mado, onde o público continuou sem a possibilidade de acesso à infor-mação.

Conclui-se, então, que o tipo de organização do Arquivo, e até a nãoorganização do mesmo, serve para demonstrar quais são as suas reaisprioridades. Assim, a maneira pela qual se organiza, ou não, o Arquivo

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definirá a real função da instituição, que pode ser apenas da guarda dedocumentos ou de uma política de gestão de documentos voltada parao atendimento público.5

A rigor, um Arquivo Público deveria garantir o acesso rápido e raciona-lizado à informação, preocupando-se com o atendimento ao cidadão.Para a consecução desse objetivo seria necessária uma organização queconsiderasse importante não só o documento, mas também os usuários.

Para Marilena Leite Paes (1991), a organização de arquivos pressupõeo desenvolvimento de várias etapas de trabalho, que vão do levanta-mento e análise de dados ao planejamento, implementação e acompa-nhamento da catalogação dos acervos.

Uma crítica que os arquivistas fazem a esta proposta é a de que o ele-mento de “seleção” deveria fazer parte da organização de um acervocomo um critério básico e explícito. De acordo com T. Schellenberg, “omaior problema do arquivista atual consiste em selecionar a massa dedocumentos oficiais criados por instituições públicas ou privadas detodos os gêneros, principalmente no caso dos acervos que se destinamà preservação ‘permanente’”6 (1974, p. 18).

A importância da realização de uma seleção com critérios claros podeser expressa pelo fato de que os arquivos, à medida que aumentam seuvolume, vão-se tornando mais complexos, o que dificulta ainda mais arecuperação da informação. Porém, não se pode esquecer que, ao or-ganizar um acervo, o arquivista sempre faz alguma seleção, mesmo quenão deixe claro quais foram os seus critérios. E é importante destacarque este esquecimento pode ser ou não proposital, como diz JoséMattoso, “para os arquivistas, o que já não serve para administraçãotambém pode ser destruído ou arrumado sem se classificar. Os critériosde seleção variam, portanto, conforme o passado que se quer cons-truir” (1988, p. 95).

A dificuldade de se estabelecer critérios claros de seleção é tão grande,que, muitas vezes, torna-se mais fácil optar pela preservação de tudo.Este fato pode ser claramente percebido na ambigüidade de posiçõesassumidas por José Mattoso com relação aos arquivos portugueses,quando ele apresenta como o maior problema da arquivística modernaa seleção dos documentos de administração pública ou privada. Apesarde sua aparente adesão ao moderno discurso arquivístico, quando setrata de definir as funções de um arquivo, ele afirma que

os arquivos devem garantir, em primeiro lugar, uma preservação sis-temática, não seletiva, de memória documental coletiva e, em segun-

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do lugar, uma classificação completa dessa memória, de modo quetodos os seus elementos se possam usar, comparar entre si e compa-rar com o todo (1988, p. 87).

Assim, essa dualidade de posições com relação ao “processo de trata-mento documental” adotado pelo Arquivo pode influenciar o seu usopara fins de consulta ou pesquisa. Segundo Daise A. Oliveira (1991), oprocesso de tratamento documental se divide em produção do docu-mento, transferência para o arquivo, organização (classificação e orde-nação), descrição (inventário e catálogo), seleção e recuperação. Po-rém, conforme relato dos informantes, o que se faz na prática é apenasa catalogação, esquecendo-se da classificação.

Ora, a classificação é o momento em que se explicitam os critérios queregem a organização. E, conforme pude observar, quando se diz que aclassificação foi “pulada”, não significa necessariamente que não foi fei-ta, pois todo processo de catalogação é classificatório, mas sim que nãoforam explicitados os seus critérios. A falta de registro dos critériosutilizados torna o trabalho de classificação algo pessoal, subjetivo, e atémisterioso, de modo que somente os funcionários que participaram dessemomento podem compreender qual a lógica que geriu os procedimen-tos da organização do acervo. Por isso, nem sempre é possível recupe-rar todas as informações.

Para melhor esclarecer este aspecto, podemos comparar um ArquivoPúblico a uma biblioteca particular organizada pelo seu proprietário,onde muitas vezes somente ele é capaz de encontrar um livro, pois sabequais critérios utilizou para ordená-la.

Um outro problema enfrentado pelos arquivistas diz respeito à “valida-de” dos critérios, que sempre se referem ao tempo presente. Desse modo,o que é válido hoje pode não o ser no futuro, o que provocará dificul-dades a um futuro usuário.

A tentativa de prever o que o “historiador do futuro” (MELD, 1990, p.46) pesquisaria desembocou numa “tentativa alucinada” de acumulartudo, de modo a conservar totalmente a história, a fim de que se pudes-se reconstituir o passado, como se isso fosse possível.

É importante enfatizar que esse esforço de reconstituição do passado éinócuo, pois o passado pode apenas ser repensado, mas jamais revivido,visto que

a experiência de releitura é apenas um exemplo, entre muitos, dadificuldade, senão da impossibilidade, de reviver o passado tal e qual,

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impossibilidade que todo sujeito que lembra tem em comum com ohistoriador. Para este também se coloca a meta ideal de refazer, nodiscurso presente, acontecimentos pretéritos, o que, a rigor, exigiriaque se tirassem dos túmulos todos os que agiram ou testemunharamos fatos a serem evocados. Posto o limite fatal que o tempo impõe aohistoriador, não lhe resta senão reconstituir, no que lhe for possível, afisionomia dos acontecimentos (BOSI, 1987, p. 21).

Para Le Goff (1992), essa “obsessão” pelo passado é resultado das ambi-güidades da modernidade, que, ao mesmo tempo que recusa o antigo,volta-se para o passado, o que pode ser demonstrado pela proliferaçãode “instituições-memória” e pelo sucesso das modas “retrô”.

A preocupação exagerada em preservar o passado através da preserva-ção de suas várias formas de registros documentais levanta outras ques-tões: qual é a verdadeira função do Arquivo? De que modo o tipo deorganização influencia esta função? Como os funcionários conciliamsuas tradições com as novas demandas trazidas pela modernidade?

O ARQUIVO: GUARDIÃO OU DIVULGADOR DA INFORMAÇÃO?Tradicionalmente, segundo os informantes, a função dos arquivos érecolher, conservar e classificar qualquer documento produzido pelofuncionamento de um serviço, seja ele público ou privado. Atualmente,os arquivistas atribuem-se mais uma função: a de divulgar as informa-ções, agindo como os “guardiães e comunicadores da informação”(BLAIS, ENNS, 1989-1990, p. 56).

O papel do “comunicador” representa uma transformação da imagemdo arquivista, que não se limita apenas a tomar conta do “precioso acer-vo” que lhe é confiado, mas que se aplica em colocá-lo à disposição da“formação política e histórica do público”, como disse um funcionáriode Arquivo.

Porém, a realidade dos Arquivos Públicos não é ainda exatamente comoa descrita acima. Na verdade, os Arquivos são vistos pelos usuários talcomo Eckhardt Franz os descreve,7 “como locais onde reina um silên-cio monacal, freqüentado por velhos eruditos que, sob o olhar atentode arquivistas poeirentos, folheiam as páginas amareladas de velhosmanuscritos e de vez em quando são perturbados por jovens” (1985,p. 28).

Segundo um entrevistado, que trabalha na seção de atendimento aopúblico, as atribuições dos Arquivos Públicos no Brasil são limitadas

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apenas à pesquisa comprobatória dos direitos do cidadão. A função doarquivo se restringe à rotina da “burocracia de balcão”,8 não se modifi-cando no serviço prestado aos pesquisadores, que são merecedores deum tratamento diferenciado.

O ritual da “burocracia de balcão” do arquivo segue os mesmos passosdo ritual observado nos Cartórios: precariedade de informações, ex-cesso de papel, desorganização, dificuldade para obter dados. CláudiaHeynemann, ao analisar a relação entre os técnicos e o público, desta-cou que

fornecer a informação correta, às vezes tão difícil na busca direta, é,sem dúvida, bom como marcar um gol. No entanto, [...] existe porum lado uma irritação e desconfiança prévia do funcionário público.Há também uma suspeita quanto ao acesso aos documentos, combi-nada com seu périplo por outros lugares. No caso de uma pesquisanão atingir os resultados, resta sempre a dúvida ao usuário se nãohouve sonegação da informação (1989-1990, p. 76).

Essa rotina burocrática também pode ser observada quando se analisao modo como José Mattoso define o papel dos arquivistas, que seriamos mediadores, os intermediários9 capacitados para facilitar o funcio-namento da máquina burocrática, “os arquivistas são, portanto, aque-les que aceitaram a enorme e importantíssima tarefa de domesticar essahidra de sete cabeças que os resíduos materiais da burocracia modernaincessantemente alimentam” (1988, p. 77).

A observação do funcionamento do Arquivo permite supor que a umaaparente desorganização se sobrepõe algum tipo de lógica, à qual só osfuncionários têm acesso, o que os torna absolutamente indispensáveis.O estabelecimento de uma relação de intimidade entre o funcionário eo usuário, em geral pesquisadores, devido à sua regularidade no usodo Arquivo, é uma garantia de que a informação pretendida será obti-da, o que reforça a idéia do mediador.

Desse modo, os Arquivos Públicos enfrentam um grande desafio: como“repositórios do governo” deveriam assegurar “transparência” e “acessi-bilidade” aos seus usuários, deveriam garantir e estimular a igualdadeno acesso às instalações e serviços, qualquer que fosse o seu público.Entretanto, isto nem sempre acontece, pois o tratamento é diferenciadoentre os “pesquisadores” e o “público comum”. Como pude observarna qualidade de “usuária” dos arquivos, os “pesquisadores” recebemuma atenção distinta por parte dos arquivistas, pois são vistos comoclientes.10

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PRESERVAÇÃO VERSUS DIVULGAÇÃO

De maneira geral, os arquivistas concordam com a afirmação deSchellenberg, segundo a qual “a finalidade de todo o trabalho de arqui-vo é preservar os documentos de valor e torná-los acessíveis à consulta[...]. Para tal utilização recolhe os documentos, armazena-os e restaura-os de forma a que sejam preservados e usados” (1974, p. 309).

Na prática, de acordo com os entrevistados, não existia uma tradiçãode preservação dos acervos dos Arquivos Públicos brasileiros, o quepode ser verificado pelas condições inadequadas de armazenamento,tais como a falta de segurança do prédio, a superpopulação do acervo,a falta de espaço.

A não-preservação do material fez com que o trabalho dos restaurado-res fosse tradicionalmente mais valorizado, visto que, ao final de seutrabalho, a informação, muitas vezes aparentemente perdida, surgecomo uma “nova obra”. Atualmente esta postura tem sido contestada.Apesar do reconhecimento da importância da restauração em casos deextrema deterioração, considera-se que esse processo retira a identida-de da obra no seu valor histórico, além de ser um trabalho muito de-morado e caro.

Porém, para evitar a restauração, é obviamente necessária a preserva-ção do acervo, o que nem sempre acontece. Uma grande dificuldadepara a preservação – e que freqüentemente acontece – é a “falta” decritérios claros de seleção. Conforme pude observar, não existe no Bra-sil uma metodologia de seleção na aquisição e descarte de documentos.Assim, a “política de aquisição segue a tradição, o bom senso e certasorientações”. Com relação a estas “orientações”, os informantes disse-ram que algumas instituições estabelecem certas regras básicas de acor-do com as suas necessidades mais urgentes. Entretanto, é bom ressaltarque nem sempre essas necessidades constituem bons critérios de sele-ção, pois, como foi dito num debate sobre a situação dos Arquivos Pú-blicos: “pode-se estar jogando fora, e até queimando, somente porqueestá velho, parte significativa da história do país”.

A dificuldade de se estabelecer critérios de seleção reside no fato denão ser fácil criar regras gerais que a reduzam a uma operação mecâni-ca, pois todo processo de avaliação e classificação é limitado pelo seuaspecto subjetivo. Schellenberg salientou que “as dificuldades na avalia-ção de documentos são tão grandes que não admira que alguns arqui-vistas, em dado momento, tendessem a fechar os olhos e nada fazer”(1974, p. 152). Existem, porém, alguns parâmetros que podem auxiliar

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esse processo, destacando-se, dentre eles, o valor de testemunho ouprova do documento, e sua participação em um conjunto.

A observação de Schellenberg resume o que se tem feito no Brasil comrelação à aquisição e descarte de documentos. Como afirmou um fun-cionário de Arquivo: “nada tem sido feito com relação aos documentosproduzidos pela administração pública, há muitos anos que nada é re-colhido aos arquivos, o que representa um grave perigo para o futuro,o de não se ter material para contar a história contemporânea do país”.

A falta de uma política de recolhimento de documentos das repartiçõespúblicas tem graves conseqüências tanto para uma perspectiva históri-ca, quanto para o aspecto burocrático, pois a ausência de controle fazcom que documentos considerados permanentes, que já deveriam tersido transferidos para os Arquivos, continuem misturados a documen-tos de menor importância, passíveis de serem eliminados.

As conseqüências desses procedimentos põem em risco o papel dos acer-vos, comprometem o caráter de conjunto da documentação, pois a con-sistência da informação de valor histórico reside não no dado individual,mas na força do conjunto de elementos que a integram, daí a necessi-dade do recolhimento constante dos documentos.

A REGULAMENTAÇÃO DO ACESSO À INFORMAÇÃO

NUMA PERSPECTIVA COMPARADA (BRASIL/FRANÇA/ESTADOS

UNIDOS/PORTUGAL)Neste segmento, pretendo apontar alguns aspectos que favoreçam umadiscussão acerca da regulamentação do acesso à informação, utilizandouma perspectiva comparada entre Brasil/França/Estados Unidos/Por-tugal. A escolha destes países não se deu ao acaso: os Estados Unidos ea França foram escolhidos porque são considerados pelos arquivistas“modelos de modernidade”, possuidores de uma “legislação avançadae eficiente”. Já a escolha de Portugal se deu pelo fato de o nosso sistemaburocrático ter sido organizado segundo os moldes da organização por-tuguesa durante o domínio colonial, o que de certo modo justifica ahipótese da existência de uma tradição ibérica/mediterrânea que influen-ciaria, inconscientemente, as práticas de produção e circulação da in-formação.

Historicamente, o século XVIII é considerado o momento do nasci-mento dos direitos civis, entendidos como os direitos relativos à liber-dade individual, dentre os quais se destacam a liberdade de ir e vir, a

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liberdade de imprensa, de pensamento e fé, o direito à propriedade e odireito à justiça. Nesse contexto, a França foi o primeiro país que legis-lou especificamente sobre o direito de acesso à informação, e que oestabeleceu com a criação do primeiro Arquivo Nacional em 1790. En-tretanto, desde 1766, o direito dos cidadãos à informação já era assegu-rado constitucionalmente, na Suécia.

Na prática, o acesso aos documentos sempre constituiu um privilégiodos que desfrutavam o poder. No século XIX, países como França,Bélgica, Inglaterra e Itália, apesar de admitirem o livre acesso aosArquivos, ainda impunham muitas restrições e fixavam prazos bastan-te longos para a consulta aos documentos.

Durante o século XX, os direitos sociais se desenvolveram visando ga-rantir, teoricamente, o mínimo de bem-estar econômico e uma partici-pação mais efetiva às instituições sociais, de modo que a construção daidéia de cidadania era entendida como um “status concedido àquelesque são membros integrais de uma comunidade. Todos aqueles quepossuem o status são iguais com respeito aos direitos e obrigações”(MARSHALL, 1967, p. 76).

Após a Segunda Guerra, ocorreu uma “revolução documental” (COS-TA, FRAIZ, 1989) no que diz respeito ao processamento da documen-tação produzida, ao acesso e à disseminação da informação. Nesse perío-do, surgiram os conceitos de “gestão de documentos” e “organizaçãosistêmica dos Arquivos” que os arquivistas julgam ter contribuído mui-to para viabilizar o acesso às informações.

Na França, a legislação que rege o acesso aos documentos é relativa-mente recente (1978-1979), e estabelece um compromisso entre os in-teresses privados dos cidadãos e o direito à informação. Em geral, osdocumentos administrativos são liberados desde a sua produção. Paraoutros documentos, o prazo legal de abertura à consulta é de 30 anos,com exceção de documentos que se referem à privacidade dos cida-dãos. Como exemplos, podemos citar os documentos médicos (150 anos),os dossiês pessoais (120 anos), documentos de imposto de renda (60anos), e documentos cujo acesso ponha em risco a segurança do Estado(60 anos).

Segundo T. Schellenberg, é preciso esboçar normas para determinar eimpor restrições, que devem estar condicionadas a um limite de tem-po, a fim de que todos os documentos preservados venham a ser even-tualmente abertos ao público. A idéia de que o estabelecimento de res-trições explícitas torna o acesso mais fácil, pois esclarece quais são os

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limites classificatórios, é a base da legislação dos Estados Unidos, maisparticularmente do Freedom of Information Act (FIA), criado em 1967 emodificado em 1974/75, que estabeleceu uma distinção entre os docu-mentos que podem ser divulgados, os que devem ser mantidos à dispo-sição do público e os que são liberados através de petições. Os docu-mentos que dizem respeito à defesa e à segurança nacional são classifi-cados como supersecretos, secretos e confidenciais. Os prazos de libe-ração dos documentos variam entre 30 e 75 anos.

No que diz respeito a Portugal, devo sublinhar a enorme dificuldadeque tive em encontrar informações acerca da questão arquivística nestepaís. As poucas informações obtidas se restringiram à análise que JoséMattoso fez da situação dos Arquivos,

o longo período de instalação do Arquivo Nacional em São Bentonão é, pois, a face emergente de um vasto iceberg que se materializana ausência e legislação adequada e coerente, na inoperância das es-truturas diretivas e administrativas existentes, no reduzido prestígioatribuído à profissão e aos cursos que para ela preparam, na exigüi-dade, quando não na verdadeira miséria, dos meios materiais damaioria dos arquivos distritais e municipais, na total descontinuidadee até divergência contraditória nas medidas práticas tomadas, na efe-tiva degradação de muitos fundos documentais, na ausência deinventariações sistemáticas e planificadas, nas lacunas da coberturaarquivística nacional, na indiferença com que até pouco tempo têmsido acolhidas as soluções repetidamente propostas pelos arquivistase, finalmente, em certos casos, na destruição mais ou menos sub-reptícia de núcleos importantes da documentação oficial e não oficial(1988, p. 69).

Para Mattoso, os governos portugueses nunca haviam manifestado ne-nhum interesse em implementar uma “política arquivística”, não ha-vendo referências claras à formulação de nenhum tipo de legislação.Porém, destacou que, com as atividades da Comissão para a Reforma eReinstalação do Arquivo Nacional da Torre do Tombo,11 essa situaçãopoderia ser modificada, pois a decisão de construir um novo edifíciopara o Arquivo Nacional suscitou a necessidade de uma revisão com-plexa e estrutural do setor.

Nesse sentido, a situação dos Arquivos portugueses em muito se asse-melha à dos Arquivos brasileiros, nos quais, até pouco tempo, havia umtotal descaso com relação à legislação. Segundo José Matoso, um outroaspecto que se destaca é o fato de o “passado” em Portugal ter sido

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sempre considerado “como uma coisa morta, e por isto oposta ao pre-sente” (1988, p. 74), o que para ele pode ser demonstrado pela formacomo são chamados os Arquivos da Administração Pública – “históricosou estáticos”, e também pela falta de preservação dos acervos dos mu-seus e Arquivos, considerados “depósitos de coisas mortas”.

Vale ressaltar que, no Brasil, os setores de Arquivos nas instituiçõespúblicas são chamados de “arquivo morto”12 por usuários e por funcio-nários, a despeito dos arquivistas, que detestam esta designação.

Tradicionalmente, as Constituições brasileiras trataram a questão do-cumental apenas como a necessidade da organização do Estado, sem sepreocupar com a forma de administração ou o direito à informação doscidadãos. Atualmente, há uma excessiva valorização das possibilidadesda nova Lei de Arquivo, como se a existência de uma legislação fossecapaz de resolver todos os problemas, funcionando como uma soluçãomágica.

Segundo Bastos e Araújo, o tratamento dado à legislação documentalpode ser dividido em três períodos. O primeiro se refere à Constitui-ção Política do Império do Brasil (1824), e se destacou pela criação doArquivo Imperial, destinado à guarda dos originais das leis produzidasno Império e das cópias de inventos e patentes criadas ou em explora-ção em território brasileiro. O Arquivo Imperial foi organizado combase nas seções administrativa (documentos do Poder Executivo e Mo-derador), legislativa (documentos do Poder Legislativo) e judiciária(processos e autos findos). O Arquivo Imperial funcionava como “de-pósito documental”, e não havia nenhuma organização arquivística.

Aproximadamente um século depois, a década de 1930 foi marcadapela introdução de textos legais que visavam à proteção do PatrimônioHistórico, embora não houvesse qualquer referência à questão dos do-cumentos dos Arquivos. Somente com a Constituição de 1946 apareceua primeira referência à proteção dos documentos de valor histórico.13

Nessa época foram iniciadas as discussões sobre os documentos comoparte do acervo arquivístico. De acordo com Marilena Leite Paes, essasdefinições acentuavam o aspecto legal dos Arquivos como depósitos dedocumentos e papéis de qualquer espécie, tendo sempre relação comos direitos das instituições ou dos indivíduos. Os documentos serviamapenas para comprovar direitos, e, quando não atendiam a este requi-sito, eram transferidos para outras instituições – os museus e as biblio-tecas. Paralelamente, neste período, surgiu a preocupação com os Ar-quivos como organizações memoriais individuais de pessoas públicas.

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A partir de 1980, cresceu um movimento para a elaboração de uma leide Arquivo com caráter nacional, que definisse a questão das compe-tências para a gestão documental de Arquivos Públicos e privados, ascompetências para a execução de recolhimento, guarda e acesso, e osprocedimentos para o tratamento documental desde a sua produçãoaté o seu arquivamento.

A Constituição de 1988 viabilizou a elaboração de uma política para aquestão arquivística, que começou com discussões sobre os problemasda proteção legal da informação informatizada, a questão jurídica doarquivamento de informações sigilosas, do segredo com relação ao in-teresse público e privado, as quais se resumiram a uma só questão: oacesso à informação como um direito legal.

Essas discussões culminaram na criação da Lei nº 8.159/91, que dispõesobre a Política Nacional de Arquivos. Esta lei explicita que o acesso aosdocumentos públicos é pleno e estabelece que as categorias de sigilo14

serão definidas por decreto, ressaltando que são sigilosos os documen-tos que ponham em risco a segurança do Estado, da sociedade e docidadão, principalmente no que se refere à sua intimidade, sua privaci-dade, sua honra15 e imagem.

A nova Lei de Arquivo instituiu o prazo máximo de 30 anos para arestrição aos documentos sigilosos referentes ao Estado e à sociedade, e100 anos para documentos privados. Porém, há na lei a possibilidadeda prorrogação destes prazos.

Atualmente, enquanto se discute a regulamentação da Lei de Arquivos,já aparecem críticas com relação aos prazos de liberação de documentos,conforme pude verificar durante o “Seminário Nacional: Acesso à In-formação Governamental”, realizado na Casa de Rui Barbosa. Emgeral, essas críticas se referiam à idéia da restrição legal como um obstá-culo “antidemocrático”, outras diziam respeito ao “atraso” no que serefere às políticas de acesso aos documentos no Brasil, um país de“Terceiro Mundo”. Porém, é interessante sublinhar que os prazos noBrasil não são tão diferentes daqueles previstos nos países de “PrimeiroMundo”.

Com relação ao “tempo de duração do sigilo”, há muitas contradições:historiadores e arquivistas acreditam que há uma tendência a exagerarno estabelecimento dos prazos de sigilo, enquanto os governos sempreacham que esse tempo poderia ser maior. Conforme apontou JoséMattoso, este conflito também é vivido pelos arquivos portugueses, quese opunham aos juristas “acerca do período para além do qual se deve

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tornar acessível ao público a documentação, seja de que natureza for,mesmo a privada” (1988, p. 76).

Um aspecto importante na discussão sobre o acesso à informação é quenão basta a formulação e implementação de uma Lei de Arquivo “mo-derna”, pois a sociedade brasileira sempre combinou o “legalismoformalista” com um sistema de relações pessoais,

a lei universal sempre foi vista como o antídoto perfeito contra onepotismo e o paternalismo, mas esses modos de organização tam-bém são acionados como proteção contra leis repressivas a serviço dealgum grupo que está no poder. Essa circularidade e essa oscilação éque demonstram as relações entre essas duas vertentes do mundosocial brasileiro, ibérico e, talvez, mediterrâneo (DA MATTA, 1987,p. 140).

Portanto, a existência de uma Lei de Arquivo não é a garantia de reso-lução do acesso à informação. O principal obstáculo ao acesso resideprincipalmente no modo como a sociedade brasileira encara o estabe-lecimento de restrições. Este estabelecimento de restrições nunca seaplica universalmente, possibilitando o aparecimento de práticas nasquais o acesso à informação é concedido conforme critérios particula-res e não explícitos. A sociedade não vê com bons olhos as restrições,porque não acredita que elas se apliquem a todos. Outro ponto proble-mático diz respeito ao alcance do sigilo, ou seja, a quem ele protege: oEstado ou o cidadão?

O ARQUIVO COMO ÓRGÃO DE JUSTIÇA E DE CULTURA

Através deste trabalho tentei desenvolver algumas questões que pudes-sem contribuir para a compreensão de como uma instituição – o Arqui-vo Público – guarda e divulga, ou não, o seu acervo. A análise dos fatosrevelou que o tratamento dado aos documentos públicos sempre tevecomo diretriz a não divulgação dos fatos, apesar de muitas vezes existirum discurso favorável à publicidade.

Para compreender qual a lógica que rege o funcionamento dos Arqui-vos, consideramos como válida a hipótese de uma tradição ibérica/me-diterrânea que influenciaria os “processos de produção de verdade”aos quais corresponderiam estratégias e atitudes consideradas eficazese legítimas na consecução de seus objetivos. Segundo Kant de Lima,estas características se manifestam tanto nas práticas jurídicas, quanto

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nas práticas acadêmicas,16 e, por que não dizer, também no sistemaburocrático brasileiro?17

Desse modo julgo que é interessante observar a posição dos ArquivosPúblicos do Rio de Janeiro na estrutura burocrática. O Arquivo Nacio-nal está subordinado ao Ministério da Justiça, já o Arquivo Estadual doRio de Janeiro está subordinado à Secretaria de Justiça, enquanto oArquivo Municipal do Rio de Janeiro relaciona-se à Secretaria de Cul-tura. A ambigüidade entre a importância do atributo histórico (comoum valor cultural) e o atributo jurídico (o valor de prova) dos docu-mentos está refletida nessa divisão burocrática que classifica uma mes-ma instituição em níveis distintos de hierarquia, utilizando-se de doiscritérios considerados igualmente válidos. Portanto, não causa nenhu-ma estranheza que o Arquivo Público ora esteja atrelado às instituiçõesjudiciárias, ora seja ligado às instituições culturais.

Atualmente, nos deparamos com uma nova concepção de cidadania,segundo a qual o indivíduo é um sujeito social ativo que define quaissão os seus direitos e luta para que sejam reconhecidos. Este novo pa-pel do cidadão forçou a sociedade e as instituições públicas a repensa-rem suas funções, obrigando-as a conviver com uma maior demandaaos serviços por elas prestados. Nesse sentido, o Arquivo passou a terum papel de destaque para a comprovação de direitos, mediante o acessoaos documentos armazenados. Frente a esse novo quadro, pode-se ten-tar explicar a dificuldade que os Arquivos têm encontrado em divulgarseu acervo, apesar de já existirem atualmente profissionais preocupa-dos em fazê-lo.

Porém, é bom ressaltar que tanto no Arquivo, quanto em museus ebibliotecas públicas, ainda existem profissionais que acham que os res-pectivos acervos não deveriam ser expostos ao público, visto que a ex-posição sempre representa riscos. Para eles, o mais importante é terestes registros bem guardados, a fim de que continuem existindo, mes-mo que jamais sejam vistos por ninguém.

De acordo com Marilena Leite Paes, o “museu é a instituição de inte-resse público, criada com a finalidade de conservar, estudar e colocar àdisposição do público conjuntos de peças e objetos de valor cultural”, ea “biblioteca é o conjunto de material, em sua maioria impresso, dis-posto ordenadamente para estudo, pesquisa e consulta” (1991, p. 1-2).A autora opõe as duas instituições ao Arquivo, alegando que a finalidadedas mesmas é “cultural”, enquanto o Arquivo teria objetivos funcio-nais, ou seja, sua finalidade é servir à administração, tal qual um Cartório.

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Embora este fato não seja negado, tal postura vem sendo contestadapor funcionários que alegam que os acervos dos Arquivos também pos-suem valor “cultural”, e não apenas administrativo. Esta mudança temalterado também o modo pelo qual esses funcionários representam assuas funções, levando-os a um questionamento sobre suas práticas, ten-do em vista uma preocupação maior com o público, abandonando umpouco o perfil do “funcionário burocrático” da administração pública.

O SEGREDO E A “POLÍTICA DO SIGILO”Pelos motivos apontados ao longo do texto, não podemos atribuir anão divulgação dos fatos apenas a uma questão de responsabilidadepessoal dos funcionários, posto que vivem sob uma tradição,18 que aogarantir a perpetuação de certos hábitos reproduz a “política do sigi-lo”, cuja característica principal é a expressão de um certo temor: osdocumentos públicos quando analisados podem significar uma censu-ra a uma má administração. Segundo José Honório Rodrigues (1989-1990, p. 13), a “política do sigilo” é uma velha tradição portuguesa quepretende esconder e sonegar os documentos, independentemente dotempo já decorrido.

Além do prazo fixado pela lei, ou pela vontade do cidadão, no caso dedocumentos particulares, existe um outro aspecto a ser destacado noacesso à informação. Este aspecto está relacionado a essa “política dosigilo”, uma tradição oral que ensinou às sucessivas gerações de arqui-vistas que “certos” documentos não deveriam ser abertos ao público, eque os critérios utilizados para a seleção destes documentos nãodeveriam ser explicitados.

O temor pela existência de restrições e pela existência de documentossigilosos está relacionado a nossa tradição inquisitorial, em que investi-gações sigilosas precediam às acusações públicas durante os procedi-mentos judiciais. Conseqüentemente, o que era sigiloso sempre pode-ria deixar de ser. Essa relatividade do sigilo na sociedade brasileira con-tinua presente até hoje, conforme podemos verificar na nova legislaçãoacerca da questão arquivística, mais precisamente no artigo 24 da Leinº 8.159/91: “Poderá o Poder Judiciário, em qualquer instância, deter-minar a exibição reservada de qualquer documento sigiloso, sempre que indis-pensável à defesa de direito próprio ou esclarecimento de situação so-cial de parte” (grifo nosso).

Ou seja, não há uma efetiva garantia de que os documentos são real-mente sigilosos. De acordo com a lei, o sigilo pode ser quebrado pelo

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Poder Judiciário, podendo ser usado para a “defesa do cidadão”, masnão há nenhuma garantia de que os documentos sigilosos não possamser usados contra o cidadão.

As categorias do sigilo que servirão para a classificação dos documentospúblicos não foram fixadas, pois dependem da regulamentação da Leide Arquivos, o que ainda não aconteceu. Assim, na falta destas defini-ções, os critérios utilizados para os procedimentos classificatórios de-pendem exclusivamente dos regulamentos internos das instituições e/ou da vontade de seus dirigentes, a quem cabe o poder de julgar, se-gundo critérios pessoais, o direito de acesso à informação.

Também merece destaque o fato de que as “práticas de tratamento do-cumental” não constituem apenas um método de “armazenamento dedados”, na realidade são um poderoso mecanismo de controle, já quenão tornam universalmente acessíveis os acervos sob sua guarda. Osmecanismos utilizados para tal fim são variados, e vão desde a nãoexplicitação das restrições e dos critérios classificatórios da documenta-ção até a acumulação desordenada.

O SEGREDO COMO MECANISMO DE CONTROLE

O controle do acesso às informações, quando orientado pela existênciado segredo, entendido tal como Scheppele o definiu, como a parte dainformação que é intencionalmente sonegada por um ou mais atoressociais dos demais, transforma o segredo em um mecanismo que, devi-do a sua significação simbólica, serve de base para a construção de iden-tidades pessoais e/ou coletivas. O segredo, ao ser compartilhado e indi-vidualizado, cria no meio social a possibilidade da autonomia individual,porém paradoxalmente serve também de base para o desenvolvimentodo poder, que, por sua vez, controla essa autonomia.

Tradicionalmente, o segredo foi estudado pela teoria antropológicarelacionado a fenômenos religiosos, cujo enfoque estava voltado para oentendimento do papel dos conhecimentos secretos em sociedades se-cretas e em rituais iniciatórios. Porém, o enfoque que pretendo desen-volver aqui é o do segredo como parte inerente à vida cotidiana, o qual,para Piot, tem um papel fundamental na negociação dos significados enos tipos indiretos de comunicação, que constituem o dia-a-dia das re-lações sociais. Desse modo, o segredo também está relacionado às no-ções de vergonha, de hierarquia e de igualdade, e aos respectivos con-textos nos quais se materializam.

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O uso do segredo como técnica sociológica, como forma de ação, que semantém neutra acima dos valores de seus conteúdos, sem o qual não sepoderia atingir alguns fins, fica claro quando este produz um senti-mento de propriedade exclusiva, resultante da necessidade de que ou-tros não tenham essa coisa possuída. Para Simmel, esta atitude é funda-mentada pela necessidade que o homem tem de manter a diferença, denão desejar a igualdade. O segredo funciona como elementodiferenciador porque é capaz de criar posições excepcionais, exercen-do uma atração social determinada independente de seu conteúdo,agindo, então, como um elemento individualizador.

Simmel analisou o segredo tendo como referência as sociedades indivi-dualistas,19 nas quais a idéia de indivíduo aparece como uma constru-ção histórica, não universal, relacionada às dinâmicas dos conflitos ori-ginados pelo desenvolvimento do capitalismo. Nesse contexto, o segre-do é visto como o elemento produtor de identidades, através do estabe-lecimento de direitos individuais, tais como o direito à privacidade.Porém, segredo e privacidade representam entidades diferentes: o pri-meiro representa a informação sonegada intencionalmente, que refor-ça uma relação de poder; já a privacidade representa a possibilidade deautonomia dos indivíduos.

Ao analisarmos o papel do segredo na sociedade brasileira nos defron-tamos com uma sociedade em que há a convivência de um modelo moralhierárquico, holístico e complementar com um modelo individualizantee universal presente nas legislações. Assim, o segredo se torna uma for-ma legítima de produção de poder que, no entanto, gera exclusão edesigualdade, fazendo com que algumas pessoas tenham acesso a tudo,enquanto as que ficam à margem necessitem descobrir meios de partici-par da socialização da informação, nem sempre sendo bem-sucedidas.

Kant de Lima ressalta ainda que a própria idéia de igualdade tem sig-nificados distintos em sociedades hierárquicas e em sociedades indivi-dualistas. No primeiro tipo, ela se fundamenta na semelhança, ou seja,os indivíduos são iguais porque são semelhantes; já no segundo, é fun-damentada na diferença; deste modo, os indivíduos são iguais porquesão diferentes.

A significação sociológica do segredo está no modo de sua realização.Sua medida prática está na capacidade ou inclinação do sujeito paraguardá-lo, ou na sua resistência diante da tentação de traí-lo. A revela-ção do segredo faz com que o sujeito fique vulnerável em seu conheci-mento, e, por isso, passível de manipulação. Segundo Kim Schepelle,

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as defesas do segredo, diferentemente das defesas físicas, nunca po-dem ser reconstituídas, posto que um segredo ao ser revelado jamaispode ser mantido. O paradoxo do segredo é que ele, para ter sentido,deve ser revelado.

A existência do segredo serve para mostrar o modo pelo qual a infor-mação é compartilhada em um contexto e restrita em outros,explicitando, assim, as diferenças nos tipos de relações sociais, fazendover quem são “o nós” e quem são “os outros”. O segredo possibilita aexistência de um mundo distinto do mundo aparente, o que cria umcampo de ambigüidade, e conseqüentemente de interpretaçõesconflitivas sobre a realidade, forçando à negociação das posições sociais.

A diferenciação social originada pela obtenção de um conhecimentoprivado traz o prestígio, entendido como a atribuição de uma compe-tência a alguém por outros sujeitos. Para José Gil, o prestígio pode-setransformar em poder, à medida que a pessoa saiba manipular os sig-nos que o representam, de modo a construir um conjunto de significa-dos, com os quais atua sobre a realidade, criando um código ao qualsomente ela tem acesso.

A estratificação dos que podem, ou não, ter acesso à informação (o se-gredo) expõe a mentira como o mecanismo utilizado para a preserva-ção de uma possível revelação. Como afirma Kim Schepelle, a mentiraé a forma mais sofisticada do segredo, pois envolve a sua sonegação e asubstituição por uma outra informação.

O documento escrito é, por essência, oposto a tudo o que é secreto,porém, conforme o modo pelo qual as sociedades controlam o acesso àescrita,20 esta também pode fortalecer a existência do segredo. É issoque se verifica na sociedade brasileira onde o domínio da palavra escri-ta atua como um patrimônio privado, e quem o possui tem a possibili-dade de conhecer a verdade, o que acaba por lhe conferir autoridade.Para Laura Gomes, esses fatos expressam o modo como a hierarquia éconcebida e experimentada em nossa sociedade, na qual “o conheci-mento leva à verdade, por sua vez a verdade confere autoridade e po-der” (1991, p. 128).

O segredo possui um duplo caráter: é uma forma de controle social,pois dá poder a quem o possui, e, ao mesmo tempo, representa a possi-bilidade de mudança, pois, à medida que pode ser revelado, cria novasrelações de poder e conhecimento.21

A importância do Arquivo enquanto “fornecedor de provas” é funda-mental para o entendimento dessa “política do sigilo”, pois, por serem

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secretas, as provas constituem um patrimônio que está sendo semprenegociado numa relação de troca22 entre a sociedade e o Arquivo, demodo que “os segredos tais como dons são trocados” (GOMES, 1991,p. 137).

Sendo o Arquivo a instituição à qual se atribuiu a função, efetiva e sim-bólica, de guardar os documentos, e tendo em vista o papel que o se-gredo exerce na sociedade – ser o elemento diferenciador – compreen-de-se o porquê de certas práticas apropriativas e manipuladoras persis-tirem, apesar de um discurso moderno e democrático a favor do direi-to à informação. Por ter o poder de controlar a revelação dos fatos, oArquivo reforça o seu papel de instituição do segredo na estrutura so-cial, legitimadora do conhecimento como algo esotérico. Somente os“iniciados” podem ter o direito à verdade, que confere poder e autori-dade a quem possuí-la.

DO CAOS À ORDEM: O SEGREDO REVELADO

Neste artigo, procurei desenvolver algumas questões que pudessemcontribuir para a compreensão de como os Arquivos Públicos tratamseus acervos. Uma primeira conclusão alcançada é a de que os Arqui-vos Públicos no Brasil não possuem regras públicas e claras de acesso.Pode-se mesmo dizer que não existe uma “política de consulta”, assim,cada arquivo é “independente”, orientando-se apenas pelos critériospessoais de um diretor temporário, que chega ao cargo através de umanomeação, o que deixa a instituição vulnerável aos seus projetos pessoais,que nem sempre têm como prioritário o interesse do próprio arquivo edo público.

A não existência de uma “política de consulta” dificulta a obtenção dainformação desejada, o que provoca no usuário dois tipos de sentimen-to: a desconfiança, pois não crê que seja possível encontrar alguma coi-sa no meio “daquela confusão de papel”; e o alívio, ou surpresa, aoconstatar que os documentos existem, estão guardados e são acessíveis.

Em relação a isso acrescenta-se uma tradição inquisitorial (KANT DELIMA, 1992), segundo a qual a suspeição rege as relações, fazendo comque o suspeito seja culpado até que se prove o contrário. Sendo assim,aumenta-se a dificuldade na obtenção das informações desejadas, poiso usuário é muitas vezes visto como suspeito. Logo, “no Brasil, os docu-mentos públicos e as pessoas que por eles se interessam são suspeitos”(HEYNEMANN, 1989-1990, p. 77).

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Por outro lado, a instituição também não é considerada muito confiávelpelos usuários, pois pode estar “traindo” a sua confiança ao não lhesfornecer o que procuram. Conforme afirmou um funcionário, “nemsempre se pode confiar nas respostas dadas sobre um documento quenão foi encontrado, às vezes se diz que ele está na restauração, mas, naverdade, ele está desaparecido”.

Se analisarmos a atual Lei de Arquivos, veremos que os direitos docidadão de acesso às informações estão formalmente resguardados.Porém, como ressalta Wanderley Guilherme dos Santos (1979), o meroreconhecimento da universalidade da cidadania não assegura uma par-ticipação justa na distribuição de bens e valores sociais. O maior obstá-culo ao acesso é a desorganização dos acervos, que desempenha umpapel fundamental, já que impede a obtenção da informação: “a maiorparte da documentação produzida é ostensiva, não é sigilosa, a dificul-dade do acesso está na sua organização e na falta de uma política degestão, pois a informação não organizada não serve para nada, a infor-mação armazenada é imprestável” (depoimento de um funcionário).

Pode-se afirmar, portanto, que a falta de uma organização real dos Ar-quivos é a causa da transformação do material preservado em sigiloso,já que só possibilita o seu acesso aos poucos que conseguem compreen-der sua lógica de funcionamento, tal qual a biblioteca descrita porUmberto Eco em seu livro O nome da rosa.

Somente a efetiva discussão sobre essa questão poderá ocasionar umamudança nesses procedimentos, visando repensar a forma como cons-truímos a nossa memória,23 a nossa identidade e nossa cidadania, postoque a memória tem como função interferir no processo de construçãodas representações individuais e coletivas, permitindo a relação do pre-sente com o passado. Portanto,

a construção da identidade é um fenômeno que se produz em refe-rência a outros, em referência aos critérios de aceitabilidade, decredibilidade, e que se faz por meio da negociação direta com outros.[...] a memória e a identidade são valores disputados em conflitossociais e intergrupais (POLLAK, 1992, p. 204-205).

A perda progressiva da memória equivale à perda progressiva da iden-tidade. Assim, quando a memória social é reduzida, anulada ou abafa-da, a sociedade perde a capacidade de conservar sua própria história.A identidade se extravia e as pessoas não conseguem exercer seu papelna coletividade, exercer sua cidadania. A existência de uma memória

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viva é fundamental aos processos de construção de identidade e cida-dania, daí a importância de “instituições-memória” eficientes econfiáveis.

Esses fatos reiteram a importância de a preservação do acervo estarvinculada à possibilidade de acesso do público às instituições, de talmodo que os obstáculos administrativos e/ou corporativos sejam supe-rados, evitando-se a concentração de poder decisório nas mãos de unspoucos. O acesso deve ser assegurado pela existência de critérios explí-citos e publicamente conhecidos, que constituem o princípio funda-mental necessário à garantia da universalidade dos direitos.

ABSTRACT

This article analyzes information based on the ethnography of the Archive’sfunctions realized in Rio de Janeiro. It’s aims to observe the different processof the document’s production, preservation and divulgation. Our hypoth-esis is that procediments have been an influence by a Mediterranean tradi-tion, which the public bureaucratic system cohabits with a private system ofrelationship and friendship. These two codes, socially legitimated, changethe Archive’s function into a secret place.Keywords: Archive; secret; information; bureaucracy; personal relation-ship.

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NOTAS

1 Sobre tradições mediterrâneas, ver Braudel (988), Peristiany (1988) e Pitt-Rivers (1988, 1992).2 Os códigos são entendidos aqui como “eixos classificatórios”, ver DaMatta (1987).3 Sobre os processos de produção de verdade e resolução de conflitos no Brasil, ver Kant de Lima.4 Durante o trabalho de campo, constatei que esta estrutura não era exclusiva do Arquivo, pois já havia sido

observada em Cartórios (MIRANDA, 1993). Considerei então que ela poderia estar presente em outrasinstâncias de produção e consagração da verdade em nossa sociedade, inclusive nas chamadas “instituições-memória” – bibliotecas, museus e centros de documentação (LE GOFF, 1984).

5 Agradeço ao professor Roberto Kant de Lima ressalva feita com relação à categoria público, que em nossasociedade não está relacionada com o acesso a um determinado serviço, mas com a idéia de uma coisa quenão tem dono, ou que pertence ao Estado, chamado, às vezes, significativamente, de “viúva”.

6 Os arquivos são classificados em correntes, conjunto de documentos em curso ou de uso freqüente; interme-diário, conjunto de documentos procedentes de arquivos correntes, que aguardam destinação final; perma-nentes, aqueles que são preservados, respeitada a destinação estabelecida, em decorrência de seu valorprobatório e informativo. Ver Paes (1991) e Belloto (1991).

7 É interessante observar que os arquivistas, embora negassem os estereótipos dos arquivos, sempre se referiama eles como exemplos.

8 Para a burocracia de balcão, ver Miranda (1993).9 Merece destaque o papel que os intermediários exercem em “sociedades relacionais”, como diz DaMatta, são

eles que promovem “a dinâmica social, criando zonas de conversação entre posições [...] Seu papel não é o desimplesmente sanar cinicamente o conflito, mas de representar um outro pólo estrutural: o do meio, o dafigura que está nos dois lados” (1987, p. 112-113).

10 Sobre clientes, ver Peristiany (1988). Sobre a relação de clientes com o serviço público, ver Miranda (1993).11 O Arquivo Nacional da Torre do Tombo guarda os documentos do Estado português desde a sua origem e

grande quantidade de documentos de muitas instituições não estatais. O interessante é que estes documen-tos foram depositados “provisoriamente”, desde o terremoto de 1755, no Mosteiro de São Bento da Saúde,e lá ficaram por mais de 230 anos.

12 Para uma discussão sobre o “arquivo morto”, ver Miranda, Mouzinho (1996).13 É importante enfatizar a classificação de documentos como históricos e arquivísticos. Os primeiros estariam

relacionados com o passado, o antigo, o velho, enquanto o conceito de arquivístico teria relação com osdocumentos mais recentes. Atualmente se diz que não há mais esta distinção, que o importante é o “trata-mento orgânico do acervo”, mas ainda existem profissionais que fazem essa diferenciação.

14 A categoria sigilo é usada aqui no sentido de conhecimentos que são considerados como secretos e reserva-dos, em oposição a conhecimentos de aquisição imediata. Ver Dal Pra (1990).

15 Devo salientar que a “nova e moderna” Lei de Arquivo tem como uma de suas preocupações a garantia dahonra. Para Julian Pitt-Rivers, “o conceito de honra varia de época para época e a sua importância diminuiumuito na sociedade urbana moderna” (1988, p. 49). Porém, apesar de não possuir a força que possuía emdeterminadas sociedades mediterrâneas, a honra na sociedade brasileira pode ser considerada “um mecanis-mo que distribui poder, determina quem deve ocupar os lugares de comando e dita a imagem ideal que aspessoas têm da sua própria sociedade” (1988, p. 56). É, portanto, básica para o entendimento dos sistemas detrocas e dos conflitos em nossa sociedade. Ver também Pitt-Rivers (1992).

16 Sobre as práticas acadêmicas, ver Pinto (1993).

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17 Sobre burocracia no Brasil, ver Barbosa (1996a), Gouvêa (1994), e Schwartz (1979).18 O conceito de tradição é entendido aqui como um determinado “padrão” oculto, produzido por um grupo.19 Sobre a oposição entre sociedades individualistas e hierárquicas, ver DaMatta (1983) e Dumont (1985).20 Sobre a escrita, ver Goody (1986) e Rama (1985).21 Kim Schepelle (1988) chama a atenção para o fato de que tanto no Direito quanto na Medicina o poder é

baseado no controle e na sonegação da informação. Aqueles que detêm o conhecimento o controlam demodo a excluir os outros da possibilidade de acesso ao mesmo.

22 Sobre as relações de troca, ver Mauss (1974).23 Para uma discussão sobre a memória, ver também Le Goff (1984).

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M A R C E L O P E R E I R A D E M E L L O*

A CONCEPÇÃO DA DESIGUALDADE EM

HOBBES, LOCKE E ROUSSEAU

Este artigo procura discutir o tema da desigualdadeem três autores clássicos da teoria política: ThomasHobbes, John Locke e Jean-Jacques Rousseau, usual-mente identificados com a discussão do seu contrário,ou seja, da igualdade. Inspiradores das formulaçõesliberais sobre a institucionalização das liberdades polí-ticas, as suas abordagens explicitam as condições daigualdade entre os indivíduos como precondições e comoelementos universais que favorecem a legitimação dopoder político. Nosso intuito aqui será, então, discutiras contrafações da igualdade entre os indivíduos nasteorias liberais, tornando explícito o que cada um des-tes autores subentende como desigualdade. Acredita-mos que a relevância desta provocativa abordagem estáem discutir os pressupostos destas teorias mostrando assuas fragilidades para o entendimento dos processos deinstitucionalização das sociedades políticas contempo-râneas.Palavras-chave: desigualdade; teoria liberal;natureza.

* Professor Adjunto de Socio-logia da Universidade Fe-deral Fluminense e profes-sor do Programa de Pós-Graduação em Sociologia eDireito – PPGSD/UFF.

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INTRODUÇÃO

O objetivo deste artigo será discutir a questão da desigualdade tal comoformulada por Thomas Hobbes (1979), John Locke (1979), e Jean-Jacques Rousseau (1980a, 1980b), a partir de dois eixos básicos: o pri-meiro, relativo aos próprios conteúdos das teorias destes autores e àssuas afirmações categóricas e/ou indiretas sobre o tema. Não se trata,aqui, bem entendido, de fazer uma exegese dos textos destes autores,tarefa que ultrapassa as pretensões deste estudo, mas apenas de indi-car o lugar da desigualdade na reflexão sobre a organização social epolítica e as implicações disso para o modelo teórico desenvolvido porcada um destes autores. Penso que terei cumprido o meu objetivo se aprovocação de discutir a desigualdade a partir de autores explicita-mente preocupados com o seu contrário estiver amparada em evidên-cias que não contradigam os conteúdos analisados e que possa partici-par com propriedade das reflexões estimuladas pelos referidos autores.

O segundo eixo deverá conduzir uma discussão epistemológica dosmodelos teóricos em questão. A despeito das limitações deste trabalhopara extrair as várias conseqüências do problema, gostaria de discutiralgo que julgo importante e que diz respeito à exploração dos limites,das potencialidades e da intercomunicabilidade dos modelos teóricos.O pressuposto desta análise é o de que nos próprios clássicos do pensa-mento político e social é possível exemplificar com acuidade alguns dosdilemas básicos das ciências políticas e sociais, em especial os proble-mas relativos à opacidade e à descontinuidade entre os conceitos e arealidade factual que eles querem explicar.

Ambas as discussões serão conduzidas sincronicamente no trabalho deforma a contemplar nosso problema particular que é, como disse, ana-lisar as concepções de desigualdade nos referidos autores.

A DESIGUALDADE NATURAL EM THOMAS HOBBES

O tema da igualdade em Hobbes é, com muita propriedade, recorren-te em inúmeras análises feitas sobre a obra deste autor. Afinal, no Leviatã,Hobbes se dedica a descrever os inúmeros aspectos da igualdade natu-ral dos homens que é a precondição essencial para a montagem detodo o seu modelo teórico e para a solução institucional universal queeste autor apresenta para o problema da ordem.

Esse pressuposto da igualdade natural é cuidadosamente trabalhadoem diversos momentos da obra de Hobbes, embora possamos destacar

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a discussão deste tema nos seguintes capítulos do Leviatã: no CapítuloXIII, quando o autor descreve o “Estado de Natureza” como o resulta-do dramático da condição de absoluta igualdade entre os indivíduos;no Capítulo V, quando o autor expõe a sua concepção da “Razão” comoum atributo inalienável do indivíduo; e, ainda, indiretamente, na ex-posição da sua teoria mecanicista dos componentes essenciais da exis-tência humana, “da matéria da qual são feitos os Homens”, da organi-zação de nervos e músculos, como diz, feita nos dez primeiros capítulosdo livro em questão.

Nesse trabalho, entretanto, em que pese a centralidade desse tema nomodelo do autor, a concepção hobbesiana de igualdade será discutidaespecialmente de forma a abordar o seu reverso, ou seja, a questão dadesigualdade. Tal será o tema que orientará a nossa discussão do con-teúdo do Leviatã de Thomas Hobbes e que esperamos propicie tam-bém a análise de alguns pressupostos do modelo do autor.

Como não há, no Leviatã, nenhum capítulo específico sobre a desigual-dade, creio que devemos iniciar nossa discussão pelo próprio CapítuloXIII, anteriormente citado, em que Hobbes discute as conseqüências“práticas” da igualdade absoluta que ele imagina ser o principal atribu-to dos homens no estado natural. É nesse momento que o autor deli-neia, na minha opinião, ainda que de forma negativa, isto é, pela dis-cussão do seu contrário, a sua teoria sobre a desigualdade.

O autor principia este capítulo XIII, com a seguinte observação:

A natureza fez os homens tão iguais, quanto às faculdades do corpo edo espírito que, embora por vezes se encontre um homem manifesta-mente mais forte de corpo, ou de espírito mais vivo do que outro,mesmo assim, quando se considera tudo em conjunto, a diferençaentre um e outro homem não é suficientemente considerável paraque qualquer um deles possa com base nela reclamar qualquer bene-fício a que outro não possa aspirar, tal como ele (HOBBES, 1979, p.74).

Do que está dito acima pode-se depreender que a questão da desigual-dade tal como elaborada por Hobbes se apresenta como uma“contrafuga” da mesma concepção de igualdade que o autor atribuiaos indivíduos no estado natural. Nessa concepção, a desigualdade évista, no limite, como uma diferença natural de habilidades particula-res, de diferentes “dons”, como os que distinguem o literato e o cientis-ta do homem prático; ou ainda, simplesmente, como uma desigualda-de de dotes físicos ou até de inteligência, mas que jamais chegam a

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comprometer a condição essencial de igualdade entre os indivíduos:“Pois todos os homens raciocinam de maneira semelhante, e bem, quan-do têm bons princípios” (HOBBES, 1979, cap. 5, p. 30).

Essa reflexão sobre a desigualdade no modelo teórico de Hobbes nosenseja uma avaliação crítica das suas afirmações desde uma dupla ob-servação.

Em primeiro lugar, a concepção naturalizada de desigualdade emHobbes nos permite afirmar que o seu modelo teórico oferece instru-mentos para a reflexão sobre a desigualdade entre indivíduos, mas nãosobre a desigualdade social. Na verdade, não existe qualquer variável“social” no modelo hobbesiano, já que nele a sociedade aparece comoum artifício derivado da criação do Estado. Neste sentido, a questão daigualdade e, portanto, da desigualdade, nos termos propostos, é pen-sada com a suposição de que é inerente aos indivíduos enquanto uni-dades biológicas e não à composição dinâmica de peças complementa-res de um conjunto social sui generis.

Mesmo do ponto de vista formal, o modelo hobbesiano não dispõe denenhum elemento que lhe permita avaliar os efeitos qualitativos daagregação social sobre o funcionamento prático dos sistemas políticos.Com efeito, o modelo fica impedido de trabalhar com o conteúdo dasrelações sociais a não ser de maneira artificial e secundária. Assim ocor-re, porque no excêntrico modelo hobbesiano, cuja pressuposição é umaordem política sem sociedade, os valores e sentimentos construídos ti-picamente no convívio social são tratados como comportamentos sim-plesmente relacionais, isto é, como resultados da interação de unidadesindependentes. Tal é o caso das concepções de “glória”, “honra”, “cobi-ça” e “orgulho” e também “eqüidade”, “justiça” e “gratidão”, desenvol-vidas ao longo do Leviatã.

Veja-se, neste trecho do livro supracitado, a maneira como Hobbes ar-gumenta em torno dos fenômenos supostamente morais:

A lei de natureza e a lei civil contêm-se uma à outra e são de idênticaextensão. Porque as leis de natureza, que consistem na eqüidade, najustiça, na gratidão e outras virtudes morais destas dependentes, nacondição de simples natureza... não são propriamente leis, mas qua-lidades que predispõem os homens para a paz e a obediência(HOBBES, 1979, p. 162).

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Em segundo lugar, a concepção naturalizada da desigualdade conduz auma notável insuficiência do modelo para explicar problemas empíricosda realidade socioinstitucional.

Em que pese a afirmação corrente em inúmeros de seus intérpretes,especialmente Greenleef (1980) e Polin (1980a, 1980b), de que o mo-delo teórico de Hobbes, sustentado pelo postulado de uma sociedadecivil fundada a partir do Estado, é dotado de um alto grau de consis-tência lógica e abstração formal, construídas em torno de uma notáveleconomia de pressupostos, a contraposição das suas abstrações com osolo fundacional da sua reflexão, isto é, com a realidade sensível queele procura entender e explicar, demonstra uma incontrastável fragili-dade.

No modelo de Hobbes, não encontramos conceitos que nos permitamexplicar, por exemplo, os conflitos sociais baseados em interesses eco-nômicos ou/e valores morais e religiosos. Mesmo, e especialmente, osda Inglaterra de 1650. Não me refiro aqui aos “conflitos de classe” ou aqualquer outro tipo de conflito identificado, ex post, pelo acervo teóricocontemporâneo das ciências políticas e sociais. Mas àquelas divergênciasinerentes aos grupos econômicos, étnicos, de status, religiosos e afins,inerentes à sociedade estratificada (“burguesa e capitalista”) que Hobbesvia surgir.

Em síntese, o que queremos indicar é que o modelo teórico de Hobbesnão é capaz de incorporar as variáveis do tipo empírico-social para ex-plicar a desigualdade e qualificar politicamente o modelo institucionalque ele propõe. Em vez disso, opta por pressupostos mais “fortes”, nosentido de serem mais abstratos e universalizantes, que permitem adefinição formal do problema, mas que limitam proporcionalmente suacapacidade de explicar ou mesmo refletir situações emergentes da di-nâmica social. Quando se pensa a questão da desigualdade social comoum dado empírico da própria Inglaterra contemporânea de Hobbes,sua teoria nada tem a nos informar.

É natural, assim, que o “Estado-Leviatã” apareça neste modelo como asolução para os problemas de construção da ordem social. Do ponto devista das implicações lógicas e do encadeamento dos pressupostos enu-merados pelo autor, a concentração radical do poder político no Leviatã,segundo a solução institucional proposta, parece plenamente justificá-vel num sistema que pressupõe indivíduos naturalmente iguais/desi-guais.

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Para concluir, a concepção naturalizada da desigualdade em Hobbesconstitui um pressuposto importante do seu modelo e expõe o caráterabstrato e formal de uma teoria que prescinde de qualquer variávelsocietal. Creio que a lógica formal do modelo poderia ser sintetizadamais ou menos assim: dado que os Homens são absolutamente iguaisquanto às faculdades do corpo e do espírito e independentes uns dosoutros, as desigualdades só se manifestam através do conflitointerindividual ou, no nível agregado, através da “guerra de todos con-tra todos”; mas nunca numa sociedade entendida como complexo deconflitos, desigualdades, valores comuns, ou algo dessa natureza.

A ausência de uma variável sociológica constitui, na concepçãohobbesiana de um estado gregário com características relativas a umasimples coleção das vontades individuais, um dos principais divisoresdo pensamento de Hobbes da tradição especificamente liberal, comoem John Locke, por exemplo, que oferece um modelo teórico maisaberto ao reconhecimento do conflito e da desigualdade como efeitosderivados da interação social.

A DESIGUALDADE COMO RESULTADO

DA ESCASSEZ, EM JOHN LOCKE

Em John Locke, pode-se dizer que o tema da desigualdade é enfrenta-do frontalmente, no seu Segundo tratado sobre o governo, a partir da ex-posição de cada um dos três principais estágios do modelo analíticoproposto pelo autor: o estado de natureza, o primeiro; o surgimentodo dinheiro, o segundo; a escassez de recursos, o conflito e a emergên-cia da sociedade política, o terceiro.1

No modelo teórico de John Locke, da mesma forma como em Hobbes,a questão da desigualdade não é tratada de maneira especial nem éconsiderada a partir de uma perspectiva estritamente social. Entretan-to, como se verá pela exposição sucinta dos seus argumentos, Lockeconsegue um maior rendimento no tratamento deste tema porque seumodelo reconhece a especificidade das relações sociais como um com-ponente a ser enfrentado na reflexão sobre a ordem.

Já na descrição do estado de natureza, no que estamos chamando deprimeiro estágio do modelo, é possível perceber que para Locke o esta-do de natureza não se confunde com uma divisão atomística da socie-dade nem degenera num conflito generalizado de unidades indepen-dentes, tal como ocorre no modelo hobbesiano.

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Em contraste com a teoria de Hobbes, o modelo teórico de John Lockepostula a existência de um estado de natureza composto por indivíduosque estabelecem laços de convivência que os integram a uma vida emsociedade antes da formação da sociedade política:

O estado de natureza tem uma lei de natureza para governá-lo que atodos obriga; e a razão, que é essa lei, ensina a todos os homens quetão-só a consultem, sendo todos iguais e independentes, que nenhumdeles deve prejudicar a outrem na vida, na saúde, na liberdade ounas posses (LOCKE, 1979, p. 33).

De acordo com o autor, seriam três os fatores responsáveis, no estadode natureza, pelo gregarismo originário da vida societal: a atração se-xual, na medida em que gera os filhos e constitui as emoções primitivasda vida familiar; a produção econômica, que estimula o intercâmbiocom vistas ao incremento da produtividade, gerando com isso elos deinterdependência que transcendem o aspecto puramente econômico;e, por fim, o domínio senhorial, que estabelece relações duradouras derespeito e fidelidade entre as pessoas.

A combinação destes elementos com uma natureza prodigiosa em ter-mos dos recursos disponíveis à satisfação das necessidades básicas ofe-rece as condições perfeitas para o convívio harmônico dos indivíduosno estado natural. Neste estado natural, os princípios básicos do direitonatural podem ser exercidos livremente pelos indivíduos: a igualdade,que é dada pela capacidade comum de todo ser de dispor da suaracionalidade para efeitos da autoconservação; a liberdade, no sentidoda independência da vontade do outro; e a propriedade, que é o direi-to de aquisição dos recursos naturais por intermédio do trabalho. Nes-te último quesito, o corpo aparece como a fonte primordial e o veículopróprio da aquisição e da fruição das riquezas conquistadas pelo traba-lho. Locke sintetiza a sua composição desta maneira:

De tudo isso, é evidente que, embora a natureza tudo nos ofereça emcomum, o homem sendo senhor de si próprio e proprietário de suapessoa e das ações ou do trabalho que executa, teria em si mesmo abase da propriedade; e o que forma maior parte do que aplica aosustento ou conforto do próprio ser, quando as invenções e as artesaperfeiçoam as convivências da vida, era perfeitamente dele, nãopertencendo em comum aos outros (LOCKE, 1979, p. 51-52).

Com respeito ao ponto específico da nossa reflexão, ou seja, a desigual-dade, não obstante a concepção societal que, como dissemos, permeia a

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descrição lockeana do estado de natureza, ela aparece ainda dentro deuma perspectiva naturalizada. Em Locke, persiste a concepção de quea desigualdade é simplesmente o resultado do empenho diferenciadocom que as pessoas se entregam ao trabalho, isto é, à modificação danatureza para a satisfação de suas necessidades e paixões. No estado denatureza, além disso, essa desigualdade jamais degenera para um con-flito generalizado, “social”, como diríamos, hoje, por dois motivos cen-trais: o primeiro deriva da própria abundância dos recursos disponí-veis, suficientes para a satisfação de todos os apetites; o segundo dizrespeito ao imperativo ético da relação das pessoas entre si e com anatureza, que controla o acesso dos indivíduos aos recursos da nature-za de acordo com as suas necessidades, impedindo, assim, qualquer umdeles de adquirir mais recursos do que possa fruir.

O tema da desigualdade será retomado no segundo estágio do modelo,quando Locke discute o surgimento do dinheiro e, depois, quando eledescreve a transição da organização social espontânea para a sociedadepolítica como uma decorrência da escassez, e introduz a idéia do confli-to como um traço inerente da ordem. Ainda assim, permanece na suaargumentação, como se verá, a mesma concepção naturalizada da desi-gualdade entre os indivíduos.

De acordo com Locke, o surgimento do dinheiro marca um capítuloespecial da evolução da ordem social primitiva ou natural. Segundo oautor, o consenso em torno do valor e dos usos dos metais preciosos e,especificamente, do dinheiro representa um momento especial da evo-lução societal por uma dupla razão: a primeira delas, de natureza eco-nômica, está relacionada ao fato de que o dinheiro dá vazão à potencia-lidade de produção do indivíduo, fazendo com que ele possa ampliá-lapara além da subsistência e do consumo pessoal, sem que isso signifi-que o rompimento dos limites primordiais da fruição e incorra no des-perdício. Sendo o dinheiro imperecível, a sua acumulação ou de pro-priedades que tenham correspondência com um valor monetário,seja para uso futuro ou simples troca, é perfeitamente conforme àracionalidade natural, porque não subtrai destrutivamente recursos dareserva comum da humanidade. A segunda razão, igualmente impor-tante, embora menos desenvolvida na reflexão do autor, se encontrano fato de que o surgimento do dinheiro expressa um elevado estadode consenso social em torno de valores comuns, e isso tem efeitos posi-tivos sobre a ordem.

O dinheiro, portanto, de acordo com Locke, tem esse poder paradoxalde incrementar a desigualdade natural entre os indivíduos ao mesmo

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tempo em que reforça um universo comum de valores que assegura acoesão dos grupamentos sociais. Segundo Locke:

[...] Os homens tornaram praticável semelhante partilha [de ouro ede prata] em desigualdade de posses particulares fora dos limites dasociedade e sem precisar de pacto, atribuindo valor ao ouro e à prata,e concordando tacitamente com respeito ao uso do dinheiro (LOCKE,1979, p. 53).

Como se observa, a despeito de incorporar a idéia da sociedade comoum estado sui generis da organização dos indivíduos, neste segundomomento da análise de Locke, a desigualdade é tratada, ainda, de ma-neira naturalizada, isto é, como uma decorrência de disposições indivi-duais diferenciadas. Observe-se que, embora o dinheiro seja uma con-venção social, os recursos econômicos que ele torna possível mobilizartêm origem no trabalho e na operosidade individuais, sem qualquermediação social.

A terceira e última parte do estudo em foco aborda a emergência dasociedade política a partir do problema da escassez. Segundo a descri-ção lockeana, a exploração até o limite da capacidade de acumulaçãode propriedades propiciada pelo dinheiro gera um contexto de escas-sez de terras e de riquezas naturais que o autor acredita ser a fonte realde movimentos de perturbação da ordem natural das sociedades e oprincipal motivo que move os homens para a regulação política, pelanecessidade de se instituir um poder regulador para os apetites.

A emergência de um poder político comum, resultante do consenti-mento unânime dos indivíduos, é abordada por Locke nos CapítulosVII, VIII e IX da obra citada, quando o autor se dedica à discussãosobre a formação das sociedades políticas. Em Locke, entretanto, pode-mos adiantar, o estabelecimento da sociedade política não implica qual-quer mudança radical no quadro gregário original, dado que sua fina-lidade é exatamente preservar as conquistas dos indivíduos e restabele-cer os direitos naturais à igualdade e à propriedade, sempre que elesforem desrespeitados. Ou seja, a autoridade legitimamente constituídapara arbitrar os conflitos deve ter como limite claro o respeito à ordemcivil preexistente. Isso inclui, naturalmente, a propriedade conquista-da no estado natural e, conseqüentemente, a desigualdade perpetradapelo trabalho individual.

Se compararmos as concepções de Locke e Hobbes sobre a desigualda-de, veremos uma convergência expressiva nas suas concepções, em que

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pesem algumas diferenças fundamentais dos seus respectivos modelosteóricos. Em ambos, tal questão aparece como um produto de diferen-ças individuais e circunscritas às leis que regem a vida das pessoas noestado natural.

Apenas em Locke, a sua preocupação com a precedência da ordemcivil sobre a ordem política, bem como com os limites do poder doEstado sobre os indivíduos ensejam que seu modelo absorva com maiordesenvoltura a questão da desigualdade de interesses individuais numcontexto societal, contemplada na análise deste autor sobre o conflito esobre as formas legítimas da intervenção estatal para a sua superação.Dessarte, seu modelo institucional consegue absorver a idéia do confli-to como resultado previsível e rotineiro do convívio social, vide a dis-cussão sobre a repartição dos poderes políticos entre poder executivo,poder legislativo e poder federativo (LOCKE, 1979, p. 86-101), semabandonar o pressuposto de uma desigualdade naturalizada, pois queela é fruto, segundo o autor, do confronto natural de interesses(racionalidades) individuais irredutíveis, em última instância, do “bemcomum”.

Para concluir esta seção, devemos observar que a desigualdade, tal comoa aborda Locke, e o conflito oriundo do choque das racionalidades noesforço da autoconservação têm ainda como substrato o indivíduo enão os grupamentos sociais.

A DESIGUALDADE SOCIAL EM ROUSSEAU

A centralidade do tema da desigualdade em Rousseau torna sua teoriade importância especial para a nossa discussão. Afinal, o esforço teóricodeste autor se dirige explicitamente a entender a maneira pela qual osindivíduos perdem a “igualdade natural” e se submetem a uma ordempolítica comum que, no entanto, legitima e perpetua a desigualdade.

Rousseau, como se demonstrará, introduz na discussão liberal sobre adesigualdade algumas concepções que lhe permitem, mais que a qual-quer dos autores analisados, aprofundar a compreensão desse assuntodesde uma perspectiva especificamente social. Contudo, creio não serocioso para a compreensão do problema a observação preliminar deque o tema da desigualdade em Rousseau tem um tratamento diferen-ciado em cada uma das duas obras deste autor selecionadas para essetrabalho, variando de uma perspectiva mais formalista e abstrata, àmaneira hobbesiana, em O Contrato Social (ROUSSEAU, 1980a), até umadefinição mais etnográfica e mesmo empiricista da desigualdade no

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Discurso sobre a origem da desigualdade e os fundamentos da desigualdade en-tre os homens (ROUSSEAU, 1980b).

Com respeito ao modelo teórico do Contrato Social, o que me parece sermais interessante é que Rousseu obtém melhor rendimento que o mo-delo de Hobbes para explicar a desigualdade social, apesar de ele ope-rar com os mesmos pressupostos básicos do modelo hobbesiano. A sa-ber: indivíduos isolados, um estado de natureza e um pacto social fun-dador da ordem política. Entretanto, a suposição de indivíduos bons esociáveis, em vez de egoístas e vorazes, como na suposição de Hobbes,propicia ao modelo rousseauísta o enfrentamento da questão da cons-trução da ordem política, tendo por base as relações sociais. Sua dife-rença em relação a Hobbes é explicitada, entre outras, pela seguintepassagem: “Antes [...] de examinar o ato pelo qual o povo elege um rei,seria bom examinar o ato pelo qual o povo é um povo, porque esse ato,sendo necessariamente anterior ao outro, constitui o fundamento dasociedade” (ROUSSEAU, 1980a, p. 29).

Exposto sucintamente, o modelo teórico de Rousseau, utilizado no Con-trato Social para explicar a origem da sociedade e das instituições políti-cas, podemos destacar o seguinte: em primeiro lugar, o autor concebeum estado de natureza povoado por indivíduos isolados, agrupados nomáximo em famílias pouco extensas, naturalmente livres, iguais e semqualquer referência moral que neles faça desenvolver sentimentos deorgulho, ambição ou glória. Nem mesmo a linguagem, fruto que é daconvenção de sinais de comunicação, os indivíduos conheceriam nesseestado. No entanto, nesse estado natural, o Homem descrito porRousseau é bom e feliz na sua ignorância das regras do convívio social.

Como é fácil deduzir, dadas as características desse estado de naturezaprojetado por Rousseau, a desigualdade continua sendo concebida, talcomo nos autores anteriormente abordados, especialmente Hobbes,como uma decorrência de acidentes e inclinações naturais.

No Contrato social, alguma mudança neste tipo de abordagem naturali-zada do problema se faz notar no momento em que Rousseau começa adescrever a deterioração do “estado de natureza” e a imposição doassociativismo como uma necessidade da ampliação da produtividadee do incremento do comércio. Isso ocorrerá, segundo o autor, pela ne-cessidade de conjugação de esforços vitais para a superação de obstácu-los à força que cada indivíduo pode isoladamente mobilizar para a con-servação do estado natural (ROUSSEAU, 1980a, p. 29-30).

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O que se segue a esse associativismo, na descrição do autor, é a funda-ção de uma organização coletiva com identidade peculiar ante os indi-víduos isolados, mas que é movida pelo objetivo de protegerem os seusinteresses individuais e garantir o direito natural à liberdade. Tal é ocontexto originário da necessidade do pacto social que é celebrado como concurso da força de cada indivíduo e formalizado num contrato.

A discussão de Rousseau em torno da origem do contrato me pareceser o ponto crucial do modelo, porque representa a culminância dosseus elementos convergentes com o modelo de Hobbes e ao mesmotempo, expõe a solução singular do autor para o problema do pactoque funda a vida social.

Na concepção apresentada por Rousseau no seu Contrato social, tal comoem Hobbes, o pacto é o elemento formador da vida coletiva que serealiza por uma decisão racional dos indivíduos. Ou seja, a origem dasociedade, segundo Rousseau, está relacionada a um resultado intencio-nal de um pacto promovido conscientemente por indivíduos indepen-dentes. Ainda como no modelo hobbesiano, esse pacto social vem acom-panhado de um contrato que assegura prerrogativas do “direito natu-ral” e impõe deveres aos pactuantes.

