claudio reis_apontamentos sobre a relação entre a antropologia e o direito

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APONTAMENTOS SOBRE A RELAÇÃO ENTRE A ANTROPOLOGIA E O DIREITO Claudio Reis Doutor em Ciências Sociais pela UNICAMP. Professor do Departamento de Ciências da Educação da UNIR. Campus de Vilhena. E-mail: [email protected] RESUMO: A problemática da reflexão que se pretende desenvolver aqui se expressa na seguinte interrogação: é possível conciliar o imperativo universal dos elementos jurídicos, presentes no Direito, com o princípio antropológico da necessidade de se compreender a vida social a partir do particular? Num primeiro momento, esta questão parece indicar uma certa tendência à resposta negativa. Afinal, como ordenar uma norma de con- duta universal, por meio de leis, numa sociedade, como a contemporânea, caracterizada por uma infinidade de valores morais e culturais? Partindo de tais interrogações é que será desenvolvido o presente artigo. Palavras-chave: Direito; Antropologia; Estado; Diversidade Social. ABSTRACT: The main purpose of this paper is to try to answer the ques- tion: is it possible to conciliate the universal imperative of the juridical elements in the Law with the anthropological principle of the necessity fo understanding the social life from the particular perspective? At first, this question seems to indicate to a negative answer, after all, how would be possible to organize a universal rule of conduct through laws in the contemporary society with infinite moral and cultural values? This paper is based on these questions. Key words: Law; Anthropology; State; Social Diversity. 1 ESTADO: UNIVERSALIDADE E PARTICULARIDADE É certo que uma das principais razões da existência do Estado, en- quanto instituição central na organização da vida social dos indivíduos, corresponde ao fato dele ser uma espécie de “protetor” da específica sociedade a qual representa. Mesmo diante de casos extremos, como o Estado totalitário nazista, a ordem objetivava garantir a vida e a pureza dos alemães contra os “inimigos”. Portanto, mesmo aqui, o aparelho es- tatal tinha como tarefa a sobrevivência daqueles que de um modo ou de outro o controlavam. Videre, Dourados, MS, ano 2, n. 3, p. 65-82, jan./jun. 2010.

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  • APONTAMENTOS SOBRE A RELAO ENTRE A ANTROPOLOGIA E O DIREITO

    Claudio ReisDoutor em Cincias Sociais pela UNICAMP. Professor do Departamento

    de Cincias da Educao da UNIR. Campus de Vilhena. E-mail: [email protected]

    RESUMO: A problemtica da reflexo que se pretende desenvolver aqui se expressa na seguinte interrogao: possvel conciliar o imperativo universal dos elementos jurdicos, presentes no Direito, com o princpio antropolgico da necessidade de se compreender a vida social a partir do particular? Num primeiro momento, esta questo parece indicar uma certa tendncia resposta negativa. Afinal, como ordenar uma norma de con-duta universal, por meio de leis, numa sociedade, como a contempornea, caracterizada por uma infinidade de valores morais e culturais? Partindo de tais interrogaes que ser desenvolvido o presente artigo.Palavras-chave: Direito; Antropologia; Estado; Diversidade Social.

    ABSTRACT: The main purpose of this paper is to try to answer the ques-tion: is it possible to conciliate the universal imperative of the juridical elements in the Law with the anthropological principle of the necessity fo understanding the social life from the particular perspective? At first, this question seems to indicate to a negative answer, after all, how would be possible to organize a universal rule of conduct through laws in the contemporary society with infinite moral and cultural values? This paper is based on these questions.Key words: Law; Anthropology; State; Social Diversity.

    1 ESTADO: UNIVERSALIDADE E PARTICULARIDADE

    certo que uma das principais razes da existncia do Estado, en-quanto instituio central na organizao da vida social dos indivduos, corresponde ao fato dele ser uma espcie de protetor da especfica sociedade a qual representa. Mesmo diante de casos extremos, como o Estado totalitrio nazista, a ordem objetivava garantir a vida e a pureza dos alemes contra os inimigos. Portanto, mesmo aqui, o aparelho es-tatal tinha como tarefa a sobrevivncia daqueles que de um modo ou de outro o controlavam.

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    Sendo o Direito um dos principais instrumentos pelo qual essa refe-rida instituio ganha legalidade em suas aes perante os indivduos ou cidados, sero as normas jurdicas as responsveis pelo direcionamento das condutas individuais ou coletivas, no sentido de garantir a vida em sociedade seguindo, certamente, os ordenamentos poltico-ideolgicos do referido Estado.

    O fato de o Estado, no limite, respeitar essa sua ontologia isto , a garantia da vida de uma determinada sociedade porm, no explica a totalidade de sua existncia. preciso ressaltar que ele tambm uma instituio representante de determinados interesses encontrados nas relaes sociais. E essa uma contradio que o Estado liberal-burgus alm de no solucion-la a potencializa. Dessa forma, ele se movimenta em duas direes contrrias: uma no sentido de garantir a sobrevivncia de todos; outra, objetivando efetivar os interesses dos setores dominantes poltica e economicamente. Entretanto, essa contradio no perceptvel em todo e qualquer momento histrico, mas apenas naqueles em que as contradies sociais se acirram.

