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Por uma antropologia do bullying: etnografia de experiências multilocalizadas em torno da tipificação de um gênero de violência difusa Juliane Bazzo 1 Resumo: O propósito da comunicação é expor elementos teóricos, metodológicos e etnográficos de um estudo antropológico sobre o empreendimento moral do bullying no contexto brasileiro urbano contemporâneo, pesquisa que constitui minha tese de doutorado em desenvolvimento. Originado em fins da década 70 nos países escandinavos, o conceito de bullying desde então espalhou-se pelo mundo e, no Brasil, ganha repercussão pública ao longo dos anos 2000. Hoje popularizada em esferas sociais diversas, para designar agressões intimidatórias repetitivas entre pares, a categoria de bullying delimitou-se primeiramente conectada a episódios ocorridos nos ambientes escolares. A pesquisa em questão propõe-se a discutir a emergência de uma nominação específica para um fenômeno que não é necessariamente moderno, mas que na contemporaneidade, uma vez cientificamente nomeado, passa a intervir tanto em áreas do saber e em práticas de governo, quanto na elaboração das subjetividades juvenis. Nesse sentido, a proposta é de um percurso etnográfico a partir da análise de “campos”, no sentido de P. Bourdieu para o termo, nos quais a percepção de bullying vem sendo constituída e problematizada. Dentre tais “campos” destacam-se o científico, o estatal e o educacional. O primeiro compreende as vertentes acadêmicas dedicadas a pensar a categoria, como a pedagogia e a psicologia. O segundo diz respeito à inserção do fenômeno na construção de políticas públicas de combate à violência juvenil. O terceiro, por fim, abrange a sociabilidade das instituições de ensino, no interior da qual eventos de bullying vêm se materializando, inclusive como cyberbullying. Palavras-chave: Bullying; antropologia moral; ambientes escolares; subjetividades juvenis. Introdução 1 Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Antropologia Social na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGAS/UFRGS).

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Por uma antropologia do bullying: etnografia de experiências multilocalizadas em

torno da tipificação de um gênero de violência difusa

Juliane Bazzo1

Resumo: O propósito da comunicação é expor elementos teóricos, metodológicos e

etnográficos de um estudo antropológico sobre o empreendimento moral do bullying no

contexto brasileiro urbano contemporâneo, pesquisa que constitui minha tese de

doutorado em desenvolvimento. Originado em fins da década 70 nos países escandinavos,

o conceito de bullying desde então espalhou-se pelo mundo e, no Brasil, ganha

repercussão pública ao longo dos anos 2000. Hoje popularizada em esferas sociais

diversas, para designar agressões intimidatórias repetitivas entre pares, a categoria de

bullying delimitou-se primeiramente conectada a episódios ocorridos nos ambientes

escolares. A pesquisa em questão propõe-se a discutir a emergência de uma nominação

específica para um fenômeno que não é necessariamente moderno, mas que na

contemporaneidade, uma vez cientificamente nomeado, passa a intervir tanto em áreas do

saber e em práticas de governo, quanto na elaboração das subjetividades juvenis. Nesse

sentido, a proposta é de um percurso etnográfico a partir da análise de “campos”, no

sentido de P. Bourdieu para o termo, nos quais a percepção de bullying vem sendo

constituída e problematizada. Dentre tais “campos” destacam-se o científico, o estatal e

o educacional. O primeiro compreende as vertentes acadêmicas dedicadas a pensar a

categoria, como a pedagogia e a psicologia. O segundo diz respeito à inserção do

fenômeno na construção de políticas públicas de combate à violência juvenil. O terceiro,

por fim, abrange a sociabilidade das instituições de ensino, no interior da qual eventos de

bullying vêm se materializando, inclusive como cyberbullying.

Palavras-chave: Bullying; antropologia moral; ambientes escolares; subjetividades

juvenis.

Introdução

1 Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Antropologia Social na Universidade Federal do Rio

Grande do Sul (PPGAS/UFRGS).

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Desde 2014, no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social

da Universidade Federal do Rio Grande de Sul (PPGAS/UFRGS), desenvolvo pesquisa

de doutorado cujo tema é o empreendimento moral do bullying no contexto urbano

brasileiro contemporâneo. O propósito desta comunicação é expor alguns subsídios

teóricos, metodológicos e etnográficos que vêm ofertando sustentação a esse estudo.

A pesquisa de doutorado contempla a etnografia de múltiplas experiências –

especialmente nos contextos estatal, científico e educacional – que têm definido o

bullying como um gênero de violência difusa. A imersão etnográfica nesses espaços

almeja compreender e problematizar a atuação dos “empreendedores morais” (Becker,

2008 [1963]), que constituem indivíduos, instituições, iniciativas e documentos

responsáveis hoje por delimitar regramentos em torno de posturas condenatórias

classificadas como bullying. Tal enfoque integra a “teoria interacionista do desvio” de

Howard Becker, a qual posiciona a criação de normatizações como um “drama

complexo”, com desenvolvimento no tempo e implicação de uma rede cooperativa de

atores, cujos interesses muitas vezes divergem.

