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Por que ler a Odisséia?

Donaldo Schüler

A Odisséia nunca deixou de ser lida. Esteve nas mãos de Virgílio, de Camões, deJoyce, de Ezra Pound, de Guimarães Rosa, de García Márquez. Em momentosdecisivos, a Odisséia abalou a literatura ocidental. Por que deixaríamos de lê-laagora? Como a Ilíada, a autoria da Odisséia é atribuída a Homero, um autorlegendário do século IX antes de Cristo, nascido, ao que supunham, numa dascidades gregas da Ásia Menor. Vale uma rápida comparação da Ilíada,primorosamente traduzida por Haroldo de Campos, com a Odisséia.

A Odisséia percorre, de certa forma, caminho contrário ao da Ilíada. Aepopéia que narra as aventuras de Odisseu dilata tempo, espaço e ação. Permanece oprincípio de que a narrativa não ultrapasse, em tamanho, a capacidade dememorização. Embora Odisseu esteja envolvido em aventuras marítimas por dezanos, o narrador o apanha em Ogígia, uma ilha misteriosa nas proximidades de Ítaca.Em algumas semanas, o herói, livrando-se do cativeiro de uma ninfa, chega à suaterra, depois de breve estada em Esquéria, a ilha dos feáceos. Homero rompe,entretanto, a unidade do reduzido tempo desta última etapa, convertendo o herói emnarrador de suas próprias aventuras, expediente estranho à Ilíada. Recebido pelacorte de Alcínoo, Odisseu rememora para um auditório fascinado o que lheaconteceu desde a saída de Tróia até à prisão de sete anos em Ogígia. Entre as dozeaventuras lembradas em ordem cronológica, Odisseu se demora naquelas que lheilustram a inteligência e a ousadia, voando sobre insucessos.

Em vez de concentrar a ação, a Odisséia mostra-nos, no primeiro plano,Odisseu atuar em três lugares distintos: Ogígia, Esquéria, Ítaca. O espaço amplia-seainda mais se a ele acrescentarmos os episódios narrados pelo protagonista. Adiversificação espacial já estava prevista na introdução. Ouvimos que Odisseuconheceu muitas cidades e a índole de muitos homens. Alguns homeristas observama divergência entre esta afirmação e as fantásticas viagens de Odisseu em queaparece uma única cidade, a capital do reino de Alcínoo. Há que lembrar, entretanto,a obstinada decisão de considerar o mundo grego como o único civilizado. Onavegador que se distancia dele enfrenta o desproporcional, o desmedido, odesumano, o caótico. Curiosamente, nas ocasiões em que Odisseu mente sobre as

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suas viagens, a normalidade se restaura, pontilhada de cidades, mas, quando relatafatos pretensamente reais, surpreende-nos com ninfas e gigantes. Se devemosprocurar a verdade na mentira, chegamos à conclusão de que Homero conheciahistórias de navegações plausíveis, transfiguradas nos cantos, em meio a lendas devária origem, encanto do poema, verossímeis em caóticas periferias.

Apropriando-se do espaço fantástico, o autor da Odisséia ganha para a literaturanovos territórios. Comparada com a Odisséia, a Ilíada é pouco imaginativa, já que nosamarra ao que confirmam os sentidos. A Odisséia nos libera o rico mundo dos sonhos,assustadores e reais, embora contrários à experiência cotidiana. Também por estecaminho a Odisséia nos ensina a desbravar o mundo interior. Nascidos e criados numcontinente em que bebemos o fantástico com o leite materno, haja vista osromancistas do realismo mágico, podemos sentir melhor a verdade das narrações deOdisseu do que a culta Europa de que somos periferia. Os escritores latino-americanos da segunda metade do século passado repetiram a homéricaincorporação do fantástico, libertando-nos do confinamento ao sensorialmenteconstatado.

Ao contrário da Ilíada, a Odisséia desdobra-se em três conjuntos distintos: osquatro cantos iniciais em que é protagonista Telêmaco, as aventuras de Odisseu e areconquista do palácio. Atentos a esta divisão, críticos sugeriram a existência de trêspoemas originariamente separados, amalgamados, por fim, em um único. Ahipótese, embora plausível, é inverificável. Farta tradição oral anterior à Odisséia estáassegurada. Basta comparar a Odisséia com os contos recolhidos por Grimm eAndersen para constatar a dívida da epopéia grega à literatura popular cultivada emoutras regiões. Fontes orais não negam, entretanto, a existência de um poeta dequalidades privilegiadas. Devemos a ele a reorganização e a recriação do legado.

As convenções de tempo, espaço e ação inventadas na Ilíada, ao sereminteligentemente preservadas e modificadas na Odisséia, evidenciam a existência deuma tradição culta que não pode ser confundida com a espontaneidade das invençõespopulares. Acrescente-se a elaboração de personagens sem paralelo na Ilíada e nofolclore.

O poema é dominado do princípio ao fim pela figura singular de Odisseu. Oautor da Odisséia assume o compromisso de cantar o herói versátil, não uma de suasqualidades. Se a fúria do Aquiles ausente destaca vários heróis, a presença polimorfade Odisseu obscurece a atuação dos demais. Entre os caracteres criados, destaca-se agaleria das mulheres, aplaudida em todos os séculos. Circunstâncias diversificadasiluminam o herói como orador, cavalheiro, trapaceiro, guerreiro, pai, esposo,amante, estrangeiro, rei, líder. Enquanto que o campo de batalha requer, na Ilíada,número limitado de qualidades, situações imprevistas solicitam aqui respostas paraas quais não houve preparo. O Odisseu narrador surge na corte de Alcínoo. É

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também aí que se vê a urbanidade do guerreiro no trato com a rainha, com o rei, coma princesa, com os príncipes e os nobres.

Como não há exércitos inimigos que afastem o herói do objetivo, Homerocria obstáculos de outra ordem. A natureza, cuja força encheu de espanto o homemdesde sempre, é uma delas. Ela ataca com tempestades, estreitos rochosos, maresdesconhecidos, escassez de alimentos. Para vencê-la, requer-se inteligência, além dedestreza, coragem e força. Sem o amparo de ninguém, Odisseu inventa soluções paratodas as dificuldades. Os deuses, que decretaram o seu regresso à pátria, ofereceramimprecisos recursos para realizá-lo. Odisseu é vitorioso por ser quem é.

Embora a epopéia valorize o momento que passa, não omite preocupaçõespelo que há de vir. Odisseu deixou impressão mais profunda nos leitores do queAquiles. A personagem foi persistentemente retrabalhada, deixando versões da maisalta importância. Muitos fatores terão contribuído para o sucesso de Odisseu.Dificilmente se mexe no temperamento irado de Aquiles. As múltiplas faces deOdisseu oferecem ao leitor a oportunidade de selecionar as que lhe convêm. Joyceexplora a busca e a viagem, dando ao navegador o mar de dúvidas, indagações,andanças inócuas do angustiado homem do século XX.

Pretendemos, nesta tradução, afrouxar a carga sintática e vocabular que abafavozes juvenis. Mantemos diálogo entre nosso tempo e outros tempos. Tivemos emmira fazer personagens reviverem em nosso dizer coloquial. Se xingam, quexinguem em português. Quisemos criar ritmos livres, não subordinados a modelos,movimentos próximos à mobilidade do hexâmetro homérico. As repetições,lembrança da literatura oral, aparecerem modificadas, moduladas, contornadas emconsonância com procedimentos da literatura escrita. Não estranhe Odisseu em lugarde Ulisses. A preservação de Odisseu nos permite reinventar truques homéricos: ainvenção e o uso estratégico do nome. Percebida a sonoridade grega, insistimos emsonoridades na tradução. A sonoridade de Finnegans Wake bate nas paredes daepopéia de Homero.

Revisitadas discussões entre analíticos (corrente que defende a autoriamúltipla) e unitários (corrente que defende a idéia de um só autor), optamos por umadivisão em três seções da nossa Odisséia: Telemaquia (1 – 4), Regresso (5 – 12),Ítaca (13 – 24). Adotamos, para a Odisséia, o mesmo critério que nos orientou noexame da construção da Ilíada. Não negamos a rica tradição oral, trabalho de muitoscantores e responsável por níveis lingüíticos, estratos culturais e contradições. Nãopodemos negar, entretanto, a presença de um poeta central, a quem atribuímos acuidadosa elaboração dos episódios, a invenção de caracteres, a variedade estilística.A literatura e o pensamento ocidentais foram construídos sobre Homero. A biografiade Homero são as epopéias homéricas. Precisamos de outra? Os argumentoslevantados contra a teoria da autoria única das duas epopéias não são convincentes.

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Admitamos que a Ilíada e a Odisséia procedam de um só autor em dois momentosprivilegiados de sua farta criação literária.

Em literatura, a erudição filológica está subordinada à realização poética.

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ODISSÉIA I

TELEMAQUIA

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Canto 1

O homem canta-me, ó Musa, o multifacetado, que muitosmales padeceu, depois de arrasar Tróia, cidadela sacra.Viu cidades e conheceu costumes de muitos mortais. Nomar, inúmeras dores feriram-lhe o coração, empenhado emsalvar a vida e garantir o regresso dos companheiros. Masnão conseguiu contê-los, ainda que abnegado. Pereceram,vítimas de suas presunçosas loucuras. Crianções! Forrarama pança com a carne das vacas de Hélio Hipérion. Este osprivou, por isso, do dia do regresso. Das muitas façanhas,Deusa, filha de Zeus, conta-nos algumas a teu critério.

Os outros, todos os que tinham escapado da tenebrosaruína, estavam em casa, salvos da guerra e do mar.Mas Odisseu, embora desejasse o regresso e a mulher,vivia numa envolvente caverna, prisioneiro de Calipso,ninfa senhorial. Esta o queria como esposo. Por isso,quando, volvidas as estações, veio, por determinaçãodivina, o ano do retorno ao lar, Odisseu ainda nãoestava em Ítaca, entre os seus, livre de provas. Osdeuses lhe eram propícios, exceto Posidon. Cultivavacontra Odisseu ódio violento, abrandado só quandoo herói desembarcou em sua terra. Posidon partirapara visitar os etíopes, gente remotíssima, de caraqueimada. Uns vivem no Ocidente, onde Hipérion,passando sobre nós, desaparece, outros, no Orienteonde ele nasce. Fora receber oferendas de touros e deovelhas. Banqueteava-se com eles. Entrementes, outrosdeuses achavam-se congregados no palácio de Zeus.O pai dos homens e dos deuses fez uso da palavraprimeiro. Viera-lhe à memória a imagem de Egisto, umnobre, morto por Orestes, renomado filho de Agamênon[1].Zeus, lembrado dele, dirigiu-se aos imortais: “Meus

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caros, os homens costumam incriminar os deuses. Denós, dizem, vêm os males. Não consideram que elespadecem aflições causadas por desmandos próprios,contrariando Moros[2]. Contra Moros, Egisto uniu-seà esposa de Agamênon. Este morreu assassinado aoregressar de Tróia. O golpe veio do sedutor, embora oassassino não ignorasse a conseqüência do crime, poisnós o tínhamos advertido, enviando-lhe Hermes. Quenão matasse o rei, dissemos, não seduzisse a esposa,pois de Orestes, um Átrida[3], maduro e desejoso deregressar, lhe viria a punição. A mensagem foi essa.Apesar das boas intenções, o enviado não conseguiudissuadi-lo. Esse pagou pelos seus erros.” De olharvivo, contestou Atena: “Cronida[4], nosso pai, soberanode poderosos, Egisto recebeu castigo merecido.A um que se comporte assim aconteça o mesmo!Pulsa-me, porém, por outro o coração. Sabes do sábioOdisseu? O desdito padece pena, há muito, longe dosseus, em ilha cercada de águas profundas, umbigo domar, lugar de densa floresta, domínio de uma filha dede Atlas, cujo pensar devastador penetra até mesmoem profundos abismos marítimos, deus que sustentaas colunas gigantescas que mantêm afastados a terrae seu céu. É a filha deste que retém o odiado Odisseu.Vem com magias: palavras aveludadas, sedutoraspara lhe varrer Ítaca da memória. Mas Odisseusó pensa em rever as colunas de fumo que se elevamem sua terra. Quer morrer lá. Isso não te amoleceo coração, Olímpio? Não recebeste tu desse mesmoOdisseu sacrifícios nas planícies de Tróia junto àsnaus argivas? Zeus, por que tanto ódio a Odisseu?”Disse-lhe, em resposta, Zeus Pastor-de-Nuvens:“Minha filha, que discurso te saltou a sebe dosdentes! Como poderia eu esquecer o divino Odisseu,superior aos mortais em saber, generoso em oferendasaos senhores do céu imenso, seres que não morremos?Incansável no ódio lhe é Posidon Ampara-Terra.A cólera lhe vem do ciclope de olho vazado (obra deOdisseu), o super-humano Polifemo, o mais robusto

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de todos os ciclopes. A mãe dele se chamava Tóosa,uma ninfa, filha de Fórcis, encarregado da cura do marsem messe. Essa passou pelos braços de Posidon. Oencontro se deu numa suntuosa caverna. Posidonnão odeia Odisseu com ódio de morte, só o mantémerrante, longe da pátria. Deliberemos juntos sobre oregresso, sobre a maneira de ele achar a rota. Posidonterá que abrandar a cólera. Não poderá manter acesoo conflito contra a vontade de todos os imortais.”Respondeu-lhe a deusa dos olhos vivos, Atena:“Caro Cronida, nosso pai, soberano de poderosos, senesta reunião é este o parecer dos bem-aventurados, queo multi-habilidoso Odisseu regresse ao lar, convém queHermes, o mensageiro, o condutor, o matador de Argos,se apresse e vá voando à ilha de Ogígia para levar oindiscutível decreto à ninfa das fartas madeixas. Queela o cumpra! Entrementes, eu mesma irei a Ítaca paraanimar Telêmaco. Quero infundir-lhe ardor. Deveráconvocar os aqueus[5] de esvoaçantes cabelos para umaassembléia com a finalidade de conter os pretendentes.Eles insistem em consumir-lhe ovelhas gordas e resesque arrastam cascos luzentes, os bois. Eu o enviarei aEsparta e à arenosa Pilos para saber do regresso do pai,colher informações, ilustrar seu nome entre os povos.”

Finda a fala, Atena calçou as sandálias: esplêndidas,áureas, fulgurantes. Estas a conduziam tanto nasuperfície úmida quanto no solo sem fronteiras, aosopro do vento. Elegeu longa lança, de pontiagudo,penetrante ferro: compacto, denso, danoso mesmoa combatentes viris, a linhas de heróis hostis à filha doforte Pai. Desceu da cidadela olímpia em saltos decabra. Deteve-se em Ítaca, na cidade, ante o solar deOdisseu, no vestíbulo da sala. Lança de bronze empunho, tinha o aspecto de um estrangeiro, um guerreirotáfio, Mentes. Estava na presença de arrogantes.Dados distraíam os pretendentes no pátio fronteiro,

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sentados em peles de bois que eles próprios tinhamcarneado. Arautos prestimosos os cercavam. Uns lhespreparavam deliciosas poções de água e vinho, outrosarrumavam as mesas. Limpavam-nas com esponjasmacias e as cobriam com porções variadas de carne.Telêmaco, de porte divino, percebeu-a primeiro. Elemovia-se de coração pesado. Trazia viva no peitoa imagem do pai. Queria que regressasse para limparo palácio dos indesejáveis, pretensiosa peste. O ausenteilustraria assim seu nome e reinaria sobre o que éseu. Isso lhe passava pela mente, rodeado de arrogantes,quando lhe apareceu Atena. O jovem dirigiu-sepronto ao vestíbulo, preocupado. Há quanto tempoo estranho esperava à porta? Aproximou-se, estendeu--lhe a destra, recebeu a lança de bronze e, dirigindo--se a ele, proferiu estas palavras aladas: “Bem-vindo,estrangeiro. Que te sintas bem! Antes de tudo, tomalugar à mesa. Mais tarde me dirás o que te traz.” Faloue a conduziu. Palas Atena o seguiu. Já no interior daimponente mansão, Telêmaco levou a lança até umacoluna sólida, lugar cuidadosamente preparado para aguarda de instrumentos de guerra. Viam-se ali muitasarmas do sofrido Odisseu. Indicou-lhe o assento. Opano que o revestia era uma esmerada obra de arte,linho com ricos ornamentos. Ofereceu-lhe umabanqueta para os pés. Dispôs a seu lado uma poltrona.Estavam separados dos outros para que a refeição doestrangeiro não fosse perturbada pela ruidosa algazarrado bando insolente. Além do mais, pretendia fazer-lheperguntas sobre o pai ausente. De um luzente jarrode ouro, apoiado numa baixela de prata nas mãosde uma serviçal, a água escorria purificadora sobreas mãos do hóspede. Acomodados a uma mesalimpinha, uma governanta respeitável servia-lhes pão,além de variadas iguarias, liberalmente oferecidas.Um assador apresentou-lhes sobre uma prancha todasorte de carnes. Os copos eram de ouro. Um arautonão se cansava de enchê-los de vinho. Entraram osinconvenientes. Acomodaram-se por ordem em

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poltronas e majestosos assentos. Arautos banhavam--lhes as mãos. Escravas ofereciam-lhes pão de cestosrepletos. De jarras jorrava fulgurante o vinho aoscálices. Os gananciosos estendiam as mãos às pranchas.Fartos de comida, repletos de bebida, revolviamoutros prazeres no espírito: canto e dança para coroara festa. Um arauto colocou uma cítara invulgar nasmãos de Fêmio, involuntário cantor dos pretendentes.Vibram as cordas, o narrador se põe a modular umcanto comovente. Telêmaco dirigiu-se a Atena, deolhos abertos ao que sucedia. O jovem rogou-lheque aproximasse a cabeça para não serem ouvidos:“Caro amigo, não te incomodes com o que voudizer-te. Cítara e canto são a distração dessa gente.Irresponsáveis! Consomem sem escrúpulos os bensde outro, um homem cujos ossos descarnados talvezestejam sendo corroídos na intempérie, perdidos poraí, ou balouçam nas ondas do mar. Se o soubessemdevolvido a Ítaca, todos prefeririam, suplicantes, pésvelozes a ouro ou vestes vistosas. Agora, porém, comopereceu de má morte, nenhuma esperança nos resta nemquando algum forasteiro garante sua volta. Frustradolhe foi o dia do regresso. Vamos! Declara sem rodeios:Quem és? Quem é teu povo? Onde fica tua cidade?Quem são teus pais? Em que navio vieste? Como foique os nautas te trouxeram a Ítaca? Que nome osilustra? Não me digas que vieste a pé. Não me falescom subterfúgios. Quero ter certeza. Vens aqui pelaprimeira vez ou já freqüentaste a casa de meu pai comoamigo? As portas da nossa casa abriam-se a muitos,pois meu pai, indo e vindo, fez numerosas relações.”Fulgurou mistério nos olhos de Atena, quando ela lherespondeu: “Podes confiar no que vou dizer: Orgulho--me de ser filho do experimentado Anquialo. Mentesé meu nome. Soberano sou dos táfios, destros remeiros.Aqui aportei com meus companheiros, singrando a facevinhácea do mar rumo a homens de estranhas línguas.Trago ferro luzidio para trocá-lo por bronze em Temesa.Minha nau está ancorada longe da cidade, nas pastagens

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ao sopé do arborizado Neio. Reitro chama-se o porto.Com muito orgulho te digo que nossa amizade vem delonge, do tempo de nossos antepassados. Perguntaao venerável Laertes[6], um herói. Ao que sei, ele já nãocostuma vir à cidade. Prefere tratar seus males longe,no campo, em companhia de uma velha escrava,responsável por alimentação e bebida. Ela deverásocorrê-lo quando a canseira o puser de joelhos e forobrigado a se arrastar no solo coberto de vides.Decidi vir porque fui informado de que teu pai tinharegressado. Vejo, porém, que os deuses devem tercolocado obstáculos em seu caminho. Morto ele nãoestá, o divino Odisseu não partiu deste mundo. Passaos dias em algum lugar do mar imenso, retido em ilhadistante. Homens cruéis, selvagens, o prenderam,decerto. Não permitem que realize o que deseja. Ouve oque te digo. O que os deuses me segredam no coraçãohá de cumprir-se, ainda que eu não seja vidente deaves nem conheça o sentido de seus vôos. Odisseunão tardará. Estará em breve em sua terra amada.Mesmo que gema algemado em cadeias de ferro,ele retornará. Saberá como libertar-se. Renomados sãoseus muitos ardis. Agora, fala-me com sinceridade.És de fato filho legítimo de Odisseu? Observando tuacabeça e o brilho dos teus olhos, a semelhança com eleé espantosa. Encontramo-nos com freqüência antesde ele partir para Tróia, destino de outros argivos[7], osmelhores. Desde então não o vi mais, nem ele a mim.”Cauteloso, respondeu-lhe Telêmaco: “Pois bem,terás resposta sincera, amigo. Pelo que sei da minhamãe, sou filho dele. Isso basta? Nunca saberemosquem de fato nos gerou. Gostaria de ser herdeirode um cidadão bem-sucedido. Eu administraria seusbens até à velhice, Em vez disso, nasci do maisinfeliz dos mortais, como é voz corrente. Respondi tuapergunta?” Observou-lhe a deusa, Atena Olhos-Vivos:“Os deuses não determinaram deixar sem nomeesta casa, já que Penélope deu à luz um homem de tuafibra. Adiante! Continua a dizer-me o que sentes.

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Este festim... Este conglomerado... O que se passa?Bacanal? Casório? Um inocente encontro de amigosé que não é. Essa gente não conhece limites. Berram.A festança corre solta. Se entrasse um homemajuizado e visse esta vergonheira toda, não ficariahorrorizado?” Modelar foi a resposta de Telêmaco:“Meu amigo, é uma boa pergunta. Queres saber? Estacasa teria tudo para ser próspera e decente, se aquelehomem ainda estivesse conosco. Mas os deuses,mal-intencionados, têm outros planos. Sumiramcom ele. Pergunta a quem quiseres. Ninguém sabeonde ele está. Se soubesse que jaz morto, eu nãoviveria nesta aflição. Tombou entre companheiros?Espirou nos braços de amigos, enovelada a guerra? Acomunidade aquéia, os panaqueus poderiam erguer-lheum monumento. Deixaria um nome honrado. As coisasestando como estão, é de admitir que tenha acabadonas garras do vento, das Harpias. Ninguém o viu,ninguém sabe dele. Deixou-me um legado de dores.Chorá-lo e gemer não é tudo. Os deuses amontoamoutros cuidados sobre mim. Nobres das ilhas Delíquio,Sameres e Zacinto, de densas florestas e proprietáriosda pedregosa Ítaca, todos são candidatos à mão deminha mãe, devoram minha casa. Ela, entretanto, nãorepele o casamento imposto, nem se decide por ele.Enquanto isso, gente abjeta me aniquila. Devoram meusbens. Em breve, eu próprio serei dilacerado por eles.”

Atenada com os desmandos, palavreou Palas Atena:“Santos deuses! Não podes continuar assim, sem apresença de Odisseu. Que ele bote a mão nesses sem--vergonha! Gostaria de ver a cara deles se ele entrasseagora pela porta da frente, de capacete, escudo e duaslanças, tal como eu o conheci outrora em nossa casa.Lembro que gostava de beber. Era homem alegre. Elevinha de Éfira, da casa de Ilo, filho do mau Mermero.Tinha navegado para lá em nau veloz à procura de umasubstância venenosa, mortífera, para untar o bronze

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das frechas. Mas Ilo não lhe forneceu o produto. Temiairritar os deuses que não morrem. Supriu-o, entretanto,meu pai. Grande era o afeto que lhe tinha. De estarrecer!Com um homem de tal estofo deveriam defrontar-se ospretendentes. Não viveriam muito. Provariam núpciasamargas. O retorno dele ao seu palácio para punirdesmandos é medida que nos joelhos dos deuses aguardadecisão. Mas a ti compete tomar providências paralimpar o palácio desta imundície. Agora, rogo, prestaatenção ao que te digo. Pesa bem minhas palavras.Convoca amanhã os aqueus a uma assembléia paraque deliberem, responsáveis aos deuses. Leva-os adecidir que o ajuntamento de pretendentes se dissolva.Que cada um retorne à sua propriedade, que tua mãe– se o coração a inclina ao casamento – retorne à casailustre de seu abastado pai. Poderão, então, tratar denúpcias. O pai dela receberá dádivas e cuidará deoutras providências a que usualmente faz jus uma filhaquerida. Minhas recomendações, se é que te interessam,são estas. Equipa uma nau de vinte remeiros, dosmelhores. Colhe informações sobre teu pai, por anosausente. Falando com pessoas, poderás ouvir a vozde Zeus, que divulga longe feitos gloriosos.Deverás dirigir-te primeiro a Pilos e conversar comNestor. De lá os caminhos te levarão a Esparta, aopalácio de Menelau, pois dos aqueus de brônzeacouraça foi o primeiro a regressar. Se souberes queteu pai vive e que regressa, nada de precipitações.Aguarda outro ano. Se te informarem que ele estámorto, retorna à tua terra amada, ergue-lhe ummonumento, prepara-lhe homenagens fúnebres,abundantes, como as esperadas de uma mãe a seuesposo. Cumpridos estes ritos, deverás pensar comdeterminação na melhor maneira de acabar com ospretendentes. Truques? Morte espetacular? Nãote comportes como criança. Já és adulto. Nãoignoras, por certo, a glória que granjeou entre todosos povos o divino Orestes quando matou Egisto, oassassino de seu pai, o exterminador de um homem

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ilustre. Vejo-te belo, amigo, grande, robusto. Tenstudo para deixar um nome honrado. Devo retornaragora à minha nau. Meus companheiros devemestar impacientes com minha demora. Não relaxesteus negócios. Pensa bem no que eu te disse.” Estafoi a ajuizada resposta de Telêmaco: “Caríssimo,noto afeto em tuas palavras amigas. Falas comose fosses meu pai. Jamais poderei esquecê-lo. Porque tanta pressa? Fica mais um pouco. Refresca-te.Distrai-te. Limpa a mente de cuidados. Quero queleves um presente à tua altura. Quero que partasalegre. Receberás uma lembrança que selará nossaamizade. Assim procedem pessoas que se querem.”Respondeu-lhe Atena com ajuizados olhos de coruja:“Não me detenhas por mais tempo. Urge que eu parta.Mas o presente que teu coração amigo determinadar-me, este eu receberei e levarei para casa. Porrico que seja, terás retorno correspondente.” Comestas palavras, retirou-se Atena Olhos-de-Coruja,veloz como a ave ao alçar vôo. Infundiu-lhe corageme decisão. Telêmaco evocou o pai mais que antes. Suaimagem desenhou-se-lhe viva no espírito. Ficoupasmo, certo de que recebera a visita de um deus.

Procurou os pretendentes, iluminado o rosto combrilho divino. Cantava-lhes o inigualável aedo.Eles escutavam em silêncio. Entoava o lutuosoregresso que Palas Atena concedera aos aqueus,finda a campanha de Tróia. No andar superior, afilha de Icário, a ponderada Penélope, seguia ocanto inspirado. Desceu pela alta escadaria. Nãovinha só. Acompanhavam-na servas prestativas.A Senhora apareceu divina aos pretendentes.Deteve-se na pilastra, trabalhada por mão deartista. Escondia as faces atrás de um rico véu,sempre ladeada por escravas fiéis. Dirigiu-se emlágrimas ao divino cantor: “Fêmio, deves sabermuitos outros cantos envolventes sobre feitos

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de homens e de deuses, repertório de aedos.Elege outro episódio para animar teus ouvintes,afeitos à mistura de arte e vinho. Interrompe, rogo--te, este canto triste. Ele me oprime o coração agorae sempre. O que evocas me faz padecer. Essehomem não me sai da lembrança. O renome delese alarga pela Hélade, aprofunda raízes no centrode Argos.” Interveio Telêmaco, sisudo: “Por queimpedes que o cantor nos alegre? Ele conhecesua arte. Queres cortar-lhe as asas da imaginação?Culpados não são os cantores, culpado é Zeus,é ele que determina a seu bel-prazer o destino dehomens empreendedores. Não se repreenda, pois,o cantor, se ele narra a má sorte dos dânaos. Maiscaloroso aplauso arranca o canto que versa os maisrecentes assuntos. Disciplina o coração. Ilustra teuespírito. Dá-lhe ouvidos. Odisseu não foi o único aperder o dia do regresso. Muitos heróis pereceram.Recolhe-te, pois, a teus aposentos e cuida dos teusafazeres: o tear e a roca. Queres que tuas criadaste acompanhem? Retira-te com elas. Discurso étarefa de homens, sobretudo minha. Quem mandanesta casa sou eu.” Espantada, Penélope foi aseu quarto. Guardou no peito a palavra severa dofilho. Subindo com as mulheres, derramou lágrimaspor Odisseu, seu amado esposo, até que Atena, deolhos penetrantes, baixasse suas pálpebras pesadasem sono suave. Reacendeu-se a algazarra dosabusados na sala sombria. Cada um deles desejavatê-la no seu próprio leito. A palavra do iluminadoTelêmaco soou ao ouvido de todos: “Pretendentes deminha mãe, homens de notória arrogância, desejo atodos bom apetite. Cessem os gritos! É com prazerque se presta atenção a um cantor como este, devoz celeste. Amanhã estaremos reunidos na ágora.Todos! Eu vos falarei sem reservas. Pedirei que vosretireis desta casa. Procurai outras mesas. Consumivossos próprios bens, ora na casa de um, ora na casade outro. Parece-vos mais vantajoso consumir, sem

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indenizar, bens de um único homem? Por que nãome tirais o couro? Apelarei aos deuses eternos.Espero que Zeus, enfim, vos dê a paga merecida.Garanto que permanecer não vos será lucrativo.”Foram estas as palavras. Estáticos, mordiamos lábios. Telêmaco os surpreendera. Com quantacoragem falara! Tomou a palavra Antínoo, filho deEupites: “Telêmaco, foram os deuses teus mestrespara falares com tanta eloqüência? Que coragem!Mas não penses que te constituirão rei de Ítaca,ainda que tragas nas veias o sangue de teu pai.”Medindo as palavras, respondeu-lhe Telêmaco:“Direi o que penso ainda que isso te irrite. Se forvontade de Zeus que eu seja rei, não posso afirmarque isso me desagrade. Fala franco, pensas quereinar seja um mal que se deva temer? Mandaré mau? À medida que o rei enriquece, crescea veneração. Ora, príncipes, jovens ou velhos,não faltam nesta ilha. Já que Odisseu está morto,não é impossível que um deles arrebate a coroa.Declaro-me, porém, senhor de minha casae de meus escravos, herança de Odisseu.”A resposta veio de Eurímaco, filho de Pólibo:“Ora, Telêmaco, quem há de ser rei nesta ilhadepende de uma decisão do conselho dos deuses,que ainda não foi tomada. O domínio sobretua casa te está assegurado. Não temas violência.Enquanto houver homens em Ítaca, ninguém viráarrancar de tua mão o que é teu. Pergunto-te,porém, sobre o estrangeiro. Donde veio ele? Queterra diz ele ser a sua? A que família pertence?Onde ficam suas terras? Trouxe ele notícia deteu pai ausente, ou veio tratar de negócios seus?Levantou-se e partiu de repente. Não quisconhecer-nos? Aspecto de vilão ele não tinha.”Respondeu-lhe Telêmaco, ponderado: “Eurímaco,o regresso de meu pai está definitivamente fora dequestão. Perdi a confiança em notícias, venhamdonde vierem. A vidência não me atrai. Os videntes,

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se vêm, tratam com minha mãe. Quem nos visitoufoi um amigo de meu pai. Veio de Tafo. Chama-seMentes, é filho de um nobre, Anquíolo. Governamarinheiros hábeis, os táfios.” Assim falou o filhode Odisseu. Que reconhecera a deusa era segredo de sete chaves. Osinsolentes resolveram girar naalegria da dança ao embalo do canto. Bailaram atéanoitecer. O manto da noite os envolveu em festa.Só então cada qual procurou repousar em casa.

Telêmaco dirigiu-se ao seu quarto. Era esplêndido.Elevava-se no pátio com vista para todos os lados.Recolheu-se agitado ao leito. Muitas eram aspreocupações. Precedia-o de tocha acesa a dedicadaEuricléia, sempre atenciosa, filha de Opo, filho dePisenor. Laertes a tinha adquirido com seus própriosrecursos, ainda adolescente, ao preço de vinte bois.Cercou-a com atenções no palácio como o fazia coma honrada esposa. Mas nunca freqüentou o leito delapara evitar a ira de sua mulher. Justamente essailuminava os passos de Telêmaco. Ela o estimava maisque as outras escravas. Cuidava dele desde pequeno.Abriu-lhe a porta da câmara, muito bem construída.Sentado no leito, ele despiu a túnica leve e a depositounas mãos da dedicada anciã. Esta dobrou com cuidadoa veste e a dependurou no cravo junto à cama cinzelada.Saiu do quarto, puxando a porta pela argola de prata.Com a mão na correia acionou o ferrolho. Telêmacopassou a noite envolto num manto de lã. Não lhesaía da cabeça a viagem que lhe recomendara Atena.

[1]. São inúmeras as referências na Odisséia à história de Agamênon, figura centralda trágica história familiar que só perde em celebridade à da família de Édipo.Agamênon, assim como Menelau, é filho de Atreu (daí a denominação “Átrida”, ouseja, filho de Atreu), rei de Argos. Atreu foi assassinado por Egisto, seu sobrinho eenteado (numa sucessão de ações que remontam a quando Atreu e seu irmão, Tiestes

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– pai natural de Egisto – assassinaram Crísipo, meio-irmão dos dois e filho ilegítimode seu pai, Pélope, com a ninfa Axioque). Menelau e Agamênon fogem então paraEsparta, onde o rei, Tíndaro, fornece-lhes um exército e possibilita que voltem paracasa e expulsem os usurpadores do trono do seu pai. Agamênon torna-se então rei deArgos e casa-se com Clitemnestra, filha de Tíndaro, após matar o primeiro maridodesta, Tântalo, e os filhos deles. Posteriormente, Agamênon é nomeado comandantesupremo do exército grego enviado à Tróia para resgatar Helena; ele se jacta de terabatido um cervo com uma flecha mais certeira que as da deusa caçadora, Ártemis;esta se enfurece e, para deixar prosseguir a expedição dos gregos, exige queAgamênon lhe sacrifique sua filha Ifigênia. Ele se vê obrigado a obedecer,granjeando a ira da própria esposa, Clitemnestra. Anos depois, ao final da guerra,Agamênon toma, como parte de seu butim, Cassandra, filha do rei Príamo, de Tróia,que lhe faz as mais funestas previsões sobre seu futuro. Ao chegar em casa, Egisto,seu primo, em conluio com a rainha Clitemnestra, de quem se tornou amante,assassina Agamênon. As peças de Ésquilo que compõem a Orestéia contam essatragédia e também a glória de Orestes, filho de Agamênon e Clitemnestra, que nãodescansa até vingar o pai, matando a própria mãe e Egisto. (N.E.)[2]. Personificação do destino. Filho da deusa Nix (as trevas superiores, ou noite) eirmão de Tánatos (a morte). Figura sombria, porque consciente do destino que cabeaos outros.(N.E.)[3]. Átrida: patrônimo. Literalmente, filho de Atreu. Aqui, usado na acepção de“descendente de”.(N.E.)[4]. Cronida: patrônimo de Zeus; filho de Cronos.(N.E.)[5]. Um dos quatro ramos daquilo que, posteriormente, os romanos vieram a chamarde povo grego. (N.E.)[6]. Pai de Odisseu. (N.E.)[7]. Aquele que provém de Argos. (N.E.)

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Canto 2

Ao despertar a alvorecente Aurora Róseos-Dedos,saltou da cama o robusto filho de Odisseu. Vestido,ajustou a afiada espada nas costas e firmou as vistosassandálias na planta sensível dos pés. Esplendordivino iluminava-lhe o corpo. Deixou o quarto. Pordeterminação sua, a voz dos arautos chamou aosbrados os aqueus para a assembléia. Mal soou aordem, congregaram-se os homens de longos cabelos.Comprimidos em reunião compacta, compareceuTelêmaco, de lança em punho. Não foi só. Trouxe doiscães velozes. Entrou revestido da graça auspiciosade Atena. Seu andar decidido atraiu a atenção de todos.Ocupou o assento do pai. Os anciãos cederam-lheo lugar. Egípcio, herói já curvado pelos anos, abriu asessão. Sabia mil coisas. O filho, o lanceiro Antifo,que ele queria muito, acompanhara o divino Odisseuà Ílion dos belos corcéis. Antifo partira na frota dasnaus bojudas. Foi abatido pelo ciclope na cavernatétrica. O carnívoro o reservara como última iguariado sinistro banquete. Tinha outros três filhos: Eurínomose juntara aos pretendentes, os outros dois cuidavamdos seus bens. O desaparecido, lembrado em soluçose pranto, nunca lhe saiu da mente. Uma lágrimalhe descia pela face quando se dirigiu à assembléia:“Itacenses, atenção ao que tenho a dizer. Nunca houveassembléia nem sessão desde a partida de Odisseue suas côncavas naus. Gostaríamos de saber quem nosconvocou, motivo. Foi um jovem ou um cidadãoavançado em anos? Alguém soube da aproximaçãoduma armada, uma informação recente que queiratransmitir-nos? Ou trata-se de um assunto interno queexija deliberação? Suponho que a convocação venhade homem responsável, preocupado com nosso bem.

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Zeus conceda que chegue a bom termo o que o aflige.”Falou. Ao filho de Odisseu agradou o discurso. Semtardar, levantou-se e pediu a palavra; de pé, no centroda assembléia. O arauto Pisenor, versado em sábiosconselhos, passou-lhe o cetro. Preso às palavrasdo ancião que o precedera, Telêmaco se pôs a falar:“Venerando, não está longe o homem, como verásagora mesmo, que reuniu o povo. Sofrimento algumse compara ao meu. Nada sei de um ataque militar,rumores de que eu tivesse as primeiras informações.Nenhum assunto público levou-me a convocar-vos.Agi movido por interesses privados, dificuldades quemolestam duplamente minha casa. Meu nobre pai, oantigo rei desta terra, que vos governou com afetopaternal, está perdido. Cai sobre mim mal ainda maiorque arrasará em breve todos os meus bens, consumirátodos os meus recursos. Pretendentes assediam minhamãe. Não respeitam sua recusa. Filhos de cidadãosdestacados da nobreza local! O só indício de que elapoderia retornar à casa paterna os faz tremer. Icáriopoderia tratar do casamento da filha, dá-la de livrevontade a alguém de sua preferência. Invadem, emvez disso, diariamente nossa propriedade. Abatembois, ovelhas e cabras pingues. Banqueteiam-se,deliciam-se desaforadamente com o brilho do meuvinho. Consomem tudo. Falta faz um homem comoOdisseu para livrar-nos desta praga. Não somosbastante fortes para removê-los. Seremos sempreuns pobres coitados que não sabem usar a força. Euos repeliria se tivesse energia para tanto. Desaforos?Não os suporto mais. São indecentes. Abalaramminha casa. Conto com vosso repúdio. Que dirãopessoas das cercanias, vizinhos nossos? Temei aosdeuses. Irados, poderão punir atos vis. Invoco ZeusOlímpio e Têmis, que dissolve e preside assembléias.Não quero inquietar-vos, amigos. Deixai-me sócom meus tormentos. Admitamos que Odisseu,meu nobre pai, tenha tratado mal gente devistosas grevas, aqueus. Lembrados disso, pagais

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mal com mal. Incitais vossos filhos. Se vós voslimitásseis a atacar meus bens, meus rebanhos, issonão seria o pior. Se devorásseis tudo, poderia, quemsabe, haver indenização. Eu poderia humilhar-me,percorrer a cidade como pedinte, mendigardinheiro até que o perdido me fosse restituído.Preferis, no entanto, investir contra o coração.Para esse mal não há cura.” Disse. Furioso,atirou o cetro ao chão. Prorrompeu em pranto.Comoveu a assembléia. Todos se mantiveramem silêncio. Ninguém ousou contestar as gravespalavras do filho de Odisseu. Só Antínoo revidou:“Telêmaco, enredador, insuportável! O que ouço?Queres ridicularizar-nos? Sujar-nos? A culpanão é dos pretendentes, não é dos cidadãos,culpada é tua mãe, versadíssima em astúcias.Já estamos no terceiro ano, logo virá o quarto. Estamulher tortura corações. Lá no fundo! Enche-nosde esperança, promete, manda mensagens. Seupensamento, no entanto, anda em outro lugar.Vejam os truques da torturadora. Tramou instalarnos seus aposentos um tear, um primor, enorme.Disse em seguida: ‘Meus queridos pretendentes,Odisseu morreu. Quanto ao casamento, nadade atropelos. Fiquem tranqüilos. Preciso terminarum manto antes que os fios se corrompam. Trata-sede uma mortalha para Laertes, um herói. A Moiraimplacável o levará em breve nos braços damorte dolorosa. Não quero que me recriminemem público. Poderiam dizer: jaz sem mortalha umhomem rico.’ Foi o que alegou. Abateu nossoscorações viris. Passava os dias atarefada. Mas ànoite, à luz de tochas, desfiava o tecido. Trapaçade três anos! Enganou-nos, ludibriou todos. Nocomeço do quarto ano, volvidas as estações, umacriada (bem informada!) a denunciou. Investigamos.Denúncia correta! O pano? Ela o desfiava. Emboracontrariada, foi forçada a terminar o trabalho. Aquivai a proposta dos pretendentes. Guarda-a bem

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na lembrança. É um esclarecimento a todos. Mandatua mãe à casa de seu pai. Obriga-a casar com quemele determinar, consultada, é claro, a preferênciadela. Mas se insistir em ludibriar nobres, orgulhosados dotes com os quais a distinguiu Palas Atena:artísticos trabalhos de mão, espertezas, quero saberquem das aquéias no passado procedeu assim. Aoque sei, mulher nenhuma. Tiro, não, nem Alcmena,nem a coroada Micena. Quem dessas beldades revelouatitudes comparáveis às de Penélope? Não se digaque o que ela maquinou foi sensato. Os pretendentescontinuarão a consumir teus recursos, enquanto elainsistir nas artimanhas que um deus, não sei qual, lhemeteu na cabeça. Digamos que ela conquiste para simesma fama insuperável. Isso te custará caro. Nãoretomaremos nossos afazeres, recusaremos outrasocupações enquanto ela não se decidir a tomar um denós por esposo.” Telêmaco deu ao orador ajuizadaresposta: “Não, Antínoo, não sairá da minha casa, senão quiser, quem me gerou, quem me criou. Meu pai,vivo ou morto, está longe. Se eu agisse mal, se eudecidisse botar minha mãe na rua, Icário me puniria.Eu atrairia o ódio do pai da minha mãe, pior que isso,a fúria divina. Expulsa, minha mãe invocaria, comcerteza, a vingança da Erínia[1]. Todos me condenariam.Decididamente, não. Jamais proferirei palavra queofenda minha mãe. Se feri sentimentos vossos, deixaiminha casa. Procurai banquetes em outro lugar. Porque não consumis o que é vosso? Na casa de um, nacasa de outro... Mas se na vossa cabeça é recomendávelliquidar impunemente os recursos de um só, aniquilai--me. Invocarei os deuses que sempre são. Espero queZeus vos dê a paga que merecem vossos atos. Sedecidis ficar em minha casa, quero vossa ruína, semninguém que vos vingue.” Estas foram as palavras. Olongevidente Zeus enviou do cimo do monte duaságuias que pairavam no alto. No princípio, deslizavamao sabor do vento, uma ao lado da outra, de asasestendidas. Ao chegarem, entretanto, ao centro da

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turbulenta assembléia, começaram a girar e a agitarplumagem compacta. As cabeças reunidas fulgiamcom olhares de morte. Rasgavam com as garras carae pescoço uma da outra. Derivaram, então, para adireita, sobre as casas. As aves assombraram os queas observavam atentos. O coração perguntava pelosentido dessa visão. Falou-lhes um dos heróis, ovenerando Aliterse, filho de Mastor. Só ele, noconceito dos de sua idade, era entendido em aves,só ele saberia emitir juízo adequado. Tomando apalavra, falou com autoridade: “Atenção, itacenses!Tratemos de botar a cabeça no lugar. Me refiro atodos, sobretudo aos pretendentes. O perigo é sério.Odisseu vai aparecer. Ele está por aí, nas imediações,com planos de morte. Não escapa ninguém. Nãopensem os moradores de Ítaca que estão livres pormorarem numa ilha que se vê de longe. Pensem! Omomento de fazer planos para evitar a ruína é este.Advirto os pretendes: Parem. Falo com energia parao bem dos ameaçados. Não faço previsões comoinexperiente. Sei o que digo. Com respeito a Odisseu,asseguro que tudo acontecerá aos comandados poresse homem versátil na campanha argiva contraTróia como previ. Eu disse que padeceriam muito,que pereceriam todos, que Odisseu regressaria novigésimo ano, sem ser reconhecido por ninguém.Tudo isso está prestes a se cumprir.” Respondeu-lheEurímaco, filho de Pólibo: “Vai pra casa, velhinho.Profetiza a teus filhos. Que se cuidem porqueo bicho pega. Eu te garanto que te supero na arte deprever. O sol ilumina o vôo de inúmeras aves, nemtodas são agourentas. Odisseu está morto. Anotemisso. Por que não esticaste a canela como ele? Morto,não anunciarias tanta asneira. Não alimentariasa cólera de Telêmaco, esperançoso do prêmioque lhe reservas em tua casa. Não esqueças o quete digo. O cumprimento é certo. Não duvides.Se, entendido em velharias, iludes esse fedelho comexpectativas vazias, se o incitas a ações arriscadas,

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ele será o primeiro a se dar mal. Esta assembléianão o ajudará em nada. O fracasso será tua sentença,meu velho. A intranqüilidade te envenenará ocoração. Dor intensa te atormentará. Esta é minhaadvertência a Telêmaco na presença de todos. Queele persuada Penélope a retornar à casa paterna. Láse acertarão as núpcias e o valor oferecido por quemse candidata à mão de uma filha prestigiada. Garantoque antes disso não cessará o incômodo empenhodos filhos dos aqueus para tê-la como esposa. Nãotememos ninguém. Nem Telêmaco, por eloqüente queseja, nem a ti, velho, que queres ludibriar-nos comvaticínios. Não nos convences. És irritante, e muito.Continuaremos a dilapidar tua fortuna, Telêmaco. Nãohaverá indenização. Basta de truques, de protelações.Esperaremos se for necessário. Estamos na disputa. Sónos interessa o que ela tem a nos oferecer. Outras nãoprocuraremos. Não queremos saber das vantagens deoutras uniões.” Veio a resposta do avisado Telêmaco:“Eurímaco e vós, nobres pretendentes, sugiro quedeixemos isso de lado. Considero deuses e homensjá suficientemente informados. Tratemos de outroassunto. Peço-vos uma nau rápida e uma tripulação devinte homens para uma viagem de ida e de volta. Voua Esparta e à arenosa Pilos para obter informaçõessobre o regresso de meu pai, há muito ausente. Aorientação poderá vir de um homem, ou da voz deZeus, que divulga a grandes distâncias cometimentosde heróis. Se eu obtiver algum indício da vida e doregresso dele, enfrentarei outro ano de sofrimentos,de tormentos. Mas se souber que ele está efetivamentemorto, que já não existe regresso do herói à suapátria amada, ergo-lhe uma sepultura e presto-lhehomenagens fúnebres, abundantes, dignas de umaviúva.” Com estas palavras, sentou-se. Levantou-se,então, Mentor, amigo fiel de Odisseu. Ao embarcar,foi a ele que Odisseu confiou a casa inteira. Rogou--lhe ficar atento à vontade do ancião[2] e cuidar detudo. Na melhor das intenções, este dirigiu-se a eles:

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“Peço que presteis atenção ao que tenho a vos dizer,itacenses. Gentileza e amabilidade são virtudesultrapassadas. Por que um rei reinaria com cetrojusto? Seja violento, pratique crimes! Quem destepovo ainda se lembra de Odisseu, o governanteque vos regeu com branduras de pai? A arrogânciados pretendentes não me causa inveja, suas tramas,seus desmandos, seus atos criminosos tampouco. Asagressões perpetradas contra a casa de Odisseu lhespõem em risco o pescoço. Quem garante que ele nãoretornará? Adianta? Indigno-me contra este povoaqui aglomerado em silêncio e que, embora numeroso,não ousa nem falar contra este punhado de atrevidos.”Contestou-lhe Leócrito, filho de Evenor:“Mentor de mente atordoada, confias na força de tuaspalavras? Queres deter-nos? O argumento é comida?Atacas este contingente de valentes? Pensas queOdisseu, se voltasse, poderia sozinho expulsar de suacasa, de peito inflamado, brilhantes pretendentes pornão os desejar à mesa? A mulher dele jamais terá aalegria de seu regresso, por mais que o queira.Destino cruel o aguarda, se enfrentar esta gente toda.A Moira não apóia teu discurso. Está bem. Espalhe-seo povo. Volte cada um a seus negócios. Que nossospassos enveredem por esse caminho, nisso insistemMentor e Haliterse, velhos amigos de teu pai. Sabes oque penso? Ele, agachado por aí, acompanha o quese passa, sem coragem para concluir a viagem.” Foramestas as últimas palavras. A assembléia se dissolveu.Por rumos diferentes, cada um procurou sua própriaresidência. Menos os pretendentes. Estes foram aopalácio. Longe de todos, Telêmaco andava à beira domar. Com as mãos nas águas escuras, invocou Palas:“Ouve-me, deusa. Estiveste ontem em minha casae me ordenaste desafiar o mar sombrio em busca deinformações sobre o regresso de meu pai. Os aqueusdificultam essa providência, os pretendentes,

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opositores pretensiosos mais que todos. Perversos!”Foi esta a prece. Aproximou-se Atena. PareciaMentor na argumentação e na conduta. Dirigindo-lhepalavras escolhidas, pronunciou-se assim:“Telêmaco, não serás homem vil nem ignorante, seno futuro te assistir o intrépido vigor de teu pai, nãoterás o dissabor de jornada frustrada. No desempenhodos trabalhos e da palavra, ninguém o igualava.Mas se não te mostrares filho dele e de Penélope,não esperes realizar o que pretendes. Não sãomuitos os filhos que igualam quem os gerou. Amaioria decai, poucos os imitam na bravura. Agora,se, não fores débil nem falto de saber, se nãote desamparar a inteligência que Odisseu te legou,há esperança de que concluas a tarefa. Não tepreocupes, por ora, com os planos e as artimanhasdos pretendentes. Não te surpreenderão com lancessolertes. Não suspeitam morte, golpe vingador,embora perto esteja o dia em que todos verão o fim.Longe não está a vereda que te leva ao que intentas.Amigo de teu pai me declaro e teu. Te seguirei nonavio que aparelhei. Não tenhas receio. Retornaà tua casa. Enfrenta os insolentes. Arranja tudo:canastras, ânforas, víveres. Acomoda em courosresistentes o que for necessário para o sustento deteus homens. A tripulação fica por minha conta.Sem demora, encontrarei voluntários pelas ruas.Não faltam navios nesta Ítaca cercada de mar. Denovos e velhos, escolherei o melhor. Aparelhados,ganharemos em breve amplos horizontes úmidos.”Assim falou Atena, filha de Zeus. Não se retardouTelêmaco, tocado pela voz da deusa. Rumo ao solar,apressou o passo. Tempestades rugiam-lhe no peito.Os pretendentes já estavam a postos, arrogantes:esfolavam cabras, tostavam porcos no pátio. Antínoonão esperou. Aproximou-se de Telêmaco, rindo.Estendeu-lhe a mão e lhe disse loquaz: “EloqüenteTelêmaco, por que essa carranca? Não amargureso coração. Em lugar de palavras rudes, por que não

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comemos e bebemos juntos, como fazíamos antes?Esquece navio e remeiros. Os aqueus tomarão conta detudo. Terás nau e marinheiros de primeira qualidade.Logo estarás na Pilos sagrada e te darão notícia do teubrilhante pai.” Telêmaco deu-lhe resposta bem refletida:“Antínoo, não posso sentar-me à mesa com gente doteu quilate. Não posso divertir-me contrariado. Já nãobasta o estrago que vocês, pretendentes, fizeramna minha propriedade enquanto eu ainda era criança?Sou homem, Antínoo. Converso com outras pessoas.Procuro entender. Meu coração salta dentro de mim.Meus planos são funestos. Quero a desgraça de vocês,esteja eu em Pilos ou aqui na cidade. Parto. Não fareiviagem inútil. Viajo como um comerciante qualquer.Não sou dono de navio, nautas não tenho,o que não deixa de ser vantajoso para vocês.” QuandoTelêmaco retirou a mão, a de Antínoo já estava frouxa.Os pretendentes tomavam as últimas providênciaspara a refeição. Ouviam-se insultos, injúrias. Umjovem, muito mais arrogante que os outros, observou:“Vejam só! Telêmaco planeja nossa morte. A arenosaPilos lhe fornecerá adeptos? Irá procurar auxílioem Esparta? O aspecto dele é sinistro. Os camposférteis de Efira não devem estar fora de seus planos.Lá poderá encontrar ervas mortíferas que, lançadasem nossas crateras, nos matarão a todos.” Outro,de arrogância igual, acrescentou: “Quem sabe!Embarcado em nau bojuda, não poderia morrer, longede amigos, como o outro desgraçado, Odisseu? Jápensaram nisso? Que trabalheira! Teríamos que dividirseus bens. Reservaríamos a casa para a mãee para o outro, aquele que ela quisesse como marido.”

Mal terminou de falar, Telêmaco desceu ao espaçosoaposento de seu pai onde se guardavam montõesde ouro e bronze, grande quantidade de cofres comvestes, óleo odorífico, barris de vinho velho, delicioso,bebida dos deuses, abundante, pura, barris dispostos

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em série ao longo da parede, reservados para o retornode Odisseu, findos incontáveis trabalhos. Pranchasprotegiam as riquezas, portas duplas de bons ferrolhos.Lá residia uma serva que supervisionava tudo, noitee dia. Administrava o tesouro com sabedoria e muitaexperiência, Euricléia, filha de Opo, filho de Pisenor.Telêmaco a chamou à câmara para lhe dar instruções:“Mãezinha, rogo-te que me enchas os jarros de vinho,o melhor, guardado em barris que só tu conheces,homenagem ao sofredor que um dia retornará, o divinoOdisseu, findas mortes e matanças. Enche doze odrese tampa-os com toda segurança. Necessito também defarinha de cevada acondicionada em sacos de boacostura, vinte medidas de farinha triturada pela mó. Nãopermitas que saibam dessas providências. Deixa tudopreparado. Venho buscar os suprimentos à noitequando minha mãe se recolher a seus aposentos paradescansar. Navego a Esparta e à arenosa Pilos para meinformar sobre o destino do meu querido pai. Vou emprocura de notícias.” Foram estas as ordens. Lamentou--se, aos brados, Euricléia, a ama querida. Chorando,palavras voaram-lhe da boca: “De que maneira, filho,pode esse propósito tomar-te o coração? Para onde novasto mundo pretendes ir, querido? Só tenho tu. Longeda pátria findou Odisseu, o gerado pela vontade de Zeus,em terra ignota. A perseguição destes – impostores! –,mal tenhas partido, não tardará. Querem destruir-te,apossar-se de tudo. Fica. Cuida do que é teu. Por quete aventurar ao mar bravio? Por que sofrer? Por queperecer?” Telêmaco lhe respondeu com muito respeito:“Não te aflijas, mãezinha. Não tomei esta decisão semorientação divina. Mas não reveles nada disso – juras? –à minha querida mãe. Espera uns onze ou doze dias,até que pergunte por que parti, para onde fui.Não quero que as lágrimas afeiem suas belas faces.”Assim falou Telêmaco. A anciã jurou solene e, semdemora, pôs-se a executar o que jurara: verteu vinhonas ânforas de barro, encheu de farinha os sacosde mais resistente tecido. Entrementes, Telêmaco se

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uniu aos pretendentes no palácio. Outra providênciapassou pelos olhos indagativos de Atena. Assumindoa aparência de Telêmaco, percorreu a cidade toda.A cada um que encontrava dizia uma palavra.Convidou todos para uma reunião à noite junto à nauligeira. A Noemon, filho galhardo de Frônio, elasolicitou navio. O pedido foi prontamente atendido.O sol se pôs. Trevas envolveram os caminhos. ADeusa confiou a nau ao embalo das ondas. Introduziuprovisões próprias a barcos a remo. Ancorou o naviona extremidade do porto. Lá se reuniram destroscompanheiros. A deusa incentivou um por um.Nova providência brilhou nos olhos de Atena.Dirigindo-se à casa do excelso Odisseu, envolveu ospretendentes no doce manto do sono. Esquecerama bebida. Mãos entorpecidas largavam os copos.Sonolentos, espalharam-se pela cidade. O peso dosono nas pálpebras deixou em breve vazios osassentos. Em seguida, a Atena dos olhos de corujachamou Telêmaco para fora da confortável mansão.Tomando a forma do corpo de Mentes, falou:“Os companheiros já se encontram equipados,a postos. Aguardam-te para iniciar a viagem.Vamos, não convém retardar a partida.” Proferidasestas palavras, Atena indicou-lhe o caminho. Eleacompanhava os passos da Deusa. Ao alcançarema praia e a nau, moviam-se junto às ondas as fartascabeleiras que pendiam da cabeça dos companheiros.Alertou-os a voz e o vigor de Telêmaco: “Sigam--me, amigos. Busquemos os suprimentos. Aguardam--nos prontos na câmara. Não revelei nada a minhamãe. Minhas escravas, com exceção de uma, nãosabem de nada.” Com estas palavras, Telêmacotomou a dianteira, os outros o seguiram. Depuserama carga no belo convés, obedientes às determinaçõesdo filho de Odisseu. Embarcou Telêmaco. Atenao precedia. Acomodou-se na popa. O filho deOdisseu assentou-se a seu lado. Os companheirossoltaram as amarras. A bordo, ocuparam os bancos

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dos remeiros. Atena enviou-lhes vento propício.Forte soprou Zéfiro. Uivava no mar de avinhadacara. Obedientes ao comando, os companheiros deTelêmaco correram ao equipamento. A ocasião opedia. Ergueram o mastro de abeto no centro da navee o firmaram nos cabos. Içaram as velas luzentescom fortes correias. Sopro rijo enfunou os panos.A quilha cortou as ondas que gemiam purpurinas.O barco traçava em úmidos caminhos a reta rota.Firmado o equipamento da negra nau, dispuseramos jarros repletos de vinho para as libações aoseternos deuses de sempre renovadas gerações.Antes de todos a Zeus, e à sua filha, conhecidapor seus olhos de coruja. O barco, atravessadaa noite, foi saudado pela Aurora no fim do caminho.

[1]. Também usadas no plural, as Erínias são divindades nascidas da Terra regadapelo sangue de Urano, quando este foi mutilado pelo seu filho, Crono. Ocupam-se devingar crimes, sobretudo aqueles que atentam contra famílias. (N.E.)[2]. Laertes. (N.E.)

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Canto 3

Esplendeu o Sol na imensidão lacustre. Avançoupelo céu de bronze, tocha para imortais e parahomens perecíveis no solo feraz. Chegaram àPilos de Neleu, centro de bela arquitetura, em meioa sacrifícios celebrados à beira do mar. Imolavamtouros negros ao Abala-Terra de escura cabeleira[1].Nove eram as filas de quinhentos assentos por fila.Cada uma oferecia nove touros. Consumiamas entranhas e queimavam os ossos ao deus.Os nossos aportaram, recolheram as velas,lançaram a âncora, desembarcaram. Precedido porAtena, Telêmaco deixou o navio. A deusa, fitando-ocom seus olhos de coruja, falou: “Telêmaco,não há razão para constrangimentos. Atravessasteo mar, vieste recolher notícias sobre teu pai: emque terra se esconde, que destino o aguarda? Apressa--te em abordar Nestor Doma-Potros para conheceros conselhos que cultiva no peito. Importa que tumesmo lhe rogues orientação segura. Ele não teenganará. A correção o distingue.” Prudentementerespondeu-lhe Telêmaco: “Mentor, não sei comofalar-lhe. Faltam-me palavras. Sou tímido, jovem.Isso me embaraça. Como abordar um senhoridoso?” Revolvendo seus olhos de coruja,respondeu-lhe Atena: “Telêmaco, uma coisa sãoos cuidados que te agitam a mente, outra, assugestões que te virão do alto. Não foste gerado,nem criado sem favor divino.” Palas Atena faloue tomou pronto a frente. Telêmaco moveu-se norastro da deusa. Chegaram à reunião e aos assentosdos cidadãos de Pilos. Lá estava Nestor com seusfilhos e rodeado de amigos ocupados com a refeição.Uns espetavam a carne, outros a assavam. Acenaram

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e convidaram os visitantes a tomar assento. Um dosfilho de Nestor, Pisístrato, aproximou-se. Estendeua mão a ambos e indicou-lhes lugares à mesa, pelesde carneiro estendidas sobre a areia marinha, pertode Trasimides, seu irmão e perto de seu pai. Serviu--lhes porções de entranhas, verteu vinho num cálicede ouro. Inclinando-se, saudou Atena, filha doPorta-Escudo: “Roga, amigo, agora a Posidon,monarca dos mares, pois em honra a ele celebramoso banquete de que participais. Feita a libação e aprece de praxe, passa o cálice de melífluo vinhoa teu companheiro. Suponho que também elepretenda libar e rogar aos imortais, pois todosos homens carecem de amparo divino. Por sermais jovem, aparenta idade próxima à minha,ofereci o áureo cálice a ti primeiro.” Com estaspalavras, depositou o cálice nas mãos da deusa. Adecisão correta do jovem alegrou Atena. Honradana cerimoniosa reunião a que foram admitidos,pôs-se a rogar reverente a Posidon: “Atende-nos,Posidon Abala-Terra. Aceita nossas súplicas.Permite que se cumpram nossas preces. Antes detudo, dispensa honra a Nestor e a seus filhos.Recompensa também os demais cidadãos de Pilos.Esta prodigiosa hecatombe é só tua. Concedea mim e a Telêmaco exitoso regresso, concluídaa missão que nos trouxe em negra nau ligeira.”Terminada a súplica, Atena cumpriu o prescrito,passando a Telêmano o cálice de dupla alça.O rito prosseguiu com o filho de Odisseu. Os outros,entrementes, tiraram dos espetos a carne tostada.Divididas as porções, celebraram o preclarobanquete. Satisfeitas urgências de comer e de beber,dirigiu-lhes a palavra o venerável cavaleiro Nestor:“Chegou o momento de conversarmos. Desejariaconhecer os estrangeiros cuja presença nos honra.Quem sois? Donde partistes por úmidos caminhos?Viestes a negócio ou vagais por águas salgadas

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como piratas que para ruína alheia arriscam a vida?”Respondeu-lhe o comedido Telêmaco, intrépido.Atena lhe infundira intrepidez. Cabia-lhe obternotícias sobre pai e informações sobre o renomeque de Odisseu brilhava entre as gentes: “CaroNestor, soberbo orgulho dos aqueus, perguntas-medonde venho. Viemos de Ítaca, ilha em que se ergueo monte Neio. Nosso interesse, como verás,é privado, e não público. Quero saber dos difundidosfeitos de meu divino pai, o esforçado Odisseu.Consta que lutou em tua companhia para arrasar acidade de Tróia. Dos outros heróis que participaramda campanha estamos bem instruídos.Conhecemos o triste fim de muitos. O Cronidanegou-nos, entretanto, notícias dele. Ninguém nossabe dizer com certeza como findou, se pereceuem terra acossado por adversários desvairados,ou se desapareceu no mar, coberto pelas ondas deAnfitrite[2]. Rogo-te abraçado a teus joelhos. Fala-mede sua lutuosa ruína. Testemunhaste-a com teuspróprios olhos? Sabes de outrem se ainda navegaerrante? Nasceu de mãe que o gerou para a dor?Não te peço que me afagues com palavras de mel.Fala-me franco o que tu mesmo viveste. Imploro.És, quem sabe, portador de algum desejo do nobreOdisseu, uma palavra ou um gesto que te tenhadeixado lá na terra troiana, onde tanto padecestes.Não me ocultes nada. Não quero ser enganado.” Nãotardou em responder-lhe Nestor, o Gerênio:“Caríssimo, reavivas dificuldades enfrentadas pornós, aqueus, imbatíveis em ações contra aquelafortaleza. Nossas dores começaram no mar sombrioquando, conduzidos por Aquiles, navegávamossedentos de saques. A luta não foi menos tenazno cerco ao baluarte de rei Príamo. Perdemoscompanheiros ilustres. Lá ficaram o bravo Ajax,lá ficou o próprio Aquiles, lá ficou Pátroclo, umdeus em conselhos, lá ficou um filho querido

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meu, forte, destemido, Arquíloco, corredor veloz,batalhador. Dissabores se amontoaram. Que vozperecível saberia narrá-los todos? Ainda queresolvesses permanecer por cinco ou seis anos,não conhecerias todas as privações dos aqueus.Exausto retornarias à terra em que nasceste.Por nove anos, trabalhos lhes demos com muitasinsídias. O Cronida a custo decretou o fim de tantaslidas. Em sagacidade nunca ninguém igualou teupai. Não havia ardil em que não levasse os lourosda vitória. Assim foi ele. Não estás certo de ser filhodele? A semelhança me espanta. Falas com rigor.Não penses que alguém de tua idade se exprimacom tanta propriedade. Enquanto estivemos juntos,o divino Odisseu e eu jamais divergimos, sejano conselho, seja na assembléia. Falávamos aosaqueus com os mesmos sentimentos, os mesmospropósitos, para o bem de todos. Quando, enfim,saqueamos a cidade de Príamo e retornamos às naus,um deus resolveu dispersar-nos. Estava nos planosde Zeus amargar-nos o retorno. Na verdade, nemtodos se tinham mostrado ajuizados e justos.Muitos levaram pesada pena, vinda da indignadadeusa dos olhos de coruja, a filha do Forte Pai.Quem atiçou a contenda entre os Átridas foi ela.Estes, sem razão e contra a ordem, resolveramconvocar uma assembléia ao declinar o sol. Osaqueus acudiram cambaleantes, tontos de vinho.Os chefes expuseram então o motivo do apelo.Enquanto Menelau lembrava todos da imperiosanecessidade de singrar já as ondas do mar,Agamênon expressou outro parecer. Pelo conselhodele, deviam esperar, preparar sacras hecatombespara aplacar, sem resquícios, a temível cólera deAtena. Tolo! Ignorou que satisfazê-la não é fácil.Não se alteram, sem mais, decisões dos eternos.Os dois trocavam, de pé, palavras ferinas.Provocaram proceloso tumulto entre os grevadoscombatentes. As inclinações se dividiram. Passamos

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a noite revolvendo planos, amargos para uns eoutros. Zeus urdia punir o mal. Manhãzinha,uns de nós arrastamos barcos às ondas divinas,embarcamos butins e acinturadas madamas,a outra metade dos nossos resolveu ficar comAgamênon, pastor de povos. Os que tínhamosembarcado não retardamos a partida. Os céus nosatapetaram a rota no mar. Ao chegarmos a Tênedo,esmeramo-nos em sacrifícios aos deuses, desejososde rever o lar. O regresso não freqüentava a mentede Zeus. Fomentou nova contenda funesta. Umaparte resolveu acionar o duplo renque de remospara retornar, liderados pelo inventivo Odisseu, oengenhoso. A preferência atraía a Agamênon.Mas eu e meus navios fugimos prevendo funestasmaquinações divinas. Fugiu o filho de Tideu,persuadindo os companheiros. A nau do louroMenelau veio mais tarde. Alcançou-nos emLesbos, deliberando sobre o longo caminho.Tomaríamos ao norte a rota da escarpada Quioem direção a Psíria, deixando-a à esquerda, ouescolheríamos ao sul de Quios as águas que banhamo tempestuoso Mimas. Rogamos sinal dos céus.Fomos atendidos. Deveríamos cortar as ondas rumoa Eubóia para escapar de calamidades. Zuniam osventos. Nossos barcos atravessaram velozeságuas piscosas. Noite feita, alcançamos Gueresto.Na oferta de quartos assados a Posidon, fomosgenerosos. Festejamos a travessia triunfal. Ao raiardo quarto dia, a gente do domador Diomedesentrou no porto de Argos com naus escorreitas.Servindo-me do vento, dom gracioso do alto,enveredei para Pilos. Desde que aqui cheguei,caro jovem, estou sem notícias. Nada sei deles.Sobreviveram? Pereceram? Ignoro. O que ouvidesde que retomei a direção do meu palácio,saberás. É teu direito. Não esconderei nada. Osmirmidões, célebres lanceiros, dirigidos pelofilho de Aquiles, retornaram bem. Diga-se o

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mesmo de Filoctetes, filho de Peante. Idomeneutrouxe a Creta os que sobreviveram na guerra. O mar não lhe roubou nenhum.Mesmo distantes,deveis ter ouvido sobre o Átrida, a morte inglóriaque, ao regressar, lhe preparou Egisto. Pesadafoi a pena que o crime lhe acarretou. O filho queum herói assassinado deixa representa um bem.A espada deste abateu o assassino, o fraudulentoEgisto, que ousou macular um homem ilustre.E tu, meu jovem, vejo-te belo, desenvolvidoe forte. Que teus feitos orgulhem teus filhos.”Com inteligência retrucou-lhe Telêmaco: “Nestor,filho de Neleu, incomparável glória dos aqueus,de fato, o que aquele perpetrou merece destaque,os aqueus saberão preservar seu feito em versos.Que os deuses me concedam vigor igual para quenão fique impune a ferina insolênciados pretendentes que maquinam minha ruína!Mas sorte igual os deuses não destinaram a meupai nem a mim. Tolerar, que mais me resta?”Interveio Nestor, o Gerênio, o domador de potros:“Bem lembrado, caro amigo. Avivas em mim oque já me contaram. Soube que pretendentesperversos te afrontam aos magotes em teu palácio.Conta-me: suportas a afronta passivo? Persegue-tea malquerença de pessoas do povo, por advertênciadivina? O regresso dele, só ou aliado a outros, parapunir a agressividade deles não está excluído. Quete acompanhe o favor da deusa dos olhos brilhantes,Atena, como esteve com o renomado Odisseu quandotantas amarguras nos molestaram no povo de Tróia.Nunca jamais vi alguém dos deuses manifestar afetotão declarado como o fez a teu pai Palas Atena. Se ela,de coração, te revelar afeto igual, podes estar certode que os pretendentes jamais desejarão recordarpretensões.” Ponderada soou a resposta de Telêmaco:“Venerável, não penso que um dia se cumprirá o quedizes. Aventas o impensável. Deixaste-me atônito. Eunão poderia esperar tanto nem se contasse com ajuda

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celeste.” Advertiu-lhe a Atena dos olhos brilhantes:“Telêmaco, notaste a palavra que te fugiu da cerca dosdentes? Não poderá ser difícil a um deus salvar umhomem distante. Sabes o que eu mais desejaria, tendopassado por toda sorte de privações? Chegar em casa,contemplar o dia do meu regresso. Sofrer ao retornaro que sofreu Agamênon, assassinado por Egisto etraído pela mulher? Nem pensar... Verdade é que amorte, comum a todos, nem os deuses poderiam afastá-lade prediletos. A Moira implacável não poupaninguém.” Prudente foi a resposta de Telêmaco:“Mentor, por que falar nisso por mais que nos aflija?Para esse, é certo, jamais haverá regresso. Pois osimortais lhe dispensaram negra morte e má sorte.Outro esclarecimento rogo agora a Nestor, em atosjustos e saber o mais eminente de todos. Ele é rei,ao que me consta, já por três gerações, vejo em seurosto a imagem de um imortal. Filho de Neleu, nãome negues a palavra da verdade. Como morreuAgamênon, senhor de reino imenso? E Menelau,onde estava? A que truques recorreu Egisto paraassassinar um homem que valia mil vezes mais?Andava, por ventura, longe de Argos, visitavapovos distantes, valeu-se disso o celerado?”Respondeu-lhe Nestor, senhor de soberboscorcéis: “Saberás a verdade inteira. Fácil te serávisualizar como tudo ocorreu. Se Menelau, aovoltar de Tróia, tivesse apanhado o facínora paratrancafiá-lo na espelunca, o desgraçado teria batidoas botas. Ninguém teria ousado cobrir de póo cadáver, cachorros e aves o teriam dilacerado,exposto, longe das muralhas em região deserta,lágrima de mulher alguma lhe teria molhado a cara,monstro de má mente. Enquanto nós sangrávamosem duras refregas, o folgazão assediava com docespalavras, no coração da hípica Argos, a esposa deAgamênon. Esta, no princípio, se opôs à vergonhosaproposta, a divina Clitemnestra, renomada pornobres sentimentos. Fazia-lhe companhia um vate,

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encarregado de protegê-la, enquanto Agamênon, oesposo, estivesse em Tróia. Domada, porém, pelaSorte celeste, o comparsa o arrastou a uma ilha desertae o largou como pasto aos abutres. Assim o desejosocarregou a desejosa para sua própria casa. Inúmerascoxas assou, então, em sacrossantos altaresdivinos. Inúmeras oferendas celebrou, panos e ouroofereceu, concluída a enorme façanha, inesperada.Nós retornamos, porém, juntos de Tróia, Menelaue eu, unidos por laços fraternos. Mas quandosingramos as águas do Súnio, no promontórioateniense, Febo Apolo tirou a vida do piloto deMenelau, atingindo-o com doces dardos, quandoainda governava pujante o leme da nave, Frôntis,filho de Onetor, que batia todos no governo danau, até no embate da fúria dos ventos. Aí Menelaufoi detido, mesmo premido pela ânsia da volta,para dar sepultura ao companheiro e honrá-lo comfúnebres ritos. Mas este, ao vir pelo pélago,céleres as naus o levaram ao íngreme monteMeléia. Apresta-lhe, então, o Tonante tormentososcaminhos. Estrugem estrídulos ventos. O maramontoa líquidos montes, curvados como dorsosde monstros. Naves dispersas batem em Creta, nosítio dos cídones, às margens do Járdano. Lá seprecipita lisa rocha nas ondas salgadas, nos confinsde Gortina, banhada de mar tenebroso. Lá silvasinistro o Sul impetuoso contra o Festo, pedrapequena, pega-vagalhões. Para lá levaram os ventosas naus, a custo salvaram-se os homens, conquantoas ondas estilhaçaram os barcos nas pedras. Ascinco restantes, contudo, de proa enegrecida,por rajadas e ondas foram lançadas ao Egito. Lá,recolhendo muitos recursos e ouro, as naus olevaram a gente de línguas ignotas. Entrementes,em casa, Egisto, safado, faz das suas. MatouAgamênon e ocupou o trono da riquíssima Micenaspor sete anos. O povo lhe obedeceu na marra. Nooitavo ano, para desgraça do descarado, apareceu

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Orestes, veio de Atenas para aniquilar o assassinode seu pai, Egisto, o pilantra, que sujara as mãoscom o sangue de um herói sem igual. Perpetradaa vingança, Orestes ofereceu aos argivos umbanquete para celebrar a morte da mãe odiada,e de Egisto, um covarde. No mesmo dia voltouMenelau com os porões dos navios abarrotadosde riquezas. E tu, amigo, não te demores longede casa, não deixes teus bens e teu palácio com esses insolentes. Nãoocorra que devorem tudo,que dividam tua propriedade, que a viagem termineem desastre. Recomendo que faças uma visita aMenelau, que voltou, não faz muito, de uma viagema terras muito distantes. Ninguém esperava quepudesse regressar de lá. Ventos o tinham arrastadoao mar profundo. Aves não venceriam o trajetonem em vôo de um ano inteiro. Viagem muitoarriscada. Aparelha teu barco e tua gente. Sepreferes ir por terra, terás carro e cavalos. Meusfilhos te acompanharão à Lacedemônia, reino dolouro Menelau. Roga-lhe que diga o que sabe.Não te enganará. Tratarás com um homem correto.”

Assim falou Nestor. O sol se pôs, veio a noite.Falou-lhe Atena, a deusa do corujado olhar:“Venerando, é de preceito tudo o que falaste.Corte-se o curso da fala, prepare-se o vinhopara a oferenda a Posidon e aos outros imortais.Tratemos de dormir. A hora demanda repouso.A luz já se esconde nas trevas. Não convémprolongar o sacro banquete. Andemos!” Assimfalou a filha de Zeus a homens atentos. Os arautosverteram-lhes água nas mãos. Crateras, portadaspor jovens, avançam repletas de vinho. Plenasas taças de todos, principia o sacrifício. Lançamlínguas ao fogo e as regam eretos. Concluída acerimônia e saciado o anelo de vinho, tanto Atenaquanto Telêmaco Divino-Semblante ergueram-seambos para retornar à nave bojuda. Nestor dirigiu-

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-lhes palavra solícita para detê-los: “Zeus me guardee os outros imortais também de consentir quedeixeis minha casa para dormir no navio como seeu fosse um pobretão, carente de cobertores etapetes. Reservo-os para meu próprio confortoe para o descanso de meus hóspedes. Asseguroque leitos confortáveis nunca faltam em meupalácio. Enquanto eu viver, o filho de um heróicomo Odisseu não passará a noite no convés.Meus filhos são herdeiros da hospitalidadea todos que procuram este solar.” Respondeu--lhe a deusa do brilhante olhar, Atena: “Proferespalavras gentis, caro Senhor. Telêmaco atenderáteu apelo, visto que é correto proceder assim.Ele te seguirá. Passará a noite em tua mansão.Quanto a mim, convém que eu retorne à negra naupara distribuir as tarefas entre os companheiros.Tenho a honra de ser o mais experimentado detodos. Temos tripulação jovem. Acompanham-nopor amizade. Todos têm idade próxima à dogeneroso Telêmaco. Passarei a noite no navio. Aoromper do dia partirei para a terra dos cáucones,gente complicada. Vou cobrar dívida que não énova nem pequena. Poderás enviar teu hóspede aEsparta de carro, acompanhado de um dos teusfilhos, velozes na marcha, robustos e destros no tiro.”Com estas palavras despediu-se Atena, sumiu emvôo de águia. Espanto tomou todos os presentes.De olhos arregalados, estático se deteve o ancião.Tomando a mão de Telêmaco, falou-lhe solene:“Tenho certeza de que nada te intimidará, nemmostrarás fraqueza, já que, ainda que jovem, deuseste seguem no séqüito. Dos habitantes do Olimpo,a própria filha de Zeus, a esplendente Tritogênia teacompanhou, também ela distinguiu teu ilustrepai. Rogo, Senhora, concede-me renome fulgentetambém a mim, a meus filhos e a minha respeitadaesposa. Receberás o sacrifício de uma novilha deum ano, de larga testa, indômita, nunca submetida

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a jugo. Terá os cornos revestidos de ouro. Assim aoferecerei.” Invocou com estas palavras a deusa.Atena ouviu-lhe a prece. O Venerando os conduziua seu belo solar. Acompanharam Nestor, filhose genros. Quando chegaram ao soberbo paláciosenhorial, tomaram por ordem cadeiras e poltronas.O ancião ofereceu aos hóspedes vinho de rico sabor,preparado em jarras. Onze anos tinha a bebida.Uma serviçal abriu as tampas dos vasos. Prontaa bebida, o ancião homenageou com libaçõesAtena, dirigiu preces à filha do Zeus guerreiro.Feitas as libações e satisfeito o desejo de beber,cada qual procurou o abrigo de sua própria casa.Nestor indicou pessoalmente o leito a Telêmaco,filho do estimado Odisseu, leito lavrado e armadoali mesmo na ressoante sala, junto ao lanceiroPisístrato, comandante de tropas, o único dos filhosque, solteiro, ainda residia no palácio. O venerávelNestor recolheu-se ao interior do imponentepalácio onde a rainha lhe adorna o leito e o sono.

Logo que matutina se ergueu a de róseos dedosAurora, interrompeu o descanso Nestor, o venerandocavaleiro. Ao deixar o palácio, tomou assento empedras lavradas; eram brancas, brilhavam polidasjunto aos majestosos portões. Em outros tempos,as ocupara Neleu, de saber comparável aos deuses.Imobilizado, porém, pelo peso da morte, já desceraao Hades. Acomodava-se nelas agora o respeitadoNestor, baluarte dos aqueus, de cetro em punho.Deixando os aposentos, cercavam-no solícitos osfilhos: Equéfron, Estrácio, Perseu, Areto eTrasímedes. Veio ainda Pisístrato valente. Estesaproximavam-se, conduzindo Telêmaco, o divino.Dirigiu-lhes a palavra o nobre cavaleiro Nestor:“Conto com vocês para satisfazer um desejo meu.Quero que Atena, inquestionavelmente presenteno banquete que ofereci a Posidon, me seja propícia.Um de vocês deverá ir ao campo para trazer uma

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novilha, um dos vaqueiros a conduzirá. Outrodeverá dirigir-se à nau de Telêmaco, jovem denobres sentimentos. Traga todos os companheiros.Deixe apenas dois. Outro convoque Laerces. Oourives estará aqui para dourar os chifres danovilha. Os demais permanecerão para dirigiras criadas no preparo de um extraordináriobanquete. Que não faltem assentos, nem lenhanem água cristalina.” Foi o que disse. Todos oatenderam solícitos. Veio a novilha do campo,vieram da leve nau veloz os companheiros deTelêmaco, veio o artesão aparelhado dosapetrechos de seu ofício: bigorna, martelo ecorreta tenaz para lavrar o ouro. E veio Atena,presente à cerimônia. Nestor, o venerável,estendeu-lhe o ouro. O artífice revestiu os chifresda novilha, obra que maravilhou deusa. Estrácioe Equéfron conduziram a novilha pelas aspas.Água lustral trouxe Areto em florida bacia. Traziada câmara uma cesta de farinha de cevada.Trasímedes, o duro guerreiro, tomou posiçãocom uma machadinha para abater a novilha.Perseu sustentava um recipiente para o sangue.Nestor precede com água e farinha. Com precesardentes invoca Atena, lançando ao fogo pêlosda testa. Finda a prece e administrada a farinha,aproximou-se o filho de Nestor, Trasímedes.A machadinha talhou os tendões do pescoço,tirando-lhe o vigor. Prorromperam em prantoas filhas, as noras e esposa de Nestor, Eurídice,a primeira das filhas de Climeno. Os filhosergueram, então, do solo a vítima. Degolou-aPisístrato, comandante de tropas. Negro brotouo sangue, a vida deixou os ossos. Dividirama rês, extraíram os ossos, envolveram aspartes em dupla camada de graxa revestidaspor outras porções de carne crua. Assou-oso ancião sobre o tronco com aspersão devinho. Auxiliavam-no jovens com garfos de cinco

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pontas. Assadas as coxas e consumidas asentranhas, retalharam e espetaram o restante.Espetos giravam nas mãos dos assadores.Telêmaco foi banhado pela formosa Policaste,de Nestor filha em flor. Saído da água, a pelerevestida de óleo fulgurava. Veste-o comtúnica e manto. Deixa o banho imponente, comjeito de imortal. Aproximando-se de Nestor,tomou assento junto ao guia de povos. Tostadaa carne, tiraram-na dos espetos e tomaram lugarà mesa do banquete. Rapazes guapos serviamprestativos vinho em cálices de ouro. Satisfeitos dovinho e do manjar, dirigiu-lhes a palavra Nestor,o venerando cavaleiro: “Queridos filhos, vamos,tragam os cavalos de crinas luzentes para atrelá-losao carro a fim de que Telêmaco possa concluir aviagem.” Essa foi a ordem. Atentos, a execuçãonão demorou. Prepararam habilidosos o carro e oscavalos velozes. Uma serviçal providenciou pão evinho, iguarias de reis nutridos por Zeus.Acomodou-se Telêmaco no esplendoroso carro.Seguiu-o Pisístrato guerreiro, filho de Nereu.Tomando assento junto dele, empunhou as rédeas.Os corcéis, incitados, largaram; fogosos seguirampela estrada. Distanciaram-se de Pilos, a formidávelfortaleza. Balouçavam o jugo na marcha de diainteiro. Pôs-se o sol, trevas cobriram todos oscaminhos. Alcançaram Feres e a casa de Díocles,filho de Ortíloco, gerado por Alfeu. Passaram alia noite, tendo sido hospitaleiramente acolhidos.Quando raiou matutina a rododáctila Aurora,atrelados os cavalos, tomam o vistoso carro,deixam o pórtico e a sala sonora. Soou o flagelo,avançam refeitos os potros. Percorridosos trigais, chegaram ao fim do trajeto, graçasà decidida rapidez dos animais. Declinou o sol,todos os caminhos vestiram-se de negro.

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[1]. Abala-Terra: Posidon, filho de Crono e Réia, irmão de Zeus. Senhor dos mares edas águas, com seu tridente provoca terremotos que abrem novos leitos de rios.Também será referido, assim como Zeus, por “Cronida”, filho de Crono. (N.E.)[2]. Esposa de Posidon e, portanto, senhora dos mares.(N.E.)

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Canto 4

Os visitantes, alcançando Lacedemônia no valeprofundo, dirigiram-se ao solar de Menelau.Encontraram o rei à mesa do banquete. O paláciocelebrava as núpcias dos príncipes, o filho e a filhado rei. Menelau prometera a garota ao filho deAquiles Rompe-Esquadrões. A união – os deuses aconsagravam só agora – já fora tratada e seladaem Tróia. Com escolta de carros, a noiva partiriapara a capital dos mirmidões, onde seria recebidapelo noivo, o rei. De Esparta Menelau trouxeraa filha de Aléctor para ser esposa de Megapentes,filho que lhe nascera de uma escrava, quando ele jálutava longe. Os deuses não concederam a Helenaoutros filhos depois da encantadora Hermione, que nacompleição lembrava a áurea Afrodite. Elevado erao teto da sala em que se banqueteavam parentes eamigos. Ao som da lira, a voz de um cantor alegravaos convivas. Em harmoniosas evoluções giravam,para o encanto dos convivas, dois bailarinos.

O carro estacionou diante da mansão. Telêmaco,o herói, e o nobre filho de Nestor desembarcaram.Adiantando-se, percebeu-os Eteoneu. O operososervidor de Menelau atravessou diligente o paláciopara alertar o comandante de tropas. Aproximou-se.Saltaram-lhe a cerca dos dentes estas palavras:Recebemos a visita de estrangeiros, divino Rei;dois homens, parecem da linhagem do grande Zeus.Devemos desatrelar-lhes os cavalos, ou preferesque os encomendemos à hospitalidade de outro?”Ao balouço dos cabelos de ouro, contestou exaltadoMenelau: “Filho de Boeto, caro Eteoneu, não me

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parecias tolo, mas agora tua conversa me soainfantil. Recorri, ao regressar, à hospitalidade demuitos, homens que nem me conheciam. Zeus nosguarde de contratempos futuros. Desatrela já oscavalos. Que os estrangeiros venham à minha mesa!”A ordem foi esta. Atravessando a sala, o diligenteservidor convocou outros para prontos oacompanharem. Os corcéis, aliviados do jugo,foram conduzidos ao estábulo. Atados aos cochos,provaram trigo misturado com cevada. Apoiadoo carro na parede reluzente, os hóspedes foramintroduzidos no glorioso palácio. De olhosextasiados, admiravam a casa do favorito de Zeus.Esplendor como o do sol ou da lua revestiaa soberba residência de Menelau. Abriam os olhosao brilho insaciáveis, enquanto banharam os pésem bacias fulgurantes. Dedos servis umedeceram--lhes a pele e perfumaram-lhes os braços. Protegidoscom o algodão de túnicas e mantos, assentaram-sejunto a Menelau, filho de Atreu. Dedos solícitosportavam vasilhas de ouro, adoráveis, aparelhadasde esplendorosas conchas de prata para as abluções.Mãos prestimosas aproximaram a mesa. Gestoshábeis distribuíam o pão na alva superfície, graciososmovimentos dispunham toda sorte de iguarias.Adiantou-se o trinchador com apetitosas porções,divididas em pranchas acompanhadas de áureoscálices. Saudou os visitantes Menelau: “Seja dovosso agrado o que vos foi oferecido. Servidos,posso saber quem sois? Povo? Concluídosvossos dias na terra, não desaparecerá vossagente. Zeus alimenta a raça de que procedeis.Rostos reais eu vejo, cetros. Raça vil não produzexemplares assim.” Falou e lhes ofereceu, com aspróprias mãos, o que aparecera de melhor, carnesuculenta, do lombo. Não ficaram insensíveisà honrosa oferta. Bem alimentados, aproximou--se Telêmaco do filho de Nestor. Falou-lhe ao pédo ouvido um segredo que excluía os demais:

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“Tesouro do meu peito, estou deslumbrado. Queespetáculo! Pela sala vibram fulgurações de bronzee de ouro e de âmbar e de prata e de marfim!Imaginas assim o palácio olímpico de Zeus?É demais! A variedade inunda-me os olhos.”Tanto espanto não escapou ao loiro Menelau.Dirigindo-se aos dois, largou estas palavras ao ar:“Meus caros jovens, mortal algum poderácompetir com Zeus. Imperecíveis perduram a casae as posses dele. Mortais, é verdade, competemcomigo em riqueza, nem todos. Privações emlonges terras foi o preço do que recolhi em naviospor oito duros anos. Naveguei por Chipre, Fenícia,Egito. Alcancei etíopes, sidônios, erembos.Cheguei à Líbia, onde até cordeiros são chifrudos,as ovelhas embarrigam três vezes ao ano, nãofalta nada a ninguém, nem a proprietário nem apastor, há fartura de carne, de leite, de queijo semigual. Lá as ovelhas arrastam ubres entumecidoso ano todo. Eu me abastecia. Aí certo indivíduomatou sorrateiramente meu irmão. Golpe traiçoeiro.Minha cunhada participou, a própria. Desgraçada!Como poderia eu imperar sobre esta opulênciaminha? Vossos pais não mencionaram o que vosconto? Nem sei quem são. Padeci horrores. Minhacasa já foi arrasada, e eu vivia no conforto. Eu medaria por satisfeito com um terço do que tenho,se vivos estivessem meus companheiros sacrificadosnos campos de Tróia, longe da Argos de potrosvelozes. Prostrado, vezes sem conta, e isolado nestepalácio, rios de lágrimas derramo por todos, até merender exausto ao cansaço, sem consolo, farto deamargura e de choro. Ainda que todos me aflijam,ninguém me causa tanta dor como este um – alembrança dele me tira até o gosto de comere de beber. Ninguém dos aqueus padeceu nem seamargurou tanto como Odisseu. Os trabalhos sãodele, os cuidados são meus. Sua ausência, aindaque longa, não afeta a lembrança, esteja ele

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vivo ou morto. Pranteiam-no, por certo, o velhoLaertes, a sábia Penélope e Telêmaco, aindamenino quando partiu.” O pai evocado agitoudesejos profundos, lágrimas rolaram pela face deTelêmaco ao ouvir o nome do ausente. Ambas asmãos esconderam o rosto enlutado atrás do mantode púrpura. O gesto perturbou Menelau. O reiincerto revolvia na mente e no peito o que via.Deixaria ao jovem o cuidado de recordar o paiou conviria fazer-lhe perguntas, inquirir detalhes?

Enquanto essas inquietações lhe povoavam a mente,desceu Helena do tálamo alto e arejado. Esplendianela o porte de Ártemis, a deusa das flechas. Adrastaofereceu-lhe uma poltrona soberanamente lavrada.Alcipe estendeu-lhe tapetes de velo suave. Filoalcançou-lhe o cestinho de prata, presente de Alcandra,esposa de Pólibo, quando a rainha passou pela Tebasegípcia, cidade em que conheceu casas renomadas.De Pólibo Menelau recebeu banheiras de prata,duas trípodes, mais dez talentos de ouro. A rainhapresenteou Helena ainda com outras maravilhas: umaroca de ouro e um cestinho rodado, todo de prata,áureas eram, no entanto, as bordas. Foi precisamenteeste que a dedicada Filo ofereceu a Helena,provido de fios elaborados, sobranceira fulgiaa roca, aparelhada de violáceo velo. Acomodadana poltrona, Helena descansou os pés na banqueta.Voltada ao marido, quis saber o que se passava:“Já sabemos, querido Menelau, quem são oshomens que nos visitam, a glória que os distingue?Estarei enganada, digo tolices? É impressionante!Nunca vi ninguém mais parecido, nem homem nemmulher – desculpa o espanto –, com Odisseu. Eu diriaaté que tenho diante de mim Telêmaco, o filho doesforçado herói, o menino que ele deixou em casa,quando partistes contra Tróia para sustentar lutaferoz por causa destes meus olhos de cadela.”Respondeu-lhe o loiro Menelau: “Tenho a mesma

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impressão, meu bem, a semelhança é flagrante. Reparao jeito dos pés, o movimento das mãos, a expressãodos olhos, a cabeça, os cabelos. Odisseu não mesaía da lembrança. Meus lábios se moviam pararecordar o que o herói laborioso fizera por mim.O jovem, tomando o manto com as duas mãos, tentouesconder na púrpura as lágrimas que lhe brotavamdos olhos.” Falou Pisístrato, o Nestórida: “Menelau,filho de Atreu, predileto de Zeus, general de exércitos,tens razão, este é o filho legítimo de Odisseu. Perdoa--lhe o recato. Constrangido, evitou desdobrar, malchegado, considerações sobre si mesmo, em tuaaugusta presença. Tua voz, de sonoridade divina, nosdeliciava. Ordenou-me Nestor, renomado condutor,trazer Telêmaco até aqui. Meu amigo queria ver-tena esperança de uma palavra, de um gesto teu. Comofilho de pai ausente, enfrenta muitas dificuldades emsua casa. Não pode contar com ninguém. A situaçãode Telêmaco é aflitiva. Filho de pai desaparecido,entre o povo não há ninguém disposto a socorrê-lo.”Disse-lhe o loiro Menelau: “Vejam só, tenho na minhacasa o filho do homem a quem devo muitos e muitosfavores. Lhe garanti que, se um dia me procurasse,teria provas de amizade profunda, superior ade outros. Se na larga visão de Zeus nos fosse dadoo privilégio de, vencidas as ondas, volver aos nossoslares, eu o abrigaria em Argos, eu lhe ofereceria umacidade, eu lhe construiria um palácio, eu o traria deÍtaca com bens, filho e povo. Para tê-lo perto de mim,eu evacuaria uma pólis minha. Teríamos então o prazerda convivência freqüente. Nada nos separaria, nadanos impediria de cultivar estima antiga, antes desermos envolvidos pela negra nuvem da morte. Creioque a perspectiva de tal ventura tenha provocadoinveja à deidade que lhe nega agora o regresso.”As ponderações de Menelau alastraram a vontade dechorar. Chorou a bela Helena, filha argiva de Zeus,chorou Telêmaco, chorou Menelau. Sem lágrimas nãoficaram nem os olhos do filho de Nestor. Pesava-lhe

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no peito a memória de Antíloco, o iluminado filhoda brilhante Aurora. Revolvendo essas lembranças,voaram-lhe da boca estas palavras: “Filho de Atreu,lembro que o venerável Nestor costumava dizer– freqüentavas nossa lembrança –, em inesquecíveisconversas, que o mais sensato de todos eras tu. Agora,se mereço atenção, escuta-me. Não consigo pensarem iguarias na tristeza. A Aurora nos trará amanhãum novo dia. Longe de mim reprovar que se choreum mortal que desapareceu por decreto do destino.Além de cortar o cabelo e banhar as faces em lágrimas,que podemos fazer por sombras deploráveis? Tambémeu perdi um irmão na guerra, e posso assegurar que nãofoi o pior dos argivos. Quem pode confirmá-lo és tu.Não conheci Antíloco. Consta que superava outrostanto em velocidade quanto no manejo das armas.” Nãotardou a resposta do louro Menelau: “Tuas palavraslembram as de um homem experimentado. Declaro-tebem mais ajuizado do que os moços de tua idade. Nãofazes injustiça a um homem avisado como teu pai. Nãoraro a imagem do progenitor brilha no rebento, quandoeste é favorecido pelo Cronida já ao nascer e, depois,ao casar. Um desses é Nestor: dias venturosos sempre,velhice tranqüila em seu palácio, além de filhos sábiose destros nos exercícios militares. Já é hora de pôr fima recordações dolorosas, que por tanto tempo nosprenderam. Pensemos nas delícias da mesa. Retornemosàs abluções. Para entendimentos meus com Telêmaco,temos amanhã o dia todo desde a primeira luz da Aurora.”Mal o rei se calou, Asfálio, renomado em serviços,verteu-lhe água sobre as mãos. Os demais avançaramas palmas. Iguarias, em abundância, os aguardavam.Ocorreu à filha de Zeus, Helena, outra providência:deitou uma droga no vinho. Dor e azedume sumiram.De trabalhos, fossem quais fossem, nem sombra.A droga, lançada na cratera, tinha o poder de protegercontra amarguras por um dia inteiro. Era eficaz empessoas entristecidas pela perda do pai ou da mãe.Que digo? Confortava até enlutados pela perda de

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um irmão ou de um filho ferido a ferro. Tamanhoera o poder dos narcóticos da filha de Zeus. Ela ostrouxera do Egito, presente de Polidamna, esposade Ton. O solo egípcio, riquíssimo em ervas, produzplantas benéficas e nocivas. Todo egípcio é médico. Osegípcios são mais instruídos que outros. Espanta?Não ignoremos que descendem de Peon. Preparadoo vinho, Helena mandou servi-lo. Retomando apalavra, ressoaram na sala as palavras da rainha:“Menelau, tu que prosperas na força de Zeus, e vósdescendentes de ilustres, é certo que os bens e osmales, regidos por Zeus, atingem ora este, ora aquele.Não pode tudo? Relatos gloriosos avivem o convíviode nossos convidados. Espero encontrar a palavrajusta. Eu não seria capaz de narrar com precisão todosos feitos do intrépido Odisseu. Limito-me a façanhasdesse guerreiro exemplar em Tróia, feitos que oimortalizaram no lugar de muitos padecimentos.Ele se flagelou, deixando no corpo vergonhosasestrias. Cobriu-se, então, com trapos, parecia umescravo. Penetrou nos largos caminhos da cidadecom disfarce de mendigo. Parecia outro. Quemsuspeitaria que fosse um guerreiro argivo? Oembusteiro esgueirava-se, ludibriando todos,menos a mim. Não conheci igual. Aproximei-me,minhas perguntas batiam em resistência evasiva.Banhei-o, meus óleos rejuvenesceram-lhe a pele.Revestido de vestes vistosas, me comprometi sobjuramento a não denunciar sua presença antes deele ganhar as naus, a proteção das barracas. Sóentão expôs-me os planos. Portador de valiosasinformações, abriu caminho a ferro, imobilizouguerreiros guapos, retornou às naus. Muitas troianasprorromperam em pranto. Meu coração saltava dealegria. No meu íntimo eu sonhava com o regresso.Queria ver minha casa. Lamentava a loucura emque Afrodite me abismara: arrancou-me da minhaterra, da minha filhinha, do meu leito, do meuesposo, inferior a ninguém em inteligência e beleza.”

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Respondeu-lhe o Menelau dos cabelos dourados:“Está bem, mulher. Falaste com muita propriedade.Conheci o modo de pensar de muitos homensde valor, muitas terras percorri, mas jamais meapareceu ninguém diante dos olhos igual a Odisseu,constante no afeto e resistente à dor. Incomparável,concluiu no interior do cavalo de pau o trabalho porele ideado. Nós nos comprimíamos, os melhores,para levar matança e ruína aos troianos. Chegasteperto da máquina de guerra, a mando, quero crer,de um deus empenhado em glorificar os troianos.Tu mais Deífobo. Três vezes rodeaste o ventreoco, e o apalpavas. Chamavas cada um dos heróispelo nome, chegaste ao requinte de imitar a vozde cada uma das esposas deles. Impressionou-noso disfarce de tua voz: a mim, ao Tídida e ao divinoOdisseu, ali acocorados. Erguendo-nos, acometeu--nos o ímpeto de abandonar o esconderijo, o Títida eeu, ou de responder dali mesmo. Quem evitouo desastre? Odisseu. Quem nos conteve foi ele.Conseguiu manter calados os outros. Antíloco foio único rebelde. Mal esboçou movimento de lábios,Odisseu tapou-lhe a boca com as mãos. Graças aoFilho de Laertes, salvaram-se todos os aqueus.Dominou o indócil até que Palas Atena se dignou alevar-te para longe.” Ouviu-se, então, a palavra doarguto Telêmaco: “Protegido por Zeus, Átrida,condutor de povos, lastimo que o talento não otenha livrado do fim feroz. O que lhe valeu o coraçãode ferro? Permite que me conduzam, rogo-te, aomeu leito. Um doce repouso me restaurará as forças.”Serviçais receberam ordens de Helena para lheprepararem o leito em uma das galerias: colchões,providos de almofadas purpurinas, aconchegantesacolchoados. Lençóis lanosos completavam asprovidências. Tochas em mãos amigas iluminaramo caminho. Um arauto orientava-lhe os passos.Prontos partiram ao pórtico, sedentos de sono, ambosos jovens: o talentoso Telêmaco e o filho de Nestor.