    Devido a esse movimento ao mesmo tempo expansivo e restritivo do Estado, o Direito tambm acabou assumindo formas contraditrias. Em linhas gerais, o Direito existente principalmente nos Estados que adotaram as Declaraes dos Direitos Humanos, ps 2 Guerra Mundial, est repleto de contradies fundamentais, isto , coloca-se ora como representante dos interesses coletivos, ora guardio da propriedade privada. Sem dvida, a adoo dos Direitos Humanos pelo corpo jurdico de alguns Estados, foi um importante fato histrico para a exposio dessa contradio essencial de tal instituio.

    At o Direito surgido no ps 2 Guerra Mundial, predominou, e ainda hoje bastante atuante, uma concepo jurdica que pode ser ilustrada por meio da teoria pura do Direito de Hans Kelsen. Segundo o autor,

    Libertar o conceito de Direito da idia de justia difcil porque ambos so constantemente confun-didos no pensamento poltico no cientfico, assim como na linguagem comum, e porque essa confuso corresponde tendncia ideolgica de dar aparncia de justia ao Direito positivo. Se Direito e justia so identificados, se apenas uma ordem justa chamada de Direito, uma ordem social que apresentada como Direito ao mesmo tempo apresentada como justa, e isso significa justific-la moralmente. A ten-dncia de identificar Direito e justia a tendncia de

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    justificar uma dada ordem social. uma tendncia poltica, no cientfica. (KELSEN, 2005, p. 8-9).

    Mais do que no mbito cientfico, o Direito aqui apresentado deveria ser inserido dentro de uma tcnica especfica e fundamental da organizao social humana. Como desdobramento, essa concepo jurdica singular vai revelar um forte princpio de universalidade do Direito. Longe de noes como justia e injustia, o carter universal de tal tcnica fica estabelecido da seguinte forma:

    O que o chamado Direito dos babilnios antigos poderia ter em comum com o direito vigente hoje nos Estado Unidos? O que a ordem social de uma tribo negra sob liderana de um chefe desptico uma ordem igualmente chamada Direito poderia ter em comum com a constituio da repblica sua? No entanto, h um elemento comum que justifica plenamente essa terminologia e que d condies palavra Direito de surgir como expresso de um conceito com um significado muito importante em termos sociais. Isso porque a palavra se refere tcnica social especfica de uma ordem coercitiva, a qual, apesar das enormes diferenas entre o Direito da antiga Babilnia e o dos Estados Unidos de hoje, entre o Direito dos ashanti na frica Ocidental e o dos suos na Europa, , contudo, essencialmente a mesma para todos esses povos que tanto diferem em tempo, lugar e cultura: a tcnica social que consiste em obter a conduta social desejada dos homens atravs da ameaa de uma medida de coero a ser aplicada em caso de conduta contrria. (KELSEN, 2005, p. 27-28).

    Devido, ento, ao seu carter tcnico, fundado numa intrnseca positivi-dade/neutralidade, que o Direito pode atingir a dimenso da universalidade. Esta universalidade jurdica, fundada na coero, no entanto, no a nica maneira de compreender o carter expansivo do Estado. At porque, sob essa tica, o universal tambm se coloca como representante de interesses determinados da seu carter quase que exclusivamente coercitivo.

    Aps as Declaraes dos Direito Humanos, a universalidade jurdica passou a se movimentar para outra direo. Agora muito mais preocupado com a existncia do diferente encontrado na sociedade. At este momen-to, inmeros setores sociais se encontravam extremamente fragilizados e desprotegidos do aspecto expansivo do Estado. Alis, eles representavam

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    enorme perigo vida social. Eles eram justamente os inimigos do todo. Negros, judeus, gays, deficientes fsicos ou mentais, entre outros, representa-vam a anticivilizao, por isso escapavam do movimento expansivo estatal.

    Com a promulgao dos Direito Humanos, tais coletividades passa-ram a receber um novo olhar do aparelho estatal, consequentemente do Direito. Agora, a universalidade passava necessariamente a se vincular com o particular o que certamente no eliminou certas contradies fundamentais. De qualquer forma, esse carter representou um importante avano histrico-social para milhes de indivduos. Agora, determinadas aes como o racismo, a xenofobia, a homofobia, etc., passavam a ser vistas de uma outra forma sujeitas a punies legais.

    justamente neste momento que a Antropologia comea a ser indis-pensvel aos operadores do Direito, pois ser a partir dela que a questo da multiplicidade de particularidades existentes na vida social passar a ser melhor compreendida.

    Tendo como um dos objetivos centrais entender cientificamente a questo do outro, isto , o diferente, a Antropologia passa a exigir dos operadores do Direito uma postura fundada num certo princpio antropo-lgico. Em outras palavras, ser por meio da compreenso do problema da alteridade que tais profissionais conseguiram se distanciar de uma viso etnocntrica predominante nas configuraes estatais anteriores ao ps 2 Guerra, mesmo em seus aspectos pretensamente universais para se aproximarem de um ponto de vista multicultural.