Bullying designa em língua inglesa o ato decorrente do substantivo bully, que

significa algo próximo a “brigão” ou “valentão” em português. Estabelecido enquanto

construto científico em fins da década de 70 por Dan Olweus, professor de psicologia da

Universidade de Bergen, na Noruega, o bullying alastrou-se mundialmente desde então,

na função de nomear a agressão cotidiana intimidatória e repetitiva entre pares,

notadamente nos ambientes escolares. No Brasil, o termo experimenta enorme

popularização a partir dos anos 2000. A essa altura, já havia transcendido, aqui e

internacionalmente, a aplicação ao universo educacional, bem como ganhado uma nova

e moderna faceta, a de cyberbullying (Rolim, 2008; Bully, 2011).

É imprescindível situar a emergência do bullying no contexto urbano

contemporâneo brasileiro em um quadro de grande evolução, sem precedentes históricos,

de políticas públicas em prol do reconhecimento e do respeito à diversidade cultural no

país, a partir do Governo Luís Inácio Lula da Silva, iniciado em 2003. Uma amostra disso

é obtida da comparação entre as edições II e III do Programa Nacional de Direitos

Humanos, implementados respectivamente em 2002 e 2010 pelo governo brasileiro.

No primeiro documento, não há menção a estratégias de enfrentamento do

bullying no contexto educacional; no segundo, tais estratégias não somente aparecem,

como contemplam a questão do cyberbullying (Brasil, 2002; 2010). A elevação do

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bullying enquanto objeto de políticas públicas conecta-se, certamente, à intensificação de

abordagens em torno de tal conceito na produção científica brasileira, especialmente a

partir de 2005, como recurso para refletir acerca do recrudescimento da violência escolar

sob formas diversas (Oliveira-Menegotto et al., 2013).

No processo de passar de conceito acadêmico à fenômeno social objeto de

políticas públicas no Brasil, o bullying torna-se assim um construto eficaz para abarcar

uma série de enquadramentos de caráter “acusatório” (Becker, 2008 [1963], Velho, 1981)

presentes na realidade urbana brasileira e replicados em diversos ambientes, como os

escolares. Nesse universo, é possível incluir categorizações pautadas por racismo,

homofobia, misoginia, lipofobia e ódio de classe, ou seja, enquadramentos vinculados a

intolerâncias cristalizadas na sociedade brasileira contra negros, homossexuais, mulheres,

obesos e indivíduos pertencentes a estratos empobrecidos da população.

Na esteira da interrogação efetuada por Foucault (1984) quando abraça a

sexualidade e os processos de dominação em torno do corpo como temática de estudo, a

pesquisa antropológica em questão inquiri acerca das condições e motivações que levam

práticas tipificadas como bullying, que indubitavelmente não são novas, a se tornar

“objeto de preocupação moral” sob uma nomenclatura diferenciada na

contemporaneidade urbana brasileira. Conforme Foucault esclarece, o olhar analítico em

busca de respostas deve se deslocar de uma tautologia de “interdições” para as

“problematizações morais”. Por conseguinte, o problema da pesquisa concentra-se no

exame crítico de “campos de saber”, “tipos de normatividade” e “formas de

subjetividade” que cercam na atualidade o “dispositivo” denominado por bullying.

Uma hipótese importante abraçada pelo estudo é que, embora propicie nova

visibilidade a formas de violência arraigadas na sociedade brasileira, o bullying enquanto

categoria, no interior de discussões estatais, acadêmicas e educacionais, tem contemplado

os conflitos no limite dos grupos escolares, como embates entre indivíduos atomizados,

em detrimento de uma imprescindível abordagem de contextos sociológicos mais amplos.

Logo, apesar do debate e da ação em torno do reconhecimento e do respeito às alteridades

pareçam possíveis lançando mão do construto do bullying, não tem havido abordagem

aprofundada a respeito das hierarquias de poder que determinam as diferenças, ou seja,

daquilo que Fassin (2009) chama de “inequalities”.

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Considerado esse cenário, pode-se se estar diante de um novo momento de

visibilidade daquilo que Caldeira (2000) denomina de “democracia disjuntiva”,

concepção cunhada juntamente com J. Holston, para pensar o avanço da criminalidade

posteriormente à redemocratização brasileira, em meados dos anos 80. Segundo essa

ideia, é possível que a “expansão da cidadania política” se dê simultânea e

contraditoriamente a uma “deslegitimação da cidadania civil”.

No período considerado por Caldeira, tal panorama se configurou em virtude de

uma tensão entre a abertura política e a simultaneidade de crises de ordem econômica,

legal e urbana que assolavam o país naquele momento histórico, tornando assim expostos

os “limites e desafios da democratização brasileira”. Nos anos recentes, verifica-se um

quadro especular, passível de aproximação: há um avanço de políticas em favor da

diversidade cultural e, paradoxalmente, a manutenção de um quadro de profundas

desigualdades socioeconômicas. A permanência desse quadro, por seu turno, não trabalha

pela contemplação da alteridade, mas sim pela subjugação dela em prol de hierarquias de

poder de feições brancas, elitizadas, heteronormativas e machistas, para citar alguns

exemplos.