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O Átrida retirou-se aos seus aposentos ao ladode Helena de peplos pomposos, entre damas, divina.Subia a Aurora dos dedos rosados, ressoou a vozimperante do rei. Menelau erguia-se do leito. Sobrea veste vistosa pendia-lhe a espada nos ombros,sandálias protegiam-lhe a pele sensível dos pés.Os passos do rei procuraram os hóspedes.Acomodando-se ao lado de Telêmaco falou-lhe:“Caro Telêmaco, o que te trouxe para esta terra?Não foi por nada que os largos e líquidos ombrosdo mar te carregaram. O que te aflige? Dificuldadesdo teu povo, próprias? Fala sem receio.” Telêmacorespondeu ponderado: “Menelau, Zeus te protege,pertences à casa de Atreu, mandas em muitos. Podesinformar-me sobre meu pai? Devoram meus bens,infestam minha casa, abatem minhas ovelhas,abundantes outrora. Dia por dia, mingua o númerode cascos. Dizem-se pretendentes à mão de minhamãe. Já não sei o que fazer. Abraçado a teus joelhos,imploro. Quero que me fales sobre o fim dele.Viste-o sumir com teus próprios olhos? Alguém tetrouxe notícias de seu paradeiro? Devemos crer quea mãe o tenha gerado para dias de tormento? Nãoquero afagos. Não procuro piedade. Conta-me oque sabes, o que viste. Este é meu pedido: se essehomem incomparável te favoreceu, um dia, em atosou em palavras, no ardor da peleja, no aperto, emnome de gratas lembranças, rogo-te, dá-me asinformações que procuro.” Excitado, interveio o rei:“Pelos céus! Esses fracotes querem deitar-seno leito de um herói? Imaginemos: uma corça deixaseus filhotes, recém-nascidos, não desmamados,adormecidos na caverna de um leão indomável.Ela percorre cerros e vales ervados em buscade alimento, o leão retorna para ocupar o abrigo.Não porá fim ao bando: mãe e crias? Prepare-sea corja! Odisseu os premiará com a morte. InvocoZeus Pai, invoco Atena, invoco Apolo. Que venhaOdisseu, com a força que abateu Filomelida em Lesbos.

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Agarrou o adversário com raiva. A terra tremeuao impacto do corpo. Os aqueus uivaram de alegria.Que Odisseu irrompa assim contra os insolentes!Para pretendente desaforado matrimônio azarado!Voltemos ao teu pedido. Não te direi nada que eumesmo não tenha vivido. Não partirás ludibriado.Saberás das palavras do Velho do Mar, ser honesto.Contarei por miúdo, ponto por ponto, sem rodeios.Voltar para casa, eu só pensava nisso, mas fui detidono Egito. A culpa foi minha. Eu me esquecera deoferecer uma hecatombe. Os deuses não perdoam,querem ser lembrados sempre. Encontrei uma ilha nomar dos bramidos bravios, próxima do Egito. Farosé o nome que lhe deram. Uma nau bem aparelhadaconsegue vencer a distância que a separa da costa numsó dia, desde que os ventos sejam favoráveis. Bomporto e bom ancoradouro. Navios buscam aliágua colhida em fonte sombria, antes de se fazeremao mar. Lá os deuses me prenderam por vinte dias.Rajada nenhuma movia as velas. Sem a força dosventos, como deslizariam os cascos? A calmariaconsumia meus suprimentos e o empenho dos meushomens. Contei, por fim, com a misericórdia deuma deusa, Idotéia, filha de Proteu, o Velho do Mar.Meus tormentos a comoveram. Ela se aproximoude mim, longe dos meus companheiros. Andavampela ilha pescando. Curvavam estiletes de ferropara fazer anzóis. Quem resiste a exigências doestômago? Fala-me a ninfa com voz amiga:‘Não me pareces tolo, nem lerdo. Contratemposte arrastam? Gostas de sofrer? Há quanto tempojá estás nesta ilha? Não encontras jeito de sair?Tua gente caiu no desânimo?’ Em resposta aessa voz solícita, falei: ‘Quem sejas eu não sei.Uma deusa? Não importa, saberás o que se passacomigo. Não me creias aqui por minha vontade.Ofendi algum dos imortais? O domínio do céué deles. Responde-me, os deuses não sabem tudo?Quem me ferrou? Quem dos divinos retarda meu

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retorno? Como atravessar estas águas povoadas depeixes?’ Minhas aflições não ficaram sem resposta:‘Terás de mim, estrangeiro, palavra honesta. Vema este lugar o Velho do Mar. Ele não mente. Falode Proteu, o egípcio. De águas, sabe tudo, qualquerrecanto. Consideram-no companheiro de Posidon.Admira? Consta que sou filha dele. Se com truquesconseguires prendê-lo, ele te indicará o caminhoe a distância que ainda tens a percorrer para vencereste território de peixes, o mar salgado. Digo-te mais,caso queiras saber o que aconteceu em tua casa, debom ou mau, durante tua longa e penosa ausência,a um pedido teu, ele o relatará.’ Tendo ouvidoessas generosas palavras, insisti: ‘Gostaria de sabercom que armadilha prender este Velho prodigioso.Temo que, ao me ver, sabendo quem sou, trate deevadir-se. Dominar um imortal não é sopa.’ Aresposta da distinta não tardou: ‘Terás, meu caro,informação segura. Sempre que o sol alcança ametade de sua rota celeste, o Velho deixa seusdomínios marítimos, e se dirige, ao sopro do zéfirobrumoso, a uma caverna profunda, lugar de repouso.Focas, nascidas da Rainha do Mar, cercam-no,é seu rebanho. Procuram com ele o confortodo sono. Emergindo das profundezas tenebrosas, asfocas aspiram o amargo odor das águas sombrias.Para lá te conduzirei ao clarão da Aurora e teincorporarás ao grupo. Dos que trazes na frota,escolhe três, os melhores, tua escolta. Te revelotodos os recursos do Velho. Eles assustam. Passaprimeiro em revista as focas. Conferidas nos dedos,e distribuídas em grupos de cinco, elege um lugarpara dormir. Lembra o guardador e seu redil. Quandoo perceberes adormecido, chegou a hora da força,tua e a dos teus. O trabalho requer vigor. Segurem-nofirme, ele tentará escapar por todos os meios.Procurará transformar-se em tudo o que se movena face da terra, sem esquecer o fluir das águas e otremular das chamas. Não fraquejem! É preciso

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imobilizá-lo. Quando ele mesmo te dirigir a palavrae voltar a ser o que foi quando se recolheu paradormir, cesse a violência. Larguem o Velho.Pergunta-lhe qual dos deuses te amargura a vidae que rota deverás seguir para retornar à tua terra.’Com estas ponderações, a ninfa submergiu nas ondas.Voltei ao lugar em que tinha firmado meus barcos.Caminhava de coração agitado. Deixei que os pésme levassem. Preparamos a ceia, pois já vinhaa noite, a imorredoura. Dormimos sobre as rochasem que se quebram as ondas bravias. Quando aAurora riscou o horizonte com seus dedos róseos,eu já pisava as fofas areias lavadas pelas ondas.Meus joelhos se dobraram em prece. Trêscompanheiros, familiarizados com meus intentos,me acompanhavam. Idotéia, ao submergir no seioacolhedor, enviou-nos as peles de quatro focas,recém sacrificadas. As peles enganariam o Velho,pai dela. A deusa cavou covas ao longo da praiae nos aguardou sentada. Quando nos aproximamos,ela nos acomodou, um em cada cova, e nos cobriucom as peles. Cômoda a tocaia não foi. O cheironascido das ondas tonteava. Fedor de matar! Quemrepousaria no conforto junto a um monstro marinho?Ela, entretanto, providenciou um remédio de grandeeficácia. Untou de ambrosia o lábio superior decada um de nós. Passamos a respirar ares divinos. Doranço, nem rastro. Agüentamos decididos até o diaclarear. As focas, deixando as águas, enfileiraram-seem ordem ao longo da praia. Ao meio-dia emergiudas águas o Velho. Passou em revista os corposnutridos. Inspecionou todas, confirmando o número.A inspeção começou por nós. O ardil nem lhe passoupela cabeça. Deitou-se por fim. Erguemo-nos, aosgritos. Tentamos prendê-lo nos braços. Ao Velhonão faltaram virtudes nem reserva de artimanhas.Apareceram as jubas de leão. Vieram, depois, os anéisde dragão, veio a pantera, veio o javali, dos grandes.Transformou-se em água corrente, árvore copada.

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Mas nós, de férrea determinação, não o largamos. Porfim, o Velho, versado em truques, cansou. Encarou-mee perguntou: ‘Quem, filho de Atreu, foi, entreos deuses, teu conselheiro? Por que traiçoeiramenteme atacaste? O que queres?’ Não deixei sem repostaas perguntas: ‘Nada ignoras, Velho. Por que me venscom esse palavrório? Estou preso nesta porcaria de ilhaum montão de dias. Não encontro saída. Meu coraçãocomeça a fraquejar. Quero saber de ti – os deusesnão sabem tudo? – isto: Qual dos divinos se pôs nomeu caminho? Quem embaraçou meu regresso? Por quenão consigo atravessar este mar empanzinado de peixes?’Ouviu minhas perguntas. A resposta não demorou:‘Não sabes que tua dívida a Zeus não foi saldada? Aliás,passaste a perna em outros deuses também. Paga o quedeves, embarca e as velas te levarão sem demora à tuaterra por esse mar cor de vinho. A Moira[1] não permitirá querevejas tua gente, nem teu suntuoso palácio, nem tuaspátrias plagas, antes de retornares às águas do Egito, ao riocujas origens se afundam em fontes celestes, para ofertarhecatombes aos deuses imortais, senhores dos céus dedilatados limites. Só então receberás do alto a graça doregresso que tanto almejas.’ As palavras do Velho medeixaram de coração partido, já que me ordenava retornarao mar nebuloso das costas do Egito por longo, suadoe salgado caminho. Mesmo assim, eu lhe faleidecidido: ‘O que ordenas, Velho, terá rigorosocumprimento. Conta-me, entretanto, sem rodeios, eu teimploro: os que Nestor e eu deixamos em Tróiajá voltaram? Todos? A morte impiedosa colheu alguémdurante a viagem? Quem dos amigos pereceu embraços queridos, findas as lidas?’ O Velho contestouminha perguntas de mau humor: ‘Qual é o objetivodesse inquérito? Que benefício te trará penetrar emminha mente, por que queres saber o que penso? Se eudisser o que sei, te prepara, é de chorar. Guerreirosdesapareceram muitos, outros sobrevivem. Dos chefesaqueus vestidos de bronze morreram só dois noregresso. Tu mesmo presenciaste a morte dos que

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tombaram na guerra. Um ainda se encontra preso,cercado pela vastidão do mar. Ajax, com seus naviosde longos remos, foi a pique. Primeiro Posidon olançou contra as rochas de Gira, imponentes, emborao salvasse da morte. Escapou do aniquilamento,apesar do ódio de Atena. Cometeu a loucura de largarpalavras desaforadas, que, ao arrepio de disposiçõescelestes, não submergiria no aquoso abismo. A toliceferiu os ouvidos de Posidon. Com o tridente nas mãosdecididas, lançou a nau contra os rochedos de Gira.Desfez-se em pedaços. Destroços flutuavam, destroçossumiram nas ondas. A fúria dos ventos arrastou oinsolente à procelosa distância. Este foi o fim. Águasalgada invadiu o corpo dele. Com a poderosaproteção de Hera, incólume navegava a frota de teuirmão, o comandante Agamênon. A tempestadesó o atingiu nas proximidades das rochas de Meléia.Ventos devastadores arrastaram impiedosos o naveganteaflito ao úmido domínio dos fartos cardumes, aolongo do território que outrora pertencera a Tieste,governado agora por Egisto, filho do legendáriomonarca. Dali em diante, o regresso ocorreu sempercalços. Consentiram os deuses que ele pisasse o solopátrio e revisse seu palácio. Ao desembarcar, beijou aterra de seus antepassados. Lágrimas em pencadesciam-lhe pela face. Instalado num esconderijo,um espião acompanhou o desembarque, a mando deEgisto, com douradas promessas de uma recompensade dois talentos. O canalha montou guarda por umano inteiro. Egisto fez tudo para evitar imprevistos.O sem-vergonha, ao receber a notícia do regresso, pôsem execução o crime planejado. Escolheu a dedo vintecapangas para uma emboscada. Por determinação sua,prepararam um banquete. Ele próprio dirigiu-se aAgamênon com saudações traiçoeiras. Veio comaparato de cavalos, de carros, de ardis, de crimes.Convidou o vitorioso crédulo para a festa e o matoucomo sangram bois na estrebaria. Oscompanheiros do herói o seguiram na morte. Dos

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seus guardas não sobrou ninguém. Cadáveresinfestavam a sala.’ Meu ânimo quebrou ao ouvir esserelato. Caí sentado na areia aos coices do choro. Nascavernas de mim mesmo eu pedia para morrer. Viver,ver a luz do sol, para quê? Exausto de rolar na areiaem prantos, acudiu-me a orientação do Velho do Mar:‘Já basta! Essa tempestade de lágrimas não te levaráa nada. O que aconteceu aconteceu. Pensa noregresso. Pretendes voltar aos teus domínios como?Encontrarás Egisto vivo? Orestes poderá liquidá-loantes de tua chegada. Terás, então, o agrado de seuenterro.’ De coração anuviado, um prazer sutilcomeçou a esvoaçar no meu peito. Animei-me a falar.Palavras me voaram pela alva cerca dos dentes:‘Mencionaste dois heróis. Quero saber do terceiro.Ainda está vivo em alguma ilha açoitada pelas ondas?Já morreu? Ainda que doido de dor, gostaria de sabera verdade.’ A resposta do Velho não demorou:‘O terceiro, o que ocupa o trono de Ítaca, é o filhode Laertes. Eu o vi triste, a cara molhada de lágrimas.Vive na gruta de Calipso. O sofredor está preso.A ninfa não permite que o detento a deixe. Perdeutudo. Não lhe restam companheiros nem navios paraafrontar a fúria das ondas. Falemos de ti,Menelau, não é vontade dos céus que morrasna hípica Argos. Outro é teu destino. Os imortaiste enviarão às Campinas Elísias, situadas nosextremos da terra. Farás companhia a Radamântis,louro como tu. Os homens de lá levam existênciaparadisíaca: sem nevascas, sem inverno, semchuvaradas. Lá Zéfiro sopra ao Oceano brisasdeliciosas do Oeste o ano todo. Receberásesse prêmio por seres genro de Zeus.’Dito isso, imergiu o Velho no mar encapelado.Acompanhado dos meus valentes companheiros,dirigi-me à minha frota. Eu caminhava agitado porsérias preocupações. Tratamos de preparar a ceiaporque já se aproximava a noite. Acomodamo-nos,então, na areia ao som do turbulento embate das ondas.

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Ao despontar a Aurora dos dedos róseos, arrastamos,antes de tudo, as embarcações às águas salinas. Destros,erguemos os mastros e ajustamos as velas. Todos abordo, os remeiros ocuparam os bancos. Ritmicamentebatem os remos a superfície prateada. Volto à correnteegípcia, nascida em alturas celestes. Tendo ancorado,pus-me a celebrar hecatombes impecáveis. Aplacadaa ira dos que não morrem, ergui um monumento aAgamênon com o propósito de perpetuar-lhe a memória.Cumpridas minhas tarefas, fiz-me ao mar. Com ventosfavoráveis, os deuses permitiram que eu retornasse ao lar.

“Quero que permaneças aqui no meu palácio,pelo menos, por uns onze ou doze dias. Quero quetenhas a satisfação de partir com ricos presentes,três corcéis e um carro vistoso, além disso, levarásum cálice raro. Quero que te lembres de mim sempreque renderes culto aos imortais.” O ajuizado filho deOdisseu retrucou nestes termos: “Átrida, não esperesque eu permaneça. Se fosse por mim, eu ficaria até umano aqui contigo, sem sentir falta de nada, nem daminha casa nem de meus pais. Receber orientaçãode ti e ouvir tuas narrativas é um privilégio. Mas osque deixei em Pilos necessitam da minha presença.Embora me doa, devo recusar teu convite. Aceitarteu presente, embora invejável, tampouco é possível.Que faria eu com cavalos em Ítaca? Deixo-os contigo.Aqui eles ilustram tua honra. És senhor de pradariasimensas. Campos relvados não te faltam, fartos tambémem alfafa, cercam-te trigais ondulantes, branqueja acevada. Ítaca é pobre em planícies e prados. Mais do quepotros atraem-me cabras. Territórios verdejantes para acriação de cavalos não temos em nenhuma de nossasilhas. De todas, a mais carente é Ítaca.” Essas reflexõesdespertaram sorrisos nos lábios afeitos a ordens severas.Acariciando-lhe a cabeça, Menelau falou sereno: “O quedizes, meu filho, vem aquecido por sangue distinto.Tenho outros presentes. Não me custa trocá-los. Dasriquezas nos meus cofres, pretendo oferecer-te o que

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há de mais precioso. Leva um vaso, uma obra de arte. 615Ele é todo de prata, a boca arredonda-se em bordasde ouro. Sabes quem é o artista? O próprio Hefesto.Recebi-o de Fédimo, um herói, rei dos sidônios. Ele mehospedou quando eu voltava de Tróia. Coloco-o agoraem tuas mãos.” Prolongava-se a conversa de Menelaue Telêmaco. Os convivas que se dirigiam ao paláciodo rei traziam ovelhas e vinho restaurador. Esposasde vistosos vestidos lembraram-se de enviarpão. A ceia congregava festiva os convidados.

Entrementes, aglomeravam-se os pretendentes nopalácio de Odisseu. Distraíam-se com o arremesso dediscos e dardos no sólido pavimento com a insolentearrogância de sempre. Antínoo tomou assento junto aEurímaco com ares de deus. Por suas atitudes, os doistinham assumido o papel de líderes dos pretendentes.Aproximou-se deles Noemon com uma pergunta queo inquietava: “Conta-me, Antínoo, sabemos quandoé que Telêmaco há de retornar da arenosa Pilos?Ele navega num navio meu, que agora me faz falta.Preciso embarcar para as campinas de Élida. Lá meme esperam éguas, um dúzia, e uma tropa deasnos, indispensáveis. Estamos em época de doma.”A pergunta causou espanto. Ignoravam que Telêmacotinha navegado para a Pilos de Neleu. Julgavam queele andava ali pelos campos, ocupado com rebanhosou dando instruções ao porqueiro. Respondeu-lheAntínoo, filho de Eupites: “Preciso saber, navegoupara onde? Quem o acompanhou? Jovens de Ítaca?Assalariados? Escravos? Pergunto porque ele écapaz de tudo. Intriga-me ainda isso, não me ocultesnada: ele te tomou o navio à força ou tu o cedestenuma boa a uma solicitação dele?” Interrogado,respondeu-lhe Noemon, filho de Frônio: “Emprestei--lhe meu navio na amizade. Podia agir de outrojeito? Rogava-me um homem atormentado.É um favor que não se pode negar. Osrapazes de sua tripulação são os melhores da

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cidade. O comandante, se não é um deus, é Mentor,de traços manifestamente divinos. O fato meespanta, porque ontem, pela manhã, vi Mentor aqui,depois de o navio ter partido a Pilos.” Dada essainformação, Noemon dirigiu-se à casa de seu pai.Essa conversa agitou o peito soberbo de ambos.Os pretendentes, interrompendo o jogo, uniram-sea eles. Antínoo, filho de Eupites, falou-lhes agitado.A nuvem negra da ira envolvia-lhe as entranhas.Os olhos esbugalhados cuspiam fogo: “Amigos,Telêmaco meteu-se numa empresa ousada. Eleviajou. E nós pensávamos que ele não seria capaz!Esse garoto, um fedelho, contrariou a vontade de todos.Equipa um navio, reúne os melhores da cidade!Este deve ser o princípio de desmandos ainda maiores.Zeus não permita que ele entre com esse fogo naidade adulta. Vamos, preparem-me um navio velozcom vinte homens. Vou armar-lhe uma cilada.Vigiarei o retorno no estreito entre Ítaca e Samos, aescabrosa. Ele se arrependerá de sair em procura do pai.”As ameaças foram recebidas com louvores. Aplausos!Erguendo-se, dirigiram-se ao palácio sem perda detempo. Não demorou, a resolução chegou aos ouvidosde Penélope. Ela soube do plano dos pretendentesatravés de Médon, o arauto, portador das decisõesouvidas nas proximidades do pátio em que tinha ocorridoa reunião. Dirigiu-se aos aposentos de Penélope logoque a reunião terminou. Mal tocou a soleira, falou-lhe aSenhora: “Caro mensageiro, por que te enviaram osinsolentes? Para ordenar que as servas de Odisseuinterrompam seus afazeres e lhes sirvam a ceia? Trazes--me a notícia de que anularam o pedido e que, depoisdesta refeição, a última, pretendem reunir-se em outrolugar? Vejo diariamente este aglomerado que nãocansa de consumir os bens do meu tolerante Telêmaco.Os pais dessa gente não lhes contaram como foramtratados por Odisseu, quando vocês ainda eramcrianças? Meu marido nunca fez mal a ninguém.Ninguém lembra dele uma única palavra ou um gesto

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reprovável. Tiveram um rei justo. Reis costumamdesprezar uns e preferir outros. Mas Odisseu nuncatratou mal a ninguém. O que é que recebemos emresposta? Ódio, atitudes vergonhosas. Em gratidãonão se pensa.” Respondeu-lhe Médon, sensato:“Venerável rainha, esse ainda não é o pior dos males.O que os pretendentes planejam é muito mais grave.De maneira alguma o Cronida o consinta! Queremacabar com a vida de Telêmaco a ferro, quandoele voltar. Ele partiu para saber de notícias do paina sagrada Pilos e na abençoada Lacedemônia.”A esta informação, tremeram os joelhos da rainha, ocoração aos pulos. As palavras se atropelaram nagarganta. Os olhos encheram-se de lágrimas. A vozfraquejou. Recuperando-se a custo, falou: “Por queé que meu filho embarcou nessa aventura? Paraonde o leva a vela enfunada? Os cavalos marítimosarrastam para as profundezas do mar. Não lherestará nem a lembrança do nome.” Médon falou-lhepalavras ponderadas: “Não posso dizer-te se foium deus que lhe acendeu o desejo ou se a vontadede viajar a Pilos nasceu da vontade de saberse o pai voltaria ou se alguma desgraça lhe tinhaobstruído o retorno.” Tendo falado assim, atravessou opalácio. Penélope afundou na dor que lhe partiao coração. Desprezou a tranqüilidade das poltronas.O peso da dor a prostrou na soleira de seu quartode sofridos trabalhos. Ela gemia. Rodeavam-nasuas auxiliares, todas, tanto as jovens quanto asenrugadas. Angustiada, falou-lhes, por fim, a rainha:“Escutem-me, amigas; das que se criaram comigo,a nenhuma o Olímpio deu mais infortúnios do quea mim. Primeiro, ele tomou-me um marido deenergia leonina, destacado em toda sorte de virtudes.Esplendia-lhe o reome longe: Hélade, Argos.Tempestades arrebatam-me agora o meu único filho.Ele some da minha casa, sem eu saber. Desgraçadas!Ninguém se lembrou de erguer-me do leito, emborasoubessem que ele embarcaria numa dessas naus

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escuras, que bojudas flutuam no mar? Se eu tivessesabido de seus projetos, eu o teria convencido a ficar,por mais forte que fosse seu desejo. Se não meouvisse, ele saberia que me deixaria morta no palácio.Vamos, mexam-se, quero já a presença de Dólio, meuvelho criado, presente de meu pai quando vim para cá.É ele que cuida do meu jardim, das minhas árvores.Laertes não pode ignorar o que se passa. Dólio deveinformá-lo já. Pode ser que lhe ocorra uma idéia: saircorrendo pelas ruas aos prantos, agitar o povo, berrarque querem matar um homem justo, o próprio filhode Odisseu.” Aproximou-se uma escrava querida,Euricléia: “Minha filha, toma um punhal e acabacomigo ou deixa-me aqui onde sempre estive. Não teoculto uma só palavra. Eu sabia de tudo. Dei a teu filhoo que ele me pediu, vinho, mel... Prendeu-me a umjuramento forte. Antes de doze dias, tu não deveriassaber de nada. Ele não queria que sentisses saudade.Não desejava, de jeito nenhum, que as lágrimasmolestassem essa tua linda pelezinha. Acompanha-me.Vou dar-te um banho. Precisas mudar de roupa. Sobe,chama tuas criadas, invoca Palas Atena, filha doZeus Porta-Escudo. Ela tem poder para salvar teu filho.Mas não atormentes com novos tormentos o jáatormentado Laertes. Não creio que os venturososdeuses odeiem os filhos de Arcésio[2]. Não faltará quemgoverne este palácio e os seus férteis campos.” Aspalavras da escrava desanuviaram-lhe o rosto. Saindodo banho, uma veste limpa cobriu-lhe o corpo.Subiu a escada acompanhada das mulheres de suaconfiança. Levava farinha no cesto para invocar Atena:“Ouve-me, filha do Zeus Porta-Escudo. Em outrostempos, o versátil Odisseu assou em tua homenagem,neste mesmo palácio, coxas gordas de bois e deovelhas. Estás lembrada? Salva agora meu filhodesses supermachos, esses malditos pretendentes.”As palavras proferidas entre soluços foram essas.A deusa não fez ouvidos de mercador. A algazarrasoava na sala sombria. Destacou-se a voz de um

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certo supermacho: “Nossa esperta rainha anda, comcerteza, ocupada com preparativos de casório. E dosfunerais do filho, ela já sabe?” Falavam por falar.Não levavam em conta as circunstâncias. Preocupado,dirigiu-lhes a palavra Antínoo: “Loucos! Calem aboca! Querem que nossos planos sejam conhecidos ládentro? Silêncio! Todos de pé e mãos à obra! Aintenção de cada um é a nossa, a de todos.” Tendodado essa ordem, escolheu vinte para acompanhá-loà nau veloz. Lá chegados, afastaram o barco dolitoral. Procederam como de praxe. Na embarcação,elevaram o mastro. Içaram as velas. Prenderam osremos com tiras de couro. Tudo pronto! Alvoenfuna-se o pano. Criados trouxeram as armas.Ancoraram-no com firmeza. Saltaram do barcopara cuidar da ceia. Aguardaram o cair da tarde.

Sem provar alimento, a precavida Penélopeencontrava-se reclinada nos seus altos aposentos.Preocupada, recusou comida e bebida. Qual seriaa sorte do filho? Escaparia da morte? Ou ospretendentes assassinariam Telêmaco, um homemcorreto? O que deverá passar pela cabeça duma leoaamedrontada, quando pessoas a cercam paraapanhá-la? Isso sentiu Penélope, inquieta até servencida pelo sono. Os membros se afrouxaram,ela adormeceu reclinada. Outro expediente ocorreu aAtena, a deusa dos olhos vigilantes. Suscitou umaimagem, um corpo de mulher, Iftima, filha do bomIcário. Casada com Eumelo, o casal mora em Feras.A deusa a enviou ao palácio do admirável Odisseupara confortar a inconsolável Penélope, removeras lágrimas, os gemidos, o pranto. Puxando a correiado ferrolho, a amiga entra no quarto. Paira sobre acabeça adormecida com estas consoladoras palavras:“Penélope, dormes de coração aflito? Na verdade,os deuses, em sua existência despreocupada, nãodesejam que chores nem te aflijas, pois teu filho já

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retorna. Ele não ofendeu os deuses em nada.”Respondeu-lhe a sensata Penélope, suavementeadormecida nos portais do sonho: “Por que vieste,irmãzinha? Não costumas visitar-me com freqüência.Grande distância nos separa. Queres agora queeu esqueça gemidos e dores profundas, aglomeradasno meu peito, na mente. Sabes muito bem queprimeiro perdi meu esposo, um homem excepcional,leonino. Em virtudes não conheci ninguém igual a eleentre os dânaos. Seu renome espalhou-se pela Héladee por Argos. E agora embarcou meu filho numa naubojuda, uma criança. De conchavos, de política elenão sabe nada. Mais do que por meu marido, aflijo-mepor ele. Por ele tremo. Temo que lhe aconteça algo degrave, lá longe, em outras cidades ou no mar. Gentemal-intencionada, são muitos, planejam coisas contraele. Querem matá-lo antes de ele voltar para cá.”Observou-lhe, em resposta, a aparição onírica:“Coragem! Essas tuas preocupações compactas nãolevam a nada. Acompanha-o alguém que tambémoutros guerreiros gostariam de ter como protetora,a muito poderosa Palas Atena. Ela conhece tuasaflições e se preocupa contigo. Venho a pedido delapara te confortar.” Penélope, já dona de si, disse-lheem resposta: “Pareces uma deusa, tua voz soa divina.Se este é o caso, quero saber mais. Fala-me daquelegrande sofredor. Ele ainda vive? O sol ainda lheilumina os olhos ou a fatalidade o levou para o reinode Hades? Da visão noturna, Penélope obteve estaresposta: “Dele não sei nada de preciso. Não saberiadizer se ainda vive ou se já morreu. Evite-se conversatola.” Esfumou-se, com estas palavras, pelo ferrolhoda porta e dissolveu-se na brisa da noite. Ergueu-se dosonho a filha de Icário. Ardia-lhe o peito. Comopoderia a visão ser tão nítida na sombra da noite?

Tendo embarcado, os pretendentes viajaram porlíquidas veredas. A morte de Telêmaco infestava-lhes

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845a mente. Acha-se uma ilha rochosa entre Ítacae a pedregosa Samo, Ásteris é o nome dela, não égrande. Oferece, entretanto, aos nautas, dois portosseguros. Os pretendentes ficaram de emboscada ali.

[1]. A Moira ou as Moiras: três divindades – Cloto, Láquesis e Átropo – que definemas vidas humanas, também conhecidas como as fiandeiras. Cloto fia a linha da vida,Láquesis define o conteúdo da vida humana, e Átropo, a morte, quando corta o fio.(N.E.)[2]. Pai de Laertes e, portanto, avô de Odisseu. (N.E.)

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ODISSÉIA II

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Canto 5

A Aurora ergueu-se do leito de Titono para trazerluz aos imortais e aos mortais. Os deuses tomaramassento no conselho divino, presidido pelo Zeusdos brados bravios, de penetrante poder. Falou-lhes Atena, lembrada dos conflitos de Odisseu.Doíam-lhe as dores ardentes que o herói sofreu nagruta da Ninfa: “Zeus Pai e vós senhores celestes,cessem doravante dos soberanos cetrados sensatez,serenidade e compreensão, cessem cultores deretos desígnios, reinem tirânicos reis, pratiquemprepotências, já que ninguém dos governados pelosábio Odisseu o lembra como pai generoso. Merecepadecer privações penosas no ilhado calabouço deCalipso? A ninfa o retém prisioneiro. Remotorecua o mais modesto projeto de regresso à pátria.Faltam-lhe naus, remeiros, equipamento, tudo.Como cavalgar o largo lombo salgado? Ameaçasà vida do filho agravam-lhe a sorte. Concluirá Telêmacoseu retorno a Ítaca depois da visita a Pilose à louvada Lacedemônia para saber de seu pai?Em resposta lhe declara o Fazendeiro das Nuvens:“Como pôde esta fala, filha, saltar-te a cerca dosdentes? Tu mesma elaboraste em tua mente oplano da punição dos impudentes com a chegada doherói. Proteger a volta de Telêmaco é tarefa tua.Que toque sem danos a terra que é dele! Retornemfrustrados da funesta empresa os criminosospretendentes.” Não tarda a ordem ao mensageiro,filho seu: “Hermes, notório em outras missões,leva meu decreto irrevogável à ninfa dasrenomadas tranças. Terminou a angustiosa esperade Odisseu. Volte já, mesmo sem recursos divinose sem ajuda humana! Com sacrifício chegará, ao

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vigésimo dia, em jangada bem construída, aEsquéria, terra dos feáceos, parentes próximos dosdeuses, onde o aguarda calorosa e cordial acolhida.De lá partirá, enfim, em direção à pátria amada, comricos presentes: bronze, ouro e esplêndidos tecidos,dons superiores aos despojos arrebatados de Tróia,tesouros saqueados e perdidos nas ondas do mar.Seu destino é este, rever os amigos, recuperar suamorada e a terra de seus antepassados.” A ordemao célebre Matador de Argos[1] não bateu em ouvidossurdos. Calça pronto as deslumbrantes sandálias,preparadas para conduzi-lo por úmidas ou terrestresveredas à velocidade do vento. Empunha ocaduceu[2]. A um toque seu, encantos povoam olhossonhadores e homens emergem da vigília à luz.Munido dele, o forte Arrasa-Argos transcursao espaço, sobrevoa Piéria, e do éter desce ao mar,paira sobre ondas dançantes com a leveza dagaivota que, devota a aterradoras profundezas daságuas inquietas, banha as asas nas ondas à caçade peixes. Assim deslizava Hermes sobre a úmidaserrania. Aproximando-se da ilha, deixa o marvioláceo para pousar os pés em terra firme. Buscaa gruta, residência da ninfa das memoráveismadeixas. Encontrou-a em casa. Labaredaslambiam fartas o forno. Longe recendia o perfumedas achas de cedro e de tuia, repasto das chamas.O canto deslizava suave pelos sonoros paredões. Ospés se moviam junto ao tear, nos dedos navegava aáurea naveta. Um bosque verdejante cercava agruta, amieiros e choupos e cedros fragrantes.Os galhos sustentam os ninhos de robustos voláteis:corujas, falcões e gralhas bicudas, variedadesafeitas às lides da pesca marinha. Vigorosa videirade rechonchudos cachos cercava a caverna ardilosa.Fontes de linfa alvíssima arrematavam o quadro.Fluíam, em número de quatro, cristalinas correntes.Corriam a diversos destinos. Nas cercanias,verdeja o brando tapete dos prados de violeta

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e aipo. Até um imortal se deteria em êxtase paracontemplar o espetáculo. Hermes, arrebatado,interrompe a marcha. Recuperado do enlevo 75que lhe inundara o coração, dirigiu os passosà arejada caverna. Calipso, esplêndida entreesplêndidas, o identificou num relance. Os imortaisreconhecem uns os outros, ainda que a distânciaafaste o sítio de suas residências. Quem estavaausente? Odisseu. Não se achava na caverna.Sentado na praia, de lá não saía. De coraçãodilacerado, e não era a primeira vez, chorava.Seus olhos, mergulhados num mar de lágrimas,varriam a superfície azul. Calipso, a luminosa,ofereceu a Hermes uma poltrona, assim só dela,uma obra de arte. Veio a pergunta: “Hermes, sabesque te venero, te quero embora te veja pouco. Oque te trouxe? Estou inclinada a satisfazer-te semreservas, se é que estou à altura dos teus desejos.Vem! Minha generosidade confirma o que digo.”Com essas palavras, a deusa aproximou a mesa.Serviu-lhe ambrosia. Néctar purpurino espumavana cratera. Deliciou-se com as iguarias Hermes, odivino. Terminada a refeição, saciados seusdesejos, revelou o motivo da visita: “Deusa, dirigesa palavra a um deus. Não poderia ocultar-tea verdade. Exponho-te palavras sem véus. Nãovim por decisão minha. Zeus me mandou. Quem,por vontade própria, enfrentaria esta imensidãosalgada, este espaço sem fim? Não vejo homens.Cidade que cultue deuses que se celebrehecatombes por aqui não há. Sabes que não épossível contrariar Zeus. Que deus se oporia a umdecreto do Porta-Escudo? Consta que vive aqui umsofredor, um dos que sitiaram a cidadela de Tróiapor nove anos. No décimo retornaram os autoresdo prodígio. Os que regressaram ofenderam Atena.Ela reagiu com ventos funestos e ondas gigantes.Foi o fim dos companheiros, embora valentes. Osventos e as ondas empurraram o sobrevivente para

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cá. Tens que soltá-lo, é a ordem, o mais depressapossível. Morrer aqui, longe dos seus, não é esse seudestino. Foi determinado que ele reveja quem ama,que volte ao seu palácio e que pise o solo pátrio.”Estas palavras abalaram Calipso, a esplêndida deusa.Saíram-lhe voando da boca estas palavras: “Deuses,sois duros, invejosos mais que ninguém. Perseguisdeusas que, movidas pelo desejo, levam para acama homens eleitos. Quando a Aurora de dedosróseos escolheu Órion, vós, os de vida fácil, vós,deuses, vos opusestes, a ponto de Ártemis atingi-lodesde seu trono de ouro com flechaços suaves emOrtígia[3]. Quando Deméter, inflamada, cedendo aocoração, se aproximou com seus belos cabelos deJasião e aos abraços o levou para a maciez do leito,campo três vezes lavrado, não demorou a notíciachegar ao trono de Zeus. Um raio fulgurante matouo amante. A perseguida agora sou eu devido a ummortal. Agarrado à quilha, o raio de Zeus partiucom uma tempestade bravia a nau em que se moviano mar cor de vinho. Quem o salvou fui eu. Seuscompanheiros, embora valorosos, morreram todos.Ventos raivosos e ondas agitadas o largaramaqui. Eu o acolhi, tratei-o com afeto, ofereci-lhea imortalidade, garanti-lhe que não conheceriaa velhice em dias vindouros. Visto ser impossívelcontornar decisões de Zeus, nem a Zeus se consentemenosprezar a vontade de outra divindade, que sevá! Submeto-me ao decreto do Porta-Escudo. Masnão conte com minha ajuda. Não tenho naus nemtripulação que lhe permitam cavalgar o lombo deindômitas ondas. Mais que aconselhar não posso.Não dissimulo. Que retorne sem danos à sua terra!”Brilhou a resposta do Arrasa-Argos: “Fazes bemem libertá-lo. Não provoques a ira de Zeus. Afúria dele poderia causar-te danos. Com estaspalavras partiu o forte Hermes, o triunfador. Aninfa senhoril procurou o Odisseu dos profundossentimentos. A mensagem de Zeus ainda soava aos

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ouvidos da ninfa. Calipso encontrou-o na praia. Aslágrimas não secavam. A vida doce escoara. Semretorno, restava-lhe penar. Os atrativos de Calipsoeram águas passadas. Tormentosas arrastavam-se asnoites na gruta espaçosa. A ninfa sedenta abraçavaum homem sem desejos. Passava os dias sentadosobre rochas e dunas. Lágrimas, gemidos e dorestumultuavam-lhe o coração. O amargo de seusolhos se misturava com o amargo do mar. Próximasoou a voz esplendorosa da esplêndida deusa:“Coitado! Não quero que consumas tua vida aqui,em prantos. Já não me oponho à tua partida. Abatetroncos. Providencio ferramenta. Constrói umajangada. Levanta um estrado para enfrentar o martenebroso. Terás pão, água, vinho tinto, tudo ateu gosto. Te garanto que de fome não vais morrer.Receberás roupa e ventos propícios. Chegarássem transtornos à tua terra, se os senhores quemandam no vasto céu assim o desejarem. Estousujeita a irrevogáveis decretos deles.” Odisseu,o sofredor, tremeu da cabeça aos pés. Estaspalavras saíram-lhe aladas da boca em resposta:“Deusa, desejas minha partida? Esperas que euvença perigosos abismos com uma jangada feitapor mim? A travessia é negada até a naves destras,velozes, favorecidas com sopros de Zeus. Jamaisembarcarei numa jangada se não me jurares, portudo o que é sagrado, que não me empurras,caríssima, a outra desgraça ainda maior.” Asprecauções de Odisseu fizeram Calipso sorrir.O herói ouviu estas palavras de afeto: “Espertinho,vejo-te sempre cheio de dedos. Não te dás contado que acabas de dizer? Saibam este chão sobmeus pés e o grande céu que nos espia lá em cimae as águas do sacro Estige[4] lá embaixo – maiorjuramento não há nem para bem-aventuradosdeuses – que não tenho desejo de prejudicar-te.O que te falo eu recomendaria a mim mesma seme encontrasse em dificuldade igual à tua. Te

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afirmo que sou bem equilibrada. Não me atribuasum coração de ferro. Até sei ser misericordiosa.”Tendo-lhe dado essa garantia, a excelsa divindadetomou a frente para orientá-lo. Odisseu seguiu-lheos passos. Entraram na imponente caverna, a deusae o herói. Indicou-lhe a poltrona ainda há poucoocupada por Hermes. A ninfa preparou-lhe a mesa,manjares e vinhos, dieta adequada a mortais. Elaassentou-se diante de Odisseu, seu divino[5] hóspede.As criadas ofereceram à deusa ambrosia e néctar.Serviram-se das iguarias dispostas. Concluídaa refeição de cálices e travessas, Calipso, de sedosapele, reencetou a conversa: “Ilustre filho de Laertes,linhagem de Zeus, prodigioso Odisseu, quer dizerque pretendes retornar à tua terra natal sem maisdelongas? Pensa bem, é isso que desejas? Sabeso que te espera? Não penses que a empresa é fácil.Cansativo seria enumerar as dificuldades. Agora,se resolvesses ficar comigo, poderias administraresta propriedade. Eu te concederia a imortalidade,mesmo que dia após dia sentisses falta de tuaesposa. Não sou de se jogar fora. Se considerascorpo e beleza, ganho dela. Mortais não igualamimortais na forma e na harmonia das linhas.”Respondeu-lhe Odisseu: “Deusa querida, não teirrites comigo. Ninguém sabe melhor do que euque a minha adorada Penélope, seja no porte, sejana beleza, comparada contigo, some. Sei que ela émortal e que tu não pereces nem decais. Mesmoassim, espero, dia vem, dia vai, voltar para casa.Rever o que é meu, desejo só isso. Se eu sofrerno mar cor de vinho perseguição divina,agüentarei. Desenvolvi coração resistente à dor.Nem queiras saber o que já padeci no mar e naguerra. Estou preparado para suportar o que vem.”Ora, o sol já se punha, adensava-se a bruma.Penetraram no interior da gruta aconchegantee adormeceram abraçados em profunda ternura.

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Quando a Aurora ergueu os róseos dedos, Odisseuvestiu a túnica e cobriu-se com o manto, ao passoque a ninfa esplendeu no prateado de um vestidolongo, leve, gracioso, estreitado na cintura comum cinto de áurea beleza, um véu cobria-lhe o rosto.Revolvendo na cabeça planos para o retorno deOdisseu, ela passou-lhe um pesado machado debronze, fio duplo, adequado a mãos robustas,provido de um vistoso cabo de oliveira, ajustado.Apresentou-lhe ainda uma enxó, cuidadosamenteacabada. Mostra-lhe, então, o caminho ao extremoda ilha, onde cresciam árvores viçosas, choupos,amieiros, abetos que se afundam no céu, secos hámuito, leves, adequados ao uso naval. Tendo-lhefornecido o necessário, Calipso retornou à caverna.Prontamente se pôs Odisseu a abater os troncos. Otrabalho rendeu. Derrubou vinte ao todo, falquejou-osa ferro, alisou-os a preceito, alinhou-os a prumo.Veio Calipso, a solícita deusa, com as puas. Feitosos furos, Odisseu ajustou os troncos um ao outro.Cunhas consolidaram o conjunto. O herói procedeucomo um armador experimentado. O piso da jangada,comparável à superfície de um grande navio de carga,alargou-o com precisão. Ergueu, então, a plataforma,sustentando-a com a prescrita quantidade de vigaspara, por fim, firmar os bordos com longas pranchas.Levantou, ainda, o mastro, atravessado pela verga.Arrematou o trabalho com o leme, segurança da rota.Vedou as fendas, em volta, com varas para impedira penetração de água. De lastro empilhou madeira.A divina Calipso ofereceu-lhe pano para a confecçãoda vela. Ele o cortou a jeito, firmando-a no altoe no pé do mastro. Concluído o trabalho, confioua jangada ao divino balouço do mar. Ao cabo doquarto dia, as providências tinham sido tomadas.Despediu-se de Calipso no dia seguinte, depois debanhado e provido de vestes fragrantes. A deusa nãose esqueceu de abastecer a jangada de bebida, dois

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odres avantajados, um de vinho tinto, outro, de água.Alcançou-lhe ainda um alforje repleto de alimentos,favorecendo-o com vento propício. Contente,Odisseu desfraldou as velas. Toma o timão e omaneja com maestria. Não permitiu que o sono lhebaixasse as pálpebras. De olho nas Plêiades,não perde de vista o Boieiro, que se recolhe tarde.Viaja atento à Ursa. Outros a chamam de Carro.A Ursa, que gira sempre no mesmo lugar, encaraÓrion. Só ela repele banhos nas águas do Oceano.Que, ao singrar o mar, a deixasse sempre àesquerda, foi a recomendação de Calipso. Dez diasmais sete tomou-lhe a travessia. No décimooitavo, apareceram os montes nevoentos da terrados feáceos, já bem próxima dele. Vista atravésda névoa marinha, a ilha parecia um escudo.

Percebeu-o Posidon, ao deixar os etíopes. Viu-o delonge, desde os Montes Solimos, a manobrar ajangada. Dominado pela cólera, moveu a cabeça efalou assim ao próprio coração: “Quem diria?Aproveitaram-se da minha ausência para mudara decisão sobre a sorte de Odisseu. Vejo-oaproximar-se da terra dos feáceos. A trança dossofrimentos termina aí. A ordem do destino é essa.Não pense que já alcançou o topo dos males.”Falou e congregou o exército das nuvens. Tridenteem punho, agitou as águas.[6] Convocou ventos detodos os cantos. Cobriu com um tapete trevosoterra e mar. Tomba do céu o negro véu da noite.Põem-se tempestuosos em marcha Euro e Noto,Zéfiro e Bóreas.[7] Este levanta o dorso das ondas.Odisseu cai de joelhos, o peito aos pulos. Semconselho, falou ao coração atribulado: “Maisdesgraça? Ainda não é o fim? Que será de mim?Bem que a deusa me advertiu que eu deveriasofrer antes de retornar à minha terra. Osmales estão aí. Cumpre-se o previsto. Com quecadeia de nuvens coroa Zeus o céu! Raivoso está

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o mar. Enfureceram-se os ventos de todas asorigens. Devo morrer assim? Três, quatro vezesmais felizes foram os dânaos que findaram noscampos de Tróia no interesse dos Átridas. Quiserater alcançado meu destino na morte quando ostroianos me cercaram em massa com pontas debronze para arrebatar o corpo do pelida[8] Aquiles.Eu teria sido sepultado com honras. Os aqueus[9]cantariam minha glória. O que me espera agora?Desaparecimento obscuro.” Falava assim, quandouma onda imensa se dobrou sobre ele, bateu atrozna embarcação. Rodopiou a jangada. Perdendo ocontrole, Odisseu foi arremessado para longe. Omastro partiu-se ao meio no violento impacto deintempestivas rajadas. Nas asas do vento sumiram velae verga. Ele próprio submergiu nas águas rebeldes,sem forças para recuperar a superfície contra o golpedas ondas. Encharcada pesava a veste, presente dadivina Calipso. Com denodo, emergiu, expelindoo amargor da água que lhe desce em cascatasdo crânio. No entrevero, a jangada não lhe saiu dacabeça. Abriu a braços o caminho à embarcação.Salvo da morte, arrastou-se até ao meio da jangada,jogada de cá para lá no balouço dos vagalhões. Jáviste o vento norte arrastar cardos pelas campinasno outono, que amontoados se entrelaçam? Assimvoava a jangada pelas cristas das ondas bravias.Noto a jogava a Bóreas, Euro a apanhava e aarremessava a Zéfiro. Assim evoluía o certame.Leucotéia, afamada pelos pés sedutores, assistiu aoespetáculo. Esta filha de Cadmo, quando mortal,arrebatava pela voz, mas recebia agora honras dedeusa marinha. Ela teve piedade de Odisseu, grandesofredor. Emergindo das águas qual mergulhão,a deusa subiu à jangada com fala amiga: “O quehouve? Por que Posidon te odeia tanto? Pelo quepercebo, ele floresce com pancadas em penca, sebem que acabar contigo ele não pode. Ouveo que te digo, pois de tolo tu não tens nada.

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Arranca estes panos e larga a jangada ao vento.Para navegar te bastam os braços. Tens que chegarà terra dos feáceos. Lá estarás salvo. Teu destinoé esse. Toma. Cobre-te com este manto imortal.Não tenhas medo. Morrer tu não vais. Quandotuas mãos tiverem tocado terra firme, despeo manto. Atira-o, o mais longe que puderes,para dentro do mar violáceo e desvia o olhar.”Com estas palavras, a deusa passou-lhe o manto,submergiu no mar ondulante como se fosseuma ave marinha, envolta no pretume duma onda.

Odisseu, o notório sofredor, revolvia o sucedido namente. Isolado de tudo, falou ao próprio coração:“Que fazer? Estarei sendo ludibriado outra vez porum dos imortais? Abandonar a jangada, é isso quedevo fazer? Como obedecer se ainda está muitolonge a terra onde deverei encontrar, ao que ela mediz, salvação? Melhor ficar onde estou, enquantoos troncos que me sustentam estiverem unidos.Aqui permaneço, aconteça o que acontecer. Seuma onda despedaçar minha embarcação, nado,não me resta outro plano. Fazer o quê?” Essasreflexões ainda lhe agitavam o peito, quandoPosidon levantou uma onda descomunal,assustadora, assombrosa, uma torre aquática.Imagina o ímpeto do vento derrubar uma pilhade gravetos, arrastados ao léu. A intempériedestroçou assim os barrotes da jangada. Odisseumontou num deles. O barrote corcoveava feitocorcel. Arrancou a veste, presente de Calipso,vestiu o manto, garantia contra a morte, lançou-senas águas. A navegação era agora só de braços.O poderoso Treme-Terra percebeu a manobra.Sacudindo a cabeça, falou a seu próprio coração:“Seja! Já sofreste bastante. Dá braçadas até queencontres gente nutrida por Zeus. Espero que nemassim te largue a matilha de males.” Dito isso,

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fustigou os cavalos das crinas reluzentes e tomoua direção de Egas, onde se ergue seu renomadosolar. Outros planos moveram os atos de Atena.Fechou as veredas dos ventos restantes. A todosordenou que se aquietassem, que fossem dormir.Despertou só o forte Bóreas. Este abriu uma rotaaté à terra dos feáceos, amigos do remo. Lá odivino Odisseu respiraria salvo da ruinosa morte.

Por duas noites e dois dias flutuou Odisseu nomar encapelado. Cravou a cada instante o olharnos olhos da morte, mas quando a Aurora dasbelas tranças iluminou o terceiro, o vento serenotrouxe calmaria. Do alto de uma onda encorpada,distinguiu, muito atento, a proximidade da terra.Podes imaginar um pai, alegre com a recuperaçãodos filhos, findas as preocupações causadas pordoença prolongada, fomentada por gênio funesto,varrida por fim por favoráveis forças divinas?O contentamento de Odisseu não foi menor ao vera terra e o bosque. Nadou valente rumo à terra.A margem já se encontrava ao alcance do grito.Soou-lhe aos ouvidos o embate do mar contra asrochas, rugiam as ondas quebradas no solo,alto salta a branca espuma para largo espanto.Faltavam portos, enseadas, abrigos para naves.Só promontórios, rochedos, alcantis e mais nada.Fraquejaram-lhe os joelhos, cedeu acoragem. Sem ânimo falou ao rebelde coração:“Incrível! Zeus concedeu-me ver terra firme,depois de vencer a voragem de abismos salinose não vejo como safar-me dessa salmourapardacenta. Ondas enfurecidas quebram-secontra lâminas rochosas, torres pétreas brotamdas águas, profundidades que deixam os péssem apoio vetam o fim da desgraça. Se noempenho de me evadir, uma onda me apanhare me atirar contra a rocha, estarei perdido. E seeu ladear a costa nadando? Poderia encontrar

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um porto, um lugar para sair. Ou a tempestademe arrastará para me lançar longe aos cardumesde peixes sem se comover com meus gemidos?Uma força maligna poderá suscitar um monstrocontra mim, um desses que Anfitrite pastoreia aosmilhares. Não tenho dúvidas, Posidon me odeia.”Essas dúvidas rolavam-lhe no peito e na mente,quando uma onda descomunal o lançou contra osásperos recifes. O impacto lhe teria rasgado a pelee partido os ossos, se a sábia Atena não o tivessesocorrido. Num relance, agarrou-se com ambasas mãos às pedras. A dor não lhe abriu os dedos.Aguardou o recuo da onda. Dessa ele escapou,mas não de outra que o arrastou ao mar profundo.Imagina um polvo violentamente arrancado doesconderijo. Trará nas ventosas uma quantidadede pedrinhas. A pele dos dedos fortes de Odisseuficou presa nas pedras, quando a onda o encobriu.Odisseu teria morrido contra os decretos dodestino, não fosse a atenta Atena e seus oportunosconselhos. O herói emergiu da onda que se movia àterra. Nadou e nadou de olhos voltados à costa naesperança de um porto, um lugar para firmar o pé.A força dos braços o levou à embocadura de umrio. Que espetáculo! Poderia surpreendê-lo imagemmelhor? Nada de margem rochosa, e longe zuniamos ventos. Ao aproximar-se do rio, rogou-lhede coração: “Senhor, não sei teu nome, ouve-memesmo assim. Quem te invoca é um fugitivo dosgolpes de Posidon. Aos olhos dos imortais, merecerespeito o homem que errante, como eu agora,carregado de aflições, se inclina a uma corrente doteu porte. Misericórdia, Senhor! Rogo tua proteção.”Essas palavras serenaram o rio, detiveram as ondas.Sobreveio a bonança. A redenção aconteceu naembocadura. Dobrando os joelhos, Odisseuestendeu-lhe os braços. Pulsava-lhe o coração,salvo das ondas. A pele se levantava numa bolha só.

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Expelia mar pela boca e pelas narinas, sem fala,sem voz, sem perceber nada. Sobre-humanocansaço o dobrou. Ao voltar a respirar e recuperaros sentidos, desprende o manto que lhe dera adeusa e o lança nas águas que demandam o mar.A corrente o carregou e o depositou nas mãosdadivosas de Ino. Distanciando-se do rio, Odisseupenetrou num juncal e beijou o solo fecundo.Conturbado, o herói falou ao coração incansável:“E agora? O que me espera? Sofrimento ainda maior?Se passo aqui, na beira do rio, a noite incerta, temogeada severa ou até mesmo cerração fria. Estou tãofraco que qualquer contrariedade poderá tomar-mea última força. Funesto é o vento da madrugada quesopra do rio. Subo o barranco? Abrigo-me na sombrado bosque? Protegido por vegetação compacta, nãoserei molestado pelo frio. Com um sono tranqüilo,vencerei o cansaço. E se for atacado por feras? Farãode mim pasto?” Na dúvida, esta pareceu-lhe a melhoropção. Subiu ao bosque nas proximidades do rio.Delimitá-lo com os olhos, não foi difícil. Acomodou-se debaixo duma copa formada por duas árvores,um espinheiro e uma oliveira. Ventos úmidos não asvenciam, nem os raios do sol penetravam na folhagem.Resistiam até à chuva. Tal era o emaranhado de umacom a outra. Debaixo delas Odisseu se abrigou.Arranjou, às pressas, um leito espaçoso. Valeram-lhe as mãos, único instrumento. Tantas eram asfolhas que seriam suficientes para cobrir dois ou trêshomens, mesmo que o frio fosse intenso. Grande foia alegria do divino Odisseu ao ver preparado o leito.Estendido no centro, cobriu-se de folhas. Imaginemosum tição escondido em cinza escura, no extremodo campo, longe dos vizinhos, para conservar asemente do fogo, sem necessidade de procurá-lo emoutra parte. Odisseu escondeu-se debaixo das folhasassim. Atena borrifou-lhe sono nos olhos pararemover a canseira, cerradas as pálpebras.

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[1]. Argos Panoptes era um gigante de cem olhos designado por Hera para vigiar Io,amante de Zeus que ela transformara em novilha. Hermes, incumbido por Zeus alibertar Io, mata o gigante, daí a forma como aqui é chamado.(N.E.)[2]. Bastão de ouro, com duas serpentes defrontadas e enroscadas. Símbolo deHermes como emissário dos deuses, protetor dos rebanhos e condutor das almas.(N.E.)[3]. Órion, gigante filho de Posidon e Gaia, após várias peripécias tornou-se objetoda paixão de Aurora. Há vários versos sobre o mito. Segundo um deles, Ártemis – adeusa virgem e caçadora – pôs fim à felicidade de Órion e Aurora, matando-o, poisoutrora ele tentara estuprá-la. (N.E.)[4]. Um dos rios do inferno. Sua corrente tenebrosa ameaça aqueles que violamjuramentos. (N.E.)[5]. Segundo a concepção grega, tudo no universo era divino, sagrado; não se trataaqui de chamar Odisseu de deus. (N.E.)[6]. Posidon quer a desgraça de Odisseu pois este derrota um de seus filhos,Polifemo (Canto IX). (N.E.)[7]. Euro, Noto, Zéfiro e Bóreas: divindades identificadas a ventos; violentos esuscetíveis. (N.E.)[8]. Patrônimo, indicação de que se trata do (ou de um) filho de Peleu. Cronidasignifica “filho de Cronos”, e assim por diante. (N.E.)[9]. Um dos quatro ramos daquilo que – assim como os argivos, nativos de Argos –,posteriormente, os romanos vieram a chamar de povo grego; gregos. (N.E.)

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Canto 6

Tranqüilo dormia o divino e sofrido Odisseu aí,vencido pelo sono, pelo cansaço. Mas Atenaprocurou a populosa cidade dos feáceos, habitantes,em outros tempos, da Hipéria dos largos tabladosde dança, vizinhos dos ciclopes sobre-humanos,depredadores, dotados de força descomunal.Nausítoo os persuadira a migrarem e os assentaraem Esquéria, longe de povos industriosos. Cercadaa cidade com uma muralha, pôs-se a construir casas,levantar templos e dividir o solo. Dominado pelamorte, já há tempos partira para o Hades. Alcínoo,de saber divino, estava no trono. A Deusados Olhos de Coruja dirigiu-se ao palácio do reipara preparar o regresso do persistente Odisseu.Seus passos a levaram ao quarto de Nausícaa,uma jovem, filha de Alcínoo, que na beleza e no portecompetia com deusas. Duas servas, em belezapremiadas pelas Graças, dormiam no mesmo quarto,junto às pilastras. A porta luzidia estava cerrada.Atena, leve como o sopro da brisa, aproximou-se doleito da jovem. A deusa lhe fala à cabeceira nafigura da filha de Dimanto, um nauta. Tinham amesma idade e eram muito amigas. Assumindo oaspecto dela fala a Deusa: “Nausícaa, não me digasque nasceste preguiçosa. Largaste descuidados teusbelos vestidos. Teu casamento não está próximo?É imprescindível que apareças bem vestida. Importaque se apresentem bem os que te levarem ao noivo.Conheces as línguas de tua gente. Não vais quererque falem mal de teu pai e de tua mãe. Ao raiardo dia iremos lavar roupa. O que te parece? Eu teajudo. Terminaremos rapidinho o serviço. Virgemcontinuarás por pouco tempo. Pretendentes não te

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faltam. Os rapazes mais distintos da nobreza queremcasar contigo, pertences à família mais ilustre.Não há tempo a perder. Convém que peças a teu paicarruagem e mulas. Preparada a condução, mandacarregar cintos, vestidos, cobertas. Não aconselhoque vás a pé. De carruagem é mais distinto, alémdo mais, os lavadouros ficam longe.” Dito isso,a vigilante Atena subiu ao Olimpo, onde, como ésabido, reinam imperiosos os deuses, nãomolestados por ventos, nem por tempestades,nem pelo frio do inverno. O Olimpo penetra noÉter acima das nuvens. Lá a luz se difundeclara. Lá os bem-aventurados folgam o dia todo.Instruída a jovem, esse foi o destino da Corujosa.

Apareceu a Aurora, assentada em trono brilhantee despertou a bem vestida Nausícaa. Alertada pelosonho, ela atravessou o palácio para advertir os quea geraram, o pai e a mãe. Nenhum dos dois tinhasaído. A mãe, com duas escravas, se aquecia juntoao fogão. Fiava fios purpúreos. Nausícaa encontrouo pai na soleira. Ele se dirigia ao conselho dospríncipes. Os nobres aguardavam o rei. Nausícaaaproximou-se do rei com estas palavras: “Paizinhoquerido, estou aqui para te pedir um carro. Meagradaria um que fosse alto e bom de rodas. Queroir ao rio para lavar roupa, providência que já deviater sido tomada há muito. Isso interessa também a ti.Esperam que te mostres de roupa limpa. E nãoesqueças teus cinco filhos. Dois estão casados,mas os outros três, garotos robustos, ainda dependemdos nossos cuidados. Quando saem para dançar,querem roupa lavada. Penso em tudo isso.” Com essecircunlóquio, evitou, constrangida, falar de noivadoao pai, mas ele percebeu o motivo: “Não te recusomulas, minha filha, nem nada do que me pedes.Podes ir. Meus criados providenciarão carro alto,de boas rodas, além disso, coberto.”A promessa se converteu imediatamente em ordem.

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Os criados se ativeram às determinações.

Preparado o carro solicitado e atreladas as mulas,a jovem trouxe de seu quarto vestidos magníficose os acomodou na carruagem como convinha. A mãepreparara um cesto de guloseimas, toda sorte deiguarias, petiscos, vinho num odre de pele decabra. Nausícaa tomou assento no carro. Ela aindarecebeu das mãos da mãe óleo fragrante numfrasco de ouro para as unções dela e das outras.As rédeas luziam em suas mãos. A filha do reifustigou os animais. O carro arrancou ruidoso.Os cascos se moviam velozes, conduzindo roupae princesa, acompanhada de um séqüito fiel.Quando alcançaram as límpidas correntes do rio,alimentado por fontes antigas, as mais resistentesmanchas se rendiam à pureza do fluir cristalino –,as criadas desatrelaram as mulas do carro e astocaram para a margem do rio revolto para sealimentarem de apetitosa pastagem. Tiraram aroupa do carro e a trouxeram à sombra prolongadana água. Pisaram habilidosas os panos, rivalizavamna destreza. Terminado o trabalho, removidastodas as nódoas, estenderam as peças ao longoda praia sobre seixos lavados pelas ondas do mar.Vem, então, o banho e o óleo que embeleza todas.Não faltou o lanche degustado à beira do rioenquanto os panos secavam aos raios do sol.Alimentadas as escravas e a princesa,desvendam a cabeça para se divertirem coma bola. Os alvos braços de Nausícaa presidema dança. Visualizem Ártemis a vagar pelosmontes nos cimos do Taígeto ou no Erimantoao encalço de javalis ou de cervos velozes,folguedo acompanhado de Ninfas agrestes aserviço de Zeus Porta-Escudo para júbilo de Leto;sobranceira balouça a cabeça da virgem, em muitoa mais bela entre todas as belas: eis o retrato deNausícaa no festival das beldades. À hora de

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voltar, Nausícaa deu ordens para atrelaremas mulas e dobrar cuidadosamente os tecidos.

Os sábios olhos de Atena fixaram-se no plano queideara: acordar Odisseu para ver a bela jovem quedeveria conduzi-lo à cidade. A bola, arremessadapela princesa a uma das servas, errou o alvo e foiarrastada pela corrente ao fundo do rio. Os gritosagudos despertaram Odisseu. Sentado no leito,revolveu conjeturas no peito: “Que rumo tomar?Em terras de que gente me encontro agora? Sãoagressivos? Hospitaleiros? Selvagens? Têm leis?Sentimentos piedosos elevam-lhes a mente?Soam aos meus ouvidos vozes femininas. SãoNinfas? Vivem nos cimos dos montes, nas fontesdos rios, em prados verdejantes? Espero estarpróximo de gente com fala humana. Coragem!Preciso conferi-lo com meus próprios olhos.”Pensando assim, Odisseu tratou de sair do bosque.Ergueu o braço robusto, quebrou um galho dasárvores compactas para esconder o membro viril.Avançou como um leão das montanhas, contra achuva e contra o vento. Ciente da força, cintilam-lheos olhos, no rastro de bois e de ovelhas, de corçasem cursos campestres, no ímpeto feroz da fome econtra pacíficos rebanhos em domésticos cercados.Sem roupa, carente de tudo, apareceu assim Odisseuaos espantados olhos femininos emoldurados detranças. O corpo castigado pela salsugem espantou asmoças. Corriam de cá para lá em busca de abrigo,menos a filha de Alcínoo. Nausícaa não se moveu.Atena lhe infundia coragem, removendo o tremordas pernas. A princesa enfrentou-o de pé. VacilouOdisseu. Cairia diante da formosura, rogaria dejoelhos? Suplicaria de longe, afetuoso, na esperançade lhe alcançar roupa e lhe indicar o caminho para acidade? Perturbado por pensamentos contrários,pareceu-lhe melhor dirigir-se à jovem submisso, adistância. A desconhecida poderia resistir ofendida.

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Proferiu estas palavras afetuosas: “Prostro-me a teuspés, Senhora, sem saber se és deusa ou mortal. Se ésuma das que dominam o céu imenso, quero crerque sejas Ártemis, filha de Zeus, pois te assemelhasa ela no porte, na postura e na beleza. Se me disseresque pertences aos habitantes da terra, declaro trêsvezes venturosos teu pai, tua nobre mãe e trêsvezes venturosos teus irmãos. Tua presença deveinfundir júbilo constante em seus corações ao veremteus braços se moverem nas evoluções da dança.Mais que o de todos deverá pulsar o coração daqueleque tiver a ventura de conduzir-te ao lar, rica de dotesnupciais. De homens e mulheres que vi, não lembroninguém que pudesse igualar-se a ti. Tens em mim umdevoto. Vi em Delos, junto ao altar de Apolo, erguer-se uma palmeirinha. Eu não estava só. Fui até lácom numerosa multidão, uma viagem que maistarde me causou aflições. Eu a mirava e admirava,o coração batia forte. Nunca a terra tinha geradorebento igual. Só tu me inspiras devoção semelhanteàquela. Quero envolver-te os joelhos e recuotemeroso, atormentado por dor recente. Só ontem,depois de vinte dias, escapei do mar. Durante essetempo, evadido de Ogígia, fui açoitado por ondas etempestades arrasadoras. Uma divindade largou-meaqui. Para que sofra ainda mais? Quando isso vaiacabar, não sei. Lá em cima, decerto, os deuses mepreparam outros males. Imploro, Senhora, ajuda-me.Sofri muito. És a primeira pessoa que encontro. Dosdaqui não conheço ninguém. Não vi povoado nemterritório. Poderias dizer-me onde fica a cidade? Mearranjas um pano que me cubra, um saco qualquer?Os deuses te concedam tudo o que desejas: marido,casa, tranqüilidade doméstica, conforto. Podesimaginar coisa melhor: marido e mulher em vidaharmoniosa no lar, obra de seus esforços? Afelicidade conjugal causa inveja aos inimigos. Masjubilam os amigos, jubilam os dois, mais queninguém.” Com um alvo movimento de braços,

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respondeu-lhe ela: “Percebo delicadeza no quedizes. Zeus, Senhor do Olimpo, retribui abons e maus, conforme sua soberana vontade.Não suportas mais do que ele reservou para ti.Visto que chegaste à nossa cidade, terás vestese tudo o que te for necessário. Do que suplicas,não sentirás falta de nada. Eu te mostrarei nossacidade e te falarei sobre o meu povo. Estás entrefeáceos. Feácea é esta cidade, feácea é esta terra.Falas com a filha do rei. O governo está em suaspoderosas mãos.” Voltando-se a suas escravas,Nausícaa falou com autoridade: “Comportem-se!A visão de um homem as assusta? Vocês agemcomo se ele fosse mal-intencionado. Não viverápor muito tempo quem se aproxima da nossaterra com maus propósitos. Saibam os mortaisque estamos sob a proteção dos que não morrem.Vivemos isolados, cercados por ondas encapeladas.Somos os derradeiros, vizinhos próximos não temos.Este sofredor que nos visita é um desgarrado.Temos o dever de acolhê-lo. Errantes e pobres sãoenviados de Zeus. Oferecemos com gosto o poucoque temos. Mãos à obra, minhas servas! Venha pãoe vinho! Dêem-lhe banho no rio em lugar abrigado.”Esta foi a ordem. Instruções corriam de uma a outra.Conduziram Odisseu a um sítio protegido do vento,como lhes ordenara a princesa, a filha de Alcínoo.Alcançaram-lhe as roupas: uma túnica e um manto.Veio a jarra de ouro, óleo era o conteúdo. Todas asprovidências tomadas, convidaram-no a entrar norio. Odisseu falou, cheio de pudores, às escravas:“Fiquem aqui mesmo, eu próprio quero tirar asalsugem dos ombros e passar óleo em meu corpo.Minha pele já há muito dispensa cuidados. Nãoquero banhar-me na presença de vocês. O pudor meimpede de exibir minha nudez a jovens delicadas.”Afastando-se, comunicaram o pedido à princesa.O rio recebeu o corpo do herói. Pôs-se a removera crosta que lhe cobria os ombros e as costas. A

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corrente limpou-o da pasta salgada. O mar castigara-lhe o cabelo. Banhado, cobriu a pele rejuvenescidacom as vestes, obséquio da bela virgem. Entrouem ação Palas Atena. A arte divina robusteceu-lheos membros. Os cabelos encaracolados pareciamjacintos. Tomemos um escultor, um que, discípulo deHefesto[1] e Atena, produz estátua de prata revestidade ouro. Instruído nos segredos da arte saem-lhedas mãos obras maravilhosas. Com a mesma seduçãorevestiu a Deusa a cabeça e os ombros de Odisseu.Deslumbrante, caminhou até à praia, sentou-se.Resplandecia belo, sedutor. Nausícaa estava pasma.Animou-se a falar, por fim, a suas criadas:“Prestem atenção ao que lhes digo: reparem nestehomem. Nenhum dos deuses olímpicos teria razõespara opor-se à vinda dele à terra dos feáceos. Nãopercebi nada de excepcional nele antes. Mas agorame parece divino, em nada inferior a imortais. Sonhocom um homem assim para esposo. O que poderia eufazer para ele permanecer conosco? Quero que gostedaqui. Depressa, ele deverá provar do nosso pão,do nosso vinho.” As determinações da princesa foramprontamente executadas. A refeição de Odisseu veioacompanhada de vinho. Odisseu, o sofrido, maceradopor severas privações, comeu e bebeu. Novos planosocupavam a mente de Nausícaa enquanto dobravaa roupa para guardá-la no carro. Atreladas as mulas,ela ocupou o assento que lhe estava reservado. Faloua Odisseu que, a mando dela, se aproximara:“Convém retornar. Eu te indicarei o caminho aopalácio. Lá conhecerás nossa gente, o que de melhor anobreza tem a mostrar. Deves compreender que essaé a medida mais sensata. Enquanto percorrermosos campos e as plantações, recomendo que me sigascom minhas escravas. Apressa o passo no ritmo dasmulas. É só acompanhar minha condução. Láchegados, verás alta coroa de torres. O porto estende-se de um lado a outro. O acesso é estreito. Naussimétricas assinalam o caminho. Um ancoradouro

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foi determinado para cada uma delas. A praça,firmada por blocos de pedra fincadas no solo, abraçao belo templo de Posidon. Ela fica um pouco maisadiante. Lá se preparam todos os apetrechos das naus:cordas, velame... Lá se limpam os lemes. Arcos eflechas não entusiasmam os feáceos. Ocupam-secom mastros, remos e navios bojudos, velozes.Enfrentam festivos as ondas do mar pardacento.Evitemos comentários maldosos. Não vá alguémcensurar-me. Maldizentes circulam por toda parte.Pessoas mal-intencionadas poderiam comentar:‘Quem é o fortão atrás de Nausícaa? Onde encontrouela o cara? O escolhido é esse? A princesa tirou essevagabundo de algum navio? Deve ter vindo de longe,nas vizinhanças desta ilha não mora ninguém. Detanto rezar, não me digam que se trata de um deuslá de cima para ficar juntinho dela. Ela poderiadesejar coisa melhor? Queria um homem de fora. Aosrapazes daqui, vira a cara. Propostas não lhe faltam.Quando os feáceos vêm com agrados, até aos ricosela torce o nariz.’ Evitemos mexericos. Eu morreriade vergonha. Não sou diferente: desagradam-me asque não sabem comportar-se, metidas com homens,escondidas dos pais, antes de cerimônia decente.Já que não és daqui, presta atenção ao que vais ouvir.Esperas, sem dúvida, que meu pai te ajude a voltar.Queres navio, tripulação. Perto da estrada hás de ver umbosque de Atena, repousante. Lá corre uma fontenum prado. Dono do lugar é meu pai. A terra é boa,produz de tudo. A um grito de lá fica a cidade. Terecomendo que fiques lá o tempo necessáriopara eu e as criadas voltarmos à casa de meu pai.Quando nos julgares chegadas ao destino, entra nacidade e pergunta pela residência do rei, o paláciode Alcínoo, de quem me orgulho ser filha. Nãovais te perder. Até um menino saberá indicar-te ocaminho. Entre os feáceos não existe nada tãoimponente, nada é comparável à residência real deAlcínoo. Atingindo o palácio, entra, atravessa o

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salão. Dirige-te primeiro à minha mãe. Ela deveráestar sentada contra a coluna junto à lareira para fiarà luz do fogo, espetáculo de encher os olhos. Atrásdela poderás ver o trabalho das criadas. Encostadoà mesma coluna encontra-se a poltrona de meu pai.Acomodado nela com imponência divina deverá estarele a provar um cálice de vinho. Deverás passar por elee abraçar suplicante os joelhos de minha mãe a fimde que te seja concedido ver o alegre dia do regressomesmo que vivas longe. Se ela te der acolhida cordial,haverá muita probabilidade de veres teus queridos, tuacasa solidamente construída, tua pátria, tua terra.”

Com essas instruções, o chicote da princesa zuniu nolombo das mulas. Distanciaram-se das margens. Ocarro movia-se ao ritmo robusto dos cascos. Nausícaaconduzia a carruagem atenta aos que a seguiam a pé,as escravas e Odisseu. Manejava com inteligência ochicote. O sol se pôs ao chegaram ao renomado bosquede Atena, sítio sagrado. Detendo os passos, o divinoOdisseu dirigiu uma prece à filha do poderoso Zeus:“Ouve-me, imbatível rebento do Zeus Porta-Escudo,já que não deste atenção às minhas súplicas ao eu seraçoitado pela conhecida inclemência do Abala-Terra.Concede-me o favor dos feáceos, amistosa acolhida.”Palas Atena acolheu a súplica de Odisseu, emboranão se mostrasse a ele em pessoa, por temer a reaçãodo tio paterno dela[2], que nutria raiva implacávelcontra o herói, antes de ele alcançar a costa.

[1]. Hefesto é a divindade artesã do Olimpo, o ferreiro e artista. Teria nascido deHera apenas de modo que Zeus, enciumado, pegou o filho da mulher e jogou-olonge, aleijando-o; daí o fato de por vezes ser chamado de Coxo. (N.E.)[2]. Posidon é irmão de Zeus, e este, por sua vez, pai de Atena, portanto Posidon – oAbala-Terra – é o tio em questão. (N.E.)

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Canto 7

Enquanto o divino Odisseu, o sofredor, suplicava,a força das mulas levou a jovem ao palácio. Tendochegado à louvada residência do pai, deteve osanimais no portal. Aproximaram-se os irmãos, noporte comparáveis aos deuses. Desatrelaram asmulas e levaram a roupa para dentro. Nausícaadirigiu-se a seus aposentos. Acendeu-lhe o lumeuma anciã, a camareira Eurimedusa. Trazida deApira em navios simétricos, fora oferecida aAlcínoo, rei de todos os feáceos, cujas ordenssoavam como divinas aos ouvidos do povo. Essaserviçal servia Nausícaa, a jovem dos alvosbraços. Iluminada a sala, preparou a ceia. Odisseurumou para a cidade. Para guardá-lo Palas Atenao envolveu em névoa compacta. Ela temia quealguém dos feáceos o abordasse com palavrasofensivas ou lhe indagasse a origem. Ao alcançaras cercanias da cidade, apareceram-lhe os olhosprovidentes de Palas Atena. A deusa assumira aforma de uma jovem que carregava um jarro. Aointerromper a marcha, perguntou-lhe Odisseu:“Poderias conduzir-me ao palácio de Alcínoo,o rei de tua gente? Já sofri muito, cheguei delonge. Sem conhecer pessoa, rogo proteção.Todos me são estranhos, tanto os que moramna cidade quanto os que labutam no campo.”A resposta de Atena não demorou: “Voumostrar-te a casa que procuras. Meu pai, queprezo muito, mora bem perto. Segue-me confiante.Eu te indicarei o caminho. Baixa a cabeça e nãofales a ninguém. Os feáceos não costumamtratar com estrangeiros, nem se mostram receptivosquando alguém chega de outra parte. Com naus

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bojudas vencem as distâncias no mar profundo,habilidade que lhes vem do Abala-Terra. Os barcosparecem alados. Voam como os pensamentos.”Com essas recomendações, Atena encetou a marcha.Odisseu manteve-se firme nas pegadas da deusa.Os renomados navegadores não o perceberamatravessar a cidade. Atena, divindade severa, nãoo consentiu. Ela o queria de coração. Envolveu-oem neblina densa. Odisseu viu portos e barcoscéleres. De espantar! Viu praças onde se reuniamos heróis. De espanto em espanto observoumuralhas imponentes, solidamente alicerçadas.Seus passos se detiveram diante do muito faladopalácio. Quem aí quebrou o silêncio foi Atena:“Meu Senhor, a casa que querias ver é esta.Encontrarás inúmeros reis, protegidos de Zeus,reunidos em torno da mesa. Não há razão paraentrares de coração abalado. Os decididos saembem em todas as empresas, ainda que venham delonge. Ao entrares na sala, encontrarás a rainha.Guarda o nome, ela se chama Arete, e é dalinhagem de Alcínoo. Posidon, o Abala-Terra,gerou primeiro Nausítoo e Peribéia, sublimeem reuniões femininas. É, de longe, a mais bemdotada das filhas de Eurimedonte, o homem dosgrandes projetos, rei outrora entre altivos gigantes,mas ele levou seu povo e a si mesmo à destruição.Unindo-se a Peribéia, Posidon gerou Nausítoo,Este foi o pai de Rexenor e de Alcínoo. Rexenornão teve filho homem, morreu recém-casado,fulminado por uma das prateadas flechas deApolo. Deixou no palácio uma única filha, Arete.Alcínoo tomou-a por mulher e a honrou comonunca ninguém honrou outra na face da terra, dequantas sob o governo de homens administrama casa. Afetuosamente respeitada por seu esposo,ela vive com seus filhos e com Alcínoo. O povolhe tributa homenagem e a aclama com palavrasentusiásticas quando aparece na cidade.

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Conhecida pelo seu bom senso, concilia mulheres,conhecidas suas. Resolve até conflitos de homens.Se conquistares o coração da rainha, cresce aesperança de reveres os que amas, tua casa e aterra em que viste a luz do dia.” Falando assim,sumiram os olhos reflexivos de Atena. Pairandosobre o mar, deixou Esquéria em direção aMaratona e aos largos caminhos de Atenas,onde se ergue o fortificado palácio de Erecteu.Odisseu prosseguiu a marcha rumo ao palácio.Batia-lhe o coração quando pousou o pé nasoleira de bronze. O brilho em torno da casa deAlcínoo lembrava raios do sol e da lua. Bronzerevestia as paredes de ponta a ponta. No altocorria um friso de pedras azuladas. Portasguarnecidas de ouro cerravam o palácio. Colunasde prata em piso de bronze sustentavama arquitrave prateada. De ouro era a cornija.A porta era ladeada por cachorros feitos de ouro– obra de Hefesto –, vigias do palácio do afávelAlcínoo. O artista os produzira para duraremsempre sem serem molestados pelo peso dos anos.Ao longo da parede enfileiravam-se poltronas,de uma extremidade a outra, cobertas de tapetesfiníssimos, obra incomparável de mãos femininas.Ali o rei se reunia com a nobreza feácea, oferecia-lhes comida e bebida o ano inteiro. Áureasestátuas de jovens ocupavam os altares. Eretos,empunhavam tochas brilhantes, iluminavama noite dos convidados aos banquetes palacianos.O palácio contava com o serviço de cinqüentaescravas. Umas trituravam espigas douradas,outras produziam os panos. Moviam-se compactascomo a folhagem dos choupos. Pingavam gotasde óleo do linho cuidadosamente tecido. Enquantoos feáceos percorriam habilidosos os mares,embarcados em naus velozes, as mulheres navegamcom perícia pela tecedura, assistidas por Palas,de quem vêm projetos brilhantes e obras admiráveis.

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Fora do pátio, abre-se um vasto jardim, de quatrojeiras, bem perto dos portões, cercado de sebes.Cultivam-se nele, em abundância, árvores viçosas:pereiras, romeiras, macieiras. Os frutos esplendem.Doces arredondam-se os figos, olivas verdejam.Aí as frutas jamais escasseiam, abundam tanto noinverno como na estação quente, sobejam ao longodo ano. Ao sopro do zéfiro, crescem, maduram.Avolumam-se peras e peras, maçãs e mais maçãs.Uvas vão, uvas vêm; fenecem figos, figos fulguram.Raízes enriquecem a planície. Numa extremidade,abundantes secam os bagos suculentos, ao brilho dosol; na outra segue a colheita, perto escorre o sucoao impacto dos pés. Mais adiante cepas encetamrebentos, a espaços uvas negrejam. Junto às últimascarreiras verdejam canteiros com toda sorte deverduras, o ano inteiro. Nas imediações borbulhamduas fontes, uma irriga a horta, a outra, passandopor baixo do pátio, atinge o imponente palácio.Desta se abastece a cidade. Quanto a dádivasdivinas, Alcínoo não tem queixas. O espantoimobilizou o paciente e divino Odisseu.Despertando da fascinação do espetáculo, o heróitranspôs o vestíbulo e entrou no palácio nomomento em que os dirigentes e conselheirosfaziam libações a Hermes, o luminoso. Eraa última cerimônia do dia antes do repousonoturno. Odisseu, ainda protegido pela névoade Atena, atravessou a sala imperturbável paraalcançar Arete, acompanhada de seu esposo.Quando Odisseu envolveu os joelhos da rainha,desfez-se a nuvem, proteção divina. O silênciofoi geral. Havia um estranho no palácio parasurpresa de todos. Suplicou Odisseu: “Filha dosobre-humano Rexenor, digníssima Arete, sofrimuito. A teus pés, apresento-me a teu esposo e atodos os convivas. Que os deuses vos sejampropícios! Desejo que vossos bens e as dádivasdo povo enriqueçam vossos filhos. Rogo meios

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para voltar, o mais depressa possível. Há quantotempo estou longe dos meus? Não agüento mais.”Com essas palavras sentou-se nas cinzas junto àlareira. Todos calados. Ninguém quebrou o silêncio.Depois de muito tempo, ouviu-se a voz de Equeneu,avançado em anos, o mais antigo dos feáceos,versado em mitos, o legado antigo lhe era familiar.Como se discursasse na assembléia, declarou:“Alcínoo, não considero decente admitir que umestrangeiro permaneça sentado no chão, na cinza.Os teus aguardam calados tua orientação. Anima-te!Levanta o estrangeiro. Oferece-lhe uma poltronaornada de prata. Que teus arautos lhe preparemvinho! É hora de libar ao Zeus fulminador, protetorde todos os que respeitosos rogam abrigo.Por que a responsável não lhe prepara já a mesa?”

O rei, ao perceber a força dessas palavras,estendeu a mão ao Odisseu das rápidas decisões.Erguendo-o da cinza, dirigiu-o a um assento bempróximo de si. Ordenou que Laodamante, guapofilho seu, lhe cedesse esse lugar de alta distinção.Apresentou-se uma donzela com água lustralnuma jarra de ouro para a purificação ritual dasmãos em bacia de prata. Veio a mesa polida. Aserviçal bem orientada apresentou-lhe variedadede pães e de seletas iguarias, o que havia de melhor.O experimentado Odisseu serviu-se de tudo. Comautoridade real, dirigiu-se Alcínoo ao arauto:“Pontônoo, prepara vinho e o oferece a todos.Chegou o momento de homenagearmos Zeusfulminador, protetor dos que rogam abrigo.” A essaordem, Pontônoo preparou um jarro de vinho,uma delícia. Servidos todos, começou a cerimônia.Feita a libação e provado o vinho ao gosto de cadaum, o rei proferiu estas palavras: “Meus carosguias e conselheiros! Quero transmitir-vos decoração a coração o que me rola no peito. Já é tarde.Cada um irá à sua própria residência. Convoco os

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anciãos para amanhã de manhã. Conto com todospara recebermos o estrangeiro com sacrifícios aosimortais e para deliberarmos sobre seu regresso.Quero que meu convidado chegue à sua terra semcontratempos com escolta feácea. Desejo-lhe voltarápida e prazerosa, ainda que viva distante. Queroevitar quaisquer dissabores, a mais leve sombra demal no caminho à terra em que nasceu. Lá eleprovará o que o destino, através das sombriasfiandeiras, lhe proporcionou. Suponhamosque ele seja um dos imortais, que proceda lá docéu, nesse caso, diverso é o propósito divino.Deuses costumam visitar-nos declaradamente,quando lhes oferecemos ricas hecatombes.Celebram conosco. Se alguém de nós osencontra, só, no caminho, eles não se ocultam.Somos vizinhos deles, como também os ciclopese a rústica raça dos gigantes.” Declarou-lheo atilado Odisseu: “Alcínoo, não aflijas comdúvidas tuas entranhas. Não posso vangloriar-mede semelhanças com imortais assentados nopalácio celestial. Meu corpo e meu aspecto nãosão celestes. Pertenço a frágeis, a mortais. Iguaisa mim conheceis muitos. Arrasto-me em miséria.Pertenço aos que sofrem. Sou homem. Desfiariamales, se vos contasse tudo o que o céu me fezpadecer. Para quê? Deixai-me comer. Esqueçoinfortúnios. Tenho fome de cão. Minha barrigaé insaciável. Requer minha atenção mesmoquando exausto e atribulado. Não posso negar,aflições me devastam o peito, mas meu ventre memanda comer e beber. Ele apaga o que trago namemória. Esqueço o que sofri. Tenho que forrar oestômago. Por mim, partiria à primeira luz do dia.Não agüento mais. Cansei de sofrer. Quero minhaterra. Depois de ver minhas propriedades, meusescravos e minha casa, a vida que se vá.” Aspalavras do herói provocaram concordância total.Que partisse! O que falara tinha sentido. Findas

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as libações, provado o vinho ao gosto de cada um,retiraram-se para as suas próprias residências.

O divino Odisseu permaneceu no palácio.Arete e Alcínoo, com aspecto de deus, estavamcom ele. As criadas estavam atarefadas em tirara mesa. Arete, a rainha dos alvos braços, não seconteve. Ela reparou a rica vestimenta de Odisseu,a túnica e o manto. Era trabalho dela e de suasescravas. As palavras dela romperam aladaso silêncio: “Meu caro hóspede, deves-me, comcerteza, explicações. Quem é tua gente? Quem tedeu esta roupa? Ouvi-te falar que chegaste até aqui,perdido no mar.” Contestou-lhe Odisseu, o grandesofredor: “Excelentíssima rainha, difícil seriaexpor-te detalhadamente tudo. Os deuses celestes,repito, fizeram-me sofrer muito. Do que desejassaber, permite-me ficar no essencial. Há no maruma ilha remota, Ogígia. Lá reina Calipso, filhaardilosa de Atlas, conhecida pelas tranças, é muitoperigosa. Vive sozinha, sem companhia divina nemhumana. Alguém dos celestes fez-me companheirodela. Um raio de Zeus partiu minha nau ao meio,quando eu navegava perdido no mar cor de vinho.Todos os meus companheiros sumiram. Por novedias arrastaram-me as ondas, agarrado à quilha danave simétrica. No décimo dia, a noite era escura,cheguei – os deuses me ajudaram – a Ogígia, moradade Calipso, deusa tenebrosa, sedutora. Recebeu-mecom agrados, tratou-me com ternura, alimentou-mecom promessas de imortalidade e juventudeeternas. No meu peito o coração resistia. Vivi comoprisioneiro por sete longos anos. Eu molhava comlágrimas as vestes imortais que ela me oferecia. Masna virada do oitavo ano, ela finalmente consentiuna minha partida, se por ordem de Zeus ou por umarepentina mudança de sentimentos, eu não sei.Embarcando numa jangada, eu me despedi dela. Elanão quis que eu sentisse falta de alimento, de bebida

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nem de roupa imortal. Um vento sem riscos coroouas dádivas. Minha viagem pelo mar prolongou-se pordezoito dias. No décimo oitavo dia, vi as montanhassombrias desta vossa terra. Saltou de alegria este meucoração sem sorte. Muitas penas ainda me estavamreservadas, desencadeadas por Posidon. Atirouventos contra mim para meus tormentos. Comonarrar a fúria das águas? Eu gemia de medo. Asondas me arrancaram da jangada. Pedaços voaram,carregados pela força da tempestade. Venci aintempérie a nado até alcançar a costa desta terra,empurrado pela força das ondas bravias. A procelaameaçou-me até ao fim. Eu poderia ter sido jogadocontra as rochas do litoral inclemente. Resisti com aforça dos braços. Cheguei à embocadura de um rio.Não poderia esperar nada de melhor, livre, enfim, deparedes rochosas e ventanias. Exausto desabei naareia. Quando recuperei os sentidos, a terra se cobriacom o imperecível manto da noite. Deixando o rio denascentes celestes, arrastei-me ao bosque. Cobertode folhas, um deus derramou sobre mim um sono semfronteiras. De coração aflito, adormeci na ramagem.Dormindo, varei a noite, a manhã e a metade do dia.O sol já se punha, quando o sono me deixou. FoiEntão que percebi os folguedos de tua filha e de tuascriadas. Ela se movia entre as demais com porte dedeusa. Pedi-lhe ajuda. Ela tomou a decisão adequada,o que é surpreendente. Moços desmiolados há muitos.Jamais encontrarias jovem que agisse com mais juízo.Ofereceu-me uma refeição regada a vinho. Propiciou-me um banho no rio e ofereceu-me esta roupa. Estaé a verdade. Tudo aconteceu como digo.” Tomandoa palavra, dirigiu-se a ele o próprio rei: “Meu caro,o procedimento da minha filha não foi correto. Elachegou em casa acompanhada das escravas e não tetrouxe consigo, embora lhe tivesses pedido ajuda.”A essa repreensão, reagiu cavalheirescamente Odisseu:“Majestade, a princesa não merece incriminação. Elarecomendou que eu a acompanhasse com as servas.

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A cautela foi minha. Eu temia que reprovassesminha presença no séqüito dela. Eu poderia provocarmelindres. Nós, terrestres, somos muito sensíveis.”O rei respondeu-lhe afetuosamente: “Caríssimo, sabeque meus sentimentos não se perturbam sem fortesmotivos. Ponderação é o melhor. Eu gostaria, porZeus Pai, por Atena, por Apolo, que alguém com tuasensibilidade, que é também a minha, escolhesseminha filha por esposa para ser meu genro. Eu te dariacasas, te daria propriedades, se tu resolvesses ficaraqui. Se, no entanto, decidires o contrário, nenhum dosfeáceos te deterá. Zeus não o aprovaria. Determinocom precisão teu retorno. Para te tranqüilizar, seráamanhã. Não quero que preocupações perturbemteu sono. Meus marinheiros te conduzirão por águascalmas. Voltarás à tua pátria, tua casa, o que maisprezas, mesmo que teus domínios fiquem além deEubéia, o território mais distante, segundo remeirosde minha confiança. Levaram Radamântis, desejosode ver Tício, filho de Gaia. Foram e voltaram numsó dia. Desembarcaram aqui, executada a tarefa, semnenhum sinal de cansaço. Na travessia, tu mesmovais experimentar a qualidade dos meus navios e ahabilidade dos meus remeiros.” A declaraçãodo rei alegrou o sofrido coração do divino Odisseu.O rei ouviu, então, estas palavras suplicantes:“Zeus Pai, rogo-te que se cumpra tudo o que Alcínoodisse. Grande seja o renome dele na superfíciedo solo fecundo e que eu, enfim, reveja minha terra!”

Enquanto os dois trocavam essas palavras, a rainhados alvos braços dava instruções às mulheres que aserviam: que lhe armassem o leito sob o pórtico comos melhores travesseiros, os de púrpura. Mandoutrazer tapetes e cobertores de lã para envolver ocorpo. Deixaram a sala empunhando tochas parailuminar o caminho. Preparado o leito aconchegante,aproximaram-se de Odisseu com palavras afáveis:“Preparado está o leito, senhor, para o repouso”.

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Depois de tantos trabalhos, grato lhe soou o convite.Repousa, enfim, de seus muitos sofrimentos o divinoOdisseu num leito confortável em sala ressonante.Recolhe-se Alcínoo aos seus aposentos no alto.A seu lado acomoda-se a senhora, esposa do rei.

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Canto 8

Quando a Aurora levantou os róseos dedos, a forçarestaurada de Alcínoo ergueu-o do leito. Ergueu-setambém banhado de divino esplendor o Arrasa-Cidades, Odisseu. Ambos foram à assembléia dosfeáceos. A autoridade de Alcínoo abria caminho aolongo das naus. Chegados à reunião, tomaram juntosassento em pedras polidas. Na forma de arauto dorei, Palas Atena percorria as ruas da cidade.Pensando nos planos para o regresso de Odisseu,dirigiu-se pessoalmente a cada um dos nobres:“Chefes e conselheiros feáceos, o rei vos convoca>para uma assembléia urgente. Como sabeis, às portasdo palácio do nosso sábio rei um estrangeiro bateuhá pouco. As agruras da viagem em nada lhe afetaramo brilho divino.” As palavras da deusa inflamaram oardor e o desejo de cada um. Lotou-se o espaço. Osconvocados tomaram assento. O porte do sábio filhode Laertes enchia de admiração olhares espantados.Cabeça e ombros esplendiam ao toque dos dedosgraciosos de Atena. Maior e mais robusto erguia-seentre todos o corpo de Odisseu. A imagem deledeveria impressionar todos os feáceos, admirado,respeitado, capaz de destacar-se em todas as provasa que os feáceos viessem a submetê-lo. Encontrando-se todos reunidos, Alcínoo dirigiu-lhes a palavra:“Caros feáceos, dirigentes e conselheiros do meureino, prestai atenção às minhas deliberações.Este estrangeiro, ainda não sei quem seja, eu nemsaberia informar donde veio, se do oriente ou doocidente, roga-me providências e garantias deregresso. Obedecendo a nossos costumes, pensoque devemos atendê-lo. De quantos me procuram,ninguém se cansa de esperar aflito garantia de

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auxílio. Vamos, lancemos uma nau negra ao divinomar salgado, nova e sem uso. Escolham-se dois emais cinqüenta entre o povo que, embora jovens, sedistingam na arte de navegar. Logo que tiverdesatado os remos quero-vos aqui. Preparada a nau,quero que vos ocupeis do banquete que oferecereia todos. Estas são minhas ordens aos jovens. Osdemais, os cetrados, quero que me acompanhemao palácio. Ofereçamos ao hóspede um banquete dereis. Não admito ‘não’. Demódoco nos deliciarácom voz divina, dom dos deuses. Os impulsosde seu coração determinarão a rota do canto.”

Dadas as ordens, ergueu-se o monarca para conduziro régio cortejo. Partiu o arauto em busca do divinocantor. Dirigiram-se às bordas do mar os cinqüentamais dois escolhidos, obedientes às ordens do rei.Chegados ao porto e ao mar, puseram-se a trabalhar.Arrastaram a nau para dentro das águas profundas.A alvura da vela, presa ao mastro, contrastou o negroda nau. Seguindo determinações precisas, prenderamos remos com tiras de couro. A alvura da vela fulgurouno mastro. Baixaram a âncora longe da praia etomaram o caminho que leva ao palácio de Alcínoo.As alas, os pátios, as salas abriam-se espaçosos àmultidão dos convivas. Idosos conviviam com jovens.Doze ovelhas sacrificou Alcínoo, além de oitosuínos de alvos dentes, mais dois bois, lerdos no passo.Aproximou-se o arauto acompanhado do cantoraplaudido. Enredos tétricos e triunfais infundia-lhe aMusa. Concedeu-lhe a doçura da voz em troca da luzdos olhos. Achando-se entre os convivas, Pontônooconduziu-o a uma poltrona cujos pregos argênteosluziam junto à grande coluna. Penduroua sonora lira num gancho sobre sua cabeça, onde ocantor podia alcançá-la com a mão. Ao seu ladoofereceu-lhe um vistoso cestinho de pão, acompanhadode uma jarra de vinho ao gosto do cantor. Os convivas

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serviram-se das iguarias oferecidas. Concluído olauto banquete, apreciado por todos, a Musa incitouo aedo a cantar os feitos dos heróis, narrativa cujaressonância vibra no imenso céu, o conflito em que seconfrontaram Odisseu e Aquiles. Desentenderam-secom palavras ásperas por ocasião de um memorávelbanquete dos deuses. O conflito dos mais destacadosentre os aqueus não desagradou Agamênon, o chefedas tropas, pois isso lhe tinha predito Febo Apoloao transpor a soleira do seu templo na sagrada Pito.Começaram aí as aflições que rolaram sobretroianos e dânaos por decreto do grande Zeus.Assim desenvolveu-se o canto do famoso aedo.Mas Odisseu tomou nas mãos robustas um amplopano de púrpura para esconder a cabeça e os traçosatraentes da face. Apresentar-se aos feáceos comos olhos úmidos de lágrimas? Constrangia-se.Silenciada a voz divina do aedo, enxugou o rostoe retirou o pano que lhe escondia as faces. Tomoua taça pelas duas alças para fazer oferendas aosdeuses. Mas ao recomeçar o canto por insistênciada nobreza feácea, reacenderam-se os gemidossob o pano que cobria a cabeça de Odisseu. O heróiconseguiu ocultar as lágrimas a todos, menos aAlcínoo, sentado a seu lado, pois o pranto o sacudiaforte. Falou o soberano aos destros remeiros:“Dirigentes e conselheiros feáceos, quero vossaatenção. Enquanto convivíamos, deliciou-nosa lira. Banquete e canto formam uma unidade.Convido-vos agora a participar de provas esportivas.Quero que o estrangeiro, quando reencontrar osseus, diga o quanto excedemos outros no pugilato,na luta, no salto e na corrida.” Com estas palavras,o rei deixou a mesa, os outros o seguiram. Oarauto pendurou a lira sonora no gancho, tomouo aedo pela mão e o conduziu para fora. Tomou ocaminho dos outros feáceos, pois todos estavaminteressados nas competições anunciadas.

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Dirigiram-se à praça, seguidos de compacta multidão,milhares. Jovens da nobreza preparavam-se paracompetir. Ergueu-se Acrôneo, Ocíalo e Elatreu,Nauteu, Primneu, Anquíalo e Eretmeu, Ponteu,Proreu, Toon, Anabesíneo e Anfíalo, filho dePolíneo, filho de Tectonídao, além de Euríalo,filho de Naubólides, Euríalo, o mais distintodos feáceos tanto na estatura quanto na feição,comparável a Ares[1], o matador, superado só porLaodamas. Ergueram-se três filhos do ilustreAlcínoo: Laodamas, Hálio e o divino Clitoneu.A prova de velocidade foi a primeira. Fixa-se-lhesdesde o princípio a meta do curso. Partem prontos,compactos os competidores no pó do percurso.Aclamam Clitôneo, de muitos o mais distinto. Quantono arado mulas superam em velocidade touros,tanto prima o herói entre os demais competidores.No penoso pugilato outros travam combate. Euríalofoi aí melhor entre os melhores. Sublime brilhano salto Amfíalo entre soltos saltantes. De Elatreué o trono no lance ligeiro do disco. Na ponta dopunho desponta Laodamas, um portento.Já brilhara o talento de todos no dileto deleite.Pronunciou-se Laodamas, distinto rebento do rei:“Não se constranja o estrangeiro de dizer em quejogos lampeja. Sabe saltar? Mau de corpo não é:garboso nas coxas, forte nas pernas, bravo nosbraços, possante no pescoço, perfeito no peito.Ainda na flor da idade, mas já roído de males.Males há muitos, mas mal algum supera os malesdo mar. Carcomem o homem, mesmo que forte.”Falou-lhe Euríalo, bravo no brado:“Laodamas, louvo-te as oportunas palavras.Arrasta o estranho às provas. Vai, fala forte!”Acossado por tão poderoso apoio, foi o atleta,pôs-se no centro e valente provocou Odisseu:“Queremos-te aqui, pai de outra gente, mostra oque sabes, se aprendeste algo. Forma de atletatens. Há glória maior para o vivente do que a

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obtida na agilidade dos pés ou na força do braço?Desce! Tenta! Varre amarguras do peito. Partirássem demora. A nau já está preparada. A postosjá se encontra a tripulação.” Respondeu-lheOdisseu com sábia ponderação: “Meu caroLaodamas, és rude. Insultas-me. Por quê? Meussofrimentos me afastam destes divertimentos. Enão é de agora. Afligem-me males antigos. Sofrimuito. Sentado aqui com vocês, só penso noregresso. O rei e todos os feáceos o sabem.” Aresposta, em tom de provocação, veio de Euríalo:“Escuta aqui, estrangeiro, parece que de jogos nãoentendes nada, embora cada povo tenha os seus. Aoque parece, não passas de um dono de navio, dessesque volta e meia aparecem por aqui. Teus remosse movimentam para comerciar. Carga, frete, lucro,teus interesses são esses. Não tens jeito de atleta.”Odisseu baixou a cabeça e falou atilado: “Não meagrada esse tom, meu rapaz. Falas atrevido. Peloque vejo, porte, inteligência, cortesia não sãoqualidades que os deuses ofereçam indistintamentea todos. Um discurso de forma divina pode provirde um homem de aspecto chinfrim. Os ouvintesacompanham com agrado seus pronunciamentos.Falando com recato, com brandura, brilha naassembléia. Anda pela cidade, admirado como umdeus. Outros, divinos na aparência, quando abrema boca, proferem palavras sem graça nenhuma. Tu,na aparência, és insuperável. Deus algum poderiater-te construído melhor, mas, no intelecto, deixasmuito a desejar. Disseste coisas inconvenientes, tuaspalavras me irritaram. Em exercícios atléticos nãosou incompetente, como acabas de afirmar. Ficasabendo que sou um dos primeiros. Minha força emeus braços me orgulham, mesmo nas terríveisprivações de agora. Padeci. Enfrentei inimigos,trabalhos, ondas. Mesmo em grande desvantagem,competirei. Tuas palavras mordentes me mandamagir.” Levantou-se e, mesmo vestido, agarrou um

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disco: grande, compacto, muito mais pesado doque os arremessados pelos outros atletas. Odisco saltou em giros da mão poderosa. A pedrazuniu. Espantados, abaixaram-se até ao chão osmestres dos longos remos, famosos no mar,assustados do lance que atingiu as marcas maisdistantes, metas fixadas por Palas Atena. Naforma de homem, falou soberana a Deusa: “Amigo,até um cego acharia, às apalpadelas, o buraco,distante das marcas mais avançadas. És oprimeiríssimo. Está decidido, o campeão és tu.Ninguém te supera.” Essa declaração alegrouo sofredor, o divino Odisseu. Entre tantoscompetidores encontrara um companheiro.Aliviado, dirigiu-se aos feáceos: “Rapazes,aproximem-se! Querem ver outro lance igualou um ainda mais forte que este? Se alguémtem coragem para competir comigo, venha!Experimentem! Quem me desafiou foram vocês.Boxe, pugilato, corrida, não importa. Enfrentoqualquer um, menos Laodamas. Este é meuhospedeiro. Com amigos não se compete. Sóum desmiolado chamaria ao combate quem ohospeda, ainda mais em território estranho.Poria tudo a perder. Quanto aos demais, não fujode ninguém, nem desprezo. Quero conhecer oadversário, olho no olho. Venha! Se é esportede macho, não me considero inferior em nenhum.Em manejo de arco, dos bons, sou entendido.Sou o primeiro dos seteiros a alvejar valentes nastropas inimigas, ainda que rodeado de atiradoresguapos, companheiros empenhados em derrubaradversários. Dos aqueus, só Filoctetes me superavana mestria do arco quando combatíamos em Tróia.Hoje em dia, mortal nenhum se atreva a competircomigo. Não conheço comedor de pão igual a mim.Não me refiro a gerações passadas. Não quero meigualar a Héracles nem a Eurito da Ecália. Essestinham a coragem de desafiar até imortais. Eurito

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pereceu prematuramente. Não chegou a conhecera velhice em seu palácio. Morreu abatido pelacólera de Apolo. Eurito o tinha desafiado. Noarremesso do dardo ninguém me supera. Os péssão meu único receio. Em velocidade, alguémpoderá vencer-me. Ondas e ondas me abateramseveras no mar. Anos arrastaram-se sem exercíciosno barco. Os idolatrados membros se afrouxaram.”As palavras de Odisseu fecharam a boca de todos.Só a voz de Alcínoo quebrou o silêncio: “Meu carohóspede, não penses que nos sentimos ofendidos.Queres mostrar as habilidades que te distinguem,contrariado, porque foste provocado por um dosnossos competidores. Pensas que alguém com umpingo de juízo na cabeça poderia negar teu valor?Vem cá! Guarda bem o que tenho a te dizer paraque possas transmiti-lo a heróis que freqüentam teupalácio quando estiveres à mesa com tua esposa efilhos, lembrado das excelências com que fomosdotados por Zeus e que cultivamos desde os temposde nossos pais. Não nos distinguimos no pugilato, masem velocidade e na condução de navios ninguémnos supera. Também prezamos banquetes, cítara edança, vestes vistosas, banho quente, cama macia.À obra, feáceos. Convoco os bailarinos, os melhores.Música! Que nosso hóspede possa contar aos seus,quando chegar em casa, o quanto sois melhores naarte de navegar, na agilidade dos pés, na dançae no canto. Que os doces dedos de Demódocoarranquem sons da lira já! Quero vê-la aqui!” O rei,ao dar as ordens, esplendia como um deus.

Levantou-se o arauto de um salto para procurar alira que fulgurava no palácio real. Ergueram-se novejuízes, eleitos entre o povo, para ordenar a preceitoo certame. Aplainaram o chão e abriram espaço paraa competição. Aproximou-se o arauto e depositou oinstrumento sonoro nas mãos de Demódoco. O aedo

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dirigiu-se ao centro. Bailarinos, jovens instruídos naarte, o contornavam. O solo ressoou divino ao ritmo dospés. Compassos e passos tocaram o peito encantadode Odisseu. A lira na mão do cantor acompanhoua saga dos amores de Ares com a formosa Afrodite.“O amante procurou a companheira, às escondidas,na própria casa de Hefesto. O sedutor veio com ricospresentes macular o leito do Ferreiro, o marido.Veio a denúncia. Hélio surpreendera os pombinhosno ninho. A notícia bateu como um soco no peitode Hefesto. Correu, arrasado, para a ferraria. Firmouno cepo a potente bigorna. Malhou infraturáveiscadeias. Prenderia os insolentes com argolas de ferro.Louco de ciúme, forjou uma armadilha para Ares.Entrou no quarto, lugar em que se encontrava a camacobiçada, cercou-a inteira de laços. Laços pendiamtambém de cima, do teto, moventes. Mexiam-se comofios de uma teia de aranha, finíssimos, invisíveis.Nem um bem-aventurado, um deus, os perceberia, talera o dolo. Preparado ardilosamente o leito, Hefestopretextou uma viagem a Lemnos, fortaleza soberba,o mais amado de todos os seus sítios terrestres.Ares não montava guarda de cego. Mal percebeuHefesto afastar-se dos seus aposentos, pôs-se acaminho da casa do renomado artista, ardendo emdesejo. A coroada cabeça de Citeréia[2] o inflamava.Ela acabava de voltar do palácio do forte Cronida.Assentada, recebeu a visita do companheiro. Este,tomando-lhe a mão, acariciou-a com palavras:‘Acompanha-me, querida. Vamos para a cama. Adelícia nos fará repousar. Hefesto já está longe.Encontra-se em algum recanto da terra dos síntios,gente de língua rude.’ A deusa sonhava com afolgança. Havia hora mais propícia? Adormeceramabraçados. Presos nas malhas de Hefesto, impossívellhes era mover os membros, o peso do ferro venciaa força dos braços. Tinham que reconhecê-lo, nãohavia como fugir. Nesse impasse surge o renomadoCoxo, interrompida a pretensa viagem ao território

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de Lemnos. Hélio, de vigia, lhe tinha dado a notícia.Advertido, Hefesto voltou para casa de coraçãopesado. Deteve-se no vestíbulo, tomado de cóleraatroz. O louco berreiro do Ferreiro abalou os deuses:‘Vem, Zeus, meu pai! Chama todos os sempre-felizes. Entrem, entrem! Quem convida sou eu.Querem ver a indecência? É de rir! Não passo dealeijado. Afrodite me insulta sempre que pode. AmaAres, sujeito sombrio, malandro de pernas perfeitas.Bonitão! E eu? Sou torto desde criança. Quem são osculpados? Meus pais. Por que me puseram no mundodeste jeito? Que espetáculo! Os dois abraçadinhos...Aqui, na minha cama! Fervo de raiva. Garanto queessa alegria não vai durar muito. Eles se querem?Não esperem que essa vontade de dormir duremuito. Escapar dessa armadilha não me vão! Queroque o pai dela me devolva o que eu paguei por essasem-vergonha. Reparem nos seus olhos de cadela!É moça bonita? Está bem! Mas de fogo no rabo!’Assim vociferou Hefesto diante dos deuses reunidosno vestíbulo de bronze. Posidon, o Abala-Terra, estavalá. Lá estava Hermes, o ardiloso. Lá estava o flecheiroApolo. As deusas, envergonhadas, ficaram em casa.Mas a soleira estava apinhada de machos. Osventurosos não se contiveram. O riso lhes veio farto.A astúcia de Hefesto os levou ao delírio. Um olhavapara o outro. Ditos maliciosos não faltaram: ‘O maltem pernas curtas. O capenga alcançou o corredor.Comparado a Hefesto, Ares é lerdo. Não é mesmo?Viva o Coxo, o artista! O canalha que se dane!’Os comentários corriam soltos mais ou menos assim.O tom da conversa dos imortais era esse. Apolo,filho de Zeus, chamou Hermes para uma conversa:‘Hermes, meu irmão, sei que és guia, benévolo.Gostarias que isso acontecesse contigo, acordaralgemado nos braços de Afrodite?’ Hermes moveuos lábios de rosto iluminado: ‘Caro Apolo, Senhordo tiro certeiro, se uma coisa dessas acontecessecomigo, os laços poderiam ser ainda mais fortes.

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Mesmo debaixo dos olhos dos deuses, eu adorariadormir algemado nos áureos braços de Afrodite.’ Aspalavras de Hermes arrancaram gargalhadas dosimortais. Quem não riu foi Posidon. Não parava depedir a Hefesto, o soberbo artista, que soltasse Ares.Falando com o amigo, voaram-lhe dos lábios estaspalavras: ‘Liberta-o! Ele vai pagar no centavo tudoo que te deve, como é uso entre deuses. Te dougarantia plena.’ A resposta do famoso mutiladoveio sofrida: ‘Pede-me tudo, Posidon, menos isso.Garantia de salafrário é garantia de salafrário.Achas que eu teria coragem de cobrar a dívida de ti,se esse sem-vergonha me fugir, livre das cadeias?’Posidon tentou tranqüilizá-lo com palavras serenas:‘Hefesto, escuta. Se Ares der no pé, depois de solto,a dívida será minha. Eu pago tudinho.’ Sustentadoem seus pés mutilados, respondeu-lhe Hefesto: ‘Nãoseria justo duvidar de tuas palavras.’ Dito isso, aforça de Hefesto abriu as cadeias. Soltos dos grilhõesinquebráveis, ambos saltaram do leito. Ares se mandoupara a Trácia. Afrodite, com sorrisos nos lábios,apareceu em Chipre, aliás, em Pafos, onde lhe tinhamerguido um templo num bosque sagrado. As Cárites abanharam e lhe trataram a pele com óleo imortal, omesmo que costuma evolar de corpos que não morrem.Sedutoras eram as vestes que lhe cobriam os ombros,festa para os olhos.” Notável foi o canto do aedo. Aaventura verteu alegria no peito de Odisseu, animouos que a escutaram, navegadores adestrados no manejode remos. Alcínoo chamou Hálio e Laodamas parabailarem sozinhos, porque para competir com eles nãohavia ninguém. Eles tomaram nas mãos a bela bolapurpurina, obra de Pólibo, renomado artista. A bola,lançada por um dos bailarinos, que se inclina paratrás, eleva-se às sombrias alturas das nuvens. Apanha-ao outro, num salto, em comprovada perícia, antesde os pés tocarem o chão. Finda a prova da bolae do arremesso às alturas, progridem as evoluções dadança no solo feraz, alternando posições. Rítmica

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batida de jovens acompanhava os movimentos. Vozesagitavam a multidão. Dirigiu-se, então, a AlcínooOdisseu: “Poderoso Alcínoo, modelo para todos,afirmaste que ninguém supera os feáceos na dança,o que foi confirmado. Espanta-me o que vi.”

A observação iluminou o sagrado poder de Alcínoo.Falou, então, o soberano a seus ilustres remeiros:“Rogo a atenção dos guias e dos conselheiros. Tenhoa impressão de que nosso visitante é dos mais sensatos.Os costumes determinam que demonstremos compresentes nossa hospitalidade. Nosso povo é regidopor doze reis escolhidos, eu mesmo tenho a honra deser o décimo terceiro. Ofereça-lhe cada um de nós umatúnica e manto impoluto. Acrescentemos a isso umtalento de ouro, metal que prestigia. Reunamos tudosem demora e o depositemos nas mãos do estrangeiro.Ele deverá acompanhar-nos radiante ao banquete.Palavras e dons selarão a reconciliação de Euríalo, vistoque excedeu-se no que disse.” As palavras do soberanoforam aplaudidas. Todos autorizaram o arauto a reuniros presentes. A manifestação de Euríalo não demorou:“Poderoso Alcínoo, exemplo para todos os povos. Pordeterminação tua, reconcilio-me com o estrangeiro.Ofereço-lhe esta lâmina de bronze com punho de prata,que descansa numa bainha de marfim, obra recente deexímio artista. Ela com certeza lhe trará benefícios semconta.” Depositando a espada cravejada de prata nasmãos do hóspede, acrescentou: “Pai estrangeiro, seouviste dos meus lábios alguma palavra ferina, osventos a dissolvam no ar. Concedam-te os deusesrever tua esposa e pátria, superados os contratemposque te afastam de tua terra e de teus amigos.” Sábiopronunciou-se assim Odisseu em reposta: “Que osdeuses te sejam propícios! Não desejo que te façafalta a espada com que agora me presenteias. Tuagenerosidade e tuas palavras me comoveram.” Oscravos de prata passaram a luzir nos ombros deOdisseu. O sol declina. Presentes acumulavam-se

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a seus pés. Os arautos os recolheram para guardá-los no palácio e os confiaram à guarda dos filhosdo rei. As dádivas esplendiam agora junto à rainha.

O poder de Alcínoo conduzia os convivas, que,reunidos, se acomodaram nas elevadas poltronas.O poderoso dirigiu-se, então, a Arete: “Querida,providencia um cofre adequado, que seja o melhor,provido de um manto sem mácula e de uma túnica.Levem, então, a caldeira ao fogo, aqueçam a água.Depois do banho, o estrangeiro poderá apreciar asdádivas que os feáceos voluntariamente reuniram.Participe do banquete e aprecie o canto. Querooferecer-lhe, ainda, este cálice, obra de mérito,todo de ouro. Ele deverá lembrar-te de mim semprepor ocasião das libações a Zeus e aos outros deuses.”Com essas instruções, Arete orientou as escravas. Agrande trípode deveria ser levada imediatamente aofogo. Conduziram ao braseiro a caldeira de banhoe encheram-na de água. Achas de lenha avivaram aschamas que lambiam o ventre do panelão. A águaborbulhava. Arete dirigiu-se aos seus aposentos parabuscar um baú, destinado aos esplêndidos presentes,vestes e ouro que os feáceos tinham oferecido aoestrangeiro. Depositou nela uma túnica e um mantovistoso. Soou a voz da rainha, palavras bateramasas: “Observa tu mesmo a qualidade da tampa efirma-lhe o nó. Protege-te contra fraudes durante aviagem, rendido ao sono repousante na negra nau.”A tal recomendação, Odisseu não se demorouem firmar a tampa com um nó de entendido,semelhante ao que lhe tinha ensinado a Circesenhorial. Convidou-o a empregada para servir-seda banheira. Experimentou animado o líquidoaquecido. Não recebia cuidados delicados desdeque deixara a caverna da Calipso. Lá usufruía detratos próprios a um deus. Banharam-no as servase ungiram-lhe a pele, revestindo-lhe o corpo com

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uma túnica e um manto de lã. Dirigiu-se, então,ao grupo dos senhores em que circulavam cálices.Junto ao pórtico, encontrou Nausícaa cuja belezaa elevava à categoria das deusas. Quando a imagemde Odisseu penetrou-lhe nos olhos, estas palavrasalçaram vôo dos lábios da jovem espantada: “Quandoestiveres em tua terra, meu caro forasteiro, não teesqueças de mim. Deves-me o primeiro socorro.”Respondeu-lhe o refinado Odisseu: “Nausícaa, filhade Alcínoo, rei de coração acolhedor, se, com o favorde Zeus, o esposo trovejante de Hera, me for dado vero dia do regresso, mesmo longe daqui eu te rendereiculto como a uma deusa, estarás todos os dias emminha lembrança. Graças a ti, jovem, estou vivo.”Falou e ocupou assento ao lado do rei Alcínoo.Entrementes, distribuíam porções e ofereciam vinho.

Já bem próximo encontrava-se Demódoco, aplaudidopor todos, conduzido por um arauto. Este reservara-lhelugar central, junto a uma imponente coluna. O atiladoOdisseu dirigiu-se ao arauto, cortou um pedaço dolombo do porco de alvos dentes, provido de gordura,reservando, entretanto, a parte maior para si mesmo:“Oferece, meu caro, esta porção a Demódoco, queroque a prove. Apresenta-lhe meu apreço, embora euesteja perturbado. Quem pisa a superfície terrestredeve reverência aos cantores, pois o que sabem vemda Musa. Ela ampara os versos dos aedos.” Assiminstruído, o arauto depositou a homenagem nas mãosde Demódoco. Ele a recebeu com profunda gratidão.Os demais levaram os dedos às iguarias oferecidas.Saciados de porções regadas a vinho, dirigiuOdisseu estas palavras a Demódoco: “Reconheçoque de todos o mais destacado és tu. O que sabesvem da Musa, filha de Zeus ou de Apolo. Cantaspreciso o universo dos cometimentos aqueus: atos,infortúnios, padecimentos, como se tivesses sidotestemunha ou bem informado por outro. Adiante!

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Canta a beleza do cavalo, construído por Épio,guiado pelo saber de Palas Atena, engodo repletode guerreiros, conduzido por Odisseu contra aacrópole inimiga, causa da queda de Tróia. Senarrares isso com arte, não terei dúvidas emproclamar que pelo favor de divindade propíciachegaste a produzir um canto divino.” Assistidopor um deus, o aedo iluminou o canto, desdequando os guerreiros subiram aos barcos emfuga fingida, as barracas em chamas, e outros,congregados em torno de Odisseu, comprimiam-se,ocultos, no ventre do cavalo. Os próprios troianosarrastaram o engenho até à muralha. Lá estava ele.Indecisos, os troianos, reunidos em torno dele,examinavam várias propostas. Destas, o conselhodestacou três: abrir impiedosamente o ventre a ferro,puxar o cavalo até o rochedo e precipitá-lo noabismo, deixá-lo para monumento em homenagemaos deuses. Um quarto parecer foi executado, pois acidade estava destinada à ruína quando abrigasse ocavalo de pau, esconderijo dos melhores soldados,decididos a aniquilar os troianos em sangrentamatança. Detalhou o saque dos que saltaram emtorrente do cavalo, esvaziando o esconderijo. Cantoucomo depredaram a soberba cidade. Destacouos feitos de Odisseu contra o palácio de Deífobo;acompanhado de Menelau, parecia Ares. Sublinhou oímpeto guerreiro que levou o bravo Odisseu à vitóriatambém em outras façanhas, amparado por Atena.Em síntese, o que o aedo cantou foi isso. LevouOdisseu ao pranto. Lágrimas brotavam-lhe dos olhos,banhavam-lhe o rosto. Parecia mulher desconsolada,abraçada ao corpo do marido, tombado em defesa dacidade e das muralhas, morto por tentar afastaros filhos do dia fatal. A imagem da morte entra-lhepelos olhos, o estertor. Toma-o nos braços, aos gritos.Lanças hostis golpeiam-lhe as costas, maceram-lheos ombros, tangem-na como escrava ao sofrimento,à dor. Na amargura do lamento anoitecem os olhos.

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A má sorte lavra assim o rosto de Odisseu. Escondeude todos as lágrimas derramadas, menos de Alcínoo.O rei, sentado a seu lado, percebeu os suspirosprofundos do hóspede. Não se contendo, falouaos seus afoitos remeiros: “Feáceos, comandantese conselheiros, atenção! Demódoco, silêncio! Párade vibrar estas cordas. Cale-se a lira. Nem a todosagradam tuas canções. Desde o princípio do banquete,animados por nosso divino cantor, nosso hóspede,é espantoso, não pára de soluçar. Parece-me que umador profunda enegrece o coração do estrangeiro.Se é por causa da música, cesse o canto. Queroalegria geral, de nosso hóspede e nossa. Não serámelhor assim para todos? Queremos que leve boasrecordações de nossa ilha. Receba, além do nossoafeto, calorosos presentes e escolta. Um estrangeiroque nos roga proteção merece afeto de irmão.Quem o ignora? Até os mais simplórios o sabem.Por favor, nada de brincar de esconder quando tepergunto. Que lucras com isso? É melhor que fales.Quero saber quem és, teu nome, como te chamamteu pai e tua mãe, como se dirigem a ti teus amigos,teus vizinhos. Não me venhas com anonimato.Gente sem nome não existe. Pobre ou rico, poucoimporta. Gente é gente. Os pais botam nome nosfilhos logo que nascem. Desembucha! Tua terra,teu povo, tua cidade. Informados, minhas naus televarão ao destino. Dispensam comando. Nem detimoneiros precisam. Ao contrário de barcoscomuns, eles interpretam pensamentos e intenções.Localizam cidades e campos. Singram velozesondas salgadas, escondidas em névoa negra. Longevaga o medo de que as moleste algum dano ou quelhes advenha ruína. Nausítoo, meu pai, me dizia,lembro bem, que Posidon vivia irritado conoscopor conduzirmos todos a porto seguro. Ameaçouarrasar um dia uma das preclaras naus dos famososfeáceos que retornasse de uma missão de resgate,mas um grande monte se ergueria para proteger-nos.

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Essas foram as palavras do ancião. O cumprimentodelas está em mãos divinas. A vontade celeste édeterminante. Vamos! Quero que fales sem rodeios.Conta-nos por onde andaste, terras e gente queconheceste, cidades populosas que tenhas visitado.Passaste por maus momentos? Trataram-te mal?Houve gente hospitaleira, de mente esclarecida?Por que choras, que dores sacodem teu peito quandoalguém se refere a argivos, à dânaos, à ruinade Tróia? Decisões divinas e infortúnios humanosalimentarão o canto de muitas gerações vindouras.Alguém dos teus tombou diante dos muros de Tróia?Era valente? Teu sogro? Um dos teus cunhados? Aperda de pessoas de nosso sangue, de nosso famíliapesa mais. Ou choras um amigo que estimavas muito?Tanto quanto um irmão, formado no ventre a mesmamãe, vale um companheiro em quem podemos confiar.”

[1]. Deus da Guerra. (N.E.)[2]. Afrodite, nascida na água do mar, aportou na ilha de Citera, daí o nome com quetambém é conhecida, “Citeréia”. (N.E.)

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Canto 9

Tomando a palavra, falou o Odisseu das mil idéias:“Poderoso Alcínoo, incomparável exemplo paratodos os povos. Fora de dúvida, é um privilégioescutar um aedo como este teu. Que voz! É divina.Digo mais, é a voz dos próprios deuses. Um povointeiro em festa! Eu me pergunto: pode haver projetode vida mais doce? Dos convivas, ninguém semexe. A sala inteira é toda ouvidos. Mesas fartas.Comida e bebida para todos. Vinho gira nas crateras.Correntes rubras ressoam fartas nas taças.Não me passa pela cabeça cena mais confortante.Meus cuidados, os gemidos que não consigo abafarno peito, inquietam-te agora. Isso agrava minha dor.Nem sei por onde começar. Deixo para o fim o quê?Rico eu sou, rico em aflições. Os céus o quiseramassim. Comecemos pelo nome, para que saibas comquem falas. Se eu conseguir escapar do dia nefasto,podes ter certeza, serei teu aliado, mesmo longe.Sou Odisseu, filho de Laertes. Minhas artimanhasrolam na boca de todos. Minha fama bate no céu.Moro em Ítaca. Minha ilha se vê de longe, graçasao Nerito, monte de ventos uivantes. Ressoam osramos. Ilhas pontilham o mar, habitadas todas.Menciono Dulíquio, Same e Zacinto, a dos bosques.Ítaca acanha-se distante, em direção às sombras doPoente, as outras aproximam-se da Aurora e do Sol.Embora rochosa, nutre dadivosa seus filhos. Terramais doce não conheci em lugar nenhum. Quemme deteve foi uma deusa, Calipso. O palácio delaé uma gruta. Ela me queria como esposo. Outra queme quis foi Circe. Encantadora, ela fez tudo paraeu não deixar Eéia. Seríamos marido e mulher. Meucoração, entretanto, resistiu a todos os apelos. Nada

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é mais doce do que pátria e filhos, mesmo que emterras estranhas se alcancem bens e fortuna. Eu nãoviveria longe dos meus por preço algum. Voltemosà minha viagem de regresso. Adianto que foi sofrida– Zeus assim o quis – quando partimos de Tróia.Ao deixar Ílion[1] o vento me impeliu aos cícones, aÍsmaro. Saqueei a cidade e matei seus habitantes.Com a pilhagem e o rapto das mulheres, tínhamosmuito para dividir. Motivos para queixa não havia.Deixar a região com pé ligeiro foi meu plano. Osbobalhões, meus comandados, não me obedeceram.Ébrios, degolaram carneiros, abateram vacaspreguiçosas perto das areias costeiras. Os cíconesdispararam para pedir ajuda a outros cícones,mais numerosos e mais robustos, treinadoscondutores de carros de guerra. Atacavam com ainfantaria quando a tática o exigia. Madrugaramcomo folhas e flores na primavera. A desditacaiu sobre nós, desventurados. Dores incontáveisnos golpearam. A batalha se feriu à vista dasnaus que nos trouxeram. Zunia mortífero obronze das lanças na rota dos ventos. O dia aindase robustecia no ventre da Aurora. Resistimos, osatacantes eram muitos. Quando o sol se avizinhoudo horizonte à hora da ordenha, os cícones noscompeliram à fuga. Feitas as contas, seis de cadaum dos nossos navios tinham sumido. Nós, osrestantes, nos esquivamos da morte e do destino.Partimos com sombras no peito. Na alegria dafuga penetrava a dor pelos perdidos. Não consentina viagem antes de pronunciarmos três vezes cadaum dos nomes dos tombados no campo ao braçoferoz dos cícones. Zeus, convocando o exércitodas nuvens, despertou Bóreas para uma batalhatempestuosa contra a frota. A sombra cobriuterra e mar. A noite baixou da concha celeste.A tempestade arrastava proas inclinadas. A forçados ventos rasgou em três, em quatro tiras as velas.Temendo a morte, nós as recolhemos. Vencemos

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a remo o ímpeto das ondas rumo à costa. Duas noitese dois dias nos detiveram prostrados por terra,quebrado o ânimo pela dor, pelo cansaço. Noterceiro, ao brilho das tranças da Aurora, erguemosos mastros e desfraldamos o branco das velas.Confiamos a rota aos pilotos e ao vento. Nadaimpedia, salvos, alcançarmos o solo pátrio, nãofossem as correntes e Bóreas, que, ao contornarmosos penhascos de Meléia, nos arrastaram para muitoalém de Cítera. Dali ventos funestos me levaramdurante nove dias por mares piscosos.

“No décimo, aproamos na terra dos lotófagos, genteque se alimenta de flores. Desembarcamos e nosabastecemos de água. Os companheiros prepararamuma refeição perto dos navios. Saciada a fome e asede, decidi formar uma delegação para conheceros comedores de pão daquele lugar. Enviei doishomens acompanhados de um arauto. Partiram.Lotófagos chamam-se os homens que encontraram.Não planejaram mal nenhum contra os nossos.Queriam só que provassem loto. Quem saboreiaa doçura do loto, perde a vontade de informar, deviajar, esquece o lar, quer permanecer, morar comaqueles indivíduos, os lotófagos. Transtornadospelo loto, perdem a vontade de voltar para casa.Agarrei-os – choravam – e os arrastei aos navios.Enfiei-os atados debaixo dos bancos dos remeiros.Determinei aos outros subirem aos barcos sem perdade tempo. Eu não queria que, contaminados peladroga, perdessem o desejo de voltar. Cederam. Semoferecer resistência ocuparam seus lugares. Osremos feriram no compasso o mar de espumas.Continuamos a navegar de coração amargurado.

“A terra dos ciclopes, povo rude, sem lei, foi nossoporto imediato. Por depositarem a sorte em mãoscelestes, não mexem um só dedo para plantar ou

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lavrar. O solo produz sem cultivo nem sementetrigo, cevada, videiras. Cachos carnudos vertem vinho. Zeus avança cheiode chuva. Eles nãosabem de assembléias deliberativas nem leis. Nocimo de altas montanhas, vivem em grandesgrutas. Cada qual legisla sobre mulheres e filhos.Solidariedade de uns com outros não há. Diantedo porto estende-se uma ilha coberta de mato. Nãofica longe nem perto dos bosques em que vivem osglobolhos. Cabras selvagens percorrem numerosasos campos sem serem detidas por trilhas humanas.Não as molestam caçadores habituados a penetrarem matagais resistentes, vencidas escarpadasencostas. Pastagens ali não se percebem, nem eitostratados. Vezeiras, desde sempre, em produzir semsemeadura e sem lavra, as terras carecem de homens.Só medra mé de cabritos. Aos ciclopes faltamestaleiros, faltam naves de sólidos remos, dessasque freqüentam cidades de homens industriosos,singrando numerosos, de povo a povo, as úmidasrotas salgadas para firmar distantes laços fraternos.Portos poderiam florescer em ilha tão bem situada.Fértil como é, seria produtiva em todas as estações.Prados verdejantes, úmidos e brandos, contrastama prata do mar. Vinhas esplenderiam garbosas ali.A pá do arado penetraria em fofa gleba parafartas messes em meses de ceifa. Porto de boaancoragem oferece a terra acolhedora. Para queâncoras, cabos? As naus repousariam na areia,confiadas à vontade dos nautas e ao sopro deventos propícios. No extremo do porto gorgolejafonte clara, gluglu de água em grave gruta,ladeada de álamos. Para lá rumaram os remos,norteados por força celeste. Negra era a noite,nada se via, nada luzia. A névoa envolvia obarco. A lua, coberta de nuvens, não sorria naabóbada celeste. O olhar de ninguém penetravaa ilha imersa na noite nem distinguia o dorsodas ondas em galope à praia antes de os

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valentes navios alcançarem a costa. Ao aportar,tratamos primeiro de amainar as velas.Saltamos, então, em terra firme. De pálpebrascerradas, aguardamos a luz da manhã.Madrugadora ergueu-se a rododáctila Aurora.Pandos de espanto, percorremos a ilha.Ninfas monteses, filhas do guerreiro Zeus,tangiam cabras para nosso fraterno festim.Sem delongas fomos aos navios em busca doscurvos arcos e das longas lanças. Ordenamo-nosem três grupos. Os céus nos concediam a caçadesejada. Seguiam-me doze naus, nove cabrasforam entregues a cada uma. Só eu recebi dez.o banquete estendeu-se até ao pôr do sol:variedade de assados regados com a delíciado vinho. Nossa reserva do rubro líquido aindanão chegara ao fim. Quando tomamos a sacracidadela dos cícones, enchemos as ânforas.Passamos a observar a região dos ciclopes.Novelos de fumo e o balido de ovelhas, de cabrasdenunciavam a proximidade. Ao cair da tarde,desceu a neblina. Acomodamo-nos para dormirna arenosa fofura. Quando a Aurora nos despertoucom seus dedos rosados, convoquei o conselho dosmeus para deliberar: ‘Caros companheiros, esperempor mim. Embarcado no meu navio e acompanhadode alguns, procurarei informar-me sobre este lugar.Quem é essa gente? São violentos, selvagens, semlei, ou acolhem os hóspedes com a mente voltadaaos deuses?’ Com essas instruções, embarquei. Osque receberam ordem de me acompanhar, soltaramos cabos. Embarcados, ocuparam seus lugares nosbancos. Os remos impeliram a nau no cinza domar. Quando, a pouca distância, atingimos o lugar,notamos uma caverna num dos extremos, bem pertodo mar. Era alta e cercada de loureiros. Gado miúdo,ovelhas e cabras. Cochilavam. Um muro elevadode rochas fincadas no solo protegia o cercado.Pinheiros se espichavam esguios entre compactas

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copas de carvalho. Esse era o albergue de um sujeitogigantesco. Vivia isolado. Cuidava dos rebanhos.Sozinho. Afastado de todos, não respeitava lei.O monstro espalhava medo. Não lembrava em nadacomedores de pão. Mais parecia um pico cobertode mato, isolado em montanha soberba. Por ordemminha, companheiros de minha inteira confiançapermaneceram ali para ficarem de olho no navio. Eucom mais doze companheiros, escolhidos a dedo,partimos. Levei comigo um odre de vinho, do bom,presente de Marão, filho de Evantes, sacerdote deApolo, padroeiro de Ísmaro. Tínhamos respeitadoa ele, o filho e a mulher. A família vivia numbosque consagrado a Febo Apolo. Eu não podiame queixar, o sacerdote foi mais que generoso:deu-me sete talentos de ouro, artisticamentetrabalhados, um primor. Além disso, recebi deleuma cratera de prata maciça, doze ânforas de vinho,uma delícia, digno de deuses. Bem guardado dosescravos e das escravas, ninguém conhecia oesconderijo, segredo dele, de sua mulher e dadespenseira. Bebida de qualidade! Quando servida,a uma taça de vinho se acrescentavam vinte medidasde água. Aroma incomparável. Nem abstêmiosresistiam. Pois dessa maravilha eu enchera um odre,dos grandes. Acompanhavam-nos provisões. Meucoração, que não mente, dizia que enfrentaríamosum homem descomunal, um brutamontes, portentode maus bofes, sem rei nem lei. Chegar à cavernanão demorou. Não encontramos ninguém. O giganteandava pelos pastos com suas ovelhas. Sobravatempo. Examinamos tudo. Queijos secavam emgrades. Nos currais comprimiam-se cabritos ecarneiros. Tabiques garantiam separações: os maiorespara cá, os medianos para lá, os pequenos mais adiante.Soro escorria das vasilhas, eram muitas. Ele usavatarros e gamelas na ordenha. Amedrontados,meus companheiros imploravam que agarrássemosqueijos, puséssemos a mão em algumas ovelhas e

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cabras, tratássemos de dar o fora sem perda de tempopara singrar as ondas salgadas. Teria sido melhor,mas não me convenceram. Eu não podia deixar dever a cara dele. Me trataria como hóspede?Para minha gente, a aparição dele foi um desastre.Fizemos fogo, realizamos sacrifícios, saboreamosqueijos e, acomodados, aguardamos na caverna oretorno do dono. Veio com uma enorme braçada delenha, destinada ao preparo da ceia. O somdo impacto do fardo no solo bateu seco na paredesdo antro. Assustados, escondemo-nos no fundo.O espaço da gruta ia sendo ocupado pelas nutridaslanudas que ele introduzia para a ordenha. Osmachos ficaram fora, carneiros e bodes povoaramo cercado. Os braços ergueram, então, a rocha quefechou a entrada. Era imensa. Vinte e dois carroçõesde quatro rodas não seriam bastantes para movê-la.Veio a hora da ordenha. Esse trabalho ele faziasentado. Ovelhas e balidoras cabritas se acomodaramguiadas pelo hábito. As crias sugaram o leite querestou nos ubres. Destinou metade do alvo líquidoao coalho, que, comprimido em pequenos cestos dejunco, secaria nas grades. Reservou a outra metadepara beber quando lhe desse na telha e para regar arefeição vespertina. Acendeu o fogo. Percebendo-nosà luz da chama, entrou a rosnar: ‘Mas o que é isso?Quem são vocês? Que navios largaram vocês aqui?Estou falando com mascates? Com vagabundos?Não me digam que são piratas, desses que infestamo mar! Vocês arriscam a vida para espalhar terror?’O berreiro do gigante nos quebrou o ânimo. A vozcavernosa daquele corpo descomunal nos arrasou.Mal me recuperei, animei-me a responder: ‘Tróia énossa origem. Somos aqueus, açoitados por todasorte de ventos no dorso inquieto deste mar sem fim.De viagem para casa, fomos arrastados a diversoscaminhos. Perdemos o rumo. Vontade de Zeus!Somos da gente do Átrida Agamênon. Declaro-ocom orgulho. O renome dele é incomparável, bate

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no céu. Arrasou Tróia, arruinou inúmeros povos.Cordatos, nós nos prostramos a teus pés. Suplicamosos favores devidos a quem viaja, como é costumeentre pessoas civilizadas. Imploro-te que respeitesos deuses. Pedimos proteção. Zeus, protetor nosso,espera que os estrangeiros sejam respeitados.’Minhas palavras bateram num coração de pedra:‘Deixa de ser burro! Vê-se que não sabes nadadaqui. Queres que me dobre, puxe o saco dosdeuses? Que Zeus vá à merda. Nós, os ciclopes,cagamos no poder dele. Um peido na fuça doslá de cima. Somos mais fortes. Zeus, se quer briga,que venha! Tu não me escapas, nem teus amigos.Faço o que me dá na telha. Diga-me uma coisa: ondeficou teu navio? É forte? Ancoraste longe, perto?Quero saber.’ Falou assim para me sondar. Percebi a intenção dele. Nãome enganou. Boteiastúcia na minha resposta: ‘Aconteceu umadesgraça. Posidon despedaçou meu navio. Atirou-o contra pedras nos limites das terras de vocês.Uma tempestade nos trouxe de águas profundas.Eu e estes conseguimos escapar da morte.’ Dopeito obstinado dele não me veio resposta. Asgarras do monstro desceram sobre dois dos meuscomo se fossem dois cuscos e os espatifou no chão.O encéfalo encharcou a terra. Cortando-os empedaços, armou a comilança. Triturou-os como umleão. Enfiou na goela tripas e músculos. Lambuzou-se com o tutano dos ossos lascados. Espetáculoaterrorizante! Aos prantos, levantamos as mãos.Estávamos paralisados. Depois de o globolhoter enchido a pança de carne humana, regada comleite de cabritas, atirou-se no chão bem nos fundos,braços e pernas entre cascos de animais. Revoltado,ocorreu-me aproximar-me. Minha mão já tinhamovido o ferro preso à coxa. Eu lhe enfiaria aespada na barriga no lugar em que o diafragmareveste o fígado. Apalpei o lugar. Outro impulsome deteve. Morreríamos todos, presos na caverna.

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Cadê braços para remover a pedra gigante quetampava a entrada, obra do monstro? Aguardamos,apreensivos, os fulgores da Aurora. Quando adeusa ergueu os róseos dedos no horizonte, omonstro acendeu o fogo e entregou-se à ordenha.As crias mamaram depois. Apressando-se o gigante emconcluir essa etapa de suas tarefas, caíram mais doisdos nossos em suas unhas para o desjejum. Forradaa pança, removeu, sem esforço, a rocha para soltaros animais. Voltou a cobrir a abertura como se apedra fosse a tampa de uma panela. O rebanho subiua montanha, obediente aos assobios do colosso. Euvagava em tenebrosos abismos interiores. Só pensavaem vingança. Atena me concederia essa glória? Tiveuma idéia. De muitas, essa pareceu-me a melhor.Junto à parede secava o cajado do olhudo, um troncode oliveira recém cortado. Ele o preparava para seuuso. Passamos a examiná-lo. Tinha o tamanho de ummastro para um navio de vinte remos, embarcaçãocomercial, construída para enfrentar ondas. Avaliandocomprimento e espessura, foi o que constatamos.Tirei uma lasca do tamanho dum homem. Passei-aa meus companheiros, pedindo que a descascassem.Deixaram-na lisa. A ponta aguçada foi obra minha.As labaredas trataram de endurecê-la. Escondi oinstrumento debaixo do estrume. De bosta animalera rica a caverna do monstro. Decidimos na sortequem me ajudaria – coragem era indispensável –a erguer o estilhaço para depois enfiá-lo no olhodo monstro, quando entregue às delícias do sono.A fortuna me concedeu quem eu próprio teriaescolhido. Quatro fariam o serviço, sendo eu oquinto. À tardinha voltou o canibal e seu povolanudo. Dessa vez, introduziu todos os animaisna caverna. Eram pressentimentos ou a ordemde um deus? Não esqueceu de levantar a rochasobre a entrada do antro. Ordenhou as ovelhas eas cabras de incansável mememé. O ritual foi ode sempre: as crias tiveram acesso às tetas depois

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da ordenha. Cansado das lides, caçou dois dosnossos para o macabro banquete noturno. Tomandocoragem, falei-lhe bem de perto: vinho tinto enchiaa gamela que eu trazia nas mãos: ‘Vinho, meu caroCiclope, junta vinho ao festim de carne de heróis.Provarás a delícia da bebida guardada em nossa nausubmersa. Trouxe-o na esperança de me poupares,de me enviares para minha casa. Enlouqueceste? Tuaselvageria não tem limites? Quem neste vasto mundodesejará visitar-te conhecendo teus hábitos?’ Poucolhe interessaram minhas palavras. Agarrou e bebeu.Botou de um trago a preciosidade goela abaixo e pediumais: ‘Vem com essa delícia! Por favor! Teu nome!Como te chamas? Não ficarás sem recompensa. Sairáspulando de alegria. Te dou minha palavra. Nossa terraproduz de tudo: trigo, vinhas. Zeus a rega. Mas issonão fica devendo nada à ambrosia, ao néctar.’ O giganteululava. Agi. O brilho do vinho entrou-lhe rubro peloolho. Três vezes servi. Molhou a goela três vezes. Abebida afrouxou-lhe o parafuso. Quando a bebida lhetinha subido à telha, abordei-o com palavras de seda:‘Caro Ciclope. Queres saber meu nome? Será um prazerreceber a recompensa prometida. Nulisseu ou Ninguémé meu nome. Nulisseu me chamaram minha mãe e meupai. Por Nulisseu me conhecem todos os meus amigos.’A reposta abriu os bofes do monstro. Foi cruel: ‘Nulisseu,meu caro Ninguém, serás comido por último. Os outrosdescerão à minha pança primeiro. Este é o prêmio quete ofereço.’ Rugiu e caiu de costas. Estendido, inclinouo pescoço carnudo, prostrado pelo domador universal,o sono. Da garganta vinham-lhe nacos de carne nadandoem golfadas tintas, arrotos do borracho. Foi então queenfiei a lasca no vivo braseiro até constatá-laincandescente. Falei entusiástico. Fiz tudo para impedirque o medo afrouxasse os braços dos companheiros.Quando percebi que as labaredas começavam a lambera ponta da lasca de oliveira – ainda estava verde – naforça do calor, botei as mãos nela e a arranquei do fogo.Contei com a ajuda dos meus companheiros. Sentimos

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um vigor divino penetrar nos ossos. Eles levantarama lasca talhada de ponta ardente, firmaram-na no olho,e eu, pressionando de cima, a girei como quem fura atrado a trave naval. Correm correias, viram, giram eregiram a braços a brava broca pra cá e pra lá. Assimzunia pronta a ponta inflamada da lasca do polifêmicoolho. Cálidos circulam rubros esguichos de sangue.Ao vapor que subia da pupila ardiam as pálpebras.Sobrancelhas soçobram. O fogo fervia a raiz ocular.Meta machado ou machadinha o ferreiro sagaz emágua fria, chiam esquichos, estrídulos estalam, e oforjeiro tira do tanque fero ferro de têmpera tenaz.Assim silvava o globo espetado do agigantado glutão.Rebenta na rocha o hórrido urro do Globolho.Assombrados sumimos da cena. O Ciclope arrancado olho ferido a lasca encharcada de sangue. Loucode dor, arremessa a estaca que zune na sombra. Altosbrados despertam os ciclopes vizinhos, moradoresdas grutas agrestes disseminadas pelos píncarosventosos. Sacudidos pelos gritos acorrem de todos oslados. Reunidos em torno da gruta perguntam pelacausa da queixa. ‘Que dor te atormenta? Perturbas apaz da noite sagrada. Arrancaste-nos de sono profundo.Réprobos irromperam em teu rebanho? Te agridem?Alguém está te matando? Um salafrário? Um bandido?’Do fundo da gruta grita o grande Polifemo: ‘Camaradas,é Nulisseu! Ninguém me agride, Ninguém me mata.’Deram-lhe por resposta palavras que voam pelos ares:‘Se ninguém te agride, seu Nulo, teus gritos são delouco. Mal enviado por Zeus não tem cura. Fazero quê? Roga a ajuda de Posidon, nosso Senhor.’

“Protestaram e se foram. Meu coração gargalhava emfesta. Meu nome falso os ludibriou. Acertei! Gemendoe varado de dor, o Ciclope, às apalpadelas, removeua pedra. Sentou-se na soleira e, de braços estendidos,esperava apanhar quem tentasse fugir no lanudovagalhão de ovelhas. O gigante me menosprezava.Pensava que estava lidando com uma criança. Mas na

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minha cabeça, eu já elaborava um plano para salvarda morte meus companheiros e a mim. Muitosplanos e enganos eu revolvia na mente, pois o queestava em jogo era a vida. Próximo vigiava o perigo.De todos, o recurso que julguei mais apropriado foieste. Cercavam-me carneiros alentados, lanudos,vistosos, robustos; o pelego luzia violáceo. Sem som,amarrei um aos outros com vime trançado, surripiadodo leito do cego, o forjador de ilegalidades. Agrupei-os em três. O do meio carregava um homem. Os queo ladeavam protegiam o fugitivo. Sempre três pararesgatar um dos meus. E para mim? Percebi umcarneiro singular, o mais encorpado de todos. Segurei-o. Estendi-me embaixo ao longo do ventre. Enfieiambas as mãos na lã divina. Mantive-me com muitoempenho pendurado sem permitir que o ânimofraquejasse. Preparados, aguardamos ansiosos aAurora. A divina apareceu com seus rosados dedos.Enquanto os machos procuram o verdor das pastagens,balem no cercado as não ordenhadas fêmeas, deúberes tesos. O dono, entretanto, ferido por doreslancinantes, detinha e apalpava o dorso de todosos machos. Obtuso, não percebeu a artimanha:que os meus passavam agarrados nos peitos lanudos.O meu saiu por último, o mais possante, retardadopelo peso da lã e de mim, o inventor de truques.Acariciando-o falou-lhe Polifemo, o forte: ‘Meuamado, por que essa lentidão? O derradeiro hojeés tu? Preguiçoso! Não costumas encerrar o cortejo.Na ponta da tropa, tosas no prado as florzinhas quetopas. A passos largos, és o primeiro a rumar aosregatos, o primeiro a demandar o estábulo à noitinha.E agora vens por último! Lamentas meu olho? Oolho do teu senhor? Um homem mau me feriu coma ajuda de seus criminosos amigos. Encharcaram-me de vinho. Nulisseu! Ele ainda não escapou dadestruição. Por que não raciocinas? Por que nãofalas? Tu me dirias onde ele se esconde da minhafúria. Eu espatifaria a cabeça dele no chão. O miolo

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dele salpicaria a gruta. Eu removeria assim o pesoque Nulisseu botou em mim. Nulidade!’ Com esselamento, afastou o carneiro, empurrou-o para fora.

“A pouca distância, soltei o carneiro e trateide libertar meus companheiros. Agimos rápidos.Tocamos o rebanho gordo de pernas delgadas,por aqui, por ali, até alcançarmos a nau. Alegriailuminou os rostos dos que nos receberam, salvosda morte. Lamentamos e choramos pelos outros.Interrompi o pranto. Acenei-lhes de sobrolhocarregado. Que embarcassem o gado! Não viam abeleza da pelegama? Dar o fora! Singrar o marsalgado! Me obedeceram. Correram para os bancos.Os remos feriram as águas pardacentas. Ao mesentir salvo, à distância de um grito, não me contive.O Ciclope ouviu meus motejos: ‘Fica sabendo quena tua espelunca não devoraste os homens de umfracote. Abusaste do teu tamanho. Mereceste acegueira. És um sem-vergonha. Tiveste a coragemde devorar teus hóspedes em tua própria casa. Sabesagora que Zeus castiga. E não só ele, os outros deusestambém.’ Minhas palavras o ofenderam. O sangue lhesubiu à cabeça. Arrancou a ponta de um alto rochedoe a lançou contra nós. A pedra caiu a pouca distânciada proa. Não estraçalha a ponta do leme por um triz.Com o baque da pedra, ponteia o ponto, empolamas águas. O refluxo arrasta o barco. Vagalhõesjogaram-nos à praia. De posse de uma vara valentepude conter o impacto. Meus companheiros, porordens minhas, transmitidas por gestos, moveramfortes os remos. De corpos dobrados na força dosbraços, tudo fizeram para escapar do desastre.Quando já tínhamos dobrado a distância, resolviberrar para espanto dos meus camaradas. Tentaramde todos os modos conter-me com palavras sensatas:‘Deixa de loucuras. Por que provocar o brutamontes?Acaba de empurrar-nos com uma pedrada de voltapara a costa. Retornar? Será nossa perdição.

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Se ele perceber nossa voz, ouvir nossos berros,esmigalhará nossas cabeças e as vigas da nau.Não lhe faltam rochas nem força nos braços.’Nada conseguiram. Senti meu peito chiar de raiva.Dirigi-me a ele indignado: ‘Ciclope, se um diaalguém dos mortais te perguntar pela causa de teuolho vazado – que vergonha! – diga-lhe que afaçanha é de Odisseu, o Arrasa-Fortalezas, filhode Laertes, morador de Ítaca.’ Mal me ouviu,respondeu gemendo: ‘Para desgraça minha,cumpre-se um antigo vaticínio. Vivia aqui umvidente, um dos grandes, Télemo, filho de Êurimo,incomparável em adivinhações. Exerceusua arte até à velhice. Tudo o que aconteceu foipredito por ele, que minha visão seria arruinadapor Odisseu. Eu aguardava sempre a vinda de umhomem alto, vistoso, favorecido por uma forçadescomunal, e agora me aparece um baixinho, umanulidade, um fracote, vazou-me o olho depois deter-me enchido a cara com vinho. Volta, Odisseu,terás dádivas de hóspede. A pedido meu, o Abala-Terra, o celebrado, te dará escolta. Sou filho dele,ele não se cansa de dizer que é meu pai. Minha curaestá nas mãos só dele. De ninguém mais, seja deusbem-aventurado, seja alguém dos mortais.’ Não medemorei. Dei-lhe resposta taco a taco: ‘Sabes qualé minha vontade? Tirar-te o sopro, a vida. Sedependesse de mim, estarias no Hades, terra dossem-olhos. Lá nem o Abala-Terra te restituirá avisão.’ Foi a praga que lhe roguei. O desgraçadolevantou as mãos e dirigiu uma prece a seu protetor:‘Ouve-me, Posidon, de cabelos escuros como asprofundezas do mar, se de fato és meu pai, nãopermitas que Odisseu volte para casa. Falo do filhode Laertes com domicílio em Ítaca. Digamos que aMoira lhe garanta rever os amigos, retornar a seufortificado palácio, pisar o solo pátrio. Nesse caso,retarda tudo isso. Pereçam todos os companheiros,volte em nau estranha, encontre desgraça em casa.’

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Foi o que pediu. O Cabeleira-Negra lhe deu ouvidos.O gigante ergueu um penedo ainda maior,arremessou-o em giros com ímpeto ciclópico. Obaque levantou ondas atrás do barco de proa negra,a pouca distância da ponta do leme. O mar bramiuao seco soco da rocha. O fluxo nos empurrou paraa terra. Sentimos próximo o solo. Chegados à ilhaonde as naus restantes reunidas nos aguardavam,cercadas por companheiros desfeitos em lágrimas,anelantes e apreensivos, arrastamos o navio paraa praia. Nós próprios saltamos ao solo batido pelasondas inquietas do mar. Baixamos do oco da naveo rebanho do Globolho, repartimos as reses emlotes fraternos ao gosto de todos. Coube a mim ocarneiro grande por decisão de meus amigos. Euo sacrifiquei na praia a Zeus Cronida, de nuvensnegras cercado, rei de todos. Mas o fumo dascoxas do macho assado não deliciaram as narinasde Zeus. Povoavam-lhe a mente meu naufrágio,destroços futuros, gemidos de companheirosvotados à morte. Banqueteamo-nos até o sol serecolher. Saboreamos fartas porções de carne e adelícia do vinho. Acolheu-nos então o sono,acomodados na areia ao embalo do mar ressonante.Acordou-nos a Aurora, a deusa dos róseos dedos.Eu próprio tratei de acordar meus companheiros.Animei-os a embarcar, a soltar as amarras. Prestosse dispuseram a ocupar os bancos. As proasrompem as ondas ao ritmo dos remos. Partimos dalide coração apertado. Salvos da morte singramos,mas pesarosos da perda de muitos dos nossos.”

[1]. Tróia. (N.E.)

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Canto 10

“Abordamos Eólia, terra em que vive um amigodos deuses imortais, Éolo, filho de Hípotes.A ilha, circundada de brônzeo muro infrangível,flutua. Lá se eleva liso penedo. Moram com ele,no mesmo palácio, doze rebentos: seis filhase seis filhos adultos. Éolo ofereceu em casamentoas seis filhas aos seis filhos. Vivem todos com opai, muito afetuoso, e com a prestimosa mãe. Tomamtodas as refeições juntos, renomadamente fartas.De dia recendem escolhidas iguarias no paláciocercado de cantos. À noite as mulheres dormem nosbraços de seus maridos em leitos finos e fofostapetes. Lá chegamos: belas casas, bela cidade.Éolo hospedou-me por um mês inteiro, ávido denotícias sobre Ílion, sobre a frota argiva, sobre oretorno dos aqueus. Contei-lhe tudo com detalhes.Quando lhe pedi ajuda para voltar à minhaterra, não me disse ‘não’. Fez o que pôde:esfolou um boi, rês de nove anos, fez um saco enele acorrentou o curso dos ventos ressonantes. OCronida o constituíra guarda das correntes aéreas.Sublevá-las ou contê-las dependia só dele. Éoloprendeu o saco no porão do navio para evitar aevasão até do mais reles ventinho. O fio de prataluzia. O sopro de Zéfiro foi o único solto paraconduzir minhas naus e meus companheiros. Nemassim alcançamos a meta. Nossa própria toliceprovocou o desastre. Nove dias e nove noitesnavegamos constantes. No décimo – já emergiamas plagas pátrias – estávamos tão próximos quedivisamos fogos. Extenuado, rendo-me ao sono,uma delícia. Minha era a manobra da escota, nãoa confiava a outrem. Chegaríamos assim mais

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ligeiro à ilha. Formou-se uma conspiração entremeus companheiros. Suspeitavam que eu escondiaouro e prata, dom de Éolo, filho do generosoHípotes. Transmitiam a suspeita ao primeiroque encontravam: ‘Veja só! Ele é admirado efestejado por todos, não importa a cidade ou aterra que visite. Imenso e belo é o tesouro que trazde Tróia, e nós, que percorremos o mesmo trajeto,voltamos para casa de mãos vazias. Acresceo de agora, o que lhe ofertou Éolo, como preitode amizade. Rápido! Vejamos o que ele traz,a reserva de ouro e prata, guardada no saco.’Era o que se dizia. Venceu o conselho desastrado.Aberto o saco, rebelaram-se todos os ventos.Uma tempestade arrastou-nos ao mar profundo.Longe ficou a pátria. Era de chorar. Acordei.Sentimentos opostos guerreavam no meu peito.Atiro-me nas águas, morro na salsugem, ouengulo o mal em silêncio e continuo vivo?Enfiei-me na cama e elegi a vida. Tempestadenefasta devolveu a frota a Eólia. Os meusululavam. Desembarcamos e nos abastecemosde água. Meus companheiros prepararamuma refeição junto às naus ligeiras. Satisfeitaa fome e saciada a sede, escolhi um arautoe um companheiro para retornar ao renomadopalácio de Éolo. Encontrei-o sentado à mesaem companhia da mulher e dos filhos. Láchegados, sentamo-nos no solar, perto doumbral. Tomados de espanto, veio a pergunta:‘Tu aqui, Odisseu? Que maléfica divindade tepersegue? Saíste muito bem aparelhado paraalcançar tua terra, teu palácio, o que te é caro.’O coração em frangalhos, respondi à repreensão:‘Companheiros e sono em hora imprópria medesgraçaram. O remédio está em vossas mãos.’Quis cativá-los com palavras de humildade.Silêncio total! A resposta veio do pai: ‘Somedos meus olhos. Pulha! Pilantra! Peste! Não

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tenho o direito de ajudar um homem como tu.Os deuses bem-aventurados te odeiam. Fora!Me procuraste porque os imortais te desprezam.’Ele correu comigo. Eu soluçava, chorava, gemia.

“O que fazer? Seguimos viagem desesperados.Os remos subiam moles, sem entusiasmo algum.A besteira foi nossa. Onde procurar ajuda? Seisvezes veio a noite, seis vezes raiou o dia. Nosétimo chegamos à poderosa fortaleza de Lamo,em Telépio, Lestrigônia. Lá o pastor que entrasaúda o pastor que sai. Quem escuta responde. Láum homem sem sono poderia dobrar o salário,tangendo bois e apascentando ovelhas de brancovelo, tanto se aproximam ali os caminhos do dia eda noite. Entramos num porto magnífico, flanqueadopor rocha escarpada e sem fenda, à esquerda e àdireita. Dois cabos avançam e estreitam a barra.Pequeníssima é a fenda da boca. Os companheirosintroduziram na enseada as naus bojudas. Abrigadasno recôncavo, ataram-nas uma na outra, pois nãose levantam ondas, nem grandes nem pequenas.Luminosa dilata-se a calmaria. Só eu não introduziminha embarcação na enseada. Preferi prendê-la nasrochas em uma das extremidades. Ganhei o alto deuma elevação rochosa. Lá de cima não se viamcampos arados nem jardins. Fumo subindo da terrae só. Resolvi enviar uma embaixada para explorara ilha. Eu queria saber que variedade de comedoresde pão residiam ali. Julguei que dois companheirosacompanhados de um arauto eram suficientes.Saltaram da nau e tomaram uma estrada aplainada,usada para levar lenha de um monte à cidade. Pertoda cidade, deram com uma jovem. Era linda, filhado lestrigão Antífates. Ela se dirigia à Fonte do Urso,onde borbulhava água cristalina. Tinha vindo paravoltar abastecida à cidade. Meus homens, acercando-se dela, perguntaram pelo povo, pelo rei. Ela lhesapontou, em resposta, o elevado teto da casa

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paterna. Acompanharam-na. A mansão esplendia.Foram recebidos pela senhora, alta como o picode uma monte. Tremeram de medo. Sem tardar,ela mandou avisar Antífates, seu esposo, homemnotável. Ele estava numa reunião. Decidiu destruiros meus. Destinou à refeição o primeiro que lhe caiunas mãos. Os outros dois chisparam em direção àfrota. O rei levou o alarma à cidade. Os lestrigõesacorreram, destemidos, de todas as partes. Erammilhares. De homens eles não tinham nada. Eramgigantes. Fomos lapidados. Do alto das falésiaschovem penedos. Tumulto sobe das naus, aterrador.Gritos de morte. Estalos de tábuas. Racham aosoco de rochas. Os canibais fisgam meus homense os destinam à ceia como peixes. No decorrerda matança no interior da baía, puxei da espadacortante, presa à coxa, parti as amarras queprendiam minha nau escura. Meus homensreceberam ordens de se porem aos remos, forçarequeria a fuga da morte. Meu navio escapou dasaraivada de rochas. Em mar alto jubilei. Os outrosnão tiveram a mesma sorte. Pereceram todos. Decoração pesado, distanciamo-nos da terra fatídica,felizes por estarmos vivos, tristes pelos mortos.

“Aportamos em Eéia, ilha de Circe, famosa por suastranças bem feitas. O canto fluía de seus lábios.Era irmã de Eeta, maquinador de perversidades.Ambos nasceram de Hélio, Luz-dos-Homens. A mãe,filha do Oceano, se chama Perse. Sem dizer palavraconduzimos o navio a porto seguro. Navegamos,guiados por um deus. Desembarcamos. Dois dias eduas noites sem fazer nada. Dores devoravam-noso coração. Mas quando a Aurora anunciou a alvoradado terceiro dia, animei-me a subir a uma elevação,armado de lança e de lâmina cortante. Elegi o montecomo posto de observação na esperança de divisarindícios de presença humana, alguma voz. Do altoda colina, pus-me a observar. Uma coluna parecia

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fumo num território em que se desenhavam muitoscaminhos. Seria o palácio de Circe cercado decarvalhais? Em meu peito inquietavam-se planos.Deveria inquirir a origem do fumo? Antes de tomaruma decisão, pareceu-me avisado retornar à naufundeada nas areias do mar, oferecer uma refeiçãoa meus amigos e enviar alguém para informações.Meus passos já se moviam próximos do navio.Um deus, não sei qual, socorreu-me na desolação:a alta galhada de um cervo deteve meus passos.Veio do bosque, dirigia-se ao rio, procurava água.O calor da manhã aguçava-lhe a sede. Minha lançaatingiu a coluna no centro das costas. A ponta daarma apareceu no flanco oposto. O baque do corpolevantou pó, exalou a vida com um último mé.De pé firmado no corpo da presa, arranquei o ferro.Depositei a arma no chão ao lado do animal abatido.Com cipós e vimes, colhidos ali mesmo, produzi,habilmente trançados, uma braça de corda. Trateide atar os pés da caça singular. Com ela nas costas,dirigi-me à nau negra, apoiado na lança. Teria sidoimpossível transportá-la em só um dos meus ombros.O portento exigia todas as minhas forças. Arrojei abesta diante da nau. Procurei animar pessoalmentecada um dos meus companheiros com fraseado gentil:‘Embora grandes sejam os contratempos, ainda não éhora de baixar ao Reino Sombrio. O dia fatídico não éeste. Sirvam-se à vontade dos nossos suprimentos.É tempo de festa. De fome não vamos morrer.’ Meushomens estavam atentos às minhas palavras. Caíramno chão os mantos que envolviam suas faces. A peçaenchia-lhes a vista. Impressionou-os o tamanho.Saciaram primeiro os olhos, lavaram as mãose começaram a preparar o banquete. Passaramo dia em festa até o sol se pôr. Saboreamosassados, regados com a delícia do nosso vinho.Envolvidos na bruma escura, finda a luz do dia, aareia do mar recebeu nossos corpos saciados. Veioa Aurora, luziram os dedos rosados. Convoquei

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uma reunião e tomei a palavra: ‘Amigos, emboratenham sofrido muito, considerem isto: Ondeestamos? Onde fica o ocidente? Onde nasce o Sol?Onde se esconde depois de aquecer os mortais?O que vamos fazer? Alguém faz proposta?Eu não tenho nenhuma. Da pedra em que estiveontem, meus olhos percorreram a ilha cercadapelo azul de um mar sem fronteiras. O territórioé plano. De olhos bem abertos, notei uma colunade fumo elevar-se de um bosque cerrado.’ Otom do meu discurso rompeu-lhes o coração,lembrados do lestrigão Antífates e do Ciclope deforça descomunal, o comedor de gente. O chorolhes veio farto. As lágrimas corriam copiosas.Dividi, entretanto, em duas partes meus grevadoscompanheiros, cada um sob o comando de umchefe. Eu ficaria na direção de um, do outro seriacomandante Euríloco, de aspecto divino. Senhasmisturadas num capacete dividiram os grupos.Euríloco, herói decidido, foi escolhido por sorteio.Partiu com vinte e dois em cujas faces as lágrimasainda não tinham secado. Gemiam também os queficaram comigo. Os outros localizaram num vale opalácio de Circe, todo de pedras polidas, num sítioselvoso, habitado por lobos e leões monteses, naverdade, homens encantados com drogas poderosas.Essas feras não atacam homens, receberam-noscom giros festivos, com longos acenos de caudaà maneira dos cães que cercam festivos o dono aofim de uma ceia na expectativa de petiscos. Assimprocediam lobos e leões de garras inofensivas. Nãoobstante, as feras, embora mansas, apavoravam.Postadas na soleira do palácio da deusa das formosasmadeixas, deliciavam-se com as modulações da vozsedutora de Circe. Ela tecia uma tela imensa, leve,luzente, imortal, obra de deusa. Veio o conselho dePolites, guia destro, o mais querido dos meuscompanheiros: ‘Lá dentro alguém de voz sedutoramove-se junto ao tear de grandes proporções, treme

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o vestíbulo. É deusa? Mulher? Não importa,anunciemo-nos.’ Os outros se puseram a gritar. Elanão nos fez esperar. Abriu a porta. O brilho nosofuscou. Ninguém recusou o convite. Menos 230 Euríloco. Não se moveu.Suspeitava engodo.Circe, mostrando-lhes o caminho, ofereceu-lhesassentos. Preparou-lhes uma mistura de queijo,farinha de cevada, mel fulvo e vinho de Pramno.Juntou ao preparado drogas fulminantes compoderes de apagar totalmente lembranças dapátria. Ao provarem o mingau preparado por ela,Circe os tocou com uma varinha e os prendeunuma pocilga. De porcos tinham a cabeça, a voz,as cerdas e o corpo. A inteligência, entretanto,permaneceu de pé. Grunhiam chorosos. Circetratava-os com azinhas, bolotas, cornizolos.Ela lhes oferecia a ração habitual de porcos.Euríloco voltou às pressas ao navio escurocom a notícia infausta da inglória sorte doscamaradas. As palavras não lhe saíam da boca.Tentou em vão. Dor no coração. Os olhos, ummar de lágrimas. Retorcia-se arrasado. O peitoarfava. Gemia. O espanto era geral. Faziam- lheperguntas. Veio o relato da ruína dos outros:‘Atravessamos o carvalhal, Odisseu, comomandaste. No vale encontramos o palácio. Ébelo. As pedras brilham. Árvores cobrem oterreno. Se é mulher ou deusa, eu não sei. Mastralha no tear. Canta e encanta. Os nossos achamaram. Não demorou, apareceu. Abriu asportas. Ofuscaram-nos de tão lindas. Os nossos,enlouquecidos, seguiram. E eu, ali, duro. Sabiaque era truque. Sumiram. Onde foram parar eunão sei. Nenhum deles reapareceu. E esperei umtempão. Informado, ajustei nos ombros minhalonga espada cravejada de prata, apanhei o arco,pedi-lhe que me mostrasse o caminho.’ Arrasado,ele me agarrou, implorou de joelhos. Gemiamais que falava. As palavras voavam-lhe da boca:

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‘Não, pupilo de Zeus, não posso. Quero ficar aqui.De lá tu não voltas. Nem os outros. Te garanto.Não salvarás ninguém. Fujamos, os que estamosaqui. Nosso dia fatídico não é este. Não achas?’Não dei ouvidos a essa baboseira. Retruquei severo:‘Fica, Euríloco, aí onde estás plantado. Enche abarriga, enche a cara. Arromba a adega. Mas eu vou.A necessidade me obriga. E ela é poderosa!’ Foi oque eu disse. Afastei-me do navio e do mar. Eujá me encontrava no vale sagrado, bem próximo dofamigerado palácio da bruxa dos fatídicos remédios.Quem encontro? Hermes. Reconheci-o pelo caduceude ouro. Eu não tinha errado o caminho. Tinha aaparência de um garoto no primeiro buço, a idade dasedução. Estendendo-me a mão, entabula conversa:‘Tu por aqui? Sozinho nestes matos? Não temes?Conheces o chão que pisas? Queres saber dos amigosque enviaste à casa de Circe? Vivem em cercadoscomo porcos. Queres libertá-los? Declaro que nemtu te salvarás. Ficarás preso como os outros. Coragem!Estou aqui para teu bem. Com minha ajuda poderásescapar. Toma esta droga. É das poderosas. Munidodela podes combater os poderes de Circe. Esteremédio desvia tua cabeça do golpe fatal. Conto tudo:os truques, as magias de Circe. Primeiro, o mingau, oveneno vem de mistura. O feitiço dela não pega em ti.O antiveneno que te passo não deixa. O efeito nãodemora. Cuidado! Circe virá com uma vara comprida.Aí arrancas da aspada que trazes na coxa. Avançasobre ela como se quisesses matá-la. Assustada, elatentará levar-te para a cama. Não rejeites o convite.A liberdade de teus companheiros depende dela. Quemdeverá socorrer-te é ela. E não te esqueças de exigirque te preste o juramento solene dos bem-aventuradospara que não venha com outras insídias ruinosas. Semarmas e sem roupa , ela poderia inutilizar tua virilidade.’Hermes, o matador, instruiu-me bem. Arrancou umaerva da terra e me explicou as virtudes que ela tinha.A raiz era preta, mas a flor era clara, leitosa. Os deuses

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a conhecem por móli. Arrancá-la é muito difícil paraos homens mortais, enquanto que os deuses podem tudo.Depois disso, Hermes partiu da ilha selvática para oelevado Olimpo. Prossegui na marcha à morada deCirce. Eu caminhava, e meu coração corcoveava. Nasoleira da deusa dos belos cabelos, eu me detive.Gritei. Eu gritar e ela me atender foi um vapt-vupt.Percebi o brilho e a beleza da porta que a deusa girou.Acompanhei-a de coração assustado. Ela me ofereceuuma poltrona cravejada de prata, uma verdadeiraobra de arte. Uma banqueta para os pés. A beberagemela preparou numa taça de ouro. Era para mim. Mal-intencionada, largou uma droga no líquido. Ofereceu,bebi. Mas o feitiço não pegou em mim. Chegou a vezda vara, acompanhada de palavras de bruxa: ‘Já parao chiqueiro, lá não te faltará companheiro’. Malterminou de falar, arranquei a espada e fui pracima dela como se quisesse matá-la. Uivando quenem cadela, ela se atirou no chão, abraçou meusjoelhos e, ainda molhada de choro, as palavras lhesaíram da boca: ‘Vens donde? Tua gente? Cidade?País? Estou espantada. Como resististe ao feitiçoda droga? És o único. Não me lembro de outro.Ninguém! O veneno age logo que atravessa acerca dos dentes. Tens no teu peito uma força queresiste ao feitiço. És Odisseu? O matador de Argos[1],o do bastão de ouro, me falou muito de ti, que,voltando de Tróia numa nau negra e rápida, passariaspor aqui. Está bem! Enfia tua espada na bainha evem para a minha cama. Quero dormir contigo. Tegaranto que na hora do prazer nós nos entenderemos.’A cantada foi essa. Usei de inteligência na resposta:‘Circe querida, como podes esperar que eu seja gentilcontigo, sabendo que transformaste meus camaradasem porcos aqui mesmo, na tua própria casa? Tu osprendeste. Convidas-me para dormir contigo. É traição?Queres que largue a espada? Vais arrancar-me osculhões? Não me entendas mal. Eu vou. Quero. Masantes exijo que me jures. Falo de juramento forte. Não

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quero ser ferido por ti e não admito que faças malaos meus.’ Foi minha proposta. Jurou como eu tinhapedido. Esperei que terminasse. Só me movi depoisda última palavra. Foi assim que acabei na cama(esplêndida!) da deusa. Jovens que a auxiliavamem seus afazeres – eram quatro – cuidavam dada casa. Vinham de fontes, de bosques, de riossagrados que derramam as águas no mar salgado.Uma delas revestia as poltronas com tapetesde púrpura. Panos de linho serviam de forro. Outradispunha mesas de prata diante das poltronas –luziam – e distribuía sobre elas cestinhos de ouro. Aterceira preparava o vinho. O gosto adocicadolembrava o mel. As taças eram de ouro. Uma trípodedas grandes era a ocupação da quarta. Cuidava dachama que aquecia a água. Temperada no bronzeresplendente destinava-se a meu banho. O tamanho datrípode ajustava-se a meu corpo. Ela me banhou.Lavou cabeça e ombros. O cansaço que amarguraa vida fugiu-me dos membros. Lavado e ungido – oóleo era de qualidade – lançou-me um manto – otecido era excepcional – sobre a túnica. Fui levadoa uma poltrona cravejada de prata, obra que honrariaDédalo. Meus pés descansaram numa banqueta. Dumjarro de ouro nas mãos de uma camareira jorra a águasobre minhas mãos, postas numa bacia de prata.Aparece uma mesa primorosamente limpa. Umagovernanta ofereceu-me pão e outras iguarias. Agenerosidade dela regalava-me de tudo. Rogou-meque me servisse. Não me animei. Minha cabeçaestava conturbada. Eu respirava desgraça. Circe notouque meus dedos não se mexiam. Os manjares nãome atraíam. O peito me doía. Tocou meusouvidos o rumor esvoaçante das palavras dela:‘Te comportas como se tivesses perdido a língua.Em vez de bebida e comida, devoras teu própriocoração. Pensas que eu esteja tramando algumacoisa? Jurei. Não jurei? Jurei forte.’ A fala dadeusa não me tranqüilizou: ‘Circe, que pessoa

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sadia se atreveria a tocar em pratos ou copos antesde saber libertos seus amigos, antes de enxergá-loscom os próprios olhos? Se de fato estás interessadaem que eu coma e beba, solta meus companheiros,quero ver meus bravos remadores.’ Ela, sensível aoque eu disse, deixou a sala e se dirigiu ao chiqueiro.Abriu as portas de vara na mão. Surgiram porcosgordos com a aparência de nove anos. Alinhadosem sua frente, ela passa por eles e lhes aplica umadroga oposta à anterior. Caem as cerdas que lhescobriam os membros, obra do preparado queCirce lhes administrara há pouco. Voltaram a serhomens, bem mais jovens que antes. Reaparecemmais belos e de maior estatura. Abraçaram-mecalorosamente ao me reconhecerem. Percebilágrimas saudosas nos olhos de todos. Gemidoscomoveram o palácio inteiro. Até a deusa sentiu-seabalada. Notei-o no que ela me falou: ‘Divinofilho de Laertes, ardiloso Odisseu, vai. Tua nauligeira e as areias do mar te esperam. Arrastateu barco para um lugar seco. Guarda teus tesourose tuas armas numa gruta. Retorna ao meu paláciocom todos os teus companheiros.’ Não me opus.

“O conselho de Circe me pareceu sensato. Erao que eu devia fazer: procurar meu navio, ancoradona praia. Encontrei meus remadores em lágrimas.Estavam tristes, acabrunhados. Pareciam bezerrosencurralados, aos saltos em torno das vacasao retornarem da pastagem saciadas – tumultoconvergente de mugidos, nem laços nem vaqueirosos seguram. As mães, é só o que desejam. Veio-meà mente essa cena quando vi a agitação dos meus.Imaginei o que se passava neles. Era como setivessem reencontrado a rude Ítaca, terra que osviu nascer, gleba que os alimentou. As palavras queproferiram esvoaçavam tristonhas: ‘Vens comoum manjar dos deuses. Nos trazes o sabor do solo,o perfume da sonhada Ítaca. Rimos entre lágrimas.

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O que aconteceu aos nossos? Pereceram? Respondicom palavras tranqüilizadoras: ‘Vim para certasprovidências: antes de tudo convém trazer o navioà terra. As armas serão guardadas numa caverna.Quero que todos me acompanhem. Vocês verãonossos companheiros na mansão de Circe. Comese bebes não faltam. Há provisões para anos.’Seguiram minhas instruções à risca. MenosEuríloco. Tentou impedir que me seguissem. Suasadvertências voejavam: ‘Querem ir para onde,desgraçados? Procuram a ruína? Querem descer àcasa de Circe? Sabem o que vai acontecer? Vamosvirar porcos, lobos e leãos. Seremos forçadosa guardar a casa dela. Lembram-se do Ciclope?Companheiros nossos entraram na propriedadedele. Acompanharam Odisseu. Foi um desastre. Aloucura deste os levou à perdição.’ Foi um desaforo.Deu-me vontade de puxar da espada que eu traziapresa na coxa e passar-lhe o fio no pescoço. Queriaver a cabeça dele rolar pelo chão. E era meuparente! Os companheiros me detiveram. Vierampalavras serenas de todos os lados: ‘Calma,chefe! Dá-lhe ordens para que permaneça.Puxar e cuidar do navio será tarefa dele. Nós teacompanharemos ao palácio de Circe.’ Acertadoisso, deixaram a praia comigo. Nem Eurílocopermaneceu no oco do navio. Assustado comminha atitude, seguiu-me com os outros.

“Circe foi solícita com os companheiros que tinhamficado lá. Ofereceu-lhes banho e óleo. Além dastúnicas, apresentou-lhes mantos. Na sala, a deusapreparou um banquete para todos. Quandoos dois grupos se viram olho no olho, choraramde alegria. Júbilo lacrimoso encheu o palácio.Aproximando-se, falou a divina entre divinas:‘Divino Odisseu, inventivo filho de Laertes, possosaber o motivo dessas lamentações? Ouço gritos.Bem sei o que vocês sofreram nos mares

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povoados de peixes, não ignoro que enfrentastesataques severos na terra. Comam e bebam agorapara que volte a alegria que os animava quando,já faz anos, deixaram o solo pátrio, a pedregosaÍtaca. Vocês estão abatidos e desanimados, com acabeça voltada aos trabalhos no mar e o coraçãolonge da alegria. Padecimentos e nada mais.’ Essaspalavras nos revitalizaram o coração. Lápermanecemos ociosos, dia após dia, por um ano,saboreando assados e bebendo vinho.

“Volveu o ano, volveram as estações e os meses,espichavam-se os dias. Meus queridos amigosme chamaram à parte com advertências: ‘Estásenfeitiçado. Não achas que já é tempo de pensarmosna pátria? O que te reserva o destino? Não é oregresso a teu palácio e à terra que te viu nascer?’Estas palavras mexeram com meus brios. O diapassou como os outros. Comemos e bebemos atéanoitecer. Ociosos lambemos os lábios e nosenchemos de vinho. O sol se pôs, alargou-se o mantoda noite, os meus se espalharam pela sala escuraà procura dos leitos. Como sempre, subi ao leitode Circe. Esplêndido! Abraçado aos joelhos divinos,supliquei. Minhas palavras bateram em ouvidosatentos: ‘Chegou a hora de cumprires a promessaque me fizeste, consentir que eu volte para casa.Este é o desejo do nosso coração, meu e dos nossoscompanheiros. É tu te ausentares, vejo-me cercadopor eles com seus lamentos. Eles me abalam.’ Divinafoi a resposta da deusa: ‘Industrioso Odisseu, meudivino companheiro, não é minha intenção retê-losem minha casa contra a vontade de vocês. Advirto,no entanto, que ainda outra viagem se impõe, uma visita ao reino de Hades e daassombrosa PerséfoneDeverás consultar a sombra de Tirésias, o videntecego. A morte não abalou as qualidades dele. Só aele Perséfone consentiu a lucidez e o saber depoisde morto. Os demais não passam de sombras.’ As

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palavras dela me partiram o coração. Fiquei sentadona cama aos prantos. Fugiu-me a vontade de viver,de me deliciar com os raios do sol. Farto de choro,cansado de me rolar na cama, animei-me a responder.Ponderei: ‘Circe, quem nos piloteará nesse caminho?Ninguém alcançou jamais o Hades em nau negra.’A divina entre divinas não retardou a resposta: ‘Tensmuitos recursos, Odisseu, divino filho de Laertes.Não te preocupes com piloto. Não te fará falta. Omastro erguido sustentará a alva vela desfraldada.Descansa. O sopro de Bóreas fará o trabalho. Quandotua embarcação tiver atravessado o Oceano, chegarása uma costa plana e aos bosques de Perséfone, verásaltos álamos e salgueiros de frutos falhos. Aí deverásfirmar tua nau às margens do Oceano de vórticesvorazes. Teus próprios pés te levarão ao negro paçode Hades. Lá o Rio do Fogo e o Cocito, um braçoda águas do Estige, desembocam no Aqueronte. Umarocha assinala a confluência das duas correntes.Achega-te, procede conforme te digo. Cava um fossode um côvado quadrado. Vaza libações nas bordasem homenagem a todos os mortos. Começa com amescla de leite e mel. O vinho doce vem depois,seguido de água. Espalha, por fim, farinha de cevada.Dobra muito os joelhos às desvalidas cabeças dosmortos. Promete-lhes o sacrifício de uma vaca estéril,das melhores, e raro incenso, de regresso a teu palácio.A Tirésias promete, só a ele, uma ovelha toda negra,a mais vistosa de todo o teu rebanho. Concluída ainvocação aos ilustres povos dos que já partiram,sacrifica um carneiro e uma ovelha negra, torcendo-lhes a cabeça ao Érebo, mas tu mesmo deverás olharpara a oceânica corrente. Receberás então a visita deinúmeras psiques de pessoas que viveram em outrostempos. Teus homens, por ordem tua, deverão esfolare queimar os animais abatidos pela inclemência doferro. Vossas invocações deverão elevar-se ao tronodos deuses, o poderoso Hades e a aterradora Perséfone.Permanecerás de espada nua ao lado do fosso. Não permitas que as esqueléticas

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cabeças dos mortosse aproximem do sangue antes de ouvires Tirésias.Não tardará a presença do sacerdote, conselheiro demuitos. Dele saberás por onde regressar e a extensãodo caminho. Ele te dirá como percorrer as águaspovoadas de peixes.’ Instruiu-me assim já perto dahora em que a Aurora desponta em seu trono de ouro.Manto e túnica foi a roupa com que me cobriu a ninfa.Ela própria se apresentou numa estola ampla, leve,suave. Resplandecente cinto de ouro estreitou-lhe acintura. Um véu cobria-lhe a cabeça. Percorrendoo palácio, desperto os camaradas. Procurei encorajarcada um deles num tom suave: ‘Vocês passaram umanoite tranqüila. Querem viajar? Circe, senhora nossa,consente que partamos.’ Meu convite levantou-lheso ânimo. Não demorou, cobriu-os a sombra da tristeza.Certo Elpenor, o mais moço de todos – na luta ele nãose distiguia, inteligente ele também não era – tocadopela bebida e desejoso de ar fresco, resolveu dormirno terraço longe dos outros. Perturbado pela agitação,surpreso com o barulho, levantou-se de repente. Decabeça zonza, esqueceu-se do lugar. Em vez de buscara grande escada, avançou em linha reta. Caiu do terraçoe quebrou o pescoço. Foi fatal. A psique foi pararnos tenebrosos domínios de Hades. Quando me reunicom os meus fui obrigado a lhes revelar tudo:‘Pensam que voltaremos imediatamente para casa?Diverso é o caminho previsto por Circe. Daqui vamosao palácio de Hades e de Perséfone, a tenebrosa,para consultar a sombra do tebano Tirésias.’ Meudiscurso abalou o entusiasmo dos meus. Não selevantavam. Tristes, arrancavam os cabelos. O quefazer? Chorar não adiantava nada. Dirigimo-nosà nau, às areias do mar. Não vencemos a vontadede chorar. As lágrimas caíam em cascatas.Encontramos atados um carneiro e uma ovelhapreta, providência de Circe. Passou por nós sem quea notássemos. Os olhos não percebem divindadeque não quer ser vista. Um deus vai para onde quer.

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[1]. Hermes. Ver a primeira nota. (N.E.)

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Canto 11

“Chegados ao navio, nossa primeira providênciafoi arrastá-lo para as divinas águas salgadas.Firmado o mastro, içamos a vela. Embarcadasas ovelhas, subimos. Estávamos tristes. Lágrimasnão paravam de correr. Para nosso bem, Circe,de belos cabelos e de celeste canto, enviouo vento que nos impelia. Ao ímpeto do aéreocompanheiro a vela da negra nau se enfunava.Tudo preparado, cada um tomou o seu lugar.Confiamos a rota ao sopro e ao piloto. O barco, devela desfraldada, cortou o mar o dia todo. Quando,com o pôr do sol, obscureceram-se todas as vias,alcançamos o extremo do Oceano de profundascorrentes. Lá fica uma cidade de homens raros, oscimérios, envolta em névoa sombria. Hélio, de raiosluminosos, não logra contemplá-la quando percorreo caminho que sobe ao céu estrelado nem quando,ao declinar, baixa os olhos, lá do alto para a terra.Noite compacta esconde aqueles homens desditos.Lá chegados, aportamos e tratamos de desembarcaras reses. Ladeamos a pé as correntes do Oceanoaté alcançarmos o lugar de que Circe nos falara.Perimédies e Euríloco seguravam os animais parao sacrifício. Puxei da espada que trazia comigoe me pus a cavar o fosso de um côvado de lado.Seguindo as instruções, procedi à libação a todosos mortos: a mistura de mel, vinho, água e umbocado de farinha. Repetidas vezes dobrei osjoelhos às cabeças inanes dos mortos. Prometi-lhes, devolvido a Ítaca, uma vaca não-parida,das melhores – dádivas ardentes. Eu deveria oferecersó a Tirésias uma ovelha toda negra, a maisapreciada do meu rebanho. Invoquei, então, com

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rezas fortes e preces, o povo dos que já partiram.Agarrei os animais e os degolei em cima dafossa. Jorra negro o sangue. Procedentes do Érebocongregam-se, em grupos, as psiques de finados:noivas, moços, anciãos castigados pela vida,virgens viçosas, afligidas por dores novas, exércitosde feridos por bronze guerreiro, favoritos de Ares,ainda em suas armaduras manchadas de sangue.Multidões, de todos os lados, atropelavam-se emtorno da fossa. O alarido deixou-me pálidode medo. Exortei os meus a queimarem as vítimasestendidas no chão, abatidas e esfoladas com ferrocruel, erguendo mãos súplices aos deuses: Hades,o poderoso, e Perséfone, a assombrosa. Eu próprio,empunhando ameaçador a espada fiada, impediavigilante que as esqueléticas cabeças dos mortosprovassem do sangue antes de interrogar Tirésias.A sombra de Elpenor, de corpo exposto sobre aterra de largos caminhos, foi a primeira a chegar.Tínhamos abandonado o companheiro sem choro,insepulto no palácio de Circe, premidos por novasurgências. As lágrimas dele comoveram meu peito.Palavras minhas envolveram-no aladas: ‘Elpenor,tu aqui? Como chegaste a esta terra bolorenta?Teus pés são mais velozes do que minha nau.’Ele suspirou. Repetiu o que eu já devia saber:‘Ardiloso Odisseu, filho de Laertes, sou umdesgraçado. Um deus me persegue. Bebi além daconta. Precisava de ar fresco. Resolvi dormir noterraço. O barulho me acordou. Em vez de procurara escada, caminhei em linha reta. Pisei no vazio.Caí. Quebrei o pescoço. Terminei aqui. E aqui dejoelhos me tens. Suplico-te em nome de tua esposa,de teu pai, que cuidou de ti quando balbuciavas,rogo por Telêmaco, teu filho único que vive láno teu palácio. Saindo daqui, teu navio te levará aEéia. Lembra-te de mim, quando lá chegares.Não abandones meu corpo sem me prantear, semme sepultar. Teu desleixo poderia enfurecer os

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divinos. Para evitá-lo, queima meus ossos comminhas armas. Ergue um monumento em minhamemória nas areias do mar pardacento paraos vindouros se lembrarem de mim. Cumpre essesritos. Planta em minha sepultura o remo que eumovia no grêmio dos meus companheiros.’Ao suplicante eu assegurei determinado: ‘Ficatranqüilo, desastrado. O que me rogaste farei.’Trocávamos estas lúgubres palavras: eu, destelado, minha espada sobre o sangue; do lado de lá,a sombra do meu amigo espichava a conversa. Veioa sombra da minha mãe recentemente falecida,minha amada Anticléia, filha de Autólico. Quandoparti para Ílion, ela ainda vivia. Ao percebê-laem lágrimas, meu coração se comoveu. Contrameus sentimentos, retardei a fala com ela. Euprecisava de Tirésias. Reservava o sangue paraele.[1] Chegou a sombra do sábio tebano. Apoiadoem seu cetro de ouro, ele falou: ‘Divino filho deLaertes, ardiloso Odisseu, que vieste fazer aqui?Deixaste a luz de Hélio por quê? Para ver mortos?Conhecer o reino sem risos? Deixa livre o fosso.Baixa o fio dessa espada. Sem experimentar essesangue, não direi coisas livres de erro.’ Obedeci.Minha espada, a dos cravos de prata, foi pararna bainha. Depois de provar o sangue escuro,falou-me com fidedignas palavras proféticas:‘Buscas o mel do regresso? Te custará caro. Umdos celestes não te deixará escapar. Refiro-me aoAbala-Terra. A cólera enegrece-lhe o coração.Cegaste o filho dele. Ele o amava. Ainda assim,com sofrimento poderás alcançar o que desejas,se fores comedido, tu e teus companheiros. Teunavio aportará primeiro em Trinácia, superadosnumerosos perigos no mar violeta. Encontrareispastagens povoadas de bois, ovelhas e cabras,rebanhos de Hélio que vê e escuta tudo. Se nãomolestardes as reses, se fixardes as mentes sóno regresso, chegareis a Ítaca, ainda que intensos

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sejam os trabalhos. Mas se houver infração, certa éa ruína da nau e dos teus. Poderás escapar, mastarde, depois de perder teus companheiros. Umaembarcação estranha te deixará na pátria. Acharásem tua casa situação adversa, insolentes. Elesdilapidam teus bens, assediam tua mulher com apromessa de gordos presentes. Tua chegada será, écerto, um golpe à insolência deles. Cercarás ospretendentes em teu palácio, recorrendo a truques,ou os aniquilarás a golpes de espada em combateaberto. Toma, então, um bem talhado remo e rumaa povos que desconheçam o baile das ondas sonorasdo mar, gente que não costuma temperar alimentoscom sal, gente que nunca viu embarcações de rubroflanco, ignorantes do manejo de remos, asas de ágeisnavios. Eu te darei o sinal. Guarda-o bem. Não oesqueças. Quando outro caminhante te encontrar,supondo que é pá o remo no teu ombro, fincarás naterra a lâmina que fere as águas, sacrifícios farás aoSenhor dos mares: um carneiro, um touro, um porcoque trepa. Poderás, então, voltar para casa e ofertarhecatombes a todos os imortais, governantes dovasto céu. Obediente a estes ritos, alcançarás mortesuave longe do mar, debilitado por velhice tranqüila.Terminarás teus dias cercado de homens venturosos.As palavras que te digo não errarão o alvo.’ Reagiàs previsões do vidente com estas ponderações:‘Tirésias, interpretas, por certo, o que os deusesme teceram. Rogo-te ainda outro esclarecimento:vejo a sombra de minha mãe falecida. Ela semantém silenciosa junto ao sangue sem levantaros olhos ao filho nem ousar falar-me. Dize-me,senhor, que devo fazer para que ela me reconheça.’Ele reagiu a meu pedido com esta recomendação:‘Fácil de cumprir será o que deixo em tua mente.Todos os mortos que, com teu consentimento, seaproximarem do sangue te responderão sem erro,mas os recusados te voltarão as costas.’ Foramessas as últimas palavras de Tirésias, o senhor.

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Findo o que tinha a me revelar, retornou à casa deHades. Aguardei a aproximação de minha mãe,desejosa de provar o sangue de vapor escuro. Aome reconhecer, sons esvoaçaram de sua boca:‘Como vieste, filho, a este lugar tenebroso sem quea vida te tenha deixado? A vivos não é fácil vero que vês. Há rios caudalosos e correntes perigosasa transpor. A começar pelo Oceano. Quem ousariaatravessá-lo a pé? Só com nau poderosa. Vens deTróia? Depois de quanto tempo? Te perdeste poraí com embarcação e companheiros? Ainda nãochegaste a Ítaca para ver teu palácio e tua mulher?’Retruquei ponderadamente a essa voz indagativa:‘Mãezinha, a necessidade me trouxe ao Hades. Vimpara me aconselhar com a sombra de Tirésias.Estou muito longe dos aqueus, ainda não cheguei àminha terra. Padeci muito. Navego sem rumo. Jávai longe o ano em que embarquei com destino àhípica Ílion sob o comando de Agamênon paracombater os troianos. Quero que me contes tudo.Que desgraça atraiu a morte impiedosa?Padeceste de doença prolongada? Foste vítimados projéteis suaves da frecheira Ártemis? Fala-me do meu pai e do filho que deixei. Meus bensainda estão nas mãos deles? Um outro se apossoudo que é meu? Acham que não voltarei? Fala-meda minha mulher. O que sente ela?O que pensa? Nosso filho está com ela? Ela cuidado que é nosso ou um aqueu, um dos nobres,a levou?’ A resposta da minha querida mãe foi esta:‘Ela te espera. Que coração paciente! Ela não sai dopalácio. Passa as noites gemendo. De dia, ela chora.Lágrimas lhe rolam pela face. Ninguém ainda seapossou do teu poder. Quem administra teus bensé ela. Ninguém o contesta. Freqüenta banquetes,praxe na vida de um príncipe que administra ajustiça. Todos o convidam. Teu pai vive no campo,não costuma ir à cidade. Dispensa colchões macios,tapetes, almofadas de seda. Durante o inverno,

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ele dorme com os escravos em casa, na cinza,junto à lareira. Veste grosseira cobre-lhe o corpo.Quando chega o verão e o outono opulento de frutos,aí seu leito é em qualquer lugar, no jardim, na vinhasobre as folhas que forram o chão. Recolhe-setristonho, a dor cresce-lhe no peito, sonha com teuretorno que não acontece. Curva-o o peso dos anos.Assim pereci também eu e cumpri o meu destino.Não foram os dardos de Ártemis, a flecheira, queme abateram carinhosamente em minha casa, nemfui colhida por nenhuma enfermidade que metivesse sugado a força dos ossos para me debilitar.Matou-me a saudade, as preocupações por ti, meuquerido Odisseu. O afeto tornou-me amarga a vida.’Essas palavras me abalaram. Desejei aproximar-mecom ternura daquela que me deu a vida, abraçá-la.Três vezes tentei estreitá-la nos braços, guiada pelocoração. Três vezes ela me escapou. Era só imagem,sonho. A dor, uma espada, penetrou no meu coração.Minha angústia agitou as asas de palavras minhas:‘Por que te esquivas, mãezinha, por que não terendes a meu afeto? Não podemos abraçar-nos naMorte para aliviar em lágrimas o tormento que nosconsome?’ Enviou-me a impiedosa Perséfone umfantasma para aguçar a amargura que me envenena?Tocou-me os ouvidos acariciante a voz materna:‘Filhinho, deplorável entre deploráveis, não souilusão de Perséfone, filha de Zeus. A lei que regeos mortais determina que os tendões soltem acarne e os ossos dos que expiram. A força ardentedo fogo reduz o corpo a cinzas. Quando a vida seretira da óssea brancura também a psique bate levesasas e se dissolve como um sonho. Apressa-te,regressa à luz o quanto antes, guarda na memória oque viste para que possas transmiti-lo a tua mulher.’“Enquanto trocávamos palavras, apinharam-semulheres, incitadas por Perséfone, companheirasde leito e filhas de heróis. Reunidas em torno dosangue, eu deliberava sobre a maneira de abordar

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cada uma delas. Esta decisão pareceu-me de todasa melhor: desembainhando a espada, presa aofêmur, julguei conveniente não permitir que seaproximassem todas ao mesmo tempo. Admitindouma de cada vez, dei a todas a oportunidade defalarem sobre sua linhagem. Notei Tiro, ponteando,mulher de alta estirpe. Disse ser descendente deSalmoneu, herói notável. Teve como esposo Creteu,descendente de Éolo. Tiro andava apaixonada porum rio, Enipeu, indubitavelmente o mais belodos que fluem sobre a superfície terrestre, dondeo desejo de passear às margens sedutoras do amado.Assumindo o aspecto dele, o Guarda-Terra dormiucom ela junto à foz turbilhonante do rio. Uma ondase empina sombreada à altura de um monte paraesconder a venturosa mortal em braços divinos.De cinto afrouxado por mãos celestes, ela adormeceu.Concluído o delicioso encontro, o imortal toma aa mãozinha da mortal e lhe cochicha ao ouvido:‘Não esqueças este momento. No transcurso de umano, serás mãe de crianças luminosas. Nunca seráinfecundo o aconchego carinhoso a um peito divino.Teus cuidados os farão crescer. Guarda silêncio. Nãoreveles meu nome. Sou Posidon, o Abala-Terra’,o Senhor dos mares falou e submergiu nas ondasazuis. Ela, grávida, foi mãe de Neleu e Pélias.Ambos são poderosos servidores do grande Zeus.Pélias reinou em Iolco, rica em rebanhos e danças.A arenosa Pilo foi o território de seu irmão, Neleu.Com Creteu, esta rainha tive outros filhos: Eson,Ferete e Amitaon, campeão em corrida de carros.Apareceu-me depois Antíope, filha de Asopo. Terdormido com Zeus era a glória dela. Teve deledois filhos: Anfião e Zeto, fundadores de Tebas.Ergueram torres. Cercaram a cidade com umamuralha de sete portas. Sem forte proteção, seriaimpossível viver na cidade das célebres danças.

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“Vi, depois, Alcmena, a esposa de Anfitrião. Esta,passando pelos braços do grande Zeus, teveHéracles, herói com têmpera de aço e coraçãode leão. Vislumbrei também Mégara, filha deCreonte, esposa do filho imbatível de Anfitrião.

“A mãe de Édipo eu vi, a bela Epicasta[2], culpada degrave crime, cometido na ignorância, ao casar comseu filho. Este uniu-se à mãe depois de matar o pai.Não demorou, os homens, alertados pelos deuses,descobriram o crime. Enfrentou muitas dificuldadesna aprazível Tebas no decurso de seu reinado. Osdeuses não aprovaram seu enlace. Epicasta desceu aoHades, palácio de sólidas portas. Enforcou-se comum laço em trave alta. Deixou ao filho herançade dores. As Erínias[3] da mãe trataram de executá-las.

“Vi Clóris. Atraído pela formosura dela, Neleu aescolheu como esposa, mediante ricos presentes,última filha de Anfião, filho de Iaso, senhor deOrcômeno, capital dos mínios. Foi rainha de Pilose mãe de filhos esplêndidos: Nestor, Crômio,Periclímeno, guerreiros notáveis. E gerou Pero,maravilhosa, um espanto. Na vizinhança, todos aqueriam como esposa. Mas Neleu a reservou paraaquele que reconduzisse de Fílace os bois de largatesta, arrebatandando-os de Íficlo, que ciosamente osguardava. Um vidente sagaz garantiu-lhe realizara tarefa, embora difícil. Severa determinação divinao deteve, boiadeiros do campo o prenderam compesadas cadeias. Meses e dias se escoaram. Decorreuum ano, volveram as estações. Só então o forteÍficlo o libertou, por lhe haver revelado a vontadedivina. Cumpriu-se assim o desígnio de Zeus.

“Leda eu vi, a mulher que dormia com Tindareu.Desse herói ela teve dois filhos corajosos: Castor,

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domador de cavalos, e Pólux, exímio pugilista. Ume outro vivem, embora cobertos pela terra produtiva.Privilegiados por um favor concedido por Zeus,alternam vida e morte: passam um dia com vivos,outro com mortos. Recebem assim honra divina.

“Depois de Leda, veio Ifimédia, que dormia comAloeu. Contou que tivera um caso com Posidon.Deu-lhe dois filhos de vida curta: Oto, de aspectodivino, e Efialto, conhecido de muitos. A glebafez deles gigantes. Foram, sem dúvida, os maisencorpados depois do renomado Órion. Noveanos e nove côvados de largura. A altura era alargura tresdobrada. Esses rapazes ousaram atacaros imortais no Olimpo. Queriam deflagrar nasalturas tumultos de guerra. Passou-lhes pelobestunto montar o Ossa sobre o Olimpo e empoleiraro Pélio nas costas deste. Escalariam assim o céu. Sechegassem à maturidade, o projeto seria viável. MasApolo, filho de Zeus e da Leto dos belos cabelos,entornou o caldo. Ele os aniquilou antes de a barba lhessubir às fontes, antes de a penugem lhes cobrir a face.

“Vi Fedra, vi Prócris e vi Ariadne, filha de Minos,rei de projetos tenebrosos. A intenção de Teseufoi tirá-la de Creta para levá-la à colina da sagradaAtenas. O plano foi frustrado por Ártemis, que,enraivecida por fuxicos de Dioniso, a matou em Dia.“Vi Maira, vi Clímene e Erífila. Nojenta! Amandoouro acima de tudo, traiu o homem que a queria.Falar de todas, identificá-las, é inviável. Vi multidõesde esposas e de filhas de heróis. Antes de eu findar,findaria a Noite imortal. É hora de dormir, sejano navio com meus amigos, seja aqui mesmo. Cuidardo meu regresso compete a vós e aos deuses.”

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Interrompeu o relato. Encantados, ninguém abriaa boca. Som algum na sala sombria. Arete, movendoos alvos braços, foi a primeira a quebrar o silêncio:“Que vos parece este homem, feáceos, no aspecto, notalhe, no equilíbrio das decisões? Ele é meu hóspede,cada um de vós participa desta honra. Não se penseem abreviar-lhe a estada. Não sejais econômicosao presenteá-lo. Ele necessita de muito. Favorecidospelos deuses, abundam riquezas em vossas casas.”Falou, então, Equeneu, um ancião, um herói. A idadelhe conferia destaque entre os seus: “Amigos, não fogedo nosso escopo o que declarou a sábia rainha. Nãodecidamos, porém, antes de ouvir Alcínoo, aquipresente. Falar e agir é sua competência. Atentos, osfeáceos aguardaram o pronunciamento do rei: “O queouvimos será executado, falo assim por ter a honrade ser rei deste povo. Consinta o estrangeiro,ainda que muito deseje voltar, permanecer atéamanhã, tempo necessário para reunir todos osdonativos que lhe destinamos. Garantir-lhe retornoé o dever de todos, mormente meu, o rei.” Prevenido,respondeu-lhe ponderado Odisseu: “PoderosoAlcínoo, modelo para todos os povos, se meconstrangesses a permanecer por um ano parapreparar meu retorno ricamente brindado, eudeveria aceitar o convite. Voltar à minha terra demãos cheias, seria prova inconteste do meu valor.Eu seria admirado e estimado por todos em Ítacaà vista de tão eloqüente testemunho de minhasfaçanhas.” O rei mostrou-se sagaz na resposta: “Nãoé essa a impressão que me dás. Não tens aspectode trapaceiro à maneira de muitos produtos da negraterra, disseminados aos montes por aí, forjadoresde mentiras, de ignorada procedência. Sabes darforma à tua epopéia. Pensas elevadamente. Comhabilidades de aedo, narras teus mitos, não só osdos argivos, mas sobretudo os teus, comoventes.Conta-nos mais aqui e agora sem nada ocultar.Dos que te acompanharam a Tróia e lá acharam

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triste fim, viste alguém? A noite é longa, é semlimites. Hora para dormir não há. Temos sede defeitos, de maravilhas. Agüento ouvir-te até aoraiar do dia. Não canses, rogo, de nos brindar coma narrativa de teus trabalhos.” Veio a resposta doOdisseu das inúmeras façanhas: “Grande Alcínoo,sustentáculo de muitos povos, há hora para oemaranhado de mitos e há hora para dormir. Sedesejas acompanhar-me, não tenho como me opor.Ouvirás casos estarrecedores, desgraças que feriramos meus, devorados pela morte. Há casos de heróisque sobreviveram à guerra e no regresso tombaramvitimados pela ação perversa de uma mulher.

“Perséfone dispersou os fantasmas das mulheres, asgraciosas dispararam tontas para todos os lados.Veio a máscara de Agamênon, o filho de Atreu. Veiotriste. Outras máscaras o rodeavam, sombras dos quecom ele foram liquidados por Egisto. Assim foradeterminado. Viu e reconheceu-me num golpe só.Chorou alto. De faces úmidas, estendeu os braços.Queria tocar-me. Faltava-lhe tutano nos ossos.Tinha perdido a força. E era forte quando vivo. Osbraços lhe obedeciam destros. Vê-lo causava pena.Senti um repelão no peito. Chorei. Chamei-o pelonome. Meus lábios se abriram para lhe falar: ‘Meucaro filho de Atreu, distinto comandante de tropas,que tipo de morte te prostrou? Foi matança? Não medigas que te abateu Posidon em ondas gigantes, aosopro de ventos que ninguém tem vontade de ouvir.Tombaste em terra firme a braços com inimigos numaincursão para roubar bois? Foi por ovelhas de pêlobrilhante? Atacaste uma cidade para raptar mulheres?’A resposta a minhas perguntas veio em seguida:‘Filho de Laertes, meu inventivo Odisseu, não foiPosidon que me matou na travessia. Tempestadenenhuma me aniquilou. Não foram ventos. Emincursões terrestres sempre saí ileso. Foi Egisto. Oputo planejou minha morte mancomunado com

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minha mulher, uma cadela. Fui convidado a entrar.Era um banquete. Mataram-me como um boi.Berrei. Sangraram os outros. Morreram comoporcos. Foi bárbaro. No meio da sangria, ainda via brancura de dentes arreganhados. Pareciamvítimas para o festim de um rico. Casamento.Reunião de amigos. Presenciaste o fim de milharesem confronto isolado ou no calor da batalha.Teu ânimo teria desabado se tivesses visto aquilo,corpos tombados entre copos, sobre mesas, sobrea comida. Jazíamos num palácio, rios de sangue pelochão. Cassandra, a filha de Príamo[4] uivava do meulado – eu ouvi. Clitemnestra, essa vagabunda, a tinhagolpeado. Já no chão, procurei minha espada. Queloucura! Eu estava morrendo. A cadela se afastavade cola abanando e eu ia para a cova, para os braçosda Morte. Não lhe passou pela cabeça cerrar-meos olhos, fechar minha boca. Existe bruaca maisfedorenta que a mulher? Foi premeditado! Elaarquitetou essa porcaria toda. Armazenava a sujeirano peito: acabar com o próprio marido. E eu viviana ilusão de que meus criados, meus filhos mereceberiam quando eu voltasse para casa. Mas ela,no trono de crimes, se emporcalhou, cobriu-se debosta o mulherio, sem excluir as honestas.’ Elevociferava. Procurei responder sereno: ‘De fato,Zeus enxerga longe, castiga impiedoso a família deAtreu pela artimanha de suas mulheres desdesempre. Tombamos aos montes por causa de Helena,Clitemnestra te armou cilada quando combatias longe.’Nossa conversa corria assim. Ele ponderou: ‘Sirva-teisso de advertência. Nada de confiança excessiva,nem mesmo em tua mulher. Do que sabes, não lhe contestudo. Se revelas certos assuntos, guarda para timesmo outros. A morte não te virá de tua mulher.Sei que a filha de Icário é sensata, tem a cabeça nolugar. Em sensatez Penélope é campeã. Ao partirmospara a guerra, deixaste em casa uma jovem. Elaaconchegava um menininho, ele ainda não falava.

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Toma agora assento entre conselheiros. Olhosque te querem te contemplarão. Deverá receber-tede braços abertos. Desse privilégio minha mulherme privou. Não permitiu que visse meu filho. Elame abateu antes. Guarda o conselho que voute dar agora. Desembarca na tua terra em segredo.Esconde o navio. Já sabes que em mulheres nunca sepode confiar. Escuta. Quero uma informação.Notícia segura. É sobre meu filho. Ele ainda vive?Ouviste falar nele? Ele poderia estar em Orcômeno.Na arenosa Pilo, quem sabe? Teria ido aos camposde Esparta, à casa de Menelau? Meu divino Orestesjaz morto e enterrado?’ O que podia eu fazer além dedar-lhe resposta vaga? ‘Caro filho de Atreu, o queesperas de mim? Que posso te dizer? Se está vivo oumorto eu não sei. Palavrear ao vento não convém.’“Nessa troca de palavras tristes, entrecortadas de suspiros, 465lagrimamos muito, parados e acabrunhados. De repenterodopiou a sombra de Aquiles. A sombra de Pátroclo lheveio ao encalço. Veio Antítoloco, guerreiro corretíssimo.Revi Ajax, no porte, no talhe este superava todos. Entreos dânaos[5] não conheci ninguém igual a ele, excetuandoo Pelida. O espírito do veloz Aquiles me reconheceu numzás. As palavras que ele proferiu vieram chorosas: ‘Filhode Laertes, descendente de Zeus, Odisseu dos planosmirabolantes, estou espantado. Tua imaginação não temlimites? Como vieste parar no Hades, morada de finadosdescerebrados, fantasmas de mortais cansados de viver?’Expliquei-lhe que nada de excepcional tinha acontecido:‘Aquiles, entre os aqueus o guerreiro de maior valor.Estou em dificuldades, vim procurar Tirésias. Que meorientasse. Ainda não voltei à minha rochosa Ítaca. Nemperto de terras de aqueus eu cheguei, muito menosaos meus domínios. A desgraça não me larga. Bem estás tu.Não conheço homem mais sortudo, nem antes nem depois.Vivo, nós te tributávamos honras devidas a deuses. Eagora te encontro aqui como rei dos que passaram pelaterra. Não te queixes! Quem poderia ambicionar sortemais alta?’ A resposta dele não se fez esperar: ‘Não

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tentes embelezar a morte na minha presença, meuatilado Odisseu. Preferiria como cabra de eito trabalharpara outro, um pobretão, a ser rei desse povo de mortos.Vamos a outro assunto. Conta-me alguma coisa domeu glorioso filho[6]. Ele ainda brilha no campo de batalhaou explora outro ramo? Fala-me também desse homemnotável, Peleu[7], se tens notícia dele. Ele ainda mandasobre a imensidão dos mirmidões ou já o tiraram dopoder na Hélade e em Ftia por causa da idade? Ele aindacaminha? Mexe as mãos? Queres saber meu desejo?Eu gostaria de sentir o calor dos raios do sol parasocorrê-lo, como quando eu combatia na planíciede Tróia. Eu aniquilava batalhões para defender nossopovo. Se pudesse voltar, por breve que fosse, para acasa do meu pai, minha fúria e a força de meus braçosos poriam de joelhos, se é que esses desgraçadoso apearam do poder.’ Contestei sereno esse discursoapaixonado: ‘Para te ser sincero, do grande Peleu eunão sei nada. Mas do teu filho Neoptólemo te reveloo que sei. Espero satisfazer-te assim. Eu mesmo oconduzi em bem equilibrada nau de Esciro até aosaqueus de belas grevas. Costumávamos reunir-nospara deliberar sobre a cidade de Tróia. Foi sempre oprimeiro a falar e nunca se enganava no que dizia.Ficava atrás só de Nestor e de mim. No confrontocom nossos inimigos na planície troiana, elenunca se escondia na turba dos guerreiros. O lugardele era a vanguarda. Ninguém se igualava a ele.Feriu numerosos guerreiros no calor da refrega. Comodetalhar os embates? Enumerá-los seria difícil. Forammuitos. Fez muito por nossa gente. Por exemplo:tomou a couraça de Eurípilo, um herói, filho de Télefo.Derrubou muitos cétios a seu comando. Uma mulher,presenteada a ouro, meteu Télefo no conflito. Nuncavi homem mais belo, tirando Mêmnon, deslumbrante.Quando entramos no Cavalo de Pau, obra de Epeu,coube a mim, comandante daquele grupo de homensseletos, o encargo de abrir e fechar firmemente aporta. Nos olhos dos outros chefes e conselheiros

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dânaos, brotavam lágrimas, as pernas lhes tremiamcomo varas verdes. Mas no rosto de Neoptólemoeu não vi palidez alguma. Nunca levantou a mãopara enxugar uma única lágrima. Queria, ao contrário,sair do cavalo. Implorava. De mão na espada, delança erguida, queria avançar a ferro contra os troianos.Saqueada a escarpada cidadela de Príamo, carregoupara o navio sua parte do despojo, além de um prêmioespecial. Na pele dele o ferro nunca penetrou. Daluta corporal, sempre saiu ileso, coisa rara na guerra.A loucura de Ares ali é total.’ Mal eu acabara defalar, a sombra do veloz neto de Eaco marchou alargos passos ao campo dos asfódelos. Partiu contenteao saber do comportamento exemplar do filho.“Outras sombras de mortos com passagem pela terraexpunham tristonhas os males que as afligiam. Só oespírito de Ajax mantinha-se distante, ressentidocomigo, colérico. Favorecido que fui por uma sentençaproferida junto às naus, que me dava direito à possedas armas de Aquiles. Oferecia-as a veneranda mãe doherói[8]. A decisão foi dos filhos dos Troas e de Atena.Quisera não ter vencido numa questão tão importante.A perda foi irreparável, a cabeça do próprio Ajax. Pelapresença e pelos feitos, foi ele o mais ilustre, comexceção do incomparável filho de Peleu. Abordei-ode voz mansa: ‘Ajax, filho de Telamon, nem mortoesqueces tua raiva contra mim por causa dessasmalditas armas? Não foram elas uma praga dos deusescontra nossa gente? Tu nos eras torre e agora porcausa delas estás morto. Choramos a perda de tuacabeça como a de Aquiles sempre e sempre. Quemfoi o culpado? Ninguém menos que Zeus. Lançoucontra os dânaos, imbatíveis no lance de lanças, ódioretumbante. Acionou a fatalidade contra ti. Acabemoscom isso, meu caro, eu te imploro. Fora com afúria! Aquieta teu coração.’ Não adiantou. Ficoucalado. Afundou no abismo dos que um dia foramvivos. Os outros espíritos o acompanharam. Sea raiva não fosse tanta, poderia ter-me dito uma

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palavrinha, eu teria respondido. Meu coração me disseque eu deveria ver outras sombras. Seria melhor.“Lá estava Minos. Empunhando um cetro de ouro,pronunciava sentenças a mortos. Fantasmas queriamsaber o que lhes determinava a justiça. Levantavam-se ante as largas portas do palácio de Hades.“Depois deste apareceu uma figura gigantesca, Orion,que juntava na campina de asfódelos animais selvagensabatidos por ele em caçadas pelos montes solitários,munido só de clava, de bronze maciço, inquebrantável.“Vi Tício, filho da Terra, estendido no solo. Ocupavanove jeiras. Dois abutres, um de cada lado, devoravam-lhe o fígado. Os bicos entravam nas entranhas. Asmãos imobilizadas não eram defesa. Ele violentaraLeto, a envaidecida amante de Zeus, quando esta sedirigia a Pito, atravessando campinas de Panopeu.“Vi também Tântalo de pé num lago, condenado atortura cruel. Embora a água lhe tocasse o queixo,padecia de sede porque não lhe era permitido beber.Sempre que o ancião se curvava pala aplacar a sede,a água recuava, sumia, desvelando o humo escuroa seus pés. Uma divindade irada provocava a seca.Árvores frondosas coroavam-lhe a cabeça de frutas:peras, romãs, maçãs – pendiam apetitosas, figosluziam doces, olivas seduziam entre folhas viçosas,mas quando os braços do velho se erguiam paratocá-las, a ventania as escondia na sobra das nuvens.“Pude ver Sísifo e seu trabalho extenuante,sustentar com os braços pedra assombrosa.Firmava-se com pés e mãos para revolvê-laperambeira acima até atingir o topo, mas quandoquase alcançava o cume, vencido pelo peso,o penedo insolente rolava até ao sopé. O trabalhotitânico recomeçava. O suor escorria-lhe pelosmembros. A cabeça movia-se numa nuvem de pó.

“Para encerrar, percebi o façanhudo Héracles, aliás,era miragem, num banquete, em companhia divina.Deliciei-me com os belos tornozelos de Hebe, filha

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do imponente Zeus, admirei Hera, calçada comsandálias de ouro. Aves em fuga se assanham,se agitam. Aves? Vastos volteios de mortos!Sombrio como a noite, os dedos prendem o arcodesnudo, ajustando o flecha no nervo, lúgubre olhar,sedento de tiro. Tétrico tilinta-lhe no peito o talim.Áureo talabarte coberto de obras de arte:ursos, porcos selvagens, olhos chamejantes de leão,combates, refregas, mortes, matança. O artista quese esmerou na construção desse boldrié não seriacapaz de igualá-lo no labor de outro. Héracles mereconheceu, logo que botou os olhos em mim. Minhasorte lamentada soou em suas palavras esvoaçantes:‘Produto de Zeus, filho de Laertes, Odisseu de vastosrecursos, pelo que se vê, carregas um destino cruel,infeliz. Em trabalhos à luz do sol, vejo que te igualasaos meus. Embora eu fosse filho do Cronida, meusinfortúnios não terminavam. Eu estava sujeito a umsujeito mesquinho. Ele me pedia coisas impossíveis.Teve a petulância de pedir que eu lhe trouxesse o cãodaqui. Façanha maior não existe. E eu conseguitirá-lo. Roubei-o de Hades. É verdade que Hermesme ajudou, os olhos corujosos de Atena também.’Héracles fechou a boca e se enfiou no palácio deHades. Agüentei firme na expectativa de outro varãoilustre já morto, valente de outros tempos. Haviamultidões. Eu podia escolher. Por exemplo: Teseu,Pirítoo, ambos filhos decantados de deuses... Antesde eu me decidir, o povo dos finados vinha aosmontes. Gritaria infernal. Fiquei pálido de medo.E se viesse a cabeça de Górgona, monstro horrível?Perséfone, desgraçada, seria capaz de enviá-la dosfundos da casa de Hades. Saí correndo. Chamei meushomens. Embarcassem! Soltassem as amarras!Ocuparam seus lugares nos bancos. As ondas noslevavam pela corrente do Oceano. O barco deslizouprimeiro a remo, depois soprou um ventinho amigo.”

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[1]. Segundo os gregos, ao beber sangue os espíritos se corporificavam, tornandopossível que se falasse com eles. (N.E.)[2]. Em outras versões, como a de Édipo Rei, de Sófocles, a personagem aparececomo Jocasta. (N.E.)[3]. Divindades que se ocupam de vingar crimes, sobretudo aqueles que atentamcontra famílias. (N.E.)[4]. Que Agamênon havia tomado como butim de guerra e que, dotada do dom daprofecia, tentou alertá-lo para o que o aguardava ao voltar para casa. (N.E.)[5]. Descendentes de Dânaos, neto de Posidon, fundador e rei lendário da antigacidade de Argos, no Peloponeso (Grécia); sinônimo de argivo; grego. (N.E.)[6]. Neptólemo. (N.E.)[7]. Pai de Aquiles. (N.E.)[8]. Tétis, uma das Nereidas, divindades-filhas de Nereu, deus marinho. (N.E.)

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Canto 12

“Depois que a nau deixou a corrente do Oceano,atravessamos as ondas do mar de amplos percursosaté alcançar a ilha de Eéia, sítio da Aurora dosdedos róseos, de danças e berço de Hélio. Aoaportarmos firmamos o navio na areia. Baixamostodos ao litoral em que se quebram as ondas.Cerramos os olhos até nos despertar a Aurora.Quando a luz auroral pintou o céu, enviei amigosao palácio de Circe com a incumbência de buscaremo corpo de Elpenor, colhido pela morte. Comtroncos abatidos prestamos-lhe homenagens fúnebresno promontório, com gemidos e lágrimas fartas. Aschamas devoraram o corpo e as armas do desastrado.Erigimos-lhe um túmulo e levantamos uma estela.Um remo ereto completou a homenagem, Cumprimosos ritos à risca. Circe não ficou indiferente ao nossoretorno do Hades. Procurou-nos ataviada. As servasque a acompanhavam – eram duas – nos abasteceramde pão, de fartas porções de carne e de vinho, rubro eluzente. Tomando o centro, ouvimos-lhe a voz divina:‘Estupendo! Entrastes vivos no reino de Hades.Sois bimortais, pois os outros lá entram uma vez só.Ânimo, fartai-vos de carne e pão. Bebei o dia todo.Partireis só amanhã quando a Aurora pintar o céu.Eu vos ensinarei o caminho. Assinalarei cada etapa.Quero que a viagem transcorra sem erros, semimprevistos. Evitarei sofrimentos no mar e na terra.’Eu estava receptivo. As palavras dela calaram no meucoração. O dia inteiro foi de festa até o sol declinar.Saboreamos assados e regalamo-nos com bons vinhos.O sol baixou. Veio o pretume do noite. Deixei meushomens estendidos junto às amarras. Tomando-mea mão, ela me afastou dos companheiros. Deitada

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a meu lado, quis que lhe detalhasse a aventura. Nãolhe ocultei nada. Ela acompanhou a seqüência dosfatos. Ouvi, então, as palavras senhoriais da deusa:‘Tudo isso chegou a um término feliz. Agora escuta.Uma outra voz divina te gravará na mente o que vaisouvir. Sereias serão tua primeira prova. ElasEncantam todos os que porventura passam por elas.Quem inadvertidamente se entregar ao cantodelas nunca mais retornará ao lar, nunca mais cairános braços da mulher, não verá os pequerruchosnunca mais. Elas enfeitiçam os que passam,acomodadas num prado. Em torno, montes decadáveres em decomposição, peles presas a ossos.Evita as rochas. Tampa com cera os ouvidosdos teus companheiros para não caírem naarmadilha sonora. Se, entretanto, quiseres oo mel do concerto delas, ordena que te amarremde pés e mãos ereto no mastro. Que o nó sejaduplo. Entrega-te, então, ao prazer de ouvi-las.Se, por acaso, pedires que afrouxem as cordas,ordena-lhes que as apertem ainda mais. Sevencerdes incólumes esse obstáculo, não querorelatar detalhes do que virá depois. Tu mesmodeverás decidir qual das direções te convém.Posso caracterizar-te as duas alternativas.De um lado, rochas íngremes. Quebram-se alios vagalhões da Anfitrite[1] de cenho sombrio:Planctas, Moventes, é o nome que os Supremoslhes deram. Volátil algum transvoa essas pedras,nem mesmo trêmulas pombas, portadoras deambrosia a Zeus Pai. A uma delas tritura semprea lisa pedra. O Pai envia outra para preservaro número. Nave nunca jamais fugiu nenhuma.Lá flutuam tábuas de naus, cadáveres de homens,levados pelo sal das ondas, pelo fogo voraz dosventos. Só a uma nau transmarítima foi consentidotravessia, a decantada Argo ao voltar de Eetes.Mesmo essa teria sido lançada contra o penedo,não fosse Jasão tão caro a Hera. Mais adiante,

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erguem-se dois alcantis. A ponta de um penetrano cerúleo mar celeste. Uma nuvem negra o coroasempre. Não esboroa. Nunca a claridade iluminao pico, nem no outono, no verão tampouco.Mortal algum o escalaria, nem se manteria no topo.Vinte pés e vinte mãos lhe valeriam bem pouco.Tão lisa é a rocha que parece lavrada. Abre-seno meio da rocha uma caverna sombria, voltadaao Ocidente, para o Érebo. Convém que naveguesprecisamente nessa direção, iluminado Odisseu.Atirador algum, por robusto que seja, se alvejara caverna desde a nau bojuda, poderá alcançá-la.Essa é a morada de Cila, a terrível ladradora. Latelá dentro ao jeito de uma cadelinha recém-nascida;trata-se, entretanto, de um mostro devastador,ninguém gostaria de vê-la, nem mesmo um deus.Dotada de doze pés, disformes todos, ostentaseis pescoços exageradamente longos. Cada umacaba numa cabeça assustadora. A bocarra comdentuça tríplice de compactos e sólidos dentesé ninho da morte. Metade do corpo some no fundodo antro, mas as cabeçorras avançam, aterradoras.Explorando o rochedo, caça delfins, lobos marinhos.Abocanha, por vezes, monstros encorpados, dessesque Anfitrite produz aos milhares. Nauta nenhumse vangloria de evasão sem prejuízo. De cada navioque passa o monstro arrebata seis marinheiros.Esse é o preço pago pelos navios de enegrecida proa.Verás, Odisseu, outro escolho, mais raso. Entre ume outro, a distância é pouca. Uma seta a vence. Lá seergue uma figueira robusta de luxuriante folhagem.Ao sopé do rochedo, a água negra desce pela goelade Caribde. Três vezes ao dia, ela a expele parareabsorvê-la fragorosamente depois. Não estejas porlá na sucção. Ninguém te salvaria, nem mesmo oAbala-Terra. Navega, portanto, perto do escolho deCila sem hesitar. Te é mais vantajoso deploraro sumiço de seis companheiros do que perder todos.’Reagi assombrado: ‘Minha Deusa, estou transtornado.

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Responde-me com franqueza. Digamos que consigaescapar da devastadora Caribde. Poderia eu atacar aoutra quando ela tentasse molestar meus remeiros?’A resposta não demorou e foi certeira: ‘Estás louco?Não há nada em tua cabeça além de ações bélicas?Queres sangue? Não recuas nem diante de deuses,de imortais? Cila não morre. Pertence às calamidadesindestrutíveis: é cruel, é assombrosa, é selvagem.Não há solução. Fugir dela é o melhor remédio. Seperderes tempo diante da rocha para te armar, temopor ti. As cabeças de Caribde poderiam voltar emnúmero igual para arrebatar mais seis homens teus.Passar por ela é o mais sensato. Invoca Crateis, a mãede Cila. Foi ela que a gerou para flagelar os mortais.Só ela poderá impedir novo ataque. Chegarás depoisa Trinácia, uma ilha. Verás campos em que pastamvacas e ovelhas sadias em quantidade: sete rebanhosde bois e outros sete de ovelhas. Belo espetáculo!Cinqüenta cabeças em cada rebanho. Nunca procriamnem perecem. Os rebanhos são pastoreados porninfas de cabelo bem arrumado, Faetusa e Lampécia,filhas da divina Neera e de Hélio Hipérion. Adivina mãe não só as gerou como também as educou.Levou-as então para a distante ilha de Trinácia. É aíque elas moram com o encargo de guardar as ovelhase as moventes vacas do pai. Se não lhes fizeres male cuidares só do regresso, as provações te levarão aÍtaca. Mas se as molestares, prevejo ruína para tuanau e para os teus. Poderás escapar, embora teuregresso seja retardado e percas teus companheiros.’

“A Aurora, em trono de ouro, amanheceu na fala deCirce. Enquanto a deusa entre deusas se distanciavailha acima, aproximei-me dos companheiros comordens de embarque. Soltassem os cabos. Executadaa ordem num piscar de olhos, ocuparam seus lugaresnos bancos. Os remos bateram ordenados no salcinza do mar. O sopro leve de Circe, a misteriosacantora dos cabelos agitados, vindo de trás,

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enfunava as velas. A proa negra da nave cortava asondas. Os trabalhos com os apetrechos da nauenchiam as horas. Sentados, observamos o piloto eo vento dirigirem o barco. De coração pesado,dirijo-me aos meus: ‘Amigos, não é segredo paraum ou para dois o que a divina Circe, intérpreteda voz celeste, me confiou. Revelarei o que nosespera. Podemos morrer ou escapar incólumes.Atenção aos perigos! Evitar a voz arrebatadoradas Sereias e os campos floridos em que moram éa primeira providência. Só a mim está reservadoouvir o canto. Amarrai-me firmemente. Nãodeverei arredar o pé. Estarei ereto junto ao mastro.Atem-me com laços apertados. Se eu rogar queme soltem, a tarefa de vocês será redobrar o nó.’Expliquei tudo, tintim por tintim.Sem tardar nossa bem talhada nau atingiu a ilhadas Sereias, impelida por propícia brisa. Súbitoserenou o vento. Serena imperou a calmaria.Sono divino baixou sobre ondas exaustas. Meushomens atentos recolhem ao porão as inválidasvelas. Retornam ordeiros ao renque de remos.Salta a espuma aos golpes do liso abeto.A bronze talho em porções um disco de cera.Meus braços possantes amassam pedaços.Ao calor escaldante de Hélio imperial amolecemas partes partidas da cera. Tapo em tempo ostímpanos de todos no barco. De pé me atamos membros no mastro. Reforçam os nós naspontas de possantes calabres. Retornados aosremos, remeiros ferem o cinza das ondas.Distantes da praia não mais que o embate doberro, não ignoram as Sereias a nau que decididasingra tão perto. Entoam, então, doce canção:‘Pra perto, preclaro Odisseu, pra perto, brilhanteaqueu, nosso hino delicie de perto o teu coração.Todos nos ouvem. É a regra. Sem nosouvir ninguém passou aqui em nau negra.Com nosso saber prossegue mais pleno. Do que

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se passou nos campos de Tróia sabemos tudopor divino favor, os padecimentos de troianose argivos, mais o ocorrido na prolífera terra.’Versos tais nadavam no ar. Meu coração insaciávelpedia mais. Quero que os companheiros afrouxemas cordas. Com o cenho aceno. Porém maisrápidos movem-se os remos. Surgem Perimedese Euríloco. Arrocham e dobram os nós. Os braçosaderem mais firmes ao mastro. Os remos batemfirmes e levam a nave pra longe. Os tons mortíferostombaram, silenciaram remotos. Meus carosremeiros removem a cera dos ouvidos e me soltam.

“A nau, deixando longe a ilha, rasga o pretume danévoa. Eleva-se a meus olhos a onda. O estampido!Das mãos temerosas escapam os remos. Vagamosdesgovernados. Ruge o mar. Desamparada debraços potentes, rola a nau à deriva. Percorro anave, conforto os camaradas. Abordo umpor um com palavras serenas: ‘Caríssimos,experimentados somos em toda sorte de males.Este não é maior que o da caverna. Prisioneiroséramos, então, de ciclópica, desumana força.Meu valor, meu conselho, minha inteligênciagarantiram a fuga. Estão lembrados? Atençãoao que digo! Quero a obediência de todos. Apostos! Decididos penetrem os remos nos fortesvagalhões. Escapar deste flagelo depende só dasoberana vontade de Zeus. Dele virá salvação.Tu, meu piloto, guarda no peito as ordens quedeterminado transmito. O norte da nau está emtuas mãos. Afasta o navio daquela cerração edaquelas vagas. Não tires o olho do escolhofronteiro. Uma falha tua será fatal para todos.’Todos aderiram ao vigor da minha palavra. Nãolhes falei de Cila, da cilada inelutável. O medolhes afrouxaria os braços. Quem moveria osremos? Se uns esbarram nos outros, ai de nós!

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Escapou-me a constrangedora recomendaçãode Circe, de que eu não me armasse. Contrasuas palavras, vesti a couraça, orgulho meu,empunhei duas lanças, das longas, postei-mena torre da proa. De lá eu poderia observar a Cilados rochedos, ruína dos meus companheiros.Mas ela não aparecia. Meus olhos cansaram deprocurá-la escrupulosamente no tenebroso rochedo.Angustiados, navegamos ao longo do estreito:de um lado, Cila; do outro, Caribde, a terrível, aque chupava a água salgada do mar. Ao vomitá-la,ferve a água como num caldeirão aquecido pelaschamas. A espuma salta ao pico dos escolhos echove esbranquiçada sobre eles. Quando Caribdeabsorve a salgada água marinha, turbilhonatoda para dentro de si mesma. Rouca ronca arocha. Ao sopé, eleva-se o dorso da terra, negrejaa areia. O pavor empalidece meus homens.Temendo o fim, não tiramos os olhos dela. Descem,entrementes, as cabeças de Cila dos rochedos earrebatam seis, excepcionais no vigor e nos braços.Quando volto a inspecionar meu barco e meushomens, percebo braços e pernas que se agitamno ar. Gritavam por mim. Chamavam-me pelonome. Pela última vez! Doía-me o coração.Ocorreu-me o pescador postado em alto rochedo.O caniço pende longo, isca dolosa atrai os peixes.Desce, então, o chifre do boi campestre paraapanhá-los, sobem palpitantes para o alto. Vi assima sorte dos meus ao espernearem rumo à pedra.O monstro devorou-os na entrada. Berravamde mãos estendidas para mim na batalha inglória.De tudo quanto meus olhos viram nos caminhossalgados, espetáculo nenhum superou esse.

“Escapamos, por fim, das rochas, de Caribde e deCila. Chegamos, então, a uma ilha divina. Eramaravilhosa. Bois esplêndidos pastavam. As testaseram largas. Ovelhas robustas. Eram os rebanhos

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de Hélio Hipérion. Mesmo da nau, ouvíamos o mudos bois nas mangueiras e o mé das ovelhas.Veio-me à mente a palavra do vidente cego,o tebano Tirésias e a que ouvi de Circe em Eéia.A advertência me vinha de ambos, que eu deveriaevitar a ilha de Hélio, alegria dos mortais.Custou-me muito, mas eu tive que falar aos meus:‘Vocês sofreram muito, meus caros, mas tenhouma palavra a lhes dizer. São agouros de Tirésiase da Circe de Eéia. Foram enfáticos. Que não meaproximasse da ilha de Hélio, alegria dos mortais.Advertiram que um mal iminente nos espreitava.Afastemo-nos deste lugar. É para nosso bem.’Minhas palavras arrebentaram-lhes o coração.Euríloco enfrentou-me com objeções severas:‘Crueldade tua, Odisseu! És duro. Nunca te vicansado. És um monumento de ferro maciço.O cansaço consome teus companheiros, Odisseu,e tu não nos deixas dormir. Não queres quedesembarquemos. A ilha nos seduz com delícias.Ordenas que atravessemos a noite famintos?Queres ver-nos no mar sombrio, longe da terra?Da noite nascem ventos assassinos, mortíferospara embarcações. Como escapar da ruína? Derepente, uma tempestade. Vem donde? Do sul,do leste bravio? Ventos que desmantelam navios,mesmo contra disposições celestes. Querem meuconselho? Respeitemos a noite que nos abraça.Preparemos a ceia ao lado da nau. Ao clareardo dia, enfrentaremos as sombras do mar.’Euríloco foi aplaudido por todos. Compreenditudo. Uma divindade planejava nossa ruína. Nãome calei. As palavras voaram-me da boca: ‘Estousó, Euríloco. Sou obrigado a me submeter. Jurem.Juramento forte! Quero a palavra de todos. Vamosencontrar numerosos rebanhos de bois e de ovelhas.Não façam loucuras. Ninguém bote dedo em rês.Não sujem as mãos nem com vaca nem com ovelha.Comam a comida que receberam de Circe.’ Falei

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isso. Eles não se opuseram. Juraram como pedi.Finda a cerimônia, cumprido o ritual, ancoramosnosso sólido navio no amplo porto. Água doceencontramos bem perto. Os companheiros, logoque desembarcaram, prepararam a ceia com dedode mestre. Mitigada a fome e a sede, passaram aevocar os amigos que, inesperadamente arrebatados,foram parar no ventre de Cila. Solene foi o pranto.O sono reconfortante silenciou o lamento. Corriaa terceira parte da noite, os astros já em queda,Zeus, pastor de nuvens, levantou um vento bravio,uma tempestade devastadora. Nuvens compactasesconderam terra e mar. O pretume baixou do céu.A Aurora madrugadora levantou, enfim, os dedosróseos. Arrastamos a nau para uma gruta profundae a firmamos perto de assentos de ninfas e pátiosde dança. Convoquei todos para uma reunião e falei:‘Amigos, reforço a ordem. Sirvam-se do que temosno navio. Não toquem nos bois para evitarcalamidades. Estes bois e estas ovelhas pertencema Hélio. Enxerga tudo, escuta tudo. E é severo.’Submeteram-se ao decreto sob protesto. Soprava oNoto. O vento Norte nos fustigava sem cansar. Porum mês inteiro, Noto, Euro, e nada mais. Enquantoresistia o suprimento de pão e vinho tinto, não sepreocuparam, satisfeitos que estavam com a bóia.Quando tudo tinha sido consumido; tangidos pelanecessidade, começaram a percorrer a ilha. Comganchos retorcidos, caçavam o que encontravam,peixes, aves, o que estivesse ao alcance da mão.A fome castigava. Subi a uma elevação. Implorei.Que os deuses me mostrassem uma saída!Andando, distanciei-me dos amigos. Purifiqueias mãos num lugar abrigado do vento e dirigi umaprece a todos moradores do Olimpo. Derramaram adoçura do sono nos meus olhos. Euríloco se valeuda oportunidade para dar maus conselhos:‘Escutem-me, amigos, depois de todos os males quesofremos, qualquer morte assusta os pobres mortais.

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Morrer de fome, chegar faminto ao fim é a pior. Porque esperar? Escolhamos uma vaca de Hélio, umadas melhores, e a sacrifiquemos aos deuses, senhoresdo vasto céu. Se nos for concedido retornar a Ítaca,construamos um templo vistoso a Hélio, o Brilhante,ornado de estátuas distintas. Se o sacrifício dessasvacas de chifres direitos ofender uma divindade,apoiada por outras, e se isso nos levar a naufrágio,prefiro expirar num zás engolindo água salgadaa morrer lentamente nesta ilha deserta.’ As palavrasde Euríloco foram aplaudidas por todos. Trataram deapoderar-se logo das vacas mais nutridas de Hélio,as testas-largas, as pêlos-brilhantes, as gorduchonasque costumavam pastar perto da nau. Os remeirosas cercaram de braços levantados aos deuses.Colheram folhas tenras das compactas copas doscarvalhos por já ter acabado o suprimento de farinhapara oferendas. Rezaram, carnearam e esfolaram.Extraídas as coxas, cobriram-nas com duas camadasde gordura, revestida de porções de carne vermelha.À falta de vinho para as libações, serviram-se deágua. Levaram as vísceras ao fogo. As coxas ardiamno braseiro, enquanto saboreavam as entranhas.Retalhado o restante, espetos espetam as postas.Retira-se de minhas pálpebras o brando sono. Volviveloz para a nau, firmada na beira do mar. Aoaproximar-me do navio que eu prezava tanto, ocheiro apetitoso penetrou-me as narinas, minhassúplicas subiram ao trono dos imortais: ‘Zeus Paie vós outros deuses de perene existência,imobilizado pelo sono, caí na desgraça. Na minhaausência, os meus executaram um ato brutal.’ Nãodemorou, o longo véu de Lampécia fulgiu diantede Hélio Hipérion. A deusa levou-lhe a violentanotícia. Escureceu o coração do Sol. Declarou aosimortais: ‘Zeus Pai e vós outros sempre vivos,castigai os companheiros de Odisseu, sãocriminosos. Mataram vacas minhas. Com alegriaeu as contemplava ao subir ao céu estrelado e

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ao retornar à terra, finda minha jornada celeste.Se eles não forem punidos com sentença exemplar,mergulharei no Hades, passarei a iluminar mortos.’Pronto veio resposta de Zeus Guarda-Nuvens:‘Hélio, continua a enviar tua luz aos imortais e aosmortais sobre a frutífera terra. O fogo dos meusraios atacará os infratores. Verás os estilhaçosde sua embarcação flutuar sobre o mar cor de vinho.’Obtive essas informações de Calipso. Elaafirmou tê-las ouvido de Hermes, Guia-Brilhante.Desci à nau. Desci ao mar. Eu estava revoltado.Repreendi todos, um por um. O que fazer? TudoEstava perdido. Os bois já tinham sido abatidos.Dos deuses logo vieram sinais prodigiosos: pelesserpenteavam, carne nos espetos mugia, assadaou não. O mu das vacas se propagava sonoro. Seisdias durou o festim dos meus queridos amigos.Banqueteavam-se com as vacas de Hélio. Só entãoZeus, o Cronida, enviou-nos um dia sereno.Serenou o vento, a fúria da tempestade.Embarcamos às pressas para ganhar o mar alto.Subiu o mastro. Desfraldamos o branco das velas.A ilha recuou para além da linha do horizonte.Nesga nenhuma de terra se via, só terra e mar.Zeus baixou uma nuvem tenebrosa sobre nossabojuda nave. A sombra cobriu a face líquida.Nossa embarcação não correu por muito tempo.Zéfiro ululou forte na furiosa procela. Um golpeventoso rompeu os dois cabos. O mastro inclina-separa trás, vacila e tomba. A sentina suga acordoalha. O tronco bate na popa e quebra acabeça do piloto. Estilhaça os ossos do crânio detodos. O corpo mutilado se eleva e gira no arem salto de acrobata. O espírito aguerridoescapa do peito. Os raios de Zeus bailam na proa.Aos golpes de Zeus, tremem barrotes, alastram-sevapores de enxofre. Meus companheiros somemda vante. Quais gralhas marinhas cercam ocasco. Os céus negaram-lhes o sonhado regresso.

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“Corro e percorro a nave. Guascaços de águaarrombam paredes, quebram barrotes, arrancama quilha, que monta no dorso da onda afoita.Vagalhões arrastam o mastro. Agarro a correia naponta do tronco à deriva e o amarro à quilha. Naimprovisada jangada fustigam-me ventos funestos.Zéfiro serena, a tempestade tempera. Mas o Notoavança e atiça dores no meu coração. Devo retornara Caribde, monstro aterrador? Por uma noiteinteira escoltam-me ondas até à fímbria do dia.Aqui estou: no promontório de Cila, no de Caribde.Esta é a hora de ela sugar as águas do mar.Agarro-me, de um salto, ao tronco da figueira.Imito no gesto o morcego. De nada me valem ospés, não tenho onde firmá-los. Subir não posso.Longe demoram as raízes, altos elevam-se os galhose deitam, compactos, sombra sobre Caribde. Firmeaguardo que o monstro vomite mastro e quilha.Longa é a espera. Voltam ao meu olhar atento.Chega o tempo em que o juiz retorna para cear,dirimidos muitos conflitos de partes contrárias. Nãofoi menor a espera por meus destroços deglutidos.Relaxando mãos e pés, deixei-me cair. Mergulheicom estrondo próximo aos pedaços. Empoleiradoneles, recorri às mãos para remos. O Pai dos homense dos deuses teve o cuidado de tapar os olhos de Cila.De outro modo eu não teria escapado. Flutuei durantenove dias. Na noite do décimo, os deuses medepositaram nas areias de Ogígia, onde vive Calipso,a deusa dos belos cabelos. A ninfa assombrosa falalinguagem humana. Recebeu-me em seu leito eem seus cuidados. Deverei repeti-lo? Narrei-o ontem,meu rei, a ti e a tua esposa aqui no teu palácio. Meseria penoso retornar, em detalhes, ao mesmo assunto.”

[1]. Esposa de Posidon e, portanto, senhora dos mares. (N.E.)

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ODISSÉIA III

ÍTACA

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Canto 13

Os mitos de Odisseu selaram a boca de todos. Silêncio.O encanto imobilizou a sala sombria. A voz deAlcínoo foi a primeira a romper o arrebatamento:“Visto que tocaste, Odisseu, a brônzea soleira domeu palácio, não creio que continues a vagar sem rumodepois de já teres sofrido tanto para retornar aos teus.Dirijo-me a cada um dos que freqüentam minha casa,experimentam o brilho do meu vinho escrupulosamenteenvelhecido e absorvem a voz deste incomparávelaedo. Numa arca polida já estão guardados os presentesdo hóspede: vestes, ouro trabalhado com esmero,dádivas oferecidas pelos conselheiros feáceos.Acrescentemos uma grande trípode e uma caldeira.Seremos ressarcidos por donativos do povo. Semindenização, a generosidade seria carga insuportável.”Aplausos aprovaram a proposta do rei. Cansadose com sono, cada um procurou sua própria casa.

Aos primeiros sinais dos dedos róseos da Aurora,os feáceos procuraram a passos largos a nau, levandosólido bronze. A força do próprio Alcínoo recebiaos presentes e os ajeitava debaixo dos bancospara não perturbarem o movimento dos remadores.De lá os doadores se dirigiram ao palácio para cuidardo festim. O poderoso Alcínoo sacrificou umtouro a Zeus Cronida Rege-Nuvens, Senhor universal.Estalos no braseiro. O banquete foi uma delícia.Demódoco brindou os convivas com cantos divinos.Entusiasmo geral. A cabeça de Odisseu consultava acada instante a posição do sol. Que desaparecesseduma vez! Só lhe interessava o retorno à pátria.Imagine-se um lavrador impaciente após um diade trabalho. A ceia não lhe sai da cabeça. Um dia

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inteiro atrás de bois molengas. Que a noite caia,não pode desejar outra coisa. Doem-lhe os joelhos.Entendemos agora os sentimentos de Odisseu?Impaciente, Odisseu se dirigiu ao povo dos remadores,a Alcínoo em particular: “Poderoso Alcínoo,modelo ilustre para todos, feita a libação, rogo queme deixes partir sem mais delongas. Estas são minhaspalavras de despedida. Proporcionastes-me tudo oque meu coração poderia desejar: navio equipado,estes presentes. Rogo que os deuses celestes vosabençoem. Espero que, ao chegar em casa,encontre bem minha esposa e os que a cercam. Queroque vós, os que ficais, possais trazer alegria a vossasesposas e a vossos filhos. Que os deuses vos fortaleçamsem limites! Que o mal não moleste este povo!”Todos os presentes aplaudiram as palavras de Odisseu.Pediram que fosse atendido o estrangeiro que falaracom tanta propriedade. A força do rei soou nas ordensao arauto: “Pontônoo, prepara as crateras. Serve todosos que nos honram com sua presença. Um brinde aZeus Pai! O estrangeiro retornará à terra desejada.”Delicioso foi o sabor da bebida. Sabia a mel. Todos aprovaram. Mãos estendidas de todos os assentosrendiam graças aos bem-aventurados, senhores do céu.Levantou-se Odisseu, o homenageado, dirigiu-se aArete, depositou nas mãos da rainha a bialada taça,proferindo estas palavras que revoaram pela sala: “Vive,ó rainha, por muitos e muitos anos. Que tua beleza nãoseja molestada pela velhice nem pela morte, destino detodos. Estou de partida. Faço votos que vivas ditosaaqui com teus filhos, teu povo, teu marido, o nosso rei.”

Despedindo-se, o brilhante Odisseu transpôs asoleira. A mando de Alcínoo, um arauto guiou-lheos passos até o navio de largo curso ancoradona orla marítima. Obedientes a Arete, várias servasacompanharam-no. Uma levava um manto de linhoe uma túnica, preparados com esmero, uma segundaseguia com um baú reforçado; do transporte de pão e

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vinho cuidava uma terceira. Logo que alcançaram omar e o navio, os da comitiva receberam os presentes,os alimentos e a bebida para acondicioná-los no bojo dobarco. Para o seguro repouso de Odisseu, estenderamno convés um colchão guarnecido com um lençol delinho. Odisseu embarcou e se acomodou em silêncio.Os remeiros procuraram seus lugares nos bancos.Desprendem o cabo da pedra. Os corpos se inclinam,escorre a água salgada dos remos que sobem. Umsono de mel cerrou as pálpebras do guerreiro. Semsobressaltos dormia Odisseu como que nos braços damorte. Pensem em quatro baguais. Estalos de látegosno lombo. O ímpeto dos machos risca a verde campinana força do vento. As patas batem fogosas na ânsiada meta. Sobe assim o peito da nave. Partem-se aságuas no rumor do mar. Espumas traçam o trilho docortejo de ondas. A nave singular singra certeira. Nemmesmo o falcão de vôo veloz sonharia em competirvitorioso. A nave zune, desliza ciente da carga: umhomem de planos luminosos; no brilho, próximo dosdeuses. Carregava no peito o peso de muitos padeceres:batalhas sem conta contra exércitos, contra a milíciado mar. O sossego do sono serenava a memória dosmales. Desponta a mensageira da Aurora, a maisluminosa do céu estrelado. O baile das cores matutinasse avizinha, quando a nau falconídea aporta no porto.Acha-se no território de Ítaca um porto de Fórcis,o Velho do Mar[1]. Escarpas de dois promontórios,muralhas íngremes precipitadas contra a violênciados ventos, resguardam o porto das ondas bravias.Lá dentro, vasos alterosos procuram a terra. Livresde lambadas aquosas, as naus recusam amarras. A copacompacta de uma oliveira ensombra, no extremo,uma gruta, sacrário das Náiades, nome das ninfascultuadas ali. A gruta guarda crateras, ânforaspétreas, paradeiro de operosas abelhas, pétreosteares, descomunais, donde nascem ao toque dosdedos das ninfas mantos de púrpura marinha.Um espanto! Borbulhante fonte sempre fluente.

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Duas portas: a que abre para o norte é acessívelaos homens, a outra, a sulina, é de exclusividadedivina. Os homens não se aventuram jamais aentrar por ela. Esta recebe o caminho dos deuses.Aí aportaram os feáceos, conhecedores do sítio.Território adentro, a nau ficou pela metade. Veioveloz, impelida pelo vigor dos remadores. Estes,do sólido barco, saltaram ao solo. Da nau de firmesbordos ergueram Odisseu estendido em sedosostapetes sob panos de linho. Acomodaramna praia o herói ferrado no sono. Baixaram,então, as riquezas, regalo feáceo ao guerreiroque partia sob a generosa proteção de Atena.Deixaram os presentes junto ao tronco daoliveira, longe da estrada e da vista de passantes.Ninguém deveria lesá-lo enquanto dormia.

Os navegadores voltaram a Esquéria. Posidonnão esqueceu as ameaças a Odisseu, mas queriaconhecer a vontade de Zeus: “Zeus Pai, não possomais comparecer honrado entre os deuses. Vê-seque os mortais me negam respeito. Refiro-meaos feáceos, gente da minha família. Eu sabiaque Odisseu, depois de padecer muito, deveriavoltar para casa. Não me opus ao retorno dele.Tinhas acenado, tinhas lhe prometido regresso.Eles o trouxeram em sono de chumbo, em sonode chumbo o deixaram na praia, rodeado de umtesouro: bronze, um magote de ouro, um montede roupa. Os despojos que ele teria trazido deTróia, se não se tivesse dado mal, ficariam aquém.”Zeus lhe respondeu com cara de quem ajunta nuvens:“Caríssimo, Terratremente, Forçudo, não acredito.Pensas que os deuses não te estimam? Impossível!És dos primeiros, dos melhores. Ninguém o ignora.Mas se alguém dos homens, fiado no muque, umreforçado, quiser ombrear-se contigo, pau nele!Faz o que quiseres. Teu coração é que manda.”Posidon, voz de terremoto, foi ligeiro na resposta:

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“É pra já, Nuvem-Negra. Tua palavra é minha lei.Eu te respeito, sabes disso. Não vou contrariar-te.Sabes o que quero? Acabar com a beleza do naviodeles. A embarcação dos feáceos está voltando.O mar deitará sombra sobre pedaços. Foi a últimavez que ajudaram alguém. Vou escondê-los atrásduma montanha.” O Ajunta-Nuvens tentou acalmá-lo:“Amigo. Esvaziarei meu coração. Pensemos em coisamelhor. A cidade inteira estará no porto para recebera nave. É tua vez. Quando estiver próxima da costa,transforma-a num navio de pedra para o espantode todos. Erguerás depois a cerca rochosa.”Mal o Posidon dos tremores terrestres escutou essasponderações, mandou-se para Esquéria. Tomouposição na sede dos feáceos. A nau rasga-ondasvinha nas asas do vento. Posidon, com um simplesgolpe de mão, transformou-a numa rocha de raízesfincadas no solo e se mandou. Os feáceos, mestresem remo, navegadores renomados, viravam-se umpara o outro com o espanto nos olhos. As palavrasproferidas adejavam: “Não é uma calamidade? A nauvoava, agora ela está fixa no mar. Todos somostestemunhas. Que prodígio é esse? Quem foi que fez?”Muitos falaram. Ninguém deu com a resposta. Ouviu-se,por fim, a voz de Alcínoo, o rei: “Amigos, isso vemdo céu. Estava previsto. Lembro-me das palavras domeu pai. Ele me dizia que Posidon estava irritadoconosco porque transportávamos toda sorte de homens.Anunciou exatamente isso: um navio nosso, dos bons,seria destruído neste mar sombrio depois de umamissão de auxílio e uma montanha nos cercaria.”Foram essas as palavras do velho. Ele estava certo.“Agora, muita atenção! Terminou. Não prestemosserviços a qualquer um que der com os costados nestacidade. Obedeçam-me! Todos! Sacrifiquemos aPosidon. Uma dúzia de touros. Espero que issoevite nossa prisão numa muralha, uma montanha.”As palavras do rei assustaram. Prepararam os touros.Mandatários e conselheiros feáceos levantaram

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preces ao Senhor, a Posidon, em torno do altar.

Enquanto isso acontecia, Odisseu, enfim, abriuos olhos. Ele se encontrava na sua terra, emboranão a reconhecesse. Tudo lhe era estranho. Longeestava a nau. A névoa de Atena lhe obscurecia avisão. Ele próprio seria irreconhecível à esposa,aos cidadãos, aos amigos para melhor punir ainsolência dos pretendentes. Por essa razão, o queo rei via tinha outro aspecto: extensos caminhos,portos seguros, rochas escarpadas, árvoresvigorosas. Erguendo-se de um salto, perdeu-sena contemplação da terra natal. Insistiamsoluços. Caíram-lhe as mãos. Com um golpe nacoxa, falou sem conter as lágrimas: “Estoudesolado. Na terra de que gente me encontro?Violentos, selvagens, homens sem lei? Sãohospitaleiros? Rendem culto aos deuses? Haverálugar para guardar minhas riquezas? Para onde irei?Eu deveria ter ficado lá com os feáceos. Teriaencontrado, com certeza, outro rei façanhudo, queme teria acolhido e devolvido à minha terra. Quefazer com meus tesouros? Nem isso eu sei.Deixá-los aqui? E os ladrões? Não há segurança.Desgraçados! Que fizeram comigo os dignitários,os conselheiros? E eu os tinha por ordeiros, justos...Me largaram por aí, numa terra qualquer. E megarantiram que me deixariam em Ítaca. Tratantes!Zeus é justo. Não lhes faltará castigo. Ele protegeos estrangeiros. Ele observa. Não lhe escapa quemerra. Vou conferir o que me deixaram. Quero saberem quanto aqueles remadores me lesaram.” Láestavam trípodes, vasos, ouro, tecidos, oesplendor das vestes. Não deu falta de nada.Não obstante, faltava-lhe tudo: a pátria. Chorava.Arrastava pés tristes ao longo do rumoroso mar. Doherói inconsolável abeirou-se Atena. Vinhacom aspecto de jovem, um guardador de rebanhos,gestos gentis como freqüentes em filhos de reis.

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Nos ombros, a dobra de uma capa distinta. Sandáliasprotegiam a delicadeza dos pés. Lança na mão.A visão surpreendente desanuviou o semblante deOdisseu. Saltaram-lhe palavras leves da boca:“Amigo, o primeiro que descubro nesta terra,eu te saúdo. Não me venhas com más intenções.Preciso de ajuda. Para meus pertences, para mim.Invoco-te como se fosses deus, abraço-te os joelhos.Quero a verdade. Preciso saber. Não me enganes:Que terra é esta? Que povo? Que gente vive aqui?Estou numa ilha? Vê-se de longe? Ou trata-se deum território fértil, um cabo que avança no mar?”Pousando nele seus redondos olhos de coruja,Atena falou: “És ignorante, camarada, ou vensde longe? Não acredito. Queres saber onde estás?Este lugar tem nome. Muitos o conhecem, todos,morem no oriente ou no lugar em que o sol se põe,os que vivem às nossas costas, lugar de sombras.Na verdade o solo é seco. Aqui não se criam cavalos.Mas deserta a terra não é, nem extensa. Produzimostrigo em quantidade e cultivamos uvas. Não nosfaltam chuva nem orvalho. Sobram pastagens paracabras e vacas. Temos matas de vários tipos.Abrigam bebedouros. Por muitos motivos,o nome de Ítaca alcançou Tróia, meu caro,embora fique, ao que consta, longe da Acaia[2].”O coração deste sofredor notório saltou de alegriaao ouvir a caracterização de sua terra da boca dePalas Atena. Alentado, animou-se a responder-lhe,embora não dissesse a verdade. Pensando emganho, apresentou uma historieta, das muitasque guardava no peito, ardilosamente forjadas:“De Ítaca eu ouvi falar longe daqui, além dosmares, na vasta Creta. Agora estou aqui empessoa com estes meus pertences de banido.Deixei para meus filhos parte igual. Matei umhomem estimado, Orsíloco, filho veloz deIdomeneu. Quanto aos pés, era imbatível. EmCreta vencia todos, gente treinada. Eu o matei por

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querer adonar-se dos meus despojos troianos.Batalhei para adquiri-los. Lutei com heróis, como mar. Motivo? Eu tinha negado serviço a seu paiem Tróia. Como, se eu era comandante de tropas?O bronze da minha lança o atravessou, quando elevoltava do campo. Ataquei-o emboscado com umamigo meu. Escuridão apavorante cobria o céu.Ninguém podia ver-nos. Escondido, tomei-lhea vida. Corri, sem perder tempo, a um naviofenício, pessoal bom. Implorei. Do meu espólio,prometi a quantia que lhes agradasse. Queme levassem a Pilos. Foi o que pedi. A Élidaque fosse, terra sagrada, domínio dos epeus. Aforça do vento os empurrou para uma rota bemdiferente da planejada. Não o fizeram para meenganar. Errantes, chegamos até aqui, de noite.A custo e a remo, aportamos. Ninguém pensavaem comer, embora nossos corpos reclamassemceia. Desembarcamos para dormir na areia. Euestava exausto. A doçura do sono me cerrou aspálpebras. Eles baixaram minha equipagem dosporões do navio e a deixaram do meu lado. Semme despertarem, partiram, suponho, à populosaSidão. Aqui estou, eu e minhas tribulações.”Ouvindo essas mentiras, Atena, olho vivo,sorriu. Mão divina o acariciou. A aparênciadela era de uma bela mulher, alta e instruída.Foi de sabedoria a fala desembaraçada dadeusa: “Só um interesseiro exímio em fraudesseria capaz de superar-te na riqueza de truques.Multiastucioso, farto em trapaças como tu nemdeus. Não te livras de tramóias nem em tuaprópria terra. Manobras e embrulhos te agradamdesde fedelho. Deixemos disso. Ambos sabemostirar vantagem. Na arte de falar e de enganar,ninguém dos mortais ganha de ti. Entre osdeuses, esperteza e vantagem é comigo. Isso meorgulha. Não me reconheces? Sou Palas Atena,filha de Zeus. Em todos os perigos, estou contigo

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e te guardo. Os feáceos te trataram bem porminha causa. Aqui estou para discutir estratégiascontigo, para esconder teu tesouro, presentedos feáceos, a caminho de casa por decisão minha.Vou prevenir-te das dificuldades que te aguardamem tua casa. Tens de enfrentá-las. Não revelesa ninguém, seja homem, seja mulher, quechegaste perdido até aqui. Come tranca!Se te atormentam, se te castigam, agüenta.”Odisseu, o multiatilado, ponderou em resposta:“Não é fácil, Deusa, a um mortal reconhecer-te,mesmo atilado. Assumes sempre forma nova.Não ignoro tua generosidade já antiga, desdea campanha dos filhos dos aqueus contra Tróia.Mas, depois da ruína de Ílion, depois queembarcamos para retornar, errantes e dispersos,não te vi mais, filha de Zeus. Não te percebino meu navio, nem constatei ajuda tua. Vagueidesorientado, de coração inquieto, minhaseram as decisões até deuses me livrarem decalamidades. De fato, no próspero povo dosfeáceos, me encorajaste, me conduziste à cidade.Agora ajoelho-me diante de ti em nome do Pai[3].Não sei se estou em Ítaca ou se, tonto, meencontro em outro lugar. Sinto deboche emtuas palavras. Não estás me embrulhando?Preciso saber a verdade. Minha terra é esta?”Vieram as palavras amigas da Palas dos olhossagazes: “O procedimento que cultivas nopeito é sempre este. Só não te largo noinfortúnio por seres cortês, atilado e sensato.Outro aventureiro penetraria sem cautelasno lar para rever os filhos e a esposa, mas tunão te mostras interessado em informações antesde teres tu mesmo posto à prova tua mulher. Teasseguro que ela se lamenta, trancada em casa,dia e noite, banhada em lágrimas. Mas eu, eununca tive dúvidas. Aqui no meu íntimo eu sabiaque voltarias, mortos todos os teus companheiros.

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Não quis opor-me a Posidon, meu irmão paterno,que entranhadamente te odeia, enfurecido porteres cegado um de seus filhos. Vem, queromostrar-te o território de Ítaca. Certifica-tetu mesmo. Este porto é o de Fórcis, o Velho doMar. Lá, na extremidade, vês a frondosaoliveira. Ao lado está a gruta, agradável,arejada, santuário das Ninfas, as Náiades.A gruta, a abobadada, a arejada, está ali, lugarde inúmeros sacrifícios teus às Ninfas. Aquelemonte coberto de bosques é o Nerito.” Comessas referências, a deusa dissipou o nevoeiro.O solo se revelou. Odisseu, o sofredor, o divino,saudou a terra, beijou o chão fecundo. De mãoserguidas, dirigiu uma prece às Ninfas: “Náiadesminhas, filhas de Zeus, nula era a esperança dede rever-vos. Oferto-vos agora minhas preces,minha gratidão. Voltareis a receber as oferendasque outrora vos trazia, se a filha de Zeus, dadivosa,consentir que eu viva e que meu filho floresça.”Cintilaram os olhos de Atena. A Deusa falou:“Coragem! Não permitas que cuidados teensombrem a mente. Teus bens ficarão guardadosno fundo da gruta. Aqui eles estarão seguros.Nossos planos abrirão caminho ao fim desejado.”Dito isso, a Deusa penetrou na sombra da caverna.Explorava recantos. A tarefa de aproximar ostesouros ficou para Odisseu: ouro, o resistentebronze, os sólidos tecidos: quinhão dos feáceos.Tudo muito bem guardado. Palas Atena, a filhade Zeus, tampou a entrada com uma pedra.Sentados junto ao tronco da robusta oliveira, Palase Odisseu planejaram a ruína dos pretendentes.Ponderou a Deusa: “Esclarecido filho de Laertes,multiengenhoso Odisseu, como porás as mãos nessesinsolentes? Tens idéia? Eles se assenhoraram dada tua casa já faz três anos. Assediam tua mulher.Fazem propostas. Ela é uma santa. Chora. Quer quevoltes. Protege-se alimentando esperanças. Varia

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promessas de acordo com o caráter de cada um.Mas a intenção dela está longe do que promete.”Cheia de apreensões foi a resposta de Odisseu:“Salvaste-me duma desgraça. Meu fim teria sidosemelhante ao do Átrida[4] Agamênon, morte decachorro, se tu não me tivesses prevenido a tempo.Traça um plano, a execução fica por minha conta.Preciso de tua ajuda. Preciso de força, coragem.Lembro-me de Tróia. As muralhas vieram abaixo.Se tenho a certeza de que o fogo desses teus olhosestá comigo, trezentos inimigos para mim é pouco.Tua força divina me é de muita importância.”O vigor solicitado fulgurou nos olhos de Atena:“Estarei contigo. Nunca vou esquecer-me de ti.Esse trabalho é nosso. Já vejo o sangue e osmiolos empapar o chão em que agora pisam.O fim dos que consomem o que precisas paraviver não será outro. Comecemos agora. Voudar um jeito em ti. Ninguém te reconhecerá.Enrugo tua pele, endureço tuas articulações,embranqueço teu cabelo, te cubro de andrajos.Terás olhos de vaca laçada. Te deixarei nojento àvista de quem te observar: todos os pretendentes,tua mulher, teu filho que ficou quando partiste.Procura primeiro teu porqueiro. Além de guardarteus porcos, ele te permanece leal. Tem afeto porteu filho e por tua virtuosa esposa. Deves encontrá-lono meio de suínos. Pastam perto da rocha doCorvo onde sussurra a fonte de Aretusa. Asbolotas de lá saciam os animais. É lá que os porcosengordam, é lá que a água embarrada lhesmata a sede. Fica por lá para te informar de tudo.Enquanto isso, meu destino é a terra das belasmulheres, Esparta. Vou chamar Telêmaco, teufilho. Está na Lacedemônia dos tablados dedança para saber de ti. É hóspede de Menelau.”Mesmo dotado de amplo saber, Odisseu perguntouespantado: “Tudo está na tua cabeça, por que nãolhe falaste? Por que submetê-lo aos riscos de uma

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viagem em águas que matam enquanto lhe devorama subsistência?” Atena procurou tranqüilizá-lo:“Não permitas que isso te perturbe. Eu mesma oacompanhei. Sem viajar ele não poderá tornar-seconhecido. Sacrifício nenhum! Passa os dias nosossego da mansão de Menelau. Vive na fartura.Jovens emboscados num barco o esperam aqui.Nos planos deles, ele não porá os pés na terra natal.Antes de o matarem, penso, a terra cobrirá muitosdos que assediam tua mulher e consomem teus bens.”Com um toque de varinha, Atena encerrou suasponderações. A tez, orgulho de Odisseu, se enrugousobre seus membros flexíveis. A loura cabeleirasumiu-lhe da cabeça. Pelancas pendiam pelo corpo.Odisseu era um velho. Olhos de besta na cara.Cobriam-lhe os ombros, em lugar de túnica, panosesfarrapados, imundos, sebentos. Por cima detudo isso, Atena lançou uma pele puída de veado.Pôs-lhe na mão um cajado e lhe ofereceu umabruaca cheia de furos, presa num barbante. Feitosos planos, os dois se separaram. Ela partiu paraa Lacedemônia, terra divina, onde deixara Telêmaco.

[1]. Proteu (ou Fórcis), filho dos titãs Tétis e Oceano; divindade marítima de caráteroracular. Os humanos o procuravam para fazer-lhe perguntas, mas então, paraescapar, Proteu metamorfoseava-se nos mais diversos seres. Somente os corajososconseguiam consultá-lo. (N.E.)[2]. Uma das quatro regiões da Grécia Antiga. De onde provêm os aqueus. (N.E.)[3]. Zeus. (N.E.)[4]. Patrônimo; filho de Atreu. (N.E.)

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Canto 14

O herói deixou o porto, subiu por um caminho pedregoso,atravessou bosques à procura do lugar em que, seguindoinstruções de Atena, encontraria o porqueiro. Esse cuidavado seu serviço melhor do que os outros escravos.Encontrou-o sentado à porta da choupana, erguida numaelevação donde se descortinavam os arredores. Umasebe cercava o pátio, alta e bela, obra dele, executadapara a suinocultura depois da partida do monarca, semordens da senhora ou do ancião Laertes. Por iniciativaprópria, rolou as pedras. Espinhos dificultavam o acesso.Uma paliçada de robustas estacas de carvalho negroabraçava protetoramente o cercado de ponta a ponta.O porqueiro construiu doze chiqueiros dentro do cercado,um ao lado do outro. Estes abrigavam as porcas. Nochão de cada chiqueiro se comprimiam cinqüentaparideiras. Os cachaços dormiam do lado de fora, nãoeram muitos. Os pretendentes (esses divinos...)tratavam de diminuí-los, passando-os nos dentes. Diaapós dia, o porqueiro destinava o mais gordo ao festimpalaciano. Assim mesmo somavam trezentos e sessenta.Dormiam com eles cachorros; umas feras, eram quatro.Quem os criara e cuidava deles era o próprio porqueiro,o capataz. Trazia nas mãos um couro rosilho, eleconfeccionava suas próprias sandálias. Dos outros,três tratadores tinham tomado direções diferentes, cadaum com uma vara de porcos. O quarto se dirigira à cidadepara abastecer o palácio, tarefa obrigatória impostapelos insolentes, exigência dos sacrifícios e do estômago.De repente os cachorros começaram a latir. Tinhampercebido Odisseu. Os ladradores dispararam ferozes.Precavido, Odisseu sentou-se no chão. Largou a bengala.Que humilhação! Ameaçado nos seus próprios domínios!O porqueiro acudiu. Os pés voavam. Atravessou o terreiro

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zunindo. Na pressa, o couro lhe escapou das mãos. Berrou,atirou pedras para enxotar os mastins. As feras azularampelos quatro cantos. Sem fôlego, falou ao Senhor:“Por pouco os cachorros não te despedaçam, meu velho. Quevergonha! Te sobrariam razões pra me mandar à merda.Já não bastam as dores que tenho? Dos deuses só me vemdesgraça. Morro de saudades do meu patrão. Neste fimde mundo engordo capões para outros comerem. Tegaranto que meu patrão anda atirado por aí, uma mãona frente outra atrás, com fome, entre gente estranha,em lugares que ele nem conhece. Ele ainda vive? Ainda vêa luz do dia? Me acompanha, meu velho. Lá em casatem comida e vinho à vontade. Aqui ninguém passafome. Quero saber donde vens, as encrencas em queandas metido...” O porqueiro – caído do céu! –, falando,levou Odisseu para a cabana. Espalhando ramos nochão, estendeu uma pele felpuda de cabrito montês.Era a cama dele. A recepção não podia ter sido melhor.Odisseu estava radiante. Verteu a satisfação em palavras:“Amigo, Zeus te dê tudo o que queres, os outros deusestambém. Melhor que você, ninguém me receberia.”Respondeste-lhe, porqueiro, simples e franco:“Meu caro hóspede, não é meu costume receber malnem pessoas mais simples que tu. Para mim, todos sãoenviados por Zeus, estrangeiros ou pobres. O que tenhopara te oferecer é pouco, mas vem do coração. Lei deescravo é viver com medo, principalmente quandosujeito a senhores recentes. Aquele, a quem os deusesnegaram regresso, estimava-me de verdade, dele euteria recebido um pecúlio, moradia, um lote, uma mulherque faria inveja a muitos, dádivas de senhor generoso.A prosperidade vem de Zeus, graças a ele meu trabalhofloresce. Se meu patrão tivesse envelhecidoaqui, eu teria produzido muito mais. Mas pereceu.Que pereça a raça de Helena! Caiam de joelhos osdela como fizeram cair a muitos. Quem arrastouaquele para a guerra? A honra de Agamênon! Paraquê? Para atirá-lo contra Tróia e seus potros.” Falou,apertou a correia na cintura com um gesto brusco e

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e se mandou para o chiqueiro, povoado de leitões.Agarrou, sangrou e chamuscou dois. Partidos,enfiou espetos nos pedaços e os dispôs no braseiro.O porqueiro ofereceu a Odisseu um assadoespetado, ainda quente, polvilhado de farinha.Preparou vinho numa vasilha. Uma delícia!O porqueiro, sentado na frente dele, insistia:“Come, companheiro! Te sirvo leitões, comida deescravos, a porcada gorda é para os pretendentes.Não se assustam de nada. Compaixão não é com eles.Mas os bem-aventurados não aprovam safadeza.Os lá de cima recompensam o que é direito, o queé decente. Há os bandidos, os larápios, invadema terra dos outros. Se Zeus permite que voltem coma muamba, não pensem que escaparão do raio. Zeuscastiga. Botem as barbas de molho. Os bandidosdevem ter recebido informação. Um feiticeiro lhesfalou que ele se finou? Não duvido. Não têm vergonhana cara. Por que não comem em casa? Com a maior cara de pauConsomem o que não é deles. Cafajestes!Não respeitam nada. Todo santo dia e todas as noitessantas abatem animais. E não se contentam com umou dois. Bebem vinho como água. Ele tinha muita grana.Quanta ninguém sabe. Graúdo nenhum nem aqui nailha nem lá no continente não chegava nem perto doque ele tinha. Você podia somar os bois de vintericaços, ele tinha mais. Troquemos em miúdos. Lá nocontinente: doze manadas de bois, doze de ovelhas,doze varas de porcos, doze fatos de cabras. Dessebicharedo todo, cuidam camaradas próprios e boiadeiroscontratados. Aqui, nesta ponta, pastam, bem calculados,onze rebanhos de cabras – e são numerosas! – guardadospor homens de confiança. Cada um destes leva, todos osdias, uma rês, o animal de melhor aparência, o maisgordo. Dos porcos que eu crio, o melhor, escolhido a dedo,vai para o palácio sem faltar dia.” Enquanto o porqueirofalava, Odisseu saboreava assados regados a vinho. Comiacom avidez e em silêncio. Maquinava a ruína do bando.A farta refeição regala Odisseu de corpo e de espírito. O

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cálice que o herói esvazia retorna repleto até às bordas.O líquido rutilante acende-lhe o ânimo. O porqueirorecebeu palavras que saíram aladas da boca do hóspede:“Amigo, quem te comprou? Pertences a quem? Ao queme dizes, teu patrão é um magnata dos mais poderosos.Observaste que ele morreu combatendo nas tropas deAgamênon. Talvez eu conheça alguém com essascaraterísticas. Zeus e os outros imortais devem saber seposso dar alguma informação. Confesso que viajei muito.” 120Respondeu-lhe o porqueiro, o capataz: “Escuta aqui, meuvelho, dos viajantes que passaram por aqui, ninguém atéhoje trouxe informação que satisfizesse a mulher e o filhodele. Para se aproveitarem da situação vêm com mentiras,das besteiras que contam não se aproveita nada. Passammuitos vagabundos por Ítaca, vão diretamente ao paláciopara contar lorotas à rainha. Ela os recebe, trata-os comdelicadeza e presta atenção a todas as asneiras quevomitam. Ela chora. Sabes como são as mulheres, aslágrimas correm soltas quando ouvem falar do maridodesaparecido por longe. Tu, meu velho, não te custaránada alinhavar uma historinha que te renda túnica, capa,alguns panos. Acredito que vira-latas e corvos já lhearrancaram a pele da carcaça. O espírito dele já se foihá tempo. Ou teria virado pasto de peixes em alto-mar?As ondas devem ter jogado os ossos dele a alguma praia,a areia os cobriu. Está morto. A tristeza ficou com osamigos dele. Principalmente comigo. Onde é que vouencontrar um patrão generoso como ele? Igual a ele nãoexiste ninguém. Afeto assim nem em minha casa medemonstrariam meu pai ou minha mãe, ali onde começouminha vida, onde fui criado. Por muito que eu desejevoltar à minha terra para vê-los, o que eu sinto por essehomem é mais forte. Só o nome dele já me provocaadmiração. Ele me chama de longe. Quem arrebatou meucoração foi Odisseu, o desaparecido. Homem, meu grandeamigo foi ele. A distância não altera os sentimentos.”Interveio Odisseu, o homem dos muitos sofrimentos:“Amigo, negas categoricamente o regresso de Odisseu.Falas com segurança. Não admites nem suspeita.

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Não falo por falar, tenho certeza absoluta de queOdisseu voltará. Juro. Só aceito recompensa depoisde realizado o que afirmo. Quero primeiro vê-lo emcasa. Aceito túnica, capa, roupa de luxo, só depois.Ainda que viva em grande penúria, não quero, agora,absolutamente nada. Detesto gente que se faz passarpor pobre para trapacear. As portas do Hades meapavoram menos. Antes de todos os outros deuses,invoco Zeus, o protetor dos estrangeiros, e invoco o lar– tão próximo! – do memorável Odisseu. Tudo deveráacontecer como afirmo. Odisseu retornará aindaneste mesmo ano; no fim deste mês, ou no começodo próximo, ele estará em casa para mijar em cimados que molestam a mulher e desonram o filho dele.”Tua resposta foi esta, meu caro porqueiro. Falaste duro:“Não esperes que te pague esta informação, velhinho.Fica sabendo que Odisseu não voltará. Não interessa.Bebe com calma. Falemos de outra coisa. Não meevoques esse assunto. Deves compreender que no meupeito o coração se agita quando alguém lembra aqueleamo atencioso. Esquece teu juramento. A volta deOdisseu? Não há o que desejemos mais, eu, Penélope,Laertes e Telêmaco, esse jovem com jeito de deus.Na verdade, Telêmaco é constante preocupação minha.Desenvolveu-se na mão dos deuses como uma plantinha.Sempre pensei que ele não ocuparia entre bravos lugarinferior ao do pai, admirável na estatura e no aspecto.Devo admitir agora que um homem ou um deus lheperturbou os miolos. Foi fazer em Pilos o quê? Saberdo pai? Os pretendentes, desgraçados, lhe armaramemboscada. Querem acabar com a raça dele. Queremvarrer até o nome. Não querem que ninguém se lembrede Arcésio[1], homem excepcional. Deixemos isso pra lá.A vida e a morte dele estão nas mãos do Cronida.Fala-me de ti, velhinho. Quero saber dos teus trabalhos.Me conta tudo em detalhes. Quero que satisfaças minhacuriosidade. Desejo saber donde vens, para onde vais,onde fica tua cidade. Tens filhos? Que navio te trouxepara cá? A que marinheiros devemos a honra?

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Não vais me dizer que vieste a Ítaca a pé.”Odisseu, sempre esperto, não deixou de lhe responder:“Podes ter certeza de que não vou te enredar.Dá um jeito para que ninguém nos perturbe. É assuntopara ser tratado com calma junto de mesa farta, providade vinho delicioso. Que outros se ocupem do trabalho!Observa que o que tenho a dizer não poderia serconcluído nem que tivéssemos um ano. Tantas foramas dificuldades que enfrentei por imposição divina.Sou natural de Creta. Disso me orgulho. Sou filhode um homem rico. Muitos outros irmãos nasceram eforam criados na minha casa, todos filhos legítimosdo meu pai. Minha mãe, na verdade, foi comprada, soufilho duma concubina. Mesmo assim, meu pai sempreme tratou como filho legítimo, sou da raça de CastorHilacides. O povo cretense o tratava como deus.Orgulho-me de pertencer a essa gente: rica, poderosa,ilustre. As deusas da morte levaram, entretanto, meupai para o reino invisível de Hades. O que tínhamospara viver meus orgulhosos irmãos dividiram porsorteio. Além de uma casa, deram-me muito pouco.Minha posição permitiu-me escolher mulher entregente aquinhoada. Imprestável eu não era, na guerranão me considerava fujão. Tudo isso são glóriaspassadas. Pela palha se conhece o que foi a espiga.É o que penso. Engoliu-me um mar de desgraças.Por artes de Ares e Atena fui um audacioso rompe-esquadrões. Quando eu resolvia emboscar guerreirosvalentes, quando planejava a ruína dos adversários,a visão da morte nunca me abalou o coração viril.No assalto fui sempre o primeiro. Quando faltavampernas aos meus adversários, minha lança osliquidava. Esse fui eu na guerra. Lavrar não meinteressava, nem administrar, glória de muitos.Empolgavam-me vasos de guerra, remos,batalhas, o brilho das lanças, flechas.Instrumentos mortíferos arrepiam outros, masa mim me fascinam. Deuses me fizeram assim.Cada qual com seus prazeres! Não é assim?

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Antes de a juventude aquéia embarcar para Tróia,estive à testa de nove esquadras. Capitaneei naviospara longes terras. Quase sempre me saía bem.Tomava o que me agradava. O resto me veiopor sorteio. Minha casa, um brinco. Tornei-meem breve um cidadão temido e respeitado. Foiaí que veio a desgraça. A larga visão de Zeus abriuaquela rota fatal em que baquearam os joelhosde muitos heróis. Ele nos obrigou, a mim e aorenomado Idomeneu, a comandar navios a Ílion.Eu não podia recusar. As más línguas teriamdito que sou cagão. Os combates se prolongarampor dez anos. No décimo, a cidade de Príamocaiu. Rumamos para casa. Um deus nos dispersou.Zeus planejou coisas ruins para mim. Só por ummês tive o privilégio de conviver com meus filhos,com minha querida mulher e com meus bens. Avontade me obrigou a fazer uma viagem ao Egito.Reuni uma frota e escolhi amigos divinos. Prepareinove navios. Em pouco tempo a tripulação estavapronta. Por seis dias os remeiros banquetearam-secomigo. Providenciei animais para muitos sacrifícios.As vítimas se destinavam ao culto e aos festins.Embarcamos no sétimo. Tínhamos vento favorávele forte. Soprava o Bóreas. A larga Creta ficou para trás.Deslizamos como levados por corrente fluvial. Naualguma sofreu avaria. Viajávamos sem trabalhos esem moléstias. Confiamos, ociosos, no vento e nospilotos. Já no quinto dia, alcançamos a bela correntedo Egito. As âncoras das naus recurvas caíramali. Ordens receberam meus companheiros paraficarem; pedi que puxassem as naus para a terra.Aos espias ordenei que colhessem as informaçõespossíveis. Obedientes, porém, a impulsos seus,perderam a cabeça. Devastaram os viçosos camposdos egípcios, entregaram-se ao rapto de mulheres e decriancinhas. Massacraram os homens. A cidade sealvoroçou. Sacudidos pelos gritos, o socorro veioao alvorecer. Cavaleiros e infantes, fogos e bronze

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cobriram a planície. Pânico funesto de Zeus flamejantese abateu sobre os meus. Ninguém resistiu aoembate. A derrota devastava todos os flancos.O ferro inimigo feriu muitos dos nossos. Os queforam apanhados vivos gemeram no trabalho escravo.Uma decisão vinda do céu alojou-se na minhacabeça. Morrer no Egito, concluir lá meu destinonão teria sido melhor? Penosas penas pesavam sobremim. Pois bem! Arranquei da cabeça meu estimadocapacete, caiu o escudo, larguei a lança. De mãosabanando corri ao local em que imperavam oscavalos do rei e lhe beijei os pés. Condoído,ergueu-me o monarca. A mim, em prantos, ofereceu-me assento no carro dele. Muitos lanceiros no fogoda fúria queriam-me morto. O rei, temente aoZeus hospitaleiro, ergueu o escudo contra a sanhados seus, ciente da severidade contra atos injustos.Sete anos passei no Egito. Brindado por muitos,fiz farta fortuna. Beneficiou-me a generosidade dede todos. No rolar dos anos, chegou o oitavo.Apresentou-se certo fenício, refinado em truques,funesto já a muitos incautos. De planos escusos,levou-me na lábia aos seus domínios. Lá conhecisua mansão e suas opulentas propriedades. Passeicom ele um ano completo. Volvidos os meses,transcorrido o curso dos dias, completado otranscurso dum ano, no renovar das estações,constrangeu-me a embarcar numa nau transmarítima.O mentiroso encarregou-me de uma carga paraa Líbia. Contava vender-me calculando gordo lucro.Acompanhei-o com graves suspeitas. A nave,com Bóreas propício, singrava em mar alto acimade Creta. Mas os planos de Zeus lhe eram funestos.Quando nos distanciamos de Creta, nenhuma outraterra nos apareceu. Céu e mar e só. Foi então que oCronida levantou um pretume nevoento sobre o navio.A nuvem também anoiteceu o mar. Um estrondoabalou nossa embarcação. Choveu fogo do céu.A nau, açoitada pelos raios, girou sem norte. Cheiro

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de enxofre encheu-nos as narinas. O impactoatirou todos ao mar. Os marinheiros eram agoramergulhões em giros aquáticos em torno da nau.Zeus negava regresso. Só eu fui exceção. Em meioa imensa dor, percebi o mastro aumentar emem direção às minhas mãos. O favor dos céus foieste. Foi assim que escapei do golpe fatal.De nove dias foi o balouço no dorso das ondas.

“Na décima noite, uma onda me arremessou àterra dos tesprotos. Acolheu-me sem resgate o rei Fídon,um herói. Mortificado pelo frio e pelafome, quem me encontrou e me levou pela mão aopalácio real foi o filho do rei. Quem providenciouroupa para me cobrir (túnica, capa) foi ele. Lá mefalaram do filho de Laertes. O rei, ao que ele me disse,recebeu e hospedou Odisseu, em seu retorno para aterra natal. Mostrou-me até um pecúlio reunido peloherói: bronze, ouro, ferro, obra de muitas mãos,recursos suficientes para dez gerações, tamanhaera a riqueza que Odisseu confiara à guarda do rei.Acrescentou que Odisseu navegara a Dotona. Láele poderia saber, através de um carvalho, sobreseu regresso à rica população de Ítaca, se manifesto,ou às ocultas, depois de tão longa ausência. O reijurou-me com libações que o navio já baixara ao mare que a tripulação já se encontrava a postos. Nada,portanto, deveria impedir o retorno imediato ao lar.Parti primeiro. Um navio tesprotense, com destinoaos trigais de Dulíquio, levantava âncoras. De lá euseria levado com segurança ao rei Acasto. Forjavam,entretanto, lá na cabeça deles, uma trama contramim. Queriam-me num poço de calamidades. Mal otransmarítimo se afastara do litoral, decidiram,transfigurados, que o dia da minha escravidão nãoseria outro. Arrancaram-me capa, túnica, a roupatoda. Cobriram-me de trapos. Podes constatá-lo comteus próprios olhos nesta capa toda esburacada. Oscampos de Ítaca verdejavam já ao longe. Chegaram

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à tardinha. Amarraram-me e saltaram do navio àspressas, abandonando-me a bordo. O nó me apertavaos pulsos. Nas alvas areias do mar prepararam a ceiaaos últimos raios de sol. Amparado pelos divinos,senti que o nó se abria. De cabeça enfiada nos farrapos,escorreguei pelo leme. Quando senti a água à alturado peito, comecei a deslizar. Remos eram meus braços.Num zás, eu estava fora do alcance dos bandidos.Escalei a barranca e penetrei num matagal. Escondi-meagachado no lugar em que a vegetação florida se adensa.Correria, berreiro, palavrões largados ao vento. Tudoinútil. Cansados de me procurar, julgaram mais acertadovoltar ao abrigo da nau. Devo minha fuga aos deuses.Tudo lhes é fácil. Não vês? Graças a eles estou na cabanade um homem honrado. O destino quer que eu viva.”Tu lhe respondeste, meu caro porqueiro Eumeu:“Meu sofrido hóspede, mexeste com minha tripasao me contar o que padeceste nas tuas andanças. Mas oque falaste a respeito de Odisseu não me convence. Ahistória não está bem tramada. Por que um homem nastuas condições teria prazer em mentir? A respeito doretorno do meu patrão, acredito estar bem informado.É evidente que os deuses o odeiam: não permitiramque ele morresse gloriosamente em Tróia, nem nosbraços dos que o querem, terminada a guerra. A coligaçãodos aqueus poderia ter-lhe erguido um monumento, orgulhopara o filho. Em vez disso, pereceu desonrado nas garrasdas Harpias[2]. Sou um homem solitário. Porcos são meuscompanheiros. Nunca vou à cidade, a não ser a convitede Penélope para avaliar com essa sábia uma informaçãoque tenha recebido. Deverias assistir a uma dessas reuniões.Uns, chorosos, querem saber se o patrão volta, outrosdesejam que a dúvida persista para poderem continuarna folgança. Essa conversalhada não me agrada nada.Chegou aqui um etólio que me passou na conversa. Disseque andava sem rumo pelo mundo porque tinha matadoum homem. Veio à minha cabana, e eu o acolhi. Falouque tinha visto Odisseu na corte de Idomeneu. Pararaem Creta para restaurar navios avariados pelos ventos.

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Garantiu que por volta do verão ou do outono estariaem casa, que Odisseu voltaria rico e acompanhado deseus ricos companheiros. Tu, meu velho, já que um deuste trouxe, não me venhas com mentirinhas, não procuresme agradar. Não te trato bem por isso, mas por respeitara Zeus, protetor dos estrangeiros. Que Zeus te guarde!”Odisseu, sempre sábio, disse-lhe em resposta:“Vê-se que tens um coração desconfiado. Nem jurandoconsigo convencer-te. Não te abalas. Está bem! Vamosfazer uma aposta. Sejam testemunhas ninguém menosque os deuses do Olimpo. No dia em que Odisseupuser os pés em seu palácio, me darás roupa decente:uma túnica e uma capa. Me providenciarás passagempara Dulíquio, terra que amo. Mas, se não acontecero que te digo, darás ordens aos teus subordinados parame precipitarem do alto de uma rocha. Será uma liçãopara esses mendigos mentirosos que andam por aí.”Ouçam a resposta do Divino Porqueiro: “Serianotável, meu hóspede. Minha virtude seria louvadaentre os homens de agora com ecos no futuro. Primeirote convido para entrar, trato-te hospitaleiramente,depois eu te mato, te arranco o espírito dos ossos. Achasque eu poderia invocar Zeus depois disso? É horade jantar. Em breve meus companheiros estarão aqui.Forremos a tripa com os petiscos que eles nos prepararem.”

Corria assim a conversa entre dois. Vieram os porcose vieram os homens que cuidam dos porcos. Prenderamos animais nos chiqueiros como de costume para o repousonoturno. Ao ritmo dos roncos se aglomeram os corpos.A ordem do porqueiro animou os camaradas: “Depressa!Preparem-me o melhor dos capões. Será em homenagema este que vem de longe. O benefício hoje será nosso.Todos os dias estamos às voltas com esses bichos de alvosdentes, e a vantagem é de outros, que não fazem nada.”O bronze racha severo as achas de lenha. Trouxeram ummacho gordo de cinco anos. Aproximaram-no da lareira.A existência dos imortais não fugiu da atenção do porqueiro.O coração dele só acolhia bons sentimentos. Ao lançar no

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fogo as cerdas colhidas na testa do porco, rogou a todosos deuses a graça do regresso de Odisseu. Não era justoque um homem de tantos recursos sofresse longe de casa.O golpe de um pau de carvalho imobilizou o quadrúpede.Esticou as patas sem vida. Os outros o sangram. Assado,dividem-no em postas. Nas mãos do porqueiro, pedaçossangrentos envoltos em banha principiam a oferenda.Leva ao fogo pedaços polvilhados de farinha.O restante, separado a preceito, chia no braseiro.Assam, experientes, a carne, retiram-na dos espetose a amontoam na mesa. O porqueiro se levanta paraproceder à divisão. Conhecia o rito como ninguém.Competia-lhe dividir o todo em sete partes. Reservou,em preces, uma para as Ninfas e para Hermes, filho deMaia. As outras partes do alvos-dentes foram destinadasa cada um dos presentes. Ofereceu o lombo inteiro docerdo a Odisseu. O gesto fez o homenageado sorrir.Atento a tudo, não pôde deixar de falar:“Quero, Eumeu, que sejas tão caro a Zeus comoagora me és a mim. Tuas gentilezas não têm limite.”Guardei tua resposta, meu caro porqueiro Eumeu:“Serve-te, misterioso hóspede. Delicia-te com o quete oferecemos. Os deuses ora concedem, ora negam,conforme os impulsos lá deles. Não podem tudo?”Ofereceu as primícias aos seres sem fim. Feita a libação,depôs o vinho rutilante nas mãos do arrasa-cidades,Odisseu. Este tomou assento no lugar que lhe foradestinado. Mesáulio – adquirido com recursos doporqueiro na ausência do patrão – trouxe-lhe pão.Tanto a Senhora como Laertes ignoravam o negócio.Essa transação com os táfios era assunto dele. Era sóse servirem, a mesa estava posta. Servidos do quelhes tinha sido oferecido, Mesáulio recolheu o pão.

A carne e o vinho provocaram sono. Recolheram-setodos para dormir. A noite foi das terríveis. Luanova! Zeus entornou água do princípio ao fim.Soprava o Zéfiro, forte e molhado. Odisseu pôs oporqueiro à prova. Perguntou se podia ceder-lhe

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a capa. Um outro a cederia a pedido do hospedeiro?Interessava-lhe conhecer os limites da hospitalidade:“Atenção, Eumeu e companheiros, ouvidos atentos!Acabo de fazer minhas preces, deu-me na venetacontar-lhes uma história. É o vinho. Tocado por ele,até o mais sisudo solta a língua, canta, ri, dança,faz loucuras, fala coisas que não deveria dizer. Jáque ajoelhei, vou rezar. Quem me dera ser jovem!Já não sou o mesmo. Quando estive de emboscadajunto às muralhas de Tróia, foi diferente. Eramcomandantes Odisseu e Menelau, eu era o terceiro.Eles me queriam no comando. Nos aproximamosdas gigantescas muralhas num matagal denso quecercava a cidade. Acampamos entre as canas deum pântano, agachados debaixo do escudo. Fomoscastigados pela noite fria. O vento amansara. Sobrea geada acumularam-se flocos de neve. Frio derachar. Uma camada de gelo cobria o escudo. Osoutros, embrulhados em túnicas e capas, dormiamtranqüilos. O escudo protegia os ombros. Eu tinhacometido a besteira de durante a marcha deixar a capapara comandados. Não me passou pela cabeça quepoderia esfriar. Eu marchava só de escudo e decamisa. No fim da noite, as estrelas já se despediam,cutuquei Odisseu que dormia do meu lado. Ele ficouatento ao que eu lhe dizia: ‘Divino Odisseu, nuncaprecisei tanto dos teus infinitos recursos como agora.Em breve estarei longe do mundo dos vivos. Este friome mata. Estou sem capa. Não sei que gênio mau memandou ficar só de túnica. É o fim do mundo.’ Asidéias se ajeitaram rápidas na cabeça dele. Em planose no campo de batalha não conheço ninguém iguala ele. Falou-me assim à boca pequena:‘Te acalma. Que ninguém dos outros te ouça.’Escorando a cabeça com o braço, falou: ‘Acordem,companheiros, acabo de sonhar um sonho. É dosdivinos. Nós nos tínhamos afastado muito da frota.Eu queria que alguém fosse dizer a Agamênon,o chefe, o filho de Atreu, que nos mandasse navios.’

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Foi o que disse. Levantou-se de imediato Toante,filho de Andrêmon, tirou a capa de púrpura e chispourumo à frota. Foi assim que me embrulhei na capaconfortável do outro até ao raiar do dia. Gostariade ser jovem com o mesmo vigor. Garanto que umdos porqueiros nesta cabana me daria sua capa,por simpatia e por respeito a um homem ilustre.Como sou um maltrapilho, as pessoas não merespeitam.” Respodeste assim, Eumeu, porqueiro domeu coração: “Meu velho, tua historinha não poderiaser melhor. Nenhuma palavra inútil, tudo a propósito.Roupa não vai te faltar, tampouco te sentirás privadode qualquer outro suprimento que venhas a solicitar.Por hoje! Ao raiar do dia, voltarás aos teus andrajos.Aqui, capa, cada um tem a sua; túnicas, para mudar,são escassas. Para falar a verdade, não trocamos roupa.Se o filho do rei voltar, te garanto que será diferente.Prometeu-nos capas, túnicas, fartura de tecidos. É sóesperar. O que o coração pedir, ele nos dará.” Haviaesperança em suas palavras. Levantou-se e preparouum leito junto à lareira, pelegos e couros de cabra.Odisseu se acomodou. Cobriu-o com um capoteespesso e comprido. Era a reserva de Eumeu. Ele ousava nos dias em que o frio atacava com mais força.Outros prepararam suas camas perto de Odisseu,junto dele dormiam jovens. O porqueiro não queriadormir ali, não se afastava dos seus animais. Odisseuteve a satisfação de vê-lo sair armado. Constatou odesvelo do escravo pelos bens do Senhor ausente.Eumeu ajustou a espada nos ombros musculosos,vestiu uma capa, resistente ao frio e ao vento, agarrouuma pele de cabra, produto de um animal bem nutrido,empunhou uma lança de ponta aguda. Estava prontopara encontrar-se com seus porcos de alvos dentes.Uma rocha protegia o sono deles contra o vento.

[1]. Avô de Odisseu, pai de Laertes. (N.E.)

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[2]. Seres mitológicos, tradicionalmente representados com corpo de águia e cabeçade mulher. O seu nome significa “raptoras”; são identificadas com forças rapaces danatureza, capazes de arrastar qualquer ser humano ao mundo subterrâneo. (N.E.)

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Canto 15

Palas Atena dirigiu-se à dançante Lacedemônia,empenhada em repatriar o preclaro filho de Odisseu.Do grande coração dele não deveriam fugir projetosde regresso. Encontrou-o dormindo na galeria fronteiraà mansão de Menelau, o famoso, junto ao filhode Nestor. Na verdade só este se rendera à suavidadedo sono. Telêmaco oferecia resistência. De coraçãoaflito por causa do pai, atravessava noites em claro.O olhar penetrante de Atena furou a sombra quandofalou: “Que sejas telecombatente, admito, Telêmaco,mas teleandante? Não cuidas do que é teu. Entregas teupalácio a homens gananciosos. Não temes que elesvenham a devorar tudo? Com esta viagem lucraste o quê?Despede-te. Convence Menelau de que retornar te éurgente. Queres encontrar tua virtuosa mãe em casa?O pai dela e os irmãos insistem em que ela case comEurímaco. Ele supera todos os candidatos à mão dePenélope em presentes e em dádivas nupciais. Teusrecursos desaparecem de tua casa sem tua aprovação.Sabes como são volúveis os sentimentos no coraçãode uma mulher. Quem a receber será senhor de tudo.Filhos que tenha já não lhe interessam. O falecidolhe some da lembrança. Buscas são interrompidas.E tu? Volta e entrega a direção de tua casa a umaescrava em quem tenhas plena confiança até que osdeuses determinem quem será tua esposa. Avaliano teu peito a recomendação que te darei agora.Os pretendentes, os mais ousados, te montaramuma emboscada no estreito entre Ítaca e a rochosaSame. Querem-te morto antes de chegares em casa.Não desejo que isso aconteça. A terra cobrirá osperversos antes de eles consumirem teus bens.Trata de manter a rota de tua bela nau longe das

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ilhas. Navega à noite. Um imortal, favorável àtua causa, te enviará, com certeza, vento propício.Quando chegares ao porto de Ítaca, encaminhateu navio com toda a tripulação para a cidade.Procura imediatamente o guardador dos teus porcos.Se ele cuida dos teus bichos, protegerá também a ti.Passa a noite na cabana dele. Manda que ele vá àcidade para informar Penélope de que estás bem eacabas de retornar de Pilos.” Com essas instruções,subiu ao elevado Olimpo. Telêmaco arrancoudo sono seu amigo, o filho de Nestor. Tocando-ocom o pé, falou-lhe, resoluto: “Pisístrato, acorda,filho de Nestor. Precisamos do casco duro de nossoscavalos. Atrela-os ao carro. É hora de partir.” RetrucouPisístrato, notável filho de Nestor: “Ainda que sejaurgente, Telêmaco, não convém que nos larguemospela estrada em noite escura. Não tarda a Aurora.Espera até que Menelau, o Átrida, excepcional nomanejo dos dardos, acomode as dádivas no carro.Convém que uma troca de palavras afáveis encerrenossa estada. Assim permaneceremos para semprena memória de quem fraternalmente nos hospedou.”A Aurora dos dedos róseos não se fez esperar.Erguendo-se do leito de Helena – a rainha no beloPenteado –, acercou-se o Menelau da voz autoritária.Ao reconhecê-lo, o filho de Odisseu tratou de vestirapressadamente a túnica. Ela fulgia em seu corpo. Ummanto que lhe descia amplo dos ombros completavaa vestimenta. Telêmaco recebeu o rei à porta. O filhode Odisseu foi ajuizado nas palavras ao monarca:“Menelau, divinamente agraciado, guia deste povo,devo despedir-me. Obrigações me chamam. Aordem me vem do coração. Quero voltar para casa.”A força de Menelau soou na resposta: “Telêmaco,já que desejas partir, não quero reter-te aqui por maistempo. Eu mesmo ficaria furioso se um hospedeiromeu fizesse isso comigo. Solicitude excessiva molesta.Atitude regrada prevalece. Reter quem quer partir ouapressar a partida de quem deseja ficar constituem

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atitudes reprováveis. O hóspede merece, com a atenção,o direito de partir quando quer. Permite-me apenas queminhas dádivas subam ao teu carro. Verás com teusolhos que são esplêndidos. Minha dispensa, como sabes,é farta, as mulheres foram encarregadas de preparar obanquete de despedida. Igual atenção merece a glória e otrabalho. De mesa em mesa, viaja-se por estes caminhossem fim. Preferes retornar pela Hélade, atravessar Argos?Eu mesmo te acompanharei. Mando aparelhar os cavalos.Te guiarei por cidades de heróis. Não seremos tratadoscom indiferença. Ao menos uma lembrança levaremos:uma trípode, um caldeirão de bronze, uma junta demulas ou, quem sabe, um cálice de ouro.” A repostade Telêmaco foi ajuizada: “Caro Menelau, rei destepovo, prefiro voltar ao que é meu. Quando parti, nãodeixei ninguém para cuidar das minhas propriedades.Não seria estranho, se na procura do meu pai, homemque equiparo aos deuses, eu próprio me perdesseou perdesse bens guardados no meu palácio?”Menelau, o homem da voz potente, atento a essas sábiasreflexões, expediu imediatamente ordens à sua esposae às serviçais para que a dispensa fosse aberta à refeiçãoa ser preparada. Aproximou-se Eteoneu, filho de Boétoo.Acordara cedo e não morava longe dali. Recebeu ordensdo soberano para acender o fogo e preparar os assados.Sabendo das razões, pôs mãos à obra sem perder tempo.O monarca, ele próprio, desceu à câmara odorífera,acompanhado da esposa e de Megapentes.Chegados à câmara onde estavam guardados os tesouros,Menelau selecionou uma taça de duas asas e pediuque seu filho Megapentes apanhasse uma cratera de prata.Helena dirigiu-se às arcas onde estavam guardados osvestidos que ela mesma confeccionara com todo o esmero.Helena, a divina entre as mulheres, tomou um deles,o mais bem trabalhado –, era vaporoso, emitiaraios de estrela. Ela o estendera embaixo dos outros.Juntos atravessaram o palácio para o lugar em que seencontrava Telêmaco. Menelau, o loiro, disse ao hóspede:“Telêmaco, conclua Zeus, o tonitruoso esposo de Hera,

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os projetos de retorno que cultivas em tua mente.Das dádivas que guardo abundantes em meu tesouro,te ofereço as que me são mais gratas. Dou-teesta cratera toda lavrada, é de pura prata, observa bemesta borda feita de ouro, trabalho esmeradode Hefesto. Recebi-a de um herói, Fédimo. Conheces?É rei dos sidônios. Ele me hospedou quando eu voltava.Lembrado do gesto, quero que a tenhas agora.”Comovido, o Átrida colocou a bialada taça nas mãosdo jovem. Megapentes trazia a cratera. A prataluzia nos braços desse jovem forte. Apareceu, então,Helena. A alegria brilhava nas faces dela. O vestidopendia de seus braços. Tinha palavras carinhosas:“Este presente, querido filho, deverá gravar em tuamemória o nome de Helena. É para a ardentementedesejada hora do casamento; guarda-o para tua noiva.Confia-o a tua mãe. Desejo-te um agradável retornoà tua confortável mansão e à terra dos teus pais.”A rainha entregou o vestido ao jovem radiante.Pisístrato, tomado pela admiração que lhe causaramos presentes, guardou-os na caixa do carro. Menelau,em cuja cabeça a cabeleira loira se movia, convidoutodos a tomarem assento em cadeiras e poltronas.Entrou a escrava com a bacia para lavar as mãos. Aágua vinha num jarro de ouro, apoiado numa bandejade prata. A mesa brilhava de tão limpa. A respeitáveldespenseira dispôs o pão ao lado de muitas outrasiguarias. A fartura era apreciável. Trinchar e distribuira carne foi tarefa do filho de Boétoo. O notável filhode Menelau se ocupou do vinho. Postas as mesas,as mãos estendidas iniciaram o banquete. Satisfeitoo desejo de comer e de beber, Telêmaco e seucompanheiro, o glorioso filho de Nestor, atrelaramos cavalos e tomaram assento no carro ornamentado.No pátio as rodas se movem sonoras, passam opórtico. Seguem os passos do monarca. No cálicede ouro em sua direita resplandece a doçura dovinho destinado à derradeira libação. O rei, soleneante os cavalos, ergue o cálice em despedida:

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“Adeus, meus jovens. Levai minhas saudações aNestor, comandante de tropas, que foi para mim,enquanto combatíamos em Tróia, conselheiro e pai.”A sábia palavra de Telêmaco soou em resposta assim:“Nascido de Zeus, quando chegarmos a Pilos, Nestor receberáas saudações que lhe envias. Gostaria de em Ítacarepeti-las a Odisseu; devolvido a seu palácio, euteria assim o prazer de dividir com ele as provasde amizade com que fui distinguido em teu palácio.”Enquanto ele falava, uma ave alçou vôo à direita.Era uma águia com um ganso nas garras, mansocomo os de pátio. Perseguiram-na homens emulheres. Aproximou-se da carruagem e ganhouas alturas na frente dos cavalos. A alegria foi geral.O espetáculo levantou o entusiasmo de todos.Foi a vez de Pisístrato. A fala dele foi esta:“Para quem é este prodígio, Menelau? Fala chefe depovos, o sinal foi para ti ou para um de nós dois?”Menelau, o amigo de Ares, estava indeciso. O queresponder? Procurava evitar declaração inadequada.Helena, que comparecera de vestido longo, antecipou-se na resposta: “Ouvi-me. Falo como vidente. O queos deuses no meu espírito lançaram deverá acontecer.Uma águia que tem ninho na montanha arrebatou umganso criado em casa. Isso significa que Odisseu,depois de muito padecer errante, voltará para punir.Que ele já esteja em casa a ruminar o aniquilamentodos pretendentes, isso não está fora de cogitação.”Respondeu-lhe Telêmaco, o jovem que pensa longe:“Assim o disponha Zeus, o trovejante esposo de Hera.A ti, Deusa, subirão as minhas preces.” Estalou ochicote no lombo dos cavalos. Os cascos golpearamas ruas da cidade rumo aos campos abertos.O jugo que lhes oprime a nuca balouça o dia todo.Ao sol cadente, anoitecem todos os caminhos. AoAlcançarem Faros, dirigiram-se à mansão de Diocles,filho de Ortíloco, da casa de Alfeu. Regiamentepresenteados, passam a noite lá. À primeira luz dosróseos dedos da Aurora, atrelam os cavalos para

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prosseguirem viagem no carro de várias cores. Osruídos da partida ecoaram na galeria ao atravessaremo pórtico. Os estalos do chicote apressavam o galope.Voavam as patas dos corcéis até alcançarem as altasmuralhas de Pilos. Falou Telêmaco ao filho de Nestor:“Caro amigo, quero tua palavra. É importante paramim que a cumpras. A amizade de nossos pais nosaproximou. Acresce que temos a mesma idade. Estaviagem estreitou os laços que nos uniam. Detém ocarro na minha nau, rogo-te, nascido de Zeus. Deixa-me lá. Se eu for à tua casa, as gentilezas do teu painão me deixarão partir. E é urgente que eu retorne.”O filho de Nestor refletiu sobre o pedido do amigo.Não queria prometer o que não pudesse cumprir.Considerou que esta seria a decisão adequada:dirigir os cavalos à nau, firmada nas areias do mar,buscar os ricos presentes guardados no bagageiro,preciosidades de ouro, dádivas de Menelau. Foramde incentivo as palavras que lhe saíram da boca:“Não percas tempo. Antes de eu levar a notíciaao meu venerando pai, reúne todos os teuscompanheiros. Minha mente e o meu coração oconhecem bem. É imperativo em suas decisões.Ele te constrangerá pessoalmente a ficar. Nãovoltará sem alcançar seus propósitos. Ficaráfurioso se resistires.” Balouçou o brilho das crinasdos cavalos fustigados. O galope venceu pronto adistância a Pilos. Telêmaco apressou o embarquedos seus: “Amigos, aparelhem o navio. Querotodos a bordo. Declaro cumprida nossa missão emPilos.” As ordens foram imediatamente executadas.A bordo, ocuparam seus assentos nos bancos. Findasessas providências, Telêmaco rendeu culto a Atenana popa. Aproximou-se um estranho, viera de longe,um exilado de Argos por assassinato, um sacerdote.Pertencia à gente de Melampo, antigo morador dePilos, mãe de rebanhos. Dos pílios ele era um dos maisricos. Vivia numa mansão majestosa. Neleu, o maisarrogante dos viventes, o perseguia. O medo o

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afastou da pátria e desse homem soberbo. Abrigadoalhures, Neleu apoderou-se de seus bens por todo umano. Melampo foi parar nas algemas de Fílaco.Sofreu muito. Causa da prisão foi a filha de Neleu,que o enlouqueceu. A Erínia golpeou-lhe a mente.Melampo, conseguindo, entretanto, fugir de morteviolenta, arrebanhou os bois de Fílaco e os fez mugirem Pilos. Para se vingar do tratamento infame querecebera de Neleu, levou a filha deste à casa do irmãopara ser esposa dele. Melampo escolheu para sioutra terra, Argos e seus cavalos. Habitar alie ser rei desse numeroso povo foi seu destino. Casoulá, e lá ergueu uma suntuosa mansão. Antífatese Mâncio foram os seus filhos, poderosos ambos.Antífates teve um filho valente, de nome Oicleu.Oicleu foi pai do intempestivo Anfiareu. Este eracaro a Zeus Porta-Escudo. Apolo era outro que oqueria muito. Contudo, ficou longe do vestíbulo davelhice. Pereceu em Tebas, outros presenteavama mulher dele. Deixou dois filhos: Alcmaão eAnfíloco. Mâncio gerou Polifides e Clito. A Auroranão resistiu à beleza de Clito. A deusa do trono deouro o raptou para elevá-lo ao círculo dos imortais.E Polifides? Apolo fez dele o melhor dos videntesdepois de Anfiareu ter morrido. Polifides, tendo-seincomodado com o pai, emigrou para Hiprésia, ondefixou residência fazendo prognósticos para todos. Oestranho era filho deste. Chamava-se Teoclímeno.Aproximou-se de Telêmaco, quando este faziapreces e rendia sacrifícios em sua rápida nau.As palavras vinham-lhe leves ao falar a Telêmaco:“Amigo, já que te encontro a sacrificar neste lugar,rogo-te em nome dos teus sacrifícios e do teu deus,de ti mesmo, da tua cabeça e dos teus companheiros,responde-me francamente e sem rodeios minhasperguntas: quem és, donde vens, onde moras, quemsão teus pais.” Ponderada foi a resposta do jovem:“Estrangeiro, terás resposta sincera. Minha famíliaé de Ítaca. Sou filho de Odisseu, aliás, fui. Ele

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desapareceu em circunstâncias melancólicas.Fretei um navio, reuni uma tripulação para sabernotícias de meu pai, sumido há muitos anos.”Falou Teoclímeno com fulgores divinos:“Assim como tu, não estou em minha terra. Mateium homem e fugi. O morto tinha quantidade deirmãos e parentes lá em Argos. Magnatas! Paraescapar da morte, de um fim violento, me largueino mundo. Andar errante é meu destino. Recebe-me no teu navio. Suplico-te como fugitivo. Nãoquero morrer. Penso que me perseguem.”Ajuizado como sempre, contestou Telêmaco:“A decisão é tua. Não te recuso o que me pedes. Vem.Ofereço-te o que tenho. Quero que te sintas bem.”Uma vez aceito, o estrangeiro passou-lhe a lança de bronze.Telêmaco a guardou no castelo da popa. Embarcouem seguida no vaso que vence mares. Ocupou seulugar na popa e convidou Teoclímeno a sentar-sea seu lado. Saltaram as amarras da popa. Telêmaco,entusiasmado, orientou seus companheiros nasmanobras de partida. A reação foi imediata. Omastro de abeto subiu no centro do navio. Firmam-no os cabos. Laços de couro trançado içam asalvas velas, aos olhos fulgurantes de Palas Atena,autora de vento propício, que forte fura a purezado Éter. Importa-lhe que a nau vença velozos mares em que nada medra. Passaram por Cruno,por Cálcide e sua formosa corrente. Ao sol quebaixa, anoitecem todos os caminhos. O soprode Zeus leva a nau até Feas, Costeiam Élida, ilhadivina, governada pelos epeus. Ao contornaras ilhas rochosas, retornam as preocupações.Como fugir da morte? Seria recolhido à prisão?