    2 ANTROPOLOGIA E A COMPREENSO DO HOMEM: A CULTURA VISTA DE CIMA

    Certamente que enquanto tema provocador de reflexes, a preocu-pao do ser humano em se autocompreender bastante antiga e presente em diversas partes do mundo e povos. Como diz Laplantine (2003, p. 13): A reflexo do homem sobre o homem e sua sociedade, e a elaborao de um saber so to antigos quanto a humanidade e se deram tanto na sia como na frica, na Amrica, na Oceania ou na Europa. Todavia, o esclarecimento das particularidades sociais e culturais do prprio homem s ganhar configuraes de cincia entre os sculos XVIII e XIX. justamente neste momento que a Antropologia surge como uma forma de compreenso das relaes humanas diferente das explicaes teolgicas, mitolgicas, artsticas e filosficas.

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    Num primeiro momento, o papel da Antropologia vai ser o de en-tender as civilizaes consideradas primitivas, ou seja, todas aquelas existentes fora das sociedades europeia e norte-americana. Ser, portanto, a partir do olhar ocidental e etnocntrico que os demais povos sero en-xergados. Para Laplantine (2003, p. 14-15),

    [...] as sociedades estudadas pelos primeiros an-troplogos so sociedades longnquas s quais so atribudas as seguintes caractersticas: sociedades de dimenses restritas; que tiveram poucos contatos com os grupos vizinhos; cuja tecnologia pouca desenvolvida em relao a nossa; e nas quais h uma menor especializao das atividades e funes sociais.

    Com a expanso dessa civilizao ocidental para as demais regies do mundo, a Antropologia chega ao sculo XX encarregada de resolver o seguinte problema: aquele selvagem das civilizaes atrasadas es-tava desaparecendo, levando tal cincia compreenso de certos sujeitos sociais de sua prpria sociedade, fundamentalmente aqueles existentes fora das cidades urbanas e industrializadas. O selvagem agora deveria ser encontrado no fora, mas dentro do Ocidente. Desse modo, foi como consideraram o campons.

    A partir dessa reorientao, a Antropologia comea a ser mais comparativa social e culturalmente. Neste sentido, o conhecimento an-tropolgico da nossa cultura passa inevitavelmente pelo conhecimento das outras culturas; e devemos especialmente reconhecer que somos uma cultura possvel entre tantas outras, mas no a nica (LAPLANTINE, 2003, p. 21).

    O prprio conceito de cultura, um dos pilares da cincia antro-polgica, passa a ser problematizado. Os antroplogos, j no incio do sculo XX, comeam a questionar a tradicional viso ocidentalista do civilizado e do superior culturalmente. E esse trabalho de refor-mulao no se deu apenas no mbito acadmico, pois era preciso, ao mesmo tempo, combater a j difundida e enraizada viso tradicional de cultura sobre o chamado senso comum1. Segundo o antroplogo

    1 Compreendido aqui no como uma dimenso inferior do conhecimento, como definida pela cincia positiva. Aqui o senso comum entendido como um mbito fundamental da vida do ser social. Em sentido gramsciano, somente no senso comum que a filosofia ganha concreticidade.

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    brasileiro Roberto Da Matta, bastante comum no cotidiano os indiv-duos associarem a palavra cultura ao ser culto e erudito. Como o prprio afirma:

    Cultura aqui equivalente a volume de leituras, a controle de informaes, a ttulos universitrios e chega at mesmo a ser confundido com inteligncia, como se a habilidade para realizar certas operaes mentais e lgicas (que definem de fato a inteligncia) fosse algo a ser medido ou arbitrado pelo nmero de livros que uma pessoa leu, s lnguas que pode falar, ou os quadros e pintores que pode, de memria, enumerar. Nesse sentido, cultura uma palavra usada para classificar as pessoas e, s vezes, grupos sociais, servindo como arma discriminatria contra algum sexo, idade, etnia, ou mesmo sociedade inteiras. (DA MATTA, 1986. p. 122).

    Justamente contra tal percepo sobre cultura, bastante perigosa em determinados contextos sociais, que os antroplogos passaram a de-senvolver seus trabalhos. De acordo com essa leitura no tradicional, a cultura passa a ser entendida como algo que no se pode quantificar ou qualificar, j que ela uma dimenso ontolgica da vida do ser social. No possvel pensar ou conceber um indivduo que no possua cultura. Toda e qualquer forma de explicar a sua realidade, seja por meio religioso, mtico, folclrico, musical, etc., pode ser enquadrada como um processo cultural. Em certo sentido, a cultura um cdigo pelo qual os indivduos podem se identificar. Como diz Da Matta (1986, p. 123):

    justamente porque compartilham de parcelas im-portantes deste cdigo (a cultura) que um conjunto de indivduos com interesses e capacidades distintas e at mesmo opostas transformam-se num grupo e podem viver juntos sentindo-se parte de uma mesma totalidade. Podem assim, desenvolver relaes entre si porque a cultura lhes forneceu normas que dizem respeito aos modos mais (ou menos) apropriados de comportamento diante de certas situaes.

    Continuando com seu raciocnio, o autor expe:O conceito de cultura, ou a cultura como conceito, permite uma perspectiva mais consciente de ns mesmos. Precisamente porque diz que no h homens sem cultura e permite comparar culturas e

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    configuraes culturais como entidades iguais, dei-xando de estabelecer hierarquias em que inevitavel-mente existiam sociedades inferiores e superiores. Mesmo diante de formas culturais aparentemente irracionais, cruis ou pervertidas, existe o homem e entend-las ainda que seja para evit-las uma tarefa inevitvel que faz parte da condio do ser humano e viver num universo marcado e demarcado pela cultura. Em outras palavras, a cultura permite traduzir melhor a diferena entre o ns e os outros e, assim fazendo, resgatar a nossa humanidade no outro e a do outro em ns mesmos. (DAMATTA, 1986, p. 127).

    Portanto, preciso compreender as sociedades tambm a partir de uma viso no uniformizadora. As inmeras diferenas culturais existentes devem ser entendidas como parte da prpria vida social, sem buscar esta-belecer hierarquias valorativas. E, como o autor aponta, mesmo quando determinada manifestao cultural se sustenta sobre aspectos irracionais ou mesmo antissociais, as suas caractersticas devem ser reveladas seria-mente ainda que para no serem difundida.

    Obviamente que ns estamos sempre tendencialmente a nos colocar como melhores em relao aos outros. Nossas experincias sociais e culturais tendem sempre a se colocarem como mais justas e corretas quando comparadas s expresses scio-culturais externas.

    Como afirma Laraia, o fato de que o homem v o mundo atravs de sua cultura tem como conseqncia a propenso em considerar o seu modo de vida como o mais correto e o mais natural. Tal tendncia, denominada etnocentrismo, responsvel em seus casos extremos pela ocorrncia de numerosos conflitos sociais (LARAIA, 2006, p. 72-73).

    Antes de qualquer coisa, tal tendncia deve ser rapidamente perce-bida pelos sujeitos sociais. preciso ter clareza sobre a existncia de tal propenso para que no se leve adiante determinadas posturas fundadas na intolerncia e na violncia. Se por um lado o etnocentrismo serve para dar certa identidade social e cultural a uma sociedade ou grupo, por outro, pode se colocar como uma poderosa arma de destruio humana. Inmeros crimes contra a humanidade j foram cometidos a partir de posturas etnocntricas.

    Todo o poder da cultura sobre os indivduos fica claramente eviden-ciado nas seguintes palavras de Geertz (1989 p. 04):

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    O conceito de cultura que defendo essencialmente semitico. Acreditando, como Max Weber, que o homem um animal amarrado a teias de significa-dos que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias e a sua anlise, portanto, no como uma cincia experimental em busca de leis, mas como uma cincia interpretativa procura de significados.

    Nesta perspectiva, a cultura se coloca como uma verdadeira criadora de determinadas formas de vida social. Formas essas nem sempre identi-ficveis no cotidiano. Ela molda as aes e as determinadas maneiras de relaes sociais estabelecidas por certos grupos ou sociedades.

    O fato de a cultura ser uma dimenso essencial de todos os indiv-duos no havendo, portanto, quem no a possui no esgota, porm os seus significados. A viso que se tem do alto, identificando inmeras cores em p de igualdade, no pode deixar de ser completada pelas diferenas de tratamentos existentes entre as manifestaes culturais nas relaes sociais concretas.

    3 ANTROPOLOGIA E IDEOLOGIA: A CULTURA VISTA DE BAIXO

    A discusso que se pode fazer sobre a cultura no deve ficar restrita a um ponto de vista horizontal ainda que ele seja um primeiro momento elementar e indispensvel. Mesmo que a antropologia afirme a cultura como uma dimenso ontolgica do ser humano, isto , todo indivduo necessariamente produtor e receptor de uma dada cultura, preciso relacionar essa situao com outros elementos da vida social. No h dvida de que o outro deve ser compreendido num contexto cultural particular, o que significa possuir uma viso panormica sobre a sociedade, quer dizer, de cima para baixo. No entanto, esse olhar, isoladamente, pode lanar determinado sujeito do conhecimento a um relativismo absoluto perigoso. A partir de uma compreenso restrita a esse momento, poss-vel legitimar as mais brbaras das aes. Desse modo, de fundamental importncia que esse primeiro momento da apreenso das manifestaes culturais seja acompanhado por um outro. Em outras palavras, as cultu-ras existentes na sociedade devem tambm ser compreendidas a partir de suas dimenses verticais, isto , vistas de baixo para cima. Sem esse olhar, no possvel responder s seguintes perguntas: por que existem culturas

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    marginalizadas? Por que determinados grupos sociais so marginalizados em suas manifestaes culturais? Aqui, certamente, a cultura deixa de ser entendida como se fosse uma Entidade externa s aes humanas. Ao mesmo tempo, evidencia-se toda a importncia em relacion-la a uma outra dimenso da vida social, que a poltica consequentemente esfera do poder. Portanto, cultura no somente uma expresso da vida de todos os indivduos, ela tambm, em alguns casos, instrumento de domina-o. Para confirmar isso, basta recorrer aos inmeros acontecimentos histricos em que se estabeleceu a existncia clara e conflituosa de uma determinada cultura subalterna e de outra dominante. Conflito que, na verdade, expressa as diversas desigualdades sociais. Esse aspecto poltico da cultura pode ser definido, em termos conceituais, como manifestaes ideolgicas. Portanto, para no se cair no equvoco terico da cultura neutra, ela deve ser interligada a uma outra dimenso intelectual e moral central da sociedade: a ideologia.

    No interior das cincias sociais, esse conceito assume os mais diver-sos entendimentos. Mesmo no mbito restrito ao marxismo, ele tambm no apresenta uma definio apenas. Ora surge como falsa conscincia, ora aparece no apenas como expresso da luta poltica, mas tambm como forma de organizao da prpria subjetividade. De qualquer forma, existe um elemento sempre presente nas formulaes marxistas e que ser privilegiado aqui: o que pontua a ideologia como um instrumento cultural de dominao.

    Partindo dessa concepo fica mais compreensvel, por exemplo, os motivos que levaram o Ocidente a se colocar como superior ao Oriente, do mesmo modo o branco sobre o negro, o homem sobre a mulher (e o gay), o erudito sobre o popular, etc. Assim, a ideologia um dos meios usados pelos dominantes para exercer a dominao real, fazendo com que esta situao no seja percebida como tal pelos dominados. Em outras palavras, a ideologia o processo pelo qual as ideias das classes e dos grupos dominantes se tornam ideias de todas as classes e grupos sociais, isto , tornam-se ideias dominantes.

    No Brasil, por exemplo, a ideologia da superioridade racial do bran-co sobre o negro uma das principais marcas das preocupaes iniciais das elites acerca da formao nacional deste pas. Mais precisamente entre os sculos XIX e XX, inmeros intelectuais brasileiros passaram a refletir sobre a questo nacional brasileira. E o tema da raa era central (BASTOS, 1996).

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    Neste momento, o pas vivia sob forte influncia de concepes na-turalistas sobre a sociedade, a partir das quais o biolgico era incorporado como recurso epistemolgico legtimo para as explicaes da vida social. Desse modo, a humanidade era dividida entre superiores e inferiores. Foi este o caminho cientfico que os intelectuais do Brasil comearam a percorrer para pensar a formao da civilizao brasileira. Como neste pas a miscigenao foi profunda, a sada para o fracasso de uma forma-o nacional satisfatria era dada pela superioridade biolgica do branco sobre os negros e ndios. Conhecida como teoria do branqueamento, acreditava-se que aos poucos a sociedade brasileira se tornaria branca, devido superioridade gentica do europeu aqui residente. Como dizia Silvio Romero (1978, p. 55):

    [...] o tipo branco ir tomando a preponderncia, at mostrar-se puro e belo como no velho mundo. Ser quando j estiver de todo aclimatado no continente. Dois fatos contriburam largamente para tal resul-tado: de um lado a extino do trfico africano e o desaparecimento constante dos ndios, de outro a imigrao europia.

    O primeiro grande intelectual a questionar tal concepo foi Gilberto Freyre (2006) que, por sua vez, acabou criando um outro mito ideolgico: o da democracia racial.

    Este foi um elemento central que contribuiu para a marginalizao das manifestaes culturais de ndios e negros do Brasil. Justamente por isso que a cultura, quando vista de baixo deixa de se expressar de modo equnime no mundo social. Em sociedades marcadas por conflitos entre grupos ou classes, as manifestaes culturais privilegiadas tendem sempre a representar os setores dominantes. E este um fato que a antropologia no pode deixar de registrar.

    4 DIREITO E SEUS ASPECTOS DE IDEOLOGIA

    J se tornou senso comum no Brasil afirmar que aqui somente o pobre vai preso. Afirmao que, por ser facilmente comprovada empiri-camente em cadeias e presdios, acaba expondo o princpio da igualdade da aplicao das leis como uma ideologia, no sentido da criao de falsa conscincia. Por esse motivo, o prprio Direito passa a se enquadrar em tal dimenso ideolgica. No entanto, aqui necessrio pontuar algumas

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    questes. De incio, pode-se fazer a seguinte interrogao: para quem de fato o Direito surge como falsa conscincia? Como se sabe, na sociedade brasileira, as classes subalternas so as que mais so punidas pelas leis. A partir de um movimento que se aproxima em muito de uma certa cri-minalizao da pobreza. Sem entrar em casos especficos que poderiam exemplificar esse enunciado, o fato que no Brasil a punio a partir das leis est quase que totalmente voltada aos miserveis. Justamente por esse motivo fica evidente que os setores dominantes, as elites do pas, quase sempre acabam sendo privilegiadas pelo mesmo corpo jurdico nacional. Aqui tambm os exemplos podem ser dispensveis, devido publicizao de recorrentes casos.

    Voltando questo inicial, pode-se afirmar que, no Brasil, o prin-cpio da igualdade da aplicao das leis representa um aspecto da dominao ideolgica e de classe justamente por no se fazer concreto no cotidiano. Portanto, todo aquele subalterno que visa seguir tal prin-cpio de igualdade, certamente estar sujeito a se inserir na dimenso da falsa conscincia difundida pelos setores dominantes poltica e economicamente do pas.

    Por outro lado, para no se inserir no mbito do ceticismo puro preciso fazer uma segunda pergunta: existe apenas uma concepo de Direito e, portanto, de aplicabilidade das leis?

    Para pensar essa questo em relao ao caso brasileiro, preciso fazer algumas consideraes histrico-polticas. Como se sabe, a partir de 1988, o Brasil passou a ser guiado por uma legislao fundamentada no Estado Democrtico de Direitos. Em tal regime poltico, o formulador das leis justamente o Legislativo que, por sua vez, est como representante da sociedade.

    At o momento, tentou-se aqui demonstrar que no mundo social exis-tem importantes desigualdades no apenas social, mas tambm cultural. Neste sentido, possvel afirmar que essa desigualdade tambm esteja presente no trabalho do Legislativo. Significando, ento, que a formulao das leis no Estado Democrtico de Direitos obedecem a determinadas correlaes de foras polticas e culturais existentes na sociedade. Assim, as leis, de certo modo, expressam os valores poltico-culturais predomi-nantes socialmente. Neste momento, outra pergunta se faz necessria: qual o contexto de formulao da atual Constituio Federal de 1988? Qual eram as foras polticas predominantes, neste momento? Como se sabe, esse processo foi marcado fortemente pela participao ativa de inmeros movimentos sociais. Inspirados na Declarao Universal dos Direitos

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    Humanos de 1948, diversos grupos progressistas e populares participa-ram diretamente da construo de tal Constituio. Ento se nesta Carta Magna esto presentes concepes e valores politicamente democrticos, por que as leis no so aplicadas tambm s classes sociais poderosas po-ltica e economicamente? Nesse exato momento, o problema recai sobre os operadores do Direito. Por que, mesmo possuindo uma Constituio amplamente democrtica, a justia brasileira continua punindo quase que exclusivamente os miserveis, ainda que muitas vezes seus crimes sejam menos graves socialmente quando comparados aos cometidos por mem-bros das elites? Diante disso, fica a pergunta: os operadores do Direito so neutros em suas prticas profissionais?

    Segundo Lenio Luiz Streck, os operadores do Direito brasileiro no apresentam uma compreenso adequada sobre os sentidos da Constitui-o Federal principalmente no mbito do Direito Criminal. Na opinio do autor, um texto jurdico, um dispositivo, uma lei, etc., jamais podem ser interpretados desvinculados do entendimento que o interprete tem da Constituio (STRECK, 2008). Assim, uma baixa compreenso acerca do sentido da Constituio naquilo que ela significa no mbito do Estado Democrtico de Direito inexoravelmente acarretar a uma baixa aplicao da mesma. Problemtica que no difcil de constatar no cotidiano das prticas dos operadores do Direito no Brasil.

    As condies que possibilitam ao intrprete a compreenso de um tex-to jurdico implicam existncia de uma pr-compreenso, ou pr-juzos, acerca da totalidade do sistema jurdico-poltico-social. Portanto, como possvel compreender o novo, surgido em 1988, se os pr-juzos esto dominados por entendimentos ainda presos a uma leitura excessivamente conservadora do Direito? De acordo com Lenio,

    Passados vinte anos desde a promulgao da Constituio, no h indicativos de que tenhamos avanado no sentido da superao da crise por que passa a operacionalidade do Direito em terrae brasilis. Persistimos atrelados a um paradigma penal de ntida feio liberal-individualista, isto , preparados historicamente para o enfrentamento dos conflitos de ndole interindividual, no engendramos, ainda, as condies necessrias para o enfrentamento dos conflitos (delitos) de feio transindividual (bens jurdicos supra-individuais), que compem majoritariamente o cenrio desta fase de desenvolvimento da sociedade brasileira. Isto , no pode-mos pensar que possvel alterar o foco do direito penal se continuarmos pensando que os bens jurdicos que devem ser protegidos so os de feio

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    meramente interindividual (ou, para usar uma expresso em voga, bens jurdicos de carne e osso). (STRECK, 2008, p.70).

    At o primeiro cdigo penal republicano, de 1890, no havia qualquer tipo de preocupao com os atos das classes dominantes. Os sculos de escravido marcaram totalmente o sentido de classe do Direito brasileiro, em especial, o penal. Como se sabe, o establishment de modo algum busca uma autopunio. Justamente por esse motivo facilmente perceptvel, na histria do pas, a ausncia de punies mais contundentes sobre os crimes contra o patrimnio pblico, contra a corrupo, etc. Por sua vez, a criminalizao da pobreza sempre um eficaz recurso para o domnio social pelas elites.