Justificativa do estudo

Na contramão de uma perspectiva sociológica que entende o conflito enquanto

elemento de desagregação, Simmel (1983 [1908]) defende que uma coletividade sem

embates seria empiricamente impossível e visualiza o confronto como uma forma de

“sociação”. Nesse sentido, a ausência de conflito não pressuporia a plenitude da vida em

sociedade. Ao contrário, para a efetiva constituição do social, a discordância situa-se tão

positiva quanto a concordância no que tange ao potencial de interação entre os sujeitos.

Simmel argumenta que a animosidade é parte constituinte e necessária do universo

urbano moderno mais que em qualquer outro. Isso porque, em tal contexto, as

possibilidades de interações se ampliam de uma forma sem precedentes e a indiferença a

tantos estímulos, apesar de desejada, é cognitivamente imaterializável pelos indivíduos.

Desse modo, divergências definem fronteiras pessoais e grupais que, muitas vezes, não

poderiam ser estabelecidas por outra via nesse corpus social. Simmel, portanto, posiciona

a cidade como sede de uma “... hierarquia extremamente complexa de simpatias,

indiferenças e aversões, do tipo mais efêmero ao mais duradouro” (ibid., p. 128). Com

base em tal constatação, poder-se-ia dizer que a notoriedade atual do bullying, enquanto

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construto científico e fenômeno social, opera enquanto parte integrante dessa intrincada

e dinâmica ordenação de emotividades no cenário urbano.

O autor ainda advoga que o exercício da hostilidade confere um “sentimento de

poder virtual”, que não precisa envolver o confronto físico propriamente dito entre os

citadinos (id.). A pergunta que se abre é por que tal espécie de poder tão fluido se revela

significativo. Em “A metrópole e a vida mental”, Simmel (1979 [1902]) oferece substrato

para uma resposta. Nesse artigo, para refletir sobre a acomodação da personalidade à

racionalidade da vida urbana, o pensador reconstrói rápida, mas efetivamente, o processo

histórico-social de delimitação da concepção de pessoa ocidental moderna.

Nesse panorama, o século XVIII foi palco do “grito por liberdade e igualdade” de

um indivíduo historicamente entendido como subjugado política, econômica e

religiosamente. O século XIX, por sua vez, experimenta o aprofundamento da divisão

social do trabalho, a ascensão do romantismo e, em direta conexão com tais

acontecimentos, o surgimento de um desejo de distinção individual. O século XX, por

fim, vivencia o embate entre essas duas modalidades de delimitar “o papel do indivíduo”

no todo social (id.).

Se, por um lado, a impessoalidade das metrópoles concede aos habitantes um

anonimato aspirado, por outro, a liberdade dos indivíduos apenas pode se tornar operativa

pela manifestação de uma personalidade particular, ou seja, que se mostre não imposta

pelos outros. Do contrário, retorna-se à condição de sujeição de séculos anteriores. Para

evitar tal regressão, diz Simmel, o citadino passa a aderir ao “... extremo no que se refere

à exclusividade e particularização, para preservar sua essência mais pessoal (...) [,] para

permanecer perceptível até para si próprio” (ibid., p. 26). Esse sujeito apela assim ao que

o autor chama de “extravagâncias especificamente metropolitanas”, como “maneirismos”

e “caprichos”, para despertar o olhar social e se destacar de modo considerável.

Tal linha do tempo poderia ser completada com a ideia de que, no século XXI, o

afloramento de polêmicas em torno do bullying expressa a permanência e talvez o

acirramento das tensões entre as duas referidas concepções de pessoa, uma permeada pela

igualdade e outra pela diferença. Em meio à impessoalidade metropolitana, o exercício

do bullying – que não é inédito, embora o conceito o seja – expressaria uma busca de

distinção individual por meio da inferiorização moral do outro. Porém, graças ao respaldo

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científico do conceito, trata-se hoje de um tipo de comportamento a ser combatido por

ferir o princípio moderno da igualdade humana em termos de valor.

Nessa direção, é válida a observação de Elias (1994 [1939]) de que, para cada

“estrutura social” há, intrinsecamente conectada, uma “estrutura de personalidade”

correspondente2. Esse autor confere maior amplitude histórica à linha do tempo antes

traçada, ao assinalar que, desde a Idade Média, a sentimentalidade ocidental vem

experimentando um “processo psíquico civilizador” [grifo do original].

Na sociabilidade medieval, havia pouco dinheiro em circulação e os prisioneiros

constituíam parte da riqueza do feudo inimigo, portanto, fazia mais sentido mutilá-los ou

aniquilá-los que prendê-los e alimentá-los. Essa atmosfera guerreira mostrava-se

permanente, instaurada em maior ou menor grau em todos os segmentos sociais, como

nos conflitos entre famílias burguesas das incipientes cidades. Assim, na Idade Média, o

confronto constante atuava como um “intoxicante” para que as pessoas administrassem

temores e instabilidades, numa sociedade em que inexistia um poder centralizador capaz

de controlar a agressividade (id.).

A partir do século XVI, com a derrocada do regime feudal, os nobres se voltam

para as cortes, onde não são mais senhores e experimentam um cotidiano repleto de novos

atores com os quais devem se relacionar, não de forma subjugadora como com seus

servos, mas sim considerando a posição de cada indivíduo naquele complexo universo.

Uma autodisciplina emocional e uma observação recíproca do comportamento

simultaneamente se impõem, num panorama de novos vínculos de interdependência e

poder (id.).

Essas transformações repercutem quando da edificação dos estados-nação

ocidentais a partir do século XVIII, segundo Elias (1997), fortemente vinculada à

consolidação do “monopólio intraestatal da força”, materializado em instituições

policiais, militares e tributárias. De um lado, o êxito desse arranjo expressa-se no

estabelecimento de um “tabu” razoavelmente eficaz de controle do uso irrestrito da

violência física, interdito este persistente até hoje. Por outro lado, “surtos

2 Cf. Waizbort (2001) para uma exploração mais aprofundada de frutíferas relações teóricas entre Simmel

e Elias, bem como para maiores detalhes sobre as apropriações sociológicas e antropológicas, de caráter

relativamente recente, da produção deste último autor.

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descivilizadores” permaneceram sempre uma possibilidade e, não raro, se manifestam

com antigos ou novos contornos.

Logo, em quaisquer sociedades, “processos civilizadores” caracterizam-se pela

intrínseca instabilidade. Nunca estão dados ou acabados; pelo contrário, exigem

investimentos permanentes em “autodisciplina” e “pacificação social”. Coletividades e

indivíduos situam-se, assim, enquanto “processos em desenvolvimento”, que abrangem

“graus variáveis de harmonia e conflito” (id.). Conforme Elias (1994 [1939]), a flutuação

dos significados em torno dos termos “civilizado” e “incivilizado”, que se pode mapear

na história recente, evidencia esse dinamismo.

Rezende e Coelho (2010), pautadas pela obra do referido autor para uma análise

antropológica da emotividade ocidental, destacam que a educação vive hoje o dilema de,

no curto período escolar, interiorizar em crianças e jovens “um controle sobre o corpo e

os afetos” realizado ao longo de séculos pelos indivíduos.

Fassin (2013), por sua vez, em uma etnografia acerca da atuação rotineira da

polícia francesa, aponta que, no cenário de pacificação das sociedades contemporâneas,

enquanto as agressões físicas para além dos aparatos estatais mostraram-se objeto

constantemente privilegiado de repressão e penalização, as investidas morais, cujos

limites são menos palpáveis, não emergiram em mesma intensidade como alvos de

controle e sanção. Desse modo, a “violência moral” – a qual o bullying é associado – pôde

constituir-se, segundo ele, como uma espécie de “violência substituta”.

A irrupção do debate público acerca da agressividade moral cristaliza assim, nos

termos de Das e Poole (2008), “margens” estatais, tanto por demarcar contextos que

impulsionam o poder público a legislar e impor ordenação, quanto por abranger práticas

sociais que, de modo desafiador, expõem a incapacidade das determinações oficiais em

abarcar por completo as contingências da vida cotidiana.

Logo, verifica-se que o panorama delimitado nas reflexões tanto de pensadores

clássicos das ciências sociais, quanto de antropólogos contemporâneos, evidencia a

conformação de um terreno sociocultural propício à emergência do bullying enquanto

conceito e fenômeno no tempo presente e, por conseguinte, como objeto de estudo

merecedor de atenção.

Uma intermitência: dois “eventos críticos”

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Considerada a justificativa antes exposta, é possível afirmar a efetuação de um

estudo antropológico sobre o empreendimento moral do bullying no contexto brasileiro

afina-se com a premência destacada por Das et al. (2000) acerca do desenvolvimento de

etnografias voltadas a pensar, simultaneamente, a constituição de violências e a

elaboração de subjetividades na atual configuração planetária. De acordo com esses

autores, o debate centrado em conflitos do tipo “contratual”, tradicionalmente

circunscritos a relações de poder e dominação entre estados-nação “satélites” e

“periféricos”, foi suplantando pelo estabelecimento de uma “nova geografia política”.

Nesse quadro, qualquer localidade mundial aparece hoje como “área predisposta

à violência”, que ocorre cada vez mais entre atores habitantes de um mesmo espaço físico

e inseridos em um mesmo universo sociocultural. Tal reordenação político-geográfica,

sem dúvida, recebe influência da intensificação de “fluxos globais” – de capitais,

imagens, pessoas, dentre outros elementos –, que coloca desafios à operação de lógicas

culturais locais e à formatação de identidades individuais. Nesse panorama, noções

estanques de estados de “normalidade” e de “patologia” se suspendem, tendo em vista

que as fronteiras entre “tempos de violência” e “tempos de paz” revelam-se cada vez mais

“borradas” (id.).

Diante disso, as etnografias nessa direção precisam estar atentas a “formas de

violência severamente dispersas”, perpetradas por agentes diversificados. Dentre estes,

os governos nacionais e seus aparatos bélicos continuam a exercer um papel importante,

mas o monopólio estatal da força exige relativização, haja vista a potência de outras

instâncias: algumas de existência evidente, como confrontos étnicos, conflitos religiosos,

guerras civis e ataques terroristas; algumas de natureza tênue e que, por isso, interessam

mais a esta proposta de pesquisa, como a “violência tecnológica da ciência organizada”,

a violência desencadeada por políticas públicas equivocadas, a cyber violência ou a

violência moral do cotidiano (id.).

Nessa esteira, Das (1995) convoca a, etnograficamente, verificar a inexorável

conexão de episódios extraordinários de violência (pode-se lembrar aqui dos homicídios

e suicídios supostamente motivados por bullying, que vêm sendo noticiados pela

imprensa nacional e internacional) com ocorrências violentas ordinárias, materializadas

em diferentes ordens – estatal, científica, mercadológica, educacional, familiar,

comunitária, etc. A autora defende que “eventos críticos”, de teor extraordinário, não

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devem ser vistos como acontecimentos isolados ou sensacionais, mas sim enraizados na

vida ordinária, antes, durante e depois de seu desenrolar.

A materialização dos “eventos críticos” passa pela atuação simultânea e

diacrônica de uma série de instituições e atores, indica a “redefinição de categorias

tradicionais” e sinaliza a instituição de “novos modos de ação”. O contexto em que Das

(id.) situa tal conceito constitui, portanto, uma via profícua de longo alcance, não

maniqueísta ou essencialista, para refletir acerca das sutilezas, multidimensionalidades e

complexidades típicas do quadro de violência contemporâneo, do qual o bullying se

tornou parte relevante.

Nesse sentido, é imprescindível destacar dois “eventos críticos” fundamentais

para pensar a emergência do bullying, tanto internacional quanto nacionalmente, bem

como os desdobramentos ainda em curso diante da popularização de tal categoria.

Dan Olweus (2013), em artigo recente sobre o estado da arte dos estudos

científicos em torno do construto por ele criado, relata que o bullying tornou-se temática

de grande notoriedade acadêmica nos Estados Unidos apenas no início do século XXI.

Portanto, mais de uma década após terem aguçado fortemente os interesses em torno da

questão na Austrália e na Europa (excetuando-se os países escandinavos, onde o debate

iniciou nos anos 70 com as pesquisas de Olweus).

A despeito do referido intervalo temporal em relação ao boom da pesquisa,

sobretudo europeia, a discussão estadunidense acerca do bullying recebe impulso

diferencial em comparação a outros países por conta da materialização de um

acontecimento que pode ser posicionado como um “evento crítico” (Das, 1995). Trata-se

da tragédia ocorrida no ano de 1999 em Columbine High School (Colorado), quando dois

alunos abriram fogo contra estudantes e professores, motivados, segundo a opinião

pública, por sucessivas situações de humilhação e exclusão na escola.

Os assassinos, que se suicidaram a tiros na cena do crime, foram assim

responsáveis pelo maior ataque armado a uma instituição de ensino até então registrado

na história dos Estados Unidos. Tal quadro ofertou enorme impulso às discussões nesse

país, nas mais diversas instâncias, sobre o bullying associado ao fenômeno do school

shooting (Oliveira-Menegotto et al., 2013). Atualmente, o governo norte-americano conta

com uma série de iniciativas de prevenção e combate ao bullying, concentradas na

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plataforma StopBullying.gov3 e articuladas em parceria com a comunidade acadêmica e

com a sociedade civil.

Sob à luz da potência atribuída por Das (1995) aos “eventos críticos”, não

surpreende que o avanço da produção científica estadunidense acerca do bullying ocorra

justamente após o massacre em Columbine School, a partir dos anos 2000, com

desdobramentos em diversas políticas públicas. Ao mesmo tempo, também não parece

imprevisto que o debate brasileiro sobre bullying ganhe enorme fôlego a partir de um

“evento crítico” local, cuja leitura pública ocorreu subsidiada pelos elementos que

cercaram o incidente na escola norte-americana.

Trata-se do chamado massacre de Realengo, ocorrido em 2011, na Escola

Municipal Tasso da Silveira, situada no referido bairro carioca. Nessa ocasião, o ex-aluno

Wellington Menezes de Oliveira, sob a justificativa de dar uma palestra aos alunos,

adentrou a instituição de ensino e matou a tiros mais de uma dezena estudantes. Logo

depois, quando em fuga da polícia, suicidou-se com um disparo na cabeça (Veja, 2011).

Professores e alunos relataram que, durante o período escolar, Wellington era

tachado como portador de problemas psicológicos, por ser extremamente retraído.

Também não se mostrava bom estudante e, ademais, mancava de uma perna. Esse

conjunto de características o teria tornado vítima frequente de bullying por parte dos

colegas e foi compreendido como elemento potencialmente gerador do homicídio (id).

Tal tragédia teve uma série de desdobramentos, dentre eles, uma proposição de lei

nacional (n. 3.015/2011), ainda em andamento, para transformar o dia 7 de abril, data do

incidente em Realengo, no Dia Nacional de Combate ao Bullying. Além disso, o massacre

fez avançar as discussões do chamado Programa Nacional de Combate à Intimidação

Sistemática (Bullying), que tramitava enquanto projeto de lei (n. 5.369) da Câmara

Federal desde 2009, mas cuja aprovação final pelo Senado Federal se deu 2013, para

retorno e finalização de voto na casa de origem, sob grandes holofotes midiáticos.

Os pareceres que cercam as discussões dessas propostas – e de uma série de outras,

em andamento ou arquivadas, que tematizam o bullying no Congresso Nacional – vêm se

apoiando constantemente em evidências da literatura científica nacional e internacional

3 Cf. http://www.stopbullying.gov/.

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(Câmara Federal, 2014; Senado Federal, 2014)4. Não obstante, conforme revelam

pesquisadores atuais da questão do bullying entrevistados para a tese de doutorado em

questão, a maior parte da produção científica brasileira replica hoje dados oriundos de

literatura estrangeira e conta, portanto, com diminuta contribuição original, vinda de

poucos grupos de pesquisa ativos, como aqueles por eles coordenados.

Nesse universo de replicação de dados, as pesquisas conduzidas nos Estados

Unidos possuem grande relevância (Lisboa, 2015; Grossi & Santos, 2015)5. A

legitimidade de tais estudos faz com que sejam objeto de um número ainda bastante

reduzido de críticas. Um exemplo é a análise de Porter (2013), educadora que argumenta

haver nos Estados Unidos uma “obsessão” em relação ao bullying, que dispersa um

excessivo controle do risco da violência nas escolas, em meio a animosidades típicas entre

pares na infância e na adolescência.

Referencial teórico

O arcabouço conceitual da pesquisa de doutorado em questão alinha-se, por

conseguinte, a três vertentes antropológicas. A primeira delas é uma Antropologia das

Sociedades Complexas, capitaneada por Velho (1981, 2013) no cenário brasileiro. A

partir de um diálogo estabelecido especialmente com Becker (2008 [1963]) e sua “teoria

interacionista do desvio”, Velho centra-se em desmontar uma analítica estritamente

psicológica do comportamento desviante, atribuído a indivíduos “inadaptados”,

“marginais” ou “outsiders”, que se encontram, em verdade, inseridos em situações

socioculturais específicas, permeadas por jogos de poder, nas sociedades moderno-

contemporâneas.

A ideia de desviante surge duplamente aplicável ao estudo antropológico do

empreendimento moral do bullying, pois pode referir-se tanto a agredidos por esse tipo

de violência difusa, vitimados devido a inadaptações a uma ordenação cultural

hegemônica, quanto a agressores, na medida em que estes têm sido repreendidos por

posturas violentas não consoantes a uma pacificação social desejada. A teoria do desvio

permite assim refletir acerca das implicações que conduzem certos comportamentos a

4 Para se ter uma ideia do volume, seis dezenas de documentos, que têm por assunto a questão do bullying,

estão disponíveis para acesso nos bancos de dados da Câmara e do Senado, entre projetos de lei e

requerimentos.

5 Outros países que figuram importantes são o Canadá, a Austrália e a Inglaterra, além obviamente das

nações escandinavas, onde a discussão se originou.

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migrarem de uma “área de significado aberto” (Velho, 1981) onde se encontravam no

passado, entendidos muitas vezes como brincadeiras entre pares escolares, a um espaço

hoje demarcado pelo desvio sob a nomenclatura de bullying.

A segunda vertente com a qual se afina a pesquisa é uma Antropologia

Neofoucaultiana do Neoliberalismo, pautada pela noção de “governamentalidade”

(Foucault, 1979). De acordo com esse viés, o neoliberalismo atual não se situa

estritamente como uma ideologia político-econômica, presentes em países como os

Estados Unidos e o Brasil, mas sim enquanto uma “normatividade generalizada”,

traduzida num conjunto de “... noções, estratégias e tecnologias de cálculo destinadas a

moldar populações e pessoas” (Wacquant, 2012, p. 508). Sob essa luz, as técnicas de

governo de condutas não residem exclusivamente no aparato estatal, mas se produzem e

se transformam também em outros domínios sob interação, como o corpo, a

subjetividade, a família, a comunidade, a educação, o mercado, o consumo, a cidade,

dentre outros.

Nesse campo de análise, emerge uma noção fundamental, a de “global

assemblage”, que, segundo Ong e Collier (2005, p. 4, tradução minha), busca abranger

antropologicamente não “... as mudanças associadas com a globalização em termos de

transformações estruturais amplas ou novas configurações da sociedade ou da cultura.

Em vez disso, examina uma gama específica de fenômenos que articulam essas

mudanças: tecnociência, circuitos de troca lícitos e ilícitos, sistemas de administração ou

de governança e regimes éticos ou de valores”.

Pensar o bullying nessa dimensão pressupõe conectá-lo a outros “dispositivos”,

num sentido foucaultiano, que vêm repercutindo no Brasil e fora dele, demandando um

olhar antropológico sinérgico. Dentre eles, pode-se citar uma “biologia do controle”

delimitada por Rose (2007), que diz respeito a políticas contemporâneas de saúde pública

para controle da violência com foco no gerenciamento de indivíduos de risco. Também é

possível mencionar a pulverização indiscriminada de “mercadorias da ciência

psiquiátrica” (Biehl, 2008) e a “judicialização da vida social” (Fonseca, 2010), esta última

associada ao estabelecimento de esferas alternativas de resolução de conflitos, como a

justiça restaurativa analisada por Schuch (2012).

Tais fenômenos são tangenciados, direta ou indiretamente, pela percepção de uma

suposta epidemia de incivilidade e violência no mundo atual – de que o bullying faz parte

–, a qual necessita ser controlada, seja pela medicalização, seja por novos meios de

dissolução de conflitos. Não obstante, o foco de condenação e de restauração se volta ao

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sujeito autodisciplinado de uma racionalidade tipicamente neoliberal e não a populações

ou raças entendidas como degeneradas, de modo a evitar conexões com projetos

declaradamente racistas e eugênicos de séculos anteriores. Ademais, o foco em indivíduos

atomizados tem suspendido a abordagem de contextos sociológicos mais amplos,

perpassados inteiramente por aquilo que Fassin (2009) denomina por “inequalities”.

Por fim, a terceira linha teórica a oferecer substrato à pesquisa é a Antropologia

Moral encabeçada por Fassin (2012). Trata-se de um viés também inspirado pela filosofia

foucaultiana, dedicado ao estudo da moral na ação de construir o mundo. Preocupa-se em

refletir sobre como questões não morais se elevam socialmente enquanto morais, no

interior da empreitada humana de definir fronteiras entre o bem e o mal. Logo, constitui

uma abordagem que vai de encontro tanto ao tema quanto ao problema arquitetados para

o estudo de doutorado, a saber: por quais motivações as práticas tipificadas como

bullying, que não são uma novidade recente, tornam-se hoje alvo de levantes morais com

base em tal conceito.

Metodologia conjugada a avanços etnográficos

O percurso etnográfico da pesquisa de doutorado está metodologicamente

ordenado em duas direções: uma de feitio horizontal, preocupada em identificar terrenos

de estudo, pautada pelo conceito de “campo” de Bourdieu (2003); outra de feição vertical,

centrada em conectar os campos mapeados, a partir da noção de “esferas de valor” de

Cardoso de Oliveira (1994), cuja hierarquização inter-relaciona níveis “micro”, “meso” e

“macro”.

Com base nessa abordagem, três campos emergem como essenciais para o estudo

do empreendimento moral bullying no contexto urbano brasileiro contemporâneo: o

científico, o político e o educacional. O primeiro compreende as vertentes acadêmicas

dedicadas a pensar a categoria, como a psicologia, a psiquiatria, a pedagogia e o serviço

social. O segundo, por sua vez, diz respeito à inserção do conceito em leis, políticas e

programas governamentais de mitigação da violência juvenil, especialmente no âmbito

escolar. O terceiro, por fim, abrange a sociabilidade das instituições de ensino, no interior

da qual eventos de bullying têm se materializado, seja presencial ou virtualmente, como

cyberbullying.

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Ademais, são considerados enquanto campos complementares de estudo o

midiático e o mercadológico: este último contempla toda uma série de produtos que vêm

sendo criados e comercializados em torno da noção de bullying, enquanto o primeiro

aparece como uma rica fonte de informações para refletir acerca dos demais campos.

Nesse contexto, o trabalho de campo, em estágio já avançado, está sendo

desenvolvido em duas frentes: in loco e documental. A etnografia in loco vem se dando

em cidades de diferentes portes: na capital gaúcha, Porto Alegre, bem como nos

municípios de Canela e Gramado, na região serrana do Estado do Rio Grande do Sul,

onde reside a pesquisadora. Essa frente de pesquisa contempla entrevistas com cientistas,

políticos e ativistas envolvidos com a temática do bullying no país, bem como o

acompanhamento de eventos por eles encabeçados. Em paralelo a isso, ocorrem

observações e entrevistas com funcionários, professores e estudantes, de diferentes níveis

de ensino, em instituições educacionais públicas e privadas, voltadas a camadas médias

da população.

Complementarmente, está prevista para abril de 2016 uma viagem de campo à

cidade do Rio de Janeiro, para acompanhar as mobilizações em torno do Dia Nacional de

Combate ao Bullying. Embora ainda sem reconhecimento legal completo, a data tem sido

abraçada para protestos contra a violência escolar encabeçados pela organização não

governamental Anjos de Realengo6, surgida a partir do ataque armado à Escola Municipal

Tasso da Silveira.

A frente documental da pesquisa, por sua vez, abrange como materiais de análise

etnográfica artigos e estudos científicos; proposições legais e programas de intervenção

estatal; conteúdo midiático oriundo de fontes diversas, oficiais ou não, além de produtos

gerados em torno da questão do bullying, como obras de autoajuda, livros infantis, cursos

e consultorias especializadas, dentre outros.

Como forma de costurar a reflexão em torno dos dados etnográficos gerados pela

imersão de pesquisa nos campos antes referidos, lança-se mão da abordagem de Cardoso

de Oliveira (1994), que propõe um resgate da noção de moralidade pela antropologia,

claramente não enquanto um “megaconceito” de reverberações filosóficas, mas sim

6 https://www.facebook.com/osanjos.derealengo?fref=ts.

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lastreada pelas “circunstâncias de suas manifestações empíricas”, algo capaz de

viabilizar-se pelo fazer etnográfico.

Segundo Cardoso de Oliveira, as questões morais podem se mostrar mais visíveis

ao antropólogo quando este opta por acompanhá-las em “esferas de valor distintas”, pela

via da comparação. Para tanto, o autor sugere como instrumento analítico uma hierarquia

para tais “esferas”, que comporta níveis “micro”, “meso” e “macro”. Esse recurso permite

que os campos de pesquisa anteriormente citados como interessantes deixem de situar-se

lado a lado e interconectem-se entre si, perfazendo um ordenamento metodológico mais

verticalizado, como mencionado.

No nível micro, os conteúdos morais possuem “caráter particularista” e podem ser

observados nas “instâncias mais íntimas” das comunidades e grupos, respeitado o seu

consentimento. No nível macro, por sua vez, esses conteúdos ganham uma “dimensão

universalista”, muitas vezes chancelada por organismos de ação internacional. O nível

meso, por fim, é o espaço da mediação e de balanceamento entre as concepções, muitas

vezes contraditórias, presentes nos dois níveis anteriores. Nele se situam, os estados

nacionais com suas políticas públicas, mas também todos os cidadãos, inclusive os

antropólogos na execução de seu ofício.

Na tentativa de alocar na abordagem de Cardoso de Oliveira os campos de

pesquisa antes descritos, pode-se dizer que as comunidades escolares se situariam num

nível micro. No nível meso, por sua vez, exerceriam um papel de mediação não somente

os agentes políticos, mas também os científicos, mercadológicos e midiáticos em um

âmbito nacional. Em um nível macro, por fim, surgiriam justamente as influências de uma

governamentabilidade neoliberalista, onde é possível situar o impacto do debate norte-

americano a respeito do bullying no contexto brasileiro.

Nesse panorama, pretende-se pensar, de forma inter-relacionada, como um modo

de governo neoliberal informa uma produção científica que, por sua vez, subsidia a

elaboração de políticas estatais, a constituição de mercados e a cobertura midiática, as

quais, por fim, impactam o cotidiano das instituições de ensino.

A perspectiva de articular níveis macro, meso e micro se revela indispensável ao

exercício etnográfico em contextos urbanos das chamadas “sociedades moderno-

contemporâneas” ou “sociedades complexas”, nas quais se verifica de maneira vultosa a

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“multiplicidade e fragmentação de papéis e domínios” (Velho, 2013). A movimentação

do antropólogo por esses meandros demanda como recurso fundamental o acesso às

narrativas dos sujeitos pesquisados. Nesse sentido, Eckert e Rocha (2013), alicerçadas no

conceito de “identidade narrativa” de Paul Ricoeur7, postulam que o estudo antropológico

nas cidades atuais pressupõe pesquisar a “memória” e a “trajetória” dos indivíduos,

ancoradas nas “subjetividades” deles, mas também e simultaneamente, em uma “cultura

objetiva”, perpassada pelo “ritmo da vida urbana”, em “situações de convivência informal

ou formal”.

Tal enfoque torna-se ainda mais importante a partir do entendimento de que o

bullying tem se propagado enquanto categoria justamente por intermédio do “ato de

testemunhar” que, segundo Veena Das (2011), atua como uma forma ímpar de trabalhar

a “relação entre violência e subjetividade”. Essa percepção é oriunda do investimento

etnográfico até o momento realizado, que constatou como comum, em meio aos vários

campos e níveis de pesquisa, a presença do testemunho como elemento fundamental para

um indivíduo situar-se não apenas enquanto vítima, mas também enquanto agente de

denúncia e de superação do bullying como violência difusa.

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