Na cabana de Eumeu, Odisseu e o porqueiroceavam. Outros obreiros ceavam com eles.Satisfeitos com as iguarias que provavam, falou-lhes Odisseu para experimentar o porqueiro.

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Interessava-lhe saber o limite da hospitalidade.Poderia ficar? Deveria abrigar-se na cidade?“Meu caro Eumeu e vocês, amigos. Penso emir amanhã à cidade. Vou para mendigar. NãoQuero sobrecarregar ninguém. Mas precisoaconselhar-me com vocês. Alguém terá quelevar-me até lá. Chegando lá, eu me viro.Espero que alguém me ofereça um naco de pão,me dê um copo de água. Na casa de Odisseu,pretendo levar notícias à sábia Penélope.Espero que os pretendentes, mesmo arrogantes,não me mandem pastar. Comida não lhes falta.Poderiam me convidar. Se quiserem, até trabalhopara eles. Não tenho razão? O que você acha?Conto com Hermes, ele me guia. Os trabalhosque ele incentiva agradam, conferem prestígio.Faço de tudo. Ninguém compete comigo. Seiarmar lenha de fogo, sei partir achas secas. Seidividir e assar carne, sei tostar, sei distribuirvinho, sei tudo o que os de baixo fazem para os decima.” Tu, porqueiro, lhe respondeste contrariado:“Não posso entender, meu velho, o que te passa pelacabeça. Sabes que eles poderiam terminar contigo?Queres misturar-te com aquela gente? A pretensão,a violência é tanta que ecoa no bronze da abóbadaceleste. Os que lhes prestam serviços têm outrojeito. É gente nova. Vestem túnicas e capas dequalidade, a cabeleira deles brilha, apresentam-sede cara bonita. Assim são os criados. As mesasbrilham. Providas sempre de pão, carne e vinho emabundância. Fica. Tua presença não perturba ninguém.Falo por mim mesmo e pelos outros que vivemaqui comigo. Espera até aparecer o filho de Odisseu.Ele te fornecerá túnica e capa. Decentemente vestido,poderás ir para onde teu coração te chamar.”Respondeu-lhe Odisseu, o grande sofredor: “Que sejascaro a Zeus como o és a mim agora! Acabas delivrar-me desta minha dolorosa vida de errâncias.Nada é pior do que andar por este mundo sem eira

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nem beira. É esse maldito estômago, Eumeu, oresponsável por nossos males. É ele que nos sujeitaa trabalhos e dores. Queres que eu fique e espereo filho de Odisseu. Fala-me também da mãe doherói, do pai, que já na despedida se arrastavana estrada da velhice. Os raios do sol ainda osiluminam ou já se mudaram para o reino de Hades?”Falou-lhe, então, Eumeu, capataz de porqueiros:“A respeito disso, estrangeiro, posso dar-teinformação segura. Laertes ainda vive. Roga tu queZeus lhe extinga o sopro da vida em sua própriacasa. A ausência do filho lhe dói muito. Dói-lhetambém a partida da querida esposa. A mortedela o levou a uma velhice prematura. Afalta do filho distante apressou o fim dela.Morte dolorosa como a dela eu não desejo anenhum dos que me querem bem. Emseus últimos dias, embora muito abatida, falarcom ela e fazer-lhe perguntas me trazia grandealegria. Eu tinha sido criado com Ctimene, afilha dela, jovem robusta, a última de seus filhos.Recebi os mesmos cuidados e quase que a mesmaestima. Quando atingimos a sonhada juventude,ela foi enviada como noiva presenteadíssima aSame. Recebi de Anticléia vestimenta de valor:túnica, capa, sandálias pomposas enfeitavam meuspés. Cercado de afeto, fui enviado ao campo.Tudo isso me falta agora. Concedem-me, porém,trabalho os bem-aventurados deuses. Dedico-meao ausente. Tenho o que comer, o que beber e o quedar a pessoas honradas. Da Senhora, entretanto,não me vem palavra confortadora, nem gesto.O mal desabou sobre a casa. Descarados! Oscriados gostariam de conversar com ela, saber oque poderiam fazer por ela, comer e beber comela, receber uma recompensa que levante o ânimo.”Com muita prudência, respondeu-lhe Odisseu:“Estou surpreso. Ainda pequeno, meu caro Eumeu,já foste arrancado da tua terra, dos braços dos teus

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pais. Te largaram no mundo. Conta-me tudo.Aniquilaram teu povo, infestaram as ruas da cidadeem que moravam teu pai e tua distinta mãe? Pirataste arrebataram enquanto pastoreavas ovelhas e bois,transportaram-te como carga no navio e por preçoavultado te venderam ao dono disto tudo?”Respondeu-lhe o guardador de porcos e capataz:“Estrangeiro, já que tocaste no meu passado, prestaatenção no que vais ouvir enquanto comes e bebes.Compridas são as noites. Há tempo para dormir etempo para se deliciar com histórias de antanho.Nada te obriga a te recolheres antes da hora. Muitosono faz mal. Quem não quiser escutar, dê o forae vá pra cama. Ao raiar do dia, roa uma costela,pegue seus porcos e vá cuidar do seu trabalho.Deixem-nos aqui, com assados, copos e conversagostosa recordar maus momentos de outros tempos.Dores passadas divertem, se quem as conta padeceumuito e passou por muitas dificuldades. Se queresescutar, não vou deixar de satisfazer tua curiosidade.

“Existe uma certa ilha, chamada Síria, talvez aconheças, situada acima de Ortígia, lugar paraonde o Sol se curva. Populosa ela não é, mas éagradável: belos bois, belas ovelhas, muito vinho,muito trigo. A fome não aflige a gente de lá. Oshabitantes daquela ilha não conhecem doençanenhuma. Os que nascem ali, envelhecem. ApareceApolo, aparece Ártemis. Flechadas suaves levamos velhos a uma morte tranqüila. Como lá tudoestá dividido em dois, há duas cidades. Sobreuma e outra reinava meu pai, Ctésio, filho deÓrmeno, soberano de aspecto divino. Marinheirosfenícios visitaram Síria um dia, renomados, masvelhacos. Vinham com um barco atulhado detarecos. Servia na casa do meu pai uma fenícia,bela, esbelta, entendida em trabalhos de valor. Umfenício, marinheiro safado, veio com agradinhos.Isso aconteceu um dia em que ela lavava roupa.

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Ele a levou pro navio e pra cama. Nada transtornamais a cabeça duma mulher, mesmo que ajuizada.Depois do ato, ele quis saber quem era e dondevinha. Ela descreveu o palácio do meu pai e falou:‘Sou de Sidon. Isso me orgulha, terra de muitobronze. Sou filha de Aribante, homem rico. Muito!Táfios me raptaram. Gatunos! Eu vinha do campo.Os desgraçados me pegaram e me arrastaram até acasa deste cara. Ele pagou uma fortuna.’ O larápioque tinha dormido com ela (escondidinhos!) falou:‘Não queres voltar para casa conosco? Poderiasver teu pai, tua mãe, tua mansão, tua gente. Elesainda vivem e, ao que sei, nadam em dinheiro.’A companheira de prazeres mostrou-se interessada:‘Por que não? Mas não sem garantias. Quero quejurem que me levarão para casa. E não me judiem!’Jurou o larápio, juraram os outros também.Feitos os juramentos conforme todos os ritos,a mulher se animou e se largou a fazer promessas:‘Boca de siri! Se alguém de vocês me encontrarna rua ou na fonte, não falem comigo, não mecumprimentem. Se o velho souber de alguma coisa,se alguém lhe cochichar no ouvido, estou fodida.O velho me algema, me tortura, acaba com vocês.Guardem bem o que digo. Continuem a negociar.Quando o navio estiver abastecido de víveres,avisem-me. Estarei esperando lá no palácio.Virei com ouro, tanto quanto eu puder carregar.Não quero favores. Pagarei pelos meus gastos.Rapto o filho do velho, um menino. Tiro-o dopalácio; com o preço dele pago a passagem. Ogaroto corre atrás de mim. Ele vem comigo.Calcularam o lucro? Podem vendê-lo longe daqui.’Feita a oferta, a mulher desembarcou e voltou àsua bela mansão. Eles ficaram ainda um ano.Abarrotaram os porões do navio de produtos.Quando tinham o suficiente, trataram de partir.Não se esqueceram de avisar a mulher. Veioao palácio um espertalhão com um colar de

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ouro e contas de âmbar. A jóia passou pelasmãos distintas de minha mãe e pelas mãosdas criadas. Ficaram de olhos esbugalhados.Avaliaram o preço. A mulher percebeu o sinal.O malandro retornou discretamente aonavio. Ela me tomou pela mão e saiu portaafora. No vestíbulo viu cálices nas mesas, lugarem que meu pai se reunia com seus conselheiros.Tinham ido à assembléia para ouvir o povo.Agarrou, num zás, três cálices e os enfiou noseio. Eu, inocentinho, a segui. O sol se pôs.Trevas cobriram as ruas. Corríamos, eu e ela,para a beira do mar. A nau ligeira dos feníciosbalouçava ali. Procediam ao embarque parasingrar a rota úmida. Receberam-nos a bordo.Propícia soprou a brisa de Zeus. Seis noites eseis dias viajamos sempre. Quando, porém, Zeusnos proporcionou o sétimo dia, a mulher foialvejada por Ártemis, a sagitária. O corpo dela[1]bateu na sentina como uma gaivota marinha.Lançaram-na ao mar para pasto de focas e peixes.De coração partido, fiquei aos prantos. Água evento nos levaram para Ítaca. Laertes me comprou,me incorporou nos seus bens. Foi assim queconheci esta terra com meus próprios olhos.”Odisseu, de sentimentos divinos, lhe respondeu:“Eumeu, cada detalhe do que contaste tocou-meo coração. Sem dúvida, sofreste muito. Como sevê, Zeus dá o mal e dá o bem. Abriga-te o tetode um homem generoso. Comida e bebida nãote faltam. Tens o necessário. Levas uma vidaboa. Mas eu que já conheci cidades de muitoshomens vim parar desprotegido neste lugar.”Solta correu a conversa entre ambos até tarde.Dormiram muito pouco, na verdade, quase nada.A Aurora com seus róseos dedos não tardou.

Telêmaco e os seus recolheram as velas. Destros,

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pousaram o mastro no chão e levaram a nau a remoao ancoradouro. Lançaram a âncora e prenderamos cabos da popa. Desembarcaram para preparar arefeição na praia. Nas crateras giraram os reflexosdo vinho. Revigorados pelos manjares e pelabebida, soou a palavra orientadora de Telêmaco:“Convém que a nau negra seja levada à cidade.Devo ir ao campo para ver meus pastores. À tardeestarei no palácio para pôr meus negócios em dia.Acertaremos as despesas de viagem amanhã.Preparem-se para uma festa de assados e vinho.”Falou-lhe Teoclímeno, o iluminado:“E eu, meu filho, farei o quê? Devo bater na portade alguém? Quem governa esta pedregosa Ítaca?Queres que vá ao palácio e me dirija a tua mãe?”Telêmaco, que pensa em tudo, respondeu-lhe: “Eupoderia mandar-te para minha casa. Seria inútil.Ninguém te receberia como mereces. Se eu nãoestou, hóspedes lá não são bem tratados. Minha mãenão te verá. Raramente ela aparece na sala dospretendentes. Não sai dos seus aposentos, situadosno segundo piso. Eu poderia recomendar-te aoutro cidadão, Eurímaco, filho brilhante de Políbio,um sábio. Os olhos dos itecenses voltam-se a ele.Soberbo! O deus do momento é ele. O primeirocandidato à mão de minha mãe é ele. Está com oolho no que é do meu pai. Só Zeus sabe se o diafunesto há de apanhá-lo antes do festão das núpcias.”Ele ainda falava quando uma ave bateu asas à direita.Era um falcão, velocíssimo mensageiro de Apolo.Em suas garras se debatia uma pomba. As penasesvoaçavam no espaço entre a nau e Telêmaco.Teoclímeno o tomou pela mão e longe dos amigoso introduziu, em segredo, no mistério das aves:“Telêmaco, o vôo pela direita não aconteceu semorientação divina. Observei bem. Foi um prognóstico.Em Ítaca, casa nenhuma se iguala em nobreza à tua,sem sombra de dúvida, a mais poderosa.” Sensatasoou a resposta de Telêmaco: “Queira o céu,

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estrangeiro, que tua palavra se cumpra. Conhecerásno valor dos presentes minha generosidade.Vendo-os, qualquer um te reconhecerá venturoso.”Telêmaco chamou Pireu, companheiro de confiaça:“Pireu Clitida, de todos os que me acompanharam aPilos, tu foste o mais dedicado. Confio-te agoraeste estrangeiro. Recebe-o em tua casa. Dá-lhea atenção devida até eu retornar do campo.”Respondeu-lhe Pireu, lanceiro de fama: “Não tepreocupes, Telêmaco. Por mais que demores,ele estará sob meus cuidados. Nada lhe faltará.”Assumindo o comando, ordenou aos companheirosembarcarem e mandou soltar os cabos da popa. Abordo, tomaram seus lugares nos bancos dos remeiros.Telêmaco calçou as sandálias que o distinguiam. Parasua proteção, tomou a lança guardada na cobertura. Aponta afiada era das boas. Livraram a nau das amarras,afastaram-na da costa e navegaram para a cidade.Eram essas as ordens de Telêmaco. Os pés divinosdo filho de Odisseu levaram-no velozes ao estábulo.As abundantes varas de porcos o chamavam. Queriaver o porqueiro, tão dedicado a seus senhores.

[1]. Ártemis, com suas flechas, provocava mortes repentinas – e indolores – nosmortais. (N.E.)

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Canto 16

Na cabana, ambos preparam a refeição, Odisseu eo porqueiro, o divino. É de manhã. Arde o fogo.Despedem-se os demais. É hora de levar os porcosao pasto. Telêmaco avança. Cercam-no os ladradores.Mas não ladram! Percebeu Odisseu o alvissareirogirar dos cachorros no impacto dançante das patasno chão ressoante. Esvoaçaram-lhe estas palavras:“Recebes, decerto, a visita de um amigo ou deum conhecido. Os cachorros circulam inquietos,mas não ladram. Sinto batidas de patas no piso.”A frase ainda não se formara inteira, quandoassomou na porta o vulto do filho. O espanto ergueuo porqueiro. Caem-lhe da mão instrumentos e vasos.O vinho entornado tinge o chão. Eumeu corre aoamo, beija-lhe a testa, beija-lhe os olhos, beija-lheambas as mãos. Uma lágrima molha-lhe o rosto.Telêmaco, como que vindo de terra distante, findosdez anos sofridos em dores sem conta, recebe doporqueiro ternuras de pai. Eumeu só tem Telêmaco.Telêmaco lhe vem dado por deuses. Beijos nãocessam. Não cessam abraços. Como que a umfugido da morte, profere o porqueiro palavras aladas:“Vieste, Telêmaco, meu doce brilho. Não esperavaver-te nunca mais. Pensava-te morto em Pilos. Entra,filho querido. Quero sentir a alegria de ver-te ládentro. Vens renascido de um mundo perdido. Nãocostumas freqüentar teus campos. Raro visitastratadores. Tua atenção foi absorvida por essesabomináveis que não cessam de querer a posse detua mãe.” Ajuizada soou a resposta de Telêmaco:“Te acompanho, paizinho. Por tua causa estouaqui. Quis ver-te com meus próprios olhos.Venho para saber de tua boca se minha mãe ainda

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espera no palácio. Outro casou com ela? O leitovazio de Odisseu ainda está coberto de teias dearanha?” Firme soou a resposta do capataz:“De ânimo de ferro, ela ainda resiste lá noteu palácio. Noites infindas findam em dores.Dias e dias se arrastam em rios de lágrimas.”A lança de bronze passou às mãos de quemtranqüilizara o jovem. Seus passos soaram nopiso de pedra. Odisseu, o pai, ofereceu-lhe oassento. Com estas palavras, Telêmaco deteveo gesto: “Fica, estrangeiro. Nesta cabana nãofalta lugar. Este é o homem que cuida de tudo.”Odisseu, confortado, retomou seu lugar. Eumeuestendeu um pelego sobre os ramos espalhados.Foi esse o lugar que o porqueiro arranjou para ofilho de Odisseu. O dedicado servidor serviu-lhesem travessas os assados não consumidos no diaanterior. Pronto preparou os cestos de pães,girava no vaso a delícia do vinho. Ocupou olugar fronteiro a Odisseu. Dispostas as iguarias,os convivas estenderam mãos conduzidas pelodesejo. Suprido o corpo de alimentos e vinho,Telêmaco dirigiu-se ao seu fiel porqueiro:“Paizinho, qual é a procedência do estrangeiro?Marinheiros o trouxeram a Ítaca? Vieram donde?Não vais me dizer que ele chegou até aqui a pé.”Eumeu, caro porqueiro, tu o informaste assim:“De mim, meu filho, saberás a verdade toda.A gente dele vive nos amplos campos de Creta.Contou-me que chegou a conhecer muitas cidades,desnorteado. Não sabe que deus teceu-lhe a vida.Fugiu por último de piratas tesprotenses. Foi assimque pediu minha proteção. Eu o encaminho agoraa ti. Procede como te parece justo. É protegido teu.”Percebem-se dúvidas na resposta de Telêmaco:“Eumeu, doem-me as palavras que proferiste.Sabes que não posso dar-lhe abrigo em minhacasa. Reconheço minha incapacidade. Comque mãos defender-me de agressões, de ameaças?

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O coração de minha mãe está partido em dois.Continuará a viver comigo para cuidar da casa?Respeita ainda o leito do esposo e a boca do povo?Ou já se dispõe a seguir o mais nobre dosaqueus, o que lhe faz a melhor proposta?Quanto a este estrangeiro, já que se abrigou aqui,terá de mim túnica, capa, a roupa de que necessite.Receberá espada para se proteger e calçado paraos pés. Será conduzido para onde desejar ir.Se estás de acordo, acomoda-o aqui mesmo.Mando a roupa que prometi. Forneço víveres.Não deverá ser carga para ti nem para outros.Não posso conceber a presença dele entre ospretendentes. A arrogância deles não tem limites.Ele ouviria desaforos. Isso me doeria muito.Enfrentar uma multidão é difícil mesmo a umhomem de muito valor. E eles são muitos e fortes.”Interveio Odisseu, experimentado em trabalhos:“Amigo, chegou minha hora de falar. O queacabei de ouvir me dilacera o coração. Ospretendentes tramam desatinos nas tuas barbas,insurgem-se contra um homem do teu quilate.Consentes, gostaria de saber, na tirania queexercem sobre ti? Ofendeste os deuses? É porisso que o povo te odeia? A culpa é dos teusirmãos que não te amparam quando deveriam?Se eu tivesse a juventude que ainda lateja nomeu coração, se eu fosse filho de Odisseu ou opróprio, mesmo em trapos, eu acharia saída.Que me decepasse a cabeça, quem quer que fosse,se eu não fizesse descer calamidades sobre essacorja que infesta o palácio do filho de Laertes. Se,esmagado pelo número, devesse tombar emcombate, preferiria morrer em meu próprio palácioa ver indefinidamente essa vergonheira toda:estrangeiros maltratados, escravas e mulheresfriamente violentadas nos belos aposentos dopalácio. Odres secos, tulhas vazias, desmandos,loucura, desatinos, essa infâmia nunca será

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vitoriosa.” Inteligente foi a resposta de Telêmaco:“Saberás sem reservas o que se passa nesta ilha.Não há rebelião popular, ninguém me odeia.Não tenho irmãos. Não poderia queixar-me deomissão em horas decisivas. O Cronida sempreincumbiu um só da perpetuação do nossa linhagem.Arcésio teve só um filho: Laertes. Odisseu é filhoúnico de Laertes. De filhos Odisseu deixousó um, eu aqui, e me abandonou. Prepotentesinfestam minha casa, nobres das ilhas vizinhas:Dulíquio, Same, a selvosa Zacinto, governantesdesta pedregosa Ítaca, tens aí os que compõemo clube dos pretendentes de minha mãe, ospredadores das minhas provisões. E ela? Nãodiz ‘não’ a esse casamento abominável, nem sedeclara favorável. Na indecisão, dilapidam meupatrimônio, devoram minha casa. Em breve eupróprio serei dilacerado. A decisão está nosjoelhos dos deuses. Peço-te, paizinho, que procuresa sábia Penélope. Comunica-lhe que estou bem,que já voltei de Pilos. Eu fico aqui. Volta depoisde teres levado o recado. Que ninguém saiba denada! Tramam contra mim. Querem minha ruína.”Lembro tua resposta, Eumeu, meu sábio porqueiro:“Compreendo, deixa-me ver, estou refletindo noque acabas de me dizer. Explica-me bem. Querover claro. Devo aproveitar a ida para informarLaertes? Para ele não é fácil. Preocupa-se muitocom Odisseu. Cuida do campo. Come, bebe econversa só com escravos. Ele escolheu viverassim. Mas ultimamente só come e bebe forçado.Tua viagem a Pilos o abalou muito. Largou demão o trabalho. Geme e chora pelos cantos.A pele se enruga, os ossos não lhe obedecem mais.”Reflexivo, respondeu-lhe Telêmaco: “É doloroso.Ainda que me doa, não posso resolver isso agora.Os mortais decidem sobre pouco. Eu gostaria deprovidenciar o retorno dele ao palácio. Vai, noentanto, leva o recado e volta. Não convém que

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andes atrás dele pelos campos. Minha mãe podeenviar-lhe uma escrava de confiança com umamensagem secreta. Dela o velho receberá a notícia.”

Telêmaco tinha pressa. O porqueiro calçou assandálias e partiu. Atena estava atenta. Mal oporqueiro tinha saído, ela se aproximou. Tinhao aspecto de uma mulher bela, esbelta eentendida em trabalhos delicados. Odisseu apercebeu parada no vestíbulo. Telêmaco nãonotou que ela estava presente. Não a viu.Poucos percebem a aparição de deuses.Viram-na Odisseu e os cães, mas não ladraram.Fugiram ganindo pelo pátio. Odisseu, obedientea aceno de sobrancelhas, atravessou a cabanaem direção a ela na compacta cerca do pátio.Ao deter os passos, falou-lhe a deusa: “CaroOdisseu, homem de muitos recursos, importaque fales a teu filho. Convém que desvendeso mistério. A hora do fim se aproxima.Dirige-te com Telêmaco à cidade. Aqui estoupara enfrentar convosco os inimigos.” Ao golpeda áurea varinha de Atena, no peito vigorosoe másculo do herói, túnica e capa reluziramrenovadas. O rosto se refez em tonalidadebronzeada, as rugas sumiram, a barba espessaemoldurou escura o queixo. Terminadoo trabalho, Atena se retirou. Odisseu retornouà cabana. Tomado de pasmo, Telêmaco desviouo rosto. Aos olhos dele, era divino o corpoque via. Escaparam-lhe estas palavras aladas:“Bem diferente do que eras me surges agora.Outras vestes envergas, já não tens a pele quetinhas. Piedade! Terás os sacrifícios que queres:áureos tesouros, obras de arte. Poupa-nos.”Sofrimentos severos soaram nas palavras deOdisseu: “ Não sou deus, não me confundascom imortais. Sou aquele por quem gemes,por quem muito padeces, aquele por quem

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sofres violências. Eu sou teu pai.” Com essesesclarecimentos, abraçou o filho. Lágrimasdesciam-lhe pela face, há muito retidas.Telêmaco, incrédulo – este não podia ser seupai –, continua a interrogá-lo: “Não, tu nãoés meu pai. Um gênio me turva a visão para queminhas dores se agravem. O que aconteceu contigonão é obra de homem, não é obra de sua própriamente. A transformação de um velho em jovemnão acontece sem que baixe um deus. Eras, aindahá pouco, um velho maltrapilho, teu porte édivino agora, semelhas os que seguram o céu.”Odisseu falou, ponderado, para tranqüilizá-lo:“Telêmaco, vês teu próprio pai. Não há nadade espantoso, nada de surpreendente. Não espereso retorno de outro Odisseu. Sou eu mesmo. Sofrimuito. Naveguei sem norte. Retorno à minhaterra depois de vinte anos. Devo este instantea Atena, Rainha da Vitória. Fazer de mim o quequer, está em seu poder. Agora tenho oaspecto de um mendigo, em seguida tenhoaparência de jovem, deslumbrantemente vestido.Para seres que governam o vasto céu, exaltar ummortal ou abatê-lo não é proeza.” Tendo-seapresentado, Odisseu voltou ao assento.Telêmaco, desfeito em lágrimas, estreitou-o nosbraços. Ambos renderam-se ao desejo de chorar.Imagina grasnos de águias, aves de garrasretorcidas pelo tormento – camponesesabateram-lhes os filhotes antes do primeirovôo. A dor que lhes fluía das pálpebras não foimenor. A luz do sol se apagava na dor de aflitos.A voz de Telêmaco rompeu o lúgubre silêncio:“Que embarcação te trouxe, pai amado, quemforam os nautas que te deixaram em Ítaca?Lembras nomes? Não me digas que vieste a pé.”Odisseu verteu nestas palavras seu muito sofrer:“Não te esconderei nada, meu filho. Trouxeram-me navegadores de fama, feáceos. Eles

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costumam repatriar quem os procura. Dormidurante a viagem e dormindo me largaram aqui.Presentearam-me. Trouxe esplêndidas riquezas:bronze, ouro, vestimenta – cofres fartos.Por orientação divina, guardei a fortuna numacaverna. Atena me recomendou vir até aquipara deliberar sobre o extermínio dos insolentes.Peço-te que me enumeres os pretendentes.Gostaria de saber o número e quem devoenfrentar. Preciso refletir sobre a estratégia.Nós dois seremos suficientes para aniquilá-los ou convém convocar a ajuda de outros?”Cautelosa foi a resposta de Telêmaco: “Teurenome, meu pai, rondou sempre meus ouvidos:o valor dos teus braços e o acerto de tuas decisões.Teu plano é ousado. Me assusta. Como poderiamdois homens vencer opositores tão numerosos?Os pretendentes não são dez nem vinte apenas.São muitos. Faz os cálculos. De Dulíquiovieram cinqüenta e dois rapazes escolhidos, maisseis criados. Vinte e quatro homens chegaramde Same. De vinte é a delegação de Zacinto.Doze homens da nobreza itacense engrossaa soma. Calcula ainda Médon, o arauto. Nãoesqueçamos o cantor, o da voz divina. Há aindadois escravos encarregados de trinchar a carne.Se resolveres atacá-los no palácio, devescontar com reação forte e violenta. Pensa bem.Conviria que tivéssemos aliados, gente queestivesse disposta a nos oferecer socorro.”Odisseu, experimentado em lições, respondeu:“Gostaria de ouvir tua opinião sobre este plano.Julgas que nos basta o auxílio de Atena e de ZeusPai? Ou devemos pensar na ajuda de outros?”A reposta de Telêmaco foi ajuizada: “Semdúvida alguma, estes são os melhores. Não seassentam lá encima, nas nuvens? De lá exercempoder sobre homens e imortais.” Continuouo sofrido Odisseu, confiante em deuses: “Não

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penso que esses dois se eximam por muito tempodo estrondoso embate em que mediremos forçascom os pretendentes aos olhos de Ares. Mãos àobra! Vai já ao palácio, aproveita a primeiraluz da manhã. Mistura-te a essa corja arrogante.Eu irei amanhã, conduzido pelo porqueiro. Ireiem andrajos. Me verão como mendigo, velho.Se me tratarem mal, domina o furor no teu peito.Agüenta! Não te perturbe o mal que eu vier asofrer. Digamos que me arrastem pelos pernas; naporta, pé na bunda, pauladas. Agüenta firme!Podes, é claro, pedir que parem com a judiaria.Fala tranqüilo, adverte-os com delicadeza. Nãote atenderão. Seja! O dia fatal se aproxima.Outra coisa. Quero tua atenção. Abre tua mente.Quando a conselheira, Atena, agir sobre minhavontade, te farei sinal de cabeça, trata de levartodas as armas de guerra que encontrares parameu esconderijo lá no alto, no meu aposento.Tua conversa com os pretendentes será sempreconciliadora. Se estranharem a falta, dirás:‘Afastei-as da fumaça. Já não lembravam em nadao aspecto que tinham quando Odisseu nos deixou.É este fogaréu. Cobertas de fuligem, imundas.Há mais. Esta advertência me veio do Cronida.Tem gente que bebe demais. Sai briga. Ódio.Quero evitar que um esfaqueie o outro. Seriauma vergonha, fim de festa. Ferro atrai valentões.’Deixa duas espadas e duas lanças – só para nósdois, dois escudos de pele bovina para protegero corpo na hora do ataque. Contamos com maisdois: Zeus e Atena, deixarão todos malucos.Outra coisa: bico calado. Não te esqueças disso.É um teste. Se o sangue que te anima é o meu,ninguém saberá de ti que Odisseu está no palácio:nem meu pai, nem o porqueiro, nem alguma dascriadas, nem Penélope, minha amada esposa.Saber de que lado estão as criadas é assunto denós dois. Também a fidelidade dos criados será

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provada. Saberemos quem nos honra, teme,respeita e quem te desacata, sabendo quem és.”A resposta do filho de Odisseu foi admirável:“Querido pai, ainda terás oportunidade de conhecera têmpera do meu coração. Frouxo eu não sou.Qual é a vantagem da tua propostapara nossos propósitos? Pensa bem. Enquantoandas por aí, pelos campos, para saber quem,um por um, é fiel a ti, desaforados seencarregam de consumir o que é teu em tua casa,sem consideração. Queres testar as criadas? Vá lá!É bom saber quem é sem-vergonha e quem não é.Os escravos? Não te aconselho a correr pelosestábulos para testar fidelidade. Deixa isso paradepois. Aguarda sinal do Zeus que te protege.”A conversa entre ambos corria desse jeito.

Entrementes chegou a Ítaca o navio que tinhalevado Telêmaco com seus companheiros aPilos. Logo que alcançaram o fundo da baía,arrastaram a nau negra para a terra. Obreirosforçudos, sem perda de tempo, se puseram aesvaziar os porões. Os presentes, admiráveis,foram levados à casa de Clítio. Um mensageirocorreu à mansão de Odisseu com informaçõespara a sábia rainha: que Telêmaco, antes de irao campo, ordenara que navegassem à cidade.Que a rainha fosse forte! Não havia motivopara medo. Poupasse lágrimas. O mensageiroe o porqueiro, portadores da mesma mensagem,procuraram Penélope. Chegados à mansãodo rei, o mensageiro, cercado de criadas, falouprimeiro: “Senhora, teu filho já voltou.”Veio, então, a fala do porqueiro. Disse tudo oque Telêmaco lhe mandara dizer. Falouo que tinha ouvido, até à última palavra.Deixando a sala e o pátio, voltou a seus porcos.Os pretendentes, estupefatos, perderam o ânimo.Deixando a sala, dirigiram-se ao muro do pátio.

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Reuniram-se em conselho junto aos portões.Eurímaco abriu a sessão: “Amigos,Telêmaco – que sujeitinho insolente! – concluiucom êxito essa viagem – quem diria? – contranossos planos. Preparemos uma nau, a melhor.Para remeiros temos pescadores, e avisemosos companheiros emboscados. Retornem já.”Ainda não tinha falado tudo, quando Anfínomo,voltando-se, avistou o navio no fundo do porto.Manejando os remos, recolhiam as velas. Nãopodendo conter o riso, falou aos companheiros:“Para que recado? Eles já chegaram. O céudeve ter-lhes enviado um aviso. Ou viram delonge Telêmaco passar e não o alcançaram.”Levantaram-se e foram à beira do mar.Os musculosos auxiliares arrastaram o navionegro à terra e baixaram os instrumentos.De lá foram imediatamente à reunião. Erasecreta. Não admitiram a presença de estranho,fosse jovem ou velho. Antínoo tomou a palavra:“Incrível! Os deuses livraram o malandro dodesastre. Nas rochas ventosas, os vigias serevezavam de sol a sol. À noite, ninguém denós dormia em terra. Flutuando, observávamoso movimento dos barcos até ao raiar do dia.Queríamos pegar Telêmaco e acabar com ele.Um gênio o arrancou das nossas mãos. Em debateestá a morte dele aqui e agora. Que não nosescape na próxima vez. Enquanto ele estivervivo, não alcançaremos o que queremos.O cara é inteligente. Encontra saída.Com a simpatia do povo já não podemos contar.Vamos lá, antes que ele convoque os aqueuspara uma assembléia. Sei que não perde tempo.A fúria dele não acaba. Firme, dirá a todosque fracassamos na tentativa de matá-lo.Eles não aplaudirão atos de violência contra ele.Poderão reagir e expulsar-nos de nossa terra.Seremos forçados, então, a procurar outro povo.

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Antecipemo-nos. Se o apanharmos no campoou num caminho deserto, seus recursos serãonossos, os dividiremos criteriosamente entre nós.Daremos a mansão à mãe dele e a quema tiver por mulher. Esta proposta – suponhamos –não vos agrada, deliberais que viva, que seja donodos seus bens; nesse caso, não viveremos mais deseus recursos, nem nos reuniremos mais aqui. Cadaum irá para sua própria casa, fará propostas, trarápresentes. Eleito será o da proposta melhor.”As palavras de Antínoo provocaram silêncio geral.Anfínomo foi o orador seguinte. Este era ilustre,filho de Niso e neto de Areto, homem de mando.Veio de Dulíquio, terra de pastagens e de trigo.Exercia poder sobre os pretendentes. Os conselhose as idéias dele agradavam a Penélope. Cheio deboas intenções, falou a todos: “Amigos, nãoaprovo o plano de matar Telêmaco. Assassinaro descendente de um rei me apavora. Importaconsultar antes a vontade dos deuses. Com aaprovação de Zeus, eu mesmo me disponho aexecutar a sentença e encorajo outros. Mas semautorização divina, cessem os planos.” O aplaudidodiscurso de Anfínomo encerrou a sessão. Findoo debate, rumaram ao palácio de Odisseu e seacomodaram em poltronas cuidadosamente limpas.Penélope, atenta a tudo, tomou a decisão de apareceraos presunçosos e enfrentar sua insolência. Ela sabiado projeto de assassinato. Médon, o mensageiro,transmitiu-lhe o que se passara no conselho.Desceu à sala acompanhada de suas escravas.Quando chegou até os pretendentes congregados,deteve-se no pórtico, construção sólida,escondidas as faces num véu de fina tessitura.A fala de Penélope visou Antínoo diretamente:“Antínoo, insolente, articulador de crimes, mesmoassim corre entre o povo que superas os de tuaidade em conselhos e argumentos. Tu não és nadadisso. Patife! Por que tramas, assassino, a morte

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de Telêmaco? Zeus protege os suplicantes e tu osdesrespeitas? Não vás declarar sagradas tramascriminosas. Esqueceste que teu pai nos procurouodiado, fugitivo? Era abominado por seu própriopovo. Pertencia à quadrilha dos piratas táfios.Assolava os tesprotos, aliados nossos. Seusconterrâneos queriam triturá-lo, arrancar-lheo coração, devorar tudo que tinha. E era muito!Odisseu os deteve. Deixou-os furiosos. É esse ohomem que desonras, devoras-lhe a casa,assedias-lhe a mulher, ameaças-lhe o filho. Tenhonojo de ti. Pára! Manda que os outros parem.”A resposta veio de Eurímaco, filho de Pólibo:“Filha de Icário, falas com sabedoria, cara Penélope.Tranqüiliza-te. Que isso não te inquiete! Nãoexiste, não existirá, nunca existiu homem queporá as mão em Telêmaco, teu filho, enquantoeu viver, enquanto meus olhos contemplarema superfície da terra. Cumpro o que digo. Osangue do assassino pingará da minha lança.Odisseu, o arrasa-cidades, me tomava no colo,eu chupava costeletas da mão dele, ele pingavagotinhas vermelhas de vinho na minha boca.De todos, Telêmaco me é o mais querido. Nãoo assuste a morte, da mão de pretendentes elanão lhe virá. De deuses não posso defendê-lo.”Esse conforto veio de um dos articuladoresDo assassinato. Ela se retirou aos seus aposentos.Chorou por seu querido marido até Atenalhe baixar com doçura as pálpebras sonolentas.

Lá pela tardinha, o porqueiro voltou a Odisseue ao filho. Juntos preparavam a ceia, o sacrifíciode um porco gordo. Atena, aproximado-se dofilho de Laertes, a golpes da varinha,transformou o herói num velho e cobriu-lhe ocorpo com andrajos. Queria evitar que o porqueiro,reconhecendo-o, transmitisse a Penélope a notíciaque não deveria escapar dos esconderijos da mente.

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Telêmaco antecipou-se nas perguntas sobre aviagem: “Já voltaste, Eumeu? O que me contas dacidade? Os pretendentes já voltaram da emboscada,ou ainda montam guarda para impedir meu retorno?”Esta foi tua reposta, porqueiro Eumeu:“Não me preocupei por novidade nenhuma aoatravessar a cidade. Tomei a decisão de transmitiro recado e voltar o mais depressa possível.Encontrei um mensageiro amigo, muito veloz,um arauto. Ele foi o primeiro a informar tuamãe. Posso te dizer o que vi com meus própriosolhos. Eu já me encontrava no alto, na colina deHermes. Vi um barco aproximar-se velozdo nosso porto. Trazia muitos soldados.Brilhavam escudos e duplas pontas de lanças.Deviam ser eles, mas não tenho certeza.”Telêmaco sorriu à informação do porqueiro.O olhar que acertou Odisseu passou de raspãopelo porqueiro. Terminados os preparativos,serviram a ceia. Ninguém se queixou da faltade nada. Comeram e beberam a mais não poder.Pensaram em cama e foram recompensados.

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Canto 17

Quando os róseos dedos da Aurora despontaram,Telêmaco, o querido filho de Odisseu, o divino,calçou suas vistosas sandálias e tomou a lança,necessária à sua defesa. Ajustou-a à mão para irà cidade. Ao partir deixou estas instruções:“Paizinho, vou à cidade. Quero que minhamãe me veja. Eu a conheço. Ela não vai pararde chorar e de se queixar da sorte até me abraçar.Estas são as minhas determinações:leva o estrangeiro, esse infeliz, para a cidade.Lá ele pode mendigar: um naco de pão, um gole.Cada um lhe dê o que puder. Não posso serresponsável pelo sustento de todos. Estou cheiode problemas. Se ele se incomodar comigo porcausa disso, pior para ele. Comigo é na franqueza.”A réplica de Odisseu foi de reserva e sabedoria:“Amigo, não estou pedindo para ficar. Sei quemendigar na cidade é mais fácil do que mendigarno campo. O que me derem, aceito. Já não tenhoidade para viver em chiqueiros, receber ordens,fazer o que manda o patrão. Vai tranqüilo. Estehomem, para me orientar, me vem a propósito. Ésó eu me aquecer neste fogo e o sol ganhar altura.Como estou precariamente vestido, tenho medodo frio, da geada. Consta que a cidade fica longe.”Tendo ouvido, Telêmaco põe-se em marcha.Atravessa o pátio a largas passadas. Estratégiasandam-lhe pela cabeça. Logo que chegou àmansão, encostou a lança numa coluna,transpôs o vestíbulo e entrou. Euricléia foi aprimeira que notou a presença dele. Arrumouos pelegos nas vistosas poltronas. Não conseguiuconter as lágrimas. Cercaram-no muitas criadas

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do denodado Odisseu. Saudaram-no com beijosnas faces e nos ombros. Veio dos seusaposentos Penélope. A sábia rainha lembravaÁrtemis e Afrodite. Banhada em lágrimas,estreitou nos braços o filho de seu coração.Beijou-lhe a testa, beijou-lhe os olhos.Soaram as palavras que lhe voavam da boca:“Voltaste, Telêmaco, doçura dos meus olhos. Eu játinha perdido a esperança de rever-te depois de tuaviagem secreta a Pilos, sem me consultares, embusca de notícias sobre teu pai. Conta-me, querido,o resultado.” A reticente resposta do filho foi esta:“Não mexas com meu coração, mãezinha querida.A ameaça de morte me deixou perturbado. Sobecom tuas criadas aos teus aposentos. Teu corposofrido merece banho e roupa limpa. Prometehecatombes a todos os deuses, caso Zeus permitirque as obras criminosas contra nós sejam punidas.Preciso ir à praça para falar com um estrangeiroque encontrei ao regressar e que me acompanhou.Pedi que meus companheiros o trouxessematé aqui. Solicitei a Pireu recebê-lo em sua casae lhe dar atenções de hospedeiro até minha volta.”Com esta observação, Telêmaco cortou as asas dopedido da mãe. Banhada, ela trocou de roupa,prometeu sacrifícios régios a todos os deuses,um vez punidos os atos ofensivos dos inimigos.Telêmaco, tendo atravessado a sala, empunhoua lança. Acompanharam-no os cães em dançafestiva. A graça divina que o revestia em marcha,por força de Atena, atraía olhares espantados.Cercavam-no em bando pretendentes traiçoeiroscom palavras gentis enquanto reprimiam crimesem abismos interiores. Evitando-os, Telêmacoprocurou lugar junto a Mentor, Antifo e Haliteses,companheiros fiéis desde os tempos de seu pai.Choviam perguntas de todos os lados. Conduzindoo estrangeiro pela cidade, aproximou-se orenomado lanceiro Pireu. Telêmaco movimentou-

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se para encontrá-los logo que os soube presentes.Pireu foi o primeiro a falar: “Convém, Telêmaco,que envies mulheres à minha casa para trazeremos presentes que recebeste de Menelau.”Previdente, respondeu-lhe Telêmaco: “Comoisso vai acabar, Pireu, sinceramente não sei.Esses sem-vergonha podem me matar aqui mesmo,traiçoeiramente, para dividir entre si o que tenho.Prefiro que o beneficiado sejas tu, e não essescarniceiros. Quero que se arrebentem, que morram.Ver a caveira deles será festa para mim.” Comessa expressão de ódio, introduziu o estrangeirona mansão. No rico palácio, as criadasrevestiram com diligência cadeiras e poltronas.Bacias estavam preparadas para o banho dosrapazes. Criadas os banharam e os ungiram.Aguardava-os roupa nova: túnicas e capas.Refrescados, ocuparam os assentos. Veio umadoméstica com uma salva para purificar asmãos. A água que escorreu de um jarro deouro foi recebida por uma vasilha de prata.Mesas limpinhas. Uma serviçal respeitáveltrouxe pão e iguarias para a alegria dosconvivas. Penélope, apoiada numa coluna, tomao lugar fronteiro aos dois, pronta para refinadafiação. Os dedos cresciam rumo aos manjares.Na abundância de pratos e de copos transcorreua ceia. Soou a palavra indagativa da rainha:“Telêmaco, chorosa volto aos meus aposentose ao meu leito, testemunha de dores e pranto desdea partida de Odisseu com o Átrida para a guerra,e não te decides a me contar o que ouviste sobreo retorno do teu pai antes de sermos perturbadospelo tumultuoso bando dos insolentes.” Atento àsqueixas da rainha, falou Telêmaco: “Não pretendoocultar-te nada, mãezinha. Nosso navio tomou adireção de Pilos e Nestor. O general nos recebeuem sua imensa mansão. Ele me tratou comose fosse um filho que tivesse retornado ao fim de

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longa ausência. Senti o calor do afeto. Vi-me emcondições iguais aos por ele gerados, gentefamosa. Mas quanto a Odisseu, de mortais o generalnão ouviu nada. Não soube me dizer se o heróiestava vivo ou morto. Por ordem dele fui pararna casa de Menelau. Tive o privilégio de vera argiva Helena, causa de muitos males paraaqueus e troianos por determinação celeste.Menelau, com voz de comando, quis saber dosmotivos que me levaram à florescente Lacedemônia.Razões eu não tinha para ocultar-lhe o que querque fosse. Bélica soou a indignação do monarca:‘Santos Céus! Fracotes querem aninhar-se nacama de um homem que freme forte? Pulhas!É o que faz a corça no fundo da selva. A loucadeixa os filhotes no leito do musculoso leãoenquanto pasta por horas no relvado dos vales.A fera, ao retornar da montanha, lambe os lábios,deliciada com a tenra carne dos lactantes. O ódioleonino de Odisseu destruirá os incautos. Zeus,Atena e Apolo testemunharam outrora a luta deOdisseu com o filho de Filomela em Lesbos. Aterra tremeu ao impacto do desafiante, arremessadopelos braços de Odisseu. Aplauso geral. Que ospretendentes caiam nas garras desse valente!Amargo lhes será o matrimônio como amarga é amorte. Ao que insistentemente suplicas não terásresposta retorcida, evasiva. Transmito-te as palavrasinfalíveis do Velho do Mar.’ Do que Menelau medisse não escondo, não calo nada. Contou-me tê-lovisto castigado por severos sofrimentos nacaverna da ninfa Calipso que o retém à força. Elanão o deixa voltar à terra natal. Já não conta comnavios, remeiros, amigos que pudessem conduzi-lo pelas vastas ondas do mar. Essas foram aspalavras de Menelau, bom de lança. Com essainformação, embarquei. Com ventos propíciospude retornar à minha terra.” As palavras do filhotocaram o coração da mãe. A isso acrescentou

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Teoclímeno, dotado de lampejos divinos: “Aocerto não sei nada, mas tiro minhas conclusões.Do que sei, terás informação completa. Juro porZeus, o primeiro dos deuses, juro pela mesahospitaleira, juro pela lareira de Odisseu, heróiirrepreensível, refúgio meu, que o filho de Laertesjá se encontra em sua terra. Acoitado ou serpeante,ele acompanha os males que se passam, maquinao mal contra todos os malfeitores. Li o que digono vôo das aves, quando na nau de sólidasbordagens o interpretei para Telêmaco.” Penélopereagiu sensatamente ao que lhe foi dito:“Cumprindo-se, estrangeiro, o que acabas dedeclarar, conhecerás minha generosidade, expressaem dádivas, serás declarado venturoso por quemte ver.” A conversa dos três se desenvolvia nessestermos. Entremenes, os pretendentes reunidos emfrente da mansão praticavam arrogantes o arremessode discos e exercícios de caça em terreno apropriado.À hora da ceia, chegavam ovelhas de muitoscampos, conduzidas por guias já experimentados.Falou-lhes Médon. Ele tinha a confiança dospretendentes e participava dos banquetes: “Rapazes,acabem com isso. Deixem os jogos para outra hora.Para dentro! É hora de comer. Ser chamado aobanquete não é o pior que pode acontecer.”Levantaram-se. O convite para comer lhes erauma ordem. A sala espaçosa os acolheu. Mantascobriram cadeiras e poltronas. Passou-se ao sacrifíciode nutridas ovelhas e cabras de trato. O ritualcompreendia porcos gordos e vitela de estábulo.Enquanto organizavam o festim, prepararam-separa a jornada Odisseu e o distinto porqueiro.Preveniu o capataz, competente executor deordens: “Amigo, vejo que desejas ir à cidadehoje, obediente ao que determinou o patrão.De minha vontade permanecerias aqui comoguarda de estábulo. Cumpro ordens. Ele poderiaenfurecer-se comigo. Xingação de patrão me dói.

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Vamos duma vez. O sol já vai alto. Com o escurovem o frio, o que para tua saúde não é bom.”Odisseu respondeu-lhe com astúcia: “Entendo.O que me dizes está correto. Penso como tu.Vamos! O comando é teu, estou às tuas ordens.Tens um pau cortado? Vou precisar dele. Sembengala vai ser difícil. O caminho é escorregadio?”O alforje lançado sobre os ombros marcou o fimda fala. Era imundo, esfarrapado, suspenso numatira. Eumeu deu-lhe a bengala que tinha pedido.Partiram. Pastores e cachorros ficaram encarregadosda guarda do estábulo. O porqueiro levava para acidade o Senhor – pelo aspecto, um mendigo, umvelho apoiado num pau. Sobre a pele, farrapos.A viagem se arrastava por caminhos pedregosos.Já perto da cidade detiveram-se numa fonte.Cristalino flui o filete que abastece sedentos.Construtores: Ítaco, Nérito e Políctor. Notáveis!A fonte nutre as raízes de álamos e álamos. Naclareira do bosque cicia a corrente que resvalana rocha. O altar das ninfas brilha no topo.Passantes prestam-lhes culto. Foi lá queencontraram Melântio, filho de Dólio. Conduziacabras, as mais nutridas de todos os rebanhos, parao consumo dos pretendentes. Acompanhavam-nodois pastores. O cabreiro olhou torto. Foi grosseiro.Disse nomes. O coração de Odisseu corcoveou.“Vejam só! Um moleirão guiando outro moleirão.Cada qual com seu igual. É a vontade de Zeus. Paraonde, porqueiro fedorento, levas essa porcaria, essemendigo nojento? É para lamber panelas? Para baterem portas? De tanto se esfregar em ombreiras, vaiesfolar as costas. Procura migalhas, não espadas,nem bacias. Preciso dele pra limpador de estrebaria,pra catador de pasto. Me passa ele pra cá. Ordenhadorme faz falta. Leite de cabra engrossa o traseiro. Masse não aprendeu nada de bom, vai querer matar-seno trabalho? Prefere arrastar-se pelas ruas, ajuntarrestos de comida pra meter nesse bucho sem fundo.

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Muito cuidado! Pode acontecer o pior. Se lhe dá naveneta de chegar perto da mansão de Odisseu, Zeus nosacuda! Banquetas estouram-lhe os miolos. Quebram-lhe as costelas. Com pretendentes não se brinca.”Falou, passou por Odisseu e lhe meteu o pé nabunda. Odisseu não se mexeu. Agüentou firme.Não sabia se ia deixar por isso mesmo ou se deviadar-lhe uma paulada na cuia, de espichar as canelas.Levantá-lo com as mãos para quebrar-lhe a cuca nochão? Suportou calado. Conteve a raiva. Mas oporqueiro, de mãos erguidas, disse-lhe na cara:“Ninfas da fonte, filhas de Zeus, recordais ossacrifícios? Coxas gordas de cabras e de ovelhas,colunas de fumo. Fogos ardiam em vossa santahomenagem. Assim vos cultuava Odisseu. Quevenha agora o rei! Que os céus o tragam! Acabecom a empáfia dessa peste, feche a boca desseputo. Anda por aí e entrega os bichos a inúteis.”“Ora essa, o que disse essa cadela, essa porcaesfarrapada? Sabe o que vou fazer com você? Voute levar para longe. Vou te vender a piratas. O queé que ganho? Pelo menos, alguns míseros trocados.Telêmaco? Que o raio de Apolo o parta aindahoje. Que os pretendentes o peguem e o estrangulem.Odisseu não tem volta. Acabemos com a raça.” Faloue se foi. Odisseu e o porqueiro caminhavam devagar.O cabreiro alcançou bem antes o palácio senhorial.Chegou, entrou e sentou-se, muito sim senhor, entreos pretendentes, na frente de Eurímaco. Os dois seamavam. Serviram-lhe carne em quantias generosas.Uma respeitável serviçal ofereceu-lhe pão para matara fome. Aproximou-se da mansão Odisseu com odivino porqueiro de guia. Pararam. Sons nascidos doventre da lira os envolviam. Era Fêmio, o famosocantor. Odisseu botou a mão no braço do porqueiroe falou: “Imagino que essa seja a mansão de Odisseu.Ela é única. Por mais que olhe, não vejo nada igual.Uma ala emenda na outra. Repare o pátio. E oque dizer dessa muralha, dessas torres? Estes

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portões são obra de artista. Arrombá-las? Impossível.O banquete lá dentro deve ser para muitos.Sentiste o cheiro? E o som desta lira! A uniãode música e festa é obra de deuses.” Nãoestranhaste, meu caro porqueiro, tamanho espanto:“Não te falei? De burro você não tem nada. Vamospensar juntos. O que é que vamos fazer agora?Primeiro entras tu. O que me dizes? Te insinuasentre os pretendentes como quem não quer nada.Eu fico. Ou teu plano é outro? Eu entro primeiro,tu me esperas. Só não quero que fiques parado. Sealguém te vê, vem pauleira. Te falei! Abre o olho!”Odisseu respondeu como um que já sofreu muito:“Está bem. Entendo. Não falas a alguém que nãosabe das coisas. Podes entrar, eu espero aqui mesmo.De pancadaria e bofetada, ninguém me contanovidade. O que podia acontecer no mar ou naguerra já me aconteceu. Venha o que vier. Tema barriga. As exigências dela são valentes. Conheçogente que amaldiçoa a barriga. Dizem que o malda humanidade é a barriga. Por causa da barriga,navios bem equipados singram os mares e desgraçampovos.” A conversa entre os dois corria nesses termos.Estava ali um cachorro. Deitado, levantou a cabeça,as orelhas e só – Argos, cria de Odisseu, antes depaciente partir a combates em Tróia. Sem valia parao dono, guerreiro ausente, servia a moços na caçaa cabras montesas, a cervos, a lebres. Com o amo porlonge, o cão gania no desprezo, vivia na porcaria,abandonado num montão de estrume de mulas ede bois, recolhido do lado de fora dos portões,adubo destinado à fertilização dos vastos camposde Odisseu. Lixo era o leito de Argos, pasto decarrapatos. O cachorro, percebendo a presença deOdisseu, abanou o rabo e derrubou as orelhas, asduas. Era o que podia fazer. Para chegar perto dodo dono, cadê força? Aquela miséria custou umalágrima a Odisseu. Chorou escondido de Eumeu.Perguntou: “Aquele cachorro ali no esterco é de

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boa raça, disso tenho certeza. Como era de patas?A velocidade correspondia à beleza? Ou era umcachorro de luxo, desses que certos patrõescriam pra bonito, pra desfilar em banquetes?”Comovida foi a resposta do porqueiro Eumeu:“Este cachorro pertencia ao homem que morreunão sei onde. Se ele ainda fosse no porte e nadestreza o que foi quando Odisseu partiu paraa guerra, te surpreenderiam rapidez e força.Bicho algum, no fundo da floresta, lhe escapavada sanha. Para farejar presa não conheço cãoigual. Ali está ele, atirado na bosta. O dono delefoi para o brejo longe de casa. Quem das mulherescuida do bicho? Se o dono não anda de olho nacriadagem, ninguém trabalha. No dia em que umcai na escravidão, por vontade de Zeus, metadeda vontade de trabalhar vai para o beleléu.” Comessa explicação, Eumeu entrou no palácio. Foidireto à sala em que estavam os pretendentes.Argos recebeu o que lhe cabia, o pretume da morte.Ao menos reviu Odisseu, depois de vinte anos.

Viram o porqueiro entrar no palácio, Telêmacofoi o primeiro. Com um sinal de cabeça o filho deOdisseu o chamou para perto de si. O olhar de Eumeugirou investigativo pela sala e caiu sobre o assentoreservado ao trinchador. Quem oferecia as porçõesdestinadas a cada um era ele. Eumeu aproximou acadeira e sentou-se em frente do filho de Odisseu.O arauto serviu-lhe pão de um cesto e carne.Entrou na sala Odisseu, pouco depois; veio comseus disfarces: miséria de pedinte, corpo de velho,bengala. Farrapos imundos cobriam-lhe a pele.Sentou-se na soleira, do lado de dentro da porta,encostado na ombreira de cipreste, uma obra dearte, produzida a prumo e com mão de mestre.Telêmaco botou a mão no cesto, fulgurante de tãobelo, arrancou um naco de pão, juntou carne comcom todos os dedos e determinou ao porqueiro:

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“Isto é para o estrangeiro. Diga-lhe que abordetodos os pretendentes, por sua própria conta erisco. Vergonha em quem padece é desgraça.”O porqueiro cumpriu a ordem recebida. Chegouperto do pedinte e largou estas palavras aladas:“Estrangeiro, isto aqui é presente de Telêmaco.Ele te manda mendigar. Aborda este povo todo.Dizem que miserável que não mendiga se dá mal.”A sábia resposta de Odisseu foi de agradecimento:“Zeus Lá de Cima abençoa Telêmaco entre oshomens. O que ele te pede, dá – eu te suplico.”Odisseu pegou o presente com as duas mãos. Asiguarias foram parar a seus pés, sobre a mochila suja.O aedo cantava, e Odisseu não parava de comer.Acabou a fome, e acabou a música do divino cantor.A reunião festiva virou algazarra. Quem apareceu?Atena. Veio, de mansinho, para perto do filho deLaertes, instigante. Fosse mendigar pão de cevada.Saberia assim quem era cordato e quem era perverso.Ela não estava interessada em salvar ninguém dopior. A mendicância começou pela direita. Nãoescapou ninguém. Estendia a mão com habilidadede profissional. Eles lhe davam de pena. Estranho!A respeito dele não sabiam nada. Nem quem, nemdonde. A única informação veio do cabreiro Melântio:“Atenção, pretendentes desta famigerada rainha.Tenho informações. Este não me é desconhecido. Foio porqueiro que o trouxe para cá. Acreditem.Donde vem, de quem garganteia ser filho, ignoro.”Antínoo reagiu insultando o porqueiro: “Te conheço,porqueiro. O que te deu na telha para trazer estecara pra cá? Não bastam os vagabundos que játemos? Praga de esmoleiros, catadores de lixo!Te queixas dos aqui reunidos, dizes que devoramos bens do teu rei, e nos trazes essa porcaria?”Respondeste seguro de ti, Eumeu, porqueiro:“Tuas palavras não correspondem à nobreza do teusangue. Ninguém traz qualquer um para dentro decasa. Hospedeiros selecionam quem vem de fora.

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Convidam pessoas que exerçam atividades úteis àcomunidade: videntes, médicos, arquitetos, cantores...Gente assim é acolhida em toda a vasta terra. Compobres é diferente. Ninguém quer pulga pra se coçar.Mas pior do que tu não existe. Implicas com toda acriadagem de Odisseu. O mais visado de todos soueu. Pouco me importa. Devo minha vida à rainha ea Telêmaco. Se há alguém parecido com deus, é ele.”Interveio Telêmaco, entendido em conflitos:“Basta! Não agraves a situação com essa discurseiratoda. Antínoo é vezeiro em ofender. As palavrasagressivas dele tiram os outros dos eixos.” Isso disseTelêmaco a Eumeu a Antínoo ele falou severo:“Antínoo, te comportas como um pai quando mandascorrer com o estrangeiro. Queres que o insulte, queo ponha no olho da rua. Zeus me livre! Nunca fareiisso. Dá-lhe esmola. Não me oponho; aliás, ordenoque o faças. Não tenhas medo de minha mãe, nemdos meus criados, servidores da casa de Odisseu.Nunca te passou pela cabeça oferecer o que querque seja, preferes devorar o que é dos outros a dar.”Antínoo respondeu-lhe exaltado: “Percebeste quefalas de cima para baixo? Isso é insuportável. Setodos lhe dessem o que esse canalha recebeu de mimlevaria desta casa o suficiente para forrar a tripa porpor três meses. Por favor, longe daqui!” Passou amão numa banqueta que usava para descansar ospezinhos. Com o que os outros lhe deram, Odisseuencheu a bruaca de pão e de carne e foi andando aoseu lugar no chão para as delícias da barriga graças àliberalidade dos convivas. Mas parou e provocou:“Quero mais, meu amigo Antínoo. Não me pareceso menos nobre. Pelo contrário, tens jeito de rei.Tua cota é bem maior que a dos outros. Dá: prometoproclamar tua generosidade nesta terra sem limites.Já fui rico, sabias? Eu morava numa casa queprovocava inveja a gente de posses. Muito vagabundorecebeu esmola de mim. Eu não perguntava quemera. Pediu, levava. Escravos? Eu tinha às pencas, além

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de outras coisinhas. Eu vivia bem, e os outros meconsideravam feliz. Mas Zeus entornou o caldo. Quefazer? Me envolvi com piratas, peste dos mares, melevaram ao Egito, viagem longa, para me arruinar.Ancoramos. Minhas naus bojudas flutuavam no rio.Meu pessoal recebeu ordens de ficar ali. Cuidassembem das bojudas! Vigias subiram às torres cominstruções de não tirarem o olho da linha do horizonte.A desgraça foi a ambição. Eram completamentedoidos. Sabes o que fizeram? Começaram a devastarpropriedades, campos lindos. Violentaram mulheres,raptaram crianças, degolaram homens. A notíciachegou à cidade. Um grito armou a resistência. Demadrugada estavam lá. A infantaria e a cavalariatomou posição na planície. O bronze brilhou. Zeusdardejou raios. Minha gente se deu mal. Covardes!Debandaram. Não ofereceram resistência. Muitosdos meus sangraram ao fio da espada, os outrosforam escravizados, condenados a trabalho forçado.Dmeor, filho de Iaso, um potentado que por acasoandava por lá, me levou a Chipre. Venho de lá.Como vês, sofri muito.” Antínoo já não falava,berrava: “Quem foi o maligno que mandou estapraga? Sai de perto de mim. Emporcalhou nossafesta. Já! Fica ali. No meio. Tu com teus Egitose Chipres! Vais aprender o que é sofrer. Bosta!Porcaria! Sujo! Mendigo! Rondando as mesas,enches o saco de todos. Dão para se verem livresde ti. Dão porque não é deles. Ninguém tem penade ti. Te atiram nacos porque têm à vontade.”Odisseu, dominando a situação, se retirou dizendo:“Santos deuses! Não vejo correspondência entre tuacara e teu coração. Ao teu patrão, tu não dariasnem um grão de sal, se saísse do teu bolso. Estásrodeado de comida (de outro!) e não me dás nada.”Antínoo sentiu o golpe. O coração dele preteou.Olhou torto. Insultos zuniram como dardos:“Acabou. Não há mais lugar para gentilezas.Já que não queres sair por bem, sairás por mal.”

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Botou a mão na banqueta e a sapecou no ombro,quase na altura do pescoço. Odisseu, firme comorocha! Nem um fio de cabelo o golpe não moveu.Quieto, Odisseu baixou a cabeça. Fervia de raiva.Foi para o lugar dele. Sentou no chão. Baixou asacola. Encarou os pretendentes e falou:“Ouçam, pretendentes à mão da nobre rainha,preciso despejar o que me pesa no coração.Não é dor nem é luto o que guardo aqui dentro.Antínoo não atingiu um homem que luta por aquiloque lhe pertence: bois, porcos, cabras, ovelhas.Não, Antínoo golpeou um homem de barriga vazia,um miserável. A fome é a desgraça da humanidade.Acontece que os deuses protegem os pobres.Antínoo, teu destino é a morte antes de casares.”Antínoo, filho de Eupites, respondeu-lhe, severo:“Fica quieto aí no teu cantinho, camarada, ou,procura outros ares se não queres que os maismoços te arrastem de pés e mãos pela sala e tequebrem os ossos.” Mesmo os mais exaltadossentiram que Antínoo se excedera. Ouviu-se umaque outra voz de supermacho: “Antínoo, isso nãose faz. Agrediste um miserável. E se é um deus?Estás ralado! Celestes andam por aí com aparênciade gente. Observam quem é soberbo e quem anda nalinha.” Antínoo não deu bola. Palavrório! O filho deOdisseu ficou abalado. O coração lhe doía. Mas nãodeixou transparecer nada. As pálpebras de Telêmaconão choraram lágrima sentida. No solo não pingounenhuma. Comeu o desaforo em silêncio. A hora virá.O golpe desferido por Antínoo ecoou nos aposentosde Penélope. Manifestou seu desejo às criadas:“Que o certeiro Apolo faça dele alvo de suas flechas!”Eurínome, venerada, falou solene: “Que se cumprao que agora em prece fervente eu peço. Que nenhumdeles veja a Aurora entronada nas luzes da madrugadapróxima.” Penélope confirmou as palavras da escrava:“Mãezinha, considero inimigo quem maquina maldade,Antínoo mais que todos, vejo seu rosto velado pelo

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véu da morte. Aparece um estrangeiro na maiorpenúria, por migalhas arrasta-se pela sala de mãoestendida, macerado pela miséria. Todos lhe dão, menoseste. Golpeia-o no ombro direito. E de banqueta!”A rainha estava em seus aposentos. Escravas faziam-lhe companhia. O rei ainda não terminara de jantar.Ela mandou vir o porqueiro com este propósito:“Vai, Eumeu, quero ver o estrangeiro, quero falarcom ele. Vou enchê-lo de perguntas. Quero saber setem notícias de Odisseu, se o viu pessoalmente.O estrangeiro me parece homem viajado.” Tuaresposta, Eumeu, tocou Penélope: “Aquela gente,Senhora, não sabe calar a boca. É impressionanteo que ele tem a dizer. Não há coração que resista.Esteve comigo por três noites; três dias eu o retivena cabana. Fugiu do navio e me procurou. Fui oprimeiro. Suas aventuras não têm fim. Não mecontou tudo. Imagina alguém fascinado com asnarrativas de um aedo, dotado de um saber divino,cujas palavras voam pelo ar, e a gente não se cansade prestar a atenção ao que diz. Isso aconteceu comigolá na cabana. Disse-me que existe entre ele eOdisseu uma aliança de família pelo lado paterno.Mora em Creta, governada pela dinastia de Minos.Vem de lá. Andou ao léu. Sofreu muito. Afirmaque Odisseu está próximo, que tesprotos o acolheram,que está vivo. Disse mais: que traz um imensotesouro.” Panélope ficou inquieta: “Vai duma vez, jáque está aqui, quero ouvir essa história da boca dele.Eles que se divirtam. Lá no pátio ou aqui dentroa alegria deles é sempre a mesma. Nada os perturba.O que é deles (trigo, vinho, mel) está seguro na casadeles. Os escravos estão muito bem alimentados.Para seu próprio prazer esbanjam o que é nosso, todosanto dia. Bois, ovelhas, cabras, sacrificam tudo.Comilança sem fim. Bebem vinho como se fosseágua. A maior parte da nossa fortuna já se foi. Faltahomem. Alguém como Odisseu. A praga teria sidovarrida. Que venha! Que volte para sua terra! Una a

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força dele à força do filho, e o serviço estará feito.”Mal terminou de falar, Telêmaco espirrou. O estrondosacudiu o palácio. Penélope deu gargalhadas.A alegria da rainha surpreendeu o porqueiro:“Tu, ainda por aqui? Traze-me o estrangeiro e já!Não vês que o espirro do meu filho confirma minhaspalavras? Que a morte bote a mão em toda essacorja de pretendentes! Que a matança não poupe umúnico. Tem mais. Guarda bem o que te digo. Se euperceber que este estrangeiro não veio aqui para meembrulhar, forneço tudo: túnica, capa, roupa lavada.”Ao saber da vontade de Penélope, moveu-se Eumeu.Perto de Odisseu, segredou-lhe ao ouvido:“Pai que vens de longe, a rainha, movida por curiosidade, techama. A mãe de Telêmaco, obediente ao coração,quer informações sobre o marido. Ela sofre muito.Se perceber que tuas histórias não são invencionices,terás túnica, capa e o que mais necessitas. Teráspão e permissão de mendigar pelas ruas. Poderásforrar a tripa. O que pedires, ela te dará.” Solícitafoi a resposta do paciente Odisseu: “Eumeu, nãotenho a intenção de enganar Penélope. Sei que afilha de Icário não se deixa iludir. Eu o conheçobem. O que aquele sofreu, eu sofri. Assusta-me estaconfusa reunião de pretendentes. O descaramentoe a brutalidade deles batem no céu de bronze. Vistecomo este sujeito agora mesmo me agrediu. Andeipela sala. Não fiz mal a ninguém. Não mereço castigo.Ninguém fez nada por mim. Nem Telêmaco. QuePenélope me aguarde na sala. Pede-lhe isso. Ainda queansiosa, espere até o sol desaparecer perto da lareira.Ela poderá interrogar-me sobre o regresso do esposo.Conheces bem os farrapos que me cobrem.Melhor que ninguém. Foste o primeiro a me dar abrigo.”Com esta manifestação, Eumeu voltou a Penélope.Mal botou pé na soleira, perguntou surpresa a rainha:“Tu sozinho? E ele? O que pensa esse mendigo?Tem medo de alguém? É acanhado? Esta mansão ointimida? Mendigo tímido se dá mal.” Deste-lhe a

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resposta adequada, Eumeu, meu amado porqueiro:“Não, ele está certo. Outro, na situação dele, fariao mesmo. Quer evitar o atrevimento dessessupermachos. Aconselha-te a aguardar o pôr dosol. Será melhor para ti, minha rainha. Poderásconversar com o forasteiro sem a interferência deestranhos.”A sábia Penélope reagiu animada:“Estou convencida. De ignorante o estrangeiro nãotem nada. A sem-vergonhice destes canalhas superao que se poderia imaginar. São capazes de tudo.”Entenderam-se. Arranjado o encontro, o porqueirovoltou a misturar-se com os pretendentes.

Procurou Telêmaco. Precisava falar com ele. Chegoubem perto, protegido de bisbilhoteiros:“Amigo, volto a meus porcos, ganha-pão teu e meu.Precisam de mim. O que se passa aqui é assunto teu.Em primeiro lugar, cuida de ti. Bota isto na cabeça:nada te aconteça! Estás cercado de assassinos.Que Zeus acabe com eles antes de nos atacarem!”Na resposta Telêmaco revelou-se bem informado:“Assim será, paizinho. Come antes de partir.Volta amanhã com belos animais para o sacrifíco.Cuidarei de tudo. Que os deuses me ajudem!” Eumeuobedeceu. Sentou-se confortavelmente numa cadeira.Satisfeito o prazer de comer e de beber, foi-se a seusporcos. Quando deixou a mansão atrás de si, a salaestava cheia de gente faminta. Dançavam e cantavam.A tarde morria. Eram os últimos instantes de luz solar.

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Canto 18

Apareceu um mendigo que todo mundo conhecia.Seu território era a cidade inteira. A fama lhe vinhada pança. Noite e dia, era só comilança. Sem forçae sem muque, tinha jeito de gigante só na aparência.Chamava-se Arneu. Esse foi o nome que a senhorasua mãe lhe deu. Mensageiro, Íris dos pretendentes,Iros ele era para os moços, portador de recados. O vilãoquis expulsar Odisseu de sua própria mansão. De brigaforam as palavras que dardejou contra o estranho:“Fora, velho, se não queres que te arraste pelo pé.Eles te odeiam. Não percebes? Reparaste as piscadelas?Queres que recorra à força? Tenho vergonha, sabias?Some! Não me obrigues a fazer o que não quero.”Odisseu não perdeu a calma. Olhou para o chão:“Você perdeu o juízo. Que mal eu fiz? Te ofendi?Todo mundo te dá coisas, e eu não te invejo. Aqui nosolar cabem perfeitamente dois. Motivo para competirnão existe. Pelo que vejo, és mendigo como eu.Ambos dependemos da misericórdia divina. Não memostres os punhos, não me provoques, não me irrites.Não te fica bem apanhar de um velho. Poderias sairde boca sangrando. Pra mim seria melhor. Amanhãseria um dia tranqüilo. Não imagino que desejariasvoltar ao palácio de Odisseu, filho de Laertes.”Irado, vociferou contra ele Iros, o mendigo:“Vejam só o palavrório desse comilão! Garrafãosem fundo! Velha linguaruda! Panela rachada! Tenhovontade de torcer-te o pescoço. Quebro os dentesdessa tua boca imunda. Porca nojenta! Ladrão degalinha! Venham, rapazes! Querem ver briga?Aperta o cinto! Te quebro a cara, velho decrépido!”Xinga daqui, xinga dali, foi um Zeus nos acuda.O arranca-rabo estava armado às portas do palácio.

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Apareceu Antínoo para botar lenha na fogueira.Morrendo de rir, berrou ao exército dos pretendentes:“Amigos, nunca se viu nada igual em relatos antigos.Que delícia nos proporcionaram os deuses! Nossohóspede e Iros se desentenderam e resolveram decidir adesinteligência no braço. Que se agarrem duma vez!”A risada se alastrou. Saltaram. Cadeiras vazias!Os folgazões cercaram os pugilistas esfarrapados.A discurseira de Antínoo, filho de Eupites, ainda nãoterminara: “Nobres pretendentes, ouvi o que tenhoa vos dizer. Dois buchos de cabra chiamno brazeiro, recheados de gordura e desangue para a ceia. Quem, vencer, o mais valente ,terá o direito de escolher um deles como prêmio.Quem ganhar será dono do ponto. Com direito aexclusividade, ficará proibida a entrada a outromiserento que queira mendigar aqui. A propostade Antínoo foi calorosamente acolhida. Dolosa foia resposta de Odisseu: “Amigos, não épossível. Estou velho. Não posso brigar com umadversário mais moço. É minha barriga. Ela meleva a cometer besteiras. Sou massacrado por isso?É justo? Vá lá. Mas quero juramento. Dos fortes.Ninguém irá Iros favorecer. Ninguém me aplicarápunhada.” A condição foi aceita. Por todos!Feito o juramento, solenemente ratificado, foi avez de se manifestar a força de Telêmaco:“Estrangeiro, se teu coração e tua vontadedecidem aceitar o desafio, não temas traição denenhum dos presentes. Isso envolveria mais gente.És meu hóspede. Dois reis, Eurímaco e Antínoogarantem luta limpa. Tenho a palavra de ambos.”Falou e todos disseram que sim, que seria assim.Os andrajos descem do corpo de Odisseu paraesconder o caralho. Brilharam coxas, torneadase fortes, brilharam os ombros, os braços, o peito.Atena, próxima, revigorou os membros docomandante de tropas. Os pretendentes, pasmos.O espanto corria de um espectador a outro: “Já,

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já, teremos um Iros desairado. Não quis desaire? Ostrapos não tapam o traseiro do velho. Que bunda!”O coração corcoveava no peito de Iros. Irrompemescravos. Carregam-no à força, cingido. Ele treme.As carnes pendem-lhe molambentas nos ossos.Antínoo perdeu a compostura. Destratou o cagão:“Por que tua mãe te botou no mundo, boca grande?Tremes que nem vara verde, bunda-mole. Tensmedo de quem? Dum velho? Dum desgraçado?Levanta as orelhas. O que falo, cumpro.Se esse velho ganhar de ti, se te der uma surra,te atiro num porão de navio e te mando para ocontinente, para o rei Equetão, o bicho-papão. Vaite cortar o nariz, vai passar a faca nas tuas orelhas,vai te capar. Cachorros vão comer tuas batatas.”Com essas ameaças, Iros tremia de cu na mão.Empurraram-no para o centro do ringue. Amboslevantaram os braços. A cabeça de Odisseu sebotou a trabalhar: apagava o sujeito no soco ou oderrubava no chão com estrago leve? Queimandoas pestanas, pareceu-lhe melhor ir devagar. Semostrasse tudo, podiam ficar com a pulga atrás da orelha.Baixando o braço, Iros acertou-lhe o ombro direito.O rei respondeu com um golpe no pescoço, embaixoda orelha, enterrou-lhe os ossos. Iros botou sanguepela boca, deu de cara no pó. Berrava. Os dentesrangiam, os calcanhares martelavam o solo. Batiampalmas os pretendentes, morriam de rir. Odisseu oagarrou por uma perna, passou com ele no vestíbulo,arrastou pelo pátio, sentou-o encostado no muro,botou-lhe um bastão nas mãos e dardejou palavras:“Este é agora teu lugar. Teu serviço é espantar porcose cachorros. O brinquedo acabou. Tira da cabeça essafantasia de reinar sobre estrangeiros e mendigos. Estásum lixo. Cuidado! Pode te acontecer coisa pior.”Falou e a bruaca imunda voltou para o seu lugar.Farrapos e mais farrapos, pendurados numa tira.Retomou seu lugar na soleira. Risos movem o grupo,cumprimentos chovem sobre o rei-mendigo:

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“A bênção, meu velho, a bênção de todos os deuses!Que recebas tudo o que pede o teu coração! Dessapanturra mendicante estamos livres. Prepara-se Irospara a sentença, Equetão no continente. O flagelo detoda gente o deixará sem nariz, sem canário e semdente.” Odisseu exultou. Podia haver presságio melhor?Veio Antínoo com o bucho fornido. Colocou-o alidiante dele, recheado de sangue, de gordura. Os pãesvieram num cesto. Anfínomo lhe ofereceu logo dois.Saudou-o com a taça de ouro erguida:“Salve, pai lá de longe. Que o porvir te proporcionemuita alegria já que o presente não te é generoso.”A resposta de Odisseu veio carregada de reflexões:“Anfínomo, me pareces um homem inteligente. Não tedistanciaste do teu pai, a respeito de quem ouvi coisaboa, Niso de Dulíquio, homem nobre e rico. Dele,dizem, és filho e ajuizado como ele. Tu és capazde entender o que tenho a te dizer. De tudo o que aterra produz, o homem é o mais frágil, mais frágilde todos os que respiram, mais frágil que répteis.Se os deuses lhe dão força, e se agüenta nas pernas,jamais lhe passa pela cabeça que um dia poderá sedar mal. Mas os bem-aventurados também mandamcoisa ruim. Fazer o quê? Agüentar! Por bem ou por mal.O espírito dos terrenos é instável como instáveissão os dias que o pai dos homens e dos deuses manda.Que um dia eu teria fortuna, disso eu estava certo, masa violência e o vigor me levaram a loucuras. Euconfiava no meu pai, nos meus irmãos. Convém que ohomem decididamente evite irregularidades. Usufruasem estardalhaço o que os deuses concedem. O queobservo? A vida desregrada destes pretendentes.Consomem os bens, desrespeitam a esposa do homemque, ao que penso, deverá regressar em breve. Suponhoque não esteja longe daqui. Uma divindade favorável oreconduzirá em breve a seu lar. Convém que não estejasno caminho quando ele pisar o solo dele. O confrontocom os pretendentes não poderá acontecer sem sangue.O que será desta sala no dia em que ele aparecer?”

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Odisseu falou, libou, provou. A delícia do vinho voltouno cálice às mãos do dignatário experiente no mando.Este, como de hábito, moveu-se pela sala, com dúvidas.Inclinou a cabeça. Imagens sombrias inquietavam-lhe amente. Não fugiu do dia fatal. Atena o deteve. Nãoresistiu ao violento golpe do dardo que veio da mão deTelêmaco. Caiu sentado na poltrona que vazia o aguardava.

Palas Atena infundiu no coração de Penélope o desejode mostrar-se aos pretendentes. A filha de Icáriodeveria provocar impressão profunda. O plano, gestadono brilho dos olhos de Atena, repercutiria em Odisseue no filho. Eles lhe dariam o devido valor. Rindo, sempropósito claro, Penélope se pôs a tecer considerações:“Eurínome, contra meus hábitos, meu coração determinaque eu apareça aos pretendentes, embora os deteste.Aproveitarei o momento para dar conselhos a meu filho.Não convém que ele seja assíduo nas irreverentes reuniõesdessa corja. Com discursos lisonjeiros tramam crimes.”Eurínome, experiente, reagiu com esta observação:“Sim, filha. O que dizes não está fora de propósito. Vai,procura teu filho, declara-lhe o que sentes. Mas, antesdisso, demos um jeito nesta pele. Ela pede limpeza,ungüento. Não podes ir com essa cara de choro. Convémque saias. Esta reclusão, em lágrimas, te deixa feia.Teu filho já está crescidinho. Notaste como estábarbudo? Não foi esta a graça que pediste a vida inteira?”Penélope, sempre atenta ao que se passa, respondeu:“Preocupas-te comigo, mas não tem sentido o que dizes.Achas que melhoro com banhos e tratamento de pele?Minha beleza, aqueles que reinam lá no Olimpo meroubaram no dia em que aquele, meu marido, embarcou.Chama Autônoe e Epidâmia. Que venham agora mesmo.Elas deverão acompanhar-me à sala. Não quero aparecersozinha numa reunião de homens. Tenho vergonha.”Recebida a ordem, a anciã atravessou a sala. Suaintenção era de retornar logo que tivesse dado o recado.Nos olhos claros de Atena brilhou outra idéia. Convinhaque a doçura do sono tranqüilizasse a filha de Icário.

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A rainha, reclinando a cabeça, relaxou os membros nacadeira de repouso. Concedeu-lhe a poderosa deusa donsimortais, causa de admiração geral. Purificou-lhe, antesde tudo, o rosto com essência divina, a mesma queembeleza os sedutores passos de Afrodite nos dançantescoros de Afrodite, animados pelos giros das Cárites[1].Com as atenções de Atena, o corpo da rainha esplendeuesbelto e alto, mais claro que a alvura do marfim. Findoo trabalho, Palas elevou-se às rotas que levam aoOlimpo. A alva e ruidosa presença das servas tomoua sala. Saindo do sono, as mãos de Penélopesubiram-lhe e à face. Despertou a voz da rainha:“Atormentada, envolveu-me suave torpor. Por queÁrtemis, a sacrossanta, não me visita com morteigual agora? Cessariam os males que me atormentam.A vida escorre longe de meu amado esposo, essehomem excepcional, único entre os aqueus.” Deixousilenciosa seus iluminados aposentos para descer.Não ia só. Duas escravas a acompanhavam. Aoalcançar a sala em que os pretendentes costumavamreunir-se, na sólida arquitetura dos umbrais deteve-seo passo da rainha, tênues véus velavam-lhe a face.Ladeavam-na as solícitas escravas. Abalados pelodesejo, tremeram os joelhos dos pretendentes.Cada um deles sonhava em conduzi-la ao leito.Ela, entretanto, chamando o filho, falou-lhe:“Telêmaco, onde ficou o juízo que te distinguia?Quando eras mais jovem, sabias o que era útil.Cresceste. Alcançaste a idade madura. Vendotua estatura e a beleza do deu porte, um estranhodiria que teu pai é um homem bem-sucedido.Preocupa-se tua maturidade intelectual.Por que não te opuseste aos maus-tratos quehumilharam nosso hóspede? Que dirão os quesouberem que assim se procede com estrangeirosabrigados em nossa casa. Como poderás evitar queas pessoas estranhem teu comportamento?”A resposta do filho foi de uma tranqüilidadeexemplar: “Mãezinha, compreendo tua indignação.

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Estou atento a tudo o que de bom e de mau se passaaqui. Inocente eu era antes. Mas não esperes queeu acerte em tudo. Sinto-me me ameaçado de todosos lados. Meus inimigos se abancam aqui. Queremver minha caveira. Por mim, não tenho ninguém.O resultado da briga não foi o que os pretendentesesperavam. O estrangeiro foi superior. E muito!Sabes o que rogo a Zeus, a Atena e a Apolo? Queos pretendentes sejam derrotados como Iros. Queroque baixem a crista aqui dentro ou lá fora, o lugarnão me importa. Que os joelhos tremam! Acabeça de Iros, encostado no muro, balouça comose estivesse bêbado. Ele não se mantém ereto. Ospés não agüentam o peso. Não pode ir para casa,se é que tem casa. As pernas não o levam.”Essa foi em síntese a conversa de mãe e filho.Eurímaco teve a ousadia de se dirigir à rainha:“Filha de Icário, Penélope, soberana, se todosos cidadãos de Argos tivessem o privilégio de tever, teríamos no banquete de amanhã um númerobem mais expressivo de pretendentes. Superasas mulheres, na beleza, no porte, na inteligência.”Penélope reagiu ao galanteio com prudência:“Eurímaco, os deuses aniquilaram minha beleza emeu corpo quando os argivos navegaram a Tróia.Na frota encontrava-se Odisseu, meu marido.Se ele regressasse para me amparar, meu renomeseria maior, melhor seria minha vida. Aflições medesfiguram. Assim o quis um gênio maligno.Lembro o dia em que partiu. Apertou minha mão,a direita. Trago as palavras dele vivas na memória:‘Querida, gostaria de tranqüilizar-te, mas não posso.Quantos dos aqueus voltaremos intactos de Tróia eunão sei. Consta que os troianos são guerreiros, e dosbons: bons no lance de dardos, bons no manejodo arco, bons na condução de cavalos velozes, armadecisiva em muitas batalhas incertas. Tenho motivospara estar inquieto: um deus pode me aniquilar ouum inimigo troiano. Meus assuntos estão em tuas

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mãos, meu pai e minha mãe precisam de cuidados.Os teus encargos aumentarão com minha ausência.Quando a barba cobrir as faces do teu filho, terásque tratar do teu casamento, deixar esta casa.’ Chegouo momento de concretizar o que ele previu. Antevejoa noite em que terei de submeter-me ao casamentoodioso. Zeus me negou felicidade. Os males queagridem meu coração não param aí. Os pretendentesdesrespeitam, sonsos, costumes antigos. Se o candidatoà mão de uma mulher de qualidade, filha de umhomem de posses, competia com outros, trazia boise ovelhas nutridas para garantir acolhida condignaaos convidados, além de presentes de valor.Ninguém consumia desmiolado bens de outros.”O coração de Odisseu pulava de alegria ao ouvir amulher. Ela sabia arrancar presentes com palavrasmelosas, quando seus planos eram bem outros.Antínoo foi sensível às palavras de Penélope:“Filha de Icário, tua inteligência é notável. Aceitaos presentes que te trouxermos. De fato, negardádivas não fica bem. Mas toma nota: nãoarredaremos o pé, não iremos ao trabalho nema outro lugar enquanto não escolheres um de nós,o de tua preferência.” As palavras de Antínooforam aplaudidas. Os arautos buscaram o que cadaum destinara a este fim. O presente de Antínoo eraum peplo: amplo, magnífico, colorido, dozecolchetes de ouro, doze hastes engenhosamentecurvas. Nas mãos de Eurímaco luzia um colar,contas de âmbar, obra que honraria Dédalo.Euridamas apareceu com brincos de pérolas, dotamanho de amoras. Lampejavam. Eram sóis.Outro colar foi o mimo de Pisandro, jóia semigual. O doador era filho de Políctor. Prendas e maisprendas de prendados pretendentes. Prendadasubiu a Senhora aos seus aposentos, seguidapelo séquito de serviçais, portadoras dos mimos.

Dança e canto era a doce distração dos homens.

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Dançando e cantando aguardaram o ocaso.Na dança e no canto, recebeu-os a noite. De trêsbraseiros subiam as labaredas que iluminavama mansão. Achas de lenha cercavam as brasas.Pedaços secos com verdes, rachados há pouco,paus antigos com novos misturavam as mãosdas criadas do paciente Odisseu. Falou-lhesprudente o homem dos muitos recursos:“Escravas de Odisseu, o patrão de vocês estáonde? Vocês não deveriam estar com a rainha,Senhora de respeito? Ela precisa de vocês paragirar o fuso, cordear a lã... Deixem as brasascomigo, cuido do fogo para alegria de todos.Se eles querem se divertir até o sol raiar, osono não vai me derrubar. Sou durão.” Nãocaíram na conversa. Trocaram olhares. Rirama valer. Melanto, um doce, era desbocada. FoiDólio que pariu essa criada de Penélope. A patroaa tratava como filha, dava-lhe tudo o que elaqueria. Ela não dava nada em troca. Não tinha penada patroa. A vagabunda dormia com Eurímaco. Amarafa veio com desaforos para cima de Odisseu:“Desgraçado, estás lelé da cuca? Por quenão procuras o calor duma ferraria? Por quenão vais te abrigar num albergue? Dizes oque queres a qualquer um. Nada te assusta.Bebeste demais? Estar de miolo mole é teuestado natural? Só dizes besteira. Pensas queés herói só porque venceste um mendigo?Vai aparecer alguém que seja melhor do queIros. Vai quebrar-te a cabeça a soco, sairás derabo entre as penas, sujo de sangue.” Desafiadopelo inusitado, Odisseu baixou o olhar:“Cadela, conto a Telêmaco o que ouvi dessa tua boca!Te cuida, ele vai te cortar em pedacinhos.”O mulherio se apavorou. Que ameaça!Saíram correndo, mal das pernas. Tropeçavam:“Sério? Esse maluco é capaz de tudo.”

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Odisseu cuidava dos braseiros. Não deixava o fogomorrer. Outros planos borbulhavam no coraçãodo herói. Não murchariam aí inconclusos. Atenanão permitia que os ultrajes dos desaforadosserenassem. Deveriam aprofundar a ferida no peitocastigado do filho de Laertes. A iniciativacoube agora a Eurímaco. O filho de Pólibo agrediuo rei com deboches que arrancaram gargalhadas:“Pretendentes à mão da famosa rainha, ouvi-me.Obedeço a ordens do coração aqui no meu peito.Este homem não apareceu sem deus nesta mansão.Não vedes o brilho que emite essa cabeça pelada?Um cabelinho sequer a mancha de sombra.”Prosseguiu falando diretamente ao arrasa-cidades:“E se eu te contratasse como peão lá nas minhasterras, longe daqui? No salário sou generoso.Tramarias sebes de espinhos, plantarias árvoresfrondosas. Em troca terias comida o ano todo, roupapara vestir. Não te faltaria calçado para protegeros pés. Mas como és um imprestável, trabalhonão freqüenta teus projetos. Preferes mendigarpelas ruas. Nada tampa o furo no teu bucho.”Odisseu respondeu com muita sabedoria: “Eurímaco,queres apostar, ver quem de nós dois é mais resistente?Poderia ser na primavera, quando os dia são maislongos, no feno. Eu com uma foice e você com outra.A prova seria esta: quem, até ao anoitecer, é capazde colher mais. Teu feno é suficiente para o teste?Outra aposta: uma junta de bois, animais de qualidade,pêlo alvo e brilhante, forrados de pasto, iguais emidade, em rendimento e em força, quatro jeiras decampo, os torrões cederão ao arado. Meus sulcos, deponta a ponta, estarão alinhados. A constatação serátua. Prova-me na guerra. Zeus suscita um conflito,que seja hoje. Dá-me um escudo, duas lanças e umcapacete de bronze ajustado às fontes. Tu me verásentre os primeiros. Não terias razões para injuriarmeu estômago. Por que essa tua arrogância? Te fazes

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de durão. Julgas-te grande e forte porque te medescom fracotes. Cercam-te cagões. Não vejo nenhumhomem de valor à tua volta. Que volte Odisseu!Retome o domínio desta terra que é dele! Estreitasseriam as portas para tua fuga, por mais largas quefossem. Te asseguro que não acharias saída.”O coração do adversário virou fornalha. A fúria o inflamava.Olhando atravessado, dardejou insultos:“Porcaria, acabo contigo! Ofendes todo mundo,nada te assusta, não respeitas ninguém, tens umcoração de ferro. O vinho te subiu à telha ou ésdesmiolado sempre? Da tua boca sai asneirasobre asneira. Enlouqueceste porque venceste ummendigo?” Calado, agarrou uma banqueta. De susto,Odisseu correu para Anfínomo. Sentou-se aos pés dofilho de Dulíquio. A banqueta atingiu o braço direitodo copeiro. O jarro voou. O copeiro estatelou-seno chão. Estrondo! De costas, o servente gemia.No escuro, corriam os pretendentes em tumulto.Ouviu-se a observação ao companheiro do lado:“Por que esse miserável não morreu em algumlugar antes de chegar aqui? Teríamos sido poupadosdessa encrenca. Brigamos por causa de molambentos.Foi-se nossa alegria. O que não presta vem à tona.”Ainda restava a autoridade de Telêmaco. Falou:“Estão transtornados. Não sei que deus os levoua comer e a beber até perderem o juízo. Estãoservidos? Por que não vão para casa? Isso depende,é claro, da vontade de cada um. Obrigar, não obrigo.”Morderam os lábios. Agüentar a audácia do fedelho?Era de espantar. Telêmaco falava com segurança.A voz de Anfínomo quebrou a muda perplexidade.Brilhou a palavra do filho de Niso, filho de Areto:“Amigos, não convém resistir irado com palavrasrudes a quem fala para esclarecer. Por quemolestar o estrangeiro ou servidores de Odisseu,fiéis ao divino rei nesta casa senhorial? Nadaimpede que o copeiro sirva o vinho para osacrifício que assinalará o fim deste encontro.

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Iremos, então, para casa. Por que o estrangeironão poderia permanecer a convite de Telêmaco?”Estas palavras não descontentaram ninguém.Múlio, arauto de Anfínomo, nascido em Dulíquio,encarregou-se das crateras. Distribuídas astaças, todos se dispuseram a homenagear osos imortais. Procedeu-se à degustação da deliciosabebida. Concluída a cerimônia, satisfeito o desejode todos, cada um tomou o seu próprio caminho.

[1]. As Graças latinas. Deusas da felicidade, do encantamento, da beleza e daamizade. (N.E.)

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Canto 19

Odisseu, recluso no palácio, movia-se elaborandoprojetos contra os pretendentes. E eram funestos.Atena o ajudava. Suas palavras buscaram na sombraos ouvidos de Telêmaco: “É hora, filho, de removeras armas de guerra. Respostas tranqüilizadorasdeverão ludibriar indagativos pretendentes: ‘É afumaça. Eu já não as reconhecia mais. Brilhavamquando meu pai partiu. Estão cobertas de fuligem.A fumaça que sobe dos braseiros as preteou.Há outro motivo, advertência de um gênio. Vocêsbebem demais. Quando a briga começa, Zeus nosacuda! Se alguém pega em arma, corre sangue. Fimde festa. Não é bom evitar? Ferro atrai valentões.’”Telêmaco obedeceu. O pai sabia o que queria.Chamou Euricléia, a ama, para providências:“Mãezinha, tranca as mulheres nos cômodosdelas até eu guardar as armas nas dependências domeu pai. Impressionam, mas ninguém cuida delas.A fuligem as cobre desde que se ausentou. Eu nãotinha idade para isso. Mas agora vou resguardá-las.”Euricléia demonstrou que se preocupava com o jovem:“Não duvido, filho, que a providência seja acertada.A casa, com tudo o que lhe pertence, está sob tuaresponsabilidade. Mas a tocha para te iluminar ospassos estará nas mãos de quem, se prendes asescravas?” Telêmaco refletiu antes de responder:“O estrangeiro! Não quero vagabundo na minhacasa. Quem come da minha mão trabalha, mesmose vem de longe.” Falou. A resposta dela caiu semasas. As portas eram fortes. Ela as fechou bem.Odisseu e seu filho promissor puseram mãos à obra.Carregaram capacetes, escudos circulares e lançaspontiagudas. Palas Atena precedia pai e filho. O

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O áureo facho da deusa iluminava o ambiente.Telêmaco não se conteve. Observou admirado:“É um assombro, mal posso crer nos meus olhos.Os muros da casa, os nichos, as vigas de abeto,as colunas que as sustentam – estou ofuscado –,tudo brilha como que iluminado por um incêndio.Temos a visita de um deus lá do alto.” Odisseu,dono da situação, tentou tranqüilizá-lo: “Calma!Contém teu entusiasmo, não faças perguntas.Tudo está dentro das normas. Os olímpios sabemo que fazem. Vai dormir. Eu fico aqui. Aindaquero ter uma conversa com as escravas e tua mãe.Ela tem muito a me perguntar sobre muitas coisas.”Telêmaco atravessou a sala e dirigiu-se ao quartopara dormir à luz de tochas, no lugar em quecostumava repousar. O sono desceu-lhe doce sobreas pálpebras. Dormiu até ao divino raiar da Aurora.

Na sala, Odisseu, sempre auxiliado por PalasAtena, fazia planos para aniquilar os pretendentes.Penélope deixou seus aposentos inquieta. Vinhadominadora como Ártemis, sedudora como a áureaAfrodite. Aproximaram do fogo a cadeira em quecostumava repousar. A cadeira, de marfim e prata,era obra de Icmálio, do mesmo material o artistaproduzira o escabelo que, revestido de um pelego,sustentava os pés da rainha. Aí se acomodaraPenélope. Apareceram as escravas. Já estavamsoltas. De braços desnudos, recolhem os restos eos copos que tinham ficado na mesa do banquete.Removeram a cinza e amontoaram muita lenha,o suficiente para atravessar a noite fria.Melanto, incansável, voltou a agredir Odisseu:“Queres, vagabundo, importunar-nos durante anoite? Te esgueiras pela casa para espiar asmulheres? Pra fora, larápio! Bom apetite! Ouqueres que te enfie um tição no rabo? Pra rua!”Odisseu, olhando de cima para baixo falou severo:

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“Bruxa! Por que a fúria, por que me persegues? Porme veres sujo? Por causa destes trapos? Por andarmendigando pelas ruas, tangido pela necessidade?É a má sorte. Miseráveis vivem deste jeito. Mas nãofoi sempre assim. Já tive fortuna. Vivia entre genteboa. Já dei esmola a muito mendigo. Não queriasaber quem era nem donde vinha. Escravos eu tinha,milhares. Não me faltava nada. Eu pertencia aosque vivem bem, aos que são considerados felizes.Zeus me desgraçou. O que posso contra a vontadedele? Não penses que essa tua beleza, teu orgulhoentre o mulherio, vai durar para sempre.Cuidado! Tua patroa poderá ficar com raiva de ti,Odisseu pode voltar. A esperança nunca morre. Seo rei se danou, se o dia de ele voltar não vai chegarnunca, tem o filho dele. Apolo é misericordioso!Ele está de olho na porcaria que as mulheres estãoaprontando por aqui. Não é mais criança.”A Penélope não escapou nada do que Odisseu disse.Falou enérgica com a moça. Esbravejou. Xingou:“Safada, cadela descarada, não penses que não seida bandalheira que andas fazendo. Te corto a cabeça.Tu sabias. Eu te disse que queria falar com oestrangeiro aqui no palácio, queria saber notíciasdo meu marido. E tenho que me incomodar contigo!”

Chamando Eurínome, deu ordens à criada:“Traz uma cadeira. Bota um pelego por cima.Quero-o aqui perto de mim para ouvir o que tem ame dizer, para falar-lhe. Quero fazer-lhe perguntas.”A ordem foi prontamente atendida. Veio acadeira. Brilhava. E veio o pelego para cobrira cadeira. Odisseu ocupou o assento preparadopela rainha e se dispôs a ouvir o que ela queria.Panélope perguntou sobre o entrangeiro: “Dondevens? De que povo? Tua cidade? Teus pais?”Circunspecto como sempre, falou-lhe Odisseu:“Senhora, homem em lugar nenhum da terra tem o

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direito de censurar-te. Teu nome bate no céu. Eute comparo a um rei: competente, piedoso, comautoridade sobre muitos, gente poderosa, zelosodo cumprimento da lei. Seus campos produzemtrigo, cevada, árvores frutíferas. Gado gordo naspastagens. Peixes fornece o mar. Graças a seugoverno, o povo prospera. Como me recebesteem tua casa, tens o direito de perguntar. Perguntasobre tudo, menos sobre minha gente, sobreminha terra. Falar sobre isso me traz dor, evocasofrimentos. Sou um grande sofredor. Por quefalar fora de minha casa sobre coisas penosas,desagradáveis? Muita lamúria chateia. Algumade tuas criadas, ou tu mesma poderias pensar que,cheio de vinho, navego em lágrimas.” Penélopeinterveio com uma resposta refletida: “Estrangeiro,o que me distinguia: o vigor, a beleza, o corpo,isso os deuses me tomaram, quando os aqueusembarcaram para Ílion e levaram meu marido.Se ele voltasse para tomar conta de mim, daminha vida, minha glória seria maior, mais bela.O que sofro é praga de um gênio mau. A nobrezadas ilhas, os mais distintos, senhores de Dulíquio,de Same, das florestas de Zacinto, até os daqui,de Ítaca, a ilha que se vê de longe, homens queme querem, mesmo que diga ‘não’ todos meconsomem os bens. Revoltada, trato mal hóspedes,suplicantes, arautos a serviço do povo. Só queroOdisseu, só por ele bate meu coração. Insistemno casamento. Recorro a truques. Primeiroum gênio botou-me na cabeça tecer um manto,amplo, longo. Instalei no meu aposento umgrande tear. Comuniquei-lhes o projeto:‘Cavalheiros, pretendentes meus, Odisseu estámorto. Calma! Não desejo casar forçada. Queroantes concluir este manto. O fio poderia estragar-se. Laertes poderia morrer por golpe da Sorte.É uma mortalha. A morte cruel não poupa ninguém.Quero evitar insinuações de línguas maldosas

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pela cidade: um homem tão rico jaz sem mortalha.’Meu plano conteve corações rebeldes. O tear meocupava o dia todo, mas à noite, à luz de tochas,eu desfazia o que tinha produzido durante o dia.Por três anos consegui enganar os pretendentescom meu segredo. Rodaram as estações, passaram-seos meses, extinguiram-se muitos dias até entrar oquarto ano. Fui surpreendida. Uma puta me traiu,uma criada. Gritaram. Fui destratada. Fui obrigadaa concluir na marra o que eu queria inconcluso. Jánão posso fugir do casamento. Não sei o que inventar.Sou forçada por meus pais. Meu filho está furiosoporque lhe consomem os bens. É adulto. Sabe dascoisas. Como é o único homem, quer cuidar dodo que é seu. Zeus o ajude! Agora quero saber deti, de tua família, donde vens. Não vás me dizerque és filho de um carvalho velho e duma rocha.”Foi esta a resposta do engenhoso Odisseu:“Senhora, digna esposa do filho de Laertes. Tu nãodesistes. Queres saber quem são os meus? Está bem,eu conto, embora isso aumente minhas dores,que já são muitas. Dores se acumulam na rota dosque, como eu, estão por muito tempo longe da terra,viajando por cidades estranhas, expostos ao mal.Queres que eu fale? Falarei. Longe, no mar vinhento,existe uma ilha chamada Creta, bela, fértil, açoitadapelas ondas. É habitada por uma quantidadeincontável de povos. Noventa são as cidades, cadauma com sua própria língua. Lá vivem aqueus,eteocrenses, cidônios, dórios, pelasgos: generosos,hospitaleiros, cabeludos, divinos. Há de tudo.Destaca-se Minos, cidade enorme, sob o cetro deum rei que de nove em nove anos se aconselhavacom Zeus: Minos, pai do meu pai, Deucalião.Meu pai teve dois filhos, além de mim. Idomeneu,meu irmão, participou da frota dos Átridas contraTróia. Chamo-me Eton, nome bem conhecido. Souo mais moço. Meu irmão me superava na idade eno valor. Em Creta eu conheci Odisseu e suas

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riquezas. A força dos ventos o levou para lá.Seu destino era Tróia. Vinha do cabo Meléia.Ancorou em Amniso, porto perigoso, tendoescapado da tempestade a custo. É lá a gruta deIlitiía. Subiu para conhecer a cidade de Idomeneu,aliado, ao que dizia, querido e respeitado dele.Há já dez ou onze auroras singrava o mar emacidentada viagem para Tróia, em naus recurvas.Hospedei Odisseu em minha casa e o trateicomo amigo com o que eu tinha. Não era pouco.Para os companheiros que acompanhavam Odisseu,angariei vinho e cevada entre o povo, além de boispara o sacrifício, tudo o que pudesse animá-los.Permaneceram lá por doze dias, retidos por umviolento vento norte. O vento, soprado por um gênio,chegava a derrubar quem estivesse de pé. Partiramno décimo terceiro dia, serenado o vento.” Norelato de Odisseu, fatos e invencionices semisturavam. A narrativa fazia a rainha chorar.Lágrimas sulcavam-lhe a pele. Imaginemoso degelo de altos picos nevados, neve acumuladapela violência de Zéfiro e derretida pelo calor deEuro para engrossar as correntes: assim corriamrios pelas belas faces dela. Ela chorava o maridoa seu lado. As lágrimas abalaram o coração doherói. Como se de chifre ou de ferro fitavam secosos olhos dele. O disfarce estagnou o pranto.Cansada de tanto chorar, Penélope, retomando aconversa cortada, externou-se nestas palavras:“Amigo, permite que te ponha à prova. Quero saberse de fato hospedaste em tua casa meu marido,acompanhado de companheiros seus, como afirmas.Conta-me como se vestia, qual era o seu aspecto,que aparência tinham os homens que o seguiam.”A resposta de Odisseu foi refletida e cautelosa:“Senhora, depois de tanto tempo? É difícil dizer.Afinal, já se passaram vinte longos anos. Longevai o dia em que ele partiu da minha terra.Seja! Te conto o que ficou registrado na minha

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lembrança. O divino Odisseu trazia uma capa delã, purpúrea, dupla, presa por um broche áureode duplo encaixe, uma dedálica obra de arte.Um cão prendia nas patas dianteiras um cervomalhado, que estrebuchava – trabalho admirável.O animal nos dentes do cão movia as pernaspara fugir. Imagina isso representado em ouro!A túnica brilhante que lhe cobria o corpolembrava a casca seca de uma cebola, otecido era suave e emitia esplendores de sol.As mulheres, eram muitas, olhavam pasmas. Háuma observação a fazer, convém que a examinesbem. Se Odisseu se vestia assim em casa, eu nãosei. Foi presente de amigos durante a viagem? Foium regalo de alguém que o hospedou? Odisseuera amigo de muita gente. Poucos se pareciamcom ele. De mim ele recebeu uma espada debronze e um manto de púrpura que dava na vista.Te garanto que da minha casa ele saiu honrado.Ele me visitou acompanhado de um arauto,um pouco mais velho. Se me lembro bem, eraencurvado, pele escura, cabelo crespo. Euríbatesera o nome dele. Odisseu o estimava muito.Os dois se entendiam bem. Eram corretos.”Foi o que ele falou. Para quê? Voltou a saudade,o choro. Ela reconheceu os sinais. Não havia erro.Serenada a tempestade de lágrimas, elaretomou a palavra e lhe falou com ternura:“Meu caro hóspede, até aqui eras alguém de quemeu tinha pena, agora és meu amigo e te admiro.As vestes de que falas, ele as recebeu de mim.Eu as tirei da câmara. Eu as dobrei. O broche foiuma jóia que brilhava em seu peito por vontademinha. Nunca mais o terei comigo nesta terra.A nau bojuda o levou para a ruína. Precipitou-seno abismo de Ilionada, inominável nome.”A resposta de Odisseu buscou tranqüilizá-la:“Senhora, venerada esposa do filho de Laertes,não apagues o brilho de tua pele. Teu pranto pelo

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esposo não moleste teu coração. Não te censuro.Muitas pranteiam a morte do companheirocom quem geraram filhos em doces abraços,mesmo inferior a Odisseu, de corpo divino.Cesse, contudo, o pranto. Avalia o que digo.Apresento fatos, não pretendo enganar-te. Tenhonotícias recentes de Odisseu, aqui de perto.Segundo tesprotos, gente próspera, ele estávivo. Está rico, carrega tesouros, angariadosentre a população. É verdade que os remeirosse foram, submersos no mar cor de vinho, aodeixarem Trinácia. O ódio de Zeus e de Hélioos liquidou por devorarem vacas sagradas.Todos foram tragados pelas ondas ruidosas.Só a ele o mar expeliu à terra, agarrado naquilha. Os feáceos, amigos dos deuses, oacolheram. Renderam-lhe homenagens própriasa um deus. Quiseram acompanhá-lo até aqui,livre de trabalhos. Já há muito Odisseu estariaem casa. Pareceu-lhe, entretanto, melhorpercorrer muitas terras para reunir riquezas.Tratando-se de lucro, Odisseu se destaca. Nãosei de ninguém que lhe pudesse fazer sombra.Essas informações me vêm de Fídon, rei dosdos tesprotos. Jurou-me solene em seu palácioque já se encontrava pronta e tripulada a nauque o traria à terra que tanto amava. Já que umnavio com destino a Dulíquio, produtora detrigo, se encontrava no porto, parti primeiro.Vi os tesouros que Odisseu tinha reunido,suficientes para dez gerações, tamanha era ariqueza que o rei me mostrou. Pelas informaçõesdo monarca, Odisseu se encontrava em Dodonapara saber de Zeus, cuja voz soava na copada deum alto carvalho, como voltar à pátria. EmSegredo? À vista de todos? A longa ausência odeixava inseguro. Está fora de perigo e próximo.Em breve, o verão a pátria e os amigos. Tens minhapalavra de honra. Ouça-me Zeus, o forte, o mais

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poderoso de todos os deuses, ouça-me o fogo queme aquece, este lar que me recebe, a casa do próprioOdisseu, juro que tudo acontecerá como declaro.À luz deste mesmo Sol, à morte e ao renascer destaLua que nos ilumina, Odisseu estará aqui.”Penélope, versada no incerto, pôs-se a considerar:“Se o que acabas de dizer alcançar cumprimento,terás, além da minha amizade, provas concretas deestima, tais que serás chamado ditoso por quem teencontrar. Vivo de coração inquieto. Será assim?Penso que Odisseu não regressará nunca mais. NãoEsperes auxílio. Os que mandam nesta casa não sãocomo Odisseu. Ele sabia tratar as pessoas comoninguém. Os hóspedes chegavam e partiamdesvanecidos. Vamos, auxiliares minhas, preparai-lheo banho e a cama: colchas, mantos, cobertas. Querobrilho! Durma aquecido até a Aurora subir ao seutrono de ouro. Deverá entrar na manhã banhado eungido. Tomará a refeição matutina sentado à mesaao lado de Telêmaco. Que ninguém o ameace! Nãohaverá lugar para quem ousar molestá-lo. Meu rigornão cederá à rebeldia de ninguém. Como poderiassaber, meu amigo, que supero outras da minha classeem saber e conduta se eu permitisse que retornassesà sala dos banquetes nestes trapos? Curta é a vida.Minúsculo é o espaço entre o princípio e o fim.Se alguém for férreo, e férreo exercer o poder,maldito será em vida; maldito, na morte.Mas quem for afetuoso e souber produzir obrasafetuosas, os ventos levarão seu nome a terrasdistantes. Hóspedes o aclamarão em toda parte.Homens o conhecerão. Para muitos será nobre.”A multifacetada resposta de Odisseu foi esta:“Senhora, nobre esposa do filho de Laertes,colchas, mantos e brilhos, sinceramente detesto-osdesde minha despedida dos montes nevadosde Creta em nau propelida por longos remos.Quero dormir como sempre em maldormidasnoites. Muita noite passei em leito repelente,

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aguardando o divino colorido da entronada Aurora.Não cultivo em meu peito o desejo de que alguémme banhe. Das mulheres que trabalham nestacasa, não quero que nenhuma me lave os pés,exceto uma velhinha solícita, curvada pelos anos,experimentada e resistente a dores como eu,não me oponho a que ela me toque os membros.”Penélope, entendida em dores, lhe respondeu:“Querido amigo, das pessoas que hospedei,forasteiros de longes terras, ninguém me foi maiscaro que tu. Falas com sensatez sem igual.Tenho uma anciã diligente e experimentada, amadaquele que partiu. Ela o amamentou e o criou.Ela o tomou nos braços quando a mãe o deu à luz.Embora debilitada, ela te banhará os pés. Vemcá, preciso de ti, sábia Euricléia. Este homemtem a idade do teu patrão. Quero que o laves. Ospés e as mãos de Odisseu deverão ser parecidos.O envelhecimento é rápido em gente que sofre.”

A velhinha cobriu o rosto com as mãos. Verteulágrimas de fogo. Palavras de dor saíram-lhe daboca: “Filhinho distante, não posso ajudar-te.Mais que homens, Zeus te foi adverso, emborasejas piedoso. Mais que tu ninguém rendeu maishomenagens ao Trovejador. Queimaste-lhe coxas.Trouxeste-lhe hecatombes. Tu o invocaste. Rogasteuma velhice tranqüila, o desenvolvimento do teufilho. E negou a ti, só a ti, o dia do regresso.Mulheres o insultam, por certo, em terras distantes,em mansões como esta, sob tetos que o abrigam.Ferem-no com zombarias como o fazem as bruacasdaqui. Para fugir de ultrajes, para evitar baixarias, nãoqueres que te lavem. Recebi com agrado a ordemque me deu a filha de Icário, a instruída Penélope.Lavo-te os pés a mando de Penélope e em atençãoa ti. Agitam-se em meu peito sentimentos dolorosos.Ouve o que tenho a dizer-te. Procuram-nos muitos

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estrangeiros açoitados pela dor. Mas em nenhumdeles percebi tanta semelhança com Odisseuno porte, na voz, no jeito de andar, como em ti.”Preparado para tudo, respondeu-lhe Odisseu:“É o que me dizem todos, cara velhinha. Comentamque a minha semelhança com ele cai na vista.O que me dizes agora confirma o que ouvi de outros.”Nas mãos da velhinha brilhava uma bacia. Recorriaa ela para banhos. Temperou a água fria,abundante, com água quente. Afastando-se dalareira, o escuro sombreou o corpo de Odisseu.Uma preocupação: a cicatriz. A velha poderiareconhecê-la, e o plano iria por água abaixo. Otrabalho começou. Ela banhava os pés do Senhor.Reconheceu a cicatriz num tapa, lembrança dosalvos dentes de um javali. Acidente antigo. Tinhaido ao Parnaso para ver os primos e Autólico, paide sua mãe. Em perjúrios e truques, o avô superavatodos, o dom lhe viera de um deus, Hermes. Com osacrifício de bois, ovelhas e cabras, Autólicopagou a graça. Quando Autólico visitava osférteis campos de Ítaca, conhecera o neto recém-nascido. Euricléia, colocando-lhe o menino nocolo depois da ceia, interpelou-o solene: “Autóloco,queremos saber como se chamará o filhode tua filha. Rogaste muito por este momento.”Soou a voz de Autíloco em resposta:“Caro genro, cara filha, aqui vão nome e motivo:a ira me lançou contra muitos na terra nutriz,homens e mulheres, gente odiosa. Por ressonânciaao ódio, seu nome será Odisseu. Quando crescer,– esta é minha palavra – e visitar a casa de suamãe, lá no Parnaso, lugar de meu legado, parte doque tenho será seu, o moço regressará regalado.”Odisseu subiu o monte para receber o prometido.Foi recebido por Autólico e pelos filhos de Autólico.Foi estreitado nos braços e envolvido com palavrassedosas. Anfitéia, a mãe da mãe de Odisseu, abraçouOdisseu, beijou Odisseu na testa e nos olhos.

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Antíloco encomendou dos filhos banquete opulento.A ordem do pai para os filhos foi lei. Agarraramum boi, um macho de cinco anos. Esfolaramo boi, dividiram o boi, prepararam porções e asespetaram, assaram o boi e serviram os convidados.O banquete foi de dia inteiro. Regalaram-se atéo sol se recolher atrás dos montes. As iguarias nãodeveriam ficar aquém da vontade de comer. Sumiuo sol, a noite espalhou sombra pelos caminhos.Recolhidos ao leito, receberam a dádiva do sono.Erguendo-se os róseos dedos da madrugadoraAurora, prepararam-se para a caça. Vieram os cãese vieram os donos dos cães, os filhos de Autólico.Vinha com eles Odisseu. Escalaram os flancos doParnaso, coberto de mata. Pronto penetraram emventosas gargantas. O sol nascente iluminou oscampos. Erguia-se das serenas correntes do Oceano.Os caçadores penetraram na selva do vale. Rastroschamavam os cães farejantes. Os filhos de Autólicovinham atrás. Odisseu marchava na proximidadedos cães. Sombra lançava a longa lança. Umjavali corpulento escondido na moita, resistenteao sopro úmido do vento potente. A verdesombra não cedia ao brilho dos raios solares.A copa se fechava ao tamborilar da chuva.A trama de galhos e folhas defendia o covil.O tropel de patas e passos assanha a fera.Passos lentos determinam o avançar doquadrúpede. Eriçam-se as cerdas. Da fornalhados olhos chispam fagulhas. De lança empunho, atira-se Odisseu antes de todos, decididoa abater a presa em combate. De um salto a fere,mas ela atinge-lhe a coxa. Abre-lhe um talhoacima do joelho sem, no entanto, molestar-lheo osso. Odisseu alvejou o atacante na espáduadireita. A ponta brilhante da arma luziu dooutro lado. Num grunhido escapou-lhe o últimoalento. Os filhos de Autólico cercaram Odisseu,prestaram-lhe socorro. Cuidadosamente ataram-

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lhe a ferida. Com esconjuros detiveram o sangue.Correram com ele solícitos à casa do pai. Oscuidados de Autólico e dos filhos de Autólicopuseram Odisseu de pé. Curado, o herói recebeuos preciosos regalos. Regalado, retornou a Ítacaradiante. Radiantes receberam-no o pai e mãe,desejando saber com detalhes tudo o que tinhaocorrido: as dores, a ferida... Odisseu lhesfalou da caçada, do dente alvo da fera, de comotio e primos o receberam no Parnaso.A velha, ao reconhecer a cicatriz na ponta dosdedos, largou a perna. O bronze ressoou coma batida do pé que tombou na bacia. Inclinou-seo recepiente, a água entornada manchou o chão.Dor e alegria misturados turvaram a mente, osolhos encheram-se de lágrimas, a voz trancouna garanta. Tocando o queixo do herói, falou:“És tu, meu filho, querido Odisseu. E eu nãote reconheci! Foi preciso tocar o corpo do amo.”Os olhos procuraram Penélope. Quis avisara patroa de que o marido já estava em casa.Mas esta, distraída, nada percebeu. Atenalhe desviara a atenção. Odisseu, entrementes,botou a mão direita na mão da escrava, puxou-acom a outra para bem perto e cochichou:“Queres me destruir, mãezinha? Mamei noteu peito. Sofri muito. Depois de vinte anosestou de volta à terra em que nasci. Agoraque me reconheceste, ajudada por um deus,cala-te. Ninguém deve saber. Atenção noque te digo! Cumpro o que falo. Se o céupermitir que eu destrua os pretendentes ee se eu aniquilar as escravas deste palácio,não me escapas, ainda que sejas quem és.”Euricléia respondeu com inteligência:“Percebes a gravidade das palavras que teescaparam da boca? Sabe que sou dura, rija.Sou de ferro, sou de pedra. E assim serei.Agora escuta-me tu. Guarda o que te digo.

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Se tu e o céu abaterem os pretendentes,vou te fornecer uma relação de escravas,saberás quem presta e quem não presta.”Odisseu respondeu como quem sabe de tudo:“Mãezinha, vais me dizer o quê? Dispenso.Eu mesmo vou examinar uma por uma. Nemmais uma só palavra! Confia nos deuses.”A velha tomou a bacia e atravessou a sala.Precisava de água. O chão tinha bebido aoutra. Banhado e ungido, Odisseu tomoua cadeira e voltou para perto do braseiro.Tratou de esconder a cicatriz com os trapos.

Ouviu-se a voz de Penélope, a sábia rainha:“Estrangeiro, ainda uma coisinha me inquieta.Sei que é hora de repousar. Na verdade, sórepousa quem, mesmo inquieto, desfruta de sonotranqüilo. Quanto a mim, lá de cima só me vêmaflições. Dia após dia, me assolam tormentos,pranto, no meu e no trabalho de minhas escravas.À noite, em lugar de dormir, rolo na cama.Inquietações em turbilhão assaltam meu peito.Desando em pranto à maneira de Aedon, filhade Pândaro. Sonoro soa o canto de Aedon; agora,rouxinol, aedo da renovada primavera. Nos galhosempoleirada, ondas de sons encadeia Aedon eritmam pelos ares. Chora a morte de Ítilo,filho que tombou vitimado pelo férreo golpe dainsensatez dela, garoto que lhe dera Zeto. Iguala ela, dilacerada por sentimentos contrários, souarrastada de cá para lá. Fico com meu filho e tudopermanece como está: meus bens, minhas escravas,esta casa, minha fidelidade, a submissão à fala dopovo? Ou sigo meu caminho, escolho o melhor dospretendentes, o que me fizer propostas sem limites?Meu filho, quando não sabia se conduzir, criança,não permitia que eu casasse, que eu saísse daqui.Mas agora que é grande, no verdor da idade,pede que eu saia, que volte para a casa de meu

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pai. Quer o que é dele, os bens que estranhos lhedevoram. Posso contar o sonho que tive? Queresinterpretá-lo? Crio aqui no palácio vinte gansos,alimentam-se de trigo e água. Observo-os, sintocalores. Desce da montanha um gavião imenso, debico adunco. Parte-lhes o pescoço, acaba com eles.Deixa-os amontoados. As asas o erguem à amplidãodivina. Gemo e choro no sonho. Rodeiam-meartísticos penteados. Choro desconsolada sobrecorpos emplumados que o gavião deixou sem vida.Volta de repente e pousa lá no alto, na trave.Com voz humana, procura acalmar-me: ‘Coragem,filha de Icário, conhecido em terras distantes! Visãovã? Nunca! Tiveste um sonho premonitório.E se cumprirá. Toma os gansos por pretendentes.Gavião fui antes, agora sou teu esposo. Voltei.Planejei o fim dessa corja.’ Foi o que ele disse.Ficou-me sonolência de mel. De passo apressadofui procurar os gansos que crio aqui no palácio.Bicavam trigo nos tanques, como de costume.”Depois de refletir, respondeu-lhe Odisseu:“Senhora, não há como inclinar o sonho a sentidodiferente daquele que lhe deu Odisseu. Aconteceráo previsto: a destruição total dos pretendentes.Nenhum deles escapará do banho de sangue.”Veio a sábia ponderação da rainha:“Sonhos são sombras, amigo, visões imprecisas.Saibam os sonhadores que nem tudo neles secumpre. Duas são as portas dos sonhos semforça. Uma delas é córnea, a outra é de marfim.Os sonhos que entram pela porta talhada emmarfim são amorfos, relatos irrelevantes. Masos que passam pela porta de corno polido portamcontos corretos, versões do visível. O sonho queme atormenta não veio, por certo, pela porta dechifre, embora favorável a mim e a meu filho.E há mais. Guarda o que tenho a te dizer.Uma desdourada Aurora me afastará da casade Odisseu. Proporei um concurso, o das

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machadinhas. O certame consiste em alinhá-las,em número de doze ao jeito de estacas, peloestilo dele. A certa distância ele as atrevessavacom uma flexa. É o jogo que proponho aospretendentes. Retesado o arco com mão forte,a seta do concorrente terá que atravessar osdoze orifícios. Serei de quem vence. Esta casa,bela, farta, a do meu primeiro matrimônio, eu adeixarei. Reservo-lhe um lugar em meussonhos.” Respondeu-lhe o atilado Odisseu:“Senhora, digníssima esposa de Odisseu, nãoproteles o concurso proposto. Ele regressaráantes. Em breve o imaginoso filho de Laertesestará aqui. Antes de estes retesarem o arco,Odisseu armará o arco e levará o prêmio.”

Penélope cortou a conversa com sensatez:“Caro hóspede, se concordasses em estar aquicomigo, o sono não me baixaria as pálpebras.Mas apagar o sono não se consente aos homens.Os deuses estabeleceram limites para cada setorna produtiva superfície terrestre. Aguarda-meo leito no andar superior. Devo recolher-mecom gemidos e lágrimas. Choro desde o dia emque Odisseu me deixou para atacar essa malfadadaIlionada de inominável nome. Lá devo acomodar-me. Convido-te a permanecer nesta casa. Onde?No chão ou numa cama preparada pelas escravas.”Penélope subiu ao esplêndido aposento superior.Não foi só. Criadas a acompanharam. Não tinhabem chegado, sentiu os repelões do choro.Causa? O seu amado e ausente esposo. Atena,lembrada dela, baixou-lhe as pálpebras. Adormeceu.

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Canto 20

O divino Odisseu arrumou a cama no vestíbulo.Estendeu uma pele de boi e lançou sobre elavários pelegos de ovelhas imoladas pelos aqueus.O herói se deitou, e Eurínome veio com um mantopara cobri-lo. Na mente desperta do filho de Laertes,desenhavam-se vinganças. Com risinhos e gracejoserrantes pelo escuro da sala, ressoavam no vaziopassinhos de mulheres em alvoroço para aquecero leito dos candidatos à mão de sua mulher. Já ofaziam há muito. O coração do rei fervia. Acabariacom elas? Esfriaria as desaforadas uma por uma? Outoleraria a indecência pela última vez, derradeirofavor aos pretendentes? Ladrava-lhe o coração,latidos de cadela em torno de cria nova à vistade um desconhecido, dentes arreganhados, posiçãode ataque. No coração de Odisseu latia uma matilha.Com golpes no peito, procurou silenciar os uivos:“Calma coração, já suportaste cachorrice maior.Lembras-te do brutamontes, o Ciclope? Ele comiabravos companheiros teus. Se naquela ocasião nãotivesses sido paciente, terias morrido no antro.”Recordações acalmariam a agitação interior?O coração lhe obedeceu: paciente, obediente,imóvel. Mas ele rolava de um lado para o outro.O rei parecia, na verdade, um bucho, desses queque o assador gira recheado sobre labaredas,desejoso de que o trabalho termine duma vez.Odisseu era um bucho que se revira no braseiro.Como poderia botar a mão nos canalhas se erammuitos, e ele era um só? Aproximou-se delePalas Atena. Desceu do céu com corpo de mulher.Falou-lhe à cabeceira do leito improvisado: “Tu,ainda acordado? Mais que outros, vives sob o peso

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da morte. Por quê? Estás em casa, tua mulherdorme segura. Teu filho causa inveja a muitos.Em resposta, disse-lhe o atribulado Odisseu:“Não há como contestar o que disseste, deusa. Meuproblema é o coração. Estou muito preocupado.Como vou enfrentar estes sem-vergonha, sendoeu, um só? Sempre os vejo em grupo. Há mais.Posso continuar a te importunar? Suponhamosque com tua ajuda e a de Zeus eu consiga mataressa corja. Onde devo me refugiar? Pensaste nisso?”Atena lhe respondeu de olhos arregalados:“Pobrezinho! Vocês confiam em fracotes, em amigos,gente que morre, pessoas de visão limitada. Estásfalando com uma deusa! Quem te ampara em todasas tuas encrencas sou eu. Que venham cinqüentabatalhões de míseros mortais, que venham comogaviões na força de Ares, te garanto que mesmoassim os bois e as ovelhas deles serão teus. Nãoresistas mais ao sono. Ficar acordado uma noiteinteira deixa borocoxô. Sai desse buraco.” Aocomando de Atena, o sono baixou-lhe sobre aspálpebras, enquanto a excelsa se recolhia ao Olimpo.O sono amortece a vigilância, rompe as algemasdos cuidados, relaxa os membros. Sentada noleito macio, a esposa inquieta renova aflições.Saciada de lágrimas, brotadas do insondável, adivina Senhora ergue preces primeiro a Ártemis:“Ártemis, amada filha de Zeus, quero que tuasfrechas me atravessem o peito, extingam a chamada vida. Já. Um turbilhão poderia arrebatar-me ofôlego para dissolvê-lo nos altos caminhos dovento que vão dar nas refluentes correntes doOceano. Tempestades arrebataram outrora as filhasde Pandareu, órfãs de pais extintos por deuses, masnão lhes faltou o queijo, o mel e o vinho dagraciosa Afrodite, nem a pureza e o saber, concedidospor Hera, nem o talhe ofertado por Ártemis, avirgem, nem os primorosos lavores de Atena.Afrodite subiu ao elevado Olimpo com um pedido

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ao tempestuoso filho de Crono, flóreas núpciaspara as virgens, já que ele é o despenseiro aosmortais de benefícios e de malefícios. Entrementesvieram as Harpias e as lançaram aos braços dasErínias. Quero para mim, senhores do Olimpo, odestino dessas infelizes, para mim os projéteis deÁrtemis. Quero ver com estes meus olhos Odisseu,ainda que seja nas sombrias profundezas da terra.Não quero chamar sobre mim o interesse de homemque lhe seja inferior. Sofrimento sofrível é odiurno, padecido em pranto, carga do coraçãocansado, extinto pelo sopor da noite. Na sombra depálpebras descidas, sucumbem sucessos e insucessos.Um gênio maligno arromba-me, contudo, as portasdo sono com sonhos perversos. Na noite passadadormiu comigo um homem parecidíssimo com ele,imagem de Odisseu ao partir para a guerra. Senti-meradiante, isso me era visão real, não mero sonho.”

A Aurora surpreendeu em seu trono a prece da rainha.Não escaparam a Odisseu choro e vozes. Refletindosobre o ocorrido, formou-se em seu íntimo a suspeitade que ela o reconhecera. Chegou a vê-la à cabeceira.Recolhendo o manto e as peles, Odisseu levou-os à salae os depositou numa poltrona. Saiu da mansão. Levouconsigo o couro de boi para a prece de mãos erguidas:“Zeus, por deliberação tua, por caminhos secos eúmidos, me devolveste à minha terra. Depois de sofrertanto, que uma voz dos que despertam lá dentro ou um sinalvindo de ti, aqui fora, me desvende algo do que virá.”Esta foi a prece. Zeus não deixou de atendê-la.Ribombou um trovão vindo lá do luminoso Olimpo,furou a barreira das nuvens para a alegria do herói.Do palácio lhe veio a voz de uma moendeira, sooupróxima. As moendas do rei ficavam ali. Dozeservas giravam diariamente as mós. Produziamfarinha de aveia e de trigo, energia para os homens.As outras, terminado o trabalho, dormiam. Só esta,

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franzina, continuava no batente. Interrompendoa tarefa, interpretou o sinal ao Senhor: “Zeus pai,monarca dos deuses e dos homens, trovejasteforte desde o céu estrelado sem que se veja uma sónuvenzinha no céu. Parece prodígio. Atende aprece desta coitada que te roga. Concede que esteseja o derradeiro banquete dos muitos celebradospelos pretendentes neste palácio. Os dias gastosna mó para produzir a farinha quebraram a forçados meus joelhos. Seja este o último festim.”O sinal de Zeus e a palavra profética encheram dealegria o coração de Odisseu. Venha a vingança!As escravas acordavam e dirigiam-se às suas tarefas.Algumas, encarregadas do fogo, aqueciam o fogão.Levantando-se, Telêmaco esplendia como um deus.Vestiu-se, ajustou nos ombros a espada cujo fio oprotegia, as sandálias completavam os adereços dedistinção. A lança pontiaguda acentua-lhe a posiçãoguerreira. Falou a Euricléia no limiar: “Mãezinhaquerida, como tratastes nosso hóspede? Recebeupão e vinho ou não lhe destes atenção? Minhamãe, por mais correta que seja, é descuidada.Homens de condição inferior são bem tratados,pessoas distintas não lhe merecem cuidado.”Respondeu-lhe a experimentada Euricléia:“Se a repreenderes, cometerás grande injustiça.Não lhe faltou nada, nem pão nem vinho. Elaofereceu. Ele comeu e bebeu até se fartar.Quando chegou a hora de dormir, tua mãeinstruiu as escravas para lhe preparem o leito.Ele alegou que, castigado de privações,perdera o hábito de camas e almofadas.Dando preferência a um couro de boi e apelegos, dormiu no vestíbulo. Nós o cobrimos.”Telêmaco atravessou a sala de lança em punho.Dois cães moviam pés velozes em torno dele.Tomou a direção da assembléia dos grevadosAqueus. Euricléia, uma escrava distinta, filhade Ops, filho de Pisenor, chamou as escravas:

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“Levantem-se. Ao trabalho! Quero a casavarrida e lavada. Quero estas belas poltronasrevestidas com tapetes de púrpura. Vocês aí,passem as esponjas nas mesas, limpem ascrateras e as taças de asa dupla. E vocês?Mexam-se. Já para a fonte. Precisamos de água.Daqui a pouco, os pretendentes estarão aqui.Vêm cedo. Hoje é dia de festa.” As ordensforam enérgicas, ninguém desobedeceu. Paraa fonte foram vinte. Lá as águas eram sombrias.O trabalho das outras era no palácio. Entraramservidores com ares de entendidos. Puseram-sea cortar lenha como quem sabe. As vinte dafonte voltaram. E veio o porqueiro com trêspeças lustrosas, as mais vistosas do chiqueiro.Ficaram pastando no pátio. Eumeu foiprocurar o estrangeiro. Falou-lhe com jeito:“Como é? Essa gente já olha para ti ouainda te desprezam da maneira de ontem?”Percebia-se ressentimento na resposta:“Eles me ultrajaram. Deviam pagar por isso.São desaforados. Vêm fazer baderna na casade outro. Não têm vergonha na cara.” Assimcorria a conversa. Aproximou-se Melântio, ocabreiro, acompanhado de mais dois. Saltavamas cabras. De cada rebanho as melhoresforam escolhidas para a ceia dos pretendentes.Estavam amarradas no pórtico sonoro. MelântioAproximou-se do rei com palavras mordazes:“Tu ainda por aqui, cara? Por que não deixas deencher o saco destas pessoas? Some poresta porta. Queres que te tiremos daqui a tapa?Tua presença enfeia este lugar. Sabias queexistem em Ítaca outros lugares para comer?”Odisseu engoliu o insulto calado. Sem mexerum só dedo, pela cabeça corria-lhe a catástrofeda corja. Ainda havia um outro, Filécio, umcapataz. Trouxe uma novilha que ainda não tinhadado cria. As cabras vieram de barco. Os

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marinheiros, quando solicitados, transportavamtambém pessoas. Amarrou os animais nopórtico e encheu o porqueiro de perguntas:“Porqueiro, este estrangeiro que apareceu fazpouco em nosso palácio pertence a que gente?Ele tem família? Nasceu onde? Reparaste noporte dele? Parece um soberano caído emdesgraça. Deuses embrenham homens emdescaminhos. Tecem desgraças até para reis.”Aproximou-se de Odisseu, tomou-o pelo braçoe produziu uma revoada de considerações:“Saudações, pai das estranjas. Te desejo felicidadefutura, porque agora és um fedorento na fossa.Zeus dos Céus, ninguém é mais vingativo que tu.Não tens piedade de ninguém. Geras filhos, eordenas que se casem com a Miséria, filha daDesgraça. Quando te vi, senti vontade de chorar.És parecidíssimo com Odisseu. Creio que estejase arrastando por aí, coberto de trapos como tu,se é que seus olhos ainda contemplam a luz do sol.Se já morreu, se já mora no reino de Hades,coitado! Ele me confiou bois para guardar quandoeu ainda era criança, lá na terra dos cefalênios.Desde lá o gado se reproduziu muito. Esta raçade testas-largas deveria crescer só para ele,mas a ordem de que eu os traga vem de outros.Eles os devoram sem dar bola ao filho que viveno palácio. Não os assusta o olho de deus algum.Até já pensam em dividir as propriedades dorei ausente. No meu peito, entretanto, sopramventos de tempestade. Mas o filho dele aindavive. Não seria justo tropear estes boispara terras estranhas. Pior ainda é ficar aquie sofrer por gado que não me pertence. Eu játeria fugido para procurar outro rei que medesse proteção, não agüento mais, se nãoo faço é porque suspeito que ele ainda voltee corra com a corja que infesta o palácio.”Respondeu-lhe Odisseu reflexivo e esclarecedor:

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“Não me pareces desalmado nem desmiolado,boiadeiro. Percebo que tens mente aberta. Ouvirásde mim palavras com força de juramento: Juropor Zeus, o primeiro, o mais sábio, o mais nobre,juro pelo fogo sagrado desta casa que Odisseuregressará ao seu palácio antes de voltares. Sequiseres, poderás vê-lo com teus próprios olhose também os cadáveres dos pretendentes, queagora imperam.” Falou o guardador de bois:“Cumpra-se teu voto com o favor do Cronida.Minha força e meus braços estão a serviço do rei.”As preces de Eumeu pelo regresso de Odisseu,o inventivo, ao lar subiam a todos os deuses.A conversa entre os três corria nesses termos.Os pretendentes tramavam a morte, queriam osangue de Telêmaco. Veio-lhes, entretanto, o vôode uma ave pela esquerda. Uma pomba se debatianas garras de uma águia. Falou-lhe Anfínomo:“Amigos, os auspícios não são bons. Deixemosa morte para depois. Pensemos em comida.” Aadvertência agradou a todos. Entraram nopalácio de Odisseu. Estenderam mantas sobrecadeiras e poltronas. Começou a matança deovelhas grandes e de cabras nutridas. Morreramporcos gordos, morreu um boi de rebanho.Entranhas chiavam no braseiro, vinho girava nascrateras. O porqueiro fornecia as taças. Filécio,um capataz, veio com pães. Coube ao cabreiroMelanteu o papel de copeiro. Ávidas caíamsobre as iguarias as mãos dos banqueteadores.Com acerto, Telêmaco indicou a Odisseunum banquinho chinfrim junto a uma mesinhana soleira de pedra da imponente mansão.Ofereceu-lhe miúdos, verteu-lhe vinho nocálice de ouro e dirigiu-lhe estas palavras:“Este é teu lugar. Participa do banquete. Insultose violência deixa comigo. Tua defesa está emminhas mãos. Não estás em lugar público.Esta casa pertence a Odisseu. Eu a herdei dele.

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Pretendentes, nada de insultos, nada de agressões!Não quero conflitos, não quero brigaria.”Os atingidos morderam os lábios. Estavamestupefatos. Não entendiam a coragem do moço.Antínoo não se conteve, o filho de Eupites falou:“Companheiros, a palavra de Telêmaco foi dura.Ele nos ameaça. Perceberam? O que fazer?Temos que acatá-la. Zeus nos detém. Não fosseassim, já teríamos silenciado essa voz autoritária.”Telêmaco não lhe deu a mínima importância.

Entrementes, os arautos tangiam pela cidade as cemreses consagradas aos deuses. Os cidadãos daslongas cabeleiras estavam congregados na sombrado bosque de Apolo, o deus das setas certeiras.

Assada a carne, os pretendentes a retiraram dobraseiro e a dividiram para dar início ao banquetesolene. Os servos serviram a Odisseu quantiaigual à destinada a cada um. Ordens de Telêmaco.Que os pretendentes se abstivessem de insultosnão correspondia aos planos de Atena. Convinhaà deusa que a dor doesse fundo no coração dofilho de Laertes. Um dos desaforados chamava-seCtesipo, era de Samos e só pensava em baixaria.Confiante em sua imensa riqueza, considerava-secandidato qualificado ao casamento com amulher do rei ausente. Falou aos insolentes:“Ouçam-me, pretendentes de araque. Como é depreceito, o estrangeiro recebeu parte igual a cadaum de nós, há um tempão. Seria indecente, seriainjusto tratar mal um hóspede de Telêmaco. Lá vaio meu presente, pode passá-lo à criadinha que lhelava os pés ou a uma dessas beldades que enfeitameste magnífico palácio do divino Odisseu.” Comisso, botou a garra numa pata de vaca, guardadanum cesto, e a jogou contra o mendigo. O rei,evitando a pancada com uma leve negaça, sorriu

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com ironia. A pata bateu no muro de pedra.Telêmaco atacou o insolente com palavras duras:“Ctesipo, erraste o tiro. Melhor assim. Para ti!De outro modo, a ponta da minha lança teriaatravessado tua carcaça de lado a lado.Teu pai teria te dado cerimônia fúnebre, enão casamento. Ninguém me insulte emminha própria casa. Sei o que é direito e oque não é. Não pensem que ainda sou criança.Sou obrigado a tolerar o que vejo todos os dias:matança de ovelhas, esbanjamento de vinho,de pão. Sou um só contra muitos. Esta é minhadesvantagem. Vocês me tratam como inimigo.Basta! Querem acabar comigo a ferro. Saibamque prefiro a morte a este espetáculo vergonhosoque vocês me oferecem todos os dias. Vocêscalcam aos pés meus hóspedes. Humilhamminhas escravas. Este palácio virou chiqueiro.”Foi um golpe duro. Não se ouvia grunhido.Falou, por fim, Agelau, filho de Damastor:“Amigos, como indignar-se contra alguém quepede justiça? Não é o momento de responder cominsultos. Grosserias contra hóspedes, contradomésticos estão fora de lugar na casa de Odisseu.Eu gostaria de dar um conselho a Telêmaco e asua mãe. É bem-intencionado. Considerem-noassim. Enquanto havia esperança de que Odisseu,rei notoriamente sábio, regressasse, cautelaera compreensível, convinha que os pretendentesnão se precipitassem, aguardassem aqui nopalácio. Preferível seria o regresso de Odisseu.Agora, entretanto, está claro que não haveráregresso. Senta-te ao lado de tua mãe, dize-lheque escolha um nobre, um homem que lhe agrade.O que teu pai te deixou será teu, para teu gozo.Poderás comer e beber. Ela será de outro.”Ajuizada foi resposta de Telêmaco: “Por Zeus,não; não, pelas dores de meu pai, morto oumendigo longe de Ítaca. Não protelo o casamento,

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nem lhe desaconselho escolher quem lhe agrade.Não recuso dote. Temo, entretanto, obrigá-la afazer o que recusa. Não a expulso desta casa.O céu não permita que eu incorra nesse erro.”A essas palavras os pretendentes riam sem parar.Obra de Palas Atena. Tinham perdido o juízo.Tinham cara estranha. A risada os desfigurava.A carne que comiam sangrava. Os olhos erammares de lágrimas. Como se estivessem de luto.Interveio Teoclímeno, com aparência de deus:“Meu Zeus, que peste é esta? Vocês estão coma cabeça enfiada na noite. Arrastam a cara nochão. Gemidos. Choro ensopa as bochechas.Sangue pinga do teto, sangue porejam asparedes. Sombras atravancam a porta, rondamo pátio. Este cortejo de fantasmas? Para oÉrebo? O sol sumiu. Nuvem preta cobre o céu.”Os pretendentes rolavam de rir. Que farra!Despontou a voz de Eurímaco, filho de Pólibo:“Donde é que apareceu este maluco? O que é queestamos esperando? Botem este sujeito noolho da rua. Diz que está escuro. Precisa de luz.”Teoclímeno não perdeu a calma: “Não tepreocupes comigo, Eurímaco. Sei onde é a porta.Não sou cego, não sou surdo e tenho duas pernas.Não sou louco. Minha cachola funciona bem.Já estou indo. Sei que vocês estão afundados namerda até o pescoço. Daqui ninguém de vocêsescapa. Vocês emporcalharam a casa de umhomem divino. Estou cercado de criminosos.”Foi sua despedida. Deixou a mansão. Pireuo recebeu com muito afeto. Os pretendentesse entreolhavam. Puseram-se a provocarTelêmaco. Que hóspedes! Mijavam de rir.Este foi o discurso de um dos supermachos:“Telêmaco, hóspedes piores que os teus nãoexistem. Primeiro nos apareces com estemendigo sarnento, saco furado, borracho,preguiçoso, peso inútil na terra. Não sei

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onde encontraste este profeta. Escuta aqui.Te falo como amigo. Por que não enfiamosestes teus hospedes no porão de um navio?Na Sicília eles poderão ganhar muito dinheiro.”Telêmaco fez ouvidos de mercador. Olhavapara o pai em silêncio. Estava impaciente. Quandoé que ia botar a mão nesses desaforados?

Na sala contígua, Penélope tinha instaladosua poltrona. A cautelosa filha de Icárioacompanhava os discursos com inteligência.O banquete prosseguia na maior alegria. Assadossuculentos. Fartura de animais abatidos.Onde encontrariam uma festa como aquela?Uma deusa e um herói lhes preparavamfestim ainda melhor. Eles o tinham pedido.

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Canto 21

No peito da filha de Icário, a engenhosa Penélope,os luminosos olhos de Atena acendem o certame,um plano, do ferro sinistro e do arco, jogo propostoaos pretendentes, início da batalha ferida no paláciodo rei. Sobe a rainha pela alta escada. Toma namão forte a chave recurva, feita de bronze. Cabode marfim orna o vistoso instrumento. Dirigiu-sea uma câmara reservada, depósito do tesouro real.Acompanham-na escravas. Guardavam-se aí obrasde muitas mãos em bronze, em ouro, em ferro. Láse achava o arco flexível e o carcás das flechassibilantes. Os dardos evocavam pungentes gemidos.Odisseu trouxera arco e flechas de Esparta, presentede um amigo, Ífito, filho de Eurito, homem deatributos divinos. Encontraram-se em Messênia, nacasa de Artíloco, de privilegiado saber. Odisseu foilá para reclamar uma dívida que onerava o povo:o rapto de trezentas ovelhas com seus pastores,perpetrado em Ítaca por piratas messênios. Odisseuviera como embaixador, embora jovem. Percorrerao longo caminho, por ordens do pai e do senado.Uma demanda de cavalos trouxera Ífito. Perderadoze éguas, além de mulas, afeitas ao trabalho.Essa missão seria causa, depois, de sua morte.A Moira o introduziu na casa de um filho de Zeus,Héracles, coração de pedra, ideador de portentososfeitos. Héracles o matou, embora fosse seu hóspede,sem temer o olho divino e sem respeitar a mesaque lhe ofereceu, assassino do homem de quemroubara cavalos. Considerou suas as éguas de rijocasco. Ífito procurava as éguas, encontrou Odisseue deu-lhe o arco, que antes pertencera a Eurito;este, ao morrer, deixara o arco ao filho. De Odisseu

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Ífito recebeu uma espada afiada e uma penetrantelança, princípio de amizade profunda. A mesanão chegou a uni-los. Héracles matou o filho deEurito antes. Ficou-lhe o arco como únicalembrança do amigo, divino no parecer. Odisseununca embarcou para uma guerra com esse arco,recordação de um amigo querido, guardadocuidadosamente em casa para ser usado em Ítaca.A divina mulher chegou à câmara, transpôs o limiar,obra de um carpinteiro hábil. No carvalho, polidoe alinhado, apoiavam se as ombreiras, sustentáculode batentes luzentes. Penélope desatou a correiada argola e introduziu a chave. Correu os ferrolhoscom a força adequada. O ranger dos batentesconfundia-se com o rouco mugir do touro no pastoa rolar pelas verdes campinas. A porta esplendente,tocada pela chave, abriu mugindo passagem. Arainha subiu ao alto estrado onde se alinhavam asarcas. O odor dos vestidos guardados sobe àsnarinas. A mão estendida remove o arco da escápula.O estojo envolvente brilha nas mãos da rainha.Sentada, contempla-o estendido sobre os joelhos.Lágrimas lhe brotam quando tira o arco do estojo.Aliviada da dor que lhe desce úmida pelas faces,dirige-se à sala que congrega seus ilustrespretendentes com o arco flexível e o carcás dassetas cujas pontas suscitam tantos gemidos.As escravas carregavam uma caixa que continhajogos de bronze e de ferro com os quais o reicostumava distrair-se. A rainha se deteve nada sala, junto à coluna que sustentava o teto dopalácio. O véu que lhe cobria o rosto brilhava.Ladeavam-na escravas solícitas. Sem delongas,expôs aos insolentes o plano que tinha em mente:“Pretensiosos pretendentes, atenção ao que tenhoa dizer-vos. Usais esta morada para comer ebeber, quereis para sempre a casa de um homemhá tempo ausente. Pretexto? Alegais um só.Quereis que de um de vós eu seja mulher.

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Está bem! Proponho-vos uma competição:retesar sem dificuldade a corda do arco que aquivos apresento, propriedade do divino Odisseu,e atravessar a série completa de doze machados.O prêmio do vitorioso sou eu. Abandono estacasa que me foi querida, onde passei minha vida.Ela viverá na minha lembrança, nos meus sonhos.”Penélope encarregou Eumeu, o divino porqueiro,de passar o arco e o ferro sinistro aos candidatos.Eumeu se desincumbiu da tarefa com lágrimasnos olhos. Chorou o vaqueiro à visão do arco.Falou Antínoo e foi explícito nas declarações:“Roceiros burros! A inteligência de vocês não dápra mais do que cabe num dia. Choram por quê?Para confundir ainda mais o coração desta mulher?Ela perdeu o marido. Isso já não basta? Comamcalados ou boto vocês pra rua. Lugar de choro élá fora. A arma fica aqui. O que a rainha propõenão é mole. A prova é dura. Repararam nalisura deste arco? Quero ver quem tem muquepara dobrá-lo. Dos aqui presentes não vejoninguém com força igual à de Odisseu. Eu o vina minha infância. Lembro-me muito bem dele.”A esperança verdejava no coração de Antínoo:retesar a corda e vencer a seqüência de ferros.Ele seria o primeiro a provar o gosto das setasdisparadas pela mão certeira de Odisseu querastejava ao desprezo atiçado por Antínoo. Fortefoi a resposta de Telêmaco: “Santos Céus! Zeusme endoidou? Eu julgava que minha mãe fossesábia. Ouço agora que ela quer abandonar estacasa para se juntar a outro! Na minha mentedesvairada estou contente, tenho vontade dedar gargalhadas. Será o prêmio, rapazes? Nãohá mulher como ela nem na Acaia nem nasagrada Pilos nem em Argos nem em Micenasnem em Ítaca nem no fecundo continente.Vocês sabem disso. Não preciso elogiá-la.Esperar o quê? É só armar o arco. Basta de

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Evasivas. Vejamos quem é o sortudo. Queroexperimentar este arco. Se eu conseguir vergá-loe atravessar esses machados, não terei o desgostode ver minha mãe partir com outro, ela não meabandonará neste palácio se, fortudo, eu for capazde ganhar prêmios em concursos, igual a meu pai.”Levantou-se de um salto, tirou o manto de púrpura,desfez-se da espada que trazia no ombro, cavouum longo sulco, alinhou os machados com umcordel, calcou a terra em torno de cada um deles.A habilidade dele deixou todos estupefatos.Como conseguira fazer tão bem o que nunca tinhavisto? Postado na soleira provou o arco. Três vezeso arco resistiu vibrante ao esforço de retesá-lo.Três vezes fraquejaram os braços, mas não avontade de firmar no ferro a corda retesada.Na quarta, determinado a empenhar toda a forçaque tinha, conteve-se a um sinal de Odisseu.Ânimo não lhe faltava. Observou decidido:“Como sou ruim! Depois deste fracasso mechamarão de fracote. Ainda não estou maduropara me defender de agressores raivosos.Está provado que em força vocês me superam.Aqui está o arco. Vejamos quem é o melhor.”Telêmaco deixou o arco no chão junto aosbatentes da porta, lustrosos, brilhantes.Apoiando a flecha na argola, Telêmacoretornou à sua poltrona. Ela o esperava.Antínoo tomou a direção do certame:“Companheiros, parece-me acertado começarpela esquerda, seguindo o exemplo do copeiro.”Ninguém fez objeção. Obedeceram à instrução.Liodes, filho de Enopo, foi o primeiro a entrarno jogo. Era arúspice[1] e seu lugar era no fundoda sala, junto à bela cratera. Só a ele práticasímpias eram odiosas, indignava-se com todos.Foi ele o primeiro a tocar o arco e a seta aguda.Postado no solar, tentou vergá-lo. Esforço inútil.As mãos, delicadas, não habituadas a esforço,

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renderam-se logo. Dirigiu-se aos pretendentes:“Amigos, declaro-me vencido. Tente outro.Este arco vai exaurir o coração e o fôlego demuitos dos melhores. É preferível morrer aviver sem alcançar o objetivo. Frustradosreunimo-nos aqui todos os dias, esperamos emvão. O coração e os projetos de muitos sãomovidos pela esperança de casar com Penélope,mas, quando o candidato vê o arco e o toca, outrabeldade das muitas que esplendem em territórioaqueu vem-lhe à mente. Trate de procuraralhures. Mais fácil será alcançar com dádivas seuquinhão.” Raciocinando assim, deixou o arco.Devolveu a arma à polida porta sem pó. A argolavoltou a apoiar a seta certeira. Retornou àpoltrona que deixara vazia. Antínoo arquitetouum discurso e se expressou nestes termos:“Liodes, que palavra escapou-te da sebe dosdentes? É terrível. Assusta. Tua fala me irritou.Como poderia este arco exaurir o coração e ofôlego dos melhores? O fracassado és tu. Tuamãe (que eu respeito!) não te pariu para tenotabilizares no manejo de arcos e flechas. Entreos pretendentes há gente mais capaz do que tu.”Deu a Melântio, o cabreiro, estas ordens:“Mexe-te, Melântio, quero fogo na sala. Aproximauma cadeira, das grandes, traz uma pele paracobri-la. Busca lá dentro uma grande rodela desebo. Mãos jovens, as nossas, experimentarão oarco ensebado. O fim deste jogo está perto.”A execução da ordem foi rápida. O fogo ardeu.Veio a cadeira e a pele para cobri-la. Veio o sebo,guardado na despensa, uma porção generosa.Jovens tentaram dobrar o arco untado. Semresultado. Faltou fibra. Antínoo se resguardava.Eurímaco, de aspecto divino, também. E eramos líderes dos pretendentes, os mais fortes.

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O vaqueiro e o porqueiro deixaram asala. Transpôs a porta também Odisseu.Deixando atrás de si o grande solar e a contenda,atravessaram o pátio. Odisseu dirigiu-sea eles com palavras bem refletidas e mansas:“Meus caros, cabreiro e porqueiro. Tenho algoa perguntar. Ou me calo? Estou inquieto, precisofalar. Se Odisseu aparecesse de repente – umdeus poderia trazê-lo –, vocês estariam dispostosa ajudá-lo? Ou tomariam o partido dospretendentes? Quero uma resposta franca.”A reação do vaqueiro foi extremamente piedosa:“Zeus, meu pai, meu ardente desejo é que aquelehomem volte. Um gênio poderia trazê-lo. Veriasque minha força e minhas mãos seriam dele.”Eumeu se pôs a invocar todos os deuses peloregresso desse homem interessado em tudo.Quando Odisseu percebeu o que lhes ia no peito,externou-se a eles com palavras claras:“Estou aqui, ‘aquele’ sou eu. Sofri muito. Depoisde vinte anos retorno à minha terra natal. Ao quevejo, só vocês, dentre meus criados, esperam porminha volta. Dos outros não vi ninguém quesuplicasse ardentemente o meu regresso. Apalavra que dou a vocês deverá mostrar-severdadeira em breve. Se o céu me concederaniquilar essa corja, prometo-lhes mulher,bens e casa perto da minha. Tratarei vocêsdois como se fossem irmãos do meu filho.Mostro-lhes um sinal garantido. Não guardemdúvidas no peito sobre mim. Esta cicatriz élembrança que me deixou um javali, uma feridaaberta numa caçada com meus primos.”A cicatriz, removidos os farrapos, confirmou aspalavras. A prova os convenceu a ambos. Emprantos abraçaram o sábio Odisseu. Beijaram-lhe afetuosamente a testa, os ombros. Odisseurespondeu com abraços e beijos. O choro ossacudiu até aos últimos raios de sol. As palavras

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do rei encerraram as manifestações de afeto:“Fim de gemidos, de pranto! Alguém lá dedentro poderia surpreender-nos. O que não nosconvém. Voltem à sala, não juntos, um depois dooutro. Primeiro entro eu, vocês vêm depois. Asenha! Aqueles babacas não vão consentir queo arco e o carcás cheguem perto de mim.Eumeu, quero que me tragas o arco e o depositesna minha mão. Leva depois ordens às mulheres,que fechem bem todas as portas do palácio.Nenhuma delas deverá sair, nem se perceberruídos ou gritos de homens. Cada uma continue afazer o que fazia sem um pio. Teu serviço, meucaro Filécio, será passar o ferrolho na porta dopátio. A saída deverá estar fechada com segurança.”

Findos os acertos, os três voltaram ao imponentepalácio. Odisseu retornou à cadeira de antes.Os dois escravos entraram mais tarde.O arco estava nas mãos de Eurímaco. Girando-o,ele o aquecia ao fogo de todos os lados. Nem assimconseguiu vergá-lo, golpe severo no seu orgulho.O ódio dificultava-lhe exprimir o que sentia.“Céus, sofro por mim mesmo, sofro por todos.Minha decepção é mais profunda que o perdidomatrimônio. Mulheres há muitas, tanto nestailha como nas outras cidades. Nossa força nãoalcança o vigor do divino Odisseu. Isso meamargura. Ninguém de nós consegue vergar estearco. Como legar esta vergonha aos nossosfilhos?” A opinião de Antínoo foi bem diferente:“Sabes muito bem, Eurímaco, que isso não vaiacontecer. Hoje é o dia de Apolo. A cidade todaestá em festa. Quem se animaria a manejar oarco num dia destes? Que descanse! Os machadoscontinuarão armados. Creio que ninguém entraráno palácio do filho de Laertes para tirá-las daqui.Venha o vinho para honrar os deuses. Copeiro!

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Arco e frecha fiquem para a ocasião propícia.Amanhã cedo será a vez de Melântio. O cabreirovirá com os melhores animais de todos osrebanhos. Renderemos culto ao frecheiro Apolo.Amparados por ele, levaremos o certame ao fim.” Aproposta de Antínoo recebeu entusiáticos aplausos.Os arautos lhes verteram água sobre as mãos.Escravozinhos encheram as crateras até às bordas.O vinho fulgurou nos cálices, início do sacrifício.Libaram e beberam até mais não poder. Odisseujulgou oportuno o momento para executar o ardil:“Pretendentes à mão da renomada rainha, permitamque lhes diga o que meu coração manda. Dirijo-meem especial a Eurímaco e a esse homem divino quese chama Antínoo. Este propôs sensatamentepôr de lado o arco, prestar homenagem aos deusese esperar que amanhã Apolo dê forças a quem lheagrada. Peço que me concedam o arco polido.Gostaria de provar, na presença de vocês, a força demeus braços. Não me faltava tutano nos ossosoutrora. Vida errante e incerta o teriam consumido?”As palavras de Odisseu irritaram todos.Temiam que pudesse vencer a resistência do arco.A reação de Antínoo foi violenta:“Vagabundo, perdeste completamente o juízo?Não te basta participar em silêncio de nossosagitados banquetes? Nada te falta. Levas ainda avantagem de escutar nossos discursos, nossasconversas. Isso não é permitido a ninguém. Nãoadmitimos estranhos; mendigos, muito menos. Ovinho te pegou. Isso acontece quando se bebesem medida. Vítima desse mal já foi Eurício, umcentauro ilustre. Cometeu maluquicesno palácio de Perítoo na terra dos lápidas. Ovinho virou-lhe a cabeça. Comportou-se comoum animal. Atacaram-no enfurecidos.Arrastando-o para fora, cortaram-lhe a ferronariz e orelhas. A bebida subiu-lhe à telha elhe turvou a visão. Sofre por ser destrambelhado.

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A origem da guerra entre homens e centauros foiessa. O bebum foi responsável por seu própriomal. Eu te profetizo mal igual se insistes naloucura de vergar o arco. Em nossa terra, tu nãoacharás compaixão. Vamos te mandar para longe,para o reino de Équeto, flagelo de todos oshomens. De lá não sairás vivo. Bebe calado, nãodesafies homens que são mais moços que tu.”Penélope interveio na discussão com sabedoria:“Antínoo, não é decente, não é justo desvalorizarhóspedes de Telêmaco, gente que nos procura.Crês que este estranho, se conseguir dobrar o arcode Odisseu, fiado nos músculos, no muque, nagarra, vai me levar para me fazer mulher dele?Essa idéia não lhe passou pelo bestunto. Tenhocerteza que esse absurdo não inquieta vocês. Estáfora de propósito. Ele continuará comendo aqui.”Eurimaco resumiu a preocupação de todos:“Filha de Icário, sensata Penélope, que ele nãote levará daqui, sabemos. Não seria concebível.Receamos a língua de homens e mulheres.Um sujeito desqualificado poderia observarmaldosamente: homens inferiores cortejam amulher de um grande. Nem o arco dele sabemvergar. Veio um outro, um andarilho miserável,vergou o arco num zás e venceu os machados.Uma observação dessas nos envergonharia.”Sábia foi a resposta de Penélope:“Que respeito popular merecem homens quedesonram e consomem os bens de um nobre?Qual é tua posição diante dessa infâmia?Já reparaste a estatura deste estrangeiro, o porte?Ao que ele diz, pertence a uma família distinta.Por que não testá-lo? Dêem-lhe o arco.Empenho minha palavra, cumpro o que prometo:Se ele dobrar o arco, se Apolo lhe conceder essahonra, ele terá túnica, capa e o mais. Eu lhe dareiuma lança pontuda, escolta de homens e cães,espada de dois gumes, providenciarei sandálias,

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terá recursos para ir aonde o desejo o levar.”Interveio Telêmaco com muita autoridade:“Mãezinha, dos aqueus ninguém mais digno doque eu para negar ou oferecer este arcoa quem eu bem entender, venham desta ilha,venham das pastagens de Élida. Ninguém meimpedirá de fazer com este arco o que quero.Se quero que o vencedor o leve, quem dirá ‘não’? Recolhe-teaos teus aposentos. Cuida das tuas coisas:tear, roca, o trabalho das tuas escravas. O arco éda competência dos homens, da minha mais quede ninguém. Quem manda nesta casa sou eu.”Tonta de espanto, Penélope foi para o quarto.A palavra autoritária do filho calou fundo. Tendosubido ao pavimento superior com as escravas,pôs-se a chorar a ausência do querido esposoaté Atena baixar-lhe as pálpebras sonolentas.O porqueiro entregou respeitoso o arco a Odisseu.O vozerio dos pretendentes na sala foi grande.Vozes de supermachos subiam da multidão:“Pra onde vais com esses arco torto, porqueiro demerda? Lelé da cuca! Teus próprios cachorros,que comem da tua mão, vão te devorar lá noscafundós. É só Apolo nos ajudar. E o céu.”Assustado, Eumeu largou o arco no chão alimesmo. O berreiro se espalhara pela sala inteira.Telêmaco gritou ao porqueiro do outro lado:“O que houve, meu caro? Leva-lhe o arco. Quem éque te dá ordens? Olha, sou mais moço que tu.Te mando ao campo a pedradas. Sou mais forte.Eu gostaria de ser mais robusto de braços e decorpo do que todos os pretendentes. Faria umalimpeza geral nesta casa. Mandaria muita gentepara longe. Acabaria com maquinações criminosas.”Os pretendentes morriam de rir do que Telêmacotinha dito. O riso abafou até o ódio. O porqueirotomou ânimo, agarrou o arco e o depositou nasmãos de Odisseu, que o aguardava sem se mover.Eumeu procurou, em seguida, Euricléia:

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“Telêmaco conta com tua inteligência, Euricléia.Ele quer que tranques todas as portas da sala.Se alguma de vocês ouvir gemidos de genteou barulho na peça fechada, não se mexam,continuem o trabalho. Não se alarmem.”

A escrava ficou muda. A resposta dela tomboucomo ave sem asas. Trancou bem as portas.Sem bulha Filepo saltou para fora da sala.Fechou bem fechadas as portas do pátio.Encontrou sob o pórtico o cordame duma nau.Cerrados os batentes com o forte papiro,retomou seu posto, a cadeira que deixara,preso o olhar em Odisseu. O rei virava erevirava, observando o arco te todos os lados.A carcoma teria roído o corno, ele ausente?Vozes vizinhas soaram-lhe aos ouvidos:“Que olho pra arcos, que mãos pra apalpá-los!Terá em sua casa arma igual? Não me digaque pretende fabricá-los? Um mendigo!O arco dança em suas mãos. São de mestre.”Não faltou a voz de um supermacho, dosmoços: “Que o azar ao pretender vergá-loo persiga em todos os momentos da vida!”As observações dos pretendentes não abalaramo meticuloso exame de Odisseu. Imaginem umprofissional entendido no canto e na liraque com leves dedos trata a tripa e a ajustaretesada em uma e outra cravelha. Não foioutra a arte de Odisseu ao vergar a arma.A corda tine ao toque dos dedos do mestre.Cicios como de andorinha circulam na sala.Susto sacode os presentes. Sangue não lhesresta no rosto. Ribomba trovoando a voz de Zeus.Regozijou-se o corajoso coração do rei sofredorcom o ruidosa aprovação do filho de Crono.Tomou nas mãos uma seta veloz que o seduzianua sobre a mesa. No carcás dormiam caladas

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as outras. O sabor delas saberia em breve o corpoda corja. Ajustada a seta, puxou entalhes e corda.Ali mesmo, na banqueta em que estava sentado.Feita a mira, a flecha não falha, perpassa oorifício de todos os machados e acha o fim nofundo. Falou triunfante ao filho: “Telêmaco,não te envergonha o estrangeiro sentado emteu solar. Alvejei a meta e estirar a corda nãome tomou muito tempo. Forças me restam.Não procedem os ultrajes dos pretendentes.Prepare-se a ceia dos convivas enquanto vivabrilha a luz. Canto e dança prolonguem osencantos da festa, coroa de lautos banquetes.”A uma significativa piscadela, Telêmaco, seudivino filho, cinge a cortante espada. A lançaem punho, tomou posição ao lado do pai.Brilha o bronze que lhe reveste o corpo.

[1]. Sacerdote que predizia o futuro por meio do exame das entranhas das vítimassacrificadas. (N.E.)

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Canto 22

Odisseu, farto em planos, arranca os farrapos docorpo, salta ao espaçoso limiar com o arco e ocarcás carregado de frechas. Esparramados os velozesprojéteis a seus pés, a voz valente perpassa o espaço:“Ah! Ah! Acabou o acirrado certame. Mas não meescapa novo escopo, fora da mira de outro frecheiro.Saberei alcançá-lo se Apolo me conceder esta glória.”Antínoo chama-se o alvo da seta certeira. O ouroda taça subia-lhe fulgurante aos lábios. Duplas eramas asas, erguidas por mãos decididas. Rubro rutilavana taça o vinho. A morte não lhe anuviava a mente.Quem pensaria durante folguedos de banquete queum só se lançaria contra muitos, ainda que fosse omelhor, com negros planos de morte e matança?Zuniu a seta. Odisseu visou a garganta. A pontaperfurou a delicada pele do pescoço. Antínoo caiude costas. A taça saltou das mãos do ferido. Dasnarinas esguichou um jato de sangue. O pé bateubrusco na perna da mesa. As iguarias rolaram pelochão. Pão e assados se perderam no pó. O tumultoalvorotou toda a sala. À vista do homem tombado,os convivas saltaram das poltronas, corriam tontose sem rumo. Mãos deslizavam pelas paredes polidasem busca de armas. Sem escudos nem dardos, assuperfícies se alongavam vazias. De mãos vazias,dardejam contra Odisseu palavras de fogo:“Tuas frechas cavam tua cova, miserável. Nãoestarás presente em outros combates. Tua sortefunesta é certa. Mataste um jovem da mais altanobreza de Ítaca. Abutres comerão tua carne.”Gritavam por gritar. Não entendiam a morte.Pensavam num acidente. Os tolos não compreendiamque a morte estava preparada para todos.

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Olhando torto, falou o manhoso Odisseu:“Cachorrada! Vocês pensavam que eu não voltariamais? Foi por isso que vocês saquearam minha casa?Violentaram minhas escravas. Dormiam com elas.Tentaram seduzir minha mulher, e eu não estavamorto. Vocês não respeitam os deuses, senhoresdo espaço imenso, nem a vingança de homensultrajados? Quem vai para cova são vocês!”A fúria de Odisseu os deixou pálidos de medo.Ficaram tateando para fugir da morte. Ninguémtinha coragem de lhe falar. Eurímaco foi o único:“O Odisseu de Ítaca és tu? Então voltaste! Tensrazão. Houve muitas irregularidades durante tuaausência, aqui no palácio e lá no campo. O culpadode tudo está ali no chão, foi Antínoo. A iniciativafoi sempre dele. O casamento não foi seu objetivomaior. Os planos dele eram outros. O filho de Cronoimpediu que ele chegasse ao que pretendia[1]. Ele queriaser rei de Ítaca. Para remover todos os obstáculos,chegou a planejar a morte do teu filho. Recebeu aparte dele, a morte. Rogo-te que poupes os demais.Com a ajuda do povo, serás indenizado de todosos prejuízos. O que comemos e bebemos seráreposto. De cada um de nós receberás o equivalentea vinte bois. Pagaremos em bronze e ouro o valorque estipulares. Antes disso, tua ira é compreensível.”De olhar enviesado respondeu-lhe Odisseu, ardiloso:“Não, Eurímaco, nem que me oferecessem toda aherança, propriedades atuais acrescidas de outras,nem assim vocês deteriam minha mão vingativa.Não paro enquanto não tiver extinguido os excessosde todos. Lutem ou desapareçam se não queremmorrer. Outra escolha não há. Querem minhaopinião? Ninguém de vocês escapará da morte.”Essas palavras amoleceram os joelhos e o coraçãode todos. Eurímaco tentou encorajá-los:“Amigos, não há como deter o braço deste sujeito.O arco e o carcás estão com ele. A intenção deleé frechar até matar-nos a nós todos. Vamos para

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cima dele. Arranquem das espadas e protejam-secom as mesas contra estas flechas mortíferas.Se em ação conjunta tivermos êxito em removê-lo da soleira e da porta, ganharemos a cidade.Um grito nosso provocará rebelião geral. Será oúltimo tiro deste valentão.” Falou e puxou daespada. Era uma arma afiada e de dois gumes.De bronze em punho lançou-se contra o adversáriocom brados de guerra. No mesmo instante, Odisseudisparou uma seta contra ele. Feriu-o no peitoabaixo do mamilo. O ferro furou-lhe o fígado.A espada escapou-lhe das mãos e rolou pelo chão.Tonto, tombou sobre uma mesa. Voaram cálicese assados. Caiu com a cara no chão, o coraçãoestremeceu. Os dois pés abalaram a poltrona naqueda. A sombra obscureceu-lhe a visão.Anfínomo lançou-se contra Odisseu com o fioda espada desnuda. Objetivo: abrir caminho àporta. A lança de Telêmaco o atingiu pelas costas.O ferro o espetou entre as espáduas, a pontaapontou no peito. Estrondou o tombo, o embateda testa na terra. A longa lança plantada nocorpo balouça. Telêmaco bate em retirada. Otemor demanda recuo. Uma espada aquéiapoderia persegui-lo se tentasse recuperar alança. Seria forçado a fugir? O golpe o atingiriainclinado? Apressa o passo. Instala-se ao ladodo pai. Pondera prudente o filho de Odisseu:“Vou buscar um escudo, pai, mais duas lanças.Um capacete de bronze te será útil para protegera cabeça. Preciso de uma couraça. Tratarei dearmar o porqueiro e o boiadeiro. O combatedemanda cautela.” Falou preocupado Odisseu:“Rápido! Antes que acabem as frechas.Estou só. Poderiam tomar a porta.”Telêmaco fez como lhe ordenara o pai. Correupara a câmara das armas gloriosas. Apanhouquatro escudos, muniu-se de oito dardos. Ostufos de crina ondulavam nos elmos de bronze,

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quatro. Não tinha tempo a perder. O pai contavacom ele. Cobrir-se de bronze foi a primeiraprovidência. Armaram-se os outros dois. Os trêsprotegiam os flancos do luminoso guerreiro.Audaz na defesa do posto, as flechas disparamdo arco de Odisseu. Um por um caem os corpos.Amontoam-se na sala pretéritos pretendentes.Míngua a reserva de setas. Disparada a derradeira,o guerreiro descansa o arco numa das colunasque sustenta o elevado teto do palácio real.Quatro couros revestem o escudo que lhe protegeos ombros. Crinas se levantam no casco quecobre a cabeça robusta. O movimento do penachoassombra. Cintila o bronze na ponta das lanças.Abria-se no topo da escada uma portinhola,guarnecida de fortes batentes. Ela dava acesso,através de um corredor, ao lado de fora. Lá oporqueiro montava guarda, por ordem de Odisseu.Esta única saída requeria vigilância dobrada.Agelau grita a todos que podiam ouvi-lo:“Amigos, subam à portinhola. Digam a todoso que está acontecendo. Alvorocem o povo.Com auxílio externo, ele terá dado o último tiro.”Observou Menântio, o guardador de cabras:“Não é fácil, divino Agelau. A portinhola, muitoestreita, fica próxima da imponente portacentral. Basta um único valente para defendê-la.Deixem comigo. Trago armas da câmara. Conheçoo único lugar em que Odisseu e seu filho poderiamguardá-las. Em breve estaremos armados.” A estaspalavras, o cabreiro Menlântio esgueirou-se paraalcançar, por aberturas, a câmara de Odisseu. Voltoucom uma dúzia de escudos, uma dúzia de lanças,uma dúzia de capacetes, todos de bronze e penacho.As dúzias passaram logo às mãos dos pretendentes.Os joelhos e o coração de Odisseu fraquejaram.Corpos revestiam o bronze, lanças alongavambraços. Agrandara-se a luta. As palavras de Odisseuzuniram como lanças nos ouvidos de Telêmaco:

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“Fomos traídos por mulheres? Atacam-nos coma mão armada de amantes ou o traidor é Melântio?”Telêmaco devolveu-lhe palavras de constrangimento:“Não, meu pai, o erro foi meu. Não lances a culpasobre mais ninguém. Não fechei a porta. Deixei-aencostada. A esperteza do espião me venceu. Sebonas canelas, Eumeu, tranca já essa porta. Verificase putas estão metidas nisso ou se isso é, comopenso, obra dum filho-da-puta, o cabreiro Melântio.”Ordens e dúvidas atravessavam os ares. O cabreironão perdeu tempo. Voltou à câmara para seabastecer de outras armas. Não eram belas? Dessavez o porqueiro o percebeu. Falou a Odisseu:“Divino filho de Laertes, Odisseu, rico em recursos,a suspeita estava certa. O cabreiro é o sujeitomisterioso. Está na câmara. Quais são tuas ordens?Mato o desgraçado se conseguir agarrá-lo ou oarrasto até aqui para que tu mesmo dês umalição nesse desaforado? Por aqui aprontou muitas.”Odisseu pensou em medidas mais duras:“Eu e Telêmaco nos encarregamos de encurralaros arrogantes aqui na sala, por mais que esperneiem.Tratem dele vocês dois. Atem-lhe pés e mãos àscostas. Joguem-no para dentro da câmara. Prendam-no numa tábua. Suspendam-no com uma cordatorcida nas vigas. Tranquem bem a porta.Quero que o safado sofra até o último alento.”Eram todo ouvidos. Puseram mãos à obra.Dirigiram-se à câmara sem serem percebidos pelotraidor, já dentro. Farejava armas lá no fundo.Os dois puseram-se de emboscada nas ombreirasda porta. Melântio, o cabreiro, apareceu com umcapacete numa das mãos, na outra trazia um escudo,grande e velho, coberto de ferrugem – pertencera aum herói, Laertes, sua arma quando jovem.Fora de uso, as correias se rompiam. Os dois selançaram em cima dele e o arrastaram para dentropelos cabelos. Atirado ao chão, ele tremia que nemvara verde. Doeu o nó que lhe imobilizou pés e

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mãos. Dobraram-no para trás conforme instruçõesrecebidas do filho de Laertes, que já sofrera muito.Com uma corda que lhe envolvia o corpo, eleso suspenderam numa viga. Balouçava no alto.Tu o insultaste, Eumeu, com palavras duras:“Boa noite, Melântio, ficarás aqui de sentinela.Repousa, a teu gosto, em leito macio. A Aurora,que se levanta do Oceano em seu trono de ouro,se lembrará de ti para que possas cumprir com teudever: cabras para o banquete dos pretendentes.”Eram uma tortura os laços que o imobilizaram.O porqueiro e o boieiro se armaram, trancaram aporta e se juntaram ao brilhante e inventivo Odisseu.Chegaram cheios de vigor. Agora eram quatro osque defendiam o solar contra muitos guerreiros nasala. Aproximou-se Palas Atena dos quatro. No corpoe na voz, ela se assemelhava a Mentor. Aliviado,Odisseu dirigiu-se a ela: “Mentor, preciso de ajuda.Não me deixes neste aperto. És meu aliado. Já tedei uma mão. Me faz falta alguém da minha idade.”Odisseu suspeitava que Mentor fosse Atena.Os pretendentes ameaçavam na outra ponta – o filhode Damastor, Agelau, mais que todos: “Mentor, nãote deixes seduzir pelas palavras de Odisseu.Não ataques os pretendentes. Não te juntes a ele.Presta muita atenção ao que tenho a te dizer. Depoisque tivermos acabado com estes, o pai e o filho,vai chegar tua vez. A morte será a paga dos teusplanos. Tua cabeça é o preço de tuas tramas.Ferida a ferro a agressividade que vos distingue,atacaremos tuas riquezas em casa e fora de casa.Recolheremos as tuas e as de Odisseu no mesmomontão. O sangue de teus filhos e de tuas filhasfluirão juntos. A livre vadiagem de tua mulher pelasruas da cidade acabará.” Enfurecida com os insultos,Atena abordou Odisseu com palavras furiosas:“Onde está, Odisseu, a valentia, a coragem quetinhas quando te bateste por nove anos pelos alvosbraços de Helena? Bancaste o herói porque ela era

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bem-nascida? Avançavas e matavas em refregasterríveis. A cidade de Príamo caiu por vontade tua.E agora? Na tua própria casa, em defesa do que éteu, na cara de pretendentes te mostras frouxo?Às armas, querido. Olha para mim. Mentor temostrará como se lida com inimigos. Veráscomo o filho de Álcimo sabe retribuir favores.”As palavras de Atena ainda não asseguravamvitória decisiva. Interessava-lhe provar o valore a força de Odisseu e de seu esplendente filho.Bateu asas e na forma de andorinha empoleirou-senuma viga da sala enegrecida pela fumaça. Agelau,filho de Damastor, se pôs a encorajar os restantes.Aliaram-se Eurínomo, Anfimedonte, Pólibo,Demoptólemo e Pisandro, filho de Políctor. Dospretendentes estes eram os mais ilustres. Aindaestavam vivos e lutavam para continuar a respirar.Os outros, o arco e as setas já os tinham derrubado.Mas estes a palavra de Agelau mantinha de pé.“Amigos, o cansaço vencerá logo as mãos operosasdeste homem. Mentor proferiu palavras vazias ese foi. Ficaram sozinhos na soleira da porta.Não convém disparar ao mesmo tempo todas aslanças. Limitemo-nos a seis. Se Zeus nos concedera glória de abater Odisseu, estaremos seguros.Os outros não nos oferecerão resistência.”Orientados por essa tática, prosseguiram asoperações. Palas Atena inutilizou todos os lances.Um dos dardos bateu num pilar sem causar danos.Outro não venceu a sólida resistência da porta.Um terceiro balouçava com a ponta de bronzeenfiada na parede. Todos os lances falharam.Soou a voz divina do Odisseu empreendedor:“Amigos, chegou a minha vez de dar ordens.Nosso alvo é esse bando de insolentes. O desejodeles é um só: coroar com nosso sangue a seqüênciade seus crimes.” Zuniram certeiras no disparo assetas. Odisseu matou Domoptólemo. Telêmacomatou Euríades. O porqueiro matou Élato. Pisandro

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caiu vítima do corajoso guardador de bois.Todos findaram com os dentes no pó do solo semfim. Os pretendentes recuaram para um canto. Osquatro saltam sobre cadáveres e resgatam lanças.Os pretendentes responderam com uma rajada delances, na maioria inutilizados por Palas Atena.Um bate num pilar, outro se estatela na porta.Além de zunidos, estalidos, vibrações – nada.A férrea ponta de um dardo furou a parede.Anfimendonte foi mais feliz. Feriu Telêmaco nopulso. Arrancou-lhe pele e só. A lança de Ctesipoescoriou o ombro de Eumeu por cima do escudo,mas o ímpeto da arma esmoreceu no chão.A ponta dos dardos dos companheiros de Odisseupenetrou afiada na carne da corja metida no canto.O arrasa-cidades Odisseu abateu Euridamante.Telêmaco acabou com Anfimendonte. O porqueiroliquidou Pólibo. Um lance do valente boiadeiroapagou Ctesipo. Gritos festejaram o golpe no peito:“Toma, boca grande, conta vantagens agora. Valeua pena ser louco? Para os deuses o que é dos deuses!Convenhamos, os lá de cima são melhores que tu.Um lançaço em troca da pata de vaca que atirastena cara de Odisseu como presente de hóspede.”Vociferava o guardador das reses cornudas. Odisseuabateu de lança o filho de Damastor. Telêmacofurou a barriga de Leócrito, filho de Evenor. Alança entrou num lado e saiu no outro. O infeliztombou de bruços, estatelando a testa no chão.Chegou a vez de Atena. A deusa ergueu omortífero escudo no teto. As tripas dos outrosdesandaram. Corriam assustados pela sala feitomanada de vacas, picadas sem dó pelo ferrão demutucas em dias espichados da primavera.Imaginem aves que descem das nuvens, fugindodas garras das águias e de seus bicos aduncos,caçadores os matam embaixo. Escapar paraonde? O desastre tolhe tentativas de fuga.Camponeses dos vales festejam a fartura da presa.

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Os quatro abatiam assim os pretendentes emdesvairada correria pela sala. Crânios partidosrolavam pelo chão banhado de sangue.No entrevero, Liodes, agarrado aos joelhos deOdisseu, largou lamentos nos ares:“Piedade, Odisseu, a quem de joelhos te implora.Não botei a mão em nenhuma das mulheres aquido palácio, não molestei nenhuma. Segurei quemse fazia de engraçadinho. Acontecia safadezaporque não me obedeciam. Deram-se mal. Foijusto o que lhes aconteceu. Eu andava de olhoneles, dever sagrado meu. Deveria jazer mortocom eles? Não haverá outra paga para os bons?”Odisseu lhe respondeu de olhar atravessado:“O quê? Andavas de olho neles? É disso que tegabas? Rogavas que eu morresse por longe,que gorassem meus doces sonhos de regresso.Desejavas minha mulher. Querias botar filhona barriga dela. Morre como os outros, safado.”Arrancou da espada. A mão forte de Odisseugolpeou Agelau. O corpo estrebuchava no chão.Enfiou-lhe o ferro no pescoço. Emitia sons a cabeçaque rolava no pó. Escapou da matança Fêmio, filhode Térpis, o aedo que involutariamente cantavaos pretendentes. Com a lira em punho, ele seencontrava perto da porta de trás, indecisoentre duas providências. Sairia para se refugiarno altar de Zeus, protetor de suplicantes, a quemOdisseu, filho de Laertes sacrificara assíduoquartos de muitos bois, ou seria preferível quese lançasse aos pés do herói e lhe rogasseclemência? Esta segunda medida lhe pareceu amais indicada, dobrar-se diante do rei.Depositou a lira bojuda no chão entre crateras epoltronas ornadas de prata, aproximou-se deOdisseu, abraçou-lhe os joelhos com palavrasque, súplices, tocaram os ouvidos do Senhor:“Aqui me tens de joelhos, Odisseu. Suplico-tepiedade. Assassinar um cantor te trará aflições.

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Minhas odes encantam deuses e homens.Sou autodidata, contudo o dom de cantar foiplantado em mim por um deus. Acolhe,portanto, meu canto como voz divina. Não medecapites. Teu filho poderá confirmar queexerci minha profissão nesta casa contra minhavontade. Os pretendentes me obrigavam acomparecer. Eram numerosos e mais fortes.”As palavras do aedo não escaparam a Telêmaco,ali perto. O filho de Odisseu socorreu o suplicante:“Um momento! Não desças o ferro sobre uminocente. Rogo também por Medonte. O arautocuidou de mim quando eu era criança. Esperoque ainda esteja vivo. Filécio o poderia termatado ou o porqueiro aqui no entrevero.”Medonte o escutou amedrontado. Ele tinhase escondido debaixo de uma poltrona.Enrolara-se numa pele de boi para não morrer.Deixou o esconderijo, livrou-se da pele ecorreu para abraçar os joelhos de Telêmaco.As palavras lhe voavam em favor da vida:“Caríssimo, aqui estou, não permitas que eu morra.Que o ferro triunfante do teu pai não me tire a vida!Não me confunda com esses pretendentes que lheconsumiam os bens e não te respeitavam.”Respondeu-lhe o próprio Odisseu sorridente:“Não tenhas medo! Deves a vida a meu filho.Não te esqueças da lição e ensina-a aos outros:o bem é muito mais forte que o mal. Deixemagora a sala, vocês dois. Esperem lá fora. Nãoquero você e o cantor neste ambiente de matança.Deixem-me concluir o que ainda deve ser feito.”Os dois procuraram outros ares. Aproximaram-se do altar do grande Zeus. Com os olhos aindaatulhados de cadáveres, observavam os arredores.Odisseu examinou a casa. Um pretendente,enfiado em algum canto, poderia ter escapado damorte. Subia uma montanha ensangüentada decorpos imundos. Pareciam peixes arrastados do

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mar alvacento em redes apertadas, empilhadosna areia da praia pelas mãos habituadas dospescadores. De nada lhes vale o apelo às ondas.Os raios brilhantes do sol extinguem-lhes a vida.Assim jaziam os corpos dos pretendentes. Decabeça incansável, Odisseu dirigiu-se ao filho:“Telêmaco, quero a ama. Vai chamá-la.Preciso transmitir-lhe o que tenho em mente.”Telêmaco fez o que o pai lhe tinha pedido.Batendo à porta, falou à previdente Euricléia:“Vem cá, veneranda, já que o serviço dasescravas do palácio está subordinado a ti.Meu pai quer ver-te, tem ordens a te dar.”Euricléia estava muda, sentia na gargantapalavras sem asas. Abriu, entretanto, a portae avançou. Telemaco orientou-lhe os passos.A ama encontrou Odisseu cercado de corpos.O guerreiro, sujo de sangue, tinha o aspectode um leão que acabava de devorar um bezerro,com o peito e as mandíbulas rubras. Apavoraa visão de uma fera ensangüentada. Coberto demanchas escuras da cabeça aos pés, o aspectode Odisseu não era diferente. Diante daqueleespetáculo sanguinolento de cadáveres, a amagritou de alegria. A obra estava feita.Conteve-a o rei. Vieram as recomendações:“Te aquieta, mulher. Goza calada. Nada deexpansões. Jubilar sobre cadáveres é ação ímpia.A Moira[2] e os próprios delitos os tombaram. Doshabitantes da terra, não respeitavam ninguém.Insultavam bons e maus, fosse quem fosse.Tiveram o destino que a insolência pedia.Das escravas, quero saber de ti, quem secomportou bem e quem não merece respeito.”Na resposta da ama estava o afeto por ele:“Não tenho motivos, filho, para te ocultar averdade. Tens aqui no palácio cinqüenta escravas.Elas aprenderam a cardar lã e todoserviço que escravas devem fazer. De todas elas,

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doze não prestam. Não me respeitam amim nem a Penélope. Teu filho é adulto,faz pouco tempo, por isso Penélopenão queria que ele desse ordens a escravas.Permite que eu suba e conte as novidadesa tua mulher. Graças a deus, ela ainda dorme.”Essa situação não desarvorou Odisseu:“Ainda não. É melhor que continue dormindo.Me traz as escravas, as sem-vergonha.”A velha atravessou a sala para dizer às escravasque o patrão tinha voltado e queria vê-las.Odisseu chamou Telêmaco, o boiadeiro eo porqueiro para lhes dar novas instruções:“Limpem a sala. Removam os cadáveres. Asmulheres se ocupem com os móveis. Quero verpoltronas e mesas tinindo. Lavem e escovemtudo. Quando a sala estiver em ordem, tratemdas mulheres que emporcalharam este belo palácio.Levem-nas para atrás do galpão. Cortem-lhes acabeça lá perto do muro. Quero ver se depois doúltimo suspiro ainda se lembram de Afrodite. Asputas dormiram com os pretendentes. Um desaforo!”Veio o bando das doze mulheres. Choravam euivavam que nem cadelas. Arrastar os cadáverespara fora foi o primeiro trabalho imposto.Empilharam os presuntos no pátio embaixo dopórtico. Odisseu comandava pessoalmente oserviço. Com ele não tinha moleza. Era na marra.Seguiu a limpeza de poltronas e mesas. Rios deágua. A esfregação comia os olhos das esponjas.Pás nas mãos de Telêmaco, do boieiro e doporqueiro raspavam o pavimento para deixar tudoum brinco. Levar a sujeira para a rua era o serviçodas escravas. Por fim o palácio inteiro luzia. Chegoua vez das escravas. Empurraram-nas porta afora.Mantiveram-nas encurraladas entre o galpãoe o muro. Não havia mais saída. Telêmaco foi bemmais severo do que Odisseu: “Essas porcas nãomerecem morte limpa. Na cama dos que pleiteavam

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a mão de minha mãe, essas nojentas derramavamporcaria na minha cabeça e na da mulher que me gerou.”Agarrou o cabo de um navio e o firmou no galpãoe num poste. Apertou o nó no pescoço de cada umadelas. As suspensas esperneavam no ar. O quadrolembrava tordos ou pombas, presas em redes armadasnos ramos, batendo asas em leitos fúnebres quandobuscavam a fofura do ninho. Esse era o espetáculode pescoços quebrados e cabeças pendidas. Tristefim de embalos noturnos! Os pés caminhavamno ar, mas não por muito tempo. Trouxeram aostombos Melântio ao pátio. O ferro amputou-lheo nariz, decepou-lhe as orelhas. Os bagulhosarrancados foram parar nas mandíbulas dos cães.A fúria dos vitoriosos cortou lhe mãos e pés.Purificados braços e pernas, os algozesentraram na mansão para concluir o trabalho.Foi então que Odisseu dirigiu-se a Euricléia:“Quero que me tragas fogo e enxofre, remédiopara miasmas. Agora podes acordar Penélope.Que venha acompanhada de suas criadas. Queroque todas as escravas estejam aqui.” Soou a vozcarinhosa de Euricléia, a ama: “Está tudo nosconformes, meu querido. Mas convenhamos,precisas de túnica e capa. Não podes te apresentarno teu próprio palácio com estes farrapospendurados no pescoço. É uma vergonha!”Odisseu respondeu como quem sabe o que quer:“Eu pedi fogo. Não pensem em me desobedecer.”Euricléia executou a ordem sem resmungar.Trouxe brasas e trouxe enxofre. Odisseu purificoutudo sem omissões: a sala, a casa e o pátio.A velha subiu a escadaria para avisar Penélope.Pediu às escravas que acompanhassem a Senhora.Elas vieram empunhando tochas. Postadas emtorno de Odisseu, inclinaram-se para saudá-lo.Beijaram-lhe a testa e os ombros, tomaram-lheas mãos. Odisseu não resistiu às lágrimas.Reconheceu, aos poucos, cada uma delas.

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[1]. Zeus. (N.E.)[2]. Uma das três divindades – as Moiras – que determinam o nascimento, a duraçãoda vida e o momento da morte das pessoas. (N.E.)

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Canto 23

A velha voou de alegria ao andar superior paradizer à patroa que o marido dela já estava em casa.Os joelhos se dobravam flexíveis, os pés saltavam.À cabeceira da Senhora, falou ofegante:“Acorda, Penélope, filhinha querida. Confere comos teus próprios olhos. O que desejavas aconteceu.Teu marido voltou. Está lá embaixo. Antes tardedo que nunca. Os safados estão mortos. Os quesaqueavam tua casa, devoravam tudo, ameaçavamteu filho não existem mais.” Penélope, precavida:“Estás maluca. Os deuses te viraram a cabeça.Muito sujeito de miolo mole recuperou o juízo porobra divina. Contigo aconteceu o contrário. Estásgagá. Quem diria? Sempre tão ajuizada! Nãome venhas com brincadeiras. O que sofro já nãobasta? Além dessas besteiras, ainda me tiras dosono? Dormir, não existe nada mais doce. E euestava ferrada no sono. Desde a partida de Odisseua essa porcaria de Tróia, Ilionada, eu ainda nãotinha dormido tão bem. Vai-te embora. Não mesaias do quarto. Se uma outra criada me tivessearrancado do sono para me contar lorotas, eu ateria corrido a bofetadas. Eu a teria trancado atrásde sete chaves. Não faço isso contigo porque ésvelha.” A ama tentou tranqüilizá-la: “Não estoubrincando contigo, filhinha querida. Falo sério.Odisseu voltou. Ele te espera lá embaixo. Telembras do estrangeiro? Todos o maltratavam.É ele. Telêmaco sabia disso já há muito tempo.Ficou quieto para não estragar os planos do pai:baixar a crista dos supermachos.” Seriaverdade? Penélope pulou da cama de alegria.Abraçou a velha. Abriu a fonte das lágrimas.

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Deixou as palavras esvoaçar pelo quarto:“Fala, mãezinha, ouço-te, fala-me claro.Ele de fato está aqui? É certo o que dizes?Ele os dobrou no braço? Como? Eram muitos,ele era um só. Eram uma quadrilha.”A resposta de Euricléia deixou dúvidas:“Eu própria não vi, ninguém me contou, percebimurmúrios de moribundos. Assustadas, socadasnum canto, sons sacudiam a porta antes desermos soltas por Telêmaco. Ordem do pai.As paredes do quarto eram nossa proteção.Vi Odisseu de pé entre corpos tombados.Levantava-se um monte no piso de terrabatida, uns sobre os outros. Sentirias fogono peito se o visses coberto de sangue comoleão. A pilha se eleva no pátio agora. A salasolene, tratada a enxofre, está limpa. Ardeo braseiro. A ordem de chamar-te vem dele.Desce comigo. É tempo de vocês abrirem ocoração um ao outro depois de tanto sofrimento.O êxito coroou teu desejo de tantos anos.Ele está vivo. Voltou ao lar. Voltou a ti. Voltouao filho. Voltou ao palácio. Os que lhe foramfunestos ele os premiou com fúnebre prêmio.”Não havia entusiasmo na resposta de Penélope:“Mãezinha, menos entusiasmo, menos triunfo!Sabes que ele seria recebido com alegria por todos,por mim, por meu filho que juntos geramos, masnão é segura a história que me contas. Um dosimortais promoveu a morte dos prepotentes,irritado com a insolência, com os desmandos.Dos que moram na superfície da terra, nãorespeitavam ninguém: nem bom nem mau.Erradicados foram por seus erros. O regressodele gorou longe da Acaia. Ele está morto.”Respondeu-lhe a ama que a queria muito:“Filhinha, não avalias a palavra que te fugiu daboca. Tiveste teu esposo contigo junto ao braseiroe disseste que não voltaria. Cultivas coração de

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incrédula. Queres sinal certo? A cicatriz queo dente de um javali lhe deixou na carne! Eu apercebi quando lhe banhei os pés. Quisfalar-te, ele não deixou. A cabeça repletade planos, tapou-me a boca com a mão.Vamos! Ofereço-me a mim mesma por fiança.Se te tapeio, mata-me de morte cruel.”Penélope, sempre cautelosa, com sérias suspeitas:“Mãezinha querida, difícil te é interpretar projetosdivinos por mais arguta que sejas. Está bem.Procuremos meu filho. Quero ver os corpos dospretendentes abatidos e o homem que os derrubou.”

Decidiu descer. Muitas dúvidas abalavam-lhe ocoração. Faria perguntas a seu esposo de longe?Se aproximaria com abraços e beijos? Entrou nana sala, transpôs o solar de pedra, sentou defrontede Odisseu, iluminada pelas labaredas, junto àparede oposta. Ele, junto à grande coluna, de cabeçainclinada, esperava que a poderosa esposa lhefalasse logo que o visse. Palavra alguma cortouo silêncio. O espanto a imobilizara. Os olharesdela percorriam-lhe o rosto e se perdiam nosfarrapos. Era-lhe difícil reconhecê-lo em andrajos.Quem rompeu o silêncio foi Telêmaco. Comoentender a mãe?: “Mãe, má mãe, és uma mulherdura. Por que esta distância? Não tens nada aperguntar? Nada a dizer? Que outra mulherprocederia como tu? Este homem esteve longede casa por vinte anos. Sofreu como um cachorro.É assim que se recebe um herói que volta à pátria?Teu coração é mais duro que pedra. Sempre foi.”Penélope contestou prudente as incriminações:“Meu filho, falo de coração. Estou estupefata.Não sei o que dizer, o que perguntar. Não seinem como olhar para ele. Este homem é defato Odisseu? Voltou para casa? Há comoverificá-lo. É assunto entre nós dois. Temossinais, segredos que ninguém conhece.” As

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observações de Penélope fizeram Odisseu sorrir.Palavras do pai voaram aos ouvidos do filho:“Telêmaco, deixa assim. Ela poderá pôr-meà prova no quarto. Em breve, ela me conhecerámelhor. Estou sujo. Minha roupa são farrapos.Posso esperar afeto, desejar que me reconheça?Reflitamos para chegar a resultado safisfatório.Se alguém mata em sua terra um único homeme lhe falta o apoio substancioso, terá que fugirde parentes, de cidadãos, da cidade inteira. Nósabatemos a nata de Ítaca, jovens de famílias muitoilustres. Em que situação estamos?” A resposta deTelêmaco foi ajuizada: “ É um assunto que tutens que resolver, meu pai. És o mais capaz detodos os homens. Não há quem o negue. Esperamosque nos digas o que fazer. Nós te seguiremoscoesos. Não nos falta determinação.Conta conosco na medida das nossas forças.”Odisseu falou o que lhe tinha ocorrido:“Pensemos, então, na melhor maneira de enfrentara situação. Antes de tudo, tomar banho e trocar astúnicas. As criadas vistam roupas adequadas!Venha cantor, lira e música divina.Guie-nos, em júbilo, os passos na dança.Aos ouvidos dos lá de fora vibrem sons de festanupcial. Sejam passantes ou sejam vizinhos.Evitemos alvoroço na cidade. Não convém quea notícia da matança se propague antes dealcançarmos os bosques dos nossos campos. Lá,orientados pelo Olímpio decidiremos o que fazer.”Bateu, valeu. As instruções de Odisseu foramrigorosamente cumpidas. Tomaram banho, sevestiram. As mulheres se enfeitaram. A lirabojuda foi parar nas mãos do aedo. Os sonsdespertaram desejos de cantar, de dançar.A batida dos pés ressoou no palácio inteiro,movimento triunfal de braços fortes e decinturas estreitas. Os de fora observavam:“Aconteceu! A rainha não resistiu. É casório.

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Que desgraça! Não agüentou conservar opalácio para o marido que um dia há de voltar.”Falavam porque não sabiam o que estavaacontecendo. Lá dentro Eurínome banhavae ungia seu estimado Odisseu. Arrematoua indumentária do rei com uma capa.

A atração física, a partir da cabeça, foi domde Atena: tronco mais robusto. Os cabelos,descendo em cachos lembravam jacintos.Imaginemos uma estátua trabalhada porum escultor assistido por Hefesto e Atena,experimentado em trabalhos de ouro e prata,artífice de obras irresistíveis. O busto deOdisseu, cabeça e ombros, não era outro.Saiu da banheira com o corpo de um deus.Retomou o assento e falou com a esposa:“Desumana! Os Olímpios lá de cima te deramum coração insensível, feminino ele não é.Não existe mulher que evita seu homemquando este a procura depois de vinte anos detormentos longe de seu lar, longe de sua terra.Está bem! Arranja-me a cama, mãezinha.Quero dormir. Tu, continua rija, barra de ferro!”A sábia disse, por fim, as primeiras palavras:“Desumano! Não sou orgulhosa, não te desprezo,nem me babo por ti. Lembro-me do dia em que oslongos remos da nau te levaram daqui. Obedece,Euricléia, arruma-lhe a cama sólida, mas fora doquarto imponente que ele mesmo fez. Depoisque vocês tirarem a cama do quarto, arranjapeles, lençóis, cobertas, almofadas luzentes.”Falou assim para testar o marido. Indignado,disse Odisseu à mulher cheia de não-me-toques:“Mulher, o que acabas de falar é de arrebentar ocoração. Quero saber quem tirou minha cama dolugar. Nem um experto o faria. Só um deusteria forças para removê-lo a outro lugar;

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homem, dos vivos, nenhum, nem sendo moço.A dificuldade reside num segredo de construção,obra de mestre. Sei porque o produto é meu.Verdejava em nosso pátio uma oliveira defolhas alongadas. Crescida e florida tinha aconsistência duma coluna. Em torno dela erguinosso quarto. Apoiei o teto nos sólidos murosde pedra, que sustentam as portas preparadascom esmero. Só depois desbastei a árvore.Ocupou-me, então, o tronco, alisado desde asraízes, falquejando-o a prumo. Preparado osuporte do leito a capricho, perfurei-o parafirmar nele o estrado e concluir o trabalho. Ajusteiincrustações de ouro, de prata, de marfim.Purpurinas correias de couro completaram a obra.Revelei-te o segredo. Quero saber agora de ti,mulher, se o leito ainda se encontra no mesmolugar, ou se algum cafajeste, decepando o tronco,o removeu.” Os joelhos de Penélope tremeram.Sentiu um repelão no peito. Era o segredo. EraOdisseu. Atirou-se aos prantos nos braços doesposo. Cobrindo-o de beijos, ela se abriu:“Não me odeies, Odisseu. Compreendeste outros,compreende-me a mim. Dos deuses só recebemosamarguras. Eles nos roubaram os melhores anos.A juventude se foi. A sorte nos largou no umbralda velhice. Não me censures, não te vingues pornão ter te abraçado calorosamente no primeirorelance. Vivi apavorada. Não permiti que safadosme viessem com lorotas. O mundo está cheio degente que se aproveita da desgraça alheia. Helena,a filha de Zeus, a nobre rainha argiva, jamais seteria enfiado na cama de um estrangeiro se tivesseimaginado que seria trazida de volta para casapela heróica juventude aquéia. Ela fez o quefez, constrangida por uma deusa. Uma canalhice!Antes disso ela não cometeu loucura nenhuma.Desgraçou-nos a nós todos. Agora meexpuseste as caraterísticas do nosso leito, segredo

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só nosso. O que me contaste, mortal algumconhecia, só tu, eu e uma criada minha, Actóris,presente de meu pai quando vim morar contigo. Eua fiz guardiã da porta do nosso quarto. Vencesteminha resistência. De coração, eu me rendo.”

As palavras da esposa querida, aninhada em seusbraços, despertaram-lhe a vontade de chorar.A terra, uma visão esperançosa a náufragos cujanau, açoitada por ventos e ondas no mar profundo,foi despedaçada por Posidon, poucos embarcados,salvos do abismo sombrio, alcançam a costa,salsugem escorre-lhes do corpo, esperançososchegam, enfim, à terra, redimidos do mal: assimo esperado sentia o calor da mulher esperançosa edesesperada. Não se afrouxavam os braços cândidosque o envolviam. A Aurora e seus róseos dedosteria-lhes colorido as faces úmidas de pranto, seoutros propósitos não fervilhassem na mente deAtena: distanciar dois dedos a noite do limite,impedir que a Aurora emergisse do Oceano, deterLampo e Faetonte, os potros que puxam velozeso carro luminoso da deusa do áureo trono. A falavariada do herói soou aos ouvidos da esposa:“Querida, ainda não chegamos ao fim dos trabalhos.São sem medida. Preciso concluí-los, mesmopesados. O vulto de Tirésias me desvendou passosfuturos no dia em que desci ao reino de Hades parasaber a rota do regresso, meu e o dos companheiros.Vamos para a cama, querida. Desfrutemosabraçados as doces delícias do sono.”Respondeu-lhe o peito acolhedor de Penélope:“A cama é tua agora e todos os dias. Sempre quetiveres vontade, vem. Graças aos deuses, estásna tua casa, pisas o solo que te viu nascer.Um deus despertou em tua mente o trabalhoque ainda te espera. Posso saber do que setrata? Espero que não haja mal em sabê-lo.”

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Odisseu verteu em palavras um dos muitoscuidados: “Louquinha, por que me obrigas afalar de tarefas? Está bem, não te ocultareinada. Não será divertido nem para ti nem paramim. Tirésias me recomendou visitar cidadesde muitos, levando comigo um remo ágilaté encontrar gente que não conheça o mar,não use sal para temperar alimentos, nãosaiba o que são navios de flancos rubros eignore o trabalho dos remos, as asas das naus.Não te oculto o sinal inquestionável de que mefalou. Quando eu topar um caminhante quedisser que o instrumento nos meus ombros éuma pá de joeirar, deverei cravar meu remono solo e oferecer sacrifícios a Posidon:um carneiro, um bezerro e um javali. Aovoltar para casa devo oferecer hecatombesa todos os deuses, senhores dos céus. Assimnão sumirei em ondas salgadas, terei mortesuave que me visitará quando eu já estivercansado de anos, cercado de gente próspera.Cumprido o que me foi determinado, esteserá meu fim.” Observou a sábia Penélope:“Se os deuses te destinam velhice tranqüila,há esperança de que te poupem os males.”

Enquanto o casal trocava palavras ao pé dodo fogo, Eurínome e a ama arrumavam, à luzde tochas, o leito de fofos tecidos. Terminadocom muita dedicação o trabalho, a velhinhase recolheu ao seu próprio quarto. A tocha dacamareira Eurínome alumiava os passos do casalrumo à câmara nupcial. Ao lá chegarem, acamareira se retirou. Os dois, radiantes, voltaramao antigo e respeitavel leito. Telêmaco, oboiadeiro, o porqueiro e as mulheresencerraram o baile. Folgaram os pés. Oshomens dormiram na sala fumarenta. Refeitos

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do abraço que os uniu profundamente, os doisainda tinham muito para conversar. Ela lhefalou do que passou, vendo o ajuntamentofunesto daqueles homens, reunidos porcausa dela, falou da matança diária de boise ovelhas, do vinho com que se embriagavam.Odisseu a informou dos trabalhos que passouentre gente estranha, do muito que sofreu.Ela se deliciava com a cadeia de histórias.Relatos sem fim espantavam o sono:Depois de se impor aos cícones, sua primeiraaventura, passou pela terra fértil dos lotófagos,o ciclope, um monstro, devorou companheiros,alto foi o preço de seus crimes,Éolo o acolheu generosamente e lhe confiouos ventos; nem assim alcançou o solo natal,devolvido ao mar profundo por uma tempestade;para desespero seu, nada lhe valeram gemidos,encontrou Telépilo na terra dos lestrigões,estes lhe aniquilaram a frota e os tripulantes,salvou-se só ele e o navio que o transportava,conheceu Circe e suas brixarias, desceu ao paláciode Hades com uma nau de muitos remos paraconsultar a sombra do tebano Tirésias, lá, alémde muitos companheiros, encontrou a mãe quelhe deu vida, que o criou, que cuidou dele quandocriança, ouviu o doce canto das Sereias, passoupelo estreito das Rochas Moventes e de Caribde,conheceu Cila da qual os homens não escapamsem danos; na ilha de Hélio, os companheiroscomeram bois sagrados, a nau foi fulminada pelofogo de Zeus, todos eles sumiramno mar salgado, só ele escapou da morte, as ondaso jogaram à ilha de Calipso, ela o reteve para fazerdele seu esposo, recebeu-o na gruta espaçosa,prometeu-lhe vida sem fim, não molestada pelavelhice, o que não foi suficiente para persuadi-loa permanecer; depois de muitos sofrimentoschegou à terra dos feáceos, trataram-no com afeto

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e o honraram como a um deus, conduziram-no denavio até à terra natal, deram-lhe em abundânciaouro, prata e roupa. Terminado o relato dos seusfeitos, veio o doce sono, afrouxou os membros.Dissolveram-se as dores que afligem o coração.

Supondo que o sono e o aconchego da esposajá deliciara Odisseu, os olhos corujosos de Atenatomaram outra direção. Ordens suas determinavamque a Aurora subisse do Oceano em seu trono deouro para iluminar os homens. Odisseu deixoua cama com as seguintes recomendações à esposa:“Querida, ambos sabemos o que significam trabalhos;tu, enquanto em lágrimas, pedias meu regresso. Zeuse seus iguais impediam que eu, o sofredor, retornassea esta terra que muito quero. Enfim, reuniu-nos oleito dos nossos desejos. Deixo nossos bens e estepalácio a teus cuidados. A pilhagem me devolveráparte das reses abatidas pelos abusados pretendentes.Aqueus me oferecerão voluntariamente o que faltarpara recompor meus rebanhos. Tenho outra tarefa:visitar meu nobre pai que passa seus últimos dias nopomar e que nunca deixou de preocupar-se comigo.Embora saibas como agir, dou-te esta recomendação.A notícia da matança dos pretendentes se espalharácom o avanço do sol. Recolhe-te nos teus aposentoscom tuas criadas. Permanece encerrada. Nãorecebas pessoa alguma nem te preocupes com nada.”Enquanto Odisseu falava, o esplendor da couraçasubiu-lhe aos ombros. Despertou Telêmaco, oboiadeiro e o porqueiro com ordens de se muniremcom armas de guerra. Obedeceram. Cobriram-sede bronze. Abriram as portas e saíram guiadospor Odisseu. A luz banhava a terra. Envolvendo-os no manto da noite, Atena os afastou da cidade.

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Canto 24

Hermes Cilênio convocou os espectros de heróis,os pretendentes. Empunhava o belo bastão deouro que enfeitiça os olhos dos homens e despertaos adormecidos a seu talante. O bastão move atropa. Os espectros marcham rechinantes. Pareciammorcegos que pendem em penca nas cavidadessagradas de uma gruta; se um se desprendedespencam da rocha os demais, esvoaçantes chiam.Chiante assim segue a revoada dos espectroso comando do benfeitor por tétricos caminhos.Além da corrente do Oceano e da Rocha de Leucas,passam pelas portas de Hélio e da cidade dos Sonhos.Rumam, sem tardar, às campinas dos asfódelos,morada das sombras, os espectros dos que dormem.Toparam por lá a sombra de Aquiles, filho de Peleu,de Pátroclo, do íntegro Antíloco e de Ajax,no porte e na postura o mais distinto dos guerreirosdânaos, abaixo do incomparável filho de Peleu.Esses formavam o séquito de Aquiles. O espectrode Agamênon, filho de Atreu, acercou-se deles,cercavam-no os que a morte certeira tinha colhidono palácio de Egisto. A sombra do comandante detropas foi a primeira saudada pelo filho de Peleu:“Agamênon, pensávamos que, de todos os heróis,tu eras o mais caro a Zeus Trovoada dia após dia,já que tinhas sob teu comando tantos guerreirosilustres na campanha troiana, onde padecemos tanto.E foi a ti que visitou cedo a Moira funesta a quemnão escapa ninguém dos que pisam a terra.Não teria sido melhor que tivesses recebido a morte,revestido de honra nas campinas da cidade sitiada?Os panaqueus teriam erguido um monumento a ti,teu filho teria sido herdeiro de tua glória. Em vez

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disso, a Sorte te reservou um triste fim.”Teceu estas considerações o espectro do Átrida:“Afortunado filho de Peleu, divino Aquiles,tiveste a sorte de tombar em Tróia, distante deArgos; contigo morreram muitos outros, a flordos argivos combatia contigo. Teu corpo jaziano turbilhão do pó, imensamente grande. Em tuamente se apagara o embate de carros. E nós, nalida o dia todo, até a tempestade de Zeus terminara refrega. Mas te trouxemos da batalha, estendemosteu corpo na nave, purificamos tua pele com águatépida e te ungimos. Lágrimas copiosas nossas teregaram, cobriam-te cabelos arrancados das nossascabeças. A notícia de tua morte trouxe tua mãe deúmidas profundezas, acompanhada de ninfas.Lamentos vibravam nas ondas, tremiam os aqueus.Havia perigo de se precipitarem às naus se Nestor,ancião de conhecimentos extraordinários, não ostivesse detido – sua habilidade em aconselhar eranotória. Bem-intencionado, ele lhes falou:‘Calma! Não fujam, meus jovens. A mãe do mare seu cortejo de ninfas está se aproximando.Ela vem para chorar seu filho sem vida.’[1]As palavras do conselheiro detiveram os aqueusamedrontados. As filhas do Velho do Mar,cobertas de véus imortais, te cercaram. Soouo lúgubre responsório de todas as nove Musas.Tocados pela comovente voz divina, lágrimasumedeceram as faces de todos os argivos. Pordezessete noites e outros tantos dias, te choramos,as imortais e nós, homens sujeitos à morte. Nodécimo oitavo dia entregamos teu corpo às chamas.Te ofertamos ovelhas nutridas e novilhas luzentes.Teu corpo, envolvido em vestes divinas, ardiauntado de óleo e mel. Pelotões de guerreirosdesfilavam armados. Passos e rodas ressoavamno solo. Alargava-se o alarido pelos ares.Concluída a obra das chamas de Hefesto,recolhemos, Aquiles, teus ossos à luz da Aurora

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numa urna de ouro, dom de tua mãe, banhadosem vinho e ungidos com aromático azeite. A urna,obra do renomado Hefesto, foi presente de Dioniso.Aí repousam teus ossos, renomado Aquiles, unidosaos do finado Pátroclo, filho de Menécio. Jazemà parte os de Antíloco, que no teu afeto superavatodos, sem excluir Pátroclo. Erguemos-lhestumba imponente, nós, os sacros lanceiros doglorioso exército dos aqueus num promontóriodos largos domínios do Helesponto, para seradmirado de longe por todos os que se fizeremao mar agora e em tempos vindouros. Tua mãerogou aos deuses prêmios honrosos para seremofertados aos campeões das competições fúnebres.Participaste, com certeza, de muitos certames emque jovens se armaram para engrandecer o nomede um monarca pranteado. Tua admiração teria sidobem maior se tivesses tido a oportunidade de veros prêmios que a Tétis dos pés argênteos ofertouem tua homenagem, pois eras admirado por deuses.Contigo não morreu teu nome, Aquiles. Tua glórianunca deixará de brilhar entre os homens. Mas amim, vitorioso na guerra, que alegria me resta?Estava nos plano de Zeus dar-me morte inglória.Ao regressar, me mataram Egisto e minha mulher.”Enquanto ambos conversavam, aproximou-seHermes, arguta fonte de brilho, à testa dos espectrosque se desprenderam dos corpos abatidos porOdisseu. Atarantados pela aparição, avizinharam-se.O filho de Atreu reconheceu o espectro deAnfimendonte, filho de Melaneu, aliado seu, queresidia em Ítaca. De espectro a espectro, falou-lheAgamênon, chefe supremo das forças argivas:“O que vos aconteceu, Anfimedonte? Sois umgrupo selecionado, rapazes da mesma idade. Alguém,interessado em separar os melhores, não teria feitooutra escolha. Posidon vos tirou a vida em viagemmarítima com ventos fortes e ondas gigantes?Ou perecestes em pilhagem de bois e de ovelhas

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na mão de homens desumanos? Fostes abatidos nosaque de uma cidade? Sois raptores de mulheres?Estou perguntando, responde-me. Tenho o orgulhode ser teu aliado. Lembras? Fui hóspede teu, e deMenelau. Estávamos lá para persuadir Odisseu anos acompanhar para Tróia. A viagem pelo marimenso nos tomou um mês inteiro. Foi difícilconvencer Odisseu, o arrasa-cidades.” O espectro deAnfimedonte deu-lhe resposta circunstanciada:“Agamêmnon, comandante de tropas, renomadoÁtrida, não esqueci nada do que recordas. Divinoamigo, saberás tudo com detalhes. Não tenho razõespara te ocultar uma vírgula do nosso fim. Saberáscomo ocorreu. Somos pretendentes da consorte deOdisseu, desaparecido. Quanto ao casamento, ela nãose opunha nem se dispunha a casar, maquinava nossoaniquilamento. Na mente, ela elaborava truques.Instalou um tear no quarto dela. Era imenso, paratecer um leve e amplo manto. A versão dela para nósfoi esta: ‘Jovens pretendentes meus, Odisseu estámorto. Esperem! Não me forcem a casar. Precisoconcluir um manto. Não quero que a lã se estrague.É uma mortalha para Laertes, um herói. A Moira éterrível, leva todos. Ninguém escapa. Não quero cairna boca do povo. As mulheres poderiam comentar:um homem opulento jaz sem mortalha.’ Contentesnão estávamos, mas ela conseguiu levar-nos na conversa.Dia vai, dia vem, ocupada no tear. A desgraçadadesfazia de noite, à luz de tochas, o que tinhaproduzido durante o dia. Ela nos fez de bobos portrês anos. Veio o quarto. Viraram as estações.Sumiram os meses. Os dias iam-se acumulando.Uma mulher deu com a língua nos dentes. Ela sabiade tudo. Constatamos que a safada destecia o tecido.Nós a obrigamos a terminar o trabalho na marra.Mostrou-nos o manto, era grande, estava limpinho,brilhava à luz do sol e da lua. O inesperado aconteceu.Um gênio maligno devolveu Odisseu à sua terra. Eleapareceu longe, no campo, na cabana do porqueiro.

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Houve lá uma reunião de Odisseu com o filho, quevoltara embarcado no mesmo navio que o tinhalevado. Armaram um plano para matar-nos.Vieram para a cidade. Odisseu apareceu mais tarde,Telêmaco veio na frente. Trouxeram o porqueiro.Odisseu se apresentou esfarrapado. Entre ele e ummendigo não havia diferença. Fingiu-se de velhoapoiado numa bengala. Ninguém de nós foi capazde reconhecer Odisseu na figura do maltrapilho.Nem os mais velhos o reconheceram naaparição repentina. Insultamos o velho. Jogamosobjetos nele. Ele agüentou firme. Agredidoe xingado, não mostrou brabeza. Zeus, o guerreiro,meteu-lhe idéias na cabeça. Começou pela remoçãodas armas. Telêmaco as mandou para o depósitoe trancou a porta. O falso mendigo movimentoudepois a mulher. Ela propôs aos pretendentes umjogo de arco e ferro. O jogo foi o princípio danossa desgraça, o início do fim. Ninguém de nósfoi capaz de retesar a corda do arco inflexível.Desandou o muque de todos. Quando Telêmacopassou o arco às mãos do intruso, protestamos.Gritamos que não lhe desse a arma ainda que apedisse mil vezes. Só Telêmaco divergiu. Ordenouque o arco não lhe fosse recusado. Odisseu, dememorável paciência, tocou e retesou o arcocomo se fosse brinquedo. A flecha atravessou osferros. Postado na soleira, espalhou as setas pelochão. De olhar sinistro, acertou um rei, Antínoo.Foi doloroso. Escolheu outros para alvo. Era mirare derrubar. Caíam um depois do outro. Não haviadúvida, os deuses estavam com ele. Os pretendentescorriam pela sala como loucos. À esquerda e à direitaempilhavam-se os corpos. Estouravam cabeças, osolo empapado de sangue. Esse foi o nosso fim,Agamênon. Nossos cadáveres ainda jazem insepultosno pátio do palácio de Odisseu. Nossos familiares,nossos queridos, ainda não sabem. Poderiamlavar nossos corpos. Poderiam dar-nos sepultura.

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Poderíamos ser pranteados, prêmio dos que morrem.”Respondeu-lhe o espectro de Agamênon:“Declaro-te venturoso, Odisseu, filho de Laertes.Luminosas são as qualidades da que tomaste comoesposa. Elevados são os sentimentos da modelarPenélope, filha de Icário, que, fiel a ti, nunca teesqueceu. A fama de seus feitos nunca terá fim.Os imortais ensinarão aos habitantes da terra cantosem louvor da sábia Penélope. Bem diferente foi afilha de Tinadareu, que só tinha crimes na cabeça, essaassassinou o homem de sua juventude[2]. Será lembrada,em toda parte, no canto das perversas, uma peste quemancha o nome de todas, até o das honestas.”Assim corria a conversa dos dois na casa de Hadesnas profundas e escuras entranhas da terra.

Odisseu e os três outros, deixando a cidade,alcançaram as propriedades de Laertes, campocuidadosamente cultivado pelo próprio.Adquiri-lo lhe custou caro. A casa dele estavacercada pela senzala onde comiam, viviam edormiam os escravos, forçados a trabalhar paraele. Com ele também vivia uma velha, origináriada Sicília. Sua tarefa era viver com ele no campo,longe da cidade. Ordenou Odisseu aos escravose ao filho: “Entrem e preparem a refeição.Sacrifiquem um porco gordo, um dos melhores.Enquanto isso vou conversar com meu pai. QueroFazer uma experiência, saber se me reconhece.Seus olhos saberão quem sou, ou me tomará porestranho?” Os escravos levaram para dentro asarmas que Odisseu lhes confiou. Odisseu penetrouno pomar. Muitas eram as árvores frutíferas.Odisseu, percorrendo o jardim, procurou Dólio,algum dos agregados, um dos filhos... Não encontrouninguém. Recolhiam espinhos para fortalecer ascercas. O velho escravo dirigia o trabalho. O paiestava só. Removia erva daninha junto de uma

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árvore. Vestia uma túnica suja, cheia de remendos.Pedaços de couro de boi costurados protegiam-lheas pernas contra arranhões. Luvas defendiam-lheas mãos contra espinhos. Uma carapuça de pele decabra protegia-lhe a cabeça. O quadro era demiséria e abalou o paciente Odisseu. Não era só avelhice, era também a tristeza que vinha de dentro.Odisseu encostou-se numa velha pereira para chorar.O herói não sabia como se comportar. Perturbado dede coração e mente, tudo lhe era problema: beijavao pai, tomava-o nos braços para lhe contar asúltimas, que voltara. Ou convinha avançar cauteloso,o que estava acontecendo? Tomou uma decisão:precisava conhecer o terreno em que pisava, chegariacom astúcia. Pensando assim, tratou de abordá-lo.De cabeça inclinada, o pai abria uma cova emtorno de uma árvore. Aproximando-se, falou:“Senhor, pareces entendido em pomares. Percebocapricho em tudo. Não vejo nada descuidado:brotos, figueiras, parreiras, oliveiras, pereiras,canteiros – a mão do entendido está em tudo.Surpreende-me outro assunto, não vás teincomodar: tu não cuidas de ti mesmo. Além develho, estás sujo e nos trapos. Teu patrão deveriadar-te mais atenção. Não é por preguiça queestás desse jeito. Olhando para ti, não tens corponem aspecto de escravo. Pareces antes um rei.Ora, senhores merecem banho, mesa farta,cama confortável. E é o direito dos velhos.Gostaria de conhecer-te melhor. Para quemtrabalhas, a quem pertence este pomar?Não sei nem bem onde estou. Estamos emÍtaca? Foi a informação que tive de umsujeito que encontrei há pouco. Era meiofechadão. Foi muito reticente no que me disse.Não mostrou nenhum interesse no que eu lheperguntava. Aliás, um amigo meu é daqui. Seainda vive ou se já se mudou para a casa deHades, não sei. Será que poderias informar-me

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melhor? Já faz anos. Ele nos visitou. Eu ohospedei. Não me lembro de ter acolhido outromelhor do que ele em minha casa. Disse-mecom muito orgulho que vinha de Ítaca e queLaertes, filho de Arcésio era seu pai. Mal oo conheci, convidei-o a ficar na minha casa.Pus-lhe à disposição tudo o que tínhamos, enão era pouco. Senti-me obrigado a lhe oferecerpresentes de hóspede: sete artísticos talentosde ouro, uma cratera de prata rodeada de flores,doze capas de lã, mais sete tapetes, maissete mantos, outras tantas túnicas.Afora isso, dei-lhe sete mulheres prendadas,quatro lindíssimas. Ele mesmo as escolheu.”O pai lhe respondeu com lágrimas nos olhos:“Amigo, estás na terra que procuras. Indivíduosprepotentes tomaram conta do poder. O quelhe ofereceste foi regalo posto fora. Se eleestivesse vivo e o encontrasses aqui, em Ítaca,ele te ofereceria o palácio, e tu partiriasricamente galardoado em retribuição à amizadeque lhe demonstraste. Uma curiosidade minha:quantos anos faz que o hospedaste? Teuamargurado amigo, se disse a verdade, deve sermeu filho. Longe das pessoas queridas e da pátria,o corpo dele deve ser ração de peixes ou entãoé comida de feras e de aves, não sei onde. Eue minha mulher não tivemos o privilégio decobrir-lhe o corpo, de chorá-lo. Nem a esposadele, a sábia Penélope, pôde fechar-lhe os olhose pranteá-lo no leito da morte, prêmio dos que vão.Fala-me agora de ti. Quero saber donde vens,como se chama tua cidade, quem são teus pais,onde deixaste o barco que te trouxe até aqui, ondeestão teus companheiros. Exploras o comércio?Viajas como passageiro? O navio já zarpou?”Odisseu, manhoso, deu-lhe essas informações:“Não tenho motivos para ocultar-te o que quer queseja. Sou de Alibante. Vivo numa mansão. Meu pai

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se chama Afidante e é filho de Polipêmon. Meunome é Epérito. Um gênio me arrancou de Sicâniae me largou aqui sem me perguntar se eu queria. Meunavio está ancorado no campo longe de moradas.Já faz bem cinco anos que Odisseu esteve lá em casa.O infeliz partiu da minha terra com presságiosfavoráveis, aves da direita, o que nos deixou muitosatisfeitos. Contente estava ele, que partia, contenteestava eu e lhe desejei boa viagem. Nosso coração nosdizia que haveria reencontro com troca de presentes.”A nuvem da dor cobriu as palavras de Laertes.Debulhado em lágrimas, meteu as mãos no chão elargou um punhado de terra preta na cabeça grisalha.Uivava de dor. A cena mexeu com o filho. O chorolhe fazia cócegas nas narinas. Não se conteve.Beijou o pai e lhe falou abraçado:“Sou eu. Me esperavas? Estou aqui. Voltei. Vinteanos! Já faz vinte anos que estou longe de casa.Pára de chorar! Já não há motivos para lágrimas.Agora te conto tudo. Não há tempo a perder.Os pretendentes lá de casa estão mortos.Pagaram pelo que fizeram. Meu nome está limpo.”Recuperando a voz, exigiu cauteloso Laertes:“Se és de fato meu filho Odisseu, se é verdade quevoltaste, quero prova. Sem prova, não acredito.”A prova exigida veio no ato. Bateu, valeu:“A cicatriz! Estás vendo? Abre bem os olhos. Foino Parnaso. Lembras? A presa de um javali. Vocêsme mandaram, você e minha mãe. Aconteceuquando estive na casa do meu avô Antólico.Fui buscar os presentes que ele tinha me prometido.Te mostro as árvores que me deste neste pomar eque tratas com tanto carinho. Eu era criança.Corria atrás de ti. As que eu pedia, tu me davas.Me dizias os nomes: treze pereiras, dez macieiras,quarenta figueiras. Por cima de tudo isso, medeste cinqüenta renques de cepas. Promessa tua!Me garantiste que produziam bem. Com umacondição, se Zeus não mandasse tempo favorável,

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nada feito, a responsabilidade não era tua.”Tudo correto. Fraquejaram as penas do velho. O coraçãofalhou. Laertes confirmava todas as provas queo filho lhe dava. Apertou-o nos braços. Odissseuo sustentou, o velho tinha perdido os sentidos.Quando Laertes se recuperou e conseguiu botaras idéias no lugar, retomou a conversa:“Zeus Pai e todos os outros imortais do Olimpo,se os pretendentes de fato pagaram os insultos,meu coração diz, o que me apavora, que haveráum rebelião de todos os itacenses. A notícialevantará os cefalênios. Seremos atacados aqui.”O experimentado Odisseu procurou acalmá-lo:“Calma. Não te preocupes com isso. A casaestá aqui perto. Vamos até lá. Lá estãoTelêmaco, o boiadeiro e o porqueiro. Receberamordens de nos prepararem um banquete.”Terminada a conversa, dirigiram-se aos belosaposentos da morada. Lá chegados, encontraramTelêmaco, o boiadeiro e o porqueiro, ocupadoscom a divisão da carne e com o preparo do vinho.Logo que Laertes entrou, a serva da Sicília banhouLaertes e o ungiu com óleo. Vestiu-lhe umatúnica. Atena, que se encontrava por lá,revigorou os membros do comandante de tropas.Ele se apresentou mais alto e mais vigorosoao sair da banheira. Impressionou até o filho.Comparado com deuses, ele não ficava emdesvantagem. Expressou-o em palavras:“Pai, algum dos imortais deve ter-te retocadoa aparência e a estatura. Encantas quem te vê.”Vieram em resposta lembranças do passado:“Por que Zeus, Atena e Apolo não me devolvemo vigor da época em que arrasei Nérico, umafortaleza respeitável no extremo da terra firmecom minha tropa de celafênios? Eu teria estadoontem no palácio para enfrentar os pretendentes,eu teria abalado os joelhos de muitos, teriastido prazer em acompanhar meu desempenho.”

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Laertes entretinha-os com recordações de outrostempos quando foram avisados de que a refeiçãoestava pronta. Acomodaram-se em cadeiras, empoltronas e levaram as mãos aos alimentos.Apareceu Dólio, já velho, com seus filhos.Vinham cansados do trabalho. Fora chamá-losSicília, a velha mãe. Ela cuidava deles e doamo que, depois de velho, precisava de atenção.Quando o coração lhes disse que o homem queviam era Odisseu, ficaram imóveis, estupefatos.Com muito jeito, o herói tentou tranqüilizá-los:“Por que tanto espanto? Aproxima-te, venerando.A fome aperta. Já teríamos começado, se nãofosses tu. Estamos a tua espera. Senta.” Dóliosaiu correndo de braços abertos. Queria abraçarOdisseu. Tomou a mão e a levou aos lábios.Uma revoada de palavras saiu-lhe da boca:“É verdade que voltaste, querido? Não havia coisaque desejávamos com mais ardor. És um presentedos deuses. Viva! Urra! Os Céus te abençoem!Tu, em casa! E Penélope? Falo para, de alegria,não esquecer. Ela já sabe? O mensageiro! Vácorrendo ao palácio com a notícia.”Odisseu procurou tranqüilizá-lo: “Calma!Ela já sabe. Tira isso da cabeça.” Dóliosentou-se. A cadeira brilhava de tão limpa.Os filhos de Dólio saudaram ruidosamenteOdisseu e lhe apertaram a mão com afeto,ocupando os assentos próximos ao pai.A recepção de Odisseu corria calorosa, festiva.

A Notícia, mensageira veloz, atravessou a cidade.Difundiu o triste fim dos pretendentes, a matança.Os parentes, advertidos, acorreram de todas as partes,gemidos e gritos os tangeram ao palácio de Odisseu.Carregavam seus mortos ao último repouso. Os deoutras cidades os embarcavam em navios depescadores para serem transportados aos seus locaisde origem. Abatidos, reuniram-se na ágora.

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Quando todos estavam reunidos, levantou-seEupites para lhes dirigir a palavra. Sentia o coraçãopesado, por ser pai de Antínoo, o primeiro quemorreu, derrubado por um frechaço de Odisseu.Enlutado pela morte do filho ilustre, falou Eupites:“Amigos, esse homem envolveu-se numa seqüênciade crimes. Os que o acompanharam, nobres – e nãoforam poucos –, desapareceram, os navios sumiram.Volta e mata os mais distintos dos cefalênios. Nãohá tempo a perder. Evitemos que fuja a Pilos, quechegue a Élida, domínio dos epeus. Não permitamosque ele nos calque aos pés. Deixaremos impunes osassassinos de nossos filhos, de nossos irmãos?Queremos ser vergonha para as gerações futuras?Não me sobraria nenhum prazer de viver. Prefirodesaparecer e me unir aos que já morreram. Rápido!Antes que atravessem o mar.” Eupites chorava.Os ouvintes tiveram pena dele. Aproximaram-se,vindos do palácio de Odisseu, Medonte e o cantorda voz divina. O alvoroço os arrancara do sono.Dirigiram-se ao centro para falar. Todos estavamperplexos. Falou-lhes Medonte, homem preparado:“Atenção, itacenses! Odisseu não planejou essaação ousada contra a vontade dos imortais. Vi commeus próprios olhos uma divindade, na aparênciade Mentor, aconselhar Odisseu. Não faz muito,percebi um imortal ao lado dele. A bravuraque ele demonstrou era de origem divina. Um deusprovocou a correria pela sala e as mortes sucessivas.”A fala de Medonte deixou todos pálidos de medo.Falou-lhes, então, Aliterses, um ancião, filho deMastor, só ele versado no antes e no depois. Tomoua palavra porque tinha conselhos bons:“Reflitam no que tenho a vos dizer, itacenses.Desacertos vossos provocaram o que aconteceu. Nãome destes ouvidos, nem a Mentor, guia de multidões.Não impedistes que vossos filhos cometessemloucuras. Foram de assustar os males que praticaram:dilapidaram bens, insultaram a esposa de um

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homem honrado pensando que não regressaria.No que aconteceu não se mexe. Pensem no que vosdigo: não o ataquemos, não agravemos o mal.”Estas palavras dispersaram mais da metade emgrande tumulto. Os outros não se abalaram.Não lhes agradou o que ouviram. Preferiramo conselho de Eupites. Lançaram-se decididos àsarmas. Quando o bronze fulgiu no corpo deles,reuniram-se fora da cidade, no pátio de danças.Comandava-os Eupites, enlouquecido. Só pensavaem vingar a morte do filho. Não lhe passou pela cabeçaque o retorno lhe seria negado, que este seria o fim.

Soou, então, a palavra de Atena nos ouvidos de Zeus:“Filho de Crono, meu pai, Senhor dos que governam,atende-me, o que guardas em tua mente? Queresque prossiga a guerra devastadora, a matança? Nãote ocorre pôr fim à luta, pacificar os litigantes?”Respondeu-lhe Zeus Ajunta-Nuvens: “Por queessas perguntas, minha filha, essas dúvidas?Tu mesma te empenhaste pelo retorno de Odisseu,tu mesma promoveste a punição dos pretendentes. 480Age como queres. Vou dizer-te o que penso.Os pretendentes já foram punidos. Ítaca poderiaassegurar o trono a Odisseu enquanto viver.Esqueçam a morte de filhos e de irmãos.Restaurem os laços amistosos de antes. Assima riqueza e a felicidade favorecerão todos.”Favorecida nos seus propósitos, Atena desceusaltitante das escarpadas alturas do Olimpo.Comidos e bebidos, voltou-se a seu grupo o pacienteOdisseu com medidas estratégicas: “Vá alguém.Verifique se os atacantes já estão nas proximidades.”Lavantou-se o filho de Dólio e chegando ao vestíbulojá estava em condições de responder. Eles vinham.Retumbou de Odisseu a voz de comando:“Estão se aproximando. Quero todos armados. Já!”Falou e estavam em armas. Prontos para a defesa.Quatro estavam com Odisseu. Havia ainda seis, os

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filhos de Dólio. Armaram-se ainda Laertes e Dólio.Embora grisalhos, responderam à urgência.Protegido o corpo por bélico bronze, marcharamporta afora. Odisseu estava no comando. Avizinhou-se do grupo a filha de Zeus, Palas Atena.A voz e o aspecto eram de Mentor.A alegria que se espalhou no peito de Odisseulevou-o a falar ao seu querido filho Telêmaco:“Chegou tua vez, Telêmaco, mostra o que tens dentrode ti. Homens lutam, a glória distingue os melhores.Honra as gerações que te precederam. Nosso empenho,nossa coragem marcam nossa passagem pela terra.A sabedoria de Telêmaco brilhou na resposta:“Verás do que sou capaz, meu querido pai. Não sereimancha no brilho da nossa raça. Eu te garanto.”A decidida resposta de Telêmaco entusiasmou Laertes:“Que dia, queridos deuses! Que satisfação supera adisputa entre o neto e o filho pela primazia na coragem?”Laertes viu os olhos de Atena brilharem na resposta:“Filho de Arcésio, caríssimo companheiro, invoca afilha de Zeus, arremessa tua lança. Que ela projetevitoriosa sua longa sombra ao zunir no espaço!”Infundiram-lhe força as palavras de Palas Atena.Elevaram-se as preces do guerreiro. O braçoimprimiu força no mortífero dardo. A longa lançapartiu de seu braço e penetrou no elmo de Eupides.O bronze não resistiu ao impacto da arma. Tombouo adversário. Ressoou a couraça. Odisseu e seuvalente filho atiraram-se contra os primeiros. Baterde lâminas, ressoar de ferros, de pontas agudas.Ninguém teria resistido aos golpes certeiros. Paraninguém haveria regresso, não fosse a voz oportunade Atena, não fosse ela a deter o ataque: “Baixemas armas, itacenses. Cesse o conflito. Poupemseu próprio sangue. Vá cada um para seu lado.”O medo tirou a cor de quem ouviu Atena.As armas se desprenderam de mãos trêmulas. Àordem da deusa tilintavam espadas caídas. Oamor à vida procurou a proteção das muralhas. A

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paciência de Odisseu não deteve o grito guerreiro.Lançou-se contra os fugitivos no ímpeto da águia.O raio brilhante do vitorioso filho de Cronocaiu fulminante aos pés da filha, iluminando seuvivo olhar. Arredondaram-se os olhos de Atena aofalar ao ardiloso filho de Laertes: “Pára! Larga éa visão do pai de deuses e de homens. Nãoprovoques, de arma em punho, a ira de Zeus.”Odisseu dobrou-se contente à ordem da deusa.Palas Atena, filha poderosa do Porta-Escudo,no porte e no aspecto de Mentor, estabeleceuum tratado de paz entre os partidos em conflito.

[1]. Trata-se de Tétis, mãe do grego Aquiles, cuja morte na Guerra de Tróia é um dosprincipais dramas de a Ilíada. (N.E.)[2]. Trata-se de Clitemnestra, mulher de Agamênon, mãe de Orestes e Efigênia;junto com o amante, Egisto, tramou o assassinato do marido assim que este chegarada Guerra de Tróia. (N.E.)

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Odisséia, a epopéia das Auroras

Donaldo Schüler

Os olhos fruem a epiderme de pedras, troncos, braços. Teatro, arquitetura, esculturaproliferam. Mesmo as idéias platônicas requerem a condição de corpos vivos. A facevisível esconde outra cena: distante, misteriosa, assustadora, no palco e no canto dasMusas. O visível desdobra-se em camadas, nas artes plásticas, no teatro e naepopéia. Atrai, encanta. Ao declarar que a harmonia invisível é mais forte que avisível, Heráclito traz ao território da reflexão uma experiência já familiar aosapreciadores da arte. Na Odisséia, o sol ilumina a ação desde o alvorecer. O solimpera. Por que dividir a narração em cantos, arranjo de filólogos alexandrinos, seAuroras aceleram ou retardam o ritmo dos acontecimentos? Na Aurora ilumina-se ofazer divino e humano. Auroras, em variada formulação, ligam e separam à maneirade um refrão.

Telemaquia (cantos 1 – 4)

1. Antes da primeira Aurora (1.1 – 1.444)

Homero conversa com a Musa. Ele tem opinião. Irrita-se ao lembrar que oscompanheiros de Odisseu morreram por terem cometido a loucura de abater bois deHélio, embora o comandante da última nau o tivesse proibido rigorosamente. Quemdecide por onde começar é a Deusa. Isso não impede que ouça sugestões. A vivezada narrativa brota dessa conversa. Homero – a que poeta atribuímos esse nome nãoimporta – não se comporta como narrador passivo. Sente-se no direito de reinventaro que a tradição lhe transmitiu.

“O homem canta-me, ó Musa, o das muitas origens, o versátil/ o astuto/ o dasmuitas faces.” Os tradutores escolhem um desses significados de polýtropos.Incuravelmente limitados que somos, imperiosa é a escolha. A poesia, com suasedutora capacidade de dizer várias coisas ao mesmo tempo, até coisascontraditórias, nos liberta, um tanto, do nosso dizer precário. Para diminuir perdas, oque nos impede de inventar o neologismo polítropo para reunir os significadosenumerados, além de outros que o termo venha a sugerir? Traduziríamos então: “O

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homem, canta-me, ó Musa, o polítropo”... Ou, multifacetado.Odisseu é um herói polítropo, ao contrário de Aquiles, em quem uma da

faces, a fúria implacável (ménis), eclipsa as demais. Aquiles é furioso até quandoama, principalmente quando ama: a terra de seus antepassados, companheiros, umamigo ou uma mulher. A fúria de Aquiles não respeita nem as fronteiras da morte.Odisseu freqüenta muitos lugares quer geográficos quer caracteriológicos. Age comoorador, companheiro, amante, astucioso, cavalheiro, atleta, combatente imaginoso,poeta, marinheiro, artesão, sedutor seduzido, pai, filho. Ele é muitos, ele é polítropo.Ele é tantos que chega a se confundir com o homem enquanto espécie. Mentiu aPolifemo ao dizer que seu nome é Nulisseu (Ninguém)? Ora, quem é todos éninguém. Foi assim que o entendeu Joyce ao reinventar Odisseu (Ulisses) na pele deLeopold Bloom. Quem compara a Odisséia com a Ilíada observa que os muitosheróis da Ilíada contrastam com o único herói da Odisséia. Um único que é muitos.Para salientar as muitas faces de Odisseu, o autor da Odisséia confronta o herói comvários caracteres femininos: feiticeiras, uma jovem, uma rainha, a esposa fiel, amãe, uma escrava, a deusa protetora.... Cada uma delas desperta-lhe outra face.

Conheceu o espírito de muitos homens? O polítropo conhece homenspolítropos. Com que propósito? Com o propósito de conhecer-se a si mesmo. Não éoutra nossa experiência ao navegarmos nos ritmos de Homero. Em torno de Odisseue no próprio Odisseu nos deparamos com muitos homens. O espírito (noos) dohomem se desdobra sem limites. Produz muitas culturas, variados costumes. Umcristal de rocha é um cristal de rocha. Um buldogue apresenta comportamentoprevisível. Só o homem é muitos, imprevisível, pilítropo, multifacetado.

O aedo invoca a Musa, o canto é dela. Enquanto soa a voz da Musa, acomunidade cala reverente. Assim foi no passado. Não é isso que se observa naOdisséia. Polítropo já é resposta do cantor à voz da Musa. A Musa, de tanto falar,levou o homem à fala. O aedo se pronuncia sobre um assunto que lhe é familiar.Repete ritualmente como já o fez muitas vezes aos mesmos auditórios. Não se limitaa reunir o que o auditório acompanhará em detalhes. Ao dar um apanhado doassunto, comenta. Ao observar que Odisseu é polítropo, atinge em cheio acomplexidade da personagem em torno da qual a Odisséia se articula. Em breve, opoeta poderá dispensar o amparo das Musas. A voz dos homens compete com a vozdas Musas até silenciá-las. A resistência à voz coletiva, à voz do alto está nesseadjetivo, polítropo, cheio de ressonâncias.

As palavras queixosas de Zeus, dirigidas aos deuses reunidos em concíliologo depois da invocação da Musa, confirmam o insurgente falar dos homens. O paiuniversal lamenta que os homens lhe atribuam males provocados por desmandosdeles. Essas vozes impiedosas não estão com certeza sob a orientação da Musa. Háuma insurreição em marcha que já foge ao controle divino. Para fundamentar a

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insensatez dos protestos humanos, ele argumenta que os homens agem hyper moron,contra o que determina Moros ou a Moira. Cita como exemplo Egisto, assassino deAgamênon, contra o que o saber divino tinha determinado. Ora, os homens, aoagirem contra ordens do alto, penetram no território da liberdade. Nem tudo estásujeito à vontade de Zeus, suposto guardião da ordem. Zeus não é responsável portodos os incidentes. Defendendo-se, Zeus reconhece os limites de sua autoridade.Outras passagens falam da separação entre a Moira e a vontade de Zeus. Movemo-nos em território conflagrado. A rebelião prometeica está em andamento. Aspalavras e a ação dos homens fogem do controle divino. Deparamo-nos com trêsinstâncias: o destino (Moros), Zeus e os homens. A coesão das três foi abalada. Emquestão está a liberdade. Só assim, infringida a lei, há liberdade, ação, epopéia.

Homero associa o nome Odysseus ao verbo odýssomai (odiar) e aosubstantivo odyne (ódio). Não foi difícil repetir o jogo em português. Homero gostade brincar com sons. Procuramos recriar em palavras aveludadas, as aliterações de1.55. Prestamos atenção a efeitos sonoros em toda a epopéia e nos pusemos areinventá-los.

Palas Atena se faz jovem e guerreira em Mentes. Há algo de divino no jovem:a vida que se renova. É feminina a atração de Mentes, como a de Diadorim noGrande sertão: veredas, de Guimarães Rosa. Mentes e Telêmaco são um esboçoremoto de Diadorim e Riobaldo. Mentes é a alteridade que leva Telêmaco daadolescência à maturidade. Depois do contato com Mentes, Telêmaco toma decisõesadultas que espantam a própria mãe, Penélope. Ela pode retirar-se aos seusaposentos mais tranqüila porque agora há um homem em casa para se ocupar dosnegócios.

Palas Atena se humaniza em Mentes. Telêmaco é chamado semelhante aosdeuses (theoeidés). A meio caminho entre o divino e o humano, deuses e homens seencontram. Convivem. O homem se diviniza à medida que assume atos livres.

Para reconhecer Palas Atena, observação convencional não basta. Telêmacovê no seu interior (thymós) o que olhos não vêem. É a essa região que Telêmacorecua quando fala coisas que outros não ouvem, não devem ouvir. O diálogo interiorexiste. Para mantê-lo em proporções aceitáveis, Homero inventa Mentes, umdesdobramento de Telêmaco. O filho de Odisseu fala com Mentes como se falasseconsigo mesmo. As reflexões de Mentes são as de Telêmaco. No interesse davisibilidade, a epopéia objetiva o que de outra forma se perderia no invisível. Aoespelhar-se em Palas Atena, Telêmaco dá com suas qualidades femininas:serenidade, prudência, conselho.

Palas Atena recomenda a Telêmaco procurar o pai, o modelo que lhe falta.Como achá-lo? Telêmaco começa a encontrar o pai em Palas Atena.

O tempo é escultor inexorável. O filho que Odisseu encontrar não será o filho

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que ele deixou. Penélope não será a mesma. Não reencontramos o que perdemos.Sendo irreversível o tempo, irremediáveis são as perdas. E há os que trilham a rotada identidade. Procedem como se a personalidade os aguardasse cristalizada emalgum lugar. O que somos a cada minuto se destrói e se reconstrói. Navegação.Viagem. De ganhos e de perdas, se faz a vida.

Limitado é o campo de visão das personagens, o do narrador é amplo como oda Musa que sabe tudo. Homero respeita os domínios em que se move? Nem sempre.Como poderia Telêmaco saber que os pretendentes seriam punidos com a morte? Osentimento de justiça dá como certo o que não passa de hipótese. Os atos dospretendentes clamam por vingança já aqui.

Na sala de banquetes soa a voz de Fêmio. Quem resiste ao canto? O cantoreúne beleza e saber. A essas qualidades reunidas todos se rendem. Melodiosa eritmada, soa a voz. Definem-se os espaços. O público é masculino; feminino é oprivado. Penélope, acompanhada de suas criadas, não passa da porta. E é daí que dáordens. Telêmaco não consente a presença da mãe nem aí. Assuntos públicos são dacompetência de homens. Pelo menos na provinciana Ítaca. Mas no espaço privado amulher impera. Laertes não toca em Euricléia, sua escrava, por temor da esposa.

Telêmaco sai do espaço privado e entra no espaço público. A autoridade damãe é substituída pela autoridade paterna. No espaço privado, feminino, o filho nãose desenvolve.

Só há indícios antes da primeira Aurora. O divino (o saber maior que o doshomens) desperta em alguns lugares, em momentos dados. Ilumina Telêmaco edeixa os pretendentes afundados na insolência.

A demorada ausência do herói desencadeara a deterioração de Ítaca. O mundose movimenta por decisão do narrador que retardou o retorno por quase dez anos nointeresse da narrativa. A volta de Odisseu deveria coincidir com a maturidade deTelêmaco. Tarda o pai, cresce o filho. Só agora o tempo amadureceu para o retorno,é o kairós. Inverte-se a direção do movimento: da estagnação para a ação, da mortepara a vida. Depois de prolongada noite, o sol desponta para a execução do canto. Adecisão do concílio dos deuses obedece à estratégia da narrativa. Dois são os núcleosda ação: Ítaca e Ogígia. Como a ação simultânea é estranha ao canto, o narradorconta o que se passou em Ítaca antes de se deslocar para Ogígia.

O sono encerra o dia de muitos augúrios. No sono a vida se regenera. Orepouso noturno recebe em Telêmaco um homem de ação. Euricléia, de quem muitoainda se ouvirá, fecha-lhe a porta. Enquanto Telêmaco ingressa no sono por decisãosua, Penélope recebe o sono como um dom, como um entorpecente administradopara remover a tristeza e apagar a lembrança de fatos surpreendentes. Palas Atenafecha-lhe os olhos.

O narrador fecha o agitado panorama dos acontecimentos. Entre um episódio

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e outro, o repouso. O repouso do receptor. A cortina desce sobre o primeiro ato.

2. Primeira Aurora (2.1 – 2.434)

O despertar de Telêmaco lembra o despontar do Sol. O filho de Odisseu sai daescuridão e entra na vida pública, lugar em que brilham os homens. Dois são oslugares em que se distinguem os heróis: a assembléia e o campo de batalha.Telêmaco se veste com a solenidade dos que demandam combates. A veste assinalaa natureza e a importância dos atos. Os passos do filho de Odisseu são os de um quedecidiu assumir as funções de príncipe. A vida se renova. Telêmaco é outro. A visitados deuses distingue os agraciados. Palas Atena despertou o que estava adormecidonele. Ele sabe agir só. A retirada dos deuses abre espaço ao agir dos homens. Opríncipe entra na assembléia glorioso. O assento do pai, disputado pelospretendentes, é dele.

A voz dos arautos, silenciada por vinte anos, não divulga o nome de quemconvoca a assembléia. Qualquer dos nobres o poderia ter feito. Acorrem todos oshomens livres, condição assinalada pelos cabelos longos.

Toma a palavra o mais velho, Egípcio, a quem cabe abrir os trabalhos. Onarrador não se contenta com a indicação de suas funções. Entra na vida privadadele. Aqui se distingue a ficção do documento oficial. O documento despersonaliza.A ficção cria personagens. Personagens têm rosto, família, sentimentos, história. Onarrador não se contenta em detalhar o passado. Antecipa fatos que o receptorconhecerá depois. O passado cronológico faz-se futuro no plano narrativo. Onarrador informa que um dos quatro filhos de Egípcio, o que acompanhou Odisseuna campanha contra Tróia, Ântifo pereceu devorado pelo gigante Polifemo. Nomenenhum, como se verá, é mencionado no momento da desgraça. Para o gigante, osgregos são apenas pasto. Que lhe interessam nomes? A glória de Ântifo vem maistarde, agora, na assembléia de Ítaca. Ântifo vive na dor do pai. Na lembrança doancião, o filho desaparecido se destaca.

Egípcio, como não sabe quem convocou a assembléia, conjetura. Oexpediente permite ao narrador oferecer uma visão panorâmica da situação na ilha.A ausência de assembléia por vinte anos é a primeira informação que nos vem de suafala. Sem o exercício da assembléia, como poderiam funcionar as instituiçõespolíticas? Ítaca desperta de uma noite de vinte anos. A vida pública começa a sereorganizar. Ítaca começa a ser afetada pelo polítropo, Odisseu. Durante vinte anosela se manteve a mesma. A vida politrópica começa aqui.

Toma a palavra Telêmaco. Embora seja filho do rei, Telêmaco, para falar, sedirige ao centro como todos os demais. A assembléia nivela. O cetro não distingue osangue, o cetro confere autoridade a quem fala. Este é seu primeiro discurso,

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cuidadosamente preparado até ao gesto final. Tomado de fúria, Telêmaco lança ocetro ao chão. Sua intenção não é dizer a verdade, mas comover a assembléia, deoutro modo não teria dito que o pai está morto, embora esteja convencido docontrário. Telêmaco apresenta-se como um órfão desamparado, sem forças para pôrordem em sua própria casa, sem autoridade para proteger a mãe do assédio deindesejados. Espera que os itacenses, lembrados dos bons serviços que Odisseu, seupai, lhes prestou, façam justiça, livrando sua casa dos desmandos de pretendentesque há anos não se pejam de desmantelar a fortuna do rei. Percebe-se que a retóricajá alcançou estágio apreciável na vida pública. A espada e dois cachorros queacompanham o príncipe assinalam determinação. Tanto o manejo das armas quantoo discurso convincente distinguem o herói. Tocado por Palas Atena, que não estápresente, Telêmaco fala. A deusa da sabedoria desperta o saber, ausentando-se.

Antínoo mostra outro aspecto da mesma questão. Telêmaco tinha apresentadoa mãe como mulher sofredora, incapaz de sustentar a situação adversa. Outra é aimagem que nos vem de Penélope através das palavras de Antínoo. Do discurso dopretendente nasce uma heroína. Se conseguiu fugir do jugo de novo casamento, foipor sagacidade sua.

Penélope argumentara com a morte eminente de Laertes, pai de seu marido.Homenageá-lo é seu dever. Não é outro o sentido da confecção da mortalha que lhetoma longas horas de trabalho. Faz, entretanto, da adversidade força. A morte não ésó um fato biológico, a morte impõe deveres. Sendo limite, a morte convocaurgências. Penélope joga com a morte. Singulariza-se nisso. Heroína completa, elase distingue na habilidade das mãos e nos dotes do espírito. Isso a eleva à galeria dasheroínas legendárias. Se Helena foi conhecida pela beleza, Penélope se imortalizoupela sagacidade. As mulheres não se reduzem a um único padrão de feminilidade.

Penélope desafia os pretendentes. É imperioso defender-se dela. Se Telêmacopretende assumir a direção de sua casa, assim argumenta Antínoo, tome as medidasque as circunstâncias impõem. Persuada a mãe a abandonar as artimanhas com asquais vem iludindo os pretendentes e o povo de Ítaca. Devolva Penépole ao pai paraque as núpcias se possam realizar conforme os costumes.

As exigências de Antínoo batem na resistência de Telêmaco. Agirviolentamente contra a mãe tem graves conseqüências sociais e morais. Comopoderia o infrator fugir da justiça humana e divina? Ademais, quem lhe garante queo pai esteja morto? Telêmaco esquece deliberadamente a certeza de há pouco. Já nãose trata de comover o auditório. Debilitado pelas revelações de Antínoo, às quais nãofez alusão nenhuma, espera-se que apresente argumentos convincentes de que nãodeverá ceder aos imperativos do adversário.

Ítaca nos aparece dramaticamente no debate travado em praça pública.Descrições não há. O cenário humano e político se revela no confronto de

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antagonistas. O mundo desperta quando tocado pelo homem.A sessão é interrompida por um estranho vôo de aves que pressagiam o

retorno do rei e a morte dos que lhe molestaram a mulher durante sua ausência. Porque essa intervenção supersticiosa num ambiente desenvolvido com tantaperspicácia? Estratégias do narrador para antecipar o futuro e submeter o episódiointeiro ao signo da morte. Na economia do poeta, o vôo das águias, de expressivoefeito cinematográfico, alude ao que há de vir. O episódio das aves introduz umrecurso poético que antecipa o cinema. A imagem adverte sobre o que no futuropoderá ocorrer.

O signo das águias requer exame. Sendo ambíguo, as interpretaçõesdivergem. Haliterses (na interpretação exprime-se o desejo) entende que o signoanuncia a volta de Odisseu. Opõe-se Eurímaco, outro pretendente, para quem aságuias confirmam o que dissera Antínoo. Signos, ainda que sagrados, não extinguema dúvida. Suscitam controvérsias.

Telêmaco adapta os projetos às circunstâncias. Recusado o pedido que ospretendentes deixem o palácio, pede uma nau para buscar notícias do pai em Pilos eEsparta. O expediente iguala-se ao véu de Penélope, novo recurso para protelar ocasamento. Mãe e filho igualam-se na astúcia.

Percebendo a intransigência dos pretendentes, Mentor, velho amigo deOdisseu, incita o povo à rebelião. Ante a ameaça, Evenor, um dos pretendentes,recorre ao argumento da força. Uma rebelião contra os pretendentes não teria êxitonem com a presença de Odisseu. Inseguro, entretanto, do êxito, concorda com apartida de Telêmaco, embora lhe pareça melhor que trate de obter notícias do pai naprópria ilha. A insegurança o lança em contradições. Para evitar que o conflito seagrave, dissolve a assembléia que ele não convocou.

Prisioneiro em sua própria ilha, Telêmaco terá que recorrer à solércia paraburlar a vigilância dos pretendentes, que agem como um partido organizado e forte.Esse é o conselho de Mentes, Palas Atena, na forma de um aliado de Odisseu, ospróprios pensamentos de Telêmaco, objetivados na deusa.

Telêmaco retorna ao palácio e à alegre companhia dos pretendentes semmostrar-lhes a cordialidade costumeira. Os elos estão rompidos. Risos, ditosirônicos, insultos. Reunião de bêbados. Entre opiniões emitidas ao acaso, elevam-seconjeturas reais: o risco que ronda os pretendentes e a viagem de Telêmaco que, nomar, poderá ter o destino do pai.

Telêmaco se retira. Ao preparar a viagem, outra voz pretende retê-lo nopalácio. Sem ameaças dessa vez, voz de afeto, as palavras da ama fiel, Euricléia.

Prostrados os pretendentes pela embriaguez, Telêmaco se evade, protegidopela noite, com uma nau emprestada, tripulada por gente reunida às pressas.

O dia iniciado no brilho do discurso acaba em fuga noturna.

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A assembléia dos itacenses reflete a assembléia divina.

3. Segunda Aurora (3.1 – 3.403)

Esta Aurora não é só início de ação, ela marca também o fim da navegaçãonoturna desde o porto de Ítaca. A longa noite de Ítaca, noite de vinte anos, terminana Aurora de Pilos. Lá, a insolência, aqui, a piedade. O povo de Pilos sacrifica aosdeuses. Nestor, o sábio, atribui a eles a sorte de estar salvo em sua terra, em meio anotórios infortúnios.

A reserva de Telêmaco (o receio de falar) é própria de principiante. Oaplaudido discurso que proferiu em Ítaca não foi suficiente para remover-lhe otemor. Acresce que está em terra estranha, ante um ancião renomado, companheirodo pai, Nestor. O aprendizado é lento. A viagem é de aprendizagem.

Soam nomes ilustres, silenciados em Ítaca. A nobreza itacense estáinteressada em apagar o passado, declará-lo morto. O passado da Grécia despontacomo o futuro de Telêmaco, o tempo em que Telêmaco deverá entrar. O destinoadverso que perseguiu a muitos reforça a insegurança da vida humana. Êxito nenhumafasta perigos. Muitos dos que alcançaram a vitória em terra pereceram no mar. Avigilância é imperiosa.

Vem o exemplo de Orestes, enfaticamente lembrado, exemplar para oTelêmaco indeciso. Ao contrário do que ocorre na tragédia de Ésquilo, a ênfase recaisobre a ação ignominiosa de Egisto, que se apropriou da esposa de Agamênondurante a ausência das tropas gregas na guerra contra Tróia. Egisto e os pretendentesde Ítaca se igualam. A reação de Orestes, a espada que atravessa o amante da mãe, éresposta à pergunta tácita: como proceder com os pretendentes? Da culpa deClitemnestra não se fala. Ela não é mais que uma mulher seduzida. Da culpa deAgamênon também não. Orientar Telêmaco é o objetivo da versão de Nestor. Antesda criação do tribunal, o filho acumula as funções de carrasco e de juiz quando ocrime imobiliza o pai.

A formação de Telêmaco está em andamento. Nestor, que lhe revela episódiossignificativos do passado, é um de seus instrutores.

4. Terceira Aurora (3.404 – 3.490)

Ao romper do dia, Nestor ordena um sacrifício em homenagem a Atena. Areligiosidade da gente de Pilos contrasta com a insolência da nobreza itacense. Anarração minuciosa realça a solenidade da cerimônia.

Policasta, filha mais nova do anfitrião, banha Telêmaco. A homenagemdistingue o estrangeiro que, depois de untado e vestido, ocupa assento ao lado do rei.

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De Nestor é o carro que leva Telêmaco a Menelau, em Esparta. O filho deOdisseu parte acompanhado de Pisístrato, filho do rei. O narrador não se demora emdescrever a viagem. No palácio de Diocles pernoitam. Do que se passou aí, onarrador não diz nada. A casa de Diocles não é mais que uma estação no trajeto aEsparta.

5. Quarta Aurora (3.491 – 4.305)

A viagem continua na alvorada. Chegados em Esparta, surpreendem a cidadeem festa. Celebram-se as núpcias de um filho e de uma filha do rei. O cansaçoestampa-se no suor dos cavalos, desatrelados por escravos. A narrativa, omissaquanto a detalhes da viagem, demora-se na euforia palaciana. Canta um aedo ao somda cítara. Saltimbancos.

A experiência ensinou a Menelau o valor sagrado da hospitalidade. Dá com adecisão adequada por ter vivido muito. O que ele aprendeu faz parte do seupatrimônio. O serviçal é inferior à Menelau por não ter a experiência que o amoacumulou. Menelau o chama de népios (infantil). Apesar da idade, o serviçal éignorante como uma criança.

Em Esparta, a ordem está centrada em Menelau. Nas mãos do rei está acontinuidade da família, o poder. Menelau cuida até da sorte de um filho bastardo.Telêmaco não tem quem cuide dele, embora seja filho legítimo. Partiu em busca dopai. Vê o que Ítaca poderia ser se Odisseu estivesse no palácio.

O palácio reflete a prosperidade. O sucesso dos rei é visível. Aos olhos deTelêmaco, o esplendor de Menelau é divino. Divino é o alimento. No alimentomanifesta-se o poder de Zeus, em quem esplende a natureza. A natureza produz orei. Vem da natureza a vontade de poder. O cuidado com o corpo é o cuidado comaquilo que a natureza produz.

Da casa de Odisseu à casa de Menelau o contraste é flagrante. A austeridadede uma e o fausto de outra. A oposição compreende a região em que uma e outraestão edificadas. Esparta é fértil, o terreno de Ítaca é tão pobre que não dispõe depastagens apropriadas à criação de cavalos. A ação se movimenta espacial ecronologicamente. Confrontam-se tempos e espaços.

Esparta difere também da religiosidade da cidade de Nestor. Aqui Telêmacoconhece a vida social, mundana.

Menelau explica a origem das riquezas. Lamenta a morte do irmão, de amigose de Odisseu, tristeza que lhe diminui o prazer da fortuna reunida nas andanças.Consciente dos limites humanos, Menelau se modera. A vida o fez sábio.

Aos olhos responde a voz. O divino leva à reflexão sobre o humano. A voztraduz o invisível, as dores de Menelau. O domínio dos olhos é limitado. A palavra

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não conhece limites. Devassa o que olhos não vêem. Revela o distante, o passado. Amiséria humana. O divino percebe-se no silêncio. A palavra revela o perecível. Peloimperecível mede-se a perecibilidade do homem.

Entra Helena, esplêndida como uma deusa, Homero a compara a Ártemis.Reconhece, de imediato, Telêmaco por semelhanças com Odisseu. A esposa deMenelau fala com desembaraço, embora não seja cômoda a sua situação no palácioou na Grécia. Carrega a mácula da traição conjugal. Os tradutores de línguaportuguesa protegem Helena ao referir-se nesse passo a si mesma. Segundo OdoricoMendes, Helena teria dito que os gregos lutaram em Tróia por culpa dela (“porminha culpa”). A culpa se torna cegueira na tradução de Carlos Alberto Nunes. Maso texto grego diz que seus olhos de cadela (emeio kynópidos heinek´) arrastaram ossoldados gregos às muralhas de Tróia. Anton Weiher, tradutor alemão, bem maissevero que os brasileiros, prefere a tradução literal: “wegen meiner hündischenAugen”. Mesmo que kynopis possa ser interpretado como “desavergonhada”, severassão as palavras que Homero coloca na boca da heroína. Não percamos a lembrançados olhos, importantes na sedução. O olhar, que desempenha papel relevante nacultura grega, pode levar a atos desatinados. A fascinante Helena não era infensa aopoder das imagens que penetram nas retinas. De olhar agudo, percebe no primeirolance semelhanças entre o jovem que os visitava e Odisseu. Destaca peculiaridadesque tinham escapado a seu esposo.

Telêmaco conhece uma mulher da idade de sua mãe, de natureza muitodiferente da mãe. Helena, mulher de sociedade, bela e rica, participa dos banquetes,enquanto que Penélope, na ausência do marido, não ousa atravessar a porta do salãode festas. Intimidado pela imponente presença de Menelau e por essa mulher deolhar canino, o jovem cala. Pisístrato, mais cultivado que o hóspede inexperiente,toma a palavra em seu lugar. Como todos têm mortos ou desaparecidos a lamentar, oepisódio culmina em lágrimas que nem Helena e Menelau sabem conter.

Entretanto, a alegria da noite não deve ser empanada por fatalidadesinevitáveis. É o que observa Menelau. Helena, hábil anfitriã, lembra-se de deitaruma droga no vinho do assustado filho de Odisseu. O entorpecente, atribuído emÍtaca à intervenção divina, é administrado em Esparta por mão humana. No ambientemundano em que se está, os motivos religiosos recuam. A longa digressão sobre aarte farmacológica de origem egípcia ambienta textualmente o efeito do remédio.

Helena pretende aliviar a tristeza contando histórias alegres. Lembra umepisódio jocoso, que só ela conhece, Odisseu em Tróia como espião, em farrapos demendigo. Assegura ter sido a única a reconhecer o guerreiro sob os disfarces.Chegou a recebê-lo em sua própria residência, garantindo-lhe segredo enquanto obanhava. Acrescenta que nessa ocasião já lamentava a insensatez de ter deixado filhae marido, de quem elogia a inteligência e a beleza. Voltando a refletir sobre o seu

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ato, esquece seus olhos caninos e se diz vítima de uma loucura (ate), infundida porAfrodite. Não é essa a única vez que personagens épicas lançam mão dessaexplicação para isentar-se de culpa. Agamênon recorre ao mesmo expediente para oataque malsucedido a Tróia.

Menelau, irônico, conta outro episódio. Estando ele e seus companheiros nocavalo de pau, Helena rodeou três vezes o portento, chamando os soldados gregoscom a voz das esposas deles. E vinha acompanhado de Deífobo, outro amante. Nãofosse Odisseu a tapar a boca dos iludidos, Helena teria posto tudo a perder. Esseincidente, não contestado por Helena, infirma a regeneração.

A conversa não descamba, entretanto, em constrangedora rixa de casal. Atensão se desdobra veladamente. Conversa de salão numa casa real, conduzida comfinura em que os interlocutores reagem com suas qualidades pessoais. Conversa degente de boas maneiras. Através das observações serenas de superfície aparece umarealidade hostil. As versões conflitantes distanciam fala e fato. O narrador recorre ameios que instalam a suspeita.

Telêmaco vem, enfim, à fala. Lamenta que seu pai, embora sábio, não tenhaescapado da morte. Atendendo ao desejo de se recolher, Helena providencia oarranjo das acomodações.

6. Quinta Aurora (4.306 – 4.847)

Depois da alegria, os negócios. Pela manhã, Menelau pergunta pela causa davisita. Telêmaco relata os desmandos que infestam o palácio real de Ítaca,ressaltando a necessidade de informações sobre o pai que o orientem nasprovidências a tomar. Menelau, comovido, recorda a última vez que lhe falaram deOdisseu. Foi em Faro. Nessa ilha, próxima ao Egito, Menelau apoderou-seardilosamente de Proteu para obter informações indispensáveis ao retorno. Adivindade aponta um motivo sagrado para as tentativas frustradas de voltar: a faltade uma hecatombe a Zeus. Menelau soube ainda que Agamênon teria morte violentae que Odisseu estava preso em Ogígia. Proteu é polítropo à sua maneira. CaptarProteu é apoderar-se do saber multiforme. Ninguém sabe mais que Proteu porque elese torna as coisas que sabe.

A fala de Menelau introduz o receptor no mundo fantástico em que se moveuOdisseu. Toda vez que o narrador se distancia de lugares conhecidos, empalidecemas formas sensorialmente percebidas. Abrem-se as portas à poesia. O futuro, queabriga apreensões e expectativas, adquire consistências de presente. A narrativa podeseguir tantas direções quantas são as formas de Proteu. Odisseu não é o úniconarrador. Além do ponto de vista dele temos agora a versão de Nestor, de Menelau,de Helena. Abre-se o leque, nem sempre convergente, de várias visões. A voz das

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Musas se refrata nas vozes dos narradores. Os ouvintes de Odisseu não sabem tudo.Proteu é uma imagem de Odisseu, polítropo.

A viagem de Telêmaco vincula a Telemaquia ao conjunto do ciclo lendáriotroiano. Além do contato direto com três dos que retornaram, ouvem-se nomesilustres: Agamênon, Aquiles, Ajax. A viagem é também uma volta ao mundo do pai.Telêmaco conhece o passado, parte dele. A formação do jovem progride. Como nadaé seguro, importa navegar com sabedoria. A busca de Telêmaco não conhece avariedade de incidentes nem a intensidade dramática das viagens de Odisseu.Poderia ser diferente? A busca de Telêmaco é apenas introdutória.

Narrados ao sabor das circunstâncias, os relatos não obedecem a disposiçãocronológica. A situação evoca o episódio passado conotado de significaçõespresentes. O narrado não se iguala ao acontecido, irrecuperável, mesmo que procedade protagonistas.

Um corte transfere a ação do palácio de Menelau em festa a Ítaca. LáNoêmone revela a Antínoo e aos pretendentes a fuga de Telêmaco. Antínooconsidera o fato início dos males. Constatam que Telêmaco já é adulto, planejam-lhea morte. A viagem repercute diferentemente na mãe do protagonista. Abandonadapelo filho ameaçado de morte, que resta a Penélope? Abatida, invoca a proteçãodivina. Para consolá-la, Palas Atena entra no quarto em forma de Iftima, irmã. Nãose aflija por Telêmaco, Palas Atena o acompanha. O narrador vai da ação às reações.Essa é a razão do corte. A dor da mãe aflita fecha o episódio centrado em ausências.

A primeira parte do poema termina inconclusa. Telêmaco não encontrainformações seguras sobre Odisseu, os pretendentes não se dispersam, Penélope nãose mostra favorável a novo casamento. Um prognóstico atroz: Telêmaco poderá sermorto ao retornar. O narrador interrompe essa linha da narrativa com Telêmaco noestrangeiro.

O narrador sabe modular efeitos. Passa do confronto de paixões e do livredebate de idéias no primeiro canto à solene religiosidade do segundo, passando de láao ambiente luminoso e mundano do terceiro e às fantásticas aventuras do quarto.Joyce, ao variar os estilos no Ulisses, reinventa recursos criados pelo autor deOdisséia.

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Odisséia, a epopéia das Auroras (2)

Donaldo Schüler

Regresso (cantos 5-12)

1. Primeira Aurora (5.1-227)

Deitada nos braços de Titono, a Aurora se regenera para iluminar o mundo doshomens e dos deuses. Os dedos que incendeiam o firmamento são os mesmos queinflamaram o corpo do companheiro. Ao despertar, a Aurora erotiza céus, terra ecanto. O silêncio e a noite geram a luz que embeleza o dia. Do leito à luz, a vida serefaz. Os raios deslizam sonoros no céu, luz levam (phoos pheroi). O adormecer e odespertar da Aurora marcam o ritmo dos versos e do universo. A Aurora que seergue do leito de Titono introduz a seqüência em que Odisseu se liberta dos abraçosde Calipso. A divina Aurora ilumina o espaço. Com a libertação de Odisseu,desponta para Ítaca um novo dia.

Aqui homeristas vêem o início de novo poema: “A Odisséia propriamentedita”, que se estenderia até ao décimo segundo canto. Argumento: um novo concíliode deuses que parece o primeiro, embora seja diferente. Um poeta posterior, aoorganizar a Odisséia que temos em mãos, teria feito a montagem de três epopéias: ATelemaquia (1-4), o Regresso (5-12), Ítaca (13-24). Trata-se de uma ficção – ficçãoerudita, se quiserem –, contudo, ficção. Não sendo ficção, onde buscar provasexternas para sustentar a hipótese?

A ficção provoca suspeitas até na terminologia. Fala-se em concílios tendoem mente reuniões que em virtude de despesas com translado e estada não podemser convocados com freqüência. Não se atribuam limitações que tais a deuses que jámoram no Olimpo, locomovendo-se, quando necessário, com rapidez superior à dosmais velozes aparelhos sem gastos nem desgaste. Basta uma palavra do poeta paravê-los todos confortavelmente acomodados. Os mais chegados ao trono supremoentram sem formalidades na sala de audiências do Pai de deuses e de homens.Secretárias ranzinzas e guardas ossudos para garantir a tranqüilidade de mandatáriosainda não foram inventados. Concílios? Trata-se, antes, de encontros informais,

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requeridos por urgências poéticas. Comparem-se as reuniões divinas com aassembléia convocada por Telêmaco. O Olimpo não observa o ritual da agorá deÍtaca.

Contra ficções eruditas preferimos imaginação literária, bem mais condizentecom a matéria em pauta. Considerem-se as estratégias do narrador, que, ao fixar aversão escrita, conserva farta experiência de exposição oral. Começou com umareunião de algumas divindades para deliberar sobre dois assuntos urgentes: a viagemde Telêmaco em busca de informações sobre o pai ausente e a libertação de Odisseu,prisioneiro de Calipso. Anterior à época da narração simultânea, o narrador contaprimeiro e circunstanciadamente a visita de Telêmaco a renomados companheiros deOdisseu, já devolvidos aos seus lares. É fácil compreender que, findos quatrosubstanciosos cantos da Telemaquia, reste ao ouvinte vaga lembrança da reunião quedesencadeou a sucessão dos eventos. Nada mais natural do que retornar ao ponto departida. Homero é bastante poeta para não cansar ouvintes com impertinentesrepetições. Repete inovando, assim a repetição se faz tolerável, agradável até,recurso retórico, Homero o ensaia na elaboração épica, às vezes. Ouvinte algum teráinteresse em conferir coerências. Para fazê-lo, falecem recursos. O canto se desfazem ar. Conferir documentos é cuidado de leitores. De alguns. Não de todos.

Tanto reuniões de homens quanto de deuses lembram a Aurora. Esta e aquelasinauguram o dia, iluminam. Assembléias coíbem prepotência no céu e na terra. Ademocracia alvorece.

Homeristas costumam tratar deuses homéricos com severidade teológica.Perguntam se a religião da Odisséia e da Ilíada é uma só. Procuram contradições nasdiferentes epifanias. O equívoco de tratar poetas como teólogos começa porHeródoto ao declarar Hesíodo e Homero inventores dos deuses. Eles de fato o foram,mas como poetas. Leitores que se aproximam da Divina Comédia ou do ParaísoPerdido com olhos de intérpretes de São Tomás ou de Calvino são cansativos. APalas Atena de Homero, além de ser deusa, comporta-se como mulher. Eternidade,força e rapidez são marcas de sua divindade. No mais, Palas Atena é humana.Enfrenta exaltada o rei e pai por se retardarem as medidas acertadas para libertar seuprotegido. É justo o modo como os poderes do Olimpo tratam um homem nobre,sensato e bondoso como o prisioneiro de Calipso? O descaso divino ratifica ainjustiça. Isso já não é só queixa de uma deusa descontente. O discurso de Atenaacolhe a impiedade dos homens. Na voz divina soa outra voz, letal aos deuses. Nãose declarem monológicos os poemas de Homero. Os primeiros acordes da sinfoniabakhtiniana soam aqui. Não se procure coerência entre a fala exaltada de Atena e osfeitos de Odisseu. Aos advogados interessa a força do argumento, não a veracidadedos fatos. Já temos retórica.

Zeus, tonitruante em muitas refregas, sabe ser cordato em conflitos. Para o rei

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divino, Palas Atena é só uma filha irritada. Ele lembra as providências já tomadas ede imediato passa a executar os outros itens da resolução.

A rapidez com que se movimenta Hermes, encarregado de levar a Calipso aordem de soltura, espanta menos hoje do que na época em que o cavalo oferecia omeio de transporte mais veloz. Sandálias que permitam translado à velocidade dovento, das aves, do som e da luz entraram nas antevisões da ficção. O soberbopanorama marítimo é evocado no deslocamento de Hermes, comparável ao vôo dagaivota.

Hermes contempla a paisagem com olhos admirados de turista. Delicia-secom o cheiro de madeira queimada, escuta o canto solitário da ninfa, observaárvores, pássaros, ninhos, regatos, relvas e flores. Mas não escolheria esse lugar paramorar. Como os gregos, Hermes prefere a cidade ao campo. Não silenciou odesgosto que lhe causou a ordem de levar mensagem a esses confins. Sócrates evitouaté os acolhedores recantos nas proximidades de Atenas. Só obrigações militares odistanciaram dos muros. O apego dos gregos à cidade é tamanha que Aristótelesenumerou a vida urbana entre as qualidades essenciais. Não admira encontrarmosOdisseu em prantos à beira do mar. Os gregos preferem a cidade ao paraíso. Não hábenefício, lembra Atena, que compense o prejuízo de sumir da memória. Épreferível ser lembrado no teatro das ações humanas a viver inativo à sombra deuma deusa.

Embora divina, Calipso é mulher. Que lhe valem poderes se vive só,humanamente só? Calipso não prende por maldade. Impedir que Odisseu parta é atode mulher desesperada. Gostaria de possuí-lo inteiro; dominar-lhe o corpo é omáximo que logra. Os pensamentos de Odisseu, materializados em lágrimas, nãosaem de Ítaca.

Os deuses superiores mostram-se sensíveis às dores do prisioneiro sem levarem conta as aflições da carcereira. Dura é a ordem do Olimpo. Não há vestígios decompaixão nas palavras de Hermes, o mensageiro. De providências para minorar ossofrimentos da abandonada não se cogitou. A dor humaniza Calipso. Humanizada, aninfa comove. Nela se refletem os conflitos de outras solidões. Desinteligências eincompreensões dividem a corte divina. Se os deuses não são mais que reflexos doshomens, não espanta que um dia essas imagens se extingam.

A ordem vem do alto, mas a decisão de cumpri-la é de Calipso. O decreto nãoanula decisão responsável. Por contar com vontade livre, Calipso guarda até o fim aesperança de que Odisseu, seduzido pela oferta da liberdade, resolva partilhar comela as delícias da harmonia interminável.

A viagem é também vertical: dos deuses superiores aos homens, passando pormundos intermediários onde residem as Ninfas. O que se aloja no alto oprime.Criadas estão as condições para se pensar no fortalecimento dos espaços em que

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todos atuem como iguais.Calipso não seria o que é fora do ambiente em que vive confinada. A ninfa

lembra as plantas presas pelas raízes. Visto que todos os deuses nasceram da terra,ela se mantém próxima às origens, como a Aurora, como Circe, como as Sereias.Rumo à liberdade, os deuses se espiritualizam e, espiritualizados, se precipitam nosabismos do nada.

Kalypso (Calipso), nome derivado do verbo kalypto, é a que cobre, envolve,oculta. Kállyma (véu), substantivo que procede do mesmo verbo, designa uma peçada indumentária feminina. O nome qualifica a mulher que o detém. Como de outrosepítetos, pode derivar-se dele uma narrativa. Calipso é a mulher que, vivendoescondida, esconde; envolvida, envolve. Já não estranha que Hermes a encontrejunto ao tear. Ela mesma gera os véus com que se envolve, com que envolve.

Calipso seduz com a beleza, a juventude, a eternidade. Esta é a superfície.Odisseu percebe o que se passa além do esplendor que tem diante dos olhos: aternura da esposa, as necessidades do filho, o aplauso dos seus.

A imobilidade de Odisseu na ilha da ninfa que esconde lembra o período deuma prolongada gestação. Com o decreto do Olimpo, Odisseu revém. Cautela, umadas qualidades que o preservou, é reação heróica à notícia da libertação. A ninfadecepcionada estaria pensando em matá-lo no mar? O herói algema-lhe os braçosnas cadeias do juramento.

2. Segunda Aurora (5.228-389)

O decreto dos deuses abre o caminho. Para vencer as ondas, Odisseu não conta como amparo de ninguém antes de ser atirado contra as rochas de Esquéria.Contratempos o empurram à época em que homens se aventuraram ao mar comembarcações rudimentares, feitas de troncos atados com cipós. Do paradisíacoabrigo da deusa, Odisseu cai nas duras tarefas que separam os homens dos outrosseres vivos. Distanciando-se da terra firme, Odisseu é descoberto por Posidon, umadivindade inimiga. Como entender de outro modo a tempestade que lhe despedaça ajangada?

Açoitado pelos ventos, Odisseu fala com o thymós. Este ainda não é omonólogo interior. Quem o pratica não fala a ninguém, permitindo que o discursoretorne às rudimentares desarticulações do nascedouro. Falando ao thymós, Odisseuformula sentenças bem construídas, discursa coerentemente. Thymós concentra ódio,paixão, vontade de viver. Thymós responde com batimentos cardíacos, thymós é ocoração. Com o thymós falam os que já não têm a quem falar. Em face da morte,Odisseu pensa na vida, ainda que esta se reduza a som, a fala, a renome. Entenda-seOdisseu: recusou a imortalidade oferecida pela ninfa e pensa em imortalidade. Vê-se

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que há imortalidade e imortalidade. Relevante é a imortalidade na memória doshomens (kleos) e esta, conquistada só com feitos, ninguém a pode dar. A outraimortalidade, a presenteada, a que precipita no olvido, não atrai heróis. Por que nãomorreu, pensa Odisseu, quando defendia contra milhares o corpo de Aquiles? Quemlembrará um devorado pelas ondas em luta sem testemunhas?

Testemunha dos trabalhos no mar é a visão abrangente do poeta, dá relevoheróico aos feitos no úmido deserto. O cataclismo requer resoluções rápidas:agarrar-se a uma viga, nadar. A intempérie arroja o náufrago contra paredes rochosase o devolve, já próximo do destino, ao mar. A calamidade o situa: acima, os deuses;abaixo, o abismo; entre os deuses e o abismo está ele, o homem. A vitória nessaadversidade honra tanto quanto os feitos que ilustram os guerreiros no campo debatalha. Odisseu é polytlas, um que suporta muito, tenaz. Errou ao recusar a eternahospitalidade de Calipso? Essa idéia não lhe ocorre. Sabe o que escolheu: trabalhos,perigo, morte. Contra a sedução da imortalidade, Odisseu optou pela inseguracondição humana.

O triunfo sobre a natureza é também qualidade dos heróis de Júlio Verne.Esses dominam, entretanto, amparados pela técnica. Em A ilha misteriosa, o homemperdido, aproveitando recursos que descobre nela, torna-se ceramista, metalúrgico econstrutor. Conhecimentos técnicos lhe possibilitam a conquista da eletricidade einstalação telegráfica. Odisseu, perdidos os navios e os companheiros, não seempenha em transferir a civilização para regiões inóspitas. Triunfa só pela força dosbraços e pela inteligência. Muitos dias de expectativa, aflição e trabalho seconcentram nesta Aurora.

3. Terceira Aurora (5.390-6.47)

Mais de vinte dias sem Auroras. A Deusa dos dedos róseos desponta quando Odisseujá não conta com outro auxílio além do manto de Leucotéia. Quando Posidon, sujeitoaos decretos de Zeus, fustiga os corcéis a paragens distantes, a esperança renasce.Bóreas, a serviço de Atena, abre o caminho à embocadura do rio. Na vida atribuladade Odisseu, devolvido à terra firme, fulgura nova etapa. Findas as aventuras no mar,começam os trabalhos da terra. Um sono de mais de trinta horas separa esta fase daanterior. A importância das Auroras de Homero é narrativa. Elas anunciammudanças notáveis na seqüência dos acontecimentos. A Aurora da redenção deOdisseu colide com a Aurora dos devaneios conjugais de Nausícaa. Salvo da morte,Odisseu desperta para ardências juvenis.

4. Quarta Aurora (6.48-7.347)

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O Sol ilumina uma ilha hospitaleira. As pessoas gostam de navegar, jogar, dançar ecantar. Depois das ondas e de perigos letais, a ternura. Viajamos da violência aoidílio (quadros pequenos, tocantes). Também aí atuam os deuses. No Fedro de Platãoe além do Fedro, o homem percebe o divino no ínfimo, no cotidiano, no levemovimento das folhas. O divino sabe ser doce. É Palas Atena que promove oencontro de Nausícaa com Odisseu. Na manhã em que se abrem as portas do palácioreal, a Aurora desponta majestosamente instalada em seu trono (éuthronos). Paradespertar a princesa, a Aurora ostenta soberanias de rainha.

Sabemos mais que Odisseu, vemos mais. Além de vermos o que Odisseu vê,observamos Odisseu, descobrimos o encoberto mundo dos deuses, seus conflitos esuas decisões. Percebemos conexões que Odisseu desconhece. Aparece-nos emrelação causal o que para Odisseu é mistério. Já não estamos habituados a serinstruídos, preferimos tirar nossas próprias conclusões. Aceitamos as explicações deHomero como informações de um mundo distante, incorporadas na arquiteturaficcional da epopéia. Homero nos informa que Odisseu dorme de sono solto diaadentro por artimanhas de Palas Atena, interessada no encontro do herói e Nausícaa.Na verdade, Atena está a serviço do narrador. Homero precisa imobilizar Odisseupara acionar movimentos no palácio de Alcínoo. A deusa intervém como recursonarrativo. É ela que conecta a noite de Odisseu com a noite de Nausícaa. Autoridadeautoral, atrelada à autoridade divina, coordena tempo e espaço no mythos. Já natranqüilidade noturna que antecede o dia, as vidas de Nausícaa e de Odisseu seaproximam. Os deuses agem no oculto. O sono e a noite imobilizam só em parte. Anoite é genesíaca. Enquanto os homens dormem, agem os deuses. O encontro poderiater sido ocasional. Assim seria na epopéia sem deuses, o romance antigo e moderno.Os deuses tornam inteligível o que sem eles seria obra do acaso.

Palas Atena, a deusa da sabedoria, a guerreira, apresenta-se a Nausícaa emforma de amiga, a filha de Dimas. Adapta-se aos sentimentos e aos interesses damoça para persuadi-la a buscar as proximidades do bosque em que Odisseu dorme.Fala-lhe dos deveres em vésperas de casamento. O expediente introduz o idílicoacontecer cotidiano: a rainha e suas escravas, o rei que se dirige ao conselho dosnobres, os preparativos para levar princesa e escravas ao regato campestre. Vemos oque Ítaca poderia ser se Odisseu não tivesse partido para a guerra.

Mesmo na vida pacata de todos os dias, o que aparece não é o que aparentaser. Quem fala à princesa em sonho não é a filha de Dimas, por pudor Nausícaa nãodeclara ao pai os motivos que a levam ao rio. Bem antes de Heráclito, a harmoniainvisível é mais forte que a visível.

Em lugar da visão de carros de guerra, acompanhamos a viagem de umajovem com sonhos conjugais. De fato, são duas viagens; a outra é a viagem da jovemprotegida à situação responsável de casada.

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Depois do trabalho, as mulheres se entregam a folguedos que despertamOdisseu. O assombro das moças está na comparação: o estranho lhes parece um leãode montanha, habituado à chuva e aos ventos, ameaça voraz a rebanhos. Acomparação exprime o sentimento de moças que se crêem ameaçadas pela presençahedionda de um homem. Do geral, o narrador desce ao particular.

Em meio à debandada, Nausícaa se detém. Sua responsabilidade principescavence o temor. Se o estranho necessita de ajuda, como poderia justificar a vileza dafuga? Afrontando riscos, Nausícaa se aproxima e ouve o que ouvidos femininosgostariam de ouvir. Odisseu compara a jovem na estatura e no porte a uma deusa.Odisseu, poderoso orador ante soldados rebeldes, também sabe achar palavras quetoquem a sensibilidade da mulher. Não profere, entretanto, galanteios gratuitos. Viufeiticeiras, viu ninfas, viu sereias. Há quanto tempo não vê mulher humana? Oexplorador de regiões agrestes não perdeu as finuras do homem de ambientesrequintados. Como náufrago, suplica a gentileza de vestes e abrigo.

Odisseu ainda não tem nome. O nome virá para selar os feitos. Os feitos nãoexplicitam o nome. O nome coroa os feitos.

Se a fuga das criadas é natural, Nausícaa desafiar o perigo é sobrenatural. Nãose entenda sobrenatural como fora da natureza mas como extraordinário, sendoordinário o comum, o previsível, o ditado pelas leis que regem a relações humanas.Sobrenatural é a ação imprevisível, a liberdade. Há motivos para Odisseu confundira jovem com uma deusa. Destacando-se do comum, ela adquire porte divino, reluz.Os atos de Calipso, apesar da excepcionalidade que cerca a ninfa, são naturais.Nausícaa, frágil, desprotegida, mortal, é capaz de ato sobrenatural, livre.

Olhos femininos se deliciam nos músculos reluzentes do Odisseu banhado. Oleão sumiu. Em seu lugar aparece um corpo escultural, revestido de ouro pelos raiosdo sol. Os cabelos pendem como jacintos. Fala, banho e vestes fazem do leão umhomem. Palavras e tecidos suavizam as relações. Sem elas, presenças agridem. Onarrador, manipulador de perspectivas móveis, mostra corpos e sentimentos emtransformação.Nausícaa, vendo o estrangeiro a distância, exprime o desejo de tê-lo como esposo.Senhora das circunstâncias, mostra-se também senhora de si. O narrador apanhareações conflitantes. Não convém, pondera a princesa, afrontar os costumes da terra.A prudência manda que o estrangeiro a siga discretamente a distância. Não se digaque a princesa desprezou os pretendentes de Esquéria, seduzida por um náufrago.São ponderações de uma moça que não é joguete de paixões. Odisseu reconhecenessa aparição envolvente uma alma irmã.

A imponência da cidade é bem mais convincente vista pelos olhos estupefatosde Odisseu, conhecedor de costumes e de povos. Nausícaa já lhe dissera que osfeáceos, não sendo guerreiros, distinguem-se como navegadores. Odisseu admira

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barcos e porto, muralhas e praça.Antes de Odisseu entrar no palácio, Palas Atena, na forma de uma jovem

gárrula, familiariza-o com a linhagem do rei. A árvore genealógica une tempo eespaço, homens e deuses, o universo. Vínculos fortes robustecem o homem de ação.Odisseu ainda é um fragmento nas ruas de uma ilha do Mediterrâneo.

Informações lhe vêm pelos olhos e pelos ouvidos. A solidez do paláciosublinha a solidez da linhagem. A opulência de Alcínoo já foi lembrada por Zeus:Odisseu levaria de Esquéria, em presentes, riquezas maiores do que as que seperderam no fundo do mar. Riquezas, hoje frutos do trabalho, são nesses tempossonhados garantia material do favor celeste. Heródoto abala, mais tarde, a certezaque no mundo da Odisséia ainda vige sem contestação. Compare-se Alcínoo e Creso.Sólon, confrontado com os tesouros fabulosos do rei, observa ao monarca estupefatoque ninguém pode ser considerado feliz antes de morrer. Essa incerteza ainda nãomina a segurança dos abastados de Homero. Se riquezas distinguem os favorecidosdos senhores olímpicos, como não há de sentir-se Odisseu, o sofredor, que não édono nem das vestes que lhe cobrem o corpo?

O dia que começou à beira de um regato termina no palácio de Alcínoo.Despedidos os nobres, Odisseu tem uma audiência com o casal real. Esboça-seinvestigação estratégica. Antes de acolher o estrangeiro no palácio, Alcínoo e Atossaprecisam saber quem lhes pede hospitalidade. Atossa estranha a roupa. Odisseu teráque esclarecer como usa panos que saíram do tear da rainha. Quem é? Donde veio?O que acontecerá se o apanharem como impostor? Mesmo nessa ilha paradisíaca, operigo não é menor do que na caverna dos ciclopes. Riscos rondam a vida.Cauteloso, Odisseu começa pelo fim. (Estratégias do narrador para dar vida àsaventuras no mar.) Para comover, Odisseu acentua os sofrimentos. Odisseu quer-seacolhido como um infausto prisioneiro de sete anos. A versão de agora afasta anarrativa dos fatos. Pouco importa a verdade, relevante é comover Atossa. Oexpediente ajuda Homero a nuançar episódios, a romper a seqüência cronológica. SeOdisseu começasse antes de Ogígia, teria que identificar-se, o que, inseguro, aindanão lhe interessa. A roupa vincula Odisseu a Nausícaa. Esse incidente não pode sercontornado.

Intervém o rei. Alcínoo quer saber por que Nausícaa não trouxe pessoalmenteOdisseu ao palácio como mandam as leis da hospitalidade, se foi ela quem osocorreu. Odisseu revela-se cavalheiro completo. Chama a si a responsabilidade deacompanhar a comitiva a distância. O cuidado de livrar a princesa de observaçõesmaldosas foi dele.

Homero sabe explorar o silêncio. Entre as explicações de Odisseu e a respostade Alcínoo, dois homens vividos se entendem sem falar. Alcínoo lê nas palavras doestrangeiro coisa que ele não disse: ternura pela filha. Alcínoo acompanhou esse

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homem incomum desde o momento em que suplicou habilmente proteção à rainha enão a ele. Quem poderia proteger a filha melhor? Odisseu atinge com o poder dapersuasão muito mais do que poderia esperar. Alcínoo lhe oferece a mão da princesa.O herói procurará recusar a oferta com habilidade para não ofender o rei.

Uma era a Musa, uma era a voz. Desdobrava-se em muitos episódios, narravaaventuras no mar e na terra, combates e momentos de ternura, acolhia a fala dosdeuses e a dos homens. A medida (o hexâmetro) mantinha-se, todavia, estável.Alternando sílabas longas e breves, a medida composta de seis unidades (pés)sustentava o ritmo do fazer e o curso das estrelas. Assim acontece na epopéia antiga.

5. Quinta Aurora (8.1-13.17)

Não devemos incluir a Aurora no rol das personagens? Ela ilumina, desperta, ergue.Sendo uma das muitas máscaras da Natureza, os homens a homenageiam comodivina.

O dia começa com a assembléia. Os convocados acorrem voluntários para vero estrangeiro, a sensação do momento. Estamos no coração da cidade. Ouve-se umasó voz, a do rei. Generoso, o monarca divulga os costumes. O povo prospera àsombra dele.

Compare-se a fala de Alcínoo com o discurso de Agamênon aos soldadoscansados de guerra, na Ilíada. A oratória é outra. O comandante das tropas helênicasleva os guerreiros a refletir, a escolher. Os atacantes, ante a perspectiva do retorno,debandam. A situação entre comandantes e comandados é tensa.

O acordo tácito da assembléia de Esquéria contrasta também com asdesinteligências que inquietam Ítaca. Questões conflituosas, demoradamentedebatidas, distinguem a nascente democracia grega. Os feáceos, ao contrário,confiam decisões relevantes ao soberano. Vivem numa terra de poesia e sonho.Enquanto outras sociedades sangram em confrontos armados, Esquéria isola-secomo ilha de paz.

Odisseu não sofre nenhuma coação. Partir ou ficar está na escolha dele aindaque o rei o queira como genro. Calipso prendeu Odisseu por sete anos. Alcínooprepara imediatamente um navio com suprimentos e tripulação, além de brindá-locom festejos de um dia inteiro. De Ogígia a Esquéria, Odisseu se move daescravidão à liberdade: pode viajar ou ficar, pode imaginar, sonhar, sorrir.

Na terra dos sonhos, Demódoco, o aedo, ocupa lugar de destaque. Reservam-lhe assento proeminente. A ele se destinam as melhores iguarias. Ele é o porta-vozda Musa, a memória da comunidade. Povo com tais pendores está preparado a ouviroutro canto, o de Odisseu.

Demódoco é inventivo desde a sua primeira intervenção. Elege como assunto

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um episódio do ciclo troiano sem pastichar epopéia conhecida. O cantor, ao lembrarconflitos entre chefes gregos, captura o centro da Ilíada sem repetir o já sabido. Adesinteligência entre subordinados robustece o débil poder central.

Não é descabida a hipótese de que Homero queira, através de Demódoco,refletir sobre o seu próprio ofício. Na voz do poeta, recordações amargastransformam-se em canto.

O choro de Odisseu revela que o herói resiste ao poder catártico da poesia.Não lhe é possível ainda aplaudir como arte incidentes que, embora distanciados pormuitos anos, lhe trazem recordações amargas. O canto para instaurar-se como arteconquista autonomia. Odisseu não entrará em estado de poesia enquanto ele próprionão se puser a cantar. Na longa narrativa de Odisseu aos feáceos opera-se apassagem do passado amargo a ritmos envolventes. Vencendo a dor em Esquéria, oherói estará preparado para reconquistar o trono em sua terra.

O choro numa ilha em que se vive em estado de poesia é anomalia. Comochorar num palácio em que não se vive premido por necessidades e trabalho?Odisseu não é estranho por vir de longe, mas por sofrer numa ilha em que não hásofrimento.

Alcínoo, rei da vida sem dor, convida discretamente os convivas a assistirema competições na praça de esportes. É o expediente que lhe ocorre para enxugar aslágrimas do estrangeiro.

Odisseu é desafiado por Euríalo, um campeão. Levantam-se dúvidas sobre osméritos do hóspede. É justo oferecer navio, tripulação, presentes a um mercador?Objeções, silenciadas na assembléia, soam aqui. Trata-se de um desafio, plausívelentre competidores. Não há como fugir. Odisseu toma um disco e o arremessa paraalém de todas as metas. A prudência recomenda que o desafiado se contenha.Odisseu, contudo, prudente em outras ocasiões, excede-se, vangloria-se. EmEsquéria desafios não ultrapassam a área desportiva. Alcínoo apressa-se areconhecer com finura a superioridade do estrangeiro e o convida a apreciar aexcelência dos feáceos na dança.

O narrador esmera-se em criar tensão dramática em todos os episódios. Evitaassim mera descrição de costumes. O estrangeiro revela-se passo a passo comohomem singular: cavalheiro, atleta e orador. Acompanhamos o renascimento doherói, salvo das águas. Como em Esquéria não há ambiente para confronto armado,temos que aguardar a chegada a Ítaca para conhecer o guerreiro.

Em nenhum lugar da Odisséia, Homero é tão irreverente como na voz deDemódoco. O aedo desenvolve circunstanciadamente um incidente picante. Hefesto,sabendo-se traído por Afrodite, sua esposa, com Ares, deus da guerra, prepara umaarmadilha para o casal adulterino. Prendendo-os numa rede, os expõem em delito aoriso dos deuses. O incidente parodia episódios trágicos ou passíveis de tragédia. Um

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deles, central, é o assassinato de Agamênon pela esposa e pelo amante, lembrado jáno primeiro canto. Outro é o retorno de Odisseu. Quem lhe garante que Penélope lhepermaneceu fiel? Assuntos sérios para os homens soam jocosos quandoprotagonistas são deuses. Hefesto torna público o ato que o humilha e dá-se porsatisfeito. Quem dentre os homens procederia assim? O autor da Odisséia é oprimeiro a parodiar o seu próprio poema com letra de música e dança. Nosmovimentos dessacralizados, a destreza dos pés substitui a homenagem aos deuses.O ritmo já não traduz piedade. No crepúsculo dos deuses, fulguram habilidadeshumanas. A arte toma o lugar do culto.

No banquete vespertino, ouvindo, a seu pedido, Demódoco narrar a estratégiaque introduziu o cavalo de pau nos muros de Tróia, Odisseu sucumbe em pranto. Oanfitrião se impacienta. Exige nome, filiação, origem. Faltam conexões. Convive-secom estilhaços? Como o homem também é filho dos seus feitos, esta é aoportunidade de Odisseu renascer das façanhas. Para recordá-las a um auditório fartode mistérios, terá que selecionar, avaliar, organizar. A urgência de ordenar vence ador. Quando Odisseu se põe a narrar, as lágrimas cessam. O herói – herói agoratambém da palavra – chega a narrar com entusiasmo, com gosto. O que foisofrimento transfigura-se em arte para aplauso de todos. Em Esquéria, metáforaliterária, o excepcional retorna sem riscos. Esquéria está entre dois invisíveis, opassado e o futuro. A terra que Odisseu deixou intervém no temor e na esperança. Ofuturo nunca devolve intacto o que passou. Audácias povoam a noite. Importa quesejam inventadas? São belas. Pode haver verdade maior para um povo que fez daarte estilo de vida? Só a arte torna plausíveis as retumbantes aventuras de Odisseu. Alinguagem, comunicativa ou inventiva, tem caráter social. Odisseu está entre genteamiga que o homenageia com festa. As aventuras em que é protagonista serãomodeladas para esse auditório. Como não tem nada a temer, narra para fazer sonhar.O discurso conecta. Impossível organizar tudo. Arma-se o conflito entre o discursoorganizado e o caos que espreita nas incoerências. Odisseu já não interessa comocarne. Ouvidos atentos o procuram para alimentar a imaginação. O prato servido porOdisseu é esse. O homem pode banquetear-se sem consumir proteínas. Comopneuma, como sopro, o homem avança sem fronteiras. Odisseu cria para os feáceosum mundo que não é material. Quem é afinal Odisseu? A ficção produzida peloprotagonista não fornecerá retrato claro. Aparecerá um homem ardiloso, incauto porvezes, saudoso da pátria, mas esquecendo-se dela, fiel à esposa, muitas vezes traída,afortunado e sofredor, protegido e deslembrado pelos deuses, solícito e cruel, práticoe imaginativo, sábio e ignorante. Alcínoo quer saber quem é Odisseu? Ele é todos eninguém, símbolo do homem. Dando-se a conhecer, passa a conhecer-se melhor.Motivos para chorar já não há. No palácio iluminado de Alcínoo abre-se a cortina aoinvisível, território povoado de antropófagos, ninfas, sereias, monstros. Odisseu

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toma lugar ao lado de outros heróis que ampliaram o espaço da civilização:Hércules, Perseu, Teseu.

6. A noite da fabulosa narração de Odisseu

No palácio de Alcínoo, a fala passa de Demódoco a Odisseu, do homem inspirado aoprotagonista. Tome-se a sério o que Odisseu disse a Polifemo: meu nome é Nulisseu,Ninguém. Ante a nobreza feácea, o aventureiro passa de ninguém a alguém. O relatodos feitos o ergue do anonimato à glória. O que realmente aconteceu ninguém sabe.Testemunhas não há. Dos doze navios que Odisseu tinha ao se despedir de Tróia, nãosobrou nenhum. Resta Odisseu com sua voz. À medida que narra, Odisseu seconfigura. Tece a personalidade que deseja imortalizada. Odisseu é produto de seudiscurso. O canto de Demódoco e o de Odisseu não são iguais. Demódoco cantaoutros, Odisseu canta-se si mesmo. Demódoco, para lembrar, necessita do auxílio daMusa, Odisseu guarda em si mesmo o seu arquivo de memórias. O narrador assumesobre a narrativa autoridade usurpada pela Musa, que em Homero ainda não sepluralizou.

6.1. Os cícones (9.39-61)

Iliothen, a primeira palavra da narrativa de Odisseu, coloca o episódio no quadro doguerra de Tróia. Destruída a cidade, resta a memória de combates e de retornostrabalhosos. Esta é a primeira visão dos heróis gregos depois da guerra. Seria de seesperar cena que os glorifique. Em vez disso, temos um ataque gratuito a um povodesconhecido, seguido de saque e do rapto de mulheres, comandado pelo próprioOdisseu. Recebemos uma paródia da Ilíada. Os heróis que lá combateram paraconquistar glória imorredoura aviltam-se aqui. A paródia revela os motivos reais daguerra. Recuperar Helena, limpar a honra da Grécia foi apenas pretexto. Com isso, oautor da Odisséia antecipa a crítica feita por Heródoto: Helena ficou no Egito, nuncaesteve em Tróia, e o que Homero narra na Ilíada não é confiável. Heródoto distingueverdade e mentira: mentira é a poesia, a ficção literária. Situação semelhante à daincursão na terra dos cícones nos oferece a Ilíada ao detalhar o ataque à cidade deCrises, o sacerdote. Lá como aqui, agressão, saque, rapto, despojos para recompensarcombatentes. O episódio, que se sustenta independentemente do poema em que estáinserido, lembra a campanha contra Tróia. Troquem-se os nomes e estamos naIlíada. Esse pequeno episódio teria tido existência independente? Por que não? Seteve, antecedeu a constituição dos poemas homéricos? A questão de pequenospoemas independentes já foi discutida a propósito da relação do romanceiro ibéricocom as grandes epopéias medievais. Seja qual for a resposta, o episódio dos cícones

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tem caraterísticas que o individualizam: ausência de efeitos de retardamento,escassa caraterização. A concisão abre um leque de alusões sugestivas.

Odisseu recrimina seus homens por não terem recuado a tempo. Por que nãolamenta a agressão brutal a uma cidade que não esperava ser atacada? Mesmo sem oapoio dos fatos, Odisseu espera comover os feáceos, espera que chorem por ele,como ele chorou por si mesmo. Mostrar-se culpado está longe dos seus interesses.

Os cícones se vingaram dos gregos em poucas horas sem grande esforço.Onde o heroísmo dos triunfadores sobre as hostes troianas? Inclua-se Odisseu entreos derrotados. Prolixo em outras ocasiões, Odisseu não diz nada sobre sua atuaçãoaqui. Feito nenhum o destaca. O narrador reserva aos inimigos metáfora primaveril.Os cícones vêm abundantes “quais folhas e flores da primavera”. Que heróissuportariam a mácula de serem repelidos por flores? Os soldados de Odisseu perdemnum dia a glória que lhes custou dez anos de luta. Eurípides retomará a des-heroização dos heróis em As troianas.

O narrador aduz uma segunda causa do infortúnio, o fado que vem de Zeus,Diós aisa. Afinal, a que devemos atribuir à desgraça: ao desatino ou à fatalidade? Narazão mítica imiscui-se um motivo humano. O narrador enfatiza o humano semabandonar o mítico. Três esferas estão em jogo: o destino (aisa), a vontade de Zeus(boulé Diós) e a ignorância dos homens (nepioi). O narrador não se decide pornenhuma delas. Enreda-as. Joga com elas à sua conveniência. Os cícones abatem seissoldados de cada navio. Odisseu é um perdedor. Perde tudo. Perde até a roupa docorpo. Chega à ilha dos feáceos sem nada.

6.2. Perdidos no mar (9.61-81)

Livrando-se dos cícones, a frota enfrenta o mar tempestuoso. Antes de avançarem,Odisseu e os seus prestam homenagem aos companheiros mortos. O fato de teremmorrido por ignorância deles fica esquecido. Eram companheiros. Na ignorância ediante da morte, somos todos solidários. Embora os mortos sejam muitos, o nome decada um deles, carregado de lembranças, desejos e sonhos, soa três vezes. Alinguagem vence a barreira da morte. Nomeado, o morto vive entre os seus. Odisseunavega no mar e nas ondas do discurso.

E a tempestade? Por que pune Zeus tão duramente Odisseu e os que oacompanham? O ataque aos cícones? Os companheiros tombados já não são pagasuficiente? Coisas acontecem. Onde localizar a causa? Até a razão mítica, não raro,silencia. A Aurora do terceiro dia não anunciou tempos melhores. Bóreas recebeuordens para embaralhar caminhos.

6.3. Os lotófagos (9.83-104)

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Depois da experiência desastrosa na terra dos cícones, Odisseu procede com maisprudência. Chegando à terra dos lotófagos, pensa em estabelecer relações comerciaispara abastecer-se de cereais e água. Os lotófagos não são guerreiros. A plantaoferecida aos visitantes rouba a memória. Memória há de entender-se em váriossentidos. Há a memória grupal, arquivo oral ou escrito de feitos, tradições, lendas.Há a memória da humanidade, esforço de recuperar o trajeto percorrido até aoprimeiro passo. Nossa é a idade da comunidade, da humanidade. Objetivando-se, amemória se organiza em patrimônio do grupo, de todos. Feri-la molesta mais do queespada ou lança. Quem morre no campo de batalha vive na memória dos seus. Àmaneira dos que tombaram na luta contra os cícones, os mortos em batalha sãomuitas vezes evocados. Como lembrar alguém cuja existência se arrasta indefinidanuma terra distante, escondida nas brumas do mar? Essa morte é mais completa doque a daqueles que partem coroados de feitos gloriosos. Cair no esquecimento éoutra forma de morrer, morrer para sempre, morrer sem retorno. Vem a memóriapessoal, interior. Somos capazes de construir outra cena. Projetamos no futurorealidade diferente da que é e da que foi. Apagando-se a memória, anula-se o quedistingue o homem. Quem somos, apagada a memória? A memória nos situa notempo e no espaço. A memória nos constrói e reconstrói. Somos filhos da memória.Vem dela a vida que nos anima. Os lotófagos tiram a vontade de retornar. Nostalgiaé uma das formas de construir o futuro, é dor dos que não estão no lugar em quegostariam de estar. Em lugar desse trabalho, os lotófagos oferecem um presente semambições, sem projetos, pleno, utopia paradisíaca. Roubam passado e futuro.

O alimento oferecido pelos lotófagos tem efeito contrário ao do fruto que oprimeiro casal provou no paraíso. De acordo com o relato bíblico, Adão e Eva, aolevarem à boca o fruto proibido, conheceram que estavam nus, aprenderam adistinguir o bem do mal. Da inocência caíram nos tortuosos e criminosos caminhosda história. Lotos devolve o que a maçã edênica arruinou. Não estranhe que atranqüilidade da Aurora seduza homens castigados por mais de dez anos de luta,navegantes que perderam no mar tempestuoso o caminho à pátria. Os lotófagosencurtam o caminho ao lar, lar primeiro, lar de todos os lares, lugar em que amemória das lutas se extingue.Os companheiros recuperados por Odisseu da magia dos lotófagos são resgatados damorte para a vida. Reconduzindo sua gente às naus, Odisseu os devolve às lides emque se traçam os destinos do homem. Tira-os da utopia e salva-os para a história.

Na cena dos lotófagos Oriente se distancia do Ocidente, paz nirvânica ou açãoe sofrimento. Contra a tranqüilidade dos narcóticos, o trabalho, a navegação que sóconclui na morte.

Cícones e lotófagos merecem comparação. Os lotófagos trataram bem osestrangeiros. Mas, oferecendo-lhes a planta que provoca o esquecimento, causaram-

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lhes dano sério. Eram amigos? A agressão dos cícones foi menos danosa do que acordialidade dos lotófagos. A agressão dá aos agredidos a oportunidade demanifestar sua excelência guerreira. Amigos, quem são eles? Os que atacam ou osque recebem hospitaleiramente?

6.4. Os ciclopes (9.105-566)

Antes da Primeira Aurora (9.105-151)A gente da ilha não planta, não lavra a terra, não conhece leis, nem se reúne

em assembléias. Visão paradisíaca. Trigo e parreiras crescem espontaneamente. Aonarrador interessa o povo. Assim diz o proêmio. Observador atento mostra-seOdisseu aqui. Vivem em grutas os moradores de altas montanhas. Os homensexercem autoridade absoluta sobre mulher e filhos. A sorte dos demais não osmolesta. A informação não é de quem chega. A descrição não obedece a disposiçãocronológica.

Longe estamos da sociabilidade grega, da vida em cidades. Coerência entre apaisagem paradisíaca e os habitantes não há. Tudo é possível nessas periferias.Longe dos centros civilizados cai-se num tempo que se aproxima das origens. Não seaguarde harmonia entre habitantes e meio. Paisagem paradisíaca pode ocultarmonstros. Longe das cidades, o humano está sujeito a ameaças.

Odisseu vê a terra com olhos de colonizador, uma pequena ilha, vizinha à dosciclopes. Merecem atenção as possibilidades para a agricultura, a pecuária, anavegação e a caça. O poeta serviu-se de documentos orais ou escritos? Não estáexcluído.

O detalhamento da chegada anuncia façanhas relevantes. Chegaram à ilha,noite escura. Denso nevoeiro escondia a lua. Alcançada a praia, recolhem as velas edormem ao relento até o nascer do sol. A noite escura e o nevoeiro sublinham omistério. Depois da visão global, a experiência.

Primeira Aurora (9.152-169)

Caracterizados os costumes e descrita a terra, Odisseu narra uma caçada e umfestim que durou um dia inteiro. Que Odisseu é afeito a refeições fartas, já osabemos desde a Ilíada. A experiência dura que aguarda a expedição é introduzidapor despreocupação e jovialidade. Retornar a Ítaca é o firme propósito do herói. Masesse objetivo não é tão forte que destrua a alegria de viver. O futuro não anula omomento que passa. Humanos são os heróis. O cotidiano confere credibilidade aofantástico. Estratégias de quem narra.

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Segunda Aurora (9.170-306)

Odisseu não vai conduzido por nenhuma necessidade prática. Entra na ilhacomo investigador (peiresomai). Quer saber se os habitantes são arrogantes(hybristái), selvagens (ágrioi), justos (díkaioi), hospitaleiros (philóxenoi), se tememos deuses (noos theoudés). Pura curiosidade de investigador. A empresa é arriscada.O desejo de conhecer supera o temor.Por que leva vinho? Já se observou que, se num romance bem construído semenciona uma arma, ela terá que disparar em algum momento. Indícios do que vaiacontecer, sejam de origem divina ou humana, pontilham a Odisséia. O vinho é umaespécie de auxiliar mágico que valerá ao herói na execução da tarefa. A providênciasagaz. O vinho pode ser usado para estabelecer vínculos ou para debilitaradversários. Sagaz, Odisseu previne-se para eventualidades. Ao se referir ao vinho,Odisseu entra em pormenores. Narra como o líquido lhe veio às mãos. O detalhesalienta a importância da bebida na empresa.Odisseu entra na caverna. O gigante não está. A ausência cria tensão. O queacontecerá quando o gigante retornar? O interior da caverna, realisticamentedescrito, confere naturalidade ao fantástico. Os companheiros de Odisseu seintimidam. Aconselham retirada antes de serem percebidos. Odisseu resiste. Ficapelo motivo que o levou até aí: conhecer. O medo dos companheiros aumenta aexpectativa. Odisseu é livre. Permanece porque quer.

Qual é a origem dos gigantes? Grupos humanos isolados, ao encontraremoutros, se teriam amedrontado. Imaginando-os mais fortes que eles próprios, osteriam designado de gigantes. Convivência e observação teriam reduzido os seresenormes à estatura normal. Assim teoriza Rousseau, para quem o medo produziu osgigantes. Mas aqui outros sentimentos entram em jogo: curiosidade, desafio, desejode experimentar recursos da inteligência. Se o medo criou os gigantes, a inteligênciaos destrói.

Descobertos os gregos na caverna, o ciclope pergunta-lhes de onde vêm.Odisseu lhe diz a verdade. Vêm de Tróia, são gente de Agamênon. Pedehospitalidade em nome de Zeus. Insolente é a resposta do gigante. Despreza Zeus eos deuses olímpicos, resquícios de luta antiga. Na periferia inculta ainda grassamconflitos anteriores ao domínio de Zeus, o deus civilizador. Odisseu representa anova ordem, o culto a Zeus. Trava-se luta entre o passado e o presente, a forma e odisforme, a violência e a lei.

Começa a luta de palavras. Esta Odisseu conhece bem. Donde vêm, onde estáo navio? Querem perguntas mais naturais? Odisseu tem amplos motivos parasuspeitar. Nas considerações sobre Zeus, o gigante se distancia do navegador.Cautelas de Odisseu: ocultar informações, dizer mentiras com aparência de verdade.

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O herói não sabe o que pode acontecer. O gigante é incomparavelmente mais forte.Será igual ou superior a ele no certame das palavras?

Odisseu recorre ao primeiro ardil, diz-se vítima de naufrágio. As versõesinventadas são sempre as mais plausíveis. Sem advertência, o gigante devora doisdos companheiros de Odisseu “como leão montês”, bebe leite e dorme. Odisseupensa em matá-lo durante o sono. Recua porque morreria na caverna, estandofechada a porta com uma pedra que só o gigante pode mover. O episódio terminainsolúvel.

Para ciclope (formado de kyklos, círculo e ops, olho) criamos globolho (globo+ olho).

Terceira Aurora (9.307-436)

Ao gigante de um olho só, o globolho, as coisas se apresentam simples. Emhomens de dois olhos, um prende-se ao manifesto, o outro busca o oculto. Assimpensavam os gregos, assim agia Odisseu. Odisseu é muitos por ser Ninguém. Émuitos: navegador, soldado, comerciante, civilizado... O gigante reduz acomplexidade a uma substância só: Odisseu e os seus companheiros não passavamde pasto.

Duas dimensões temporais sustentam a resposta de Odisseu: o lugar dondevem (a mãe, os amigos) e o futuro (as metas, a luta contra o aniquilamento). ComoNulisseu, Odisseu sobrevive. Nulisseu não morre. Sendo Ninguém, ele é tudo, todos:os que sofrem, os que se debatem com forças hostis.

Note-se o contraste: Polifemo e Ninguém. O homem se distancia de Polifemo(o muito falado, o falado por todos), mas se aproximada de Odisseu, Nilisseu,Ninguém. Polifemo devora, Ninguém gera.

Contra a complexidade, o gigante não tem defesa. Menospreza o fato de que ovinho, preito de amizade, subindo à cabeça, embaralha as idéias.

A bebida, entrando no corpo do gigante como um veneno (phármakon), mina-lhe a defesa. Phármakon é a palavra, um quase nada que mesmo crianças manejam.O vinho e a palavra, misturados, detêm a violência do braço.

Odisseu pede recompensa. O gigante promete-lhe devorá-lo por último.Saciar a fome de vermes, de cães, de corvos, de gigantes, o destino do homem éeste?

Odisseu não mata o gigante. Serve-se da força do adversário cego. O gigante,submetido por Odisseu, abre-lhe involuntariamente a porta para a liberdade.

Prometendo devorar Nulisseu por último, o gigante concede-lhe tempo. Otempo pode ser administrado: emprega-se tempo, esbanja-se tempo. A dádivaaniquila o doador.

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“Ninguém está me matando”: Homero dosa a gravidade com a levezaanedótica.

Quarta Aurora (9.437-559)

Cegado, o gigante se humaniza. A cena em que o ciclope fala ao carneirocomove. Em lugar de um leão montês, temos um ser ferido. No peito do monstropulsa um coração terno. Polifemo recorda ao carneiro, o primeiro da tropa, episódiosda vida diária. Ao quadrúpede falta só a palavra articulada para entendimentocompleto. O solitário afeiçoou-se ao animal.

Tomado de vaidade, Odisseu grita do mar. Os companheiros repreendem oguia. Por que provocar o brutamontes? A insensatez do sábio não tem limites.Agrava a imprudência, revelando o nome. Misturando feitos e desfeitos, o narradornão poupa o façanhudo: o gigante lamenta ter sido ferido por um adversáriomesquinho. Na intensidade da paixão, homens e deuses rivalizam. A ferida que ovalente deixou no filho ofende Posidon. Pouco lhe importa a justiça.

6.5. Éolo (10.1-79)

Dominar o mar é desejo dos que navegam. Não exerce poder sobre as ondas quemnão é senhor dos ventos. Odisseu perdeu a rota a Ítaca, castigado por correntesadversas. Ei-lo no centro do império dos fortes tufões e da brisa acariciante, a ilhaflutuante de Éolo. O cetro do mundo aéreo está em suas mãos.

Quem imagina intempestivo o rei dos ventos engana-se. Vivem na ilha o rei,sua mulher e doze filhos. De costumes rigorosamente endogâmicos, os seis irmãoscasaram com as seis irmãs. Vivem na ilha sete casais harmoniosos e inteiramentesatisfeitos. A endogamia os protege de obrigações externas, de buscas cansativas, dealianças comprometedoras. Os conflitos que perturbam deuses e homens não osafetam. Os ventos imprevisíveis e rebeldes estão sujeitos a tais senhores para asegurança dos que andam por úmidos caminhos e dos que cultivam a terra. Como emtoda ordem metafísica, a perfeição de quem domina contrasta a carência dosdominados.

Ao cabo de uma acolhida tranqüila, o hospedeiro presenteia o hóspede nãocom metais preciosos, mas com o domínio dos ventos. Poderia Odisseu desejardádiva mais rica? O herói tem o destino nas próprias mãos. Acontece que ele não semostra à altura do presente. Vencido pelo cansaço, fraqueza de que Éolo não padece,Odisseu abandona o posto de vigilância antes do fim. Certos de que estavam sendoludibriados, os homens de Odisseu abrem os sacos em busca de ouro. O contrasteentre Éolo e Odisseu é flagrante. Não só aqui, a indisciplina desgraça o explorador.

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O homem é terrível por dominar as rotas do mar, diz o coro de Antígona.Domina? O homem não é forte, não o bastante: cansa, suspeita, diverge, cochila. Ohomem é instável como os ventos. Está mais próximo da agitação aérea do que datranqüilidade divina. As forças confiadas ao homem, soprem dentro ou fora,excedem. Os poderes que se evadem de sua vigilância sopram violentos e arrastampor caminhos indesejados. A natureza reage irracionalmente, isto é, contra a razãodo homem. Ela tem suas próprias razões. O homem é natureza, irmão dos ventos.Para dominar requerem-se qualidades mais que humanas.

Já tínhamos visto Odisseu triste, agora ele aparece desesperado. A decepção étamanha que o seduzem as profundezas sombrias. A continuação da viagem lherevela o conteúdo inteiro do que disse ao gigante: eu me chamo Ninguém. O conflitointerior iguala o mar tempestuoso.

Dois pólos seduzem Odisseu: o domínio sobre forças adversas e a entrega. Asabedoria manda eleger posição intermédia: nem soberania, nem submissão. Cederpara atingir objetivos modestos, adiar o regresso, mas regressar.

Por que sofrem os homens? O resultado do episódio confirma o que se diz emmuitos lugares na Odisséia e em outros textos. Indevidamente os homens buscamfora de si a causa de seus males. Divindades, circunstâncias, forças adversas podemcorroborar. Nada, entretanto, diminui a responsabilidade. Odisseu não está longe dapátria por maldição divina, mas por sua própria tolice.

6.6. Os lestrigões (10.80-132)

Dos domínios de Éolo, Odisseu chega à terra dos lestrigões. A beleza da ilhacontrasta a crueldade de seus habitantes. Sem maneiras urbanas, embora vivam emcidades, os lestrigões são antropófagos vorazes, desde o rei. Quem poderia prevercrueldade na suavidade da jovem princesa, guia dos estrangeiros à morada paterna?A fuga dos exploradores não impede o desastre. Pedras lançadas por mãosgigantescas esmigalham a frota. Os lestrigões fisgam os navegadores como peixes.Um desastre! De doze naus, resta uma, a de Odisseu. E este é apenas o início doregresso. O narrador reserva ao insucesso menos de um verso. Por que o contrasteentre a economia verbal e a magnitude do episódio? As razões do canto estão nopróprio canto. O narrado requer uma ponta de racionalidade. O que dizer doabsurdo? Silêncio devora o sentido.6.7. Eéia, a ilha de Circe (10.133-574)

Em pranto exprimem-se dores que não conhecem o caminho à palavra.

Primeira Aurora (10.144-186)

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Esta primeira Aurora encerra o período de infortúnios que se prolonga desdeo infausto episódio dos ventos. A vida recomeça. O narrador recobra o prazer defalar. O despontar do sol desvenda mistérios. Aurora e Circe recebem o mesmoepíteto, “de belas tranças” (euplókamos).

A lança e a espada com que se arma Odisseu assinalam a vitória sobre atristeza dos últimos dias. Ao iluminar-se o céu, o aventureiro, no alto de um monte,procura sinais de civilização: obras (erga), palavras (enope). Como viver longe deregiões habitadas sem que a condição humana sofra ameaças? O explorador percebeque da terra sobe uma coluna de fumo. Os insucessos dos últimos tempos o tornaramcauteloso. O desejo de conhecer é, no entanto, mais forte que o perigo. Indecisoentre a ousadia e o temor, resolve fazer-se preceder por um grupo de exploradores.

A sorte (Ou foi um deus? Odisseu prefere a segunda hipótese) pôs-lhe umgrande cervo no caminho. O navegador narra a vitória sobre o animal como serecordasse o triunfo sobre inimigos. Insucessos repetidos engrandecem o feito.Abatida a presa, o vencedor oferece um banquete de dia inteiro. A refeição fartaajuda a enxugar lágrimas, extingue as imagens da morte. Passado e futuro somem damente dos guerreiros. O dia sem aflições merece destaque entre Auroras.

Segunda Aurora (10.187-540)

Depois da festa, a volta ao trabalho. Odisseu convoca a gente que lhe restapara uma assembléia. O discurso não reflete os pensamentos que passaram pelamente do herói ao perscrutar a ilha. Recorre a argumentos práticos. Perdidos no mar,não sabem nem distinguir o oriente do ocidente. A busca de informações faz-seurgente. A fumaça que se divisa do monte indica morada de homens? Os soldadosrespondem ao plano do chefe com lágrimas. Como se entusiasmar por incursõesnuma região infestada por antropófagos de proporções descomunais? De nada valemprotestos. Odisseu divide os soldados em dois grupos. Tirada a sorte, vinte e doiscompanheiros, comandados por Euríloco, partem rumo ao sinal de fogo.

Ao chegarem, coisas estranhas acontecem. São recebidos por feras tranqüilas.O narrador caracteriza Circe, a rainha. Da beleza destaca o arranjo dos cabelos; dasqualidades, lembra o canto. Nascida do Sol e de uma filha do Oceano, rio quecircunda a Terra, deve-se procurar a morada de Circe no Oriente, região de magia ede mistério.

A ninfa os recebe hospitaleira. Com uma droga, tira-lhes a lembrança dapátria; com o toque de uma varinha, transforma-os em porcos. A antropofagia não éa única ameaça à condição humana. Um cochilo basta para cair na sorte dos animaisque chafurdam em pocilgas. O ser a quem se abrem possibilidades infinitas podesumir na prisão em que vivem quadrúpedes de cabeça inclinada ao solo. Na luta pela

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humanação, está em jogo o equilíbrio entre a condição animal e o olhar seduzidopelo mundo que se esconde além dos horizontes. Mesmo navegantes que ousaramexplorar os limites do universo correm o risco de serem acorrentados ao chão quepisam. Os sentimentos rebeldes adormecidos naqueles que por imperícia caíram emformas rudimentares mantêm viva a possibilidade de retorno. Só Euríloco,recusando o convite da feiticeira, salva-se para relatar a má sorte dos que entraram.Como não presenciou os sucessos no palácio, o explorador dá os companheiros comomortos.

O perigo desafia Odisseu. Ao arrepio do que manda a prudência, o chefe partesó em socorro dos incautos. Contra os efeitos da magia, Hermes o aparelha deinstrumentos mágicos. Divindades uranianas e divindades ctônicas disputam oterritório. Atento aos conselhos de Hermes – ele poderia recusá-los –, Odisseu se põea serviço dos senhores olímpicos. O guerreiro enfrenta Circe com a espada. Contra avara mágica, o instrumento de guerra. No choque das culturas, vence a lâmina deferro. Intimidada, a divindade recua. A intrepidez masculina desperta em Circe amulher. Também deusas amargam a solidão. O leito anula a distância que entristeceseres solitários. Humanizada e submissa, Circe devolve à condição humana seresembrutecidos. Os soldados de Odisseu retornam mais fortes, mais belos. Circe,dilaceradora que era, esplende como aparição materna, rejuvenescedora. Ouseduziria com a tranqüilidade sonhada na idade de ouro? A doçura de Circe toca oguerreiro. Mágico é o afeto. Também o leito rouba a razão.

Sensato agora não é Odisseu, sensato é um companheiro fiel, Euríloco.Ocorrem-lhe as ousadias do comandante. Os cuidados do amigo enfurecem Odisseu.Abandonam-no as palavras, o bom senso. A periferia transtorna. Desponta umOdisseu selvagem. Avança contra o companheiro leal para cortar-lhe o pescoço. Nãoagiu assim com o gigante que lhe devorou os subordinados. Soube esperar. Aviolência dessacraliza. Herói e vilão coexistem na mesma personagem. Para evitarderramamento de sangue, os companheiros tranqüilizam o transtornado.

O banquete não é agora de um só dia. Ébrio dos encantos de Circe, Odisseu sedemora no palácio da ninfa por um ano inteiro. Cansados de esperar, oscompanheiros despertam o enfeitiçado. O sono foi tão profundo que por quatroestações o narrador esqueceu Auroras. O tempo se arrastou monotonamente sem quenada de novo acontecesse, nenhum episódio a ser lembrado, a vida semelha a morte.Circe é o vestíbulo do reino dos que dormem. Por muitos meses Odisseu não sonhacom a pátria, não pensa em viagens. Repousa sem sonhos. Tempo lírico, sempassado nem futuro.

Os companheiros chamam-no de daimónios, tocado por divindade estranha,enfeitiçado. Tentam reavivar-lhe imagens esmaecidas. Nos episódios anteriores,Odisseu representou a salvação. Agora a voz redentora vem dos soldados. Não são

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loucos os muitos. Louco é um só. Despertando da letargia de um ano, o aventureiroprorrompe em lágrimas. Sente o mundo ruir. Chora como o recém-nascido lançadopara a realidade crua. Não quer que termine a longa noite de prazeres. Não aspira pornova Aurora. Quer que a noite seja eterna como a morte. Na cascata de lágrimas,Circe já perdeu Odisseu. Recuperado o sentimento do dever, mais forte que o desejode paz, Odisseu se desprende da ninfa.

Benévola, a ninfa orienta o companheiro de muitos dias. Recomenda-lhe quevá instruir-se com Tirésias no Hades. Desperdiçado o caminho curto para chegar aÍtaca, oferecido por Éolo, resta-lhe o caminho longo, roteiro de perigos, luta e morte.

Por mais que o homem saiba, limitadas são as reservas. Odisseu consulta ovidente que já morreu. Há um saber acumulado, o de passadas gerações. Recorrem aele os que avançam.

Quem guiará o navegador ao reino dos mortos? O guia é dispensável,assegura-lhe Circe. Para Ítaca o caminho é incerto. Ventos contrários podem frustraro acesso. Para a terra dos Cimérios, Bóreas sempre sopra favorável.

Odisseu, o sábio, recebe instruções de uma mulher de horizontes limitados,periférica: não combateu os combates que ele combateu, nem navegou os mares queele navegou, uma mulher que sabe do caminho à morte.

As instruções de Circe entram no reino da poesia. Mágica e poética é ageografia infernal. Odisseu deverá deter-se junto a uma rocha batida por águasmisteriosas, a corrente que separa vida e morte. Os mortos vagam além doAqueronte. Odisseu deverá atraí-las com sangue de ovelha. O fosso será cavado coma espada, metal que também protegerá o fosso, ferro é instrumento de guerra e demagia. Na espada a vida e a morte concorrem. O sangue que Odisseu deitar no fossorestaurará por breves instantes a memória das sombras que o experimentarem.

6.8. No Hades (11.1-12.7)

De todas as viagens, esta, às paragens sombrias dos cimérios, é a mais difícil parahomens sedentos de luz. Odisseu a empreende só. Trilhará sozinho um dia essemesmo caminho para não retornar nunca mais. No caminho à morte, Odisseu dá commuitos rostos, muitas maneiras de morrer.

Como conclui a viagem ao reino dos mortos? Responda a imaginação, maisforte que a fronteira da morte. A poesia desvenda o que fatos escondem. As veredasda vida são reversíveis, o caminho ao mundo dos mortos não. Na viagem de Odisseua reversibilidade espacial e a irreversibilidade temporal se confundem. Ao que se fezpoesia não se fecham portas. A terra dos cimérios situa-se na região oposta à Aurora.Odisseu lá chega ao pôr do sol, hora em que todos os caminhos se apagam. A regiãooculta aos olhos vive no embalo dos versos. A viagem vacila entre o receio e o

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prazer de descer, descida de revelações. A vida alimenta-se da morte, e a morte sealimenta da vida. Desce ao Hades quem recorda mortos. Rumo ao reino dos que jánão são, o barco avança entre a glória e o olvido. Glorioso é permanecer na memóriados homens.

Para ir ao reino dos mortos e retornar no calor do sangue, métodosconvencionais não bastam. Os quatro lados do fosso de Odisseu refletem os quatrohorizontes da terra. A espada levanta-se na fronteira entre vida e a morte. Chama eafasta. Semeia o susto mesmo na mente dos habitantes das regiões bolorentas.Trava-se combate singular. Odisseu não ergue a espada só contra guerreiros sedentosde vida, a arma ameaça também noivas, velhos, virgens. O guerreiro luta para que achusma desordenada não inviabilize o objetivo da vinda. Nada lhe vem sem esforço.Até o Hades requer deliberação ajuizada.

Foucault assegura que o homem dos tempos modernos descobre a morte nadissecação dos cadáveres. A morte, pensa ele, ilumina a vida. A descida ao Hadesnão tem o mesmo efeito? Tanto na experiência cirúrgica quanto na visão mítica,morte e vida são imagens da mesma unidade. Não sendo física, a morte vem pormuitos caminhos, uma delas é a poesia. Protegidos por palavras, ritmos e sons, amorte nos espreita. Nos versos de Homero os mortos vêm e vão. Espada é o canto.Mágico é o aedo. O sangue guardado nos versos reanima os que moram na sombra.

O primeiro a beneficiar-se da oferenda – quem diria? – é Elpenor,companheiro de Odisseu que morreu na festa oferecida por Circe para celebrar apartida. Cômico é o fim do soldado. Embriagado, caiu do terraço, quebrou opescoço, morreu. O incauto roga que o aventureiro não se esqueça de retornar à ilhapara dar-lhe sepultura. Sem essa homenagem, a derradeira, os mortos nãodescansam. Odisseu, notoriamente sentimental, garante em lágrimas que o pedidoserá atendido. Embora comovido, Odisseu cuida para que sentimentos não sufoquemo juízo. Fácil não é. Entre o turbilhão de sombras, delineia-se o rosto de Anticléia,mãe de Odisseu. Embora comovido, Odisseu retarda o precário convívio. Urge ouvirTirésias, vidente legendário, cego para objetos banhados de luz, mas sensível ao quehá de vir. Se há lembrança do passado por que não poderá instaurar-se memória dofuturo? Envoltos pela noite do passado e pela sombra do porvir, as qualidades deTirésias não nos são de todo estranhas. Como o sangue no fosso de Odisseu, apalavra traz à luz eventos do que já foi e do que será, narrados por Homero, narradospor Tirésias, ou narrados por um de nós. Como o narrador não deseja que o receptorse perca no mar dos episódios, a fala de Tirésias funciona como prólogo à nova sériede aventuras. Poderia equivocar-se, sendo essa sua função? A vidência diminui oimpacto do inusitado. O autor da Odisséia entrevê o que há de acontecer com osolhos interiores de Tirésias. A vida não se constitui de uma seqüência de fatos semsentido. O triunfo da paz sobre a violência ilumina o caminho.

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Se Odisseu conseguir refrear a cobiça dos seus – garante Tirésias –,acontecerá isso; se a ganância vencer acontecerá aquilo. “Se” instala o homem naliberdade. Como no passado, atos desatinados, causa de infortúnio, retardarão oretorno. Ítaca não representa automaticamente o fim dos trabalhos. Odisseu sóviverá em paz se combater a violência. Odisseu não é violento só quando violentoslhe ameaçam a vida, ele é fonte de excessos. O remo, instrumento da aventura e damorte, deverá converter-se em monumento de estabilidade, de paz. Plantado na terra,a agricultura prenderá o navegador à terra.

Tirésias o informa sobre riscos na viagem e na pátria, mas quem lhe dariamelhores informações sobre sua casa e sua gente do que a mãe, morta pela saudade?De quem? Desse mesmo filho que inopinadamente a encontra no reino dos mortos.Terna é a voz da mãe ao falar da esposa aflita, do pai austero, de Telêmaco. Ocontato físico não vai além dos braços, para a palavra não há distâncias, nem mesmoa morte. Perde-se a mãe gradativamente. Chega um momento em que não é mais queuma sombra viva só na lembrança. Só nesse recinto conversamos com ela. Homerovisualiza conflitos e os dramatiza. Odisseu estende a mão, e a sombra se move comoo vapor que sobe da chaleira nas manhãs de inverno.

A mãe abre a galeria de mulheres ilustres, mulheres de outros tempos, origemde linhagens. O mérito dos que realizam grandes feitos é também das mães que osgeraram. Vem Tiro, que, unida a Netuno, gerou Pélias; vem Antíope, ancestral dosreis de Tebas; vem Alcmena, mãe de Héracles; vem Epicasta, imortalizada porSófocles com o nome de Jocasta. Enforcada, amaldiçoa desde o reino dos mortos ofilho, Édipo, involuntariamente parricida e incestuoso. Para escrever a tragédia,Sófocles excede essas informações sucintas. Odisseu interrompe a narrativa para nãogastar com a evocação de mulheres ilustres a noite toda.

Visivelmente comovida com a atenção dada às mulheres, Arete, a rainha,interrompe a exposição, lembrando que um hóspede de tal categoria faz jus apresentes à altura de seus feitos. Alcínoo confirma o desejo da esposa. As palavrasde Odisseu não cansam. O rei manda que Odisseu prossiga, mesmo que o relatotoque a fímbria do manto luminoso da Aurora. A arte de Odisseu assemelha-se aospoderes mágicos de Circe. O homem nasce rebelde. A insubordinação de Prometeu éexemplar. O poeta se apropria de poderes de feiticeiros, de gigantes, de deuses. Fazdo infortúnio encanto. A narrativa de Odisseu é mais forte que a morte.

Odisseu retoma a palavra falando dos companheiros de Tróia reencontradosno Hades. Dentre eles destacam-se Agamênon, chefe do exército, morto, ao retornarao palácio, por artimanhas de Clitemnestra, sua infiel esposa; destaca-se Aquiles,que se declara mais infeliz como príncipe dos mortos do que um humilde lavradorda Tessália. A passagem de Odisseu pelo Hades fornecerá assunto para váriastragédias. Além de Jocasta (Epicasta) e Agamênon, também Ajax, Neoptólemo e

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Héracles fecundaram a imaginação dos tragedistas. Dentre as figuras do passadosobressaem Tântalo e Sísifo, ambos punidos com sentenças cruéis. O primeiropadece de sede e de fome num lago cercado de árvores frutíferas. Sísifo, vencidopelo peso da pedra que deve levar até o alto de uma montanha, reinicia sem descansoum trabalho sem fim. Nem tudo é desgosto e sofrimento no reino dos mortos.Héracles, ao lado da bela Hebe, vive na morte a felicidade que lhe foi negada emvida. Coberto de insígnias, lembra os trabalhos penosos que lhe foram impostos.Nenhum deles tem valor prático. Filhos de deuses não se ocupam com tarefasprosaicas. Se até o grande Héracles teve de sofrer, por que não sofreriam geraçõesmais recentes? Separados pelo tempo e por conflitos, os mortais se solidarizam.

A ida ao Hades é uma viagem através do tempo. O desejo de conhecer oshomens tem sentido espacial e temporal. O Hades é um mundo de gente que luta esofre. É uma cidade de homens, um universo. Dos tragedistas a Camus, muitosdesceram ao Hades. O conhecimento da morte nos distingue e nos instrui.

A estada no Hades desdobra-se em duas partes. Na primeira, dominam asmulheres, Anticléia e outras damas ilustres. Na segunda, destacam-se os heróis: oscompanheiros de Odisseu e os que combateram em outros tempos. Damos em cadaparte com o mesmo arranjo: aparições recentes seguidas de figuras remotas. Heróicivilizador, Odisseu disciplina o mundo caótico das sombras. Mesmo no Hades, ohomem organiza o mundo à sua medida. Mas o tempo não diminui o sofrimento,igual para todos, em todas as idades.

Outros heróis desejaria encontrar Odisseu; ocorre-lhe Teseu, mas a prudênciamanda que recue. Se viesse a Górgona com seu olhar petrificador, perderia ocomando sobre os músculos, e Ítaca se transformaria em nostálgica lembrança.Odisseu atravessa o rio Oceano rumo a Eéia, rumo às moradas da Aurora paracumprir a promessa feita a Elpenor. Esta Aurora encerra a longa noite passada noHades que se fecha como um sonho povoado de desejos e sustos.

6.9. Retorno a Circe (12.8-12.141)

O retorno a Circe, resumido entre duas Auroras, obedece também a interessesnarrativos. Encerradas as homenagens fúnebres, a Deusa amplia, deitada ao lado deOdisseu, as informações de Tirésias. Antecipações pontilham as epopéias deHomero. Antecipa-se o arcabouço, não a reação dos caracteres. Navegar é arriscado,arriscado é viver. Enfrentar dificuldades mortíferas distingue o herói, ilustra ohomem. A força brilha em quem é frágil.

6.10. As Sereias (12.143-200)

As Sereias, revelando o que foi, surgem como a antítese dos lotófagos. A fascinação

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do passado é tão perigosa quanto o esquecimento. Capturado pelo passado, o homemsucumbe. Odisseu, protagonista de feitos gloriosos, beira o colapso. O ludibriadorsurpreende as Sereias com uma artimanha de que não suspeitavam, um ato de quenão havia precedentes. O homem encanta porque emerge só parte do que nelefervilha. As Sereias sabem muito, conhecem os sucessos da longínqua Tróia e o quese passa na vasta superfície da terra, mas lhes escapa o esquivo espírito dos homens.Não vêem no espelho do futuro mais do que imagens do passado. Nenhuma delas seindividualiza. A mudança decreta-lhes a morte.

Por mudar, por alterar, por morrer, o homem é terrível. Não é mortal só nofim, a morte o contamina por inteiro, não lhe ensombra só o fim. Morrem sistemas,morrem monumentos. O novo brota nas cinzas.

Tudo indica que as Sereias, vencidas pelas artimanhas de Odisseu, pereceramcomo a Esfinge ao saber decifrado o enigma. As Sereias e a Esfinge, forçasinflexíveis da natureza, ameaçam com o imutável. Cantam como os pássaros. Comoos animais, as Sereias atuam em lugar demarcado. O homem, ao substituir anecessidade pela liberdade, provoca-lhes a ruína. Nem o próprio homem, sempreimprevisível, sabe do que é capaz, por isso Sófocles o chamará terrível.

Odisseu, se deixar de inventar, estará arruinado.Ao narrar seus feitos aos feáceos, Odisseu organiza, seleciona, domina. Inventando,o narrador distancia-se de quem atuou.

6.11. Cila e Caribde (201-259)

Fim desumano é o destino de homens que se comportaram desumanamente. Homeronão sanciona agressões, devastação, saques e raptos. Violência contra violênciaequilibra o universo. Impura é a trajetória do sábio e ponderado Odisseu. Salva-se sódepois de severos castigos porque a ordem cósmica convoca seu braço.

Irreversíveis são os caminhos da vida. Voltar para onde? O sacrifício dealguns vale mais que o insucesso de todos. Cila é preferível a Caribde, esse é desdesempre o impiedoso raciocínio do chefe militar. Por que estes e não outros? Essapergunta não encontra resposta. Já na concepção, a morte de milhões sustenta o êxitode um só. A garganta estreita por que passa a nau lembra o canal que leva da cavernaescura à vida. Os que passam renascem.

Odisseu encoraja os navegadores assustados. Escaparam de Polifemo, comonão escapariam desse monstro? Palavras veladas animam os braços que movem osremos. O êxito confirma a verdade. Assim raciocina o guia.

Mesmo que Circe tenha advertido a inutilidade de combater monstrosimortais, Odisseu se arma. Enfrenta Cila como soldado, haja o que houver.

Os abocanhados por Cila clamam por Odisseu. Não sabem que a morte deles

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estava em seus planos. Rogam ajuda a alguém que os entregara à sua própria sorte.Sacrifício calculado para triunfar.

6.12. Os bois de Hélio (12. 260-419)

A infração não foi pequena. Embora advertidos, os homens de Odisseu atacam osrebanhos de Hélio, o Sol, o rei. Não estranha que sejam punidos com a escuridão damorte os que agrediram o império da luz. Odisseu não participou do banquetesacrílego, embora não tenha impedido que a afronta acontecesse. Hélio poupa-lhe avida, mas priva-o do último barco e do auxílio dos últimos homens. Sem proteção dedeuses e sem ajuda de homens, as ondas largam o incauto navegador em Ogígia,prisão que o imobiliza por sete anos. O navegador aprendeu mais sobre omentalidade dos homens convivendo com experimentados companheiros de armasdo que com gente estranha. A lição foi dura. Mesmo em momentos decisivos, apaixão pode mais que a reflexão.

Os homens, ao elegerem o sol como símbolo da força que esclarece a mente,idealizam energias que não possuem. Odisseu navega entre o reino da luz e aescuridão dos calabouços profundos. Na mescla desses dois extremos transcorre avida. Atacar o rebanho de Hélio foi ato tão arriscado quanto roubar o fogo dosdeuses. Em ambos os casos as divindades lesadas punem os infratores. Se os homensrespeitassem os limites a que estão confinados nunca deixariam de ser crianças.Rebeldia sem riscos não há. Ousar é lutar pela vida.

6.13. Retorno a Cila e Caribde (12.420-453)

Antes do longo repouso de Odisseu em Ogígia, as forças do único sobrevivente daembarcação destroçada são postas à prova. A vida não lhe vem de graça. Odisseuvive porque ninguém dos seus faria o que ele fez ao voltar a confrontar-se com Cilae Caribde.

O relato termina na ilha de Calipso. O narrador pede licença para não repetiro que rei e rainha já sabem. Fecha-se o anel das aventuras.

Odisseu passa por muitas mortes antes de chegar ao reino dos mortos. Penosoé o regresso. Mais tranqüilo seria mover-se como sombra entre as sombras. A mortevem como dom. A vida, ao contrário, é nossa constante conquista. Até as sombras doHades batem-se pelo sangue que por instantes lhes devolve a energia vital. Com arecordação da passagem pela terra, reacendem-se-lhes os conflitos. Da morte não seescapa. Polifemo tinha razão: o último a morrer será Odisseu. Os episódios da ida aoHades são ficcionais, não a viagem, roteiro de todos. Dizendo-se Ninguém, Odisseuenunciou uma verdade cujo alcance ele próprio não podia adivinhar. Ao fim das

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narrativas ele não é mais que ficção, Nulisseu, Ninguém. E, ao ser Ninguém, é todos.

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Odisséia, a epopéia das Auroras (3)

Antes da primeira Aurora (13.1-124)A voz sonora do narrador bate nas fímbrias do dia. O silêncio de Odisseu encerra omundo dos mitos. O herói desce e dele retorna como quem entra e sai do reino dosmortos. Esquéria é a porta entre o que foi e o que será. Embora o rei anuncie o fimdas aventuras e o regresso a Ítaca, o tempo não anda. Os presentes, o banquete, adespedida consomem a luz de um dia inteiro. Impaciente, Odisseu consulta o sol. Aintranqüilidade do hóspede contra a solicitude feácea. Que importa o tempo paragente feliz? Os feáceos já estão onde desejariam estar. Num mundo de saques,agressões e conquistas, os feáceos só dão. E, por darem, são punidos.

O regresso a Ítaca, retardado por dez anos, não dura mais que o sonho de umanoite. A viagem, serena e leve, avança na velocidade de parelheiros e de falcões. Osono, que em outro momento negou aproximação às chaminés fumegantes do lar,favorece a passagem da ilusão à realidade. Odisseu adormece no início da viagem eé depositado de pálpebras cerradas na orla arenosa da ilha. A nave, ciente daimportância do homem que transporta, cuida de não perturbar-lhe o sono.

Primeira Aurora (13.125-15.56)

Uma parede de pedra, obra de Posidon, fecha os caminhos à pacífica e sonhadoracorte de Alcínoo. O mundo de ninfas e monstros esconde-se atrás de portas fechadas.Lá ficaram os companheiros. De lá emerge Odisseu, que uns supunham e outrosdesejavam morto.

Palas Atena, a deusa dos olhos vigilantes de coruja, coloca-se no vestíbulo daexistência cotidiana. Sem razão sobem do sofrido peito de Odisseu as queixas deabandono. O mar não é o domínio de Atena. Quem se aventura aos perigososcaminhos das ondas salgadas expõe-se ao irmão de Atena, Posidon, divindade irada,vingativa, sombria, tempestuosa. Posidon não tolera Odisseu em seus domínios. Omar devora-lhe as riquezas conquistadas em terra. Atena esconde numa caverna otesouro trazido de Esquéria, de que ele nunca fará uso. Entra na ilha com o corpoenvelhecido e coberto de trapos. Assim o determina Atena. Para voltar a reinar, eleterá que disputar o trono na força do braço com dezenas de nobres aguerridos. Até oscachorros de Eumeu, o porqueiro, o tratam como estranho.

Os olhos do herói se abrem lentamente à geografia de sua terra. Familiarizado

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com o sonho, a realidade espanta. A Ítaca que Odisseu deixou não existe mais. O reié estrangeiro no solo em que brincou, cresceu, reinou. Cauteloso, informa-se do quese passa. Palas Atena remove o véu que ela própria abriu para esconder montes,vales, córregos, pedras, bosques. Passo a passo, o rei desvenda segredos: descobre ossentimentos da mulher, conhece as intenções do filho. Reconquista com ainteligência, com o coração, com os braços.Mudou a situação, mudou a técnica de narrar. Longa e abundante será esta primeiraAurora. O tempo, que antes não passava, arrasta-se lento. Demorada é a conversa deOdisseu com Palas Atena. O aventureiro tem tempo para mentir. E que mentira! Asmentiras de Odisseu colocam Ítaca em tempo e espaço concretos. Ouvem-se nomescomo Creta, Pilos, Élida, Sidão, terras habitadas por homens. Quem diria? A verdadedesponta na mentira. Nos domínios de Atena, não há lugar para estórias de ninfas egigantes.

O encontro de Odisseu com Palas Atena se dá em Fórcis, porto de Proteu, oVelho do Mar. Como Proteu, a deusa da sabedoria muda de aspecto a seu bel-prazer.O atilado Odisseu não a reconhece nos disfarces, ao contrário de sua divinainterlocutora, que ridiculariza a falsa identidade em que o protegido se refugia. Naarte de enganar, Atena vence Odisseu. A discussão da graciosa com o agraciado nãopassa duma altercação de amigos.

Odisseu inicia a reconquista pela periferia. Quem o recebe é o porqueiroEumeu. O rei descobre, aos poucos, nesse humilde servidor o primeiro aliado. Nãochegará a reunir um exército como Napoleão, reaparecido de Elba. A reconquista dopalácio será obra dele e de pouquíssimos fiéis.

O patrão, descendo ao nível do escravo, ouve com paciência a seqüência deinfortúnios: seqüestro, escravização e privações em Creta, Egito e Fenícia. Osinfortúnios que desgraçaram a vida de Eumeu conferem à narrativa a sensação deexperiências vividas. Sem a imaginação de Homero, a Odisséia não seria mais doque o depoimento de Eumeu. Realismo e liberdade imaginativa enraízam-se nomesmo autor. À gente humilde, silenciada na Ilíada, dá-se voz na Odisséia.

Eumeu e Odisseu, o escravo e o herói, o que os diferencia? A vida do escravose arrasta sem projetos, mas é segura. As aventuras e a incerteza recolheram-se a umpassado distante. Só narrativas as revivem. O herói, ameaçado pela morte,desprotegido, vive aquém da segurança. Ambiciona no futuro a tranqüilidade que oescravo já tem. Entre a segurança do escravo e a errância do herói, arrasta-se aexistência.

Há muitas maneiras de sonhar. Sonhos de beleza, conforto e riquezaimobilizaram Telêmaco em Esparta. A chegada inesperada de Odisseu determina oregresso. Homero recorre a Palas Atena para ligar as duas seqüências narrativas,uma conduzida pelo pai, a outra pelo filho. A deusa torna inquieta a noite do jovem.

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Suas habilidades de deusa abrem-lhe o caminho à dúvida. Não foi tolice entregar opalácio ao governo de desordeiros? O brilho de Eurímaco luziu como ameaça àfidelidade da mãe, debilitada pela longa espera. Resistiria sozinha se pai e irmãos sealiassem para forçá-la a casar, interessados na tranqüilidade política e social da ilha?A deusa brinca com o nome do filho de Odisseu. O fato de ser telêmaco(telecombatente) não lhe dava o direito de ser teleandante (tel´alálesai). Atenalimitou-se a apresentar-lhe, em sonho, imagens que solicitam a presença dele. Agir édecisão de Telêmaco.

Arrastado pelos temores que teceram o pesadelo, Telêmaco desperta seucompanheiro. Convida-o a abandonarem o palácio no adormecido silêncio damadrugada. Seguro e experimentado, o filho de Nestor recomenda prudência.Despedidas obedecem a rituais que não devem ser transgredidos. Melhor aguardar aAurora que em breve tingirá o horizonte.

Segunda Aurora (15.57-557)

A prodigalidade de Menelau e a urbanidade de Helena se unem para selar comlembrança inesquecível a estada de Telêmaco em Esparta. A rainha brinda o rapazcom um vestido para a noiva que ele deverá ter um dia. É da rainha a interpretaçãofavorável do aéreo espetáculo de aves. De Menelau vem a oferta de um presenterégio, cavalos. Telêmaco lembra constrangido que o solo pobre de Ítaca não produzpastagens para eqüinos. Menelau não encontra dificuldades para substituir essadádiva por outras igualmente ambicionadas.

Ao ritmo dos cascos dos corcéis, a carruagem de Telêmaco, que emerge deum sonho, alcança a mansão de Diocles. A narrativa desenrola em versos sintéticosum dia sem incidentes.

Terceira Aurora (16.1-480)

Embora não se diga, esta é a terceira Aurora. A urgência omite a costumeirahomenagem à deusa dos róseos dedos. A carruagem não deverá deter-se no paláciode Nestor para despedidas. Pisístrato entende as inquietações do amigo. Emborapremido, Telêmaco não omite celebrações a Palas Atena. Religiosidade não seresume a atos religiosos. Teoclímeno, um exilado, pede ajuda. Telêmaco dá. Masexpõe, apreensivo, as dificuldades de sua terra.

Homero corta a narrativa e retorna à cabana do porqueiro. O filho, amparadopor amigos, vive em ambiente confortável, enquanto o pai amargura o último estágioda condição humana. Eumeu trabalha, tem abrigo, roupa, comida à hora certa. Omendigo não conta com a afeição de ninguém. Sem bens e sem amigos, Odisseu

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arrasta-se carente de tudo. Eumeu varre-lhe da cabeça a idéia de oferecer seus braçosaos invasores do palácio com o intuito de realizar tarefas humildes. Os pretendentesselecionam quem os serve.

O tempo é inexorável. Odisseu sabe da boca de Eumeu o que os anos fizereamde Laertes, o estado em que deixaram Penélope.

Machado fala com seus leitores. Homero fala com Eumeu, homenagem doautor a uma personagem sua. De outros o narrador reprova desatinos. Já no princípiochama marinheiros irreverentes de crianções (népioi).

O silêncio da noite é quebrado por uma anedota dos tempos da guerra troiana.Alegria noturna abranda a seriedade de preocupações com compromissos reservadosao herói pelos róseos dedos da Aurora.

Chega a nau de Telêmaco. Prudentemente o príncipe ancora antes do portoprincipal e ruma para o campo. Lamenta que não pode, em virtude dascircunstâncias, oferecer a Teoclímeno a atenção devida.

Quarta Aurora (16.1-481)

Parco é o anúncio do novo dia. A manhã está reservada a outro brilho, o que vem deOdisseu. Antes de se desvelar ao filho, Odisseu explora-lhe os sentimentos. Com aida de Eumeu à cidade por ordem de Telêmaco, abre-se espaço à iluminação restritaao filho. Por artes de Atena, a glória do guerreiro deslumbra Telêmaco.

A epopéia, como delineada no Regresso, sofre abalos na cabana de Eumeu.Em Pilos e Esparta, o rosto do pai escondia-se atrás de informações vagas, remotas.Brilha aos olhos de Telêmaco o pai que o jovem afanosamente buscava.

Telêmaco não vem armado das precauções com que se protege Odisseu.Aceita o estrangeiro como pai sem reservas. De mendigo a rei. Telêmaco vê apenasos extremos. Falta-lhe muito para penetrar na personalidade complexa de seumultifacetado progenitor. Contra as precauções de Telêmaco, Odisseu planeja atacaros pretendentes, embora numerosos, com os recursos que tem, poucos. Aliados, alémdo filho, por ora, ninguém.

Na ação, a estratégia é combater com o menor risco possível. Não é desonrosodestruir o inimigo desarmado. Guerra não é competição desportiva. Na guerra,importa vencer.

O narrador dirige a atenção ao palácio: a decepção, os planos de morte, aenérgica e bem-informada Penélope. Embora reclusa, a rainha sabe de tudo.Conhecimento de adversário algum a supera. Ninguém a vence na eloqüência.Penélope é multifacetada como seu esposo.

O argumento de que a nobreza pretende normalizar a vida política da ilha jánão convence: se Telêmaco é obstáculo à escalada ao trono, que morra, pensam os

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pretendentes.O retorno da nau que vigiava o regresso do príncipe é visto de duas

perspectivas: a dos pretendentes, e a de Eumeu quando já se distanciava do palácio.A tristeza de uns é a alegria de outros.

Uma noite tranqüila encerra o dia em que se esboçam os primeiros planos davingança.

Quinta Aurora (17.1-606)

As largas passadas de Telêmaco no palácio são as de um que sabe. A revelação dacabana o arrancou de indecisões juvenis e o introduziu no mundo das decisõesadultas. Os atos de Telêmaco já não são de quem busca, mas de quem sabe o quequer. Atena foi só o ponto de passagem. Para assuntos de sua competência, ele já nãoprecisa de guia. Os sentimentos da mãe não o detêm. Não o amedrontam perigos. Porter visto, Telêmaco se movimenta como dominador. Enraizado na tradição familiar,o jovem sabe quem é. Sabe? Como conhecer-se num ambiente instável? Solicitaçõesinusitadas surpreendem Telêmaco. A cada mudança, ele é outro. Ele se transformano palácio que se transforma. Em circunstância protéica, Telêmaco é proteico.

Não diz o que sabe de vez. A estratégia lhe determina procedimentoscalculados. Chegou o momento de Telêmaco, o que combate longe, terçar armas emsua própria casa.

Odisseu palmilha o caminho ao palácio acompanhado do porqueiro quando seabranda o frio da manhã. Num lugar tranqüilo de culto, um cabreiro insulta o rei.Socorre-o Eumeu. Odisseu assiste calado à batalha verbal entre o porqueiro e ocabreiro. Aos olhos piedosos do porqueiro, andrajos podem revestir o divino. Para ocabreiro, partidário dos pretendentes, andrajos são andrajos e como tais nãomerecem respeito. Entre a atitude do porqueiro e a do cabreiro, divide-se a ilha. Amarcha de Odisseu ao palácio representa a ressacralização da vida desde suasmanifestações menos atrativas. A humanização passa pela experiência do divino. Ahumilhação não desequilibra o herói. O guerreiro entrou no jogo. Calcula os lances.Ainda que trôpego, domina.

Odisseu se aproxima. O palácio, antro de depravados, fulgura. A percepção deArgos – o cachorro do herói – embora debilitado pela velhice, ainda é de caçador. Oabandono e a decadência deplorável do animal simbolizam a miséria de Ítaca naausência do rei. Os olhos de Argos vêem o que se oculta aos olhos dos homens. Aosentir presente o homem que o deixara há muitos anos, o ciclo vital do cachorro secompleta. Reconheceu e morreu. Também no cão brilha o divino. Sentimentoscaninos ingressam na literatura aqui. Argos é a cabeça da linhagem que vai dar nacachorra Baleia de Graciliano Ramos.

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Não se trata um cachorro como os pretendentes tratam Odisseu, de mãoestendida aos restos dos privilegiados. Não se reconhece ao hóspede esfarrapado deEumeu o direito de estar em sua própria casa. Não enxergar além do aparente temconseqüências graves. Bem mais sábia foi a inexperiente filha de Alcínoo. Aaparência não é o fundamento da comunidade civilizada. A brutalidade dospretendentes golpeia a convivência sadia. Desrespeitam o mendigo como hóspede.Este é o mal maior.

O conflito penetra nos aposentos de Penélope. Manda chamar Eumeu.Indiferente à aparência, a rainha quer ouvir o estrangeiro. A eloqüência de Odisseuvenceu as reservas do porqueiro, ele não esconde a admiração que o estrangeiro lhecausou.

Os aposentos da rainha fogem da vigilância dos pretendentes. Lá a resistênciagesta a reação. Informações veladas, evasivas, cautelosas contrastam a irresponsávelpetulância dos convivas. As habilidades do orador superam o domínio da palavra. Aretórica do silêncio, da espera, da investigação não é estranha a Penélope. Oestrangeiro a teria aprendido da longa convivência com o marido? Nos pretendentes,impunidade gerou cegueira.

Sexta Aurora (18.1-20.90)

A sexta Aurora surge sem ser anunciada. O narrador encerrou os sucessos no diaanterior com a vinda da noite.

Com que se ocupam os pretendentes? Comem, bebem, ouvem, falam, jogam,brincam. Chamar Arneu, o mendigo, de Iros, nome derivado de Íris, a mensageirados deuses, não é brincadeira? Os livres e insuspeitos movimentos de Iros conectamos pretendentes com a cidade.

Duelos distinguiam guerreiros. Na Ilíada propôs-se um duelo entre Menelau ePáris para decidir a guerra e o destino de Helena. A briga de mendigos, andrajos emlugar de armadura, peles molambentas em lugar de músculos, parodia o confrontoarmado de heróis. Prêmio, um bucho recheado. A vitória retumbante de Odisseugarante-lhe o direito de mendigar.

Desceu sobre a paródia a sombra da tragédia: a advertência de Antífono e aspalavras judiciosas de Odisseu para restaurar a decência.

Atraída por golpes e gritos, desce Penélope, mais encantadora do que nunca.Afinal, o prêmio da contenda é ela, e não um bucho de cabra. Como que suspeitandoda presença do marido, ela fala a Eurímaco, o cabeça dos pretendentes, recordandoflorescências da época em que ele conviveu com o marido ausente. Falar em novasnúpcias foi golpe sagaz. Odisseu, se quiser preservá-la, que se apresse porque apaciência da abandonada está por um fio. Homero varia recursos para quebrar a

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seqüência cronológica. O fim reflui ao princípio em várias oportunidades. Sempreastuta, Penélope soube comover seus aspirantes a noivo. Presentes de dar invejamaterializam desejos. Cada um trata de aumentar o patrimônio com as armas quetem. De acréscimo vem-lhe a visão da última edição do filho: um moço seguro,inteligente, gentil.

O divertimento e a troca de gentilezas não apagam feridas. O mendigoamargurou o convívio alegre de uma juventude irresponsável e festeira.

Os pretendentes não causaram só prejuízos materiais à casa de Odisseu,minaram também o palácio por dentro. A insolência das escravas não conhecelimites. Quando anoitece, o palácio real se converte em lupanar.

Nem todas as escravas são cordatas como Euricléia. Donde procedemescravas? Disso nos fala Eumeu. Vivia na casa de seu pai, Ctésio, rei sírio, umaescrava, filha de um homem rico. A escrava, adquirida de raptores, custou-lhe umafortuna. Admira que, auxiliada por um comerciante fenício, leve consigo na fuga ofilho do rei, um menino? Agentes de um sistema corruptor têm o direito derecriminar corrompidos?

Pode ser que Melanto, apresentada como filha de um certo Dólio, já tenhanascido no cativeiro. Eloqüente é a ausência do nome do pai num regime patriarcal.Autêntica filha da mãe, como saber o nome do homem que a gerou? Ela tinha a seufavor a beleza. Distingue-se tanto entre as demais que atrai a atenção de Eurímaco, omais destacado entre os admiradores de Penélope. Este protesto de uma mulherescravizada alinha-se entre os primeiros da literatura ocidental. Sublinhe-se o fato.

Raciocinemos com a moça. Tinham lhe tirado tudo, menos a beleza. Era orecurso que tinha para abrandar as privações do cativeiro. Voluntariamente na casade Odisseu ela não estava. Com que direito um adventício maltrapilho se imiscuía navida dela? Devemos condená-la com o rigor de Odisseu? Homero é poeta, apresentaa situação sem opinar. A conclusão fica com os ouvintes, com os leitores. A nobrezahomérica iguala o rapto de mulher e o rapto de animais. Uma mulher bonita de boaorigem valia os olhos da cara, vinte vacas, preço de Euricléia quando jovem.Entenda-se a irritação de Eurímaco e de outros pretendentes, frustrada uma noite deprazeres pela incômoda presença de um mendigo.

Que horas são? Aparelhos para medir o tempo ainda não foram inventados.De dia há o sol. À noite, movem-se os astros. E dentro do palácio? A algazarra dospretendentes já cessou. Sabemos vagamente que é tarde. Na calada da noite, avançao plano de vingança. Como? Isso ainda não está claro. Seja o plano qual for, removeras armas é medida acertada.

O combate de Odisseu não é só com os pretendentes, é também com suamulher. Ele a reconquista passo a passo. Convém conhecer o chão em que pisa.Protegida pela sombra, ela se aproxima sedutora. O narrador a compara a Ártemis, a

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caçadora em quem se espelhavam as jovens e a Afrodite, a divindade que preside asuniões conjugais. Da caça e da sedução Odisseu se protege. Mulheres atraentes eagressivas já foram a ruína de heróis. O exemplo de Agamênon fala alto. Asperguntas de Penélope são precisas, ela quer saber a origem e a filiação do herói. Eleenreda a interlocutora, que lhe revela suas dores, seus sentimentos. As palavras deOdisseu não encobrem de todo. Cauteloso, ele desvela aos poucos. De ninguémrecebeu Penélope informações tão precisas. Odisseu oculta, negaceia, seduz.

Euricléia, uma escrava de anos, é incumbida de banhar os pés do hóspede.Palavras obedecem às distorções do falante. Como, entretanto, remover sinaisgravados na pele? De uma caçada na juventude, Odisseu carrega uma cicatriz acimado joelho. Euricléia a reconhece. O narrador relata o episódio como se o lesseregistrado na memória de Euricléia. Não há perspectiva em Homero. Oacontecimento passado sobe ao primeiro plano no mesmo nível de realidade em queacontece o reconhecimento do herói. A sombra não afeta a clareza do narrado. Oscaracteres se delineiam com precisão. A aproximação Odisseu – ódio, feita noprimeiro canto por Palas Atena, é efetuada agora em outras circunstâncias. O nomefoi proposto pelo pai de Anticléia (mãe de Odisseu), Autólico, lembrado dosadversários que o odiavam. Odisseu, percebendo-se identificado pela ama, ameaça-aenergicamente para preservar o anonimato. Não queria que seu nome fosse proferidoem hora imprópria. O herói salva o anonimato com ameaças de morte.Revelar o nome significa pôr-se na dependência daquele a quem o nome é confiado,essa noção corre na tradição de muitos povos. Desde as amargas experiênciassofridas no confronto com Polifemo, Odisseu mantém seu nome em segredo até omomento em que está seguro da amizade de quem o ouve.

Penélope domina a estratégia de palavras veladas. Trata-se de um jogo. Jogode inteligência. Se o marido está próximo como alega o estrangeiro, que seapresente. Tome providências para não perdê-la. Em noite de insônia vem-lhe àmente Aedon, esposa de Zeto, um tebano. Mãe de um único filho, Ítilo, Aedoninvejava a fecundidade de Níobe, concunhada sua. Transtornada, ao tentar liquidar ofilho mais velho de sua parenta, matou o seu próprio. Foi transformada – era esse oseu desejo – em rouxinol, ave de canto triste. Como Aedon, Penélope tem um filhosó. Se aceitasse as propostas de novo casamento, poderia ter outros. Mas isso poriaem risco a vida de Telêmaco. O novo rei estaria disposto a entregar o trono ao filhodo primeiro marido? Penélope resistiu quando o filho ainda era menor. Agora ele jásabe se defender. Triunfará sobre eventuais usurpadores. Triunfará? Este é o conflitode Penélope.

O desejo expresso na lenda retorna no sonho dos gansos. São vinte. Vinte sãoos anos de ausência de Odisseu. Eles comem e bebem no palácio como ospretendentes. A dor causada pela ausência do marido confunde-se com o desejo de

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uma companhia masculina. O sentimento negado pela rejeição enérgica de novocasamento é expresso pela dor que causam os gansos abatidos por um gavião. Osonho comprova que ela sonhou com outro companheiro. A visão dos gansos espalhaardências pelo corpo. Enquanto Odisseu se envolve em aventuras eróticas, Penélopearde em desejos por homens que a cercam. A rainha pede que o estrangeiro, o seupróprio marido embusteiro, interprete o sonho. Odisseu lhe dá um sentido que lhe éfavorável, o gavião é ele. Ouvido o sonho ainda podemos declarar Penélopeimaculada? Há uma versão, rejeitada por Homero, em que Penélope teve 129amantes (os pretendentes) sucessivamente. Dessas uniões (“todas”, pan) terianascido um ser apavorante, o deus Pan). Joyce desenvolve a lenda rejeitada. Pelacabeça de Molly (a Penélope do romance Ulisses), passa a população masculina deDublin. Penélope põe o sonho em dúvida. Duas são as portas do sonho. Pela demarfim entram os sonhos falsos, pela de cifre entram os sonhos verdadeiros: chifre,o cotidiano; marfim, o distante, o sonhado. Contra a interpretação simplista de quesonhos são mensagem unívoca dos deuses, o sonho de Penélope, não subordinado adeuses, está ligado a sentimentos seus. No coração de Penélope, desejo e ódioconvivem confundidos. A fidelidade de Penélope não é imposta, é eleita. O sonho dePenélope contribui para acender a fúria guerreira do rei.

Serena, Penélope volta a acenar com a possibilidade de se ver compelida aescolher um dos pretendentes para marido. Já o fez em público, volta a fazê-lo aqui.No ponto de vista dela, a situação se tornou insustentável. Pai e filho a constrangem.Nem as criadas lhe obedecem.

Penélope fala do certame das machadinhas, que Odisseu conhece comoninguém. O jogo é proposta dela. O prêmio é ela. Odisseu terá que incorporar o jogoem seus planos.Que Ílion (Tróia) esteja ligada na mente de Penélope a lembranças amargas nãosurpreende. Foi Ílion que lhe roubou o esposo. Para expressar seu desgosto, ela criaum neologismo, Kakílion. Aportuguesamos a amargura de Penélope em Ilionada.Imitando Homero, Joyce transforma London (Londres) em Nondum (Ainda-não).Seja qual for nossa meta, inalcançável é o que buscamos, Nondum.

Odisseu recusa cama confortável. No palácio não almeja leito que não seja ode Penélope. Rola inquieto sobre pelegos. No escuro da noite, sobe-lhe à consciênciasua flagrante fraqueza. Vem-lhe a imagem de uma cachorra que late à aproximaçãode um estranho. A imagem reúne a preocupação com a defesa do que é seu e com aagressividade do adversário. O bucho revirado no braseiro revive a passagem pelacaverna do ciclope. Lá o adversário era um só, aqui Odisseu terá que medir forçascom uma multidão. Para tranqüilizá-lo, Palas Atena coloca a situação em doisplanos. O nível humano não é o último. O herói deverá ter a habilidade de orientarem seu favor os poderes da natureza, representados pelos deuses. O saber

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desenvolvido por Penélope e Odisseu em momentos de extrema dificuldade excedeatributos comuns. O recurso a estratégias inesperadas distingue Odisseu desde acampanha de Tróia. Está vivo – isso lhe reassegura a presença de Atena – por ter aacesso a um saber negado a outros.

Não menos turbulenta é a noite de Penélope. A rainha não chora só o esposoausente, ela chora também a parte perdida de si mesma, os melhores anos de suavida. Enquanto vive de memórias e de esperanças, o presente se esvai em lágrimas.Se com o regresso do ausente não retorna o que se perdeu, não é preferívelsubmergir inteira no repouso da morte? Vêm-lhe à mente as filhas de Pandareu.Estas, tendo perdido os pais, receberam a atenção de deusas. Hera transmitiu-lhessabedoria, Ártemis conferiu-lhes beleza, Atena as introduziu nos segredos das artesmanuais. Devidamente instruídas, Afrodite subiu ao Olimpo para garantir-lhesmatrimônio. Nesse breve intervalo, intervieram as Harpias e as levaram às Erínias,habitantes das trevas subterrâneas. Penélope deseja uma morte igualmente rápida naesperança de unir-se ao inesquecível Odisseu no outro mundo. Na esteira do sonhodos gansos, aflige-a o contato com um homem semelhante a Odisseu. Desamparada,às vésperas do matrimônio encontra-se a rainha. Recursos inusitados mantiveram-lhe por anos intato o leito. Sente-se cansada. A vida não lhe reserva nada além daluta de se manter no estado em que deseja estar? Antes de ser derrotada, preferemorrer.

Sétima Aurora (20.91-23.343)

A Aurora desponta com muitos presságios. As mãos de Odisseu se levantampiedosas na agitação do palácio que desperta. A visão da produção de farinhamistura-se com mugidos, balidos e grunhidos de animais trazidos por porqueiros,cabreiros e boiadeiros para o consumo do dia. Ouvem-se as vozes de gente humilde,aflita com a situação do palácio. Braços escravos se movem na arrumação do paláciopara receber a chusma dos pretendentes. Depois de uma noite de conversas, deruídos, de sono e de sonhos, a lufa-lufa do dia. O realismo homérico aviva o corre-corre cotidiano. As esperanças de Odisseu sustentam-se em sinais do céu e vozesproféticas.

O dia é de festa. Homenageado é Apolo, o deus frecheiro. Ele e sua irmã,Ártemis, presidem mortes distintas. As frechas dela trazem morte suave. Os golpesde Apolo provocam morte violenta. Eram de Apolo as frechas que dizimavammisteriosamente os sitiantes de Tróia. Homenageando Apolo, os pretendentespreparam o seu próprio funeral.

Tivemos, no início da epopéia, uma visão política da cidade. Vemo-la agoracongregada numa cerimônia religiosa. Esses dois momentos unidos a cenas

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campestres e à vida palaciana ampliam o quadro de Ítaca. À medida queacompanhamos a ação humana, desdobra-se o cenário da ilha.

Antes da luta armada, uma batalha de palavras. Para os pretendentes, este é oúltimo debate. Uma visão de sangue perturba Teoclímeno. Ri-se pouco na Odisséia,e ri-se mal. O riso foi reservado aos deuses. Os imortais riem do aleijamento deHefesto, da prisão de Afrodite e Ares. Riem porque não os ameaça fim. Os homens,quando riem, esquecem a iminência da tragédia. Deslembrados do limite, insurgem-se como Egisto contra a medida (hyper Moron). Um riso de doidos encerra oassombro do vidente, risinhos de despudoradas fura o silêncio da noite. A cronologiase inverte: o banquete fúnebre antes da morte, riso em lugar do choro. Estescondenados à morte riem de seu próprio infortúnio. Instauram a comédia em lugarinadequado, em momento impróprio.

Na opinião de muitos, a “mão forte” com que Penélope abre a sala das armasdesdiz delicada formosura feminina. Da sedução e da beleza já tivemos provas.Aparece agora outra qualidade da multifacetada Penélope, desenvolvida ao longo devinte anos de abandono. A falta é produtiva, dela nascem recursos. A sala que guardao arco desperta lembranças de outros tempos. Nas mãos da rainha, o arco adquirevida. Antecipando Proust, o objeto lhe evoca lembranças há muito esquecidas. Oafeto que liga Penélope a Odisseu aflora no toque do arco. Essas lembranças e amemória proustiana se tocam e se repelem. Para o autor de Em busca do tempoperdido, o que se passou em outros tempos está morto. A imaginação literária criauma realidade sem precedentes. Penélope se bate pela recuperação literal dopassado. Ela não admite outro tempo fora daquele que já passou. Ao tratarem otempo, a Antigüidade e a Modernidade se opõem. A essência pretérita de outrora,fonte do que é e do que será, cede agora lugar a projetos.

Ao propor o certame das machadinhas, Penélope sai da condição de objeto.Em vez de ser conduzida por mão de outros, ela mesma se oferece como prêmio.Com o sacrifício de sua vida para o bem de sua terra, ela emite brilhos de heroína àsemelhança de Efigênia[1].

Penélope profere, por fim, a palavra que os pretendentes há muito queriam, apromessa de acompanhar um deles como esposa. Estranharam a condição: dobrar oarco e atravessar com uma frecha o olho das machadinhas. Não é com ouro que secompra Penélope como todos esperavam. O preço da mulher hábil e sábia é umhomem nas mesmas condições. Quem ocuparia o trono de Ítaca? Um aventureirodebilitado pela ociosidade e a bebida como os pretendentes? Impossível, raciocinavaPenélope. A pretendida atolou no tempo. Não se contenta com um candidato igual aOdisseu, ela quer o próprio Odisseu de vinte anos atrás. Os pretendentes não secandidatam só à mão de Penélope, exige-se deles vigor igual a um guerreiroexcepcional na flor dos seus vinte anos.

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Telêmaco entra no certame. Com que direito disputa Telêmaco a posse da mãe comos pretendentes? Se ganhar a mãe como prêmio de jogo, não precisará cedê-la aninguém. A permanência da mãe vale-lhe o palácio, o trono.

Como entender que as palavras enérgicas do moço tirem da sala a mãeespantada? Que se comportasse assim antes da viagem a Esparta, entende-se. Mas oTelêmaco de agora já visitou a civilizada corte de Menelau. Do convívio com aviajada e urbana Helena não lhe ficou nada? Atrás do discurso declarado deTelêmaco oculta-se outro ao qual Penélope só mais tarde terá acesso. Seus olhos dedama não suportariam o banho de sangue iminente, horror até para guerreirosexperimentados.

Telêmaco, ao determinar remover a mãe da sala, decide sobre si mesmo napresença dos que decidiram tirar-lhe a vida. A responsabilidade biológica da mãesobre o filho terminou. O que de agora em diante suceder estará sujeito a atos livresde Telêmaco. Este é o momento mais grave: Telêmaco joga a sua própria vida.Ingressou na vida adulta. Tomou o destino em suas próprias mãos. Não culpe a Zeusse a coragem lhe abreviar os dias. No risco de cometer excessos, de agir hyperMoron, trágica é sua existência.

Um longo percurso de realizações distancia o Odisseu de agora do Nulisseuda caverna de Polifemo. Ao dobrar o arco e disparar com sucesso a frecha, ele já nãoé “aquele”, é Odisseu. O nome coroa as façanhas do herói. O Ódio embutido nonome desde os tempos de seu avô rebenta violento sobre seus adversários.

Atento a modificações, disse Odisseu aos feáceos que os muitos anos de marlhe tinham tirado a mobilidade dos pés. E os sete anos de Ogígia não lhe teriamroubado a força dos braços? Odisseu percebeu a ação do tempo na debilidadedeplorável de seu outrora vigoroso cachorro Argos. Examina o arco. Poderia estarcarcomido. E seus ossos e seus músculos estariam intatos? Mas havia Palas Atenaque, contra as leis da natureza, envelhece e rejuvenesce pessoas ao arbítrio dela.Tarefas imprevistas recuperam energias adormecidas. O poeta compara a corda doarco com as cordas da lira. Tensões, resistências, ritmos aproximam a arma doinstrumento musical. O guerreiro desempenha seus movimentos em ritmos de dança.Heráclito, leitor de Homero, projetará a comparação homérica sobre a ordemcósmica.

Odisseu iniciou o dia com a imagem do ciclope na cabeça. Não se combatemmonstros sem risco. Odisseu introduziu o monstro em sua própria casa. O ciclopeagora é ele. Como se vivesse numa caverna, manda trancar todas as portas dopalácio. Dispara sobre homens desarmados. Os adversários não se individualizam nocombate. Eurímaco sobressai no que tem de pior. Culpa Antínoo, o primeiro morto,dos desacertos de todos. Eurímaco cai como os demais. Para o vingador, todos sãoculpados da mesma falta e no mesmo grau. A sentença de morte não diferencia uns

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de outros. O juiz e o executor da sentença são a mesma pessoa. Razões proferidaspara minorar a culpa caem no vazio. A deusa da sabedoria, Palas Atena, amparaOdisseu. A seriedade contra o riso. A razão contra a paixão. A festa homenageiaApolo, o deus frecheiro. A deusa que dizimou o exército grego em Tróia abre agoracaminho às frechas de Odisseu.

Na sala de banquetes, confundida com o campo de batalha, corpos rolam pelochão como assados. A tortura a que o cabreiro foi submetido macula a dignidade doherói. Enlouquecido pelo ódio, Odisseu ameaçou de morte até sua velha e dedicadaama. A crueldade do filho excede a do pai. Telêmaco resolveu destinar à forcacriadas condenadas por Odisseu à morte de espada. Os heróis antigos andam nafronteira entre o humano e o desumano.

Penélope desperta de sono profundo, o mais completo desde a partida deOdisseu. Sacudida por emoções fortes, Penélope busca o equilíbrio, medidasadequadas. Como distinguir sonho e realidade? Ainda que emocionada, não perde oequilíbrio. Já enfrentou dificuldades maiores quando convivia com os pretendentes.Lidar com um provável impostor é contratempo menor. A rainha não pode errar. Umdeslize agora arruinaria um trabalho de vinte anos. Move-se entre dois abismos: deum lado Helena, vítima de um sedutor; de outro Alcmena, iludida por um deus. Elanão quer um homem igual a Odisseu, quer reaver o próprio Odisseu como ele adeixou.

Odisseu sonhava com Penélope. Ser recebido pela esposa animava-o nasprovas mais severas. Embora tenha descido à sala, ela se mantém distante, pétrea. Otempo por instantes congelou. Nenhum movimento. Penélope sente-se interiormentetravada. Não é fácil aproximar o que vinte anos distanciaram.

Telêmaco, que acompanhou movimentos de Odisseu desde que o herói seapresentou a ele, surpreende-se com resistência da mãe e a repreende. Dýsmeter é apalavra que ele lhe dirige, má mãe. Demasiadamente preocupado consigo mesmo,nunca chegou a compreendê-la. Penélope não lhe dá explicações, o filho não acompreenderia. Telêmaco não descobriu na mãe a mulher da dúvida. Essesentimento, que lhe trouxe muitos dissabores, a protege contra medidasintempestivas, contra a violência da paixão. Não é um coração de pedra queimobiliza Penélope, a dúvida abala, gera decisões inusitadas, conduz Penélope nocaminho da invenção. O mundo em que Penélope duvida não lhe oferece nenhumagarantia.

Como poderia Penélope reconhecer o marido naquele corpo coberto desangue? Não estranharia que a aparição hedionda fosse um deus, acima de todas asleis, a águia dos seus sonhos. A dúvida de Penélope ecoa na dúvida de Odisseu,contamina a linguagem do herói. Onde encontrar a verdade naquilo que Odisseu diz?São falsas as inúmeras versões que encobrem a identidade do aventureiro?

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Receptores atilados percebem nelas outra história, uma em que ele próprio sedesconhece. Odisseu navega de si a si mesmo. Em que mares se esconde a Ítaca dapersonalidade multifacetada do complexo Odisseu?

O silêncio, origem e fim do discurso, tem muitas nuances. Depois de vinteanos, Penélope encontra um homem que, embora calado, procura entendê-la. Sujo desangue, Penélope tem todo o direito de considerá-lo um leão da montanha, imagemque em outras circunstâncias lhe atribuiu Nausícaa, filha do rei Alcínoo.

O tempo de Salvador Dalí pende sobre um galho de árvore como um pano,desce viscoso como clara de ovo. Material é o tempo da Odisséia: brilha nos dedosróseos da Aurora, move-se nas rodas de Hélio, desce em partículas de cinza sobre asarmas guardadas na sala de banquete do palácio real de Ítaca.

A água não remove apenas as impurezas do corpo. Odisseu deixasimbolicamente na banheira infrações de vinte anos. Sai da água um novo Odisseu,que é o mesmo, o que há duas décadas partiu para a guerra. A água, que não permitiua emergência dos corpos dos que saborearam a carne dos bois de Hélio, deixa onavegador vitorioso no vestíbulo de nova etapa. O banho do herói corresponde àlimpeza do palácio. Os cadáveres dos pretendentes mortos foram todos removidos.Em lugar da baderna de todos os dias, o silêncio da sala tratada com enxofre envolveo casal.

A visão do corpo limpo e rejuvenescido não remove a última incerteza dePenélope. Um impostor não poderia saber de segredos do casal. Penélope submeteOdisseu a um último exame, a marcenaria do leito conjugal, sigilo guardado a setechaves por marido e mulher. A resposta detalhada só poderia vir dos lábios deOdisseu. Abraços e beijos recompensam o único homem que poderia solucionar oenigma. As aventuras que encantaram os feáceos soam agora aos ouvidos da esposa.Os fatos ficaram escondidos atrás das rochas erguidas por Posidon para impediracesso a Esquéria. Restam os mitos, e estes resistem à corrosão do tempo. Oaventureiro exclui o nome de Nausícaa, a jovem que por instantes o cativou.

A música nupcial e a ressonância dos passos de dança só em parte iludem ospassantes. Há realmente um casamento, não de Penélope com qualquer um comopensavam. O reencontro de Penélope e Odisseu renova entusiasmos antigos.

O tempo é brinquedo nas mãos de Palas Atena, a deusa enruga e alisa a pelede Odisseu como lhe convém. O que lhe custa prolongar a noite para premiar o casalque padeceu a ausência de vinte anos?

Oitava Aurora (23.344-24.548 )

O Hades, meta de Hermes e de seu séquito de sombras, congrega todos, justos einjustos. Hades é Plutão, a divindade rica, meta dos mortais. Como não há padrões

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rígidos para valorar o comportamento, obscuro é o acerto do que fazemos. Encerradaa ação, reflete-se sobre o sentido dela. Breve como o raio é o brilho dos heróis, mas,sem esses lampejos, erraríamos na sombra sem norte.

O mundo invisível é mais amplo do que as sombras da morte. Há ainda asombra de outros tempos. Em busca do pai, Odisseu redescobre o passado. Nostroncos estão gravadas passagens de sua infância. Navegando pelo tempo, o heróiredescobre o menino que ele foi. A redescoberta não corresponde ao que realmenteaconteceu. Os projetos de outrora se fizeram meta. A infância revisitada despontacomo símbolo da vida que se renova. Confundido por momentos com a selvageriados carnívoros, o filho de Laertes se re-humaniza. A recomposição do lar não se dáde vez.

Símbolo da vida é Laertes. O herói que defendeu de espada em punho aintegridade da ilha, curvado voluntariamente em trabalho escravo, pouco sedistingue da terra. Na sala de armas enferruja o escudo do pai de Odisseu. O dardoimpelido por seu braço debilitado é o último fulgor da glória passada. Os sinais dainfância e a velhice do pai visualizam para Odisseu o princípio e o fim de uma vidaheróica. Nascido da terra, a terra é o destino do homem.

Mudada a perspectiva, muda o caráter da ação. Como poderiam aprovar aselvageria de Odisseu mães que molham com lágrimas os corpos inertes dos filhos?Nem sempre o povo que aperfeiçoou o discurso elege a palavra como instrumentopara solucionar divergências. A presença da deusa da sabedoria, Palas Atena,confirma a esperança de que a palavra refletida se imponha à crueza da paixão.

Consideremos dois movimentos na Odisséia: a dispersão e a concentração. Ohomem disperso é acolhido nos braços da mulher, meta de suas muitas aventuras.Odisseu volta a dispersar-se no instante em que os braços da esposa se abrem. Hátarefas a realizar, batalhas a ferir, riquezas a recompor. Sem Penélope, o espaçoperderia o centro, o tempo se decomporia numa sucessão aleatória de episódios, aação se dissolveria no emaranhado de façanhas circunstanciais. A concentração éelevada ao nó luminoso que conecta o universo na Divina Comédia de Dante. Abre-se o nó e caímos na dispersão contemporânea em que as unidades de tempo, espaço eação já nada significam.

Última Aurora

O Stephen Dedalus do Ulisses de Joyce, prisioneiro de situação econômica, política,religiosa e ideológica, é uma reelaboração moderna do Telêmaco da Odisséia.Rebelado contra confinamentos, longe de amigos e de inimigos, inquietam-noprincípios. Avesso a posições dogmáticas, busca Proteu, o deus multiforme, oabastado em informações. Proteu, símbolo da linguagem, assume formas

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imprevistas. Proteu é todas as bibliotecas, acervo dos livros já escritos e porescrever. Dedalus arranca de Proteu algumas páginas, tantas quantas a sede de sabercomporta. Tece enredos com elas. O tecido é seu, mas as palavras, as frases, ospontos e as vírgulas são de Proteu. À beira do mar, Dedalus entrega-se aespeculações sobre percepção, maternidade, paternidade, consubstancialidade,estética, ninharias (as múltiplas formas de Proteu). Proteu é o próprio saber, acontínua regeneração de todas as coisas. Em busca da liberdade, Stephen cai naarmadilha dos signos, que protelam indefinidamente o acesso às coisas mesmas.Intelectual é a luta e tem como adversários idéias, palavras, livros. Stephen bate nascoisas armado de capacete e espada à maneira de soldado. Estamos, desde a primeirapalavra, em plena refrega proteica. Não olhamos sem intenção de olhar. A lutacomeça aí. De Proteu, o visível proliferante, apanhamos parte pequeníssima.Iluminado pelo olhar, o visível pensa através dos olhos e leva à matriz pré-humana,a força que move as ondas. O nomeado entra na cadeia do já dito, do já conhecido,do interpretado, do semeado no invisível, do não-nomeado. Para movimentar-se noinvisível (o passado e o futuro), Stephen tenta apoderar-se de Proteu, a possibilidadede respostas. Vitoriosos seriam os que lograssem atravessar as formas. Mas o visívelé inelutável. Como atravessar a barreira das palavras para atingir o visível?Chegados ao visível, batemos na parede que nega acesso ao invisível. O pesadelotortura os presos aos sentidos. O alvo dessa luta não é a destruição de outros(aniquilamento dos pretendentes), é a aliança com outros para a exploração de todasas coisas.

O fluir da consciência rompe o texto gramatical, legislado. Resultamfragmentos livres em caótica busca de ordem. Agarrado a Proteu, o Stephen procurao que está além de Proteu. A luta não lhe dá mais do que pedaços de informações.Proteu protege segredos. O sangue jesuítico, injetado em sentido contrário nas veiasde Stephen, prende o jovem ao texto, interposto entre o homem e a realidade desde aIdade Média. O domínio da Escritura se ampliou. Viajamos do texto sagrado aquaisquer textos. O texto é o lugar em que o saber se desvela e se oculta.

No quarto canto do “Inferno” habita a sombra de Aristóteles, o Mestre dosque sabem (Maestro di color che sanno). Nesse círculo, o primeiro, vagam poetas,filósofos, investigadores a quem, por não terem recebido o batismo, o paraíso érecusado, embora estejam bem próximos dele. Entramos no inferno, o romance,realidade cambiante. O canto é introduzido por um estrondo que coloca Dante diantedo abismo. No Ulisses, o estrondo é Deus. O inferno de Ulisses é a memória, moradade lembranças que se afundam em abismos insondáveis. O mar é o símbolo da vida,da destruição, da abundância, da regeneração. Joyce sobrepõe imagens – fragmentoscolhidos em tempos e lugares diferentes – procedimento de pintores cubistas. AquiStephen está diante das coisas mesmas, não diante dos discursos como em outros

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capítulos. Pensa com os olhos. Lê as coisas como palavras e as palavras comocoisas, não as palavras e as coisas, e sim as palavras-coisas, as coisas-palavras. Háassinaturas em todas elas a demandar leitura. Encontra-se diante de um texto –signos visuais, tácteis, auditivos. O discurso é um corpo que se alinha ao lado deoutros corpos. Não experimenta Deus acima das coisas, mas o deus que se fez carne,pedra, peixe. Os olhos pensam, pesam, os olhos no mundo e o mundo nos olhos. Sematou a mãe foi para encontrar a origem que não se rende à visão.

Stephen lê assinaturas, as coisas mesmas ficam além. De quem são asassinaturas? De filósofos, de místicos: Aristóteles, São Tomás, Boehme... Autoresque Stephen leu, meditou, reelaborou. Stephen, ao telefonar ao paraíso, apalpa aorigem no som. O telefone é o aparelho do audível inelutável. Na antigüidade mítica,falavam da origem as Musas, filhas da Memória; agora, o telefone. Das origens restaa sonoridade. De cordão umbilical a cordão umbilical constrói-se a rede que nosconecta com o paraíso. O telefonema mistura culturas: a grega, a hebraica e a cristã(Aleph e Alfa = 00). O paraíso é a passagem do zero ao um. Por não ter umbigo, Evanão tem origem. Falta-lhe a marca da origem, o corte. O um não inicia a série.Origem é o 0. Do Aleph/Alfa, vai-se do zero ao paraíso, do um ao múltiplo, aosmuitos caminhos. Como o h em português, o Aleph é puro sinal gráfico. Stephenpassa do masculino, o fixo (Deasy e Mulligan) ao móvel (o feminino, a mãe, Eva).Os verbos (arrasta, shlepeia, treneja, dragueja, transcina) prolongam e matizam asdores da Eva caída em muitas línguas, muitas culturas. Todas? Os verbos em váriaslínguas lembram as dores de Eva que se multiplicam na queda. Atravessando oscírculos do tempo, a percepção de Dedalus atinge as origens mais remotas: ônfalos,zero, o nada. Edenville (O Éden) vem depois do nada. É o número um depois dozero. Depois da unidade vem a perda da luz, a queda na história. Oinopa ponton, omar cor de vinho, a mãe além de todas as mães, mãe ausente, distante, misteriosa,caos original.

O conhecimento de Telêmaco tem um alicerce, Odisseu, o pai. Para StephenDedalus, personagem de Ulisses, de Joyce, este fundamento está perdido. O alicercee o nada assinalam a diferença entre a Antigüidade e a Modernidade. StephenDedalus, o herói da Modernidade, em busca do fundamento, encontra o nada.

O Canto 26 do Inferno de Dante oferece-nos outra versão do fim de Odisseu.O Ulisses dantesco (Odisseu) interrogado por Dante, fala em síntese assim: “Quandofugi dos encantos de Circe, nem a saudade do filho, nem a lembrança do meu velhopai, nem o amor de Penélope, venceram em mim o desejo de conhecer outrosmortais e seus méritos. Naveguei pelo mar aberto com um punhado de bravos. Jávelhos e alquebrados, alcançamos as Colunas de Hércules (Estreito de Gibraltar).Concitei meus camaradas a explorar terras situadas além desses limites. Já tínhamosnos distanciado muito quando para nosso espanto apareceu, entre brumas, montanha

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tão grandiosa que outra igual eu ainda não tinha visto. Apanhados por um furacão,nossa alegria se desfez em pranto. Submersos, o mar se fechou sobre nós.”

Ao que tudo indica, a montanha incomum era o Purgatório, região pela qual,após muitos sofrimentos, os que entram alcançam o Paraíso. Para o pensamentomedieval, ao repouso celeste não tinha acesso o homem antigo por mais virtuoso quefosse. Esta é a razão cristã do insucesso de Ulisses. Dante divide a história em doiscapítulos. O mundo antigo, mesmo nas suas culminâncias, está confinado à terralimitada pelo Rio Oceano. Ao outro mundo têm acesso cristãos. Nas veias do Ulissesde Dante corre o sangue de Colombo. Sonhando com o paraíso terrestre, escondidonas águas do Ocidente, o navegante genovês, embarcado em navios espanhóis, sematingir o que buscava – além da Ásia, o paraíso terrestre –, encontrou a América.

Orgulhosamente afirma Camões que coube aos portugueses percorrer os“mares nunca dantes navegados”, fechados aos navegadores míticos, Ulisses(Odisseu) e Enéias. O entusiasmo dos heróis lusitanos pulsa ainda nos versos deFernando Pessoa para quem o mar com limites era grego e romano, enquanto que omar sem limites é português. O sonho grego e o sonho português expandem-se nacontemporânea exploração do ilimitado. As navegações espaciais dão os primeirospassos para a colonização do sistema solar. Os ventos que enfunavam as velas deColombo, Cabral e Magalhães empurram agora as naves ao espaço sideral.

Em Finismundo, a última viagem, Haroldo de Campos retoma o projeto dereinventar Ulisses. Malsucedido como Colombo (por não encontrar o paraísoterrestre), o Ulisses de Haroldo morre sem encontrar o paraíso sonhado. Moderna é abusca do infinito, moderno é o mar que sepulta Odisseu sem outra lembrança que osulco rasgado nas ondas pela quilha. O canto das sereias, reinterpretado, não pára desoar aos ouvidos de Ulisses. Comparado ao das sereias, canto nenhum é o último.Lar e velhice tranqüila são laços que prendem o aventureiro ao mastro. Rompidas ascadeias, o último som é o das sereias. Triunfa o canto delas confundido com asondas do mar. Na segunda parte do poema, consagrada ao Ulisses urbano, oexplorador navega sujeito às leis do trânsito, ao brilho instantâneo, às banalidadescotidianas. O Ulisses urbano de Haroldo é menos ambicioso que o Ulisses de Joyce.Para o Ulisses de Haroldo, preso a ninharias nem périplo pela cidade há. Sem ousaraventurar-se à busca da Última Tule, contenta-se com a penúltima, a em que oconforto o confina. Do Éden basta-lhe um prosaico cartão-postal.

Estaremos presos às paredes das babéis metropolitanas que ambiciosamenteconstruímos? O mito fáustico, mais poderoso que os arsenais nucleares, diz que não.Não se diga que perdeu a força o vento que, desde Odisseu, enfuna as velas demilhões. Esta não é a última Aurora. Além de todos os entes, acena o Ser.

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[1]. Filha de Agamênon. Segundo a versão mais popularizada do mito, quando osgregos rumavam a Tróia, a falta de ventos deixou-os estagnados por muito tempo.Um oráculo consultado disse que era por causa da deusa Ártemis, que estavaofendida porque, certa vez, Agamênon lhe prometera sacrificar o mais belo animalnascido naquele ano mas, em lugar de sacrificar a própria filha, Efigênia, sacrificaraum outro animal qualquer. Na versão de Eurípedes, a tragédia Efigênia em Áulis, aprópria heroína acaba voluntariando-se ao sacrifício, para o bem dos gregos, queprecisam ir à guerra. (N.E.)

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Sobre o tradutor

Donaldo Schüler nasceu em Videira, Santa Catarina, em 1932. É doutor em Letras elivre-docente pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e pela PontifíciaUniversidade Católica do Rio Grande do Sul e professor titular aposentado emlíngua e literatura grega da UFRGS. Realizou estágio de pós-doutorado naUniversidade de São Paulo, concluído com a publicação do trabalho Eros: dialéticae retórica (Edusp, 2001). Ministrou cursos em nível de graduação e de pós-graduação em vários países, como Estados Unidos, Canadá, Uruguai, Chile eArgentina, e hoje leciona no Curso de Pós-Graduação em Filosofia da PUCRS, alémde atuar como conferencista e professor em várias instituições e universidades.Publicou diversos livros, entre os quais Teoria do romance (Ática, 1989), NarcisoErrante, Na conquista do Brasil (Atelier Editorial, 2001), Heráclito e seu (dis)curso(L&PM Pocket, 2000), Origens do discurso democrático (L&PM Pocket, 2002), Aconstrução da Ilíada (L&PM, 2004) e, no gênero romance, A mulher afortunada(Movimento, 1982), Faustino, Pedro de Malasartes e Império caboclo. Realizouvárias traduções, sobretudo de tragédias gregas (Sófocles e Ésquilo). Sua versão parao português do romance Finnegans Wake, de James Joyce (Atelier Editorial, 2003),recebeu o prêmio Jabuti, o prêmio de Melhor Tradução da Associação Paulista deCríticos Literários, o Prêmio Açorianos e o prêmio Fato Literário, concedido pelaRBS e BANRISUL. Por Finnício Riovém (Lamparina, 2004), recebeu o PrêmioAçorianos na categoria literatura infanto-juvenil.

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Título original: Capa: Ivan Pinheiro MachadoRevisão: Bianca Pasqualini

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonteSindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

H727oHomeroOdisséia [recurso eletrônico] : telemaquia, regresso, Ítaca / Homero ; tradução dogrego, introdução e análise de Donaldo Schüler. - Porto Alegre, RS : L&PM, 2011.Recurso DigitalFormato: ePubRequisitos do sistema:Modo de acesso:ISBN 978-85-254-2290-3 (recurso eletrônico)1. Poesia grega. 2. Livros eletrônicos. I. Schüler, Donaldo, 1932-. II. Título.11-2126. CDD: 881CDU: 821.14’021

© L&PM Editores, 2008Todos os direitos desta edição reservados a L&PM EditoresRua Comendador Coruja 314, loja 9 – Floresta – 90220-180Porto Alegre – RS – Brasil / Fone: 51.3225.5777 – Fax: 51.3221-5380

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