    Para o autor, a preocupao sempre esteve vinculada proteo da pro-priedade privada e aos interesses dos setores dominantes, questo bastante visvel no Cdigo Penal de 1940 (STRECK, 2008). Inspirado no modelo fascista, tal Cdigo se dirigiu efetivamente para as classes subalternas. A ideia era a de punir os vcios e comportamentos sociais perigosos ao Estado, aos costumes tradicionais, ordem. Por esse carter, j se tornou comum qualificar o Direito brasileiro como ideologicamente conservador, prprio de um Estado em que a produo das leis segrega a pobreza, afastando-a da sociedade civil, a pretexto de garantir a almejada paz social. Tal con-cepo jurdica, no entanto, ope-se ao advento da Constituio de 1988, quando se inicia a existncia de um Estado Democrtico Social de Direito. A partir da passou a haver um forte deslocamento do centro das decises do Legislativo e do Executivo para o plano da justia constitucional que passou a proteger os altos objetivos da Repblica, como a erradicao da pobreza e a reduo das desigualdades sociais. A partir deste novo olhar, surge uma nova criminalidade a ser combatida, aquela que atinge os bens jurdicos supraindividuais, bastante prejudicial a toda coletividade. Como, por exemplo, a sonegao de tributos e a lavagem de dinheiro.

    Sinteticamente, a Constituio brasileira de 1988, que estabelece a democracia aps o perodo ditatorial, se destina a assegurar o exerccio dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurana, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justia como valores supremos de uma so-ciedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social.

    Desse modo, [...] no basta mais ao homem constitucional brasi-leiro a justia como simples garantia da aplicao de uma lei neutra, ao modo positivista, uma vez que suas expectativas clamam por vises algo mais

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    substantivas. Todavia, tampouco com ele condiz a idia de direitos metafsicos cuja legitimidade advm de um mundo natural pr-jurdico, ao modo jusnaturalista, j que, a toda evidncia, foi a prpria Constituio Federal que, respondendo aos anseios da sociedade, inaugurou uma nova feio do ordena-mento jurdico brasileiro, de cunho profundamente democrtico, bastante diverso daquela que tinha quando do perodo ditatorial que lhe precedeu: ou seja, os direitos, para ele, nascem de necessidades humanas histricas e culturalmente situadas. Resta ento, buscar dentre as correntes ps-positivistas, aquela na qual se pode abrigar suas expectativas de justia. (FORTES, 2004, p. 49).

    A Constituio brasileira revela, portanto, um homem comunitrio, cujo ideal de vida, respeitadas as particularidades do pluralismo, est inti-mamente relacionado com o melhoramento das condies de vida de todos os membros de sua sociedade, com o qual partilha de ideais valorativos de justia social. Assim, possvel ver nela a presena do constitucionalismo comunitrio, calcado no binmio dignidade humana/solidariedade social, demonstrando, dessa forma, sob uma forma dirigente o compromisso de efetivao de uma justia distributiva fundada nos valores ticos que defende. De qualquer forma, como facilmente percebvel no cotidiano, este ainda um projeto constitucional no concretizado.

    Segundo Martinez (2004), a sensibilidade para o mundo da poltica, da sociologia, da antropologia e para a vida social o que mais o jurista brasileiro precisa ter claro em sua mente e em suas aes. Ele deve buscar a conscincia da injustia sistmica e sistemtica que sempre recobriu as instituies polticas, sociais e jurdicas brasileiras.

    O objetivo estabelecer como referncia um princpio antropolgico para relacionar o Direito com a histria, a sociedade e a poltica. Trata-se de um olhar jurdico para fora, para as ruas, saindo um pouco de casa, da segurana da dogmtica, deslocando-se do Estado em direo s classes subalternas. Assim, o Direito poderia se tornar vida ativa, um dado con-creto da dinmica social saindo da dimenso da ideologia como falsa conscincia e instrumento de opresso.

    Algumas aes do poder judicirio j caminham nesta direo, como pode ser visto na seguinte passagem:

    Antnio Francisco Pereira (Juiz federal de Belo Ho-rizonte) sobre os Sem-Terras: E aqui estou eu, com

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    o destino de centenas de miserveis nas mos. So os excludos, de que nos fala a Campanha da Fra-ternidade deste ano. Repito, isto no fico. um processo. No estou lendo Graciliano Ramos, Jos Lins do Rego ou Jos do Patrocnio. Os personagens existem de fato. E incomodam muita gente, embora deles nem se saiba direito o nome. Valdico, Jos Maria, Gilmar, Joo Leite. S isso para identific-los. Mais nada [...] Ora, muita inocncia do DNER se pensa que eu vou desalojar este pessoal, com a ajuda da polcia, de seus moquios (casebres), em nome de uma mal arrevesada (obscura) segurana nas vias pblicas [...] Grande opo! Livra-os da morte sob as rodas de uma carreta e arroja-os (lana-los) para a morte sob o relento e as foras da natureza. No seria pelo menos mais digno e menos falaz deixar que eles mesmos escolhessem a maneira de morrer, j que no lhes foi dado optar pela forma de vida? (MARTINEZ, 2004, p. 38).

    Vendo o problema por este ngulo, conclui-se que no Brasil preci-so implantar urgentemente a Repblica Democrtica, com todas as suas consequncias e, hoje, isso tambm equivaleria a constituir um Estado de Direito efetivo, tambm vivo. A falta de tradio pblica e democrtica no Brasil pode ser exemplificada com a seguinte expresso: voc sabe com quem est falando? Essa forma de se comportar em determinadas situao faz o indivduo se afastar da igualdade formal, porque ele se sente mais importante do que os demais, por isso supe estar acima da lei. A negao do formal a principal caracterstica de quem nega o Direito ou seguem apenas as leis criadas por ele mesmo (MARTINEZ, 2004).

    De acordo ainda com Martinez, em casa somos todos super--cidados,

    Mas e na rua? [...] Somos rigorosamente sub--cidados [...] Jogamos o lixo para fora de nossa calada, porta e janelas; no obedecemos s regras de trnsito, somos at mesmo capazes de depredar a coisa comum, utilizando aquele clebre e no analisado argumento segundo o qual tudo que fica fora de nossa casa um problema do governo. Na rua a vergonha da desordem no mais nossa, mas do Estado. Limpamos ritualmente a casa e sujamos a rua sem cerimnia ou pejo... No somos efetiva-mente capazes de projetar a casa na rua de modo

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    sistemtico e coerente, a no ser quando recriamos no espao pblico o mesmo ambiente caseiro e familiar [...] Do mesmo modo, parece impossvel continuar operando com um sistema poltico onde os acordos pessoais ultrapassam sempre (e no mo-mento o mais preciso) as lealdades ideolgicas e o sistema econmico funciona com duas lgicas. (MARTINEZ, 2004, p. 40).

    Repblica e Democracia devem ser efetivas, devem fazer parte do dia-a-dia das pessoas, como eleitores, polticos, juristas, professores, ma-gistrados, trabalhadores, servidores pblicos, camponeses, profissionais liberais, alunos, etc. S desse modo, podemos entender como que o Estado Democrtico de Direito Social poderia ser um caminho honesto, em busca de tal justia social (MARTINEZ, 2004).

    De maneira geral, a histria brasileira se olhada pelos subalternos estar marcada pela luta do protocidado (aquele que no , mas que quer ser cidado) com ou contra o pseudocidado (aquele que no , mas que se considera como tal) (MARTINEZ, 2004).

    CONCLUSES

    Como foi possvel perceber at o momento, o Direito, surgido no ps-Segunda Guerra Mundial, possibilitou a existncia de um movimento expansivo do Estado, sobre a sociedade civil, bastante importante para a garantia de uma vida digna para os inmeros grupos sociais at ento vistos como inferiores. E o papel da Antropologia, em todo esse pro-cesso, apresenta-se como indispensvel para que os operadores do direito consigam estabelecer as devidas ligaes entre universalidade das leis e particularidades scio-culturais.

    Importante ressaltar que mesmo buscando relativizar determinadas situaes sociais e culturais, o princpio antropolgico no sinnimo de defesa de todo e qualquer fato ocorrido na sociedade. E como forma de evitar determinado relativismo basta recorrer aos acordos ticos e polticos assinados pela humanidade. Nos dias atuais, j existem certos consensos de combate sobre determinados fenmenos, como o racismo, o antissemitismo, a homofobia, etc. Portanto, contra os possveis relati-vismos individuais preciso ressaltar os acordos coletivos j estipulados pela humanidade, definindo aquilo considerado perigoso ou no para a dignidade dos indivduos e dos grupos sociais.

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    Ao contribuir para o fortalecimento do movimento expansivo do Estado, no sentido da garantia de direitos para o maior nmero possvel de indivduos, a Antropologia acabou por intervir, por conseguinte, no processo de enfraquecimento do poder restrito do mesmo aparelho esta-tal. Em outras palavras, essa cincia social ajudou a diminuir a fora dos interesses polticos, culturais e sociais das elites tradicionais presentes no poder do Estado em sua maioria branca, ocidental e crist.

    No caso brasileiro, a Constituio de 1988 justamente a tentativa de se colocar em prtica um certo movimento antropolgico no interior do corpo jurdico nacional. Quando segmentos at ento marginalizados, nas mais diversas esferas da vida social, passam a ser representados pela principal carta jurdica do pas. Isso certamente expressa uma expanso do Estado no sentido da proteo de fato de todos. O que, no entanto, no significa a ausncia de contradies, afinal esta instituio ainda represen-tante de interesses particulares. De qualquer forma, as conquistas, mesmo no interior de tal contradio, parecem ser visveis para todos aqueles que historicamente vm sendo perseguidos e criminalizados.

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    Data Recebimento: 8 de junhoData Aceite: 30 de julho