Entretanto, o funcionamento do modelo de Rousseau começa a se dife-renciar do modelo de Hobbes a partir das conseqüências que ele extraidesse momento sintético da transição do “estado de natureza” para avida societal, representado pelo pacto.

Para Rousseau, o pacto político constituído pelos indivíduos é capaz defundar uma associação que, ao subsumir as vontades individuais, ga-nha identidade própria, qualitativamente diferente da simples somados indivíduos. Ao comentar os resultados do pacto social, o autor faz aseguinte observação:

Logo, ao invés da pessoa particular de cada contratante, esse ato deassociação produz um corpo moral e coletivo, composto de tantosmembros quanto a assembléia de vozes, o qual recebe desse mesmoato sua unidade, seu eu comum, sua vida e sua vontade (ROUSSEAU,1980a, p. 31).

Entre outras vantagens, do ponto de vista do rendimento analítico, essaconcepção de Rousseau permite ao seu modelo teórico, na minha opi-nião, enfrentar com maior realismo a complexidade das questõesempíricas relativas, por exemplo, à organização do governo e da repre-sentação política. Hobbes, ao contrário, deriva a sua concepção de or-

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dem política de um raciocínio estritamente formal e matemático, quepoderia ser metaforicamente comparado a uma equação de álgebraelementar cujo resultado é obtido com a soma das unidades; no caso,das vontades individuais. Como vimos, isso torna o seu modelo maisequilibrado e elegante do ponto de vista da solução formal para os pro-blemas suscitados, tal como na discussão sobre as prerrogativas do po-der de Estado, porém menos capaz de antecipar alguns dilemas reaisda organização política liberal-capitalista.

Com respeito especificamente à questão da desigualdade, em que pesea solução original de Rousseau para o contrato, ao conceber a socieda-de política como uma síntese sui generis das vontades individuais, ela ésacrificada no modelo em benefício do equilíbrio lógico formal do Con-trato social. Neste estudo de Rousseau, a desigualdade é tão-somente oresultado das interações dos indivíduos no estado natural.

No Discurso sobre a origem da desigualdade entre os homens (1980b), entre-tanto, o autor propõe uma análise mais sociológica da desigualdade,antecipando, inclusive, a meu ver, algumas preocupações típicas daabordagem da ciência social oitocentista, que se farão presentes em KarlMarx e Emilie Durkheim.

No Discurso, a perspectiva de Rousseau para analisar a desigualdade éconduzida pelo postulado básico de que a desigualdade é originada nasociedade. Ou, por outra forma, o autor desenvolve a concepção deque sociedade é igual a desigualdade e que, portanto, a desigualdadedeve ser explicada a partir de categorias sociais e não naturais (indivi-duais).

Esse postulado é fundamental para que Rousseau consiga imprimir umsignificado à desigualdade qualitativamente diferente do que lhe foraatribuído por Hobbes. Por ele, o autor, em contradição aberta com oque está dito no Contrato social, afirma que a origem das sociedadespolíticas estaria relacionada prioritariamente aos interesses dos proprie-tários, dos “ricos”, da necessidade de conservar as suas propriedades.Assim, segundo Rousseau, a finalidade da organização política seriagarantir a igualdade natural dos indivíduos, mas também preservar asdesigualdades perpetradas pela vida social.

Curiosamente, o que permite a Rousseau pensar dessa maneira sobre adesigualdade e a organização política são dois pressupostos utilizadospelo modelo teórico de John Locke, a saber, um estado gregário origi-nal que precede a ordem política, e uma ordem social que contém pre-liminarmente alguns elementos básicos de controle e regulação da pro-

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dução econômica, inclusive por intermédio da propriedade (“bens”).Veja-se, por exemplo, este trecho do Discurso:

as palavras forte e fraco constituem equívoco [...] pois, no intervaloformado entre o estabelecimento do direito de propriedade ou deprimeiro ocupante e o dos governos políticos, adquirem mais justosentido se substituídas por pobre e rico, uma vez que, na realidade, ohomem não tinha, antes das leis, outros meios de subjugar os seme-lhantes senão lhes atacando os bens ou lhes cedendo parte dos pró-prios (ROUSSEAU, 1980b, p. 191).

Devemos observar, todavia, que a discussão de Rousseau avança muitomais que o modelo de Locke na compreensão das conseqüências práti-cas para a ordem política da preexistência de um corpo social. Especial-mente, porque, diferentemente do Contrato social, o pacto imaginadopor Rousseau na Origem da desigualdade entre os homens tem como prota-gonistas, não os indivíduos, mas o “povo”, sedimentado pelas “relaçõessociais” e pelos “chefes” por eles escolhidos. E, na medida em que adesigualdade é concebida como tendo um componente societal, istocoloca um papel diferente para o corpo político, que Rousseau imaginaser o de reparar ou pelo menos impedir o desenvolvimento das desi-gualdades perpetradas e aguçadas pelo convívio social.

CONCLUSÃO

Como procurei demonstrar neste trabalho, o tema da desigualdadeoferece a possibilidade de penetrarmos no universo conceitual dos au-tores analisados, ainda que não haja em alguns deles um tratamentoespecial do problema. Aliás, parte da serventia desse estudo sobre adesigualdade está justamente em revelar os pressupostos a este respei-to não explicitados nos modelos analisados.

Além disso, a discussão sobre a desigualdade em autores tradicional-mente identificados com o ideário de igualdade e liberdade nos ofereceuma oportunidade preciosa para qualificarmos, à luz dos seus signifi-cados atuais, as concepções liberais sobre estes temas. A este respeito écurioso observarmos que, se a idéia de uma igualdade natural entre osindivíduos nos parece contemporaneamente positiva e politicamentecorreta, a sua implicação necessária de uma desigualdade também fun-damentada nos princípios naturais nos parece inadmissível nos termosatuais da nossa organização política e institucional.

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Como vimos, os estudos sobre a desigualdade em Hobbes, Locke eRousseau revelam certa coerência, quando afirmam a desigualdadecomo um atributo e um direito natural dos indivíduos. Com diferentesgradações, todos estes autores trabalham com a idéia utilitarista de umasociedade que se cria a partir da decisão ponderada entre custos e be-nefícios dos indivíduos. A exceção talvez seja o Rousseau do Discursosobre a desigualdade entre os homens, que discute a desigualdade comosendo uma expressão necessária da vida em sociedade.

A ausência de variáveis societais nos modelos analisados nos revelou,sobretudo, certo formalismo na discussão sobre a desigualdade, princi-palmente no modelo teórico de Hobbes, evidenciando a fragilidade dealguns pressupostos utilizados e, também, sua defasagem em relação àsconcepções mais empíricas sobre o tema.

Locke, segundo a nossa avaliação, apresenta um modelo peculiar quecombina, ao mesmo tempo, o pressuposto hobbesiano de uma desi-gualdade natural entre os indivíduos com o suposto sociológico de umasociedade pré-contratual integrada por relações complexas.

De tudo o que foi dito, gostaria de reafirmar que os modelos teóricosanalisados antecipam alguns dos dilemas centrais das discussões con-temporâneas sobre a ordem, oscilantes entre o formalismouniversalizante e a observação particularizada dos fenômenos sociais einstitucionais, e que são produzidas a partir do acervo teórico da eco-nomia, da sociologia e da ciência política.

ABSTRACT

This paper deals with the issue of inequality in three classical authors ofpolitical theory: Thomas Hobbes, John Locke and Jean-Jacques Rousseau,usually identified with the discussion of its contrary, the equality. Inspirersof the liberal formulations of the institutionalization of the political liber-ties, their theories make explicit the condition of equality among the indi-viduals both as pre-condition and as universal matters that enforce thelegitimacy of political power. Our proposal here will be to discuss the contrafactions of equality among the individuals in the liberal theories, eviden-cing what each author understands as inequality. We believe that the re-levance of this provocative approach is to discuss the presuppositions ofthese theories showing their fragilities to the understanding of the contem-porary institutionalism of political societies.Keywords: inequality; liberal theories; nature.

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NOTAS

1 Aproveito aqui, parcialmente, a classificação de Soares (1993) para a compreensão do pensamento de Locke:“As bases da desobediência legítima segundo Hobbes, Locke, Hume, Rousseau, John Stuart Mill e Burke”.

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Z I L Á M E S Q U I T A*

M Á R C I O B A U E R**

ASSOCIATIVISMO EM REDE:UMA CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA EM TERRITÓRIOS

DE AGRICULTURA FAMILIAR***

No Sul do país, é o agricultor familiar que se tem ocu-pado predominantemente da produção de alimentosorgânicos. Neste trabalho, busca-se refletir primeirosobre as múltiplas facetas dos traços identitários atri-buídos à agricultura familiar no Sul do Brasil, paraentão identificar e caracterizar uma rede de geraçãode credibilidade na produção e comercialização de ali-mentos orgânicos: a “Rede Ecovida de Agroecologia”,que abrange os três estados meridionais. Assinala-se aforma como esta rede interinstitucional e socioeconômicaestá se estruturando, sua finalidade, as práticas sociaisde cooperação e de comunicação utilizadas, assim comosuas relações internas e interinstitucionais. Quanto aosaspectos metodológicos, o trabalho é de natureza emi-nentemente qualitativa. Inclui: a) a consulta e análisede dados secundários referentes a documentos da Rede;b) a realização e análise de entrevistas semi-estruturadasjunto a participantes de Centros de Tecnologia de pro-dutos orgânicos, considerados como alguns dos “nós”da Rede. Enfim, tecem-se algumas considerações sobrea construção em rede de territórios de agricultura fa-miliar.Palavras-chave: identidade; agricultura familiar;associativismo; rede de agricultura familiar; Sul doBrasil.

* Professora adjunta da Esco-la de Administração do Pro-grama de Pós-Graduaçãoem Administração – PPGA– da Universidade Fede-ral do Rio Grande do Sul –UFRGS.

** Professor da FundaçãoUniversidade Federal doRio Grande e mestre emAdministração pelo Progra-ma de Pós-Graduação emAdministração – PPGA – daUniversidade Federal doRio Grande do Sul –UFRGS.

*** Este trabalho é um dos fru-tos do projeto de pesquisa“Certificação e inspeção deprodutos orgânicos: indu-toras ou dispersoras doassociativismo e da coope-ração em redes emergen-tes?”, realizado no âmbitodo Edital do CNPq –COAGR 004/2001, área deAgricultura Familiar, perío-do 2002- 2004, sob a coor-denação da professora ZiláMesquita.

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INTRODUÇÃO

Os efeitos que a Revolução Verde provocou nas últimas décadas, porvezes sob transformações nem sempre positivas em termos de qualida-de de vida, tanto para os que produzem quanto para os que conso-mem, têm criado oportunidades para reflexões e práticas voltadas paraa produção de alimentos ecológicos a partir de pequenas unidades pro-dutivas de organização familiar. No Brasil, o tema ganha atualidadenão só pela ausência de uma reforma agrária nunca enfim resolvida nopaís, cujos efeitos contundentes são noticiados em conflitos no campo,mas ainda por se constituir em uma expectativa em termos de políticapública. Em outras palavras: a inclusão dos agricultores familiares, nocontexto de uma política pública agrária e agrícola, poderia contribuirpara melhorar a distribuição de renda no país. Poderia colaborar aindapara prover o abastecimento alimentar nas áreas urbanas, em um paísde urbanização galopante como a que se verificou nas últimas décadas.Há ainda um fato inegável do ponto de vista da segurança alimentar:hoje é o setor da agricultura familiar que disponibiliza, em grande par-te, a oferta de alimentos sem o uso daqueles agroquímicosimplementados pela Revolução Verde. Uma das regiões em que o setorda agricultura familiar floresceu, sob a (re)construção de atributosidentitários próprios, é o Sul do país.

Parte-se do pressuposto de que a maneira pela qual os agricultoresfamiliares no Sul do Brasil se constituíram favoreceu a construção doassociativismo, o que tem gerado, e pode continuar a gerar práticassociais nutridoras de sua identidade como ator no meio rural. Três sãoas justificativas para isso: a) esta forma de agricultura está assentada navida familiar, que idealmente supõe a cooperação entre indivíduos paraa sua manutenção; b) a estrutura fundiária em pequenas unidades pode(embora não necessariamente induza a isto) propiciar intercâmbios epráticas sociais comunitárias como: mutirões, reuniões para fins recrea-tivos ou de trabalho, troca de informações; e c) há fortes raízes cultu-rais de caráter histórico que lastreiam a reprodução dos agricultoresfamiliares, mesmo ao longo de um período de modernização agrícolacomo o que se verificou no Brasil nas últimas quatro décadas.

Estas vivências em comum, estas práticas sociais, ao mesmo tempo emque podem ser tributárias de uma herança social do passado – atravésde tradições e costumes – podem também inaugurar novas formas decooperação entre famílias congregadas em núcleos associativos. Taispráticas sociais são alternativas para a construção da identidade coleti-

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va. Tais fatores consolidaram a constituição de uma forma organizacionalem rede entre agricultores familiares: a Rede Ecovida de Agroecologia queserá mais adiante examinada.

Esta identidade cimentadora do associativismo remete a uma questãomais abrangente: como se constitui a identidade de um grupo social?

A IDENTIDADE EM MÚLTIPLAS FACETAS

Originalmente o termo identidade diz respeito àquilo que é idêntico,semelhante ou que possui as mesmas características. A identidade tam-bém inclui aquelas características que tornam uma pessoa ou gruposdiferenciados dos demais e ao mesmo tempo semelhantes entre si. Paraos fins a que nos propomos, a identidade é uma construção social com-plexa e multidimensional que envolve a percepção de si mesmo e dosoutros como parte de um grupo (ASHFORT, MAEL, 1989; CUCHE,1999; MESQUITA, 1997; NKOMO, COX, 1999; SANTOS, 1998), to-mado no seu mais amplo sentido, no qual se inscrevem as mais variadasformas de associativismo. Embora reflexões sobre identidade sejamrecorrentes em áreas como antropologia, geografia e sociologia, nosestudos organizacionais (que nos interessam aqui devido à formaorganizacional emergente em “rede”), esta ainda não se constitui umatradição (NKOMO, COX, 1999).

Inicialmente, é importante que se faça a distinção entre abordagensobjetivistas e subjetivistas da identidade, tomando como referência aobra de Cuche (1999). Nas objetivistas, a identidade é dada a partir decritérios determinantes como a origem comum (hereditariedade), a lín-gua, a cultura, a religião, a psicologia coletiva, o vínculo com um terri-tório etc. Já nas abordagens subjetivistas, a identidade reflete um senti-mento de vinculação ou uma identificação a uma coletividade imaginá-ria, prevalecendo as representações que os indivíduos fazem da reali-dade social e suas divisões. O que se resgata deste autor para os fins aque nos propomos é a necessidade de entender a influência de ambasas abordagens na construção de uma identidade a partir de uma con-cepção relacional e situacional. Dessa forma, não existiria uma identi-dade acabada, definível de uma vez por todas, mas sim uma identidadeconstruída e reconstruída constantemente no interior das trocas sociaisque os múltiplos fluxos propiciarem. Não é nosso intuito, porém, clas-sificar a identidade instituída pelos participantes da Rede Ecovida emum determinado tipo. Todavia, é inegável a necessidade de caracteriza-ção desta rede como nova forma organizacional: um ponto de partida

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para, quem sabe em outros trabalhos, se compreender melhor as práti-cas sociais e a maneira como elas contribuem para construir e atualizaras intenções institucionais. Entretanto, se a análise se focar sob a pers-pectiva da identidade do indivíduo inserido em uma rede e os vínculosque aí se criam, concordamos que assim pode se expressar essa cons-trução identitária:

No momento em que o sujeito passa a delimitar seu lugar e sua iden-tidade, cria laços, alianças e insere-se em um espaço de grupo, juntoa outros sujeitos com o mesmo interesse. Todos os sujeitos passamentão a constituir-se em participantes ativos da rede e também emfiadores da garantia do espaço individual em um contexto de grupo(TURCK, 2001, p. 33).

Esta assertiva corrobora os argumentos mais adiante apresentados, deque os sujeitos atuam como atores sintagmáticos, relacionais, e é opor-tuno ressaltar que o fazem construindo e mantendo suas identidadesatravés de um processo de compreensão de si mesmos e de suas inter-venções na realidade. É por isso que “identidades coletivas passaram aser compreendidas a partir não só de um agregado de interações sociais,mas também da razão político-estratégica de atores sociais” (SANTOS,1998, p. 151).

Eis aí algo que nos interessa para a compreensão dos atores sociais quetemos em mente – os agricultores familiares: uma razão político-estra-tégica. Atores na acepção de atuar, intervir na realidade e no territórioem que vivem. Esta construção de uma identidade coletiva no territó-rio, a partir de uma razão político-estratégica, a nosso juízo, diz respeito aatores sintagmáticos no território, ou seja: a atores realizando um projetono território a que pertencem (RAFESTIN, 1980 apud MESQUITA,1995, p. 82). É neste sentido que a identidade parece se configurarcomo o amálgama da rede, entendida a mesma como nova formaorganizacional que flexibiliza a contigüidade territorial, mas ao mesmotempo une os atores através desta razão político-estratégica em tornodo projeto compartilhado. Por isso, dentre as formas de identidade(legitimadora, de resistência e de projeto) indicadas por Castells (1999),acentuamos a identidade enquanto “projeto”, por se aproximar de umarazão político-estratégica de atores sintagmáticos no território e assimpoder se afigurar como um auxílio para a compreensão do associativismoem rede. Para ele a identidade de projeto é uma construção realizada poratores sociais que, se valendo de qualquer tipo de material cultural,buscam não só redefinir sua posição na sociedade como ainda a trans-

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formação da estrutura social. Esse tipo de identidade pode começarcomo uma identidade de resistência por parte de atores que se sentem emcondições de desvantagem perante a sociedade e, de certa forma, estig-matizados por ela (CASTELLS, 1999). Como veremos, isto parece teralgum poder explicativo para a Rede que analisaremos mais adiante.

Iluminando um outro ângulo, o das características intrínsecas das iden-tidades coletivas, Borzeix e Linhart (1996) apontam as identidades co-letivas como possuidoras de plasticidade, contingência, permeabilidade, con-figurações múltiplas e constituindo-se em uma aposta do grupo social. Aplasticidade confere à identidade um caráter móvel, flutuante e mutável– o que é útil para compreender a maleabilidade da identidade coletivaque possa se constituir na forma organizacional em rede e, sobretudo,em nosso público-alvo: agricultores familiares. Ela é construída atravésde incidentes e de acontecimentos que a nutrem (permeabilidade), sendoatualizada de acordo com as circunstâncias que lhe conferem voz e for-ma (contingência). Como nem sempre há consenso no interior de umgrupo sobre os traços mais importantes que caracterizam uma identi-dade, existem, assim, múltiplas configurações possíveis de identidade. Porúltimo, tem-se que a identidade é uma aposta coletiva de certo númerode indivíduos que são convidados a se comportar como atores em umjogo, sem saber de antemão se este jogo vale a pena ser jogado. Portan-to, o “projeto identitário”, que constitui o amálgama deste associativismoem rede, nunca está acabado. É uma construção permanente, plástica,contingente, permeável e sujeita a configurações múltiplas quecomplexificam a sua análise.

Um outro aporte que pode contribuir para compreender oassociativismo em rede assenta-se nos estudos que vinculam identidadee memória (SCHEIBE, 1985; SANTOS, 1998). Uma característica fun-damental destes estudos é o entendimento da memória não como purae simples faculdade mental, mas como construção social, através da se-leção de experiências de vida que possibilitam uma narrativa de comosomos. Uma vez que temos vários públicos a quem estas narrativas po-dem servir, temos mais de uma história: “Também os scripts da vida deoutras pessoas são às vezes tomados como modelo para suas própriashistórias. De modo que as identidades tomadas são adaptações de ver-sões de outras histórias, pois foram vividas ou inventadas por tercei-ros” (SCHEIBE, 1985, p. 49).

No caso de agricultores familiares, poder-se-ia perquirir se há um re-conhecimento próprio, identitário em uma rede tão recente (criada em2001-2002), cuja história que os participantes partilham ainda não te-

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ria consolidado uma memória coletiva enquanto Rede. Entretanto, nãoé à memória da Rede que se deve creditar o vínculo entre identidade ememória coletiva. A memória coletiva existe entre agricultores familia-res, mesmo antes da constituição da Rede. Se ela auxiliar a consolida-ção da Rede, ao apelar para o resgate das origens dos produtores emterritórios em que se situa, esta pode ser, talvez, uma perspectiva pro-missora. Por isso, torna-se pertinente, no âmbito restrito deste traba-lho, sem intenções de realizar uma revisão a este respeito, indicar embreves traços uma caracterização despretensiosa da agricultura familiarno Sul do Brasil; mais especificamente, no Rio Grande do Sul.

TRAÇOS DA AGRICULTURA FAMILIAR NO SUL DO BRASIL

Na agricultura familiar dos três estados meridionais onde atua a RedeEcovida (Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul), a identidadecultural é um traço distintivo, por ter suas raízes na chegada dos imi-grantes, predominantemente italianos e alemães. Embora vindos emmeados do século XIX de países europeus que tinham fortes diferen-ças regionais, eles acabaram por constituir uma identidade interna re-lativamente homogênea ao longo de seu processo de assentamento noSul do Brasil. Isso se deveu, em parte, ao abandono e isolamento iniciala que foram relegados. Assim, tanto no caso alemão (saxões, pomera-nianos etc.) como no de italianos (do Norte e do Sul) se forma umaidentidade cujas origens remetem à etnia (SEYFERTH, 1987).

O pertencimento dos agricultores a associações esportivas ou culturais,assim como religiosas, recreativas, de auxílio mútuo e profissional re-monta à colonização e, segundo Seyferth (1986), tem papel preponde-rante na formação da identidade. Foi esta pertença que os aglutinouem torno de objetivos específicos (corais, clubes recreativos, associa-ções de boliche e bocha, cooperativas de crédito e cooperativas de pro-dução). Tais propósitos ajudaram e auxiliam até hoje a fortalecer o es-pírito associativo.

Observamos em contato com agricultores ecologistas, isto é, voltadosao cultivo de produtos orgânicos, que eles são minoritários compara-dos aos produtores que utilizam a agricultura tradicional. Portanto, éfundamental que o associativismo em Rede tenha uma finalidade bemdefinida que reforce, tal como acontecia nos primórdios, a identifica-ção dos grupos. Na Rede Ecovida, esta possibilidade traduz-se na pro-dução e comercialização de alimentos ecológicos como projeto de vida.Ela reúne atores sintagmáticos. Integrado a este projeto, o agricultor

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percebe que não está só, sente-se identificado com um grupo que com-partilha o mesmo propósito.

Pelo fato de que as identidades irão efetivar-se não somente no camposimbólico das interações entre pessoas ou grupos, a dimensão territorialtambém é significativa. A caracterização dos territórios de agriculturafamiliar, nos quais a Rede Ecovida teve origem, não pode ser dissociadadas áreas de colonização no Sul do Brasil, em terras do Planalto Meri-dional, freqüentemente em escarpas íngremes e cobertas pela florestasubtropical, com todas as dificuldades para o cultivo da terra, inerentesa este tipo de relevo, solo e vegetação densa, acrescida pelo isolamentoem que, por muito tempo, permaneceram essas colônias.

Os imigrantes europeus, especialmente os de origem alemã – os pri-meiros a chegarem à região – foram assentados em áreas despovoadas,quase sempre vales de rios, tanto no Rio Grande do Sul (1824) comoem Santa Catarina, e, como informa Seyferth (1987), numa faixa deterra que ia do litoral até o planalto, em lotes que variavam entre 40 e50 hectares, a fim de cultivá-los em um regime de policultura e traba-lho familiar. No Rio Grande do Sul, a colonização italiana, embora te-nha ocorrido um pouco mais tarde (1875), se efetivou de forma seme-lhante à alemã. Ambas tinham em comum a constituição de colôniasbastante homogêneas, onde o nativo brasileiro era minoria ou, sim-plesmente, não existia (SEYFERTH, 1987).

No que diz respeito à agricultura familiar hoje, esta dimensão territorialnão desapareceu, pois assume uma concretude nas práticas sociais ne-cessárias e nos cuidados com o cultivo da terra em suas várias etapas:preparo, semeadura, tratos específicos, colheita, estocagem ecomercialização dos produtos. O resultado de tais práticas, ou seja, osalimentos levados à comercialização, tem um traço distintivo que lheconfere identidade local: tais elementos trazem geralmente o nome dolugar onde atua o grupo, núcleo ou associação e ainda o selo da RedeEcovida. Além das características históricas que remontam ao séculoXIX, resta lembrar que foi na região de colonização alemã, mais es-pecificamente no atual município de Nova Petrópolis, no Planalto doRio Grande do Sul, também conhecida como região da Serra, que foifundada uma das primeiras cooperativas brasileiras com o objetivo demobilizar recursos de crédito, e que tinha essencialmente origem rural.

É importante lembrar também que mais tarde, sobretudo a partir dosanos 1960 e 1970, o Planalto gaúcho foi um dos “espaços-teste” para aimplantação da modernização agrícola no país, o que trouxe várias con-

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seqüências, dentre as quais: mecanização, êxodo rural, uso de agroquí-micos nas lavouras com o conseqüente impacto sobre a saúde dos agri-cultores e o ambiente natural. Estes fatos, de natureza ambiental, tive-ram como corolário inflexões sociopolíticas, dado o modelo de desen-volvimento preconizado à época para o país e sobre o qual (e seus des-dobramentos) se produziu vasta literatura. Limitamo-nos a pontuar queas décadas de 1970 e 1980 são marcadas na região por um trabalhomilitante de setores progressistas das igrejas Católica (Pastoral da Ter-ra) e Evangélica Luterana, que passam a marcar sua presença junto aosagricultores familiares e àqueles oriundos do êxodo rural. Em algunscasos, esta ação militante deu origem ou se desenvolveu paralelamenteao trabalho de ONGs (Organizações Não-Governamentais), como aCooperativa Ecológica Coolméia sediada na capital, Porto Alegre, mascom fortes incursões na região de agricultura familiar até hoje; o CETAP– Centro de Tecnologias Alternativas Populares, em Passo Fundo; oCAPA – Centro de Assistência ao Pequeno Agricultor, vinculado à Igre-ja Evangélica Luterana e o CAE – Centro Agroecológico com duas se-des: uma no Planalto, no município de Ipê, e outra no litoral do RioGrande do Sul, no município de São Pedro de Alcântara. Algumas des-tas ONGs históricas fazem parte hoje da Rede Ecovida, que apresenta-remos mais adiante. Das ONGs e igrejas que apóiam a Rede, pode-sedizer que elas têm tido um papel educativo, lento, mas processual eduradouro, resgatando no agricultor a sua relação “original” de har-monia com a terra e com o meio ambiente, auxiliando-o nos processosde recuperação de técnicas não agressivas ou, se for o caso, nos proces-sos de reconversão das águas e solos contaminados, como é o caso nasáreas de plantio de fumo (FREITAS, MESQUITA, 2002 e 2004).

A ação do Estado na década de 1960, através das EMATERs – Empre-sas de Assistência Técnica e de Extensão Rural –, e das secretarias deagricultura estaduais era marcada por um modelo difusionista e porum saber de seus técnicos que, detentores do conhecimento, seriam oscapacitados a repassá-lo. Esse pressuposto teórico colocava o agricultorcomo agente passivo à espera da difusão da inovação (informações eensinamentos) “[...] que transformarão sua vida e o tornarão parte in-tegrante do mundo moderno” (ASSIS, 2001, p. 103). Mais recentemente,a partir de 1998, a Secretaria de Agricultura do Rio Grande do Sulassumiu, como política pública, a opção pela agroecologia para apoiara agricultura familiar. No contexto atual das escolas de agricultura eco-lógica, esta constitui-se como um movimento na América Latina emtorno da preservação ambiental e promoção socioeconômica dos pe-quenos agricultores.

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A ação das igrejas e das ONGs, por seu lado, tinha como pressupostoteórico e mote inspirador a construção e reconstrução identitárias dopequeno agricultor alicerçadas na necessidade de dirimir a exclusãosocial a partir do princípio de justiça social.1 Buscou-se, assim, fomen-tar primeiro o cooperativismo, mais tarde o sindicalismo, sob a formade inserção dos pequenos agricultores em sindicatos de trabalhadoresrurais, e, ultimamente, o associativismo, por meio da formação de asso-ciações de agricultores familiares reunidos pelas questões concernentesà produção e à comercialização.

Estes parecem ter sido os embriões do associativismo em rede. O fatode o mesmo ser tão recente,2 necessariamente não se constituiria emfator restritivo à identidade coletiva, uma vez que a memória dessastradições associativas, inscrita ao longo dessas décadas na identidadesocial dos grupos de agricultores familiares hoje integrantes da Rede,não se refere apenas à memória do recente associativismo em rede.Sendo a memória não apenas um registro histórico de fatos, mas umacombinação de construções sociais passadas com fatos significantes davida social do presente, encontra-se em permanente reelaboração.

Parece que o que se diz ser uma reprodução é, por menos que seadmita, uma reconstrução que serve para justificar a impressão quepode ser deixada pelo original. Raramente definida com muita pre-cisão, é esta a impressão que persiste com maior freqüência(BARLETT, 1932 apud SCHEIBE, 1985, p. 51).

Em suma: a memória e a identidade apresentam-se em um processo deinteração e construção. A memória, embora nem sempre evidente, in-tegra a identidade, à medida que reforça, através de lembranças, o sen-timento de pertencimento a um grupo, e, ao mesmo tempo, é por elaconstituída, uma vez que o processo de identificação agirá na seleção econfiguração dos episódios a serem lembrados. Ambas: memória e iden-tidade são atualizadas e reconstruídas na interação social da vida coti-diana.

Este passado, embora resumido de maneira tão sumária, espera-se queleve à compreensão do substrato existente na memória coletiva quepermitiu a emergência da Rede Ecovida de Agroecologia e que está contri-buindo, embora não seja a única, para (re)construir a identidade daagricultura familiar nos três estados mais meridionais do Sul do Brasil.Enfim, conscientes de não termos analisado todas as facetas da identi-dade no universo rural, e que estes breves traços mereceriam comple-mentos enriquecedores acerca da história regional e da agricultura fa-

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miliar que assume particularidades e diversidades mesmo dentro deseus territórios específicos, concordamos que:

É importante considerar que o campo não está passando por um pro-cesso único de transformação em toda a sua extensão. Se as medidasmodernizadoras sobre a agricultura foram moldadas no padrão deprodução (e de vida) urbano-industrial, seus efeitos sobre a popula-ção local e a maneira como esta reage a tais injunções, não são, demodo algum, uniformes, assim como tais medidas não atingem com amesma intensidade e proporções as diferentes categorias de produ-tores. Nesse sentido não se pode falar de ruralidade em geral; ela seexpressa de formas diferentes em universos culturais, sociais e eco-nômicos heterogêneos (CARNEIRO, 2001, p. 1).

ATUALIZANDO A IDENTIDADE: DO ESTIGMA

À VALORIZAÇÃO VIA ASSOCIATIVISMO

Em que pesem tais salvaguardas, esse processo de construção social nospermite tratar a identidade não como uma oposição entre indivíduo-sociedade, mas como expressão mediadora que transita entre ambos eque integra ainda os valores culturais adquiridos mediante o processode socialização (MESQUITA, 1997). De acordo com depoimentos deagricultores, é possível perceber que a identidade dos mesmos pareceser diretamente influenciada por suas representações sobre como osoutros os percebem. De uma maneira geral eles se sentem inferiorizadosao serem reconhecidos na cidade como “colonos”, embora no meio ruralesta seja uma identidade reivindicada e atribuída de forma recíprocapor eles. É claro que esta avaliação depende das experiências vividaspelo agricultor no contato com a cidade, mas em muitos casos é possí-vel identificar resquícios de experiências traumáticas de estigmatização.É o que se observa, por exemplo, no seguinte depoimento: “Eles vêmpara a cidade buscando o quê? Eles vêm pra estudar claro! Mas [...] oque eles querem realmente é saber se portar no restaurante. Saber an-dar rua afora e não ser visto de longe: aquele lá é um colono” (depoi-mento de uma agricultora de Canguçu).

Esta e outras falas deixam transparecer que o urbano ainda é visto comosuperior; que tanto a forma correta de se comportar como a informa-ção e a “educação” correta estão no meio urbano. Dessa maneira, umaigualdade parece ser reivindicada, mesmo que isso entre em contradi-ção com o estilo de vida da colônia, mesmo que comprometa a repro-

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dução social e cultural de práticas e valores da agricultura familiar.Embora isso seja reflexo de alguns “avanços” da vida moderna, quetrazem o urbano para dentro do rural e provocam mudanças nos pro-cessos de socialização, muitos agricultores os percebem como pontospositivos:

É, hoje parece que não é mais tanto assim, que o próprio agricultor,com todos os meios de comunicação, tem acesso a mais informação.Então ele não tem mais... a diferença não é mais tanta assim, do urba-no para o rural e vice-versa (depoimento de um agricultor deCanguçu).

Em contrapartida, a realização de feiras ecológicas e o contato com acidade por parte dos agricultores ecologistas parecem realmente terdado um outro sentido à sua identidade. Eles começam a ver valoriza-dos tanto seu estilo de vida como o seu conhecimento.

O modo de ver o colono, com o nosso tipo de trabalho [o ecológico]ele tá mudando. Antigamente eles viam um agricultor passar na ruae diziam “lá vai o colono”. Porque sempre tem um meio diferente deandar, um meio diferente de se comunicar, de caminhar. Hoje já não;hoje a gente já tem uma amizade com esse pessoal da [...] com osconsumidores daqui, né, então a gente já é visto de outra maneira(depoimento de um agricultor de Pelotas).

É visível que houve mudanças no comportamento do “pessoal da cida-de”, mas houve muito mais mudança no comportamento do agricultor,que faz questão de ressaltar a sua condição de produtor ecológico parareivindicar uma posição de maior destaque e, com isso, ter sua identi-dade reconhecida. A utilização de emblemas e marcas que o identifi-quem com a causa ecológica (camisetas, bonés, crachás, adesivos) buscao reconhecimento de uma identidade afirmativa. Tudo isso encontraapoio nas práticas adotadas pela Rede Ecovida. Um agricultor entre-vistado, por exemplo, quando fala sobre o uso de crachás consideraque o pessoal da cidade o está valorizando, pois quando o chamam é“pelo nome, não é mais: ‘Ô, alemão!’”.

O contato com um tipo de público que valoriza a agricultura e o traba-lho do agricultor realiza uma verdadeira ressignificação nas identida-des. O colono “agora” parece ser visto de forma diferente, sendo res-peitado e até admirado. Com isso, o agricultor tem reconhecidas, aomesmo tempo, sua identidade social e individual; o estigma passa a ser

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emblema. A agroecologia em geral e a feira em particular funcionam,nesse aspecto, como um projeto ressocializador.

Referindo-se aos vínculos que podem aprofundar o relacionamentoentre os participantes de uma rede, Turck (2001, p. 41) assegura queeste movimento de articulação influi nas estruturas institucionais e navida profissional e pessoal dos sujeitos envolvidos no processo, pois acar-reta o compartilhamento de histórias pessoais e a possibilidade de cons-trução coletiva de outras narrativas. Este, a nosso ver, é um elementoinstituinte e potencializador na Rede Ecovida pela maneira como estáestruturada. A citada autora, referindo-se a uma outra rede, isto é, àrede emergente do Estatuto da Criança e do Adolescente, diz textual-mente:

É o caminho que os indivíduos e os grupos encontram para seremprotagonistas de suas vidas. O processo emerge, então, da reflexãode como os indivíduos se constituem como sujeitos, de como são par-ticipantes e participados pelos desenhos sociais. Ser protagonista éviver intensamente todas as possibilidades de tornar-se responsável.É participar de todos os movimentos sociais em que o compartilharvai construindo possibilidades de intervenção e de mudanças. É abase subjetiva [...], que fundamenta todo o processo de construção deredes sociais (TURCK, 2001, p. 41-42).

Consideramos que a Rede Ecovida de Agroecologia compartilha destespressupostos. Entretanto, percebemos ainda que é através deste cons-truir interativo de possibilidades de mudança na vida rural brasileiraque os atores vinculados à Rede ou às ONGs, ao promoverem a realiza-ção de práticas sociais como reuniões, dias de campo e feiras, estão nãoapenas construindo possibilidades de intervenção e mudança, mas tam-bém e concomitantemente construindo e (re)construindo a identidadee a imagem do setor produtivo reconhecido como agricultura familiar,durante tanto tempo percebido apenas como agricultura de subsistên-cia, fechada em si mesma e fora da economia monetária, esta sim,inquestionavelmente valorizada em seu locus particular e específico: odos territórios urbanos. Vejamos, portanto, como se apresenta consti-tuída a Rede Ecovida de Agroecologia.

A REDE ECOVIDA DE AGROECOLOGIA

Segundo documentos da própria Rede e entrevistas com a coordena-ção da Rede no Rio Grande do Sul, ela é um espaço de articulação que

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envolve agricultores familiares e suas organizações, como também ossimpatizantes de tal prática e pessoas envolvidas com a produção,processamento, comercialização e consumo de alimentos ecológicos. ARede tem como metas fortalecer a agroecologia nos seus mais amplosaspectos, disponibilizar informações entre os envolvidos e criar meca-nismos legítimos de geração de credibilidade e de garantia dos proces-sos desenvolvidos por seus membros. Seus princípios preconizam: ter aagroecologia como base para o desenvolvimento sustentável; garantir aqualidade do processo através da certificação participativa; trabalharcom agricultores familiares e suas organizações; ter como base anormativa nacional de produção orgânica; ser regida por normativaprópria de funcionamento e de produção. Tais princípios conduzemaos objetivos desta Rede, que assim se expressam: a) desenvolver emultiplicar as iniciativas agroecológicas; b) incentivar o trabalhoassociativo da produção ao consumo de alimentos ecológicos; c) articu-lar e disponibilizar informações entre organizações e pessoas; d) apro-ximar, de forma solidária, agricultores e consumidores; e e) ter umamarca-selo que expresse o processo, o compromisso e a qualidade.

Os valores que permeiam tais princípios e seus objetivos são indicadosno tópico referente à organização e normas de funcionamento:

Nós acreditamos que os aspectos inerentes à agroecologia a saber:Proteção do ambiente; justiça e inclusão social, viabilização econômi-ca, adaptação cultural e tecnológica – que visem à construção de po-líticas públicas – devem ser analisados em conjunto com parâmetrossemelhantes, ou seja, a questão ambiental é tão importante quanto asocial, a cultural quanto a tecnológica, a econômica quanto a políticae vice-versa. Desta forma, para que ocorra um harmônico desenvol-vimento da Rede Ecovida de Agroecologia, todos os aspectos acimacitados devem ser considerados e fomentados igualmente, a fim deque este movimento não seja de cunho meramente ambiental, ou eco-nômico ou político ou social, mas sim integral (REDE ECOVIDA,2001).

O trabalho em rede, assim preconizado, ao gerar processos de(re)conhecimento, possibilita nutrir a construção de uma identidadecoletiva entre os produtores na agricultura familiar, ao dinamizar e atua-lizar o significado de pertencimento a um território, a uma organiza-ção e a um grupo que comunga valores, tarefas e objetivos em comum.Disto decorre o contínuo movimento na rede, que lhe confere um cará-ter de aparente impermanência, dada esta característica descentraliza-

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dora que as contínuas trocas e intercâmbios proporcionam. Este circui-to estimula a comunicação entre agricultores de um determinado terri-tório e os representantes de ONGs, intercâmbio celebrado nas feiras eem todas as oportunidades de reuniões: desde as assembléias amplia-das – menos freqüentes – até as reuniões de grupos, de comissão deética, núcleo, “dias de campo” etc.

Por outro lado, a Rede Ecovida não é a pioneira nem a únicafomentadora dessas idéias. Elas já estão presentes no movimento deagricultura ecológica que se construiu no Sul do Brasil e que tem porbase a agricultura familiar. Neste contexto, a Rede constituiu-se recen-temente como uma organização que congrega iniciativas ecológicas eseus grupos, funcionando como um catalisador do processo. De acordocom um de seus articuladores, o movimento representa não só a pro-dução de alimentos orgânicos, mas a “valorização, incentivo e constru-ção de uma cultura de justiça social centrada na ética da vida”, éticaesta que busca “um mundo onde ninguém tem medo um do outro,ninguém explora ninguém. Um mundo onde a diversidade cultural épreservada” (ENCONTRO DE AGRICULTURA ECOLÓGICA, 2002).

Figura1. Territórios de atuação da Rede Ecovidade Agroecologia, especificando os do RS.

A Rede Ecovida hoje se estrutura em três estados: Paraná, Santa Catarinae Rio Grande do Sul. Cada um deles é dividido em regiões de atuaçãoda Rede. Segundo a viabilidade, forma-se um núcleo em cada uma de-las. Atualmente há 120 grupos organizados de agricultores nos três es-

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tados e 25 ONGs envolvidas. A coordenação da Rede no Rio Grandedo Sul considera que há cinco tipos de pontos nodais (nós) na rede: a)grupos de agricultores familiares ecologistas; b) grupos de consumido-res (cooperativas); c) ONGs de assessoria em agroecologia;3 d) agro-indústrias familiares, se existirem em cada região; e e) comercializadoras(lojas de produtos orgânicos, entrepostos, desde que tenham caráterfamiliar e sejam microempresas).

É digno de nota o fato de que os grupos interligam-se em núcleos regio-nais4 para respeitar a identidade da região. Esta razão político-estraté-gica, a nosso ver, visou a resgatar a identidade coletiva enquanto me-mória e enquanto projeto da Rede ao conferir aos grupos este papelsintagmático no território.

No âmbito atual da Rede, há 18 núcleos, dos quais, no Rio Grande doSul, há sete que, segundo os entrevistados, estão “calcados em trajetóriashistóricas” e assim localizados:

Os núcleos são definidos pelo conjunto da Rede. As instâncias decisóriasmais abrangentes são os Encontros Ampliados, que são assembléias ge-rais. Os núcleos em toda a Rede são compostos por, no mínimo, umaorganização ou profissional(is) de assessoria em agroecologia, organi-zações de agricultores (grupos, associações e cooperativas), organiza-

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ções de consumidores, comerciantes, processadores e membros indivi-duais. Aos núcleos se atribui o papel de serem a referência da Rede emcada região, até mesmo agilizando o trabalho com atividades próprias,mantendo e disponibilizando as informações necessárias à Rede, man-tendo atualizado o cadastro dos integrantes, indicando e respaldando aadesão de novos membros, analisando em primeira instância as infor-mações referentes à certificação dos membros, recolhendo anuidades,entre outras. É oportuno esclarecer que o ingresso na Rede somente sefaz a partir de indicação de um integrante. Em cada núcleo é formadauma comissão de ética que deve incluir também consumidores na suacomposição. Além disso, o núcleo poderá constituir comissão técnica ede certificação. Prevê-se que uma entidade ou pessoa assuma a coorde-nação do núcleo para facilitar o acesso e intercâmbio de informações eque haja reuniões periódicas, no mínimo duas anuais.

Além das associações e núcleos, a estrutura da Rede prevê uma coorde-nação ampliada compreendendo um coordenador geral e represen-tantes dos núcleos regionais que se reunirão no mínimo duas vezes aoano. Como instância máxima de decisão, a Rede prevê o encontro ampliadoque ocorrerá ao menos anualmente. Em tais encontros, prevê-se umespaço para análise de conjuntura, assunto(s) de “fundo” para discus-são, trabalhos de grupo e questões regimentais da Rede como: indica-ção de novos membros, eleições, modificações de regimento, informesetc. Embora se preconizem as decisões por consenso, caso isto não ocorra,ou o assunto vai para discussão mais aprofundada nas regiões ou ésubmetido a votação imediata. Nesta última alternativa, cada organiza-ção terá direito a um voto com peso 3 e cada indivíduo membro a umvoto com peso 1.

Quanto às finanças, por tratar-se de uma organização sem fins lucrati-vos, os recursos financeiros arrecadados destinar-se-ão à manutençãode seus trabalhos e à realização de encontros, seminários, assembléias,produção e divulgação de materiais informativos e didáticos. A Redehoje não tem recursos próprios, mas há o fundo de miniprojetos. Aadministração financeira será realizada por uma organização tesoureiraeleita bianualmente no encontro ampliado. Apesar desta carência, elaconseguiu no âmbito de sua atuação no Rio Grande do Sul realizar de25 a 27 de junho de 2002 em Pelotas, com o apoio de 30 entidadesgovernamentais e não-governamentais, o Encontro de AgriCultura Ecológi-ca – celebrando a ética da vida com 1.750 participantes. Nesta ocasião, aRede Ecovida de Agroecologia no Rio Grande do Sul foi lançada ofi-cialmente.

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Na estrutura da Rede há ainda prevista uma Associação Certificadoradenominada Associação de Certificação Participativa. Para compreen-der a sua existência é preciso ter em conta que no bojo da globalizaçãoe um pouco à moda das normas ISO, teve origem em alguns paíseseuropeus a certificação de produtos alimentares. No Brasil, esta é umaquestão polêmica, desde 1993/94, que não cabe aqui relatar detalha-damente.5 A questão, porém, é relevante para compreender as origensda Rede.

Segundo entrevistas realizadas e documentos consultados, no primeirolustro da década de 1990, os representantes do Ministério da Agricul-tura convocam setores da sociedade civil para tratar da certificação deprodutos orgânicos em reuniões em Brasília. Alguns representantes dasONGs do Rio Grande do Sul, como a Coolméia, o CETAP e o CAE, sereúnem então para discutir normas em comum. Na verdade, estas en-tidades já se articulavam desde 1988. Por seu lado, considerando estaconjuntura, a partir da EPAGRI – Empresa de Pesquisa e Extensão daSecretaria de Agricultura de Santa Catarina –, é lançado um documen-to, que define as condições para se atribuir função de certificadora.Segundo os entrevistados, os porta-vozes de movimentos sociais emSanta Catarina reagem contra isso e rasgam o documento. Ainda emreação à posição reivindicada pela EPAGRI, cria-se a Rede Ecovida,que surge como fruto deste processo. Inicialmente, a rede Ecovida nas-ceu em Santa Catarina e, no seu formato organizativo, origina-se a par-tir de grupos organizados de agricultores. Se a Ecovida se estabeleceucomo uma reação à EPAGRI, no 2º semestre de 1999, surgiu a propos-ta de ampliar a Rede para os três estados, e em março de 2000, referen-dou-se a proposta no II Encontro Ampliado.

Em 17 de maio de 1999, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abas-tecimento – MAPA – promulga a Instrução Normativa MA nº 07 sobrea certificação de produtos orgânicos. Ela constituiu-se efetivamente emlei em dezembro de 2003, e a próxima etapa foi sua regulamentaçãoem Decreto-Lei. A Portaria nº 17, também do MAPA, de abril de 2001,trata do registro de certificadoras. Segundo documento da Rede, elaassim reagiu a estas determinações:

A rede Ecovida surge como resposta ao processo de mercantilizaçãoda agricultura ecológica e ao sistema convencional de certificação deprodutos orgânicos. A necessidade de promover um sistema própriode garantia de qualidade dos alimentos produzidos fez com que sedesenvolvesse o processo denominado certificação participativa em rede.

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[...] A Rede Ecovida de Agroecologia não é uma entidade jurídica,caracteriza-se como uma organização de fato, mas não de direito, tendoem vista que seus objetivos e princípios extrapolam o âmbito dacertificação somente. Para fins de formalização do processo decertificação, foi constituída dentro da rede a Associação Ecovida deCertificação Participativa, que possui estrutura jurídica, já adaptada aomarco legal em andamento, mas que está submetida regimentalmen-te ao controle social da Rede Ecovida (REDE ECOVIDA, 2001).

O que nos interessa aqui destacar é que esta forma de associativismo seexpressa a partir de um objetivo bem definido que é a certificação,embora, como bem salientam os seus coordenadores e os documentosda Rede, o engajamento associativo não se constitua em sua razão deser e muito menos no cerne de sua identidade. A nosso ver, a certificação,do modo que a Rede a percebe, passa a ser um instrumento a corrobo-rar o associativismo preconizado. Esta parece ser a razão deinstrumentalizá-la com uma futura certificadora legalmente ampara-da, prevendo os desdobramentos futuros da instrução normativa, daportaria ministerial e da lei. Dados estes motivos, a Associação deCertificação Participativa dispõe de Comissão Técnica, Conselho deCertificação e Conselho de Ética ou de Recursos. Enquanto as Comis-sões Técnicas dos estados serão compostas pelas entidades de Assesso-ria com um mínimo de três membros por comissão, a Comissão de Éti-ca (nos grupos de agricultores e/ou núcleos regionais) compõe-se detrês membros (agricultores[as] e/ou técnicos do grupo, com mandatode um ano com renovação de 1/3 de seus membros), escolhidos na as-sembléia ou em reunião do grupo (associação, cooperativa etc.). Acertificação é obtida pelo agricultor que, integrante da rede, por ela seinteresse, desde que atenda aos seguintes requisitos e práticas: a) estarem dia com a Rede; b) preencher o formulário de certificação (um porpropriedade); c) apresentar os formulários para o Conselho de Éticado Núcleo e solicitar uma visita (intercâmbio); d) o Conselho de Éticadá o parecer (aprovado ou com sugestões); e) o grupo solicita a quanti-dade de selos ou o atestado e a Coordenação do núcleo pede os selospara o Conselho de Certificação da Rede Ecovida.

Assim, não é o agricultor isolado o principal agente de transformaçãoda realidade, mas as associações de produtores ecológicos e cooperati-vas, ONGs engajadas no processo e consumidores que dão o caráterregional e local à Rede. Parafraseando Carneiro (2001, p.10), quandoalude à localidade como referência espacial, poder-se-ia preconizar paraos territórios da agricultura familiar um papel qualificador de um uni-

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verso de relações sociais específico. A nosso ver, o que qualifica esteuniverso são relações sociais que se especificam em torno dos valores eobjetivos preconizados, por sua vez resgatados em suas origens. É porisso que esta nova forma organizacional, a rede, embora possa ter raízesterritoriais, transpõe os territórios contíguos sem destruir as conexões,ainda que o significado identitário de pertencimento se dê, é verdade,a partir do que é próximo. Contudo, a rede será tanto mais forte, quan-to mais por ela se conseguir este amálgama em torno dos valores parti-lhados. O sentido de pertencimento pode ultrapassar, então, os limitesacanhados do local, ao comprometer-se com os valores gestados evivenciados na Rede, buscando o desenvolvimento territorial. Esta pa-rece ser uma característica das redes de credibilidade da agriculturaorgânica, pois sua própria organização, a partir dos núcleos, pareceestimular quase que uma superposição do que Ashforth e Mael (1989)denominam de “grupos de identidade” e “grupos organizacionais”.

Em outras palavras, na Rede Ecovida, as evidências preliminares dapesquisa nos levam a inferir que a sua identidade social se efetiva apartir dos grupos familiares e dos núcleos, nos quais se fundem as ca-racterísticas acima mencionadas dos “grupos de identidade” e dos “gru-pos organizacionais”. Resta relembrar o importante papel que as ONGsintegrantes assumem como centros de intercâmbio e resgate não só deum necessário saber técnico e instrumental, mas como estimuladoresdesta sociabilidade sem a qual não se nutre a identidade. As ONGs atuan-tes na Rede Ecovida no Rio Grande do Sul – Cetap, Capa e CentroEcológico – se associaram num consórcio, visando à união institucionalpelo fortalecimento da agricultura familiar e da agroecologia.

CONCLUSÕES, NÃO: CONSIDERAÇÕES A RETOMAR

A Rede Ecovida de Agroecologia, segundo o que nos foi dado observar atéo momento, caracteriza-se por uma visão de mundo fundada princi-palmente no valor confiança entre seus participantes, marcada pelacredibilidade acerca da produção e comercialização de produtos ali-mentares isentos de agroquímicos, considerados nocivos ao ser huma-no e à natureza. Ao que parece, os princípios preconizados na Confe-rência do Meio Ambiente – Rio 92 – estão se construindo como umanova consciência ecológica, sobretudo nos territórios de agriculturafamiliar. A recuperação de um saber “tradicional”, pelo uso de adubosorgânicos e de técnicas preservacionistas do ambiente natural, o queteria sido negado, relegado a segundo plano ou esquecido durante o

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período mais acentuado da modernização agrícola, ultrapassa os seuspróprios limites instrumentais ao aliar-se, agora, a uma valorização doalimento orgânico ecologicamente produzido e processado, pelo pró-prio agricultor e por um segmento de consumidores rurais e urbanos.

Passados mais de dez anos da Conferência Rio 92, entre vitórias e frus-trações quanto aos objetivos por ela estabelecidos, experiências afirma-tivas como esta alimentam a esperança de que reconstruções identitáriasatravés do associativismo – um caminho que nunca é fácil – acenemcom um outro futuro para as gerações presentes e as que nos sucederão.

ABSTRACT

Family agriculture in South Brazil has charged conventional productionby organic food production. The present work tries first to reflect about theseveral faces of identity and the identity marks on South Brazil familiaragriculture. After we try to identify and to characterize a producers social-economic network involved with production and commercialization of or-ganic foods. This network, called “Rede Ecovida de Agroecologia” actingin the three South states of Brazil is now structuring its social cooperativeand communicative practices on its inner and external relationships. Metho-dological aspects of this work includes: a) networks documental analysis;b) interviews with people working on organic products in alternativetechnology centers. Some considerations about the settlement territorial-his-toric process in family agriculture in Rio Grande do Sul are presented.Finally this actual territorial network construction and its effects are pre-sented and discussed.Keywords: identity; familiar agriculture; associative forms; familiar ag-riculture network; South Brazil.

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NOTAS

1 Esta situação encontra respaldo até hoje, uma vez que um estudo da Secretaria de Coordenação e Planeja-mento do Rio Grande do Sul, em 1998, diagnosticou dois tipos de pobreza rural neste estado. A mais intensarelaciona-se às relações assalariadas na região Sul do estado e a menos intensa, mas com índices de concen-tração mais elevados, estaria em áreas de agricultura familiar do Norte do Rio Grande do Sul.

2 Ricardo Abramovay(2000) faz uma análise desta inserção de ONGs na Rede TA – Tecnologias Alternativas –atuante sobre este público.

3 No âmbito deste trabalho, estão sendo chamados de Centros Tecnológicos.4 No documento consultado, havia sete núcleos. Posteriormente foi criado mais um no Rio Grande do Sul, o

núcleo Centro RS.5 Para maiores detalhes sobre o processo de certificação ver, entre outros e sob a perspectiva da Cooperativa

Coolméia, Mesquita, 2002. E ainda: Andrade, Mesquita (2003).

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A N T O N Á D I A B O R G E S*

DEPOIS DE BOURDIEU: AS CLASSES

POPULARES EM ALGUMAS ABORDAGENS

SOCIOLÓGICAS CONTEMPORÂNEAS1

Este artigo tem por objetivo vincular o caráter vivodas teorias clássicas sobre culturas populares às expan-sões proporcionadas por renovadas pesquisas. Para tal,se toma o caso da produção de Pierre Bourdieu comomarco de uma ruptura com padrões regulares de aná-lise. Em seguida, se aponta para um movimento recen-te, dos anos 1990 até os dias atuais que, se alimentan-do desse legado, ajuda a redefinir nossas formas depensar a cultura popular.Palavras-chave: antropologia do trabalho; culturapopular; luta de classes.

* Autora de Tempo de Brasília:etnografando lugares-eventosda política (Relume-Duma-rá/NuAP), fruto de sua tesede doutorado em Antropo-logia Social pela Universi-dade de Brasília. Atualmen-te, como bolsista PRODOC-CAPES, ensina e pesquisano Programa de Pós-Gra-duação em AntropologiaSocial da Universidade Fe-deral do Rio de Janeiro.

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O PRESENTE DE BOURDIEU

O estudo das chamadas classes populares inicia-se geralmente por umdebate em torno da definição deste tema em si, por um debate emtorno da conveniência de tal recorte. Ao longo de décadas, o uso recor-rente de um conjunto obrigatório de textos configurou uma espécie debricolagem incontornável que sob um mesmo guarda-chuva abrigoureferências nem sempre compatíveis, mas que não poderiam deixar deser citadas. Como efeito dessa prática, tal literatura de referência im-primiu um viés necessário sobre a perspectiva adotada.

A referência à heterogênea bibliografia que percorria a “cultura popu-lar” tornou-se uma constante nos escritos dos cientistas sociais envolvi-dos com o assunto, mesmo quando esses eram conscientes das trans-formações inexoráveis no mundo social e do caráter provisório de todateoria. O tour poderia ir desde os primórdios folclóricos (espelho deuma perspectiva arqueológica), até os modos de vida dos grupos traba-lhadores contemporâneos. Entre estes dois pólos, localizou-se a maio-ria das etnografias e/ou estudos históricos ou sociológicos produzidos.Em comum todos tinham uma certa convicção de que era possível ob-servar o presente e traçar, a partir do que se supunha serem resquícios(como os survivals de Tylor), um caminho que levasse à origem de cer-tos costumes (pensemos nos usos e abusos da noção de “economia mo-ral” forjada por Thompson). Essa gênese compartilhada daria conta deilustrar a diferença entre os subalternos e os dominantes desde temposimemoriáveis com um adendo: ao se contrastar esses estudos com asanálises sobre as classes abastadas traçava-se um painel de longa dura-ção onde se figuravam uns e outros ou “nós e eles” como uma divisãoperene da vida em sociedade.2

Este processo interessa-nos antropologicamente porque desvela umaforma de tornar rediviva a cisão nós-eles dentro de uma mesma e co-mum sociedade que, sem pruridos, chamamos de “nossa” (na qual “eles”se incluem ou da qual se excluem) e não “deles”, sendo a diferençajustificada como um fato “da realidade” e não propriamente como umfato sociológico. A partir desta constatação “histórica”, por assim dizer,emergiu um outro tipo de universal: já que o passado nos ensinavasobre o presente, tornou-se possível afirmar que haveria classes popu-lares ou o seu equivalente em qualquer parte e em qualquer tempo. Apartir disso, em havendo grupos populares em todos os lugares, conse-qüentemente seria permitido realizar comparações entre os mesmos.Esse desdobramento possibilitou o exercício de contrastar estudos na

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procura de semelhanças e diferenças entre os grupos ditos popularesde lugares distantes. Não raro essas comparações se davam entre al-gum país considerado periférico em relação a um outro apontado comocentral (pensemos, por exemplo, no caso de Oscar Lewis e a cultura dapobreza mexicana ou nas teorias desenvolvimentistas que tornavamcontemporâneo o esquema cognitivo do evolucionismo). A obra dePierre Bourdieu e outros companheiros seus emergiu nos anos 1960em vagas de desconforto com relação a tal perspectiva (BOURDIEU,1977).

No que tange ao tema das classes populares, a produção desse grupode pesquisadores imprimiu uma inflexão nos padrões de investigaçãorecorrentes.3 No auge do estruturalismo, tais estudos nuançaram asdicotomias vigentes. Suas pesquisas, embora hoje possam parecer terarestas excessivamente aparadas, foram de fato revolucionárias, ao apre-sentarem uma concepção de estrutura social que não necessariamentese limitava a pares de oposição estanques (pensemos no contraste entrea análise dos camponeses solteiros vis-à-vis a cosmológica arquiteturada casa cabília).4 Não se tratava mais de analisar a diferença entre asclasses apenas sob o viés econômico.5 Uma miríade de categorias e modosde construir um problema sociológico tornou-se necessária a partir destemomento em diante para expressar a “condição de classe” dos traba-lhadores. Se lembrarmos Durkheim, Bourdieu e os seus exigiam queos fatos sociais fossem explicados por outros fatos sociais.

As idéias de estruturas de capitais ou de habitus constituíram o primeirogrande golpe daquilo que veio a ser denominado como “esporte decombate”: uma arte de defesa sociológica semelhante à razão práticaadotada pelos sujeitos que pesquisamos. O que se combatia com esseaparato conceitual em formação eram os estudos bidimensionais, aque-les em que se consideravam apenas duas variáveis em jogo e não raroem relação de oposição (PARSONS, 1974) como modelo de apreciaçãosociológica.

No que tange à “cultura popular” propriamente dita, combatia-se atendência a se pensar o local de trabalho como um lugar ou dedisciplinamento ou de reprodução da ordem hierárquica ou de inven-ção de uma forma de resistência. Ou a vida nas favelas, vilas e subúrbioscomo encurralada, miserável, ou genuinamente alegre.

Constatando que nenhum survey daria conta de capturar tal heteroge-neidade evanescente, esse grupo de pesquisadores reabilitou ainda astécnicas de trabalho de campo etnográfico (como preconizadas por

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Marcel Mauss) para deixar a sociologia se surpreender com o mundo àsua volta (WACQUANT, 2004). Seguiam então os passos de RichardHoggart, procurando compreender a cultura popular ou das classestrabalhadoras não como uma cultura degenerada, mas como formasmúltiplas de expressão e criação simbólicas que desafiavam uma supostaordem legítima (incluindo aí a ordem legítima no interior da sociologia).

Acredito que o grande legado desta fase, embora os estudos sobre edu-cação tenham tido uma repercussão crítica importante, sejam aquelessobre trabalhadores realizados na Argélia e na França. Essas pesquisasnão apenas cruzavam vários temas e problemas, como se adensavam aolongo dos anos com novas investigações feitas por pesquisadores cons-tantemente agregados ao grupo original (pensemos na linha que uneTravail et travailleurs en Algérie de 1963 a La misère du monde de 1993).Bourdieu (2005) a propósito deste período relaciona o estabelecimentode “sua” teoria a um conjunto de fatores dos quais se destacam a pes-quisa de campo e o consórcio de interesses pessoais e disciplinares dis-tintos voltados para a sociologia.

No entanto, apesar das boas intenções e dos resultados práticos dessaspesquisas, sua “reprodução” não se deu de forma tão libertária quantose poderia sonhar. As ditas obras teóricas advindas deste período (emgeral, textos reunidos sob a forma de coletâneas) também se transforma-ram em uma espécie de liturgia que figurou obrigatoriamente em boaparte dos estudos sobre cultura popular produzidos até os anos 1990.Não falo daquilo que Bourdieu (1996) chama de efeito de teoria – osefeitos do que escrevemos sobre o mundo, sobre nós mesmos. Refiro-me a um lado mais pernicioso da referência obrigatória que é a redu-ção do inaudito (evidenciado nos textos que com certo menosprezopor vezes são classificados como empíricos) ao modelo. Nesses casos,quem se ressente não é o mundo – que segue seu curso “escapando”dos enquadramentos –, mas a própria teoria sociológica que amordaçadaacaba sofrendo de inanição.

No caso específico da repercussão dos estudos de Pierre Bourdieu eseu grupo, tal efeito foi ainda mais perverso porque paradoxal, contra-riando os ditames de suas próprias investigações. Da recusa à dicotomia,passou-se ao aprisionamento em planos cartesianos. Como em um pas-se de mágica, muitos estudos sob esta inspiração se reduziam, por fim,a um conjunto de termos – campo, disposições, estratégias, conversão,estruturas de capital e habitus. A sociologia e outras disciplinas correlatas(da antropologia à pedagogia) combatiam agora tudo o que não cou-besse nesta linguagem, por vezes travestida em quadros (estatísticos ou

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não). Em pouco tempo, criou raízes e floresceu mais uma vez uma socio-logia da conservação.

Toda e qualquer sociologia da conservação não conserva somente omundo social, mas conserva a si mesma, fechando-se, protegendo-sede desafios e de mudanças. E, como conservadora que é, não se ressen-te de lançar mão dos trabalhadores para se locupletar academicamen-te. E este é o caso por excelência de todos nós envolvidos com pesquisasacerca da cultura popular. Nossa ilusão sustenta-se obviamente na crençacoletiva de que nada escapa aos nossos modelos sociológicos ou siste-mas classificatórios tidos como infalíveis.

Mas o que fundamenta essa crença por parte dos cientistas sociais? Paraenfrentar esta questão, evoco Charles Peirce, acreditando que este filó-sofo talvez nos ajude mais que outros a elucidar um conceito tão funda-mental quanto fugidio como “crença”.

A DÚVIDA COMO PROPULSORA DA MUDANÇA

Charles Peirce escreveu certa vez que

se o homem fosse imortal ele poderia estar perfeitamente seguro dever o dia em que tudo o que ele acreditou desafiar sua crença e, emsuma, se tornar miseravelmente desesperançado. Ele se desmorona-ria, como acontece com toda grande fortuna, com toda dinastia, comtoda civilização. No lugar disso temos a morte.6

A entronização de modelos teóricos nos obriga à suspensão das pesqui-sas de campo. Uma suspensão que não significa interrupção, mas isola-mento. Nosso procedimento passa a ser restrito: destacamos com nossaespátula teórica camadas de realidade que podemos apreciar por meiodas referências costumeiras. Tudo o que não pode ser assim classifica-do ou jogamos fora ou deixamos intocado. Procedendo desta maneira,evitamos qualquer surpresa ou, nos termos de Peirce, evitamos sujeitarnossas crenças a dúvidas.

Felizmente no final da década de 1990, uma onda de pesquisassocioantropológicas emergiu, alimentada pelos avanços anteriores, po-rém insatisfeita com a inadequação dos modelos às mudanças na vidasocial. Alguns desses trabalhos, bastante recentes, demonstram a im-portância de se desconfiar dos modelos estanques, privilegiando umdiálogo criativo com a inovação inerente à atividade de pesquisa. Épreciso ceder ao fato de que, em momentos precisos, são as teorias na-

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tivas, como diria Malinowski, que abrem nossos olhos para o que nãoconseguíamos ver como nossa sociologia.

Essa ressalva é importante para percebermos que ao apresentar umconjunto de textos que julgo representativo dessa guinada, estarei, aomesmo tempo, procurando indicar que mudanças ocorreram na vidadessas pessoas que acreditamos possuírem ou serem as depositárias deuma cultura popular. O movimento teórico não pode ser desvinculadode uma certa pressão das evidências.

Nas pesquisas de Lahire, Wacquant e Beaud e Pialoux, encontramostrês desdobramentos de uma matriz comum: a socioantropologia fran-cesa inspirada em Bourdieu. Em cada uma delas, perceberemos avan-ços em direções singulares que emergem de críticas a pontos específi-cos dos estudos que lhes antecederam. Essas críticas, como procurodefender, se definiram como movimento teórico a partir da parcial perdade eficácia das perspectivas sociológicas consideradas legítimas ante aosfenômenos relativos às culturas populares nos anos 1990.7

LAHIRE E A CULTURA DOS INDIVÍDUOS

Bernard Lahire é um sociólogo reconhecido por seus estudos sobreeducação. O principal objetivo de suas pesquisas tem sido demonstrarque não há uma equivalência a priori entre escola e cultura (no sentidode cultivo). Avançando sobre essas primeiras conclusões, Lahire abreseu mais recente livro, La culture des individus, trazendo o caso do Sr. W,que viremos a saber tratar-se de Wittgenstein. O foco de Lahire é arelação de identidade entre cultura de massa e cultura popular. Umarelação de homologia que ele procura problematizar a partir dos casosconcretos encontrados em sua pesquisa. O Sr. W não se trata de ummembro das classes trabalhadoras, tampouco sua cultura é popular, noentanto, apesar de membro da elite erudita, Wittgenstein apreciavacinema – um gosto que em nada correspondia ao seu “perfil”. Com estecaso “dissonante”, Lahire inaugura sua tese acerca das indeterminaçõesque cercam a composição do gosto dos indivíduos e, conseqüentemen-te, acerca dos desafios que tal fluidez e heterogeneidade impõem à so-ciologia.

Cada Sr. W que encontramos em campo é a um só tempo um membrode um grupo qualquer e um indivíduo singular. Segundo Lahire, oenquadramento deste sujeito em uma classe ou categoria é sempre umato arbitrário, ao menos mais arbitrário que sua classificação como in-divíduo. Por que razões, ele se pergunta, aos sujeitos de classes popula-

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res foi negada a condição de indivíduo? Por que ao Sr. W era permitidatal idiossincrasia, mesmo que esta permanecesse incompreendida e re-jeitada durante décadas (pensemos nas críticas da Escola de Frankfurt)?

Lahire mergulha então no estudo das propriedades sociais dos indiví-duos. Para ele, refutar essa dimensão individual assegura aos pesquisa-dores a certeza de estarem lidando com um “gosto natural”, isto é, umgosto de classe. Vemos que sua grande pesquisa (feita por meio de ques-tionários e conversas com mais de 3.000 pessoas com mais de 15 anos,se contrapondo a uma certa sociologia estatística da recepção cultural)ergue-se em contraste com La Distinction de Bourdieu.

Lahire acredita que na última década a busca pela contestação da or-dem cultural permitiu aos indivíduos se desviarem de suas marcas deorigem e que este fato não deve ser negado ou classificado pelos soció-logos como um subterfúgio, mas como uma outra realidade. Uma rea-lidade marcada por múltiplas orientações no mundo (TAMBIAH, 1996).Essa constatação incita o autor a formular uma outra tese que se con-trapõe a Bourdieu: além das variações intra-individuais, devemos co-meçar a perceber uma imensa diversidade de ordens de legitimidadecultural. Não há uma oposição absoluta entre sagrado e profano. Osindivíduos podem alternar práticas legítimas e ilegítimas, dependendodo domínio cultural em que se encontram. Lahire acredita que Bourdieunão levou em conta o “contexto da situação” (MALINOWSKI, 1923)quando empreendeu suas análises que deram origem a tipologias egráficos de dispersão. Seu argumento recupera muito do legado deHoggart, para o qual não podemos dizer que o mundo social viva só deestetas ou de excluídos. Nós seríamos e nossos pesquisados também, namaioria das vezes, sujeitos híbridos, visto que estaríamos todos vulne-ráveis a deslocamentos sociais contínuos (grandes e pequenos). Essaperspectiva conduz Lahire a lançar mão do termo dissonante, que passaa ser central em sua análise de entrevistas atentas às circunstâncias in-dividuais. Para ele, a resposta do pesquisado depende do momento suigeneris em que este é interpelado – seja o da própria entrevista ou docaso e momento concreto a que o indivíduo alude para responder àsquestões propostas (e.g. como influem em suas decisões as companhiasdas quais se cerca).

Essa perspectiva permite a Lahire observar ainda que ascensão e declíniosociais não são movimentos inerciais unos. A mobilidade, para cima epara baixo, pode acontecer em termos sociais, escolares e profissionais.Não necessariamente nesta ordem, nem de modo concomitante. A par-

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tir da idéia mestra de contestação da ordem, Lahire consegue ainda obser-var que, sobretudo, os jovens encontram-se sujeitos a um triplo cons-trangimento: além da escola e da família, seus pares são uma fonte de(des-)estabilização. O contraste entre essas instâncias evidencia para oautor o caráter profícuo de uma apreciação cultural que contemple amistura de gêneros em vez do purismo. Essa abordagem visa observaras guerras simbólicas travadas dentro de um grupo que, de outras for-mas, poderia ser visto como homogêneo:

O número de lutas simbólicas é proporcional ao número de gênerose subgêneros culturais diferenciados (musicais, literários, televisivos,cinematográficos, etc.) [...] [e] cada variação de um nível de legitimi-dade cultural a outro adquire subjetivamente um sentido positivo ounegativo, de elevação ou rebaixamento, de subida ou de descida, deavanço ou de regressão [...] [e] mesmo aqueles que declaram práticasconsideradas pouco legítimas em um mundo do qual não sentem ver-gonha, não esquecem as hierarquias entre as suas diferentes práticas(LAHIRE, 2004, p. 672-673).

Lahire advoga, assim, em favor de uma sociologia da socialização quebusca menos que uma sociedade um homo multiplex (LAHIRE, 2004, p.710). Em vez da homogeneidade, o autor advoga em favor de pesqui-sas que procurem encontrar a distinção no interior dos grupos sociais.Tal busca nos conduz, no limite, à contestação do próprio conceito desociedade8 em prol de uma noção mais ampla de socialidade entre indi-víduos.

BEAUD E PIALOUX E OS TRABALHADORES SEM EMPREGO

Se em Lahire o tema da educação como porta de acesso à cultura popu-lar foi posto em debate, em Violances urbaines, violance sociale estamosdiante da outra parte da dobradiça que teoricamente tem articulado ostrabalhadores na literatura sociológica (como, por exemplo, em PaulWillis): a cultura da fábrica.

Depois de haverem estudado mudanças nas práticas e, conseqüente-mente, no sentido de “ser operário” em uma cidade voltada para ointerior de uma fábrica de automóveis, nesta obra mais recente os auto-res dedicam-se sobremaneira à geração mais jovem, por eles nomeadacomo “geração precária”. Embora parte desta juventude aspire a umaidade de ouro marcada pelo emprego estável, a realidade vivida por

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todos é bem diferente. Escorregando de um “estágio” (trabalho tempo-rário) a outro, sem jamais serem contratados, esses rapazes e moçassofrem em seu cotidiano o sentido contemporâneo de ser trabalhador:a falsa entrada no mercado de trabalho.

O foco desta pesquisa se expandiu do pátio da fábrica para a cidade,para os locais de moradia dos trabalhadores (da geração anterior) e foiaí que se depararam com os filhos – escolarizados – e, paradoxalmenteou talvez mesmo por causa disso, alinhando-se em filas diárias nas ins-tituições de “orientação profissional”. De caráter mais etnográfico queo estudo de Lahire, aqui vemos pessoas concretas que nos são gradual-mente apresentadas, visto que para conhecer bem qualquer uma delasfaz-se imprescindível acompanhar eventos importantes que marcarama vida de todos os demais. O quebra-cabeça só se monta ao final daobra.

Da observação desses locais em que se busca um estágio, Beaud e Pialouxdescobrem que um certo grupo de jovens considera preferível conse-guir uma “ocupação” (um bico, um “período de experiência” de trêsmeses) a estar desempregado. Para essa parcela da juventude, ter umtrabalho implica ainda ocupar um lugar na cidade.

Entretanto, acompanhando o cotidiano dessas instituições, torna-seevidente que parte dessa importância do emprego se deve não mais aosvalores operários de outrora (BEAUD; PIALOUX, 1999), mas à im-portância inusitada de tais escritórios para a organização social dessesbairros também precários. Nesses locais se alimenta um sonho de futu-ro, se administram pequenas doses de violência civilizatória com traçosestatais. As filas de espera e as consultas com os conselheiros tornaram-se ambiente de uma outra socialização que já não possui mais o chão dafábrica ou os muros escolares para brotar.

Esta mudança indica transformações drásticas naquela cidade até osanos 1990 caracterizada por uma transmissão de saber ou reproduçãoda tradição baseada em laços de parentesco, camaradagem, vizinhan-ça, militância sindical e amizade. Sem essas redes, tecidas desde os maistenros tempos, os jovens em busca de um emprego confrontam-se comum mundo repleto de papéis e de funcionários que lhes aconselham,que lhes ensinam a acreditar que vale a pena buscar um emprego. Pro-cesso de convencimento que se dá porque ambas as partes se engajamem tal tarefa: os conselheiros, por um lado, agindo como empreende-dores da moral e os jovens, sobretudo as mulheres, reconfigurando

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suas aspirações vezes sem fim, para se adequarem a este código de es-perança.9

Os autores perguntam-se em que medida a escolarização em massa ocor-rida durante a última década marcada pelo fechamento das fábricasnão se tratou de uma atitude totalmente inconseqüente que hoje sedepara com um dilema sem precedentes: de que servem as estatísticassobre as altas taxas de escolarização se não há futuro para esses rapazese moças cujos pais, em sua grande parte norte-africanos (SAYAD, 1991),tampouco têm um posto de trabalho?10

Diante de tais transformações, como continuar atrelado a uma sociolo-gia que pense exclusivamente em “estratégias” como abordagem paraa “reprodução familiar”? A saída encontrada pelos pesquisadores, em-bora peculiar, guarda certa semelhança àquela tomada por Lahire. Aquitambém o “exame detalhado das histórias individuais dos jovens”(LAHIRE, 2004, p. 337) parece fornecer uma pista para compreender-mos a identidade blessée dessas moças e rapazes (p. 51). Gradualmente,a partir da transcrição de diários de campo e de trechos de entrevistasexemplarmente contextualizadas, somos apresentados ao fim da cultu-ra anti-escolar (como encontrávamos em Willis) e também ao fim dacultura do saber prático. Escolarizados, porém munidos de “diplomasruins”, essa juventude degrada-se como mão-de-obra barata em estágiosintercalados pelo desemprego que, em alguns casos, já dura quase umadécada.

O passo seguinte dessa investigação foi compreender qual o efeito detais estágios (BEAUD; PIALOUX, 2003, p. 95) sobre o que até entãoera um dos pilares da sociologia dos trabalhadores: a identidade profis-sional. Observando diferentes experiências, os autores identificam que,mais do que por causa de uma qualificação específica (como em geralacontecia na geração anterior), obtêm emprego aqueles jovens que seconvencem que foram “selecionados” por serem “polivalentes”, por“saberem trabalhar” (p. 141).

A maioria, no entanto, não se enquadra neste modelo que, por razõesevidentes, tende a não ser inclusivo. Além de não se reproduzirem con-forme os moldes da geração anterior, esses jovens desconfiam dos maisvelhos e também de seus contemporâneos que conseguem algum bico.Para esses, os conselheiros são vistos como empregadores que não osaceitam. Para os homens, em especial, esta passa a ser uma questão dehonra quando percebem que seu modo de ser, seu machismo é conde-nável nesses ambientes que privilegiam as mulheres porque elas cum-

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prem funções operárias sem se engajarem em relações de camarada-gem tradicionais (como a sindical, por exemplo, que exigiria, segundoos autores, uma formação militante ou uma certa desconfiança em rela-ção à cultura escolar legítima que as mulheres, por terem estudadomais, não conseguiriam esboçar) e também por receberem menos doque se pagaria aos homens. O que poderia parecer uma reversão doequilíbrio entre homens e mulheres (ELIAS, 1987) trata-se, em suma,de uma fragilização salarial de todos esses trabalhadores que incidesobre as mulheres.

O quadro traçado leva Beaud e Pialoux a forjarem a expressão “plenoemprego precário” (2003, p. 263) que envolve uma diminutas parcelada população destas pequenas cidades que viviam para as fábricas. Equanto aos demais?

Demitidos, sem chance, os jovens, sobretudo os homens, passam a as-saltar para ganhar algum dinheiro. São nessas práticas que os autoresidentificam uma chave para pensarmos uma possível cultura popularcaracterística do final dos anos 90: uma cultura de rua, marcada pelarevolta, pela discriminação racial e por atitudes de confronto e despre-zo pelos emblemas da sociedade francesa. Poderíamos fazer exercíciosfuturos para identificar equivalentes deste “francês” para outros casos.

Tal deslocamento de perspectiva permitiu a Beaud e Pialoux compreen-derem, em vez de uma suposta anomia, um outro tipo de socialização:uma socialização “territorial” (2003, p. 291), marcada por um sensocoletivo que se sustenta exatamente pela distância desse jovem do do-mínio do trabalho, percebido como o lugar por excelência da fragmen-tação, da individualização, da perda do amor próprio, do exercício dabajulação. Esses rapazes preferem tomar o bairro de assalto em reaçãoà despossessão social que lhes é atribuída, passando a exercer seu po-der (masculino notadamente) em espaços públicos.11 Os autores classifi-cam o que normalmente é visto como controle de um território porjovens desnorteados e agressivos12 como “cultura da provocação” (p.339), isto é, como um sinal da lucidez social desses rapazes. Gradual-mente percebemos que além de serem trabalhadoras, as mulheres naperiferia são o alvo preferencial dos ataques desses rapazes que assimcolaboram para colocá-las em um beco sem saída (p. 357). Elas, ao fim,acabam “beneficiárias” de “trabalhos sociais” que por razões estruturaisnão conseguem (e talvez não devam jamais conseguir, se pensarmosneste problema desde Carol Stack) dar conta da degradação econômi-ca e social desses grupos de trabalhadores ocorrida nos últimos 20 anos.

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Sem fechar as possibilidades de interpretação, demonstrando que a cadainvestimento de pesquisa novas facetas da vida dos grupos popularesemerge, os autores dedicam-se ainda a discutir os casos desviantes, istoé, o daqueles jovens que enveredam pelo caminho da universidade comouma forma de escapar do veredicto do mercado de trabalho, como umaforma de fugir do ou ao menos mascarar o racismo difuso que incidede modo ainda mais brutal sobre aqueles que não freqüentam os ban-cos das faculdades (BEAUD; PIALOUX, 2003, p. 335). Grande partedesses jovens não logra concluir o curso universitário iniciado.

Outra situação, menos demonstrada, mas aludida e que nos serve dealerta é o engajamento de alguns jovens nos projetos sociais que têmcomo alvo o próprio bairro em que vivem. Esse fenômeno seria maisum emblemático das contradições em que está submersa esta juventu-de. Afinal, escolhidos por serem em tese porta-vozes do povo, da vizi-nhança, gradualmente, esses rapazes e moças aprendem a falar a lin-guagem dos projetos e, ao fim de algum tempo, encontram-se no meiodo caminho: não são mais identificados e acreditados como “um dosnossos” no lugar onde moram e tampouco deixam de ser vistos comoperiféricos pelos militantes-missionários que fazem visitas esporádicasà periferia. Nas palavras de Beaud e Pialoux, a participação popularnão é uma variante da cultura popular, e os projetos nada mais fazemdo que iludir os sentidos.

WACQUANT E O GUETO ABORDADO EM DUAS FRENTES

Loïc Wacquant por diversas razões tornou-se uma referência recorren-te no que tange a estudos sobre cultura popular nos anos 1990. Seualvo empírico são os guetos norte-americanos, termo que o autor de-fende orientado por sua perspectiva teórica. Já seu fito acadêmico é aprodução de e para think tanks, mascarada pela pretensa isenção acadê-mica (BOURDIEU; WACQUANT, 1998). Seus ataques dirigem-se ain-da às etnografias “românticas” que reduziriam os processos sociais aum estado “estático” (a Zustandreduktion a que se referiu Norbert Elias),passivo e conseqüentemente passível de ser alterado pelo Estado.

A principal característica dos trabalhos criticados por Wacquant seria afalta de uma determinação dos mecanismos de “destituição material eexclusão racial” que perpassam a vida dos moradores dos guetos. Noentanto, crê Wacquant, essa revelação não se dá como um passe demágica e sim por meio de um envolvimento etnográfico de longaduração.

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Esta carta de princípios desse pesquisador é levada a cabo de diferentesformas em suas próprias pesquisas, como frisa Fonseca (2005). Seustextos são por ora bastante genéricos e orientados por um salvacionismomoral que pouco nos ensina “sobre as ambivalências e ponderações deseus informantes frente aos densos processos sociais e políticos de suaexistência” (p.128).

Por outro lado, em seus artigos baseados em amplas pesquisas estatísti-cas que tratam da morfologia e dos efeitos sociais do sistema carcerárioe de controle social por meio da assistência governamental aos mora-dores negros de guetos norte-americanos, Wacquant segue de perto ospreceitos de Bourdieu, tratando a diversidade a partir de uma teoriasobre as estratégias e trajetórias possíveis no espaço social (WACQUANT,2001). Em parte desses trabalhos, Wacquant consegue aproximar-se defatos sociais concretos e significativos, como em Corpo e alma – exemplode estudo etnográfico, cuja formulação teórica dialoga e desafia as pes-quisas sociológicas em ambientes urbanos. Wacquant sugere e defendea partir desta obra que a etnografia deve ser invariavelmente “guiadapela teoria” (WACQUANT, 2002b, p. 1523) e “organicamente ligada aopoder e à diferença” (p. 1526).

Esse investimento peculiar de Wacquant nos indica uma outra veredapossível de ser trilhada por aqueles que se ressentem da impotênciados modelos analíticos usuais. Colocando-se como parte do processode conhecimento – como aprendiz de boxe –, Wacquant avança emrelação a um dos últimos empreedimentos de Bourdieu: a idéia de umasocioanálise, ou seja, de uma possibilidade de traduzir os problemasnativos em sua forma autoconsciente. Para Wacquant, este se trata deum objetivo a um só tempo teórico e político. Teórico porque de fato talconhecimento por meio das teorias nativas constitui o âmago de umanoção fundamental de teoria etnográfica, e político porque, medianteseus ensinamentos aos antropólogos, os nativos – sobretudo aquelesvilipendiados pela exploração capitalista contemporânea – exercem deforma contundente seu ponto de vista analítico e crítico (BORGES,2005).

No estudo em questão, é por meio do corpo, dos ensinamentos do boxepara Wacquant e seus companheiros do Gym que essa teoria nativa dacultura do gueto (uma outra variante da cultura popular atualmente) écompreendida e expandida.

Trazendo à tona as vidas de seu velho treinador e dos aprendizes que ocercam, saindo do oásis que é o Gym para lutas e campeonatos, circu-

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lando pelas redondezas acompanhando seus parceiros que buscam umbico (alguns depois de terem sido presos), Wacquant empreende umainusitada análise histórica e materialista, tratando de forma sutil detemas clássicos que não surtem mais efeito sociológico se antecedidospor uma teoria prescritiva que invariavelmente considera a realidadeinadequada ou aquém do ideário de uma classe dominante – aquela daqual faz parte o pesquisador.

Contrapondo-se em alguma medida, embora não absolutamente, à cul-tura de rua, o Gym constitui-se como um espaço em que a alienaçãogarante a proteção daqueles que o freqüentam como uma espécie detemplo, afinal, como diz Wacquant, “ninguém tem um saco de areia emcasa” – para treinar é preciso estar junto dos demais e, estando ali, nãose está em outras partes: seja se envolvendo em atos de agressão nãoregrados pelos preceitos do boxe, seja macerando o pântano das filaspor emprego ou por assistência social (ou seja, “fora” dos espaços sociaispesquisados por Beaud e Pialoux).

É desta forma – tangencialmente – que somos apresentados ao quadrocontemporâneo de estratificação social nos Estados Unidos, aos efeitosda desindustrialização e do racismo, pontos que convergem na consti-tuição de um amálgama em que se combinam estruturas de classe, de-sigualdade de casta, destituição material e exclusão racial. Essa espéciede quintessência da vida dos moradores do gueto, no entanto, é com-preendida como um produto do Estado de Penitência (em oposição aum ideal Estado de Providência Social) e não como uma chaga que estemesmo Estado estaria disposto a curar.

CONCLUSÃO

Poucos anos depois da publicação de The uses of literacy (1957) deHoggart, Ken Loach, cineasta britânico, realizou um documentário(ficcionalizado) chamado Cathy come home. O filme inicia com um ro-mance, um namoro. Essas primeiras imagens em tudo lembram os fil-mes da Nouvelle Vague francesa: um casal jovem, charmoso, enlaçado napaisagem outonal. O mundo, no entanto, não tarda a desmoronar so-bre suas cabeças, logo após seu casamento. E este desabamento não éde ordem existencialista como se costumava representar.

Com os filhos surge para os amantes o problema da moradia. Em pou-cos minutos, somos transportados de meados da década de 1960 à In-glaterra descrita por Marx e Engels. O jovem casal é impedido pelosassistentes sociais de viver com sua família em um lar pequeno e degra-

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dante. Porém, sem recursos para pagar por uma moradia que fosseconsiderada digna, começam um longo caminho ladeira abaixo. Inicial-mente são expulsos da casa da mãe do rapaz, depois passam a viver embarracos, em trailers, em invasões. Expulsos de todas as situações sãoacolhidos temporariamente em diversos abrigos que, por ordenaçõesmorais, acabam separando fisicamente o casal. Ao fim de tudo, só ve-mos a mulher, sozinha, vagando à deriva, sem os filhos que “eles” tira-ram dela.

Certamente não foram as obras fundamentais de Marx e Engels as res-ponsáveis pela semelhança entre a vida desses personagens e a de ou-tros tantos nos anos 1960 do século XIX. No entanto, com este caso,alheio às pesquisas em ciências sociais, é possível chamar a atenção paraoutras formas de apreciarmos mudanças no mundo social que nosalertam: a) para o caráter rígido de alguns de nossos esquemas analíti-cos; e b) para a importância da recuperação contínua, cotejada comtrabalhos de campos renovados, dos clássicos de nossas disciplinas.

De Cathy come home a Bread and Roses, do mesmo Ken Loach, temos umpercurso com o qual ainda há o que aprender. Enquanto boa parte dasociologia dedicava-se a corroborar o fim do trabalho, no início dosanos 1990, Ken Loach trazia-nos um caso diferente. Quem assistiu aofilme se lembrará que estamos agora em Los Angeles, nos anos 1990.Apesar do apregoado fim de tudo – da dita era dos extremos –, vemosmais uma vez um jovem casal fadado à separação. Ela migrante mexi-cana que trabalha ilegalmente como faxineira. Ele um sindicalista quese dedica a organizar manifestações políticas pelo cumprimento das leistrabalhistas.

Na década seguinte, Loach produziu uma nova obra, Sweet Sixteen, quetranscorre no mesmo cenário de seus filmes e documentários sobregrupos operários. No entanto, neste filme, a exemplo do que apresen-tam, sobretudo, Beaud e Pialoux e Wacquant, também em Glasgow, opersonagem principal, um adolescente (filho único de uma mãesubmersa socialmente por seu envolvimento com o tráfico e consumode drogas) procura salvá-la e salvar a si mesmo pela única porta que lheparece aberta: o próprio tráfico. Se em Cathy havia a crença no WelfareState e se em Pão e rosas víamos uma migrante mexicana ainda sonhan-do com o eldorado nos Estados Unidos, com a salvação pelo trabalho,aqui não temos mais o operário, e nem mesmo a assistência social con-segue manter aceso qualquer vestígio das estruturas de outrora. Aofinal de Sweet Sixteen, estamos mais uma vez diante de um personagem

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errante – com uma importante diferença: sem acreditar mais em umacultura trabalhadora, da pobreza ou popular.

Este cineasta britânico e sua obra nos oferecem um parâmetro externobastante importante para refletirmos sobre os perigos da inércia emnosso ofício. Algumas de nossas apreciações ditas “científicas” separam-se por uma linha tênue dos modos de apreciação e intervenção dosagentes de governo (e hoje de não-governos) que incidem sobre pessoasque insistimos em classificar a partir de sua “cultura”: os populares. Nofundo temos em comum a sanha classificatória, afinal, nada que umtrabalhador ou pobre (a nomenclatura escolhida já se vincula a umdesejo de nomear como abordado no início deste texto) faz pode nosescapar. Nem aos cientistas sociais, nem aos governos.

Usando um termo do cinema, podemos nós, cientistas sociais, continuaracreditando nestes enquadramentos?

Ao longo deste texto procurei discutir três modalidades de aproxima-ção e análise da vida cotidiana dos grupos trabalhadores que enfren-tam a “diferença” contemporânea que marca suas vidas em relação adiversos tipos de “outros” que povoam as cidades. Em cada uma dessaspropostas é possível perceber algum avanço em relação às perspectivasteóricas anteriores. Obviamente nenhuma é acabada, definitiva, aplicá-vel a qualquer contexto. Todas têm como característica fundamental apesquisa empírica pontual – e nos casos de Beaud e Pialoux e Wacquant,não só “empírica”, como etnográfica. Este último adendo não é casual:precisamos praticar nosso ofício de maneira inquieta, desestabilizandonossos fundamentos teóricos, assentando outros a partir de novas pes-quisas.

Acredito, enfim, que nossos questionamentos sobre o estado atual dasteorias sobre culturas populares contemporaneamente não devem emhipótese alguma se desvincular do arejamento constante com que aspesquisas de campo nos agraciam. É preciso que nos perguntemos, comofez Lahire, de que gostam aquelas pessoas que nos recebem como pes-quisadores? Ou como inquiriram Beaud e Pialoux, a que se dedicam ostrabalhadores atualmente? Como todos os autores expostos propõem,devemos encarar o mundo social no tempo presente não como a mesma realidadede décadas atrás etiquetada com outros rótulos, mas como uma outra realidade.E, como se vê em algumas etnografias contemporâneas, tal postura nãoresulta de uma mera vontade do pesquisador, mas de um confrontoreal com símbolos, objetos e lugares que se transformaram: como oGym de que trata Wacquant, um lugar que já não é mais o que fora em

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outros tempos, porque o mundo que o circunda e as pessoas que nelevivem mudaram.

ABSTRACT

Bourdieu’s and his team sociological production is considered a turningpoint concerning popular culture. After the routinization of their sociologi-cal contributions another set of case studies points to a contemporary trendabout the same subject. This article review takes on account some of theserecent books (e.g. Beaud & Pialoux, Lahire, Wacquant) as paradigmaticof a recent approach on worker’s everyday life.Keywords: worker’s anthropology; popular culture; class struggle.

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NOTAS

1 Agradeço as leituras de Leandro Saraiva, Lygia Sigaud e Mariza Peirano.2 Não devemos esquecer que sempre foi feito o registro oficial ou literário da vida cortesã, aristocrática ou

burguesa e que historiadores como E.P. Thompson, não poupando esforços em escavar o passado, consegui-ram produzir conhecimento sobre grupos populares cuja experiência fora até então obliterada ou, não raro,caricaturizada sob forma de lendárias aberrações.

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3 Para o papel crucial da obra de Bourdieu na sociologia sobre grupos de trabalhadores feita no Brasil, verLeite Lopes (2003).

4 Refiro-me aos textos “Célibat et condition paysanne” de 1962 (BOURDIEU, 2002) e “La maison kabyle ou lemonde renversé” (BOURDIEU, 1970).

5 Cf. Roman (2002).6 Livre tradução de “If man were immortal he could be perfectly sure of seeing the day when everything in

which he had trusted should betray his trust, and, in short, of coming eventually to hopeless misery. Hewould break down, at last, as every great fortune, as every dinasty, as every civilization does. In place of thiswe have death.” (The doctrine of chances, 1878).

7 Florence Weber, em seu estudo sobre atividades que recheiam a vida de trabalhadores – o que ela chama detravail à-cotê – e que em geral foram negligenciadas nos estudos sobre esses grupos, pergunta-se se essaspráticas de “lazer” não existiam antes ou se a sociologia não possuía olhos para as perceber.

8 Cf. Strathern (1996).9 Para uma reflexão sobre o papel dos documentos como símbolos dotados de uma dupla dimensão, relaciona-

da ao indivíduo documentado e também ao espírito da nação ou ao estado burocrático, ver Peirano (2001).Em Borges (2003), trabalhei à exaustão essa abordagem interpretativa para as diversas experiências dosmoradores do Recanto das Emas, cidade nas cercanias de Brasília, a respeito da relação entre a posse e o usode documentos pelos beneficiários e por funcionários do governo distrital envolvidos com a distribuição delotes de terra.

10 Um desdobramento dessa constatação se deu de forma curiosa. Um jovem norte-africano (Younes Amrani),depois de ler 80% au Bac, et après?, de Stephane Beaud, escreveu-lhe falando da pertinência de sua análise.Da troca de correspondência entre os dois, resultou uma sociologia epistolar feita a quatro mãos.

11 Bourgois trata de um caso semelhante ao abordar etnograficamente o cotidiano de traficantes de crack emNova York.

12 Os autores criticam aqui aqueles estudos que vêem tais jovens como os depositários de um mal difuso, comouma “nova classe perigosa” (BEAUD; PIALOUX, 2003, p. 382). Para reflexões a respeito no Brasil, verCaldeira (1992) e Zaluar (2004).

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RESENHAS

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GAUSSOT, Ludovic. Modération et sobriété. Études surles usages sociaux de l’alcool. Paris: L’Harmattan, 2004.

FERNANDO CORDEIRO BARBOSA*

São muitos os pontos de interesse que chamam a aten-ção nesse livro de Gaussot. Destaco aqueles que se apre-sentam como referenciais metodológicos para eviden-ciar os estudos sociológicos como forma singular deentendimento do caráter social do consumo de bebidasalcoólicas, objetivo central do trabalho. Nesse sentido,ele constrói o texto pela contraposição às concepçõeshegemônicas das ciências naturais, principalmente damedicina, e pela ratificação dos princípios disciplinaresdas ciências sociais estabelecidos especialmente a partirde Durkheim e Mauss.

O autor, posicionando-se como cientista social, investena sistematização de proposições disciplinares necessá-rias à realização de um trabalho de característica socio-lógica. Ele exalta a necessidade de se desvencilhar dainfluência do olhar da medicina sobre o tema daalcoolização, pela construção das bases epistemológicasfundantes do olhar sociológico. Por isso, adianta: nãocabe ao sociólogo dizer se o alcoolismo é ou não é umadoença, pois que não é médico. Não se trata, da mesmaforma, de dizer se a alcoolização é um mal ou um bem.Contudo, também não basta simplesmente marcar po-sição mediante uma contraposição disciplinar. Trata-se,sim, de contribuir analiticamente para a compreensãode um fenômeno complexo, com múltiplas implicaçõese diferentes pontos de vista.

Um dos grandes méritos do trabalho do autor édesmitificar a homogeneidade da visão médica,contextualizando o discurso sobre o alcoolismo. Primei-ro, porque no campo médico há distintas visões sobreos efeitos do consumo de bebidas alcoólicas: há teoria

* Doutorando em Antropo-logia pelo Programa dePós-Graduação em Antro-pologia da UFF.

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que versa sobre o alcoolismo como uma perturbação do metabolismocerebral, implicando lesões internas; há concepções de cunho psicoana-lítico, que se esforçam em valorizar os conflitos psíquicos e compor-tamentais do alcoólatra; e há os que concebem o alcoolismo como ummal biopsicossocial, valorizando o sofrimento do alcoólico, aliás, aspec-to que aglutina pontos de convergência de diferentes estudos sobre oalcoolismo. Segundo, pelo fato de a visão médica não ser destituída eisolada do contexto social, havendo confrontação e incorporação depráticas e discursos de diversos agentes sociais pertencentes a diferen-tes campos de atuação. Assim se evidenciam os embates analisados peloautor sobre as campanhas de antialcoolização realizadas na França.Cumpre, então, destacar que ele é bastante cioso para não se deixarlevar por discursos fáceis e simplificadores da própria visão médica,mesmo que seu intuito seja de apontar outro pressuposto analítico.

Gaussot, ainda travando um debate com o discurso médico, é analitica-mente primoroso, ao afirmar que as representações coletivas origináriasdas experiências ordinárias são mais pragmáticas e operatórias que asdas campanhas de informação e prevenção do alcoolismo, baseadas nasanálises biomédicas. Para o autor, mesmo existindo uma vulgarização eaté mesmo uma aceitação relativa do saber médico, há uma valorizaçãodas formas de representações tradicionais. O saber médico, centradosobre as feições orgânicas e psicopatológicas e balizado em torno dacategoria da dependência, fica preterido pelo saber fundado sobre asrepresentações corriqueiras do senso comum, que enfatizam o alcoolis-mo como uma conseqüência moral e social.

Um outro ponto a ser observado na leitura do livro de Gaussot é suacontribuição para a construção de referenciais metodológicos sobre oestudo sociológico da alcoolização. Gaussot ressalta a necessidade dorespeito do pesquisador à concepção do grupo pesquisado. Explicitaque as visões externas ao grupo sobre a alcoolização geralmente visamatribuir um comportamento inaceitável à maneira de viver do grupode bebedores qualificados como excessivos. Reside aí, talvez, a grandediferença do trabalho dos sociólogos em relação aos outros profissio-nais, como os da medicina, ao estudarem maneiras de beber. Argumen-ta o autor que a análise sociológica tem a obrigação de primar pelocuidado na utilização de termos empregados, evitando-se estabelecerconotações que não sejam as do grupo pesquisado. O cientista social,ao se dedicar ao empreendimento para a compreensão das categoriasutilizadas pelo grupo estudado, pode refletir as implicações das práti-

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cas sociais como quadros sólidos que encerram o pensamento, sendopraticamente inseparáveis do funcionamento da sociedade.

O conceito de representação social, nesse sentido, é valorizado peloautor, pois o que está posto em eminência é a construção mental de umsistema cognitivo com lógica própria, que participa da construção socialda realidade. O alcoolismo, o alcoólatra, o doente, o bebedor, o embria-gado, o bom bebedor, o bebedor social, o bebedor excessivo e tambémo abstinente são categorias de significados complexos e confusos, queordenam boas e más maneiras de beber. E, mais do que isto, de ser eestar no mundo.

O autor, mais que tudo, convoca os cientistas sociais a se desvencilha-rem das prenoções e dos julgamentos morais, tarefa não tão fácil emenor, uma vez que o tema é carregado de apriorismos e de julgamen-tos de valores. Isto não implica dizer, todavia, que o cientista social devadesprezar o onipresente julgamento moral, pois se ele existe éconstitutivo da sociedade. Portanto, deve ser considerado nos estudossobre alcoolização porque é parte do mesmo fenômeno.

Para o autor, o desafio que está posto aos cientistas sociais é não realizaro estudo a partir do alcoolismo, como geralmente é feito. Gaussot pro-põe outro tipo de abordagem: o pressuposto dos estudos sociológicos ébuscar entender, não a questão de como ou por que acontece o desvioalcoólico, mas, inversamente, compreender a questão do por que odesvio não ocorre em todos casos. Em vez de interrogar as causas ou asrazões do porquê se começa a beber e, eventualmente, a desenvolveruma patologia, a preocupação é compreender como é pensada e defi-nida a normalidade e, por conseqüência, o desvio. Trata-se, portanto,de estudar a construção social da norma e da normalidade.

Para fundamentar tais premissas, o autor investiu em pesquisa que vi-sava reconstruir as lógicas que presidem os discursos e as representa-ções de funcionários qualificados de uma empresa pública na França,na maioria homens, pertencentes e possuidores de um padrão de vidade classe média, que, recentemente, tinham-se submetido a uma cam-panha interna sobre o risco do consumo de bebidas alcoólicas. A pes-quisa buscou incentivar essas pessoas a falarem de suas práticas, valo-res e conceitos sobre a ingestão de bebidas alcoólicas, seja do bom oudo mau beber, objetivando analisar as estruturas mentais destes agen-tes em relação à alcoolização. Os discursos recolhidos combinavam des-crição densa de práticas, pessoais ou dos outros bebedores, e narrativas

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fantásticas ou dramáticas sobre a embriaguez, considerando as ima-gens atribuídas a eles próprios e aos outros.

O autor constata que, entre os entrevistados, é muito mais comum sefalar do desvio, do alcoolismo e dos alcoólatras do que da normalidade.Além disso, não é de si que se fala, ao menos diretamente e de formaexplícita, mas dos outros. Falar das más maneiras de beber consiste,assim, num meio de afirmar diferença em relação aos outros, a partirda construção de uma identidade positiva para si, ou seja, o da pessoamoderada, que sabe beber, enquanto os outros, os desviantes, são des-providos da sobriedade e do saber viver. O saber-beber, todavia, não ésomente um conhecimento de técnicas e receitas ou uma competência,mas um julgamento moral e social que se organiza em torno de certasregras de representação e significação. O saber-beber, portanto, é sinô-nimo de moderação e sobriedade, termos emblemáticos que conferemtítulo ao livro.

A análise das representações das maneiras de beber, conformemetodologia proposta por Gaussot, possibilita conhecer tanto a norma-lidade social como a construção dessa normalidade. Por esse aspecto, epelos demais atributos explicitados nesta resenha, o livro de Gaussot éde extrema importância para os que abraçam essas temáticas e ques-tões. Contudo, o texto perpassa a análise da alcoolização, sobretudopelo primoroso cuidado com a explicitação dos princípios metodológicospor ele adotados.

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SANTOS JÚNIOR, Orlando Alves dos; RIBEIRO, L.C. de Q. & AZEVEDO, Sérgio (orgs.) Governançademocrática e poder local: a experiência dos conselhosmunicipais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 2004.

PARTICIPAÇÃO SOCIOPOLÍTICA NOS CONSELHOS

GESTORES DAS REGIÕES METROPOLITANAS

DEBORA CRISTINA REZENDE DE ALMEIDA*

Os conselhos gestores representam uma expressão da“nova institucionalidade” brasileira pós-constituinte ese inserem no processo de descentralização que trans-feriu para as unidades subnacionais – estados e municí-pios – a responsabilidade decisória sobre políticas pú-blicas e serviços, que antes não lhes eram afetos, e numaperspectiva participativa, possibilitando o controle dasociedade sobre sua elaboração e fiscalização.

Estas experiências de práticas participativas se intensi-ficaram nos anos 1990 e passaram a ser objeto de pes-quisas no campo das Ciências Sociais. Nesta tendência,o livro organizado por Santos Júnior, Ribeiro e Azeve-do (2004) apresenta uma avaliação sistemática e globaldo impacto da participação “conselhista” sobre a esferamunicipal a partir dos resultados da pesquisa1 realiza-da nas regiões metropolitanas (RM’s) do Rio de Janei-ro, Belo Horizonte, São Paulo, Recife e Belém e poste-riormente em Curitiba e Porto Alegre. Duas questõesorientaram a investigação:

a) Seriam os conselhos municipais a expressão da emer-gência de um novo regime de ação pública, decor-rente tanto do fortalecimento da esfera municipalde governo quanto da maior presença dos atoressociais na cena pública?

b) A experiência dos conselhos municipais podeaprofundar nossa democracia e possibilitar a insti-tuição de modelos mais democráticos de gestãomunicipal? (SANTOS JÚNIOR, RIBEIRO & AZE-VEDO, 2004, p. 8).

* Universidade FederalFluminense – Mestrandaem Ciência Política.

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A proposta do livro consiste ainda em verificar qual é o perfil das orga-nizações que têm assento nos conselhos, sua representatividade social epráticas deliberativas.

Santos Júnior, Ribeiro & Azevedo (2004, p. 15) adotam a noção de de-mocracia proposta por O’Donnell (1999) que inclui como requisitospara a efetividade do regime democrático a realização de eleições com-petitivas associada a um conjunto de liberdades que assegurem o exer-cício dos direitos de cidadania. Assim, as possibilidades de se exercer acidadania política estão relacionadas ao acesso aos direitos civis e sociais.

Para Santos Júnior, Ribeiro & Azevedo (2004, p. 18-20), a garantia des-ses direitos e as condições de governança democrática,2 apesar de for-muladas no plano nacional, estão atreladas à dinâmica local, pois de-pendem do vínculo entre o arcabouço legal e a realidade institucionaldos municípios – seja pelos frágeis mecanismos locais de garantia dosdireitos, seja pelo alto nível de desigualdades sociais. A inovação emrelação ao texto de O’Donnell (1999) está na introdução do conceito decultura cívica e associativa como importante para a democracia. Alémdas barreiras materiais e legais, a democracia requer uma mudançacultural na sociedade que lhe dê sustentação.

Já o arcabouço institucional interfere na tensão entre direitos sociais eparticipação cívica, na medida em que pode gerar práticas horizontaisde participação que minimizem o clientelismo vigente e o impacto dasrelações assimétricas de poder, disseminando uma cultura democráticaque se expresse por meio das práticas dos atores.

Vejamos os resultados... Quem participa dos conselhos? O retrato daparticipação revelou uma relativa uniformidade no perfil dos conse-lheiros que difere da heterogeneidade da sociedade brasileira.3 Nãoobstante a diversidade dos segmentos – instituições governamentais,sindicais, patronais, sociedade civil organizada e usuários –, a repre-sentação social está atrelada a segmentos com capacidade de organiza-ção e presença na cena pública.

Os conselheiros apresentam em geral média (ensino médio completo)ou alta escolaridade (curso superior e pós-graduação). Nesse particu-lar, os segmentos da sociedade civil apresentam níveis educacionais maisbaixos que os conselheiros governamentais. A mesma diferença entreos segmentos se percebe em relação à renda. O rendimento médio dossegmentos representados no conselho, acima de cinco salários míni-mos, também é superior ao da população, porém há diferenças regio-nais: São Paulo (86%), Rio de Janeiro (66%), Belo Horizonte (58%),

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Recife (50%) e Belém (39%). Em Curitiba, este índice é de 70% no seg-mento governamental.

Os próprios critérios de elegibilidade dos membros dos conselhos obri-gam que boa parte deles seja membro de pelo menos uma associação. Acultura cívica e associativa se manifesta por meio da participação ematividades de caráter social e político e de forma substantiva, compro-vada pelo alto engajamento sociopolítico nos setores da sociedade or-ganizada (56%) e também governamental (64%).4

A cultura cívica e associativa também se reflete na significativa filiação apartidos políticos em todos os segmentos (47%); em Curitiba o índicefoi muito próximo (42,8%), enquanto o contingente da sociedade bra-sileira filiada é de 3%. Esta é uma sociedade que está altamente infor-mada dos fatos sociais em geral, principalmente por meio de jornais. Oassociativismo se nutre também da capacitação técnica e política pormeio de atividades como seminários, cursos e oficinas.

Quais seriam, então, as repercussões para a governança democráticadas cidades com este perfil de participação? Apesar de ser uma elitesocial que participa destes espaços, os autores do livro não assumemcomo pressuposto o argumento elitista de incapacidade das massas esuperioridade das elites. Para Santos Júnior, Ribeiro & Azevedo (2004,p. 28), a escolha pelos estratos médios da população parece refletir aextrema carência e desigualdade da nossa estrutura social em que oscidadãos ou preferem escolher os mais capazes, ou não se envolver, ou,simplesmente, permanecer alheios à participação cívica por não teremcondições de reconhecer as oportunidades.

O problema do deficit de representação social nos conselhos pode sersuperado por meio de incentivos à associação cívica e de investimentosneste modelo participativo. De acordo com Maria da Glória Gohn (2004,p. 61), a inclusão de setores diferenciados, ou seja, a participação dosindivíduos e grupos sociais em termos qualitativos e não somente quan-titativos, é essencial para a democracia participativa.

Incluir a diversidade dos segmentos sociais no debate das políticas pú-blicas, sem dúvida, é imprescindível para garantir a pluralidade demo-crática dos conselhos, mas este parece ser um desafio que está relacio-nado à sua própria dinâmica institucional. Mauro Rego Monteiro dosSantos (2004, p. 139) visualizou esta tensão ao reconhecer que o forma-to dos conselhos é menos propício à apresentação de demandas e estávoltado para a luta pela obtenção de bens de segundo nível – que visa àgarantia de direitos que possuem uma dimensão normativa ou ideoló-

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gica –, atraindo com maior intensidade movimentos neocorporativos.A participação nos conselhos se insere na perspectiva adotada por Aze-vedo & Prates (1991) de “participação ampliada” ou neocorporativa,definida como aquela que se desenvolve em órgãos colegiados (forma-dos por representantes do poder público e da sociedade organizada),voltados para a elaboração de macropolíticas (políticas regulatórias).Diferentemente, outros espaços que envolvem a população alvo emprogramas governamentais específicos (políticas distributivas) são ca-racterizados pela “participação restrita” ou instrumental (AZEVEDO,PRATES, 1991 apud ABRANCHES, AZEVEDO, 2004, p. 164-165).

Algumas alternativas para o aperfeiçoamento da representação socialnos conselhos são discutidas por Mauro Rego Monteiro dos Santos (2004,p. 131-160), a partir do estudo nos conselhos da Região Metropolitana(RM) do Rio de Janeiro. Os limites relacionados à dimensão institucionalda participação podem ser superados pela atuação responsável do con-selheiro através da interlocução com sua base social, pela capacidadedas organizações sociais representarem interesses mais amplos e pelaaproximação com a sociedade divulgando suas ações ou descentrali-zando as atividades.

Os demais artigos destacam alguns temas específicos na prática dos con-selhos. Rosa Maria Cortês de Lima e Jan Bitoun (2004, p. 95-130) tra-tam dos aspectos da cultura cívica nos conselhos da RM de Recife. Ba-seados em dados sobre o associativismo e a prática cívica dos conselhei-ros, concluem que a história local tem peso específico no desenho econsolidação da democracia e, portanto, os conselhos canalizam os ele-mentos de participação cívica da sociedade em que estão inseridos.

A partir do estudo nos conselhos gestores da RM de Belo Horizonte,Mônica Abranches e Sérgio Azevedo (2004, p. 161-192) destacam o pesodo poder público no estabelecimento destas esferas, seja pela sua cria-ção via legislação federal, seja na indicação de quais entidades e repre-sentantes da sociedade civil terão assento no conselho. A capacidadedeliberativa, de acordo com a percepção de 60% dos atores envolvidos,é de média a baixa. Apesar desta avaliação, os participantes afirmamque as deliberações têm sido implementadas pelo poder público local,percepção confirmada pelo número expressivo de conselheiros (75%)que fiscaliza a sua execução.

A despeito da baixa articulação social na criação dos conselhos, a avalia-ção de seus participantes é positiva quanto ao seu papel institucional e

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social e em relação à colaboração do poder público municipal no provi-mento de infra-estrutura e informações. A atuação política nos conse-lhos é pautada por mudanças e continuidades, o que reforça a idéia deque este é um espaço onde está se aprendendo a reconstruir a relaçãoentre o poder público e a sociedade organizada.

Silvana Tótora e Vera Chaia (2004, p. 193-222) ressaltam os limitespara a democraticidade dos conselhos, baseadas na pesquisa realizadana RM de São Paulo. A monopolização das informações e aimplementação dos projetos pela burocracia pública têm relegado osconselhos a uma participação marginal nas políticas públicas, agravadapela escassez de recursos destinados às políticas sociais. Para as autoras,a efetividade dos conselhos depende da ação municipal, do partidopolítico e do prefeito, mas a autonomia também está relacionada comsua história e trajetória de luta.

A investigação na RM de Curitiba, realizada por Eloise Machado, JosilBaptista e Thaís Kornin (2004, p. 223-248), caminha para o entendi-mento de que os conselhos estão se traduzindo numa arena de repre-sentação dos interesses do grupo político dominante. A constante in-terferência do Poder Executivo na dinâmica destas instituições, o ele-vado número de funcionários públicos e comissionados que as com-põem, o protagonismo do discurso técnico e a composição elitizada dossegmentos sociais têm impedido a sua transformação em um espaçoplural e democrático

Por fim, Soraya Côrtes (2004, p. 249-286) examina a influência doarcabouço institucional nos conselhos gestores de Saúde e AssistênciaSocial da RM de Porto Alegre. A conformação dos conselhos na área deSaúde precedeu à da área de Assistência Social e veio acompanhada deum movimento de descentralização e participação dos usuários anteriorà sua institucionalização, situação diretamente relacionada ao maiorenvolvimento e influência destes nos conselhos municipais de saúde. Adinâmica de funcionamento também é afetada pela importância dosserviços afins. Neste sentido, a abrangência e a complexidade dos ser-viços de saúde, o percentual de recursos públicos a eles destinados e aimportância política dos médicos afetam positivamente a influênciapolítica dos conselheiros municipais de saúde.

O trabalho, em geral, é notável em revelar quem são os atores inseridosnesta “nova institucionalidade” Pós-Constituinte. Merece também aten-ção a preocupação dos autores relativa à necessidade de se disseminar

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uma cultura associativa, já que as evidências apontam para a correlaçãoentre capacidade organizativa e participação.

É possível concluir que os conselhos gestores surgem não como umprojeto local, mas fortemente impulsionados pelo governo federal, vin-culados à descentralização das políticas públicas. Apesar dos limitesapontados, os conselhos despontam como espaços que podem demo-cratizar a formulação destas políticas, desde que o governo local inter-venha e proporcione mudanças no contexto social e na dinâmica polí-tica, caminhando para a representatividade democrática destas instân-cias.

Não obstante as virtudes levantadas, a análise aponta problemas comodificuldade de participação autônoma e plural, interferência desmedi-da do poder público municipal tanto no seu estabelecimento, quantona sua prática, e diferenças referentes à importância da área de políticapública e à trajetória de luta e criação dos conselhos.

Os artigos e o tema são um estímulo à discussão. Muitos dos novosespaços de participação só existem por força da lei que obriga sua cria-ção para o repasse de recursos. E a descentralização de políticas, aomesmo tempo, tanto representou uma demanda dos movimentos po-pulares no período de redemocratização por efetivos espaços de parti-cipação, quanto fez parte de um projeto de retração do Estado, no quetange à garantia dos direitos, almejada pelas políticas liberais das déca-das de 1980/90. Assim, a relação entre descentralização e participaçãona área de políticas públicas pode assumir diferentes formas. Dependeda cultura política local e vontade das elites (ALMEIDA , CARNEIRO,2003); é sensível à heterogeneidade da sociedade brasileira (SOUZA,1998) e ao desenho institucional (AVRITZER, 2003).

O livro oferece importantes pistas para futuros estudos. O desafio ago-ra é ampliar o leque de análise a fim de visualizar como se dá a participa-ção nos conselhos e o que ocupa espaço na pauta das reuniões, já queestas são variáveis essenciais para se aferir a qualidade do processodecisório. Além da representatividade dos conselheiros, deve-se consi-derar a representatividade das decisões emanadas do conselho, em ter-mos de práticas de negociação, deliberação e fiscalização de políticaspúblicas a partir de dados que ultrapassem a subjetividade do ator.

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NOTAS

1 Esta pesquisa fez parte do projeto “Metrópoles, Desigualdades Socioespaciais e Governança Urbana”, co-ordenado pelo IPPUR/UFRJ, FASE, PUC/BH e PUC/SP, no âmbito do Programa de Apoio aos Núcleos deExcelência (Pronex).

2 “Denominamos governança democrática os padrões de interação entre as instituições governamentais, agen-tes do mercado e atores sociais que realizem a coordenação e, simultaneamente, promovam ações de inclu-são social e assegurem e ampliem a mais ampla participação social nos processos decisórios em matéria depolíticas públicas” (SANTOS JÚNIOR, RIBEIRO, AZEVEDO, 2004, p. 19).

3 A RM de Porto Alegre não está representada nestes dados relativos ao perfil dos conselheiros, tendo em vistaque o foco da autora Soraia Côrtes foi o arcabouço institucional dos conselhos.

4 Todos os dados percentuais agregados apresentados representam as RM’s de São Paulo, Rio de Janeiro, BeloHorizonte, Recife e Belém.

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NESTNÚCLEO DE ESTUDOS ESTRATÉGICOS

O NÚCLEO DE ESTUDOS ESTRATÉGICOS DA UNIVERSIDADEFEDERAL FLUMINENSE (NEST/UFF) reiniciou suas atividades em11 de dezembro 2003, quando o Magnífico Reitor, Professor CíceroMauro Rodrigues Fialho, designou o Prof. Dr. Eurico de Lima Figuei-redo para o cargo de Coordenador Executivo. Antes, entre 1985 e 1991,o NEST esteve sob a direção do Prof. Dr. René Dreifuss, tendo sido oProf. Eurico de Lima Figueiredo seu coordenador-adjunto, segundoPortaria do então Reitor da UFF, Prof. José Raymundo Romeo.

Agora sob a nova direção, e tendo como seus principais objetivos a aná-lise e a pesquisa nas áreas dos estudos estratégicos, relações internacio-nais, defesa e segurança, o NEST reorganizou sua estrutura acadêmicae administrativa.

Passou a contar com um Conselho Diretor, que o administra, e umConselho Acadêmico, que serve como seu órgão consultor. Associa-se,mantendo sua plena autonomia, ao Departamento de Ciência Política eao Programa de Pós-Graduação de Ciência Política da UFF.

O Conselho Diretor organiza-se, de início, em quatro áreas de estudose pesquisa: Estudos Estratégicos e Relações Internacionais (Prof. Eurico deLima Figueiredo); Economia Global (Prof. Dr. Maurício Dias David); Es-tudos da Segurança (Prof. Ronaldo Leão Correa); Estudos da Defesa (Prof.Eduardo Italo Pesce) e História dos Estudos Estratégicos e das Relações In-ternacionais (Prof. Dr. Ângelo Segrillo). Integra-se a essas áreas um cor-po, ainda em formação, de pesquisadores de alto nível e titulação, apoia-do por jovens alunos da graduação e da pós-graduação da UFF e deoutras universidades.

O Conselho Acadêmico, integrado por destacadas personalidades nocampo acadêmico e militar, traça, anualmente, os objetivos da institui-ção e tem a seguinte composição:

• Prof. Dr. Antônio Celso Alves Pereira (ex-Reitor da UERJ, ex-Presi-dente da FAPERJ, atual Presidente da Associação Brasileira de Di-reito Internacional);

• Professor Notório Saber Eurico de Lima Figueiredo (Coordenadordo Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da UFF e Presi-dente do Conselho);

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• Prof. Dr. José Raymundo Romeo (ex-Reitor da UFF e atual Diretorde Assuntos Internacionais do Conselho de Reitores das Universi-dades Brasileiras – CRUB).

• Prof. Dr. Luís Manuel Rebelo Fernandes (Secretário Executivo doMinistério de Ciência e Tecnologia. Professor de Relações Interna-cionais da UFF );

• General de Exército Luiz Gonzaga Schröder Lessa (Presidente doClube Militar);

• Almirante de Esquadra Mauro César Rodrigues Pereira (ex-Minis-tro da Marinha do Brasil);

• Prof. Dr. Renato de Andrade Lessa (Professor Titular de CiênciaPolítica da UFF e atual Presidente do Instituto Ciência Hoje da So-ciedade Brasileira para o Progresso da Ciência);

• Major Brigadeiro Rui Moreira Lima (combatente na Segunda Guer-ra Mundial); Prof. Dr. Otávio Guilherme Cardoso Alves Velho (ex-Presidente da Associação Nacional dos Programas de Pós-Gradua-ção em Ciências Sociais – ANPOCS – e Professor Titular de Antro-pologia Social da UFRJ);

• Prof. Dr. Theotonio dos Santos (Professor Titular de Economia daUFF e detentor da cátedra de Economia Global da Universidadedas Nações Unidas).

Na busca da consecução de suas competências, o NEST pretende atingir,a médio e a longo prazos, os seguintes objetivos:

1. Constituir-se em centro de estudos e pesquisas das questões estraté-gicas brasileiras no quadro das relações internacionais;

2. Estabelecer planos e implementar políticas que levem à formaçãode recursos humanos com pensamento estratégico, sejam em ter-mos amplos, sejam em termos restritos;

3. Promover a aproximação, através de atividades comuns, entre a es-trutura acadêmica e científica do NEST/UFF e as instituiçõescongêneres, tanto civis como militares, tanto no plano internacionalcomo nacional, mas dando especial ênfase a este último;

4. Desenvolver a parte de “Inteligência de Meios” na área de pesquisano setor de C&T voltada para assuntos de Defesa e SegurançaNacionais;

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5. Fazer, através da UFF, convênios, financiamentos e contratações deprojetos com instituições públicas e privadas, nacionais e internacio-nais, interessadas, em termos de estudos estratégicos, no desenvol-vimento da ciência e da tecnologia no país;

6. Permitir a estudantes de graduação e de pós-graduação, com recur-sos provenientes de convênios, a profissionalização em termos depesquisa e extensão, estimulando a formação de alunos em ativida-des extraclasse como forma de complementar a atividade de docênciada Universidade;

7. Organizar, em conexão com outras instâncias acadêmicas da UFF(Pró-Reitorias, Centros, Unidades, Departamentos, Núcleos e Cen-tros de Estudos), possíveis atividades de cooperação e discussão detemas correlatos aos investigados pelo NEST;

8. Planejar e realizar conferências, seminários, ciclo de palestras, de-bates, simpósios, mesas-redondas etc., sobre assuntos relativos aosobjetivos do NEST, não só dentro da UFF, mas também com outrasinstituições nacionais e internacionais, públicas ou privadas, visan-do divulgar sua produção de conhecimento;

9. Firmar, em conexão com a Editora da Universidade FederalFluminense (EdUFF), linhas de publicações próprias (livros, revis-tas, anuários, relatórios de pesquisas, monografias etc.), além deoutros textos que venham a ser produzidos pelo NEST;

10. Propor e coordenar programas e projetos de pesquisas em parce-ria com instituições dedicadas aos estudos estratégicos, nos planosnacional e internacional, na busca de finalidades comuns;

11. Incentivar o intercâmbio de idéias e de estudiosos na malha nacio-nal e internacional de estudos estratégicos, dando escopo cosmopo-lita ao NEST/UFF;

12. Montar rede de meios eletrônicos (portal, revista e boletins eletrôni-cos, banco de dados etc.), e televisivos (cursos a distância, video-conferências, produção de vídeos especiais, recursos multimídia demaneira geral etc.);

13. Manter cooperação, mormente com as agências de fomento à pes-quisa do Rio de Janeiro, visando ao desenvolvimento dos estudosestratégicos no Estado e ao aumento de sua presença política naFederação, além de servir como apoio às entidades governamentaise não-governamentais;

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14. Criar rede que acompanhe as conjunturas nacional e internacionaldo ponto de vista estratégico;

15. Formar um centro de documentação que seja o mais completo pos-sível, constantemente atualizado na área de estudos estratégicos,capacitado a atender não só às suas necessidades, mas também àsinstituições associadas ao NEST/UFF, cumprindo, nesse aspecto,papel pioneiro;

16. Firmar acordos com o governo do estado do Rio de Janeiro visan-do ao repasse de informações e dados que contribuam para a for-mulação de seu planejamento do ponto de vista estratégico e dasegurança.

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DISCURSO DO PROFESSOREURICO DE LIMA FIGUEIREDO

Exmo. Sr. Prof. Cícero Mauro Fialho Rodrigues, Magnífico Reitor da UniversidadeFederal Fluminense,

Ilmos. Srs. e Sras. Membros dos Conselhos Superiores

Ilmos. Srs. Membros do Conselho Acadêmico do Núcleo de Estudos Estratégicos daUniversidade Federal Fluminense que hoje e aqui tomam posse

Ilmas. Autoridades universitárias aqui presentes,

Prezados colegas que compõem a mesa,

Prezados colegas do corpo docente e alunos do corpo discente,

Prezados Funcionários da UFF,

Meus queridos amigos, amigas,

Senhores e senhoras,

Ressurge o Núcleo de Estudos Estratégicos da Universidade FederalFluminense – NEST/UFF – guardando grandes expectativas e genero-sos objetivos. Pretende reunir em torno da mesa de reflexão e pesquisacivis e militares com o objetivo de traçar os rumos de nosso planeja-mento como nação culturalmente íntegra, como coletividade republi-cana, democrática e justa, e como Estado à altura da defesa perene dasoberania nacional. Todas essas metas devem se encaixar em um proje-to que privilegie, como suposto, a convicção de que, na prevalecentesociedade de conhecimentos, nada é mais importante do que o próprioconhecimento. Na posse dessas idéias-força, sabemos que serão muitosos obstáculos a vencer. Ter-se-á de enfrentar a guarda pretoriana doneoliberalismo que consagra o mercado como deus ex-machina da trans-formação social. Haverá que se defrontar com os apóstolos do Estadomínimo, como se não fossem simplesmente gigantescas as funções esta-tais na maior sociedade de mercado do mundo hoje, os Estados Uni-dos. Será preciso se encarar os arautos da globalização que proclamama inoperância dos atores estatais em face dos desafios atuais das socie-dades internacionalizadas, desconhecendo o nacionalismo praticado pe-las grandes potências em defesa de seus interesses. Será necessárioflanquear os descrentes nas possibilidades do nosso povo, que mais

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parecem exilados em seu próprio país. No entanto, há mais. Vencer ospessimistas de toda ordem que, achando que os jogos estão feitos, con-formam-se com a ordem mundial vigente, que condena a grande maio-ria da Humanidade à privação dos direitos fundamentais do Homem.Peitar os conservadores de ontem e de sempre que acreditam na forçada permanência das estruturas, antes do que no poder da mudança ena busca de projetos contra-hegemônicos. Lutar contra os reacionáriosque querem fazer os ponteiros da história regredir, embora não saibamnem mesmo para onde. Reagir contra os dependendistas de má cepaque leram erroneamente a história, e apostam no congelamento dossistemas de dominação, asfixiando a esperança. Opor-se aos adeptosde pensamentos gerados em outras realidades mais avançadas, cujosmodelos não captam a força na nossa realidade, tão complexa quantosingular, acomodando-se a uma espécie de mentalidade neocolonial,cujas raízes vêm de longe. Resistir aos seguidores das teses do fim dahistória, que não se apercebem que é impossível naturalizar-se os pro-cessos sociais que, sendo criados pelos homens, podem também ser poreles mesmos modificados. Combater os pós-modernos de diferenciadaestirpe que, professando o ponto de vista sem ponto de vista, desco-nhecem que os poderosos não têm dúvidas em fazer impor seus pontosde vistas, seja pela força da política, seja pela política da força. Neoliberaise estaticidas, descrentes e pessimistas, conservadores e reacionários,dependendistas e neocolonialistas, naturalistas da história e pós-mo-dernos podem, no entanto, esperar o bom combate. À heterodoxia dopensamento que busca a novidade, deve ajustar-se a ortodoxia funda-mentada nos cânones da boa ciência. A precisão dos conceitos, a propo-sição impregnada pelo minucioso labor teórico e submetida à penosametodologia da demonstração empírica, as conclusões inevitavelmenteabertas, pois, tal como acontece com a própria vida, a ciência só crescecom a retificação do erro. O saber obedece, desde sempre, com o quedenominamos de “protocolo socrático”: o que se sabe é que nada sesabe, com a condição de que se possa colocar em debate tudo aquiloque se sabe...

Na história moderna e contemporânea, de meados do século XV aosnossos dias, não houve grande nação que não contasse com o sólidointercâmbio entre a ciência, a tecnologia e a técnica – personificada naprodução acadêmica – e a corporação militar. Com a primeira Revolu-ção Industrial, entre 1750 e 1850, as sociedades européias entram emtempos de grandes, profundas e notáveis transformações. No dizer deum dos mais ilustres representantes do movimento Iluminista, Voltaire,

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“os livros passavam a governar o mundo”. A Revolução Francesa de1789, emancipando a burguesia e, sobretudo, o camponês, levou aoabandono dos exércitos organizados a partir de linhas fixas – a própriaimagem da rigidez do regime absolutista –, transformando-se,gradativamente, em exércitos de massa, abertos a um amplo repertó-rio de movimentos. Os progressos da balística tornaram possível o al-cance maior do poder de tiro dos canhões, e as carroças mais leves,construídas por Grebevaul, permitiram o deslocamento mais rápidodas baterias. Em 1777, os avanços da tecnologia no campo bélico per-mitiram a introdução da culatra curta, já que, até essa época, a culatranada mais era do que o simples prolongamento do cano. Pôde a infan-taria, então, dispor de armas mais leves, mais certeiras e mais precisas,propiciando novas concepções de combate, baseadas na variabilidadedas formações dispersas. As descobertas e as invenções modificarampara sempre a mentalidade militar, cujo intérprete mais ilustre e maiscompleto foi Carl Otto Gottlieb Von Clausewitz (1780-1831). O pro-gresso da ciência e da tecnologia chegou aos oceanos no final do séculoXIX, quando, em 1897, John P. Holland projetou o primeiro submari-no moderno, lançado aos mares pela marinha americana em 1990, como nome de USS Hunley. Os vôos de Dumont e dos irmãos Wright, naprimeira década do século XX, introduziram o mundo na era do “maispesado do que o ar”, modificando para sempre as concepções estraté-gicas da guerra e da paz. Hoje, as forças armadas mais atualizadas domundo, entre as quais se incluem as brasileiras, revêem, no contextoda chamada military transformation, a modelagem estrutural dos seussistemas de defesa à luz do complexo teleinfocomputrônico, para usara expressão cunhada pelo meu querido amigo René Dreifuss. É porisso que os políticos das grandes potências, quando se permitem deixarde lado a máscara ideológica, não escondem a força das coisas. Segun-do Tony Blair, o primeiro-ministro britânico: “diplomacy works best whenbacked by the threat of force” (“a diplomacia trabalha melhor quando apoiadapela ameaça da força”).

Intrincado campo de conhecimento esse, o dos estudos estratégicos.De início, as dificuldades de entendimento surgem do próprio modocomo o termo “estratégia” é utilizado de maneira frouxa e imprecisa naliteratura em geral. “Estratégia de marketing” “estratégia financeira”,“estratégia operacional”, eis apenas alguns exemplos de como a pala-vra é usada livremente, sem maiores preocupações com a exatidão deseu emprego. Talvez isso se deva à origem etimológica do vocábulo,onde strategos, em grego, significa general, ou aquele que lida com o

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que tem de geral ou amplo no planejamento das batalhas. Em seguida,mesmo entre os especialistas, não se encontra pacífico consenso a res-peito do conceito. Contemporaneamente, a literatura em geral refe-rente aos estudos estratégicos propõe que a disciplina se restrinja àanálise do papel do poder militar na política internacional, ora em sen-tido estrito (forças armadas, desenvolvimento, estrutura, logística), oraem sentido lato (eficiência do poder militar em face da ação econômicae diplomática, principalmente tendo em vista a consecução dos objeti-vos do Estado), ora com o sentido mais genérico de análise conjugadada organização do poder militar e do poder de Estado.

Se durante a Primeira Revolução Industrial as bases do pensamentoestratégico dos exércitos mais modernos foram influenciadas, na suapercepção e concepção, pelas contribuições clássicas de Carl VonClausewitz e Antoine Henri Jomini, na Segunda Revolução Industrial,entre 1860 e 1914, as dimensões naval e aérea foram postas em ques-tão. O almirante norte-americano Alfred Thayer Mahan (1840/1914) eo inglês Julian Corbett, com o seu livro mais conhecido, Alguns princípiosde estratégia marítima (1911), deram clássicas contribuições nesse senti-do. No campo da estratégia aérea, tornar-se-iam referências obrigató-rias as prescrições estratégicas do oficial de cavalaria e engenheiro doexército ítalo, Giulio Douhet. O estrategista italiano, já na primeiradécada do século XX, sustentava que “o céu se tornaria um campo debatalha tão importante quanto a terra e o mar”. Mas os estudos estraté-gicos só iriam tomar suas feições mais contemporâneas depois do tér-mino da Segunda Guerra Mundial. No decorrer da década de 1950,com os novos meios de destruição maciça, houve necessário estímulointelectual para a formação de centros de análise e pesquisa sobre oassunto na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos, não por mero acaso,países onde, respectivamente, ocorria o ocaso de um Império, e se con-solidava a ascensão de outro. A concreta possibilidade do holocaustonuclear colocou em discussão o conceito crítico de “dissuasão”, que es-taria intimamente ligado às estratégias relativas ao controle da escaladanuclear. Amparados metodologicamente na chamada “teoria dos jo-gos”, onde problemas políticos (portanto, humanos) eram tratados tec-nicamente (portanto, como abstrações), essas abordagens logo tiveramde ceder espaço para análises mais propriamente políticas, logo, sem-pre complexas e inevitavelmente mais densas. Na periferia esemiperiferia do sistema internacional, no contexto da Guerra Fria, osestudos estratégicos em países como o Brasil, tenderam a se desenvol-ver a partir de uma lógica subsidiária ou complementar à ação da potência

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norte-americana, pelo menos na sua versão oficial. Com o final da Guer-ra Fria, a partir do final anos 1980 e início dos anos 1990, que coincidecom a transição democrática nos países da América do Sul, notadamenteno cone sul, os estudos estratégicos no Brasil passaram a tomar novasfeições, tanto em termos quantitativos, quanto, principalmente, quali-tativos. Cada vez mais entre nós, além dos estudos tradicionalmenteproduzidos nos círculos militares e diplomáticos, e da rarefeita produ-ção de caráter jornalístico, a academia passou a ocupar, progressiva-mente, mas também legítima e necessariamente, espaço comointerlocutor qualificado no debate estratégico.

Amplo, difícil, intricado tema, esse, o dos estudos estratégicos. Não será,assim, nessa oportunidade, o caso de desenvolvê-lo mais ainda, aqui eagora. Isso está sendo feito em um outro trabalho que concluiremosem breve. É hora, então, de reorientar o foco de nossa exposição, epropormos algumas breves considerações sobre o ato que hoje aqui serealiza. Será preciso abordar mais três pontos. O primeiroconsubstanciará breve relatório que ofereceremos ao nosso Reitor, àsdemais autoridades da UFF, aos colegas do Conselho Acadêmico e aopúblico em geral, depois de quase um ano como Coordenador Execu-tivo do NEST. O segundo sublinhará a importância deste evento eexplicitará nossos agradecimentos à Universidade Federal Fluminenseque, representada pelo seu Magnífico Reitor, tem dado forte e francoapoio às nossas iniciativas. O terceiro, finalmente, tecerá algumas bre-ves considerações sobre o principal do dia de hoje: o significado daposse do nosso Conselho Acadêmico.

O NEST foi criado em 1986 através da Norma de Serviço 308 do entãoReitor da Universidade Federal Fluminense, professor José RaymundoRomêo. Homem dotado de notável tirocínio político, e tendo comouma de suas principais características a ágil tomada de decisão, o pro-fessor Raymundo Romêo logo percebeu a importância das propostaslevadas a ele por René Dreifuss e por mim mesmo, no início de agostodo referido ano. Poucos dias depois, em 21 de agosto, ele assinou acitada Norma de Serviço que, na verdade, quase que ipsis literis tradu-zia, em adequada linguagem administrativa, a concepção que René haviadesenvolvido sobre o que deveria ser um centro de estudos estratégi-cos. Em outra portaria, ainda na mesma data, designou René comoCoordenador Executivo e este orador como Coordenador Adjunto. Soba liderança de René Dreifuss, um dos mais brilhantes cientistas sociaisde sua geração, lamentável e prematuramente falecido no ano passa-do, o NEST funcionou durante algum tempo com sucesso, tendo sido

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responsável por diversas pesquisas de monta e iniciativas que ficarãoregistradas na história sobre os estudos estratégicos ainda a ser escritaneste país. Estando o núcleo desativado há já um bom tempo, procura-do por mim, o Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação, Prof. Dr. SidneyLuís de Matos Melo, concordou em ouvir as exposições de motivos quea ele apresentei, no ano passado, visando à reorganização do NEST.Convencido da validade de meus argumentos, resolveu solicitar ao nossoatual Magnífico Reitor minha designação como novo CoordenadorExecutivo, o que foi feito através de Portaria assinada em 11 de dezem-bro de 2003, o que de pronto significou a reativação do nosso NEST.

Nesse quase um ano de atividades não foram poucas as dificuldadespor nós enfrentadas, mergulhadas que estão as universidades federaisem crônica falta de recursos, já que desde há muito não temos umapolítica de educação que, para valer, entenda o papel da educação su-perior no processo de emancipação do Brasil. A percepção de que sem-pre faltou ao Brasil um projeto de nação que realçasse, antes de tudo, acompreensão do lugar estratégico da educação na construção de nossofuturo, nos inspirou a criar um brasão no qual fizemos escrever sapientiapotentia est, ou, saber é poder. Desse modo, era como se, a partir dessaverdadeira petição de princípio, estivéssemos traçando o rumo de nos-sos trabalhos.

Primeiro era preciso montar uma estrutura acadêmica que, em termosoperacionais, e a partir da grande autonomia e agilidade que me pro-porcionava o ato de instituição do NEST, pudesse atrair consciênciasque ficassem persuadidas da validade de nossos objetivos. Estávamosconvencidos de que não são os bons e fartos recursos que produzem asboas idéias; ao contrário, estávamos – como estamos! – convencidos deque são as boas idéias que unem as pessoas que, por elas motivadas,põem-se a trabalhar com dedicação e, com isso, acabam por captar osrecursos de que necessitam. Atraídas as competências certas para asfunções certas, era preciso estabelecer uma estrutura de convivênciabaseada na cooperação antes do que na competição. E que, sem nadade início, a não ser a vontade indômita de querer fazer, sonhassem comos pés no chão, se dispusessem a fazer o caminho, caminhando. Tenhoagora ao meu lado o meu amigo Maurício Dias David, companheiro deboa jornada há mais de 20 anos, economista de renome, ex-Diretor daFaculdade de Economia da UERJ, doutor em Economia pela Universi-dade de Paris, com farta experiência, inclusive internacional. O gene-ral Iberê Mariano da Silva, ex-Diretor de Pesquisas Especiais e ex-Dire-tor do Instituto de Pesquisas e Desenvolvimento, ambos pertencentes

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ao Exército Brasileiro, com pós-graduação na França. O professorRonaldo Leão, economista de formação, com pós-graduação pela Es-cola Superior de Guerra, e que se tornou nacionalmente conhecidoquando, na Guerra do Iraque, foi contratado pela rede Globo comoespecialista em estratégia militar para comentar para o público os prin-cipais episódios militares do conflito. O professor Ítalo Pesce, do Cen-tro de Produção da UERJ, autor de mais de 100 artigos sobre assuntosestratégicos e detentor, em quase 100 anos de sua instituição, do pri-meiro e único prêmio oferecido a um civil pela Revista Marítima Brasilei-ra pelo trabalho De Costas para o Brasil – A Marinha Oceânica do SéculoXXI. O professor de História na UFF, doutor Ângelo Segrillo, aindabastante jovem, mas já com cinco livros publicados, sendo um delesselecionado para concorrer ao Prêmio Jabuti, uma grande distinçãoque é ofertada a poucos intelectuais brasileiros. Meu querido ex-alunoe orientando na área de Ciência Política, professor Márcio Malta, que,como uma espécie de factótum, tem evidenciado múltiplas competênciase habilidades, sendo, inclusive, a partir de concepção nossa, o autorartístico de nosso brasão. Paralelamente à montagem da estruturaoperacional e de apoio, partimos à busca de contatos e parcerias. Emsetembro deste ano, firmamos acordo de cooperação com o Centro deEstudos Estratégicos da prestigiosa Universidade de Campinas. Temosprocurado, igualmente, as instituições militares. Fomos muito bem re-cebidos na Escola do Comando do Estado Maior do Exército pelo seuComandante, general Luís Eduardo Rocha Paiva e por toda a equipedo Centro de Estudos Estratégicos, a começar pelo seu Chefe, coronelEduardo Cunha da Cunha, e pelos seus oficiais adjuntos, coronel Fran-cisco Mamede de Brito Filho, coronel José Maria da Mota Ferreira,tenente-coronel Rui Matsuda e pelo subtenente Ricardo Pereira Cabral.Iniciamos diálogo com a Escola de Guerra Naval através do contra-almirante Reginaldo Reis, do Centro de Estudos Político-Estratégicos.Na Marinha Brasileira, além do almirante de esquadra Mauro CésarRodrigues Pereira, e sobre o qual falaremos mais adiante, encontramosrecepção entusiasmada, calorosa mesmo, na liderança sensível eperceptiva do contra-almirante Antônio Alberto Marinho Nigro, co-mandante da Frota de Superfície, o que muito nos desvanece, já quenesse início temos tão pouco a oferecer, a não ser o desejo de fazer,acontecer e servir, em prol de um valor supremo que a todos nós deveunir, o bem maior do nosso grande país. Procuramos, também, outroseminentes colegas para compartilhar propósitos, divulgar projetos esocializar idéias. É preciso mencionar, então, o professor Benício VieroSchimidt da UNB e atual Coordenador Geral de Cooperação Interna-

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cional da CAPES; o professor titular de História da UFRJ e professoremérito da Escola de Comando do Estado-maior do Exército, Dr. Fran-cisco Carlos Teixeira da Silva; o professor e embaixador Dr. PauloRoberto de Almeida do Núcleo de Assuntos Estratégicos, órgão da Pre-sidência da República; o professor Manuel Domingos Neto, meu velhocompanheiro desde a década de 1980 de trabalhos e reflexões sobre asrelações entre forças armadas e sociedade e atualmente vice-presidentedo CNPq; o professor doutor Severino Cabral, Adjunto da Divisão deEstudos Estratégicos da Escola Superior de Guerra; o meu bom amigo,o cientista político Hélgio Trindade, ex-Reitor da UFRS e atual Presi-dente da Comissão Nacional de Avaliação do Ensino Superior; last butno the least, Dr. Nelson Mariano, professor aposentado de Química pelaUFF, major do Exército na reserva, atualmente Diretor da IMBEL epesquisador associado do NEST. Nelson, entretanto, entre todos os aci-ma relacionados, possui um título imbatível: é pai de minha nora, amais que querida Daniela, casada com meu amado filho Leonardo.Muitos outros colegas e companheiros, por meio de palavras e gestos,nos têm trazido, certo e ainda, apoio e solidariedade, mas infelizmentenão podemos nos referir a todos. Pedimos desculpas pelas eventuaisomissões.

Sim, primeiros passos. Montagem da estrutura operacional, contatos eapoios, mas, em seguida, os outros. Promovemos no presente semestrenosso Primeiro Ciclo de Palestras do NEST com o comparecimentopromissor de nossos estudantes e de um público selecionado. Os teoresde nossas conferências têm sido publicados, periodicamente, no Ca-derno de Fim de Semana do jornal Gazeta Mercantil de São Paulo, mul-tiplicando em milhares de vezes o alcance de nossas idéias e pro-postas. Na verdade, Magnífico Reitor, no que diz respeito à divulgaçãodo nome de nossa querida UFF pelos meios de comunicação com asigla do NEST, não temos dúvidas em dizer que nenhuma outra unida-de de nossa universidade mais operou do que a nossa. Basta assinalarque somente o Prof. Ronaldo Leão concedeu quase uma centena deentrevistas a rádios, jornais e revistas, sendo que um número substan-cial delas foi para as redes nacionais de televisão. Este orador, assimcomo os demais companheiros, tem também dado muitas outras en-trevistas, e igualmente em bom número, sempre se referindo à nossaUFF. Dispomos agora, também, de um sítio na Internet através do qualmantemos a comunidade acadêmica e a sociedade em geral devida-mente informadas sobre nossas atividades e projetos. Além disso, a equi-pe do NEST tem publicado artigos assinados no jornal O Monitor Mer-

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cantil, no Rio de Janeiro. Não obstante, todos têm razão, entre eles omeu querido amigo Maurício Dias David, quando dizem que isso é ain-da muito pouco, enquanto as dificuldades são ainda de tão grande por-te. As dificuldades, entretanto, quando se tem valioso propósito a seralcançado, e a alma não é pequena, como nos diz o conhecido verso,servem para enrijecer a vontade e aumentar ainda mais o grau dedeterminação.

Nenhum homem é uma ilha, disse o filósofo com o olhar de longo al-cance. Na sociedade vivemos com o apoio, o incentivo e a solidariedadedaqueles que, espontaneamente, reconhecendo nossos eventuais méri-tos, nos prestam sua ajuda e colaboração. Somos daqueles que compre-endem que a gratidão não é uma virtude, mas um dever, uma espéciede autocrítica que fazemos, até para nos apercebermos melhor das cir-cunstâncias com as quais dialogamos. Tenho, assim, que fazer algumasbreves referências ao nome de algumas pessoas que nos têm oferecidoseu prestigioso apoio, pedindo desde já desculpas, mais uma vez, porocasionais omissões. Em primeiro lugar, é claro, necessário se tornacitar, antes de todos, o Magnífico Reitor da UFF, o professor CíceroMauro Fialho Rodrigues. A sua concordância na realização deste ato e,mais do que isso, sua aceitação para pessoalmente presidi-lo, encon-trando espaço na sua congestionada agenda de obrigações, mostra bem,e por si só, o seu entendimento da importância que o Núcleo de Estu-dos Estratégicos goza nessa grande universidade, sinalizando o suporteinstitucional que ao NEST foi conferido. Mas é preciso fazer alusão aoutros importantes dirigentes da UFF. São eles, o Pró-Reitor de Pes-quisa e Pós-Graduação, professor Sidney Luís de Matos Mello, ao qualjá fiz especial menção anteriormente; o professor Humberto Machado,Diretor do Centro de Estudos Gerais, que tanto tem-se entusiasmadocom nossas idéias; o professor Francisco Palharini, Diretor do Institutode Ciências Humanas e Filosofia, que tem nos prestado toda a assistên-cia possível, embora, a título de amistosa e camarada provocação, aindanos deva uma sala de trabalho; o professor Cláudio de Farias Augusto,Chefe do Departamento de Ciência Política, meu ex-aluno, hoje meuquerido amigo, e que nos prestigia sempre. Todos, todos eles, e maisalguns que a memória falha não permite no momento lembrar, têm nosprestado solidariedade e incentivo, em um relacionamento afetuoso,típico de nossa querida UFF, que muito nos envaidece, nos engrandecemesmo, nos dá força. A lista seria, no entanto, incompleta, se mais umnome não fosse incluído. Peço, assim, para finalizar estas referências,licença para um breve parêntese gramatical e trocar o pronome da pri-

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meira pessoa do plural para o da primeira pessoa do singular. Tenhoque destacar o nome de meu colega e amigo de muitos anos, professorGisálio Cerqueira Filho. Durante toda a minha já longa carreira, elesempre me ilustrou com o beneplácito de sua amizade. Foi com seudecidido apoio que pude levar a bom termo minha administração comoChefe do Departamento de Ciência Política da UFF, durante três man-datos consecutivos. Foi ele o autor da proposta que levou a UFF a mefazer a outorga do título de Notório Saber, uma das altas homenagensque esta universidade pode fazer a um dos seus professores, equivalen-te na hierarquia de distinções acadêmicas ao título de Doutor HonorisCausa. Foi ele quem, em difícil quadra de minha vida, passando porsérios problemas pessoais, me estendeu a mão e me convidou para lecio-nar nos cursos de graduação e pós-graduação da prestigiosa PUC/RJ,na qual ele era Diretor do Departamento de Sociologia e Política, alivi-ando a carga de minhas responsabilidades financeiras. Foi ele quem,não obstante achar que estava sonhando demais – um dos meus maio-res vícios, é verdade – resolveu prestar seu prestigioso apoio para que oNEST pudesse ser reativado. Agora, nesse mesmo momento, emborasabendo de meus pesados encargos, e por isso mesmo me levando avencer minhas próprias resistências, está sendo responsável pela mi-nha candidatura, aliás, infelizmente única, pois não tenho chances deficar em segundo lugar, ao cargo de Coordenador do Programa de Pós-Graduação de Ciência Política da UFF, em fase de implantação de seucurso de doutorado. Sobre ele aqui e agora posso dizer, cantarolandona mente a conhecida canção, que não é preciso nem dizer, mas é mui-to bom saber, que ele é meu amigo de fé e meu irmão camarada.

Finalmente, algumas rápidas considerações sobre o sentido deste ato,no plano real, imaginário e simbológico. Os nomes que compõem oConselho Acadêmico do Núcleo Acadêmico ilustram qualquer colegiadoe honram qualquer universidade, quer pelos altos méritos intelectuaisde cada um deles, quer pelos altos cargos que todos eles ocupam ou jáocuparam na vida pública brasileira. O nosso cerimonial, logo no iníciodessa cerimônia, já nos deu breves indicações sobre seus títulos. Masserá preciso fazer algumas referências de caráter mais pessoal. Algunsdeles são amigos de longuíssima data, como os professores Antonio CelsoAlves Pereira e Otávio Guilherme Cardoso Alves Velho, este último meudileto amigo desde os bancos escolares do Colégio Militar do Rio deJaneiro. Com o passar do tempo, o número dos anos, quando falamoscom os mais jovens, parece chegar a cifras inimagináveis. Conhecemoso professor Theotônio dos Santos, com os seus mais de 30 livros publi-

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cados, e traduzidos pelo mundo afora, há mais de 20 anos, quando, noNúcleo de Pesquisa e Pós-Graduação das Faculdades Metodista Bennet,tivemos a felicidade de coordenar uma excelente equipe de professoresque terá, um dia, seu nome gravado na história das ciências sociaisbrasileiras. Data desta época também meu primeiro contato com o pro-fessor do Instituto de Física, Raymundo Romêo, quando ele nem eraReitor, mas Diretor do Centro de Estudos Gerais, e nós participantesda diretoria que fundou a ADUFF, Associação dos Docentes desta uni-versidade, no final dos anos 1970 e início dos anos 1980. Desde então,fizemos uma excelente amizade que muito nos honra e prestigia, em-bora o tenhamos enfrentado em uma chapa que se opunha à sua naeleição que o consagrou, pela segunda vez, Reitor de nossa UFF. Foitambém nesse tempo que tivemos o primeiro encontro com o professorLuís Fernandes e sua futura mulher, Clara, naquela oportunidade Pre-sidente da UNE, e eu Coordenador-Chefe da campanha do candidatodo PMDB, Miro Teixeira, ao governo do estado do Rio de Janeiro.Iríamos revê-lo mais tarde quando, supomos, ele pensou em cursar ocurso de Pós-Graduação do Bennett. Mal poderíamos imaginar que eleseria nosso colega, alguns anos depois, já detendo o título de Mestreem Ciência Política, no Departamento de Ciência Política da UFF, e queentre nós seria construída uma boa e franca amizade. Passamos aconhecê-lo melhor ainda na conjunção de forças para enfrentar pro-blemas difíceis da política acadêmica em nossa unidade. Luís Fernandes,com o passar do tempo, devido ao seu brilho, profundidade e serieda-de intelectuais, que coexistem com o mais monolítico dos caracteres,tem conquistado nossa profunda e constante admiração. Dizemos sem-pre, prevendo seu grande futuro, que ele, atualmente Secretário Exe-cutivo do Ministério de Ciência Política, será um homem fadado, parafelicidade do Brasil, a ser Ministro de Estado da República. O professorRenato Lessa, titular de Ciência Política da UFF, no momento presidin-do o Instituto Ciência Hoje, instituição vinculada à prestigiosa Socieda-de Brasileira para o Progresso da Ciência, SBPC, tem sido, principal-mente nos últimos anos, quando nos unimos para enfrentar desafioscomuns na nossa vida acadêmica, grande e leal amigo. Na verdade,tendo em vista a brilhante carreira que tem cumprido nas Ciências So-ciais de nosso país, Renato ilustra bem a capacidade da UFF de formarpesquisadores e docentes do mais alto nível, inclusive em termos inter-nacionais, já que tendo Renato feito sua graduação nesta universidade,acrescenta sentido e motivação ao trabalho de todos nós. Infelizmente,devido a compromissos inadiáveis, e como havíamos marcado a reali-zação deste evento para o dia 29 de novembro, alguns desses queridos

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amigos não puderam comparecer a este ato e nos enviaram suas escu-sas a fim de que pudéssemos apresentá-las ao Magnífico Reitor e a todoo público aqui presente. Antônio Celso está em Recife cumprindo mis-são pela CAPES; Romêo embarcou ontem para a Finlândia para parti-cipar de um congresso científico; Theotônio embarca hoje para Parisonde fará exposição em seminário internacional; Renato está presidin-do neste instante o colóquio Brasil-Portugal.

Tendo feito essas breves referências em relação aos civis, precisamosagora nos referir aos oficiais generais que compõem nosso Conselho.Na verdade, nosso Conselho Acadêmico estaria incompleto, e na reali-dade não faria para nós sentido, se nele não tivesse lugar para o assentode legítimos representantes de nossas forças armadas. O almirante deesquadra Mauro César Rodrigues Pereira, ex-Ministro de Estado daMarinha do Brasil, tem nos dado decidido suporte, não regateandosua preciosa colaboração. Militar ilustre, inclusive com sólida formaçãoacadêmica, já que consta em seu currículo título que é equivalente en-tre nós ao de doutor em Engenharia Eletrônica, obtido nos EstadosUnidos, é uma liderança querida e respeitada pela força naval. Alémdisso, é ardoroso defensor de todas as idéias que possam contribuirpara a elevação de nosso grau de autonomia diante do mundo unipolarque aí está. Temos planos, na verdade, modificando-se os termos denosso Regimento, de lhe passar a Presidência deste Conselho em tem-po próximo, tendo em vista sua dedicação, capacidade e entusiasmo. Ogeneral de Exército Luís Gonzaga Schöeder Lessa, atual Presidente doClube Militar, cumpriu brilhante trajetória, tendo exercido o Coman-do Militar do Leste e o Comando Militar da Amazônia. Passamos aconhecê-lo depois de uma série de artigos publicados pelo jornalistaMárcio Moreira Alves, nos quais ficou realçado o seu perfil de ardorosodefensor dos interesses nacionais brasileiros em uma região tão estraté-gica para o nosso futuro, como a amazônica. Sabemos, ademais, de suapregação, Brasil afora, a respeito das nossas necessidades como Estadonacional, livre e soberano. O major-brigadeiro Rui Moreira Lima é,antes de tudo, um herói do Brasil na Segunda Guerra Mundial. Noscéus da Itália cumpriu mais de 90 missões de combate contra as forçasnazifascistas, tendo recebido por isso as mais honrosas condecoraçõesde vários países. O famoso grupo de caças, sob a lendária legenda “sen-ta a pua”, mostrou bem do que é capaz o militar brasileiro, mesmoquando enfrenta os mais experimentados e capazes inimigos. Não fos-se isso o bastante, o brigadeiro Moreira Lima sempre se destacou, nodesenvolvimento de sua trajetória, pela defesa de um nacionalismo sem

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xenofobia e o respeito sem temores à ordem democrática da República.Como dissemos no início desta alocução, não se constrói uma grandesociedade sem o sólido intercâmbio entre a ciência, a tecnologia e atécnica – personificada na produção acadêmica – e a corporação mili-tar. Parafraseando o grande Tucídides, que viveu entre 460 e 400 a.C.,em passagem famosa na sua monumental obra sobre o conflito dePeloponeso, podemos propor que as nações que separam os intelectu-ais dos seus soldados condenam-se à desvirilização da política e à in-competência na guerra. Queremos que a UFF seja um espaço de en-contro e reflexão entre civis e militares para que se imagine, com todaa liberdade criadora, as melhores alternativas estratégicas deste grandepaís.

Eis aí, portanto, nosso Magnífico Reitor, professor Mauro Cícero FialhoRodrigues, e prezado público, o sentido simbológico profundo da pos-se deste Conselho. As personalidades que o compõem representam,emblematicamente, o perfil de um projeto de nação que estamos aindapor realizar. Uma sociedade comprometida com o conhecimento, por-que é nele que se conquista a verdadeira independência. Um país dedi-cado à causa da República democrática, ditando o rumo de uma políti-ca de desenvolvimento realmente integrativa. Uma coletividade volta-da para o resgate de uma dívida social que, como bem disse o Presiden-te Tancredo Neves, é a maior entre todas as nossas dívidas. Uma naçãoreconciliada consigo mesma, sem amargores do passado e voltada paraos planos generosos do futuro, capaz de oferecer ao mundo a peculiarvisão do modo de pensar e sentir e agir da civilização brasileira. Umgrande Brasil que, sendo capaz de construir um competente sistema dedefesa, seja igualmente capaz de garantir o seu legítimo direito de que-rer ser, no concerto dos Estados, livre, forte e soberano que, com oapoio dos homens de boa vontade em todo o mundo, esteja semprevoltado para a paz.

Muito obrigado.

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RELAÇÃO DE DISSERTAÇÕES DEFENDIDASNO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO

EM ANTROPOLOGIA

CURSO DE MESTRADO EM ANTROPOLOGIA

1 TÍTULO: UM ABRAÇO PARA TODOS OS AMIGOS

Autor: Antonio Carlos Rafael BarbosaOrientador: Prof. Dr. José Carlos RodriguesData da defesa: 16/1/1997

2 TÍTULO: A PRODUÇÃO SOCIAL DA MORTE E MORTE

SIMBÓLICA EM PACIENTES HANSENIANOS

Autor: Cristina Reis MaiaOrientador: Prof. Dr. José Carlos RodriguesData da defesa: 2/4/1997

3 TÍTULO: PRÁTICAS ACADÊMICAS E O ENSINO

UNIVERSITÁRIO: UMA ETNOGRAFIA DAS FORMAS

DE CONSAGRAÇÃO E TRANSMISSÃO DO SABER

NA UNIVERSIDADE

Autor: Paulo Gabriel Hilu da Rocha PintoOrientador: Prof. Dr. Roberto Kant de LimaData da defesa:16/6/1997

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4 TÍTULO: “DOM”, “ILUMINADOS” E “FIGURÕES”:UM ESTUDO SOBRE A REPRESENTAÇÃO DA

ORATÓRIA NO TRIBUNAL DO JÚRI DO RIO DE

JANEIRO

Autor: Alessandra de Andrade RinaldiOrientador: Prof. Dr. Luiz de Castro FariaData da defesa: 3/1/1997

5 TÍTULO: MUDANÇA IDEOLÓGICA PARA A QUALIDADE

Autor: Miguel Pedro Alves CardosoOrientador: Profª Drª Lívia Neves BarbosaData da defesa: 7/10/1997

6 TÍTULO: CULTO ROCK A RAUL SEIXAS: SOCIEDADE

ALTERNATIVA ENTRE REBELDIA E NEGOCIAÇÃO

Autor: Monica BuarqueOrientador: Prof. Dr. José Carlos RodriguesData da defesa: 19/12/1997

7 TÍTULO: A CAVALGADA DO SANTO GUERREIRO: DUAS

FESTAS DE SÃO JORGE EM SÃO GONÇALO/RIO DE JANEIRO

Autor: Ricardo Maciel da CostaOrientador: Prof. Dr. Roberto Kant de LimaData da defesa: 23/12/1997

8 TÍTULO: A LOUCURA NO MANICÔMIO JUDICIÁRIO:A PRISÃO COMO TERAPIA, O CRIME COMO

SINTOMA, O PERIGO COMO VERDADE

Autor: Rosane Oliveira CarreteiroOrientador: Prof. Dr. Roberto Kant de LimaData da defesa: 6/2/1998

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9 TÍTULO: ARTICULAÇÃO CASA E TRABALHO: MIGRANTES

“NORDESTINOS” NAS OCUPAÇÕES DE

EMPREGADA DOMÉSTICA E EMPREGADOS DE

EDIFÍCIO

Autor: Fernando Cordeiro BarbosaOrientador: Profª Drª Delma Pessanha NevesData da defesa: 4/3/1998

10 TÍTULO: ENTRE “MODERNIDADE” E “TRADIÇÃO”:A COMUNIDADE ISLÂMICA DE MAPUTO

Autor: Fátima Nordine MussaOrientador: Prof. Dr. Marco Antonio da Silva MelloData da defesa: 11/3/1998

11 TÍTULO: OS INTERESSES SOCIAIS E A SECTARIZAÇÃO DA

DOENÇA MENTAL

Autor: Cláudio Lyra BastosOrientador: Prof. Dr. Marco Antonio da Silva MelloData da defesa: 21/5/1998

12 TÍTULO: PROGRAMA MÉDICO DE FAMÍLIA: MEDIAÇÃO E

RECIPROCIDADE

Autor: Gláucia Maria Pontes MouzinhoOrientador: Profª Drª Simoni Lahud GuedesData da defesa: 24/5/1999

13 TÍTULO: O IMPÉRIO E A ROSA: ESTUDO SOBRE A

DEVOÇÃO DO ESPÍRITO SANTO

Autor: Margareth da Luz CoelhoOrientador: Prof. Dr. Arno VogelData da defesa: 13/7/1998

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14 TÍTULO: DO MALANDRO AO MARGINAL:REPRESENTAÇÕES DOS PERSONAGENS HERÓIS

NO CINEMA BRASILEIRO

Autor: Marcos Roberto MazaroOrientador: Profª Drª Lívia Neves BarbosaData da defesa: 30/10/1998

15 TÍTULO: PROMETER-CUMPRIR: PRINCÍPIOS MORAIS DA

POLÍTICA: UM ESTUDO DE REPRESENTAÇÕES

SOBRE A POLÍTICA CONSTRUÍDAS POR ELEITORES

E POLÍTICOS

Autor: Andréa Bayerl MongimOrientador: Profª Drª Delma Pessanha NevesData da defesa: 21/1/1999

16 TÍTULO: O SIMBÓLICO E O IRRACIONAL: ESTUDO SOBRE

SISTEMAS DE PENSAMENTO E SEPARAÇÃO

JUDICIAL

Autor: César Ramos BarretoOrientador: Prof. Dr. José Carlos RodriguesData da defesa: 10/5/1999

17 TÍTULO: EM TEMPO DE CONCILIAÇÃO

Autor: Angela Maria Fernandes Moreira-LeiteOrientador: Prof. Dr. Roberto Kant de LimaData da defesa: 15/7/1999

18 TÍTULO: NEGROS, PARENTES E HERDEIROS: UM ESTUDO

DA REELABORAÇÃO DA IDENTIDADE ÉTNICA NA

COMUNIDADE DE RETIRO, SANTA LEOPOLDINA

– ESAutor: Osvaldo Marins de OliveiraOrientador: Profª Drª Eliane Cantarino O’DwyerData da defesa: 13/8/1999

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19 TÍTULO: SISTEMA DA SUCESSÃO E HERANÇA DA POSSE

HABITACIONAL EM FAVELA

Autor: Alexandre de Vasconcellos WeberOrientador: Profª Drª Delma Pessanha NevesData da defesa: 25/10/1999

20 TÍTULO: E NO SAMBA FEZ ESCOLA: UM ESTUDO DE

CONSTRUÇÃO SOCIAL DE TRABALHADORES EM

ESCOLA DE SAMBA

Autor: Cristina Chatel VasconcellosOrientador: Profª Drª Simoni Lahud GuedesData da defesa: 5/11/1999

21 TÍTULO: CIDADÃOS E FAVELADOS: OS PARADOXOS DOS

PROJETOS DE (RE)INTEGRAÇÃO SOCIAL

Autor: André Luiz Videira de FigueiredoOrientador: Profª Drª Delma Pessanha NevesData da defesa: 19/11/1999

22 TÍTULO: DA ANCHOVA AO SALÁRIO MÍNIMO: UMA

ETNOGRAFIA SOBRE INJUNÇÕES DE MUDANÇA

SOCIAL EM ARRAIAL DO CABO/RJAutor: Simone Moutinho PradoOrientador: Prof. Dr. Roberto Kant de LimaData da defesa: 25/2/2000

23 TÍTULO: PESCADORES E SURFISTAS: UMA DISPUTA PELO

USO DO ESPAÇO DA PRAIA GRANDE

Autor: Delgado Goulart da CunhaOrientador: Prof. Dr. Roberto Kant de LimaData da defesa: 28/2/2000

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24 TÍTULO: PRODUÇÃO CORPORAL

DA MULHER QUE DANÇA

Autor: Sigrid HoppeOrientador: Prof. Dr. Marco Antonio da Silva MelloData da defesa: 27/4/2000

25 TÍTULO: A PRODUÇÃO DA VERDADE NAS PRÁTICAS

JUDICIÁRIAS CRIMINAIS BRASILEIRAS: UMA

PERSPECTIVA ANTROPOLÓGICA DE UM

PROCESSO CRIMINAL

Autor: Luiz Eduardo de Vasconcellos FigueiraOrientador: Prof. Dr. Roberto Kant de LimaData da defesa: 21/9/2000

26 TÍTULO: CAMPO DE FORÇA: SOCIABILIDADE NUMA

TORCIDA ORGANIZADA DE FUTEBOL

Autor: Fernando Manuel Bessa FernandesOrientador: Profª Drª Simoni Lahud GuedesData da defesa: 22/9/2000

27 TÍTULO: RESERVAS EXTRATIVISTAS MARINHAS: UMA

REFORMA AGRÁRIA NO MAR? UMA DISCUSSÃO

SOBRE O PROCESSO DE CONSOLIDAÇÃO DA

RESERVA EXTRATIVISTA MARINHA DE ARRAIAL DO

CABO/RJAutor: Ronaldo Joaquim da Silveira LobãoOrientador: Prof. Dr. Roberto Kant de LimaData da defesa: 29/11/2000

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28 TÍTULO: PATRULHANDO A CIDADE: O VALOR DO

TRABALHO E A CONSTRUÇÃO DE ESTEREÓTIPOS

EM UM PROGRAMA RADIOFÔNICO

Autor: : Edilson Márcio Almeida da SilvaOrientador: Profª Drª Simoni Lahud GuedesData da defesa: 8/12/2000

29 TÍTULO: LOUCOS DE RUA: INSTITUCIONALIZAÇÃO X

DESINSTITUCIONALIZAÇÃO

Autor: Ernesto Aranha AndradeOrientador: Profª Drª Delma Pessanha NevesData da defesa: 8/3/2001

30 TÍTULO: FESTA DO ROSÁRIO: ICONOGRAFIA E POÉTICA

DE UM RITO

Autor: Patrícia de Araújo Brandão CoutoOrientador: Profª Drª Tania Stolze LimaData da defesa: 8/5/2001

31 TÍTULO: OS CAMINHOS DO LEÃO: UMA ETNOGRAFIA DO

PROCESSO DE COBRANÇA DO IMPOSTO DE

RENDA

Autor: Gabriela Maria Hilu da Rocha PintoOrientador: Prof. Dr. Roberto Kant de LimaData da defesa: 7/8/2001

32 TÍTULO: REPRESENTAÇÕES POLÍTICAS: ALTERNATIVAS E

CONTRADIÇÕES – DAS MÚLTIPLAS

POSSIBILIDADES DE PARTICIPAÇÃO POPULAR NA

CÂMARA MUNICIPAL DO RIO DE JANEIRO

Autor: Delaine Martins CostaOrientador: Profª Drª Delma Pessanha NevesData da defesa: 27/9/2001

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33 TÍTULO: CAPOEIRAS E MESTRES: UM ESTUDO DE

CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES

Autor: Mariana Costa AderaldoOrientador: Profª Drª Simoni Lahud GuedesData da defesa: 29/10/2001

34 TÍTULO: ÍNDIOS MISTURADOS: IDENTIDADES E

DESTERRITORIALIZAÇÃO NO SÉCULO XIXAutor: Márcia Fernanda MalheirosOrientador: Profª Drª Tania Stolze LimaData da defesa: 17/12/2001

35 TÍTULO: TRABALHO E EXPOSIÇÃO: UM ESTUDO DA

PERCEPÇÃO AMBIENTAL NAS INDÚSTRIAS

CIMENTEIRAS DE CANTAGALO/ RJ – BRASIL

Autor: Maria Luiza Erthal MeloOrientador: Profª Drª Gláucia Oliveira da Silva, Prof. Dr. Carlos Ma-chado de Freitas (co-orientador)Data da defesa: 4/5/2001

36 TÍTULO: SAMBA, JOGO DO BICHO E NARCOTRÁFICO:A REDE DE RELAÇÕES QUE SE FORMA NA

QUADRA DE UMA ESCOLA DE SAMBA EM UMA

FAVELA DO RIO DE JANEIRO

Autor: Alcyr Mesquita CavalcantiOrientador: Profª Drª Simoni Lahud GuedesData da defesa: 20/12/2001

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37 TÍTULO: MÃOS DE ARTE E O SABER-FAZER DOS

ARTESÃOS DE ITACOARECI: UM ESTUDO

ANTROPOLÓGICO SOBRE SOCIALIDADE,IDENTIDADES E IDENTIFICAÇÕES LOCAIS

Autor: Marzane Pinto de SouzaOrientador: Profª Drª Gláucia Oliveira da SilvaData da defesa: 6/2/2002

38 TÍTULO: DO ALTO DO RIO EREPECURU À CIDADE DE

ORIXIMINÁ: A CONSTRUÇÃO DE UM ESPAÇO

SOCIAL EM UM NÚCLEO URBANO DA AMAZÔNIA

Autor: Andréia Franco LuzOrientador: Profª Drª Eliane Cantarino O’DwyerData da defesa: 27/3/2002

39 TÍTULO: O FIO DO DESENCANTO: TRAJETÓRIA ESPACIAL

E SOCIAL DE ÍNDIOS URBANOS EM BOA VISTA

(RR)Autor: Lana Araújo RodriguesOrientador: Prof. Dr. José Carlos RodriguesData da defesa: 27/3/2002

40 TÍTULO: DEUS É PAI: PROSPERIDADE OU SACRIFÍCIO?CONVERSÃO, RELIGIOSIDADE E CONSUMO NA

IGREJA UNIVERSAL DO REINO DE DEUS

Autor: Maria José SoaresOrientador: Profª Drª Lívia Neves BarbosaData da defesa: 1/4/2002

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41 TÍTULO: NEGROS EM ASCENSÃO SOCIAL: PODER DE

CONSUMO E VISIBILIDADE

Autor: Lidia Celestino MeirelesOrientador: Profª Drª Lívia Neves BarbosaData da defesa: 1/4/2002

42 TÍTULO: A CULTURA MATERIAL DA NOVA ERA E O SEU

PROCESSO DE COTIDIANIZAÇÃO

Autor: Juliana Alves MagaldiOrientador: Profª Drª Lívia Neves BarbosaData da defesa: 20/7/2002

43 TÍTULO: A FESTA DO DIVINO ESPÍRITO SANTO EM

PIRENÓPOLIS, GOIÁS: POLARIDADES

SIMBÓLICAS EM TORNO DE UM RITO

Autor: Felipe Berocan VeigaOrientador: Prof. Dr. Marco Antonio da Silva MelloData da defesa: 1/7/2002

44 TÍTULO: PRIVATIZAÇÃO E RECIPROCIDADE PARA

TRABALHADORES DA CERJ EM ALBERTO

TORRES/RJAutor: Cátia Inês Salgado de OliveiraOrientador: Profª Drª Gláucia Oliveira da SilvaData da defesa: 4/7/2002

45 TÍTULO: CADA LOUCO COM A SUA MANIA, CADA

MANIA DE CURA COM A SUA LOUCURA

Autor: Patricia Pereira PavesiOrientador: Profª Drª Lívia Neves BarbosaData da defesa: 7/1/2003

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46 TÍTULO: LINGUAGEM DE PARENTESCO E IDENTIDADE

SOCIAL, UM ESTUDO DE CASO: OS

MORADORES DE CAMPO REDONDO

Autor: Cátia Regina de Oliveira MottaOrientador: Profª Drª Gláucia Oliveira da SilvaData da defesa: 7/1/2003

47 TÍTULO: VILA MIMOSA II: A CONSTRUÇÃO DO NOVO

CONCEITO DA ZONA

Autor: Soraya Silveira SimõesOrientador: Prof. Dr. Marco Antonio da Silva MelloData da defesa: 20/1/2003

48 TÍTULO: TÃO PERTO, TÃO LONGE: ETNOGRAFIA SOBRE

RELAÇÕES DE AMIZADE NA FAVELA DA

MANGUEIRA NO RIO DE JANEIRO

Autor: Geovana Tabachi SilvaOrientador: Profª Drª Lívia Neves BarbosaData da defesa: 20/1/2003

49 TÍTULO: O MERCADO DOS ORIXÁS: UMA ETNOGRAFIA

DO MERCADÃO DE MADUREIRA NO RIO DE

JANEIRO

Autor: Carlos Eduardo Martins Costa MedawarOrientador: Prof. Dr. Marco Antonio da Silva MelloData da defesa: 20/1/2003

50 TÍTULO: PARA ALÉM DA “PORTA DE ENTRADA”: USOS EREPRESENTAÇÕES SOBRE O CONSUMO DA

CANABIS ENTRE UNIVERSITÁRIOS

Autor: Jóvirson José MilagresOrientador: Profª Drª Simoni Lahud GuedesData da defesa: 10/6/2003

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51 TÍTULO: E O VERBO (RE)FEZ O HOMEM: ESTUDO DO

PROCESSO DE CONVERSÃO DO ALCOÓLICO

ATIVO EM ALCOÓLICO PASSIVO

Autor: Angela Maria GarciaOrientador: Profª Drª Delma Pessanha NevesData da defesa: 12/6/2003

52 TÍTULO: LE SOUFFLE AU COEUR & DAMAGE: QUANDO

O MESMO TOCA O MESMO EM 24 QUADROS

POR SEGUNDO (LOUIS MALLE E A TEMÁTICA DO

INCESTO)Autor: Débora Breder BarretoOrientador: Profª Drª Lygia Baptista Pereira Segala PaulettoData da defesa: 24/6/2003

53 TÍTULO: O FACCIONALISMO XAVANTE NA TERRA

INDÍGENA SÃO MARCOS E A CIDADE DE

BARRA DAS GARÇAS

Autor: Paulo Sérgio DelgadoOrientador: Profª Drª Eliane Cantarino O’DwyerData da defesa: 24/6/2003

54 TÍTULO: CARTOGRAFIA NATIVA: A REPRESENTAÇÃO DO

TERRITÓRIO, PELOS GUARANI KAIOWÁ, PARA OPROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO DE

VERIFICAÇÃO DA FUNAI

Autor: Ruth Henrique da SilvaOrientador: Profª Drª Eliane Cantarino O’DwyerData da defesa: 27/6/2003

Page 257: Por uma antropologia do consumo

257

ANTROPOLÍTICAANTROPOLÍTICAANTROPOLÍTICAANTROPOLÍTICAANTROPOLÍTICA Niterói, n. 17, p. 245–271, 2. sem. 2004

55 TÍTULO: NEM MUITO MAR, NEM MUITA TERRA. NEM

TANTO NEGRO, NEM TANTO BRANCO: UMA

DISCUSSÃO SOBRE O PROCESSO DE

CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE DA COMUNIDADE

REMANESCENTE DE QUILOMBOS NA ILHA DA

MARAMBAIA/RJAutor: Fábio Reis MotaOrientador: Prof. Dr. Roberto Kant de LimaData da defesa: 27/6/2003

56 TÍTULO: PENDURA ESSA: A COMPLEXA ETIQUETA DE

RECIPROCIDADE EM UM BOTEQUIM DO RIO DE

JANEIRO

Autor: Pedro Paulo Thiago de MelloOrientador: Prof. Dr. Marco Antonio da Silva MelloData da defesa: 30/6/2003

57 TÍTULO: JUSTIÇA DESPORTIVA: UMA COEXISTÊNCIA

ENTRE O PÚBLICO E O PRIVADO

Autor: Wanderson Antonio JardimOrientador: Prof. Dr. Roberto Kant de Lima, Profª Drª SimoniLahud Guedes (co-orientadora)Data da defesa: 30/6/2003

58 TÍTULO: O TEU CABELO NÃO NEGA? UM ESTUDO DE

PRÁTICAS E REPRESENTAÇÕES SOBRE O CABELO

Autor: Patrícia Gino BouzónOrientador: Prof. Dr. José Sávio LeopoldiData da defesa: 5/2/2004

Page 258: Por uma antropologia do consumo

258

ANTROPOLÍTICAANTROPOLÍTICAANTROPOLÍTICAANTROPOLÍTICAANTROPOLÍTICA Niterói, n. 17, p. 245–271, 2. sem. 2004

59 TÍTULO: USOS E SIGNIFICADOS DO VESTUÁRIO

ENTRE ADOLESCENTES

Autor: Joana MacintoshOrientador: Profª Drª Laura Graziela Figueiredo Fernandes GomesData da defesa: 16/2/2004

60 TÍTULO: A CIENTIFIZAÇÃO DA ACUPUNTURA MÉDICA NO

BRASIL: UMA PERSPECTIVA ANTROPOLÓGICA

Autor: Durval Dionísio Souza MotaOrientador: Prof. Dr. Roberto Kant Lima; Profª Drª Simoni LahudGuedes (co-orientadores)Data da defesa: 19/2/2004

61 TÍTULO: DAS PRÁTICAS E DOS SEUS SABERES:A CONSTRUÇÃO DO “FAZER POLICIAL” ENTRE AS

PRAÇAS DA PMERJAutor: Haydée Glória Cruz CarusoOrientador: Prof. Dr. Roberto Kant LimaData da defesa: 19/2/2004

62 TÍTULO: O PROCESSO DENUNCIADOR – RETÓRICAS,FOBIAS E JOCOSIDADES NA CONSTRUÇÃO

SOCIAL DO DENGUE EM 2002Autor: Anamaria de Souza FagundesOrientador: Prof. Dr. Marco Antonio da Silva MelloData da defesa: 29/3/2004

63 TÍTULO: RUA DOS INVÁLIDOS, 124 –A VILA É A CASA DELES

Autor: Marcia CörnerOrientador: Prof. Dr. Marco Antonio da Silva MelloData da defesa: 29/3/2004

Page 259: Por uma antropologia do consumo

259

ANTROPOLÍTICAANTROPOLÍTICAANTROPOLÍTICAANTROPOLÍTICAANTROPOLÍTICA Niterói, n. 17, p. 245–271, 2. sem. 2004

64 TÍTULO: SANTA TECLA, GRAÇA E LARANJAL: REGRAS

DE SUCESSÃO NAS CASAS DE ESTÂNCIA DO

BRASIL MERIDIONAL

Autor: Ana Amélia Cañez XavierOrientador: Profª Drª Eliane Catarino O’DwyerData da defesa: 25/5/2004

65 TÍTULO: DESEMPREGO E MALABARISMOS CULTURAIS

Autor: Valena Ribeiro Garcia RamosOrientador: Profª Drª Delma Pessanha NevesData da defesa: 31/5/2004

66 TÍTULO: DIMENSÕES DA SEXUALIDADE NA VELHICE:ESTUDOS COM IDOSOS EM UMA AGÊNCIA

GERONTOLÓGICA

Autor: Rosangela dos Santos BauerOrientador: Profª Drª Simoni Lahud GuedesData da defesa: 9/6/2004

67 TÍTULO: LAVRADORES DE SONHOS: ESTRUTURAS

ELEMENTARES DO VALOR CULTURAL NA

CONFORMAÇÃO DO VALOR ECONÔMICO. UM

ESTUDO SOBRE A PROPRIEDADE CAPIXABA NO

MUNICÍPIO DE VITÓRIA

Autor: Alexandre Silva RampazzoOrientador: Profª Drª Lívia Martins Pinheiro NevesData da defesa: 26/7/2004

Page 260: Por uma antropologia do consumo

260

ANTROPOLÍTICAANTROPOLÍTICAANTROPOLÍTICAANTROPOLÍTICAANTROPOLÍTICA Niterói, n. 17, p. 245–271, 2. sem. 2004

RELAÇÃO DE DISSERTAÇÕES DEFENDIDASNO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO

EM CIÊNCIA POLÍTICA

CURSO DE MESTRADO EM CIÊNCIA POLÍTICA

1 TÍTULO: GESTÃO DA EDUCAÇÃO MUNICIPAL:A ADMINISTRAÇÃO DO PARTIDO DOS

TRABALHADORES NO MUNICÍPIO DE

ANGRA DOS REIS

Autor: Claudio BatistaOrientador: Prof. Dr. José Ribas VieiraData da defesa: 17/10/1997

2 TÍTULO: UTOPIA REVOLUCIONÁRIA VERSUS REALISMO

POLÍTICO: O DILEMA DOS PARTIDOS SOCIALISTAS

NA ÓTICA DOS DIRIGENTES DO PT FLUMINENSE

Autor: Gisele dos Reis CruzOrientador: Profª Drª Maria Celina Soares D’AraujoData da defesa: 7/11/1997

3 TÍTULO: RELAÇÃO ONG–ESTADO: O CASO ABIAAutor: Jacob Augusto Santos PortelaOrientador: Profª Drª Maria Celina Soares D’AraujoData da defesa:18/11/1997

Page 261: Por uma antropologia do consumo

261

ANTROPOLÍTICAANTROPOLÍTICAANTROPOLÍTICAANTROPOLÍTICAANTROPOLÍTICA Niterói, n. 17, p. 245–271, 2. sem. 2004

4 TÍTULO: REFORMA DO ESTADO E POLÍTICA DE

TELECOMUNICAÇÕES: O IMPACTO DAS

MUDANÇAS RECENTES SOBRE A EMBRATELAutor: José Eduardo Pereira FilhoOrientador: Profª Drª Lívia Neves BarbosaData da defesa: 18/12/1997

5 TÍTULO: ENTRE A DISCIPLINA E A POLÍTICA: CLUBE

MILITAR (1890 – 1897)Autor: Claudia Torres de CarvalhoOrientador: Prof. Dr. Celso CastroData da defesa: 19/12/1997

6 TÍTULO: ASSOCIATIVISMO MILITAR NO BRASIL: 1890/1940

Autor: Tito Henrique Silva QueirozOrientador: Prof. Dr. Ari de Abreu SilvaData da defesa: 22/12/1997

7 TÍTULO: ESCOLA DE GUERRA NAVAL NA FORMAÇÃO

DOS OFICIAIS SUPERIORES DA MARINHA DE

GUERRA DO BRASIL

Autor: Sylvio dos Santos ValOrientador: Profª Drª Maria Antonieta Parahyba LeopoldiData da defesa: 6/2/1998

8 TÍTULO: O PODER LEGISLATIVO REAGE: A IMPORTÂNCIA

DAS COMISSÕES PERMANENTES NO PROCESSO

LEGISLATIVO BRASILEIRO

Autor: Ygor Cervásio Gouvea da SilvaOrientador: Prof. Dr. Fabiano Guilherme Mendes dos SantosData da defesa: 13/8/1998

Page 262: Por uma antropologia do consumo

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9 TÍTULO: A EXPERIÊNCIA DO ITAMARATY DE 84 A 96:ENTRE A TRADIÇÃO E A MUDANÇA

Autor: Joana D’Arc Fernandes FerrazOrientador: Prof. Dr. Ari de Abreu SilvaData da defesa: 15/9/1998

10 TÍTULO: CENTRAIS SINDICAIS E SINDICATOS

Autor: Fernando Cesar Coelho da CostaOrientador: Profª Drª Maria Celina Soares D’AraujoData da defesa: 16/11/1998

11 TÍTULO: A DIMENSÃO POLÍTICA DA FAMÍLIA NA

SOCIEDADE BRASILEIRA: O CONFLITO DE

REPRESENTAÇÕES

Autor: Guiomar de Lemos FerreiraOrientador: Prof. Dr. Gisálio Cerqueira FilhoData da defesa: 15/12/1998

12 TÍTULO: A OMS, O ESTADO E A LEGISLAÇÃO

CONTRÁRIA AO TABAGISMO: OS PARADOXOS DE

UMA AÇÃO

Autor: Mauro Alves de AlmeidaOrientador: Prof. Dr. Ari de Abreu SilvaData da defesa: 21/12/1998

13 TÍTULO: VIOLÊNCIA E RACISMO NO RIO DE JANEIRO

Autor: Jorge da SilvaOrientador: Prof. Dr. Roberto Kant de LimaData da defesa: 23/12/1998

Page 263: Por uma antropologia do consumo

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14 TÍTULO: NOVAS DEMOCRACIAS: AS VISÕES DE ROBERT

DAHL, GUILLERMO O’DONNEL E ADAM

PRZEWORSKI

Autor: Jaime BaronOrientador: Profª Drª Maria Antonieta Parahyba LeopoldiData da defesa: 16/7/1999

15 TÍTULO: CONSELHO TUTELAR: A PARTICIPAÇÃO POPULAR

NA CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA DA CRIANÇA E

DO ADOLESCENTE EM NITERÓI – RJAutor: Maria das Graças Silva RaphaelOrientador: Prof. Dr. Ari de Abreu SilvaData da defesa: 13/12/1999

16 TÍTULO:O LEGISLATIVO MUNICIPAL NO CONTEXTO

DEMOCRÁTICO BRASILEIRO: UM ESTUDO SOBRE

A DINÂMICA LEGISLATIVA DA CÂMARA

MUNICIPAL DE NOVA IGUAÇU

Autor: Otair Fernandes de OliveiraOrientador: Prof. Dr. Ari de Abreu SilvaData da defesa: 20/12/1999

17 TÍTULO: A GERÊNCIA DO PENSAMENTO

Autor: Cláudio Roberto Marques GurgelOrientador: Prof. Dr. Gisálio Cerqueira FilhoData da defesa: 8/2/2000

18 TÍTULO: VIOLÊNCIA NO RIO DE JANEIRO: A

PRODUÇÃO RACIONAL DO MAL – A PRODUÇÃO

LEGAL SOBRE SEGURANÇA PÚBLICA NA

ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA DO RIO DE JANEIRO

Autor: Fabiano Costa SouzaOrientador: Prof. Dr. Gisálio Cerqueira FilhoData da defesa: 9/2/2000

Page 264: Por uma antropologia do consumo

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19 TÍTULO: AS IDÉIAS DE DIREITO NO BRASIL SEISCENTISTA

E SUAS REPERCUSSÕES NO EXERCÍCIO E NA

JUSTIFICATIVA DO PODER POLÍTICO

Autor: Ana Patrícia Thedin CorrêaOrientador: Prof. Dr. Gisálio Cerqueira FilhoData da defesa: 8/6/2000

20 TÍTULO: AGÊNCIA BRASILEIRA DE INTELIGÊNCIA:GÊNESE E ANTECEDENTES HISTÓRICOS

Autor: Priscila Carlos Brandão AntunesOrientador: Profª Drª Maria Celina Soares D’AraújoData da defesa: 25/8/2000

21 TÍTULO: DILEMAS DA REFORMA DA SAÚDE NO BRASIL

FRENTE À GLOBALIZAÇÃO FINANCEIRA:IMPLEMENTANDO A DESCENTRALIZAÇÃO DO

SISTEMA PÚBLICO E A REGULAÇÃO DO SISTEMA

PRIVADO DE SAÚDE

Autor: Ricardo Cesar Rocha da CostaOrientador: Profª Drª Maria Antonieta Parahyba LeopoldiData da defesa: 22/9/2000

22 TÍTULO: ENTRE O BEM-ESTAR E O LUCRO: HISTÓRICO E

ANÁLISE DA RESPONSABILIDADE SOCIAL DAS

EMPRESAS ATRAVÉS DE ALGUMAS EXPERIÊNCIAS

SELECIONADAS DE BALANÇO SOCIAL

Autor: Ciro Valério Torres da SilvaOrientador: Prof. Dr. Eduardo Rodrigues GomesData da defesa: 23/10/2000

Page 265: Por uma antropologia do consumo

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23 TÍTULO: OS EMPRESÁRIOS DA EDUCAÇÃO E O

SINDICALISMO PATRONAL: OS SINDICATOS DOS

ESTABELECIMENTOS PRIVADOS DE ENSINO NO

ESTADO DO RIO DE JANEIRO

Autor: Marcos Marques de OliveiraOrientador: Profª Drª Maria Celina Soares D’AraujoData da defesa: 14/12/2000

24 TÍTULO: COMPORTAMENTO ELEITORAL: ABERTURA E

MUDANÇA POLÍTICA EM CABO VERDE

Autor: João Silvestre Tavares Alvarenga VarelaOrientador: Prof. Dr. Gisálio Cerqueira FilhoData da defesa: 16/2/2001

25 TÍTULO: A POLÍTICA COMO BOATO: UMA ANÁLISE DO

PROGRAMA DE DESPOLUIÇÃO DA BAÍA DE

GUANABARA

Autor: Paulo Rogério dos Santos BaíaOrientador: Prof. Dr. Luis Manuel Rebelo Fernandes, Prof. Dr.Gisálio Cerqueira Filho (co-orientador)Data da defesa: 26/3/2001

26 TÍTULO: TRABALHO E EXPOSIÇÃO: ESTUDO DA

PERCEPÇÃO AMBIENTAL NAS INDÚSTRIAS

CIMENTEIRAS DE CANTAGALO/RJAutor: Maria Luzia Erthal MelloOrientador: Profª Drª Gláucia Oliveira da Silva, Prof. Dr. Carlos Ma-chado de Freitas (co-orientador)Data da defesa: 4/5/2001

Page 266: Por uma antropologia do consumo

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ANTROPOLÍTICAANTROPOLÍTICAANTROPOLÍTICAANTROPOLÍTICAANTROPOLÍTICA Niterói, n. 17, p. 245–271, 2. sem. 2004

27 TÍTULO: DA POLÍTICA DE BASTIDORES À FESTA DAS

DIRETAS: RAZÃO, EMOÇÃO E TRANSAÇÃO NA

TRANSIÇÃO DEMOCRÁTICA BRASILEIRA

Autor: Alessandro Câmara de SouzaOrientador: Prof. Dr. Gisálio Cerqueira FilhoData da defesa: 20/6/2001

28 TÍTULO: ENTRE A NATUREZA E A CONVENÇÃO – A

CRÍTICA DA CIÊNCIA POLÍTICA E DA MORAL

MODERNA E SUA REORIENTAÇÃO NA

PERSPECTIVA DE MORELLY

Autor: William de Andrade Pujol PastorOrientador: Profª Drª Maria Antonieta Parahyba LeopoldiData da defesa: 20/12/2001

29 TÍTULO: SAMBA E SOLIDARIEDADE: CAPITAL SOCIAL E

PARCERIAS COORDENANDO AS POLÍTICAS

SOCIAIS DA MANGUEIRA, RJAutor: Maria Alice Chaves Nunes CostaOrientador: Profª Drª Maria Antonieta Parahyba LeopoldiData da defesa: 14/3/2002

30 TÍTULO: CAPITAL SOCIAL OU FAMILISMO AMORAL? UM

BALANÇO DO CAPITAL SOCIAL ACUMULADO EM

COMUNIDADES DA BAÍA DE GUANABARA

Autor: Carlos Artur FelippeOrientador: Prof. Dr. José Augusto DrummondData da defesa: 26/3/2002

Page 267: Por uma antropologia do consumo

267

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31 TÍTULO: O BANCO MUNDIAL E O CAPITAL SOCIAL:NOVAS CONCEPÇÕES SOBRE O PAPEL DO

ESTADO E DA SOCIEDADE CIVIL NO PROCESSO

DE DESENVOLVIMENTO

Autor: Débora Cardoso PulcinaOrientador: Profª Drª Maria Antonieta Parahyba LeopoldiData da defesa: 14/6/2002

32 TÍTULO A REFORMA DO ESTADO NO BRASIL:REESTRUTURAÇÃO BUROCRÁTICA, DEMOCRACIA

E GOVERNABILIDADE

Autor: Ledilson Lopes Santos JuniorOrientador: Prof. Dr. Ari de Abreu SilvaData da defesa: 30/9/2002

33 TÍTULO: A ESCOLHA DO MAGNÍFICO: UMA ANÁLISE DO

SISTEMA DE ESCOLHA DOS DIRIGENTES DAS

UNIVERSIDADES PÚBLICAS FEDERAIS BRASILEIRAS

Autor: Reinaldo Carlos de OliveiraOrientador: Prof. Dr. Ari de Abreu SilvaData da defesa: 17/12/2002

34 TÍTULO: GLOBALIZAÇÃO E PODER: FÓRUM

ECONÔMICO MUNDIAL E A

SUPRANACIONALIDADE POLÍTICA

Autor: Alessandro Carvalho SilvaOrientador: Prof. Dr. René Armand DreifussData da defesa: 18/12/2002

Page 268: Por uma antropologia do consumo

268

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35 TÍTULO: O AGUDO ACORDE DO VIOLINO:GOVERNABILIDADE E ESTABILIDADE NA GESTÃO

FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

Autor: Eliane Almeida MartinsOrientador: Prof. Dr. Gisálio Cerqueira FilhoData da defesa: 18/12/2002

36 TÍTULO: O PENSAMENTO POLÍTICO DE ALBERTO TORRES

EM OLIVEIRA VIANA

Autor: Anderson da Silva NogueiraOrientador: Prof. Dr. Gisálio Cerqueira FilhoData da defesa: 19/12/2002

37 TÍTULO: RELIGIÃO DE ELITE?: A DOUTRINAÇÃO LIBERAL

POR MEIO DO PROTESTANTISMO MISSIONÁRIO

(OS REFLEXOS NAS DÉCADAS DE 1950 E

1960)Autor: Plínio Moreira AlvesOrientador: Prof. Dr. Ari de Abreu SilvaData da defesa: 14/1/2003

38 TÍTULO: A ESCALADA EM BUSCA DO PAU-DE-SEBO DO

OPERÁRIO EM BUSCA DO PRÊMIO BURGUÊS.ANTONIO EVARISTO DE MORAES E A

LEGISLAÇÃO TRABALHISTA

Autor: Célia Regina do Nascimento de PaulaOrientador: Prof. Dr. Gisálio Cerqueira FilhoData da defesa: 26/2/2003

Page 269: Por uma antropologia do consumo

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39 TÍTULO: IDEOLOGIA VERSUS ESTÉTICA: AS CRÍTICAS À

I BIENAL DE ARTES DE SÃO PAULO

Autor: Ana Paula Conde GomesOrientador: Profª Drª Maria Celina Soares D’AraújoData da defesa: 26/6/2003

40 TÍTULO: AINDA SOMOS PROTECIONISTAS? AS POLÍTICAS

GOVERNAMENTAIS DE PROTEÇÃO E LIBERAÇÃO

DO MERCADO NO ÂMBITO DA INDÚSTRIA

AUTOMOBILÍSTICA BRASILEIRA

Autor: Jean Pierre Machado SantiagoOrientador: Profª Drª Maria Antonieta Parahyba LeopoldiData da defesa: 27/6/2003

41 TÍTULO: O GRUPO CÉSAR MAIA: LÍDERES, PARTIDOS E POLÍTICA NO RIO DE JANEIRO

Autor: Francisco Moraes da Costa MarquesOrientador: Profª Drª Maria Celina D’AraujoData da defesa: 16/12/2003

42 TÍTULO: É POSSÍVEL O CONTROLE SOCIAL CONTROLAR

O ESTADO?Autor: Sônia Nogueira LeitãoOrientador: Profª Drª Maria Celina Soares D’AraújoData da defesa: 10/2/2004

43 TÍTULO: DEMOCRATIZAÇÃO, ATIVISMO INTERNACIONAL

E LUTA CONTRA A CORRUPÇÃO. ESTUDO DE

CASO SOBRE A TRANSPARÊNCIA BRASIL E A

TRANSPARENCY INTERNATIONAL

Autor: Aline Bruno SoaresOrientador: Profª Drª Maria Antonieta Parahyba LeopoldiData da defesa: 18/2/2004

Page 270: Por uma antropologia do consumo

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44 TÍTULO: CRIME E POLÍTICA NO ESPÍRITO SANTO

Autor: Célia Maria Vilela TavaresOrientador: Profª Drª Maria Celina Soares D’AraújoData da defesa: 19/2/2004

45 TÍTULO: O SETOR DE PETRÓLEO E GÁS NATURAL NO

BRASIL APÓS 1990 – REGULAÇÃO E

DESENVOLVIMENTO

Autor: Marcello de Mello CorrêaOrientador: Profª Drª Maria Antonieta Parahyba LeopoldiData da defesa: 4/4/2004

46 TÍTULO: TEORIAS SOCIAIS E PESQUISAS DE OPINIÃO –PESQUISA SOCIAL BRASILEIRA – 2002

Autor: Dalva da Costa SartiniOrientador: Prof. Dr. Alberto Carlos AlmeidaData da defesa: 16/4/2004

47 TÍTULO: GUERRA, GUERRILHA E TERRORISMO:CONTRIBUIÇÃO A UMA DISCUSSÃO CONCEITUAL

FACE AOS ATAQUES DE 11 DE SETEMBRO DE

2001 AOS EUAAutor: Friederick Brum VieiraOrientador: Prof. Dr. Gisálio Cerqueira FilhoData da defesa: 22/4/2004

48 TÍTULO: PREPARADOS PARA O FRACASSO?POLÍCIA E POLÍTICA NO RIO DE JANEIRO

(1999 – 2002)Autor: Wilson de Araújo FilhoOrientador: Prof. Dr. Ari de Abreu SilvaData da defesa: 23/4/2004

Page 271: Por uma antropologia do consumo

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49 TÍTULO: CONTROLE SOCIAL NO CONSELHO MUNICIPAL

DE SAÚDE DE NITERÓI

Autor: Gláucia Marize AmaralOrientador: Prof. Dr. Ari de Abreu SilvaData da defesa: 30/4/2004

50 TÍTULO: ELEIÇÕES EM TEMPOS DIFÍCEIS: A VITÓRIA DE

FERNANDO HENRIQUE CARDOSO EM 1998 E

A GESTÃO DA CRISE ECONÔMICA

Autor: Ricardo Basílio WeberOrientador: Profª Drª Maria Antonieta Parahyba LeopoldiData da defesa: 18/6/2004

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ARTIGOS PUBLICADOSRRRRRevista Antropolíticaevista Antropolíticaevista Antropolíticaevista Antropolíticaevista Antropolítica

Page 274: Por uma antropologia do consumo
Page 275: Por uma antropologia do consumo

REVISTA NO 1– 2O SEMESTRE DE 1996

Artigos

Brasil: nações imaginadasJosé Murilo de Carvalho

Brasileiros e argentinos em Kibbutz: a diferença continuaSonia Bloomfield Ramagem

Mudança social: exorcizando fantasmasDelma Pessanha Neves

Ostras e pastas de papel: meio ambiente e a mão invisível do mercadoJosé Drummond

Conferências

Algumas considerações sobre o estado atual da antropologia no BrasilOtávio Velho

That deadly pyhrronic poison a tradição cética e seu legado para a teoria políticamodernaRenato Lessa

Resenha

Uma antropologia no plural: três experiências contemporâneas. Marisa G. PeiranoLaura Graziela F. F. Gomes

REVISTA NO 2 – 1O SEMESTRE DE 1997

Artigos

Entre a escravidão e o trabalho livre: um estudo comparado de Brasil e Cuba noséculo XIXMaria Lúcia Lamounier

O arco do universo moralJoshua Cohen

A posse de Goulart: emergência da esquerda e solução de compromissoAlberto Carlos de Almeida

Page 276: Por uma antropologia do consumo

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ANTROPOLÍTICAANTROPOLÍTICAANTROPOLÍTICAANTROPOLÍTICAANTROPOLÍTICA Niterói, n. 17, p. 275–287, 2. sem. 2004

In córpore sano: os militares e a introdução da educação física no BrasilCelso Castro

Neoliberalismo, racionalidade e subjetividade coletivaJosé Maurício Domingues

Do “retorno do sagrado” às “religiões de resultado”: para uma caracterização dasseitas neopentecostaisMuniz Gonçalves Ferreira

Resenhas

As noites das grandes fogueiras – uma história da coluna PrestesJosé Augusto Drummond

Os sertões: da campanha de Canudos, Euclides da Cunha; o sertão prometido: massacre deCanudos no nordeste brasileiroTerezinha Maria Scher Pereira

REVISTA NO 3 – 2O SEMESTRE DE 1997

Artigos

Cultura, educação popular e escola públicaAlba Zaluar e Maria Cristina Leal

A política estratégica de integração econômica nas AméricasGamaliel Perruci

O direito do trabalho e a proteção dos fracosMiguel Pedro Cardoso

Elites profissionais: produzindo a escassez no mercadoMarli Diniz

A “Casa do Islã”: igualitarismo e holismo nas sociedades muçulmanasPaulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto

Quando o amor vira ficçãoWilson Poliero

Resenha

Nós, cidadãos, aprendendo e ensinando a democracia: a narrativa de umaexperiência de pesquisaAngela Maria Fernandes Moreira-Leite

Page 277: Por uma antropologia do consumo

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ANTROPOLÍTICAANTROPOLÍTICAANTROPOLÍTICAANTROPOLÍTICAANTROPOLÍTICA Niterói, n. 17, p. 275–287, 2. sem. 2004

REVISTA NO 4 – 1O SEMESTRE DE 1998

Artigos

Comunicação de massa, cultura e poderJosé Carlos Rodrigues

A sociologia diante da globalização: possibilidades e perspectivas da sociologia daempresaAna Maria Kirschner

Tempo e conflito: um esboço das relações entre as cronosofias de Maquiavel eAristótelesRaul Francisco Magalhães

O embate das interpretações: o conflito de 1858 e a lei de terrasMárcia Maria Menendes Motta

Os terapeutas alternativos nos anos 90: uma nova profissão?Fátima Regina Gomes Tavares

Resenha

Auto-subversãoGisálio Cerqueira Filho

REVISTA NO 5 – 2O SEMESTRE DE 1998

Artigos

Jornalistas: de românticos a profissionaisAlzira Alves de Abreu

Mudanças recentes no campo religioso brasileiroCecília Loreto Mariz e Maria das Dores Campos Machado

Pesquisa antropológica e comunicação intercultural: novas discussões sobre antigosproblemas.José Sávio Leopoldi

Três pressupostos da facticidade dos problemas públicos ambientaisMarcelo Pereira de Mello

Duas visões acerca da obediência política: racionalidade e conservadorismoMaria Celina D’Araújo

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ANTROPOLÍTICAANTROPOLÍTICAANTROPOLÍTICAANTROPOLÍTICAANTROPOLÍTICA Niterói, n. 17, p. 275–287, 2. sem. 2004

REVISTA NO 6 – 1O SEMESTRE DE 1999

Artigos

Palimpsestos estéticos y espacios urbanos: de la razón práctica a la razón sensibleJairo Montoya Gómez

Trajetórias e vulnerabilidade masculinaCeres Víctora e Daniela Riva Knauth

O sujeito da “psiquiatria biológica” e a concepção moderna de pessoaJane Araújo Russo, Marta F. Henning

Os guardiães da história: a utilização da história na construção de uma identidadebatista brasileiraFernando Costa

A escritura das relações sociais: o valor cultural dos “documentos” para ostrabalhadoresSimoni Lahud Guedes

A Interdisciplinaridade e suas (im)pertinênciasMarcos Marques de Oliveira

REVISTA NO 7 – 2O SEMESTRE DE 1999

Artigos

Le geste pragmatique de la sociologie française. Autour des travaux de LucBoltanski et Laurent ThévenotMarc Breviglieri e Joan Stavo-Debauge

Economia e política na historiografia brasileiraSonia Regina de Mendonça

Os paradoxos das políticas de sustentabilidadeLuciana F. Florit

Risco tecnológico e tradição: notas para uma antropologia do sofrimentoGlaucia Oliveira da Silva

Trabalho agrícola: gênero e saúdeDelma Pessanha Neves

Page 279: Por uma antropologia do consumo

279

ANTROPOLÍTICAANTROPOLÍTICAANTROPOLÍTICAANTROPOLÍTICAANTROPOLÍTICA Niterói, n. 17, p. 275–287, 2. sem. 2004

REVISTA NO 8 – 1O SEMESTRE DE 2000

Artigos

Prolegômenos sobre a violência, a polícia e o Estado na era da globalizaçãoDaniel dos Santos

Gabriel Tarde: Le monde comme feerieIsaac JosephEstratégias coletivas e lógicas de construção das organizações de agricultores noNordesteEric Sabourin

Cartórios: onde a tradição tem registro públicoAna Paula Mendes de Miranda

Do pequi à soja: expansão da agricultura e incorporação do Brasil centralAntônio José Escobar Brussi

Resenha

Terra sob água – sociedade e natureza nas várzeas amazônicasJosé Augusto Drummond

REVISTA NO 9 – 2O SEMESTRE DE 2000

Artigos

Desenvolvimento económico, cultural e complexidadeAdelino Torres

The field training project: a pioneer experiment in field work methods: EverettC. Hughes, Buford H. Junker and Raymond Gold’s re-invention of Chicago fieldstudies in the 1950’sDaniel Cefaï

Cristianismos amazônicos e liberdade religiosa: uma abordagemhistórico-antropológicaRaymundo Heraldo Maués

Poder de policía, costumbres locales y derechos humanos en Buenos Airesde los 90Sofía Tiscornia

Page 280: Por uma antropologia do consumo

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ANTROPOLÍTICAANTROPOLÍTICAANTROPOLÍTICAANTROPOLÍTICAANTROPOLÍTICA Niterói, n. 17, p. 275–287, 2. sem. 2004

A visão da mulher no imaginário pentecostalMarion Aubrée

Resenha

Reflexões antropológicas em tópicos filosóficosEliane Cantarino O’Dwyer

REVISTA NO 10/11 – 1O/2O SEMESTRES DE 2001

Artigos

Profissionalismo e mediação da ação policialDominique Monjardet

The plaintiff – a sense of injusticeLaura Nader

Religião e política: evangélicos na disputa eleitoral do Rio de JaneiroMaria das Dores Campos Machado

Um modelo para morrer: última etapa na construção social contemporânea dapessoa?Rachel Aisengart Menezes

Torcidas jovens: entre a festa e a brigaRosana da Câmara Teixeira

O debate sobre desenvolvimento entre o Brasil e os EUA na década de cinqüentaW. Michael Weis

El individuo fragmentado y su experiencia del tiempoCarlos Rafael Rea Rodríguez

Igreja do Rosário: espaço de negros no Rio ColonialLuitgarde Oliveira Cavalcanti Barros

In nomine pater: a ciência política e o teatro intimista de A. StrindbergGisálio Cerqueira Filho

Terra: dádiva divina e herança dos ancestraisOsvaldo Martins de Oliveira

Resenha

Estado e reestruturação produtivaMaria Alice Nunes Costa

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REVISTA NO 12/13 – 1O/2O SEMESTRES DE 2002

Artigos

Transição democrática e forças armadas na América LatinaMaria Celina D’Araújo

Mercado, coesão social e cidadaniaFlávio Saliba Cunha

Cultura local y la globalización del beber. De las taberneras en Juchitan, Oaxaca(México)Sergio Lerin Piñón

Romaria e missão: movimentos sociorreligiosos no sul do ParáMaria Antonieta da Costa Vieira

“O estrangeiro” em “campo”: atritos e deslocamentos no trabalho antropológicoPatrice Schuch

A transmissão patrimonial em favelasAlexandre de Vasconcelos Weber

A sociabilidade dos trabalhadores da fruticultura irrigada do platô de Neópolis/SEDalva Maria da Mota

A beleza traída: percepção da usina nuclear pela população de Angra dos ReisRosane M. Prado

Povos indígenas e ambientalismo – as demandas ecológicas de índios do rioSolimõesDeborah de Magalhães Lima

Raízes antropológicas da filosofia de MontesquieuJosé Sávio Leopoldi

Resenhas

A invenção de uma qualidade ou os índios que se inventa(ra)mMercia Rejane Rangel Batista

China’s peasants: the anthropology of a revolutionJoão Roberto Correia e José Gabriel Silveira Corrêa

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REVISTA NO 14 – 1O SEMESTRE DE 2003

Dossiê

Esporte e modernidadeApresentação: Simoni Lahud Guedes

Em torno da dialética entre igualdade e hierarquia: notas sobre as imagense representações dos Jogos Olímpicos e do futebol no BrasilRoberto DaMatta

Transforming Argentina: sport, modernity and national buildingin the peripheryEduardo P. Archetti

Futebol e mídia: a retórica televisiva e suas implicações na identidade nacional,de gênero e religiosaCarmem Sílvia Moraes Rial

Artigos

As concertações sociais na Europa dos anos 90: possibilidades e limitesJorge Ruben Biton Tapia

A (re)construção de identidade e tradições: o rural como tema e cenárioJosé Marcos Froehlich

A pílula azul: uma análise de representações sobre masculinidade em facedo viagraRogério Lopes Azize e Emanuelle Silva Araújo

Homenagem

René Armand Dreifusspor Eurico de Lima Figueiredo

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REVISTA NO 15 – 2O SEMESTRE DE 2003

Dossiê

Maneiras de beber: proscrições sociaisApresentação: Delma Pessanha Neves

Entre práticas simbólicas e recursos terapêuticos: as problemáticas de umitinerário de pesquisaSylvie Fainzang

Alcoólicos anônimos: conversão e abstinência terapêuticaAngela Maria Garcia

“Embriagados no Espírito Santo”: reflexões sobre a experiência pentecostal e oalcoolismoCecília L. Mariz

Artigos

Visões de mundo e projetos de trabalhadores qualificados de nível médio em seudiálogo com a modernidade tardiaSuzana BurnierO povo, a cidade e sua festa: a invenção da festa junina no espaço urbanoElizabeth Christina de Andrade LimaAntropologia e clínica – o tratamento da diferençaJaqueline Teresinha FerreiraMares e marés: o masculino e o feminino no cultivo do marMaria Ignez S. Paulilo

Resenhas

Antropologia e comunicação: princípios radicaisJosé Sávio LeopoldiPolitizar as novas tecnologias: o impacto sócio-técnico da informação digital egenéticaFátima PortilhoCriminologia e subjetividade no BrasilWilson Couto Borges

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REVISTA NO 16 – 1O SEMESTRE DE 2004

Homenagem

Luiz de Castro Faria: o professor eméritopor Felipe Berocan da Veiga

Dossiê

Políticas públicas, direito(s) e justiça(s) – perspectivas comparativasApresentação: Roberto Kant de Lima

Drogas, globalização e direitos humanosDaniel dos Santos

Detenciones policiales y muertes administrativasSofía Tiscornia

Os ilegalismos privilegiadosFernando Acosta

Artigos

Estado e empresários na América Latina (1980-2000)Álvaro BianchiO desamparo do indivíduo moderno na sociologia de Max WeberLuis Carlos FridmanA construção social dos assalariados na citricultura paulistaMarie Anne Najm ChalitaAs arenas iluminadas de Maringá: reflexões sobre a constituiçãode uma cidade médiaSimone Pereira da Costa

Resenhas

Ética e responsabilidade social nos negóciosPriscila Ermínia RiscadoNovas experiências de gestão pública e cidadaniaDaniela da Silva LimaUma ciência da diferença: sexo e gêneroFernando Cesar Coelho da Costa

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COLEÇÃO ANTROPOLOGIA E CIÊNCIA POLÍTICA

1. Os fornecedores de cana e o Estado intervencionistaDelma Pessanha Neves

2. Devastação e preservação ambiental no Rio de JaneiroJosé Augusto Drummond

3. A predação do socialAri de Abreu Silva

4. Assentamento rural: reforma agrária em migalhasDelma Pessanha Neves

5. A antropologia da academia: quando os índios somos nósRoberto Kant de Lima

6. Jogo de corpo: um estudo de construção social de trabalhadoresSimoni Lahud Guedes

7. A qualidade de vida no Estado do Rio de JaneiroAlberto Carlos Almeida

8. Pescadores de Itaipu (Série Pesca no estado do Rio de Janeiro)Roberto Kant de Lima

9. Sendas da transiçãoSylvia França Schiavo

10. O pastor peregrinoArno Vogel

11. Presidencialismo, parlamentarismo e crise política no BrasilAlberto Carlos Almeida

12. Um abraço para todos os amigos: algumas considerações sobre otráfico de drogas no Rio de JaneiroAntônio Carlos Rafael Barbosa

13. Escritos exumados – 1: espaços circunscritos – tempos soltosL. de Castro Faria

14. Violência e racismo no Rio de JaneiroJorge da Silva

15. Novela e sociedade no BrasilLaura Graziela Figueiredo Fernandes Gomes

16. O Brasil no campo de futebol: estudos antropológicos sobre ossignificados do futebol brasileiroSimoni Lahud Guedes

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17. Modernidade e tradição: construção da identidadesocial dos pescadores de Arraial do Cabo (RJ)(Série Pesca no estado do Rio de Janeiro)Rosyan Campos de Caldas Britto

18. As redes do suor – a reprodução social dos trabalhadores dapesca em Jurujuba (Série Pesca no estado do Rio de Janeiro)Luiz Fernando Dias Duarte

19. Escritos exumados – 2: dimensões do conhecimentoantropológicoL. de Castro Faria

20. Seringueiros da Amazônia: dramas sociais e o olharantropológico (Série Amazônia)Eliane Cantarino O’Dwyer

21. Práticas acadêmicas e o ensino universitárioPaulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto

22. “Dom”, “Iluminados” e “Figurões”: um estudo sobre arepresentação da oratória no Tribunal do Júri do Rio de JaneiroAlessandra de Andrade Rinaldi

23. Angra I e a melancolia de uma eraGláucia Oliveira da Silva

24. Mudança ideológica para a qualidadeMiguel Pedro Alves Cardoso

25. Trabalho e residência: estudo das ocupações de empregadadoméstica e empregado de edifício a partir de migrantes“nordestinos”Fernando Cordeiro Barbosa

26. Um percurso da pintura: a produção de identidades de artistaLígia Dabul

27. A sociologia de Talcott ParsonsJosé Maurício Domingues

28. Da anchova ao salário mínimo: uma etnografiasobre injunções de mudança social em Arraial do Cabo/RJ (SériePesca no estado do Rio de Janeiro)Simone Moutinho Prado

29. Centrais sindicais e sindicatos no Brasil dos anos 90:o caso NiteróiFernando Costa

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30. Antropologia e direitos humanos (Série Direitos Humanos)Regina Reyes Novaes e Roberto Kant de Lima

31. Os companheiros – trabalho e sociabilidade na pesca de Itaipu/RJ (Série Pesca no estado do Rio de Janeiro)Elina Gonçalves da Fonte Pessanha

32. Festa do Rosário: iconografia e poética de um ritoPatrícia de Araújo Brandão Couto

33. Antropologia e direitos humanos 2 (Série Direitos Humanos)Roberto Kant de Lima

34. Em tempo de conciliaçãoAngela Moreira-Leite

35. Floresta de símbolos – aspectos do ritual NdembuVictor Turner

36. Produção da verdade nas práticas judiciárias criminaisbrasileiras: uma perspectiva antropológica de umprocesso criminalLuiz Figueira

37. Ser polícia, ser militar: o curso de formaçãona socialização do policial militarFernanda Valli Nummer

38. Antropologia e direitos humanos 3Roberto Kant de Lima

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NORMAS DE APRESENTAÇÃO DE TRABALHOS

1. A Revista Antropolítica, do Programa de Pós-Graduação emAntropologia e Ciência Política da UFF, aceita originais de ar-tigos e resenhas de interesse das Ciências Sociais e de Antro-pologia e Ciência Política em particular.

2. Os textos serão submetidos aos membros do Conselho Edito-rial e/ou a pareceristas externos, que poderão sugerir ao au-tor modificações de estutura ou conteúdo.

3. Os textos não deverão exceder 25 páginas, no caso dos arti-gos, e oito páginas, no caso das resenhas. Eles devem ser apre-sentados em uma cópia impressa em papel A4 (210 x 297mm),espaço duplo, em uma só face do papel, bem como em disqueteno programa Word for Windows 6.0, em fontes Times NewRoman (corpo 12), sem qualquer tipo de formatação, a nãoser:• indicação de caracteres (negrito e itálico);• uso de itálico para termos estrangeiros e títulos de livros eperiódicos.

4. As citações bibliográficas serão indicadas no corpo do texto,entre parênteses, com as seguintes informações: sobrenomedo autor em caixa alta; vírgula; data da publicação; vírgula;abreviatura de página (p.) e o número desta.(Ex.: PEREIRA, 1996, p. 12-26).

5. As notas explicativas, restritas ao mínimo indispensável, deve-rão ser apresentadas no final do texto.

6. As referências bibliográficas deverão ser apresentadas no finaldo texto, obedecendo às normas da ABNT (NBR-6023).

Livro:MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos e outros textos escolhi-

dos. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1978. 208 p. (Os pensa-dores, 6).

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LÜDIKE, Menga, ANDRÉ, Marli E. D. A. Pesquisa em educação:abordagens qualitativas. São Paulo: EPU, 1986.

FRANÇA, Junia Lessa et al. Manual para normalização de publica-ções técnico-científicas. 3. ed. rev. e aum. Belo Horizonte: Ed.da UFMG, 1996. 191 p.

Artigo:ARRUDA, Mauro. Brasil : é essencial reverter o atraso. Panorama

da Tecnologia, Rio de Janeiro, v. 3, n. 8, p. 4-9, 1989.

Trabalhos apresentados em eventos:AGUIAR, C. S. A. L. et al. Curso de técnica da pesquisa biblio-

gráfica: programa-padrão para a Universidade de São Paulo.In: CONGRESSO BRASILEIRO DE BIBLIOTECONOMIAE DOCUMENTAÇÃO, 9. 1977, Porto Alegre. Anais... PortoAlegre: Associação Rio-Grandense de Bibliotecários, 1977.p. 367-385.

7. As ilustrações deverão ter a qualidade necessária para umaboa reprodução gráfica. Elas deverão ser identificadas comtítulo ou legenda e designadas, no texto, como figura (Figura1, Figura 2 etc.).

8. Os textos deverão ser acompanhados de título e resumo (má-ximo de 250 palavras), bem como de três a cinco palavras-chave. Título, resumo e palavras-chave também devem serapresentados em inglês.

9. Os textos deverão ser precedidos de identificação do autor(nome, instituição de vínculo, cargo, título, últimas publica-ções etc.), que não ultrapasse cinco linhas e endereços paracontato (endereço eletrônico e telefones).

10. Os colaboradores terão direito a cinco exemplares da revista.11. Os originais não aprovados não serão devolvidos.12. Os artigos, as resenhas e a correspondência editorial deverão

ser enviados para:Comitê Editorial da Antropolítica

Programa de Pós-Graduação em Antropologia e Ciência PolíticaCampus do Gragoatá, Bloco “O”

24210-350 – Niterói, RJTels.: (21) 2629-2862 e (21) 2629-2863

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