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PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS
CURSO DE PS-GRADUAO EM HISTRIA
VISES DO PARASO: UMA CIVILIZAO BARROCO-TROPICAL
NO SUL DO BRASIL
Jussara Maria Pieruccini
Dissertao apresentada como requisito parcial e ltimo
para a obteno do grau de Mestre em Histria do Brasil,
sob a orientao da Prof. Dr. La Perez.
Porto Alegre
1997
Livros Grtis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grtis para download.
2
Em memria de meu irmo e de todos os que sofrem o mal deste fim de sculo.
3
AGRADECIMENTOS
A La Freitas Perez pela oportunidade de mais um exerccio de amor e
pacincia que s um educador, na plenitude de seu significado, pode nos
proporcionar.
Aos colegas que, com suas intervenes precisas, suscitaram dvidas e
certezas sobre o meu ofcio.
Aos professores do Curso por me ajudaram a perceber a importncia da
diversidade terica.
A Carla Pereira e Rosana Sanches pela recepo sempre sorridente.
A Associao de Alunos e aos professores do CPG/PUCRS pela
solidariedade, palavra gasta mas precisa, que me fez terminar com dignidade esta
dissertao.
Aos meus pais, irmos e amigos pela participao quase que involuntria
nas alegrias e tristezas desta travessia.
E, finalmente, aos meus filhos Daniel e Janaina pelo carinho e pacincia
com que me brindaram nos difceis momentos de mais este rito de passagem.
4
SUMRIO
INTRODUO............................................................................................... 6
1. A HISTRIA E O OLHAR DAS MENTALIDADES.............................. 12
1.1 UMA VISO PARA A HISTRIA........................................... 15
1.2 UMA NARRATIVA DRAMTICA............................................ 24
1.3 AS CILADAS DO ESPRITO DOS TEMPOS.......................... 28
1.3.1 GNESE: A VISO DE J. LE GOFF........................... 28
1.3.2 MENTALIDADES: A IDEOLOGIA DE G. DUBY........ 36
2. SUAVIZAO DOS COSTUMES: UM PROCESSO DE LONGA
DURAO................................................................................................. 47
2.1 O PROCESSO CIVILIZADOR............................................... 48
2.2 A CIVILIZAO E A CIDADE............................................... 59
3. BRASIL: UMA CIVILIZAO BARROCO-TROPICAL..................... 64
3.1 UMA CIDADE BARROCA...................................................... 80
A CIVILIDADE REENCONTRA A BARBRIE......................................... 93
BIBLIOGRAFIA......................................................................................... 100
FONTES PRIMRIAS............................................................................. 106
5
(...) Com o volver dos tempos, esquecia-
se tudo; os heris dissipavam-se em
mitos, na penumbra, ao longe; e a
histria ia caindo aos pedaos, no lhe
ficando mais que duas ou trs feies
vagas e remotas. E eu via-as de um modo
ou de outro.(...)
(Machado de Assis, Viver!, 1886)
6
INTRODUO
7
Este trabalho conseqncia de minhas preocupaes sobre as relaes
sociais no Brasil sob o ponto de vista da cultura. Ou seja, das atividades cotidianas
dos brasileiros e das percepes dessa realidade, sob a tica dos homens bons e dos
intelectuais.
Cultura ser entendida, portanto, em sua forma popular como erudio a
partir da atuao dos letrados, legisladores, escritores, professores, pesquisadores; e,
tambm, como conjunto de tradies e costumes passados de gerao a gerao,
presente em nossos pensamentos e em nossos atos.
Posso perceber uma certa duplicidade de cdigos, dos discursos oficiais
oralidade dos fatos, que parece se repetir em uma peculiar forma de relao social
brasileira. Uma sociao que mescla a tradio herdada do ocidente com a
modernidade dos trpicos revelando uma linguagem prpria, marcada ainda pelo
entrelaamento com a diversidade, permito dizer oriental, das culturas do ndio e do
negro.
Uma trindade povoa nossa mentalidade, alimentada de terra, madeira
retorcida e de uma ancestral simbologia envolvendo o cu e o inferno, com seus anjos,
demnios, pajs e orixs. Ao lado disso, o corpo impiedosamente quente de nossas
florestas, canaviais, cafezais, vinhedos - os campos interminveis de trabalho e de
festa. Estou falando em corpo e alma, aspectos fsicos, racionais e aspectos no-
corpreos, mentalidade, esprito, mas indissociveis e interligados no indivduo e no
coletivo.
A modernidade instaurada no Brasil permite perceber como a civilizao
ocidental tem aqui uma colorao barroca: no claro e escuro exuberante das terras e
das gentes e na cortesia fundada na aparncia de nossa legislao, que ampara o
discurso moderno enquanto disfara a prtica tradicional. Na histria econmica e
8
poltica, esses aspectos jazem de forma subliminar; aqui, a economia e a poltica tero
o mesmo papel.
Ou seja, as relaes que estabelecemos hoje so semelhantes s de
ontem demonstrando a permanncia de uma cortesia ocidental e, por outro lado, de
uma cultura milenar formando um modo civilizacional a que chamo de barroco-tropical.
Uma mentalidade acostumada com a casa-grande e a senzala, com a estncia e o
galpo: sofisticao e sensualidade, suor e sangue, erudio e trabalho, f e magia.
Uma viso de mundo que carrega uma emocionalidade que ultrapassa
toda e qualquer fronteira, rural e urbana, aqui e no estrangeiro, no passado e no
presente. Uma forma de organizao social que alia todas as tradies numa crena
inabalvel na alegria de viver, como se ainda tivssemos rios de guas cristalinas,
bem ao alcance de alguns passos, para o banho purificador de todos os males e
pecados dirios.
Um pas com diferenas geogrficas, histricas e culturais, mas que
mantm uma unidade de sentimento com caractersticas peculiares a uma civilizao
ocidental, mas tropical e barroca. Mesmo no sul do Brasil, onde pensamos conservar
uma genuna ocidentalidade - nos aliamos agora aos hermanos do Cone Sul, embora
as desavenas histricas - a civilizao barroca se manifesta.
Ou seja, a histria no pode ser contada apenas com os documentos
oficiais, fontes histricas ou teorias embalados pela razo, mas tambm com as
sensaes e sentimentos que os fatos despertam nas pessoas. A histria, como uma
das formas de se entender as mltiplas ingerncias sociais e de explic-las, possibilita
uma viagem no tempo para descobrir como se vivia e se pensava no incio dos
dezenove e no final deste sculo.
Por ser histria, no prescinde de outras cincias e encontra na
antropologia uma de suas melhores auxiliares. O conceito antropolgico de cultura d
9
conta de seu carter popular e oficial, para usar as categorias de Bakhtin1,
permitindo estabelecer as conexes que permanecem neste final de milnio. Diacronia
e sincronia se impem em meu trabalho, como forma de entender a realidade que me
cerca.
A histria devolve-me o prazer da narrativa vislumbrada apenas na
literatura e instiga-me a duvidar da erudio vazia e das palavras difceis; a
antropologia incentiva minha tendncia presentesta amparada numa viso
museolgica do aqui e do agora. A histria falar de mentalidades, enquanto a
antropologia dir de estruturas de significao, nada alm de conceitos para buscar
respostas e entender o presente com um olhar no futuro.
Minha tendncia generalista, marcada pela sociologia da dcada de 70
em Porto Alegre, encontra-se preservada pela memria de uma honra familiar italiana
misturada s gentes nacionais, como diria meu pai, das quais nada de bom poderia
advir. Aponta, ao mesmo tempo, para a certeza do envolvimento pessoal e para a
brevidade necessria sntese.
Procuro um entendimento do todo e este encontrado no trabalho de
Norbert Elias e de Gilberto Freyre, meus tericos centrais neste estudo, porque eles
tentam compreender o processo de desenvolvimento de uma civilizao. Um processo
de longa durao e do qual fazemos parte, contribuindo para o entendimento de ns
mesmos e dos outros, no passado e no futuro e com os quais estamos intimamente
envolvidos.
A visita a um Arquivo Histrico para a pesquisa dos dados
acompanhada por algo mais do que a sensao desagradvel do cheiro de mofo e de
morte, traz tambm as lembranas da infncia percorrida pelas ruas da cidade, os
odores vindos do rio que no rio, a beleza da arquitetura e a memria de lamparinas
iluminando os rostos dos que j se foram. 1 BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Mdia e no Renascimento: o contexto de Franois Rabelais. So Paulo, Hucitec, 1987.
10
Um filme passa em minha mente enquanto leio aqueles papis velhos e
comidos pelas traas, imagens que, guardadas as devidas propores, no diferem
muito daquelas que vemos diariamente em nossas cidades. Isto porque, mais do
qualquer outra coisa, o processo de uma civilizao um longo e contnuo litgio que
muda os aspectos pblicos das relaes entre os homens. ao mesmo tempo um
longo e contnuo mtodo de permanncias dos aspectos privados dessas mesmas
relaes.
Para descobrir at que ponto a hiptese correta meu contraponto a
literatura e o jornal, registros fiis do cotidiano das gentes. O discurso oficial a letra
morta da lei que, no Brasil, foi feita para ser burlada ou, pelo menos, aplicada aos
menos favorecidos. Machado de Assis e as crnicas policiais da poca me dizem,
tambm, muito mais coisas sobre a vida mesmo e de uma forma muito mais graciosa e
gentil.
Embora nos queiramos o melhor dos povos, por nossas caractersticas
tropicais, como afirmam alguns tericos, ou o pior deles por nossa herana mestia e
espria, como querem outros, o processo de uma civilizao continua com e sem a
nossa presena.
Para discutir o processo civilizacional a partir do ocidente, no segundo
captulo, apresento a viso do socilogo alemo Norbert Elias sobre a cortesia como
forma de suavizao dos costumes que, partindo da Frana, leva consigo todos os
projetos de expanso europeus. Espalhando-se pelo mundo atravs de Portugal e de
Espanha, inicialmente, o processo carrega ideais de higienizao, polidez, vergonha e
urbanidade.
O projeto de modernidade nos alcana, quando ainda conservvamos
todas as caractersticas rsticas de uma tradio arcaica e, por que no dizer, oriental.
Um processo civilizacional movido por uma lgica diferente encontra-se presente no
11
Brasil, quando aqui chegaram os primeiros mensageiros europeus. A interpenetrao
de culturas se acresce com a escravido negra mesclando trs variveis importantes,
marcando nossa diferena na absoro do projeto maior de modernizao da vida no
Planeta. O terceiro captulo tratar do que chamei de uma civilizao barroco-tropical,
apoiada no que o socilogo Gilberto Freyre chamou de unidade de sentimento e
cultura.
Preliminarmente, entretanto, apresento uma ponderao terica com o
objetivo de demonstrar de onde estou falando, ou seja, a partir de que conceitos e com
que metodologia produzi este trabalho historiogrfico.
A temtica explorada nas fontes procura perceber de que maneira se
pensava e se pensa as relaes sociais no Brasil e que semelhanas e diferenas
podemos apontar entre o cotidiano do comeo do sculo XIX e o deste final do XX.
O que me interessa so as permanncias presentes na viso de mundo,
dos homens de ontem e de hoje, na forma como elas aparecem no que eles fazem e
escrevem, pensam e sentem. Para a histria que feita hoje muito mais pertinente e
eficaz, porque no restringe o que no pode ser mensurado e, ao mesmo tempo,
amplia o que antes era apenas determinado.
12
1- A HISTRIA E O OLHAR DAS MENTALIDADES
13
As questes que tem sido levantadas em torno da construo do
conhecimento histrico nos ltimos anos, resumem-se em torno de dois eixos
temticos: a teoria, como ponto de partida ou de chegada das pesquisas, e a
divulgao do saber histrico.
Presente em diversos textos, de autores de linhas tericas diversas, a
discusso terico-metodolgica parece estar mais presente no discurso - o que dito -
dos especialistas, embora possamos perceber, embutido nela, a insatisfao gerada
pela no apropriao pelos leigos da narrativa histrica, nos moldes em que ela vinha
sendo feita.
A busca pelo reconhecimento do ofcio do historiador esteve, durante
muito tempo, escondida no trabalho rduo e srio de contar a histria tal como ela
aconteceu. A Nova Histria surge, ento, para aflorar aquele sentimento, colocar para
fora a vontade, enrustida pelos mtodos ditos cientficos, de buscar uma forma de se
fazer histria que v ao encontro do que o pblico quer dela: que conte uma histria
factual numa narrativa pulsante, viva, acessvel.2
Est claro que esse tipo de colocao vai nos remeter questo do ofcio
e da definio de seus instrumentos e mtodos de trabalho; ou seja, para o lugar de
onde estamos falando.
Se aceito que partimos das indagaes do presente para visitarmos o
passado, no podemos fugir do que Nora chama de sistema formal e de significao
2 VIEIRA, Maria do Pilar de Arajo (et.alii). A pesquisa em Histria. 1991, So Paulo: tica, p. 50.
14
do acontecimento-informao, isto , precisamos compreender a natureza da estrutura
e o funcionamento do sistema.3 Ou seja, precisamos compreender no s o significado
e a informao presente nas estruturas ou conjunturas da Histria, mas muito do que
est contido no mundo dos historiadores.
nesse sentido que entendo, atravs de todas as discusses terico-
metodolgicas, um problema de comunicao: a produo e a recepo do
conhecimento.
3 NORA, Pierre. O retorno do fato. IN: LE GOFF, J. & NORA, P. Histria: novos problemas. 1976, Rio de Janeiro: Francisco Alves, p. 190-191.
15
1.1 UMA VISO PARA A HISTRIA
Carlos Fico o autor que de forma mais clara expe os dilemas
historiogrficos do momento, sintetizando todos os problemas enfrentados pelos
historiadores nos ltimos anos.4
O Autor reconhece que na produo historiogrfica recente existe duas
esferas: a produo estrita do conhecimento (pesquisa: teses, dissertaes, artigos) e
a repercusso do conhecimento produzido (mdia escrita e televisionada).5 Ou seja,
essas esferas dizem respeito questo da produo e recepo do conhecimento,
uma das claves principais quando se discute a produo cultural, que ele denomina
muito peculiarmente de incndio cenogrfico: enquanto os temas fascinantes da Nova
Histria chegam s pginas dos jornais,(...) enquanto o questionamento dos
paradigmas tericos clssicos,(...), sugerem a runa ou o desmoronamento de modelos
tradicionalmente usados, enquanto revisores de autores clssicos e autores clssicos
revisados se consomem numa fogueira de vaidades tericas nas pginas dos jornais -
enfim, enquanto assistimos a uma dinmica aparentemente intensssima que estaria
incendiando a histria e os historiadores, o que vemos, na produo cotidiana,
rotineira, dos cursos de ps-graduao, num bom nmero de pesquisas histricas
regional ou local, uma congelada persistncia da histria tradicional, empirista, com
metodologias no renovadas,(...).6
4 FICO, Carlos. Alguns impasses na produo historiogrfica recente no Brasil. ANOS 90. 1994, Porto Alegre: UFRGS, n.2, maio, pp. 111-126. 5 FICO. Alguns impasses na produo historiogrfica recente no Brasil. Op. cit., p. 112. 6 FICO. Alguns impasses na produo historiogrfica recente. Op. cit., p. 113.
16
Uma coisa o que se diz, outra o que se faz e outra, ainda, o que se
gostaria de fazer. Soltando farpas contra as editoras, a mdia, a academia e contra os
rgos financiadores de pesquisa (PBLICO), o autor considera que fica mais difcil o
refinamento terico, metodolgico e terico-conceitual que indispensvel ao
conhecimento cientfico, na medida em que o historiador j no pode prescindir do uso
de duas linguagens: a cientfica e a da divulgao cientfica ou cultural.7 Ou seja, uma
linguagem privada e outra pblica.
Surgem, ento, duas questes: j que a contemporaneidade atua de
forma irreversvel sobre a performance do historiador, inclusive sobre suas escolhas
temticas, no seria o caso de se produzir o conhecimento histrico numa linguagem
que atendesse, ao mesmo tempo, a recepo desse conhecimento? Qual a finalidade
da produo do conhecimento histrico? Para os grupos incrustados sob o poder do
jargo dito cientfico (PRIVADO)? Ou para o pblico que, em ltima anlise, paga
pelos trabalhos financiados pelos rgos federais (PBLICO)?
Essas questes voltam-se sempre para o mesmo tema, eternamente
recorrente nos trabalhos de vrios autores: o problema da narrativa e a crise dos
paradigmas cientficos. Como muitos, Fico no se deter na questo a no ser para
afirmar que h uma recusa reflexo terica ou epistemolgica e que as respostas
tem sido vagas. Consegue cometer a proeza de afirmar que as diversas opes de
entendimento sobre o que seja a objetividade, so problemas tericos complexos,
maiores do que as antigas discusses sobre a possibilidade de um conhecimento
cientfico8, problemas que esto, no meu entendimento, intimamente relacionados.
Para Fico, o abandono do estudo dos velhos movimentos sociais, como
o movimento operrio ou as rebelies populares em favor dos novos movimentos das
chamadas minorias (negros, mulheres, crianas, homossexuais, ecologistas,
pacifistas), no se deve aos impasses tericos do marxismo (queda do Muro e 7 FICO. Alguns impasses na produo historiogrfica recente. Op. cit., p. 115. 8 FICO. Alguns impasses na produo historiogrfica recente. Op. cit., p. 115.
17
fracasso do comunismo real), mas a dois fatores conjugados: a uma caracterstica
incontornvel do conhecimento histrico se alia a contemporaneidade (anteriormente
cotejada).9
A caracterstica do conhecimento histrico, a que o autor se refere, diz
respeito a um jogo de palavras tido, em princpio, como muito positivo: olhamos o
passado com os olhos do presente; ou a partir da suposio da histria como Mestra
da Vida, estudamos o passado para melhor compreender o presente e planejar o
futuro(...).10
Incontornavelmente essa caracterstica se alia a contemporaneidade das
megaestruturas com as quais convivemos. Ou seja, o poder das grandes corporaes
econmicas transnacionais, a capacidade decisiva dos conglomerados de
comunicao televisionada, as transformaes inditas suscitadas pela
informtica,(...).11
Onde o Autor v um problema pode estar a soluo: se a
contemporaneidade marca a produo e a recepo do conhecimento, se ela sinaliza
para a necessidade de compreenso do sujeito diante das grandes estruturas, ao
mesmo tempo, ela aponta uma busca, coerente com a contemporaneidade, pela
aceitao social e econmica do trabalho do historiador. Destri assim, junto com
outros mitos, com a perspectiva abnegada da histria como cincia em busca da
verdade absoluta, encerrada em seus movimentos de fria rotina.12
Os dois fatores conduzem para a reflexo, no s sobre o papel da
histria como cincia ou como arte, mas principalmente sobre a viabilidade da sua
produo (PRIVADA) e recepo (PBLICA). Como produto, deve ser tambm
9 FICO. Alguns impasses na produo historiogrfica recente. Op. cit., p. 118. 10 FICO. Alguns impasses na produo historiogrfica recente. Op. cit., p. 119. 11 FICO. Alguns impasses na produo historiogrfica recente. Op. cit., p. 119. 12 FICO. Alguns impasses na produo historiogrfica recente. Op. cit., pp. 120-125.
18
vendvel e, assim, ter um preo pela qualidade e pelo prazo de validade de sua
incendiria apario.13
Se para Fico, o impasse de uma tal histria (referindo-se histria do
cotidiano versus histria macro-estrutural) de natureza terica, para mim parece ser
mais de natureza retrica.
Com relao aos estudos sobre subjetividade humana (sexualidade e
magia), Fico volta questo da falta de humanidade presente nos estudos estruturais
(economia, classes), como incentivo histria do cotidiano prenhe de humanidade14.
interessante lembrar a crtica pertinente feita pelo autor, antes de avanarmos: (...)A
histria do cotidiano no quer recuperar aquilo que efetivamente ocorreu, mas parece
lembrar a todo o momento que aquilo ocorreu com efetividade, isto , no quer deixar
nenhuma dvida de que refere ao mundo das ocorrncias mais efetivas ou
concretas(...).15
A crtica de Fico aos estudos sobre a subjetividade humana centra-se no
fato de que seus assuntos guardam poucas relaes com os campos em que
possvel falar de algum tipo de racionalizao, ou seja, so fenmenos fortuitos,
fragmentrios, do imaginrio, no-racionais. Eles contem riscos precisamente por esta
opo de olhar, privilegiada do irracional e, portanto, capaz at, talvez, de contaminar
a prpria anlise ou, no mnimo, de iluminar demasiadamente estas regies da selva
escura(...).16
Afirma sua preocupao com o significado social destas questes, na
repercusso dos temas e, afinal, com a legitimidade da histria: (...)Ela deve responder
s demandas do pblico leitor ou a escolha de temas de pesquisas deve nortear-se
13 FICO. Alguns impasses na produo historiogrfica recente. Op. cit., p. 125. 14 FICO. Alguns impasses na produo historiogrfica recente. Op. cit., p. 121. 15 FICO. Alguns impasses na produo historiogrfica recente. Op. cit., p. 121. 16 FICO. Alguns impasses na produo historiogrfica recente. Op. cit., p. 122.
19
por critrios estritamente cientficos (preenchimento de lacunas do conhecimento,
correlao de aparentes erros historiogrficos, etc)?(...).17
O Autor fala como se essa escolha por critrios estritamente cientficos
fosse algo independente do mundo em que vivemos, como se no fosse uma escolha
comprometida. a mesma questo retrica de que falava anteriormente. Se a histria
tem uma finalidade social (PBLICO), como Fico parece perceber, por que ver sempre
essa finalidade como respondida pelas lutas sociais ou de classes? Por que no ver
como um fim social tambm o interesse do pblico por temas que o autor considera
exticos, irracionais, fragmentrios?
Parece que os historiadores continuam vendo-se como possuidores de
um poder revelador e mgico, tanto sobre o passado como sobre o presente,
arvorando-se o direito de escolher, tambm, o que os leitores devem ler. um poder
que decididamente eles no tem mais desde o sculo XIX e que este sculo deixou
definitivamente claro.
Os debates sobre o assunto tornam-se uma fuga para aqueles que,
enrustidos pelo jargo terico-metodolgico-conceitual, desaprenderam uma das
primeiras lies da Histria: a arte de narrar. Este o ponto essencial para a recepo:
no s a temtica que fascina, mas a arte de narr-la tambm.
Mais do que preocupado com a questo epistemolgica os historiadores,
como Fico, esto impressionados com a no publicao de seus trabalhos: (...)Temas
da histria demogrfica e da histria econmica, por outro lado, continuaram tendo
pesquisas produzidas sistematicamente, apesar de no despertarem qualquer
interesse social mais amplo e mal conseguirem ser publicadas - que dir de vendas de
livros (...).18
17 FICO. Alguns impasses na produo historiogrfica recente. Op. cit., p. 122. 18 FICO. Alguns impasses na produo historiogrfica recente. Op. cit., p. 123.
20
Como em qualquer rea do conhecimento, nem tudo o que se produz
de qualidade; se o historiador pensa que produz para publicar deve se adequar ao
mercado e, portanto, ao gosto do pblico, do contrrio deve contentar-se com o
convvio de seus pares.
Com relao aos jornais como fonte primria, considerados como
coqueluche nos estudos histricos notadamente para a produo de dissertaes e
teses, Fico apresenta o problema da parcialidade do uso de jornais oriundos de
apenas um determinado segmento social e quanto aos desvios, falsas nfases e
omisses que so comuns na imprensa.19 H uma certa ingenuidade nesta afirmao,
pois parece no haver notcia de algum operrio dono de jornal e mesmo os
documentos oficiais podem conter o mesmo problema.
Finalmente, outra crtica pertinente quando enfatiza a importncia da
teoria da histria e da historiografia: temos a necessidade de repensar o estatuto da
prpria histria,(...), h quem julgue resolver estes problemas afastando o
questionamento terico atravs da adoo de uma postura crtica superficial ao
discurso cientificista(...).20H outros, posso acrescentar, que procuram afastar-se da
contemporaneidade buscando a volta ao tempo mtico, onde a luta de classes resolvia
todos os problemas tericos.
Assim como Fico parece sintetizar o pensamento de historiadores que se
sentem deslocados dentro do presente historiogrfico, Peter Burke parece sinalizar as
contradies deste momento e apontar caminhos que podero ser seguidos ou no.
As contradies presentes situam-se, como j vinha descrevendo, entre a
teoria e a narrativa; entre historiadores estruturais e historiadores narrativos. De um
lado, aqueles que como Braudel acham que os historiadores deveriam considerar as
19 FICO. Alguns impasses na produo historiogrfica recente. Op. cir., p. 124. 20 FICO. Alguns impasses na produo historiogrfica recente. Op. cit., p. 124.
21
estruturas mais seriamente que os acontecimentos, e, de outro, aqueles que
consideram ser funo do historiador contar uma histria.21
Para Burke, o preo desse conflito a perda do entendimento histrico
potencial que ele envolve e o melhor seria poder integrar a narrativa e a anlise e
relacionar mais intimamente os acontecimentos locais s mudanas estruturais da
sociedade.22
No entanto, o Autor aponta para uma reao nesse sentido: a oposio
tradicional entre os acontecimentos e as estruturas est sendo substituda por um
interesse por seu inter-relacionamento, e alguns historiadores esto experimentando
formas narrativas de anlise ou formas analticas de narrativa(...).23
Para Burke, o historiador norte-americano Michael Kammem pode bem
estar certo em sua sugesto de que o conceito de cultura, em seu sentido amplo,
antropolgico, pode servir como uma base possvel para a reintegrao de diferentes
abordagens histria.24 Ou seja, o Autor aponta para uma unificao em torno da
Histria da Cultura ou Antropologia Histrica, como forma de darmos conta da
heterogeneidade de eventos que a histria nos prope.
Este foi o tom de sua conferncia em Porto Alegre25: o modelo clssico
de histria cultural no pode mais ser seguido, porque mudou a idia de cultura que
temos hoje. uma ultraconcepo mais antropolgica, envolvendo mentalidades,
valores, expresses desses valores na sociedade, prticas sociais, representaes do
imaginrio social. No algo que est suspenso no ar, mas associado sociedade,
economia e poltica.
21 BURKE, Peter. A escrita na Histria. 1992, So Paulo: UNESP, pp. 327-348. 22 BURKE. A escrita na Histria. Op. cit., p. 333. 23 BURKE. A escrita na Histria. Op. cit., p. 36-37. 24 BURKE. A escrita na Histria. Op. cit., p. 37. 25 BURKE, Peter. A escrita na Histria. Conferncia. Porto Alegre, 29.11.94.
22
Como o passado no muda e a tarefa reescrever a histria do passado
para faz-la inteligvel contemporaneidade26, a narrativa tradicional difcil de
aceitar. preciso achar o modo de escrever a histria de outras classes e de outras
culturas para outras classes e para outras culturas, integrando-as numa viso mais
geral. Portanto, o historiador um tradutor da cultura.
A fragmentao da histria pode ser uma opo, mas Burke acha que
uma forma de fugir a um grande problema: buscar, ver, fazer ligaes que o objetivo
do historiador cultural. A sada, apontada por ele, tentar reconstruir pontos de vista
mltiplos: a viso dos vencidos com a viso dos vencedores. Ou seja, perceber o
processo de interao cultural, o sincretismo, a mestiagem.
Para Burke, Gilberto Freyre fez nos anos 30 o que os franceses s fariam
nos anos 50 e 60: A histria cultural pode ser escrita como uma srie de encontros
entre culturas ou subculturas, atravs da interao, da invaso, do conflito, da
destruio cultural, da estimulao, de emprstimos, da criao de novas formas
hbridas.27
Para concluir, o que se pode entender de toda essa discusso que a
fragmentao da histria no uma coisa nova. Pode-se considerar o problema como
crise da modernidade, na qual somente os paradigmas racionais no servem para a
multiplicidade de perguntas que nos fazemos hoje sobre o presente e sobre o
passado.
A Nova Histria parece ser o ltimo estertor de uma tradio explicativa
frente velocidade virtual do fragmento como possibilidade de totalizao; parece
apontar, tambm, para a derrocada da histria como centro explicativo do mundo.
26 BURKE, Peter. A escrita na Histria. Conferncia. Porto Alegre, 29.11.94. 27 BURKE, Peter. A escrita na Histria. Conferncia. Porto Alegre, 29.11.94.
23
Pretender unificar as diversas abordagens histricas, esfaceladas em
novos objetos, novas fontes e novos problemas, o mesmo que pretender unificar as
naes, as diversidades raciais e culturais.
A multiplicidade de abordagens e de narrativas parece ser hoje uma
retomada da histria como a arte de contar, nada alm de fico, representao
parcial de uma realidade, como nica forma possvel de ver o mundo atravs de
pequenos fragmentos de memria.
1.2 UMA NARRATIVA DRAMTICA
E olhando assim, sentada sob um sol que se extingue, meu pequeno
mundo de fundo de quintal: um osis cercado de prdios, uma escola, poucas rvores;
um horizonte de nuvens ligeiras, poucos pssaros, muitos insetos midos; uma rede,
bugigangas infantis, vasos com folhagens, samambaias e musgo brotando do cho.
Momento mgico? Saudades de um mundo ainda moderno e que vislumbro num
passado mtico?
Num futuro ps-moderno, onde o presente j est inscrito, esse mesmo
fundo de quintal me acorda para um outro lugar: de onde o som do bater de janelas e
de gatos no cio da vida interrompe a privacidade, instvel nos blocos de apartamentos,
na cidade que monitora, via cmaras de TV, os indivduos nos passeios pblicos.
Todo esse discurso para discutir a histria a partir do lugar de onde estou
falando: a luz que agora acaba, interrompe a privacidade e seu fornecimento parte de
uma instituio pblica; estudamos em instituies privadas financiadas por rgos
pblicos.
Por que discutir o PBLICO e o PRIVADO? Porque passa pela
sensibilidade (mentalidade, cotidiano) de, ao estar no meu pedacinho de cu, ter a
24
sensao (percepo, imagem) de poder estar num terrao (cobertura, ideologia) em
Nova York. Porque passa, tambm, pela razo (paradigma, cincia) que nos faz
pensar o estar junto, no mnimo, uma realidade original mesclada com a diferena
(virtual, fragmentria).
O que sempre nos faltou foi humor, a alegria de perceber e sentir ao
mesmo tempo. Sei que vo me acusar de buscar a totalidade, mas esta no existe em
si mesma e, sim, nos mltiplos todos, conjugados ou no.
A cincia tambm uma profisso de f - como a arte - uma atitude
mental frente a uma viso de mundo. Ela s precisa abandonar o messianismo de se
considerar a nica tica verdadeira para um mundo que, ainda, queremos quando
olhamos as estrelas ou quando ouvimos o choro de uma criana. Precisa abandonar,
ainda, o pedantismo de ser indecifrvel e de pssima digesto.
Se j to difcil compreender o que nossos pares dizem, que mgica
far percebermos como foi a histria passada, de que maneira cont-la, que aspectos
privilegiar, o que pensamos dela hoje e o que pensaro dela amanh? O
distanciamento?
Segundo o dicionrio Aurlio, que fala uma lngua de gente,
distanciamento : Ato ou efeito de distanciar-se; efeito que os dramaturgos e diretores
da escola moderna de teatro pico visam a obter e que tem como objetivo afastar o
envolvimento emocional do espectador (ope-se catarse aristotlica).
Catarse, por outro lado, : Efeito moral e purificador da tragdia clssica,
conceituado por Aristteles, cujas situaes dramticas, de extrema violncia, trazem
tona os sentimentos de terror e piedade dos espectadores, proporcionando-lhes o
alvio, ou purgao, desses sentimentos.
25
H, no entanto, em Hamlet de Shakespeare uma tragdia sem catarse:
que ao lento cair do pano, s nos deixa como objeto de meditao e fruto amargo,
uma interminvel fila de interrogaes... Que sentido h num destino?(...).28
Ora, muito do interesse histrico renovado em nossos dias volta-se para
essa dimenso da catarse. Tenfelde procura ver, nesse chamado boom editorial, algo
que vai alm de uma tendncia do mercado livreiro: reflete reorientao nos valores
juntamente com as necessidades de sua legitimao. (...)escavar literalmente na
misria e no esforo dos ancestrais, desvendar os locais de seu agir, bem como
descobrir as razes de seus sentimentos e dos sentimentos em geral, um contramundo
do qual se espera ajuda - estas so expresses simblicas de uma sensao de vida
na qual convergem a impotncia de ontem com as dvidas de hoje (...).29
Podemos perceber, ento, um sincretismo entre as teorias e as vises do
passado e do presente: se no houver a modernidade dessa luz que me alumia, no
haver letras no papel, nem bits no computador, para esse trabalho coletivo das redes
de comunicao do conhecimento; no mais a privacidade do gabinete repleto de
percepes cunhadas apenas no objeto-livro e, sim, a globalidade multimdia da
memria eletrnica, fragmentria, pblica e deletvel.
O que distingue a nova histria da velha a negao da separao entre
matria (real) e esprito (irreal). A nova histria pretende uma nova viso sobre o
moderno, uma viso aos pedaos, privada e pessoal, sobre uma totalidade, pblica e
coletiva. Nesse sentido, ela uma arte, ensaio ou literatura. Ao mesmo tempo, no
pode negar a viso moderna de uma cincia histrica, sob pena de tornar-se um
apangio de destruio, de fim de sculo, de fim de mundo.
Veja-se essa questo envolvendo, de um lado, a histria das
mentalidades e, de outro, a histria das idias: uma discusso metafsica. Se quer
28 MAYER, Augusto. A chave e a mscara. 1964, Rio de Janeiro: Edies O Cruzeiro, p. 11. 29TENFELDE, Klaus. Dificuldades com o cotidiano. GESCHICHTE UND GESELLSCHAFT, v.10, n.3, 1984, pp.376-394 (Trad.mmeo. Ren Gertz, pp.1-5).
26
negar a causalidade, como no perceber essa permanncia na discusso dos
conceitos? Troca-se uns pelos outros como se troca de roupas, cada corrente histrica
se batendo pela procura da mesma verdade que nega outra.
Perdeu-se o homem e continua-se a perd-lo propondo negar-lhe sua
mais sincera sensibilidade. Uma criana comea a perguntar seus interminveis por
qus aos trs anos; continuamos a pergunt-los pela vida a fora. Nossas respostas
continuam a ter um comeo, um meio e um fim; marcamos nosso cotidiano dessa
forma; por mais rpido que seja o raio laser nossa histria tem um nascimento, um
crescimento e uma morte.
Ao predizer o futuro no presente, a nova histria apressa seu prprio fim
(o discurso histrico), apontando tambm para uma finalidade, essencialmente
moderna. Por outro lado, sendo esse fim inevitvel - seja ele qual for - cabe ao
historiador trabalhar com estas duas tendncias dentro dele (modernidade e ps-
modernidade), como nica maneira de estar em seu tempo. E estar em seu tempo
significa estar com sua gente, no s entre seus pares, estar com o mundo.
Faz parte da transitoriedade da existncia, que hoje no se pergunta
mais se deve ser ou no, mas que coloca a dvida de que talvez seja melhor no optar
to drasticamente por um ou por outro caminho. A grande vantagem dessa discusso
a de podermos hoje conciliar todos os pares de opostos numa relao extremamente
subjetiva de ser com o mundo. Os historiadores, como os romancistas e os poetas,
descrevem personagens compondo um enredo (ou uma trama, como prefere Paul
Veyne30) sobre a histria.
Mesmo partindo de um distanciamento, a produo e a recepo da
histria percebida como uma catarse: uma catarse, individual e privada, do
historiador e uma catarse, coletiva e pblica, do leitor.
30 VEYNE, Paul. Como se escreve a histria: Foucault revoluciona o mundo. 1982, Braslia: Ed. Universidade de Braslia.
27
1.3 AS CILADAS DO ESPRITO DOS TEMPOS
Uma das crticas feitas por Franois Doss histria das mentalidades,
objeto privilegiado da chamada Nova Histria, a de que se em certos trabalhos,
procura-se fazer a partilha entre as determinaes do real e as vises de mundo,
preciso reconhecer que, muitas vezes, as mentalidades atravessam a histria,
pairando como entidades independentes de toda contingncia.(...)31. No se
estabelece qualquer relao entre as representaes e aquilo que as trouxe tona, ou
seja: no se pe em relao o movimento entre o mental e o social.
Alguns autores so poupados dessa crtica, dentre eles Jacques Le Goff
e Georges Duby. Le Goff32 faz uma anlise da gnese e da prtica da histria das
mentalidades, apontando a questo dos mtodos e das fontes, bem como para suas
ciladas; Duby33, aborda a questo das mentalidades atravs do estudo das ideologias.
1.3.1 Gnese: a viso de J. Le Goff
Qual a origem da palavra mentalidade? Vem de mental, adjetivo do latim
mens (esprito), de meados do sculo XIV, e do epteto latino memtalis, sem
correspondncia no latim clssico, mas que fazia parte do vocabulrio da escolstica
medieval.
31 DOSS, Franoise. A Histria em Migalhas. 1992, So Paulo: Ed. Ensaio, p. 201. 32 LE GOFF, Jacques. As mentalidades: uma histria ambgua. IN: LE GOFF, J. & NORA, P. Histria: novos objetos. 1976, Rio de Janeiro: Francisco Alves, pp. 68-83. 33 DUBY, George. Histria Social e ideologias da sociedade. IN: Jacques Le Goff & Pierre Nora (Org). Histria: novos problemas. 1976, Rio de Janeiro: Francisco Alves, pp. 130-145.
28
O francs no deriva mentalit de mental e sim do ingls mentality,
conceito que se refere a qualidades cognitivas e intelectuais mas que o francs aplica
uma conotao mais afetiva. Segundo o dicionrio Aurlio, mentalidade a qualidade
de mental (mente, intelectual, espiritual), a mente, o pensamento; representa tambm
um conjunto de hbitos intelectuais e psquicos de um indivduo ou de um grupo, tendo
o mesmo sentido do conceito francs.
Le Goff explica: a mentalidade filha da filosofia inglesa do sculo XVII.
Designa a colorao coletiva do psiquismo, a maneira particular de pensar e sentir(...).
A noo que levar ao conceito e a palavra mentalidade parece ter surgido no sculo
XVIII(...) no campo de uma nova concepo de histria.(...) [Em 1900] a palavra tem
seu sentido corrente. o sucedneo popular da Weltanschauung alem, a viso de
mundo, de um tudo um pouco, um universo mental ao mesmo tempo estereotipado e
catico.34
Nesse sentido, na poca das cruzadas havia uma mentalidade religiosa,
no feudalismo uma mentalidade medieval e no capitalismo uma tica protestante:
mentalidade abrange, pois, alm da histria, visando a satisfazer as curiosidades dos
historiadores decididos a ir mais longe. E, inicialmente, ao encontro de outras
cincias.35
Esse encontro vai se dar entre a histria, a antropologia, a sociologia, a
psicologia social, atravs da procura de mtodos de anlise e de novas fontes. O
encontro com a antropologia vai aproximar o historiador das mentalidades do etnlogo,
visando alcanar como ele, o nvel mais estvel, mais imvel das sociedades.36, pois
como disse Ernest Labrousse, o social mais lento que o econmico e o mental mais
ainda do que o social.37
34 LE GOFF. As mentalidades: uma histria ambgua. Op. cit., p. 73. 35 LE GOFF. As mentalidades: uma histria ambgua. Op. cit., p. 69. 36 LE GOFF. As mentalidades: uma histria ambgua. Op. cit., p. 69. 37 LE GOFF. As mentalidades: uma histria ambgua. Op. cit., p. 69.
29
Assim, vai se estudar os ritos, as prticas cerimoniais que remontam para
as crenas, enfim os sistemas de valores. O mtodo estruturalista, apropriado da
antropologia, vai tratar a mentalidade como uma estrutura. E com isso, devemos
acrescentar, pe em discusso a histria poltica tradicional, j que no possvel
somente atravs de fatos polticos remontar uma histria, mas tambm com o esprito,
com a psicologia, ou seja, com a mentalidade de uma poca.
Com a sociologia, o objeto de estudo agora o coletivo: A mentalidade
de um indivduo histrico, sendo esse um grande homem, justamente o que ele tem
em comum com outros homens de seu tempo(...).38
Da psicologia social, alm de categorias como "comportamento",
"atitude", "controle cultural", a histria das mentalidades vai se utilizar dos mtodos
das escalas de atitudes, que partindo de uma massa de fatos, de opinies onde
expresses verbais, totalmente incoerentes de sada39, descobre uma medida de uma
grandeza pertinente ao conjunto dos fatos tratados e uma definio destes: so os
mtodos quantitativos.
Todas essas buscas de novos objetos e novos mtodos tentam suprir
lacunas deixadas pela histria tradicional e buscam uma histria que leve em
considerao a juno do individual e do coletivo, do longo tempo e do quotidiano, do
inconsciente e do intencional, do estrutural e do conjuntural, do marginal e do geral.40
Arrancada aos dei ex machina da velha histria - providncia ou grandes homens -,
aos conceitos pobres da histria positivista - acontecimento ou acaso -, a histria
econmica e social, inspirada ou no pelo marxismo, deu histria bases slidas
(...).41
38 LE GOFF. As mentalidades: uma histria ambgua. Op. cit., p. 69. 39 LE GOFF. As mentalidades: uma histria ambgua. Op. cit., p. 70. 40 LE GOFF. As mentalidades: uma histria ambgua. Op. cit., p. 71. 41 LE GOFF. As mentalidades: uma histria ambgua. Op. cit., pp. 70-71.
30
Para Le Goff, entretanto, esta histria se revelava impotente para tratar
de idias e costumes. Ele critica os marxistas por no conseguirem passar, de maneira
convincente, da infra para a superestrutura. Mas se mesmo os no-marxistas fizeram
isso, por que a crtica?
A histria das mentalidades trata do nvel do cotidiano e do automtico,
do que escapa aos sujeitos particulares da histria, porque revelador do contedo
impessoal de seu pensamento, o que Csar e o ltimo soldado de suas legies, So
Lus e o campons de seus domnios, Cristvo Colombo e o marinheiro de suas
caravelas tem em comum(...).42
Ser possvel chegar-se a esse o que tem em comum? Por exemplo:
entre um presidente e um soldado brasileiro, entre uma dama da alta sociedade e uma
prostituta da Boca do Lixo, entre Almir Klink e um marujo, ou entre D. Evaristo Arns e
um "sem-terra"? Ou ser que a histria s possvel, tal como a arqueologia, tratando
de fsseis, seja do mental ou do material? Ser possvel fugir ao paradigma racional
de que a histria como cincia s possvel na tradio do estudo dos fatos
passados?
Essa , alis, a crtica mais pertinente de Georges Duby histria das
mentalidades. Ou seja, se trata de conhecer a viso de mundo de uma poca, em
busca de uma totalidade, e se as fontes documentais sobre o "povo" so quase
inexistentes, como pretender entender as mentalidades a partir do que realmente se
tem? Parece-me que continua a ser uma histria fragmentria, parcial, tal qual a
velha histria que Le Goff critica.
O autor enfatiza essa ambigidade j que as mentalidades so um
campo de anlise privilegiado para a crtica das concepes lineares a servio
histrico(...). A inrcia,(...)referente ao esprito(...), pois os homens servem-se das
mquinas que inventam conservando as mentalidades anteriores a elas. A
42 LE GOFF. As mentalidades: uma histria ambgua. Op. cit., p. 71.
31
mentalidade aquilo que muda mais lentamente e a histria das mentalidades a
histria da lentido na histria.43
Nesse sentido, como apreender uma escala ou estrutura de mentalidade,
comparando a mentalidade de um homem que inventa uma mquina com a daqueles
que a usam ou que ainda no a usam? Ser possvel seguir esse pensamento, j
expresso anteriormente, de que a partir da mentalidade de um indivduo se chega
mentalidade do coletivo? Ou isso s possvel se a observarmos do futuro e olhando
em direo ao passado essa mentalidade parecer coletiva? Sendo assim, volta-se a
questo de que a histria a arte/cincia de se olhar o passado e o que se discute,
realmente, a forma como se faz isso, ou seja, o mtodo.
Para Le Goff, o mtodo inicialmente uma pesquisa arqueolgica dos
estratos e pores de arqueopsicologia (arqueocivilizao) reunidos por coerncias
mentais, seguindo-se o deciframento de sistemas psquicos prximos do bricolage
intelectual de Lvy-Strauss: Assim o que parece desprovido de razes, nascido da
improvisao e do reflexo, gestos maquinais, palavras irrefletidas, vem de longe e
testemunha em favor da extensa repercusso dos sistemas de pensamento.44
Por isto, os fenmenos essenciais do domnio das mentalidades so: as
heranas (continuidade), as perdas e rupturas (de onde? de quem? de quando? vem o
hbito, a expresso, o gesto?), a tradio (maneiras como se reproduzem
mentalmente) e as defasagens (retardamento dos espritos em se adaptarem s
mudanas).45
Assim, fazer histria das mentalidades inicialmente realizar alguma
leitura de no importa qual documento. Tudo fonte.46, mas a leitura dos documentos
se fixar sobretudo nas partes tradicionais, quase automticas dos textos e dos
43 LE GOFF. As mentalidades: uma histria ambgua. Op. cit., p. 72. 44 LE GOFF. As mentalidades: uma histria ambgua. Op. cit., p. 72. 45 LE GOFF. As mentalidades: uma histria ambgua. Op. cit., p. 72. 46 LE GOFF. As mentalidades: uma histria ambgua. Op. cit., p. 75.
32
documentos: frmulas e prembulos de alvars que dizem os motivos - verdadeiros ou
aparentes - topoi que so a estrutura das mentalidades(...).47
O alvo do cotidiano cultural definido pelo autor como: Esse discurso
forado e maquinal, em que se parece falar sem nada dizer, em que se invoca a torto
e a direito, em certas pocas, Deus e o Diabo, em outras a chuva e o bom tempo, o
canto profundo das mentalidades, o tecido conjuntivo do esprito das sociedades, o
alimento mais precioso da histria que se interessa mais pelo baixo contnuo do que
pelo motivo oculto da msica do passado.48
As fontes privilegiadas so os sentimentos, os comportamentos de maior
intensidade ou os comportamentos marginais, isto , aquelas que conduzem
psicologia coletiva das sociedades.
A hagiografia fornece estruturas mentais de base: a permeabilidade entre
o mundo sensvel e o mundo sobrenatural, a identidade da natureza entre o corporal e
o psquico. Por outro lado, a marginalidade do santo tem por corolrio a marginalidade
do diablico: possudos, herticos, criminosos. Os documentos privilegiados so as
confisses dos herticos, os processos de inquisio, documentos judicirios,
monumentos de represso.
Os documentos literrios e artsticos tambm so fontes privilegiadas,
mas como representao dos fenmenos objetivos j que veiculam forma e tema
vindos de um passado que no forosamente aquele da conscincia coletiva(...).49
Por isso, necessrio no separar a anlise das mentalidades do estudo
de seus locais e meios de produo, ou seja: o contexto no-literrio ou no-artstico.50
47 LE GOFF. As mentalidades: uma histria ambgua. Op. cit., p. 75. 48 LE GOFF. As mentalidades: uma histria ambgua. Op. cit., pp. 75-76. 49 LE GOFF. As mentalidades: uma histria ambgua. Op. cit., p. 76. 50 LE GOFF. As mentalidades: uma histria ambgua. Op. cit., p. 76.
33
Por exemplo: Nas mentalidades certos sistemas parciais desempenham
um papel particularmente importante. Esses "modelos" impem-se desde h muito
tempo como plos de atrao das mentalidades: um modelo monstico cria-se na alta
Idade Mdia e ordena-se em torno de noes de solido e de ascetismo; modelos
aristocrticos aparecem em seguida centralizados em torno de conceitos de largueza,
aventura, beleza, fidelidade. Um deles atravessar os sculos at a atualidade: a
cortesia.51
Assim, preciso estar atento aos meios criadores dessas mentalidades:
o palcio, o mosteiro, o castelo, as escolas, os ptios e, do mesmo modo, o moinho, a
forja, a taverna. Do mesmo modo, segue as pistas dos seus centros vulgarizadores: o
sermo, a imagem pintada e esculpida so,(...) nebulosas onde se cristalizam as
mentalidades. 52
Nesse sentido preciso considerar a coexistncia de vrias mentalidades
em uma mesma poca e num mesmo esprito, como tambm as suas transformaes:
(...)A renovao nesse domnio das permanncias e das resistncias no fcil de
apreender. (...)Quando um lugar comum apareceu ou desapareceu? E, mais difcil de
determinar, porm no menos importante, quando ele apenas uma sobrevivncia,
um morto-vivo? Esse psitacismo das mentalidades deve ser escrutado de perto para
que o historiador possa assinalar quando o lugar-comum destaca-se do real, quando
se torna inoperante (...).53
Le Goff volta a bater no que ele chama de marxismo vulgar que
procurava nas mentalidades a definio de superestruturas nascidas mecanicamente
51 LE GOFF As mentalidades: uma histria ambgua. Op. cit., p. 77. A cortesia o tema tratado por Norber Elias em La Civilisation des Moeurs. Para Le Goff, o trabalho de Elias uma correta insero do cotidiano numa obra de carter histrico, devidamente situada nos sistemas sociais que foram sucedendo desde o sistema corts ao sistema das luzes ("A histria do cotidiano. IN: DUBY, G. (et.al.).Histria e Nova Histria. 1986, Lisboa: Teorema, p. 79). Na realidade, Elias faz uma anlise do processo de civilizao via controle do comportamento, no seu movimento lento que comea na sociedade de corte francesa e se espraia pelo mundo como um projeto da modernidade. 52 LE GOFF. As mentalidades: uma histria ambgua. Op. cit., p. 77. 53 LE GOFF. As mentalidades: uma histria ambgua. Op. cit., p. 77.
34
das infra-estruturas scio-econmicas. A mentalidade no reflexo54, de resto ele
reflete, causa o resto.55
Seguindo esta mesma linha de raciocnio, Le Goff distingue a histria das
mentalidades da histria das idias. Parece-me uma distino incompreensvel a no
ser para fundamentar a contraposio de uma em relao a outra, talvez para fugir do
marxismo vulgar das ideologias, j que as idias fazem parte da cultura, de uma viso
de mundo: (...) No foram as idias de So Toms de Aquino (...) que conduziram os
espritos, a partir do sculo XVIII, mas nebulosas mentais, das quais ecos
deformadores de suas doutrinas, trechos empobrecidos, palavras malogradas sem
contexto tiveram importncia (...) idias depreciadas no seio das mentalidades. A
histria das mentalidades no pode ser feita sem estar estreitamente ligada histria
dos sistemas culturais, sistemas de crenas, de valores, de equipamento intelectual no
seio dos quais as mentalidades so elaboradas, viveram e evoluram.56
Vinculando as mentalidades histria da cultura, como forma de evitar
ciladas epistemolgicas, e desvinculando dela, ao mesmo tempo, a histria das idias,
Le Goff cai ele prprio em uma cilada. A histria da cultura no englobaria todas as
demais e, inclusive, a das idias?
Peter Burke refere-se ao tema, vendo na cultura uma base possvel para
a reintegrao das diferentes abordagens histricas.57
Pretender unificar as diferentes abordagens histricas, esfaceladas em
novos objetos, novas fontes e novos problemas, o mesmo que pretender unificar
naes e as diversidades raciais e culturais. A multiplicidade de abordagens e
narrativas parece ser uma retomada da arte de contar uma "boa" histria, nada alm
de fico, representao parcial da realidade como nica forma possvel de ver o
mundo, atravs de pequenos fragmentos de memria.
54 LE GOFF. As mentalidades: uma histria ambgua. Op. cit., p. 78. 55 BAKHTIN. Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem. 1986, So Paulo: HUCITEC, p. 31. Para Bakhtin, como produto ideolgico ela, alm de refletir, refrata uma outra realidade. 56 LE GOFF. As mentalidades: uma histria ambgua. Op. cit., p. 78. 57 BURKE, Peter. A Escrita na Histria. 1992, So Paulo: UNESP, p. 37.
35
Arriscar-se do outro lado do espelho? Sob a tica de Le Goff, a histria
das mentalidades procura o lugar comum (estruturas "verdadeiras" e "aparentes",
"permanncias e "resistncias") nos gestos, nas atitudes. a juno dos opostos: do
individual e do coletivo, do longo tempo e do cotidiano, do estrutural e do conjuntural,
do marginal e do geral. uma procura da histria "total" e, segundo Rivair de Macedo,
uma outra cilada.58
1.3.2 Mentalidades: a ideologia de G. Duby
O autor, recentemente falecido, tem interesse pelo tema, mas abandona
a palavra "mentalidades" nos seus estudos sobre a representao social. Partindo de
uma definio de Gaston Bauthoul (1952) segundo a qual mentalidade constitui-se em
uma espcie de resduo psicolgico estvel, Duby vai contrapor-se a ela. Para ele no
existe apenas um resduo no interior de uma mesma sociedade: no apresenta a
mesma consistncia nos diversos meios ou estratos de que se compem a formao
social.(...). Estes se modificam ao longo das eras, e nos propnhamos a acompanhar
atentamente tais modificaes. 59
Assim, Duby procura no o que permanece, mas o que se modifica. Ao
mesmo tempo, no fala de mentalidades no sentido global de imaginrio social, mas
no sentido de ideologia. Por isso, abandona a noo de mentalidades, considerada
no satisfatria a seus propsitos de: ir mais alm [das foras materiais, produes,
tcnicas, populaes, trocas], para junto das foras que no se situam nas coisas, mas
na idia que delas se tem, e que comanda na realidade de forma imperativa a
organizao e o destino dos grupos humanos (...).60
O autor coloca, assim, na superestrutura a determinao histrica sob
dois princpios bsicos. O primeiro diz que o estudo de longo prazo do sistema de
58 MACEDO, Jos Rivair de. Anotaes de aula, disciplina Teorias da Histria. Porto Alegre, PUCRS, 1994. 59 DUBY, Georges. A histria continua. 1993, Rio de Janeiro, Zahar, p. 88. 60 DUBY A histria continua. Op. cit., p. 89.
36
representaes mentais no deve ser isolado do estudo da materialidade, pois se
passa nas cabeas que no podem ser separadas de um corpo. Ou seja, para ele as
mentalidades s tem interesse se encarnadas, no sentido primeiro e mais forte da
palavra.61
Em segundo lugar, o estudo deve prever a coletividade e no o indivduo,
designando um fundo comum e, nesse sentido, Duby contra a noo de
inconsciente coletivo, porque s existe inconsciente em relao a uma conscincia, ou
seja, a uma pessoa. Ele quer reconhecer no o que cada pessoa mantm
acidentalmente recalcado fora de sua conscincia, mas este magma confuso de
presunes herdadas ao qual se refere a cada momento, sem prestar ateno nele
mas sem tampouco expuls-lo de seu esprito.62
Com esses dois princpios, Duby faz uma crtica aos partidrios de uma
histria autnoma do pensamento ou da vida espiritual63, percebida atravs do estudo
de caso de personalidades cujos pensamentos individuais poderiam dar a viso do
pensamento de uma poca, como parece dar a entender Le Goff.
Para Duby, em funo da imagem que os homens constroem e que
nunca o reflexo fiel da sua condio verdadeira, que eles pautam a sua conduta. Ou
seja: (...)Eles se esforam para concili-la com modelos de comportamento que so o
produto de uma cultura e que mais ou menos se ajustam, no decorrer da histria, s
realidades materiais.64
Refora, assim, seu primeiro princpio de que a base de qualquer anlise
social o estudo das estruturas materiais partindo da condio verdadeira que a
realidade material para explicar o mental. Assim, o mental uma reao valorativa e,
portanto, ideolgica, constituindo um sistema de valores (conscincia, ao, sonhos e
61 DUBY. A histria continua. Op. cit., p .90. 62 DUBY. A histria continua. Op. cit., p .91. 63 DUBY. A histria continua. Op. cit., p. 90. 64 DUBY, Georges. Histria Social e ideologias da sociedade. IN: Jacques Le Goff & Pierre Nora (Org). Histria: novos problemas. 1976, Rio de Janeiro: Francisco Alves, p. 131.
37
utopias), de uma classe frente a outra, na articulao do movimento das relaes
sociais.
O conjunto de concordncias e de preceitos morais ou sistema de
valores, tem sua prpria histria cujas maneiras e fases no coincidem com as da
histria do povoamento e dos modos de produo. Ora , precisamente atravs de tais
discordncias que as correlaes entre as estruturas materiais e as mentais poder ser
mais claramente discernidas. 65
Como buscar essas estruturas mentais? Atravs do estudo das atitudes
mentais, no qual est inscrito o estudo das ideologias. Duby aplica, ento, uma
categoria, retirada da psicologia para o estudo das mentalidades, a fim de embutir o
estudo das ideologias num sentido mais amplo caracterizando, ento, a mesma
ambigidade prevista por Le Goff.
Parte da definio de Louis Althusser para ideologia: (...)um sistema
(possuindo sua lgica e rigor prprios) de representao (imagens, mito, idias ou
conceitos segundo a ocasio) dotado de uma existncia e de um papel histrico no
seio de uma dada sociedade.66
Desse modo, parece no distinguir mental (mentalidade) de idias, como
faz Le Goff, j que engloba imagens, mitos , idias, conceitos como representao e,
assim, como sistemas ideolgicos. Ou seja, para Duby existe uma correspondncia
entre a estrutura social e as idias que fazem parte do imaginrio ou da mentalidade
de uma mesma poca.
Tratando mentalidade como ideologia, Duby apresenta seus traos:
1) Globalizante: representao da sociedade como um conjunto,
integrada totalidade de uma viso de mundo e inseparvel do sistema de crenas
(cosmologia e teologia); 65 DUBY. Histria Social e ideologias da sociedade. Op. cit., p.131. 66 DUBY. Histria Social e ideologias da sociedade. Op. cit., p. 132.
38
2) Deformante: a imagem da sociedade mascarada por uma tomada de
perspectiva (de uma determinada classe);
3) Concorrente: coexistem, numa mesma sociedade, vrios sistemas de
representao conforme as classes existentes e os vrios nveis de cultura;
4) Estabilizador: participa da fora de atrao inerente a todos os
sistemas de valores, cujo sustentculo composto de tradies(...)67: costumes,
sabedoria, hierarquia social, esttica, moda.
5) Prtica: tem um projeto, uma ao, para o futuro de uma sociedade
mais perfeita. Este trao faz com que a ideologia se transforme pelas relaes
estreitas entre relaes vividas e representaes; pelos conflitos, contestaes,
recuperao e integrao, que certos meios sociais desempenham (especialistas em
educao/ensino e porta-vozes de categorias sociais) e, finalmente, pelas influncias
externas (culturas estrangeiras).68
Tendo a igreja europia do sculo XI, como exemplo, esses traos ficam
mais claros: (...)Naturalmente as representaes ideolgicas acarretam uma imagem
simplificada da realidade da organizao social, ignoram as nuances, superposies,
os emaranhados, acusando pelo contrrio os contrastes e acentuando as hierarquias e
os antagonismos. Reparte os homens em trs categorias (...) [os especialistas da
orao, do combate, da produo (camponeses)]69. [1] (...)reflete fielmente as
estruturas globais de uma sociedade agrria, que delegava a alguns o cuidado da
salvaguarda (...), pelo uso da orao.(...) [2] dissimula as tenses entre as trs
categorias sociais sob a mscara de uma troca equilibrada de servios mtuos.(...) [3]
justifica (...)as desigualdades de fato, o cio e a opulncia que permitem aos membros
dos dois extratos dominantes as funes especializadas que cada um deles
desempenha, da mesma forma que as obrigaes de trabalho pesado que repousam
67 DUBY. Histria Social e ideologias da sociedade. Op. cit., p. 133. 68 DUBY. Histria Social e ideologias da sociedade. Op. cit., pp. 134-135. 69 DUBY. Histria Social e ideologias da sociedade. Op. cit., pp. 140-141.
39
sobre a terceira e a explorao de que ela objeto. Por outro lado, [4] fornece uma
segurana na medida em que visa a estabilizar as estruturas das quais mostra a
imagem, no interesse das elites que se situa no seu topo, e de forma mais especial no
corpo de eclesisticos (...).70
uma ideologia conservadora e ao mesmo tempo portadora de
dinamismo, pois a concepo de histria que a sustenta a de uma marcha do povo
de Deus em direo luz e cabe Igreja guiar essa progresso em direo ao fim dos
tempos e exemplaridade das intenes divinas(...)71[5].
Quanto aos trs primeiros traos no vejo nenhum problema, j que
esto presentes no conceito de mentalidades emitido por Le Goff. Em relao ao trao
estabilizador, o autor ainda afirma: (...)Enfim, a tendncia ao conservadorismo
encontra-se ainda acentuada pelo movimento que, em todas as sociedades, leva os
modelos culturais a se deslocarem de grau em grau, desde o cume da hierarquia
social, onde tomaram forma em resposta aos gostos e aos interesses das equipes
dirigentes, at os meios progressivamente mais extensos e mais modestos, que eles
fascinam e que trabalham em seus proveito. Esse processo de vulgarizao contnua
acompanhado de uma lenta deformao das representaes mentais(...).72
O autor considera, ento, a ideologia como representao da classe
dominante, j que sob o quinto trao - prtica transformadora - a ideologia uma
representao da classe dominada ou, mais precisamente, de seus porta-vozes.
Ao apontar o primeiro problema, com relao ao estudo das ideologias,
Duby apresenta a difcil coleta de testemunhos no caso das ideologias populares que:
(...)no conseguiram acesso por eles prprios a instrumentos culturais capazes de
traduzir em formas durveis uma viso de mundo(...).73
70 DUBY. Histria Social e ideologias da sociedade. Op. cit., p. 141. 71 DUBY. Histria Social e ideologias da sociedade. Op. cit., p. 141. 72 DUBY. Histria Social e ideologias da sociedade. Op. cit., pp. 133-134. 73 DUBY. Histria Social e ideologias da sociedade. Op. cit., p. 135.
40
Portanto, ou essas ideologias no existem, conforme os cinco traos
apresentados, ou s existem atravs de porta-vozes que, da classe dominante,
passam a interessar-se pela dominada: (...)Os documentos s esclarecem diretamente
as ideologias que respondem aos interesses e s esperanas das classes
dirigentes(...).74
Fica claro a contradio, em termos, entre o que a Nova Histria prope
como mentalidades e o que Georges Duby realiza, em termos de ideologias. Ou seja,
como representao, nos moldes apresentados por ele a partir da definio de
Althusser, a ideologia s pode ser uma "viso de mundo" da classe dirigente. Ela s
deixa de ser um pensamento e uma ao da "elite" quando se transforma, via porta-
vozes da classe dominada, na busca de um futuro perfeito para a sociedade, isto ,
como discurso. Se esses testemunhos so difceis de encontrar, como ser possvel
tratar a "ideologia popular"? Parece que Bakhtin75 o consegue, mas ele no confunde
viso de mundo com mentalidades, no separa ideologia de cultura e, principalmente,
no v na ideologia uma negatividade, uma artificialidade, que transforma a cultura em
natureza.
O segundo problema, levantado por Duby, vai mostrar a dificuldade de
unir numa totalidade as imagens fragmentrias dos documentos da classe dirigente.
Isto porque, pelos exemplos de documentos apresentados, tudo ideologia.
No entanto, demonstra solues para os problemas que levanta:
necessrio descobrir os termos reveladores, e mais do que as palavras, as
apresentaes, as metforas e a maneira pela qual os vocbulos se acham
associados; aqui reflete-se inconscientemente a imagem que tal grupo num dado
momento, tem de si prprio e dos outros(...).76
74 DUBY. Histria Social e ideologias da sociedade. Op. cit., p. 135. 75 BAKTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Mdia e no Renascimento: o contexto de Franois Rabelais. 1987, So Paulo: HUCITEC. 76 DUBY. Histria Social e ideologias da sociedade. Op. cit., p. 136.
41
Para os documentos no escritos a ideologia encontra uma expresso
por vezes mais direta e mais rica nas articulao dos signos visveis. Os emblemas,
costumes, adornos, insgnias, gestos, o quadro e a ordem das festas e das cerimnias,
a maneira de organizar o espao social trazem o testemunho de uma certa ordem
imaginada do universo (...). 77
E ento preciso reuni-los a fim de reconstituir o sistema de sua
coerncia, na sua ordem formal, a partir dos traos por ele deixados. Deve-se ento
dar a maior ateno ao que se encontra calado.(...), as omisses formam um elemento
fundamental do discurso ideolgico (...)sincrnicamente, sua anlise deve ser bastante
profunda a fim de colocar em evidncia o que as expresses da ideologia dominante
podem revelar das ideologias concorrentes que ela afronta e que freqentemente no
podem ser percebidas seno atravs dela, (...), diacrnicamente, as insensveis
deformaes necessitam ser seguidas de perto(...).78
O mtodo o da histria serial, no qual os elementos das diferentes
lnguas, da expresso verbal, ritual ou figurativa, os mais significativos podem ser
ordenados cronolgicamente em sries quantificveis.(...) Na medida em que as
ideologias so na verdade coberturas, sistemas de representao cuja finalidade
tranqilizar e fornecer uma justificativa s condutas das pessoas, so as formas, os
esquemas e os temas que tm importncia, e a observao deve situar-se no seu
nvel.79
Os momentos privilegiados so as crises, as revoltas, as reformas, as
revolues: a polmica desencadeia um impulso de acelerao no seio de tendncias
da longa durao que animam a evoluo da ideologia dominante(...).80 Para a
77 DUBY. Histria Social e ideologias da sociedade. Op. cit. , p. 136. 78 DUBY. Histria Social e ideologias da sociedade. Op. cit., p. 137. 79 DUBY. Histria Social e ideologias da sociedade. Op. cit., p. 137. 80 DUBY. Histria Social e ideologias da sociedade. Op. cit., p. 138.
42
conduo das pesquisas sobre ideologia, Duby sugere duas etapas, exemplificando-as
depois:
a) estabelecer a cronologia (distncias de temporalidade) das
dissonncias entre a histria das ideologias (supraestrutura) e a histria do movimento
das estruturas materiais e polticas (infra-estrutura);
b) medir as concordncias e discordncias que, em cada ponto da
diacronia, so estabelecidas entre trs variveis: (...)a situao objetiva dos indivduos
e dos grupos e a imagem ilusria onde esses encontram conforto e justificao;
(...)entre essa imagem e as condutas individuais e coletivas. 81
Pelo exemplo, essas duas etapas podem ser melhor percebidas. O
crescimento econmico e demogrfico do sculo XII implicou em modificaes das
relaes humanas, cujo modelo ideolgico se empenhava em fabricar um
desenvolvimento que procedia de uma viso realista do que foram efetivamente
determinadas relaes sociais mais importantes nas regies francesas nos incios do
sculo XI: a hierarquia das fortunas, a disposio dos poderes, a repartio das
funes(...).82
Ao mesmo tempo, se agravavam as discordncias originais entre a
realidade concreta e sua representao mental.(...) a sociedade das cruzadas era
anacrnica. De fato nunca tomou corpo.(...) Para as pessoas da Igreja (...), a viagem
foi a ocasio de descobrir (...)as foras para uma transformao de sua prpria relao
com o mundo. (...), para os homens da guerra, a aventura representava antes de tudo
a prodigiosa expanso das expedies de pilhagem e de prazer (...), perseguindo a
glria, o lucro e uma esposa. Quanto aos "pobres"(...) ningum nunca poder dizer o
que eles verdadeiramente buscavam, nem o que encontraram. Em outras palavras, as
cruzadas levam consigo os grupos sociais que no tinham lugar no esquema das trs
ordens: religiosos que rompiam com a disciplina, prostitutas, mercenrios (...), agentes 81 DUBY. Histria Social e ideologias da sociedade. Op. cit., p. 139. 82 DUBY. Histria Social e ideologias da sociedade. Op. cit., p. 143.
43
dos prncipes (...), e todos os marinheiros, traficantes, negocistas. (...)Ao fim da
viagem, ningum encontrava nem a Parusia nem o Reino, mas a riqueza, o prazer de
conhecer a terra e de melhor se embelezar, a fadiga, o medo, o desencanto ou a
morte banal. O grande sonho encarnou-se finalmente em algumas formaes polticas
(...) no resduo das instituies, as ordens religiosas militares,(...) e na amplido de um
mito do progresso conquistador e de esperana escatolgica, que deveria durante
longos sculos alimentar as ideologias do Ocidente.83
Duby cita Paul Veyne, para falar sobre as condutas e probabilidades do
trabalho histrico, os objetivos e os limites da pesquisa que incitam prudncia.
Porque, em primeiro lugar preciso medir a amplido das distncias que, em toda
sociedade, separam o comportamento dos homens das representaes mentais ou
dos sistemas de valores com os quais gostam de se referir.(...). Em segundo lugar,
existe sempre um "enorme intervalo entre o intitulado oficial e um movimento poltico
ou religioso e a atmosfera que nele reina; essa atmosfera vivida pelos participantes
sem ser conhecida...e nunca deixa vestgio escrito"; por isso escapa observao, e
entretanto ela,(...), que influi sobre os comportamentos(...).84
Com Veyne, concorda que devemos admitir que a cobertura ideolgica
no engana ningum, que ela convence apenas os convencidos, e que o homo
historicus no se deixa curvar pelos argumentos ideolgicos de seu adversrio quando
seus interesses se encontram em jogo.85
Por isso, os comportamentos ideolgicos encontram-se mais diretamente
determinados por motivos ideolgicos dentro das instituies que Veyne define como
tudo aquilo a propsito do que fala do ideal coletivo, esprito de corpo, tradies
pessoais e de censura coletiva, que faz com que o grupo social realiza fins que so
mais desinteressados que os fins que teriam sido perseguidos individualmente por
seus membros (...).86
83 DUBY. Histria Social e ideologias da sociedade. Op. cit., p. 143-144. 84 DUBY. Histria Social e ideologias da sociedade. Op. cit., p. 139. 85 DUBY. Histria Social e ideologias da sociedade. Op. cit., p. 139. 86 DUBY. Histria Social e ideologias da sociedade. Op. cit., p. 139.
44
Ou seja, com essas caractersticas s poderemos estar falando em
ideologias de classes e de classes que tenham podido articular-se nessas tradies
institucionalizadas. De resto, poderemos apontar para mentalidades ou, mais
precisamente, para a cultura.
E nesse sentido, as categorias utilizados por Bakhtin - cultura oficial e
no-oficial - podem dar conta de trabalhar com os sistemas simblicos da cultura
popular e perceber neles sua ideologia, tal como Duby pretende: progredir em direo
a uma percepo mais aguda dos ritmos particulares, hoje to mal compreendidos,
que so adotados na sua durao especfica, pela histria das ideologias.(...) seria
talvez uma forma de melhor entrever o que, no estado das cincias do homem, ainda
continua inteiramente obscuro: a parte do imaginrio na evoluo das sociedades
humanas.87
Aps tudo isso, o que certamente permanece uma grande confuso:
vises de mundo, mentalidades, ideologias, imaginrio? Todos esses termos dizem
respeito aos significados culturais da existncia: matria e esprito, natureza e cultura;
uma discusso metafsica e uma interpretao em cima dos clssicos. preciso voltar
sempre a eles.
Em busca de uma totalidade, cada historiador, ideologicamente colocado
em blocos de pensamento, usa um caminho diverso e tortuoso. Assim, citando Veyne,
a histria no , portanto, uma cincia, ela no tem por isso menos rigor, mas esse
rigor coloca-se ao nvel da crtica.88
Voltamos, ento, ao ponto: a produo e a recepo do conhecimento
que , em ltima instncia, minha preocupao neste trabalho. E neste sentido, ao
falar de mentalidades estarei usando o conceito de viso de mundo apontada por Le
Goff, uma vez que meu interesse est centrado naquilo que permanece em termos de 87 DUBY. Histria Social e ideologias da sociedade. Op. cit., p.139. 88 VEYNE, Paul. Como se escreve a histria. 1987, Lisboa: Edies 70, p. 24.
45
cultura e no no que se modifica, como procura Duby, apesar das grandes
transformaes ocorridas.
No por outro motivo que trabalhei com os textos de melhor estilo que
encontrei: aqueles que de forma simples e, portanto, elegante souberam cativar-me
como leitor. Sem essa excelncia narrativa - que uma arte - suas idias e conceitos
no poderiam ter sido entendidos. Nesse sentido, seu processo narrativo tambm
civilizatrio na medida em que possui, ao longo dos sculos, uma permanncia. um
dom que pode mudar de tom e de especialidade, mas que nunca perde a beleza, a
courtesy ou a politesse que caracterizam nossa civilizao.
46
2 - SUAVIZAO DOS COSTUMES: UM
PROCESSO DE LONGA DURAO
47
2.1 O PROCESSO CIVILIZADOR
Parte das dificuldades de entendermos o mundo, no passado e no
presente, est no fato de opormos o indivduo sociedade. Deste modo, o que
acontece no privado parece no ter ligao direta com o social e, portanto, as
transformaes da sociedade no dependem do indivduo. No entanto, conceitos como
indivduo e sociedade no dizem respeito a dois objetos que existiriam
separadamente, mas a aspectos diferentes, embora inseparveis, dos mesmos seres
humanos(...)89.
A separao entre indivduo e sociedade faz com que se perca de vista a
noo de processo, j que o valor maior est centrado na sociedade, confundida com
a nao e, ao mesmo tempo, no indivduo encapsulado, interior, personalista e que se
interpenetra com a sociedade-nao. Isto porque os padres de pensamento da
sociologia deste sculo esto ainda centrados na nao e, mais, numa sociedade em
equilbrio cujos conflitos so percebidos como disfuno.
Falar de um dos dois lados de uma mesma moeda, redonda, inteira em
suas partes, perigoso em se tratando de cincia. Isto porque as palavras, como diria
Morin90, acabam ganhando uma conotao gasta depois de tanto uso. Portanto, no
podemos esquecer do que estamos falando: de pessoas que ao longo dos sculos
relacionaram-se com o mundo do trabalho e do lazer, conformando o que Elias chama
de civilizao. Um processo de longa durao articulado pelo entrelaamento entre
estruturas de personalidade e estruturas sociais, a civilizao, que estamos 89 ELIAS, Norbert. O processo civilizador: uma histria dos costumes. 1994, Rio de Janeiro: Zahar, p. 220. 90 MORIN, Edgar. Para sair do sculo XX. 1986, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, pp. 58-88.
48
acostumados a considerar como uma "posse" que aparentemente nos chega pronta e
acabada, sem que perguntemos como viemos a possu-la, um processo ou parte de
um processo em que ns mesmos estamos envolvidos.91
Existe uma mtua determinao entre o indivduo e outros indivduos, os
padres de comportamento, cotidiano e individual, agem sobre o todo social e so
agidos por ele. Portanto, o processo de mudana social parte das reformulaes das
necessidades humanas e, pelas transformaes das relaes entre os homens, chega
ao desenvolvimento da aparelhagem tcnica. Esta, por sua vez, consolida os novos
hbitos e dissemina-os pela reproduo constante de seu padro e, assim, os
processos naturais e histricos se influenciam mtua e inseparavelmente e a histria
da sociedade reflete-se na histria dos indivduos que a compem. 92
Para Elias a mudana nas estruturas de personalidade um aspecto
especfico do desenvolvimento de estruturas sociais.93 So mudanas de longo prazo
nas emoes e estruturas de controle das pessoas que se desenvolvem ao longo de
uma nica e mesma direo, ou seja, em direo civilizao moderna.
Ento, o ser humano no pode ser visto como algo fora da sociedade,
nem a sociedade como algo fora do indivduo e no estudo dos processos sociais a
anlise das mudanas de comportamento, de controles, torna-se importante na
medida em que apontam tambm para as mudanas nas estruturas sociais como um
todo, e vice-versa.
Do mesmo modo que importante uma reviso crtica moderna
imagem do homem, para que possamos compreender o processo civilizador, torna-se
essencial uma sociognese dos conceitos que utilizamos, o que Kosellek94 chama de
histria dos conceitos. Para Elias, isto se torna particularmente importante na medida
91 ELIAS. O processo civilizador. Op. cit., p. 73. 92 ELIAS. O processo civilizador. Op. cit., p. 144. 93 ELIAS. O processo civilizador. Op. cit., p. 221. 94 KOSELLEK, Reinhart. Uma histria dos conceitos: problemas tericos e prticos. IN: Estudos Histricos. Rio de Janeiro, outubro de 1992,v.5, pp. 134-146.
49
em que utiliza o conceito de civilizao, ao explicar o processo de desenvolvimento do
comportamento humano em uma dada direo, que em seu pas de origem tem uma
concepo diferente da utilizada na Inglaterra e na Frana e, por extenso, tambm no
Brasil.
O conceito de civilizao expressa a conscincia que o Ocidente tem de
si mesmo que, na Alemanha, responde pelo conceito de kultur como conscincia
nacional. Se na Inglaterra e na Frana, o conceito abrange fatos intelectuais,
econmicos, polticos e sociais, na Alemanha, kultur restringe-se a fatos intelectuais,
artsticos e religiosos. Se civilizao descreve um processo, cultura delimita a
individualidade de um povo.
A civilizao enfatiza o que comum a todos os seres humanos,
enquanto cultura acentua as diferenas nacionais e a identidade particular de grupos.
Se o termo civilizao inclui a funo de dar expresso a uma tendncia
continuamente expansionista de grupos colonizadores, o termo kultur reflete a
conscincia de si mesma de uma nao que teve de buscar e constituir incessante e
novamente suas fronteiras.
Na Alemanha, o contraste se origina na polmica entre o estrato da
intelligensia alem de classe mdia e a etiqueta da classe cortes, superior e
governante. Mas a questo mais antiga e reflete, grosso modo, a controvrsia entre
uma cultura de lngua alem autntica e uma civilidade cortes de lngua francesa
superficial. As antteses se repetem entre o exterior (sociedade cortes) e o interior (eu
individualizado e culto), superficialidade e virtude.
A idia de civilizao viaja em direo da permanncia, da longa
durao, enquanto a de cultura aponta para a singularidade do momento,
demarcao e nfase nas diferenas. O conceito alemo limitado prope uma auto-
50
imagem nacional, isto , a sua a maneira como o mundo dos homens, como um
todo, quer ser visto e julgado. 95
Para Elias, ambos os conceitos so usados basicamente por e para
povos que compartilham uma tradio e situaes particulares e foram usados
repetidamente at se tornarem instrumentos eficientes para expressar o que as
pessoas experimentaram em comum e querem comunicar. 96 Tornaram-se palavras da
moda e so relembradas porque alguma coisa no estado presente da sociedade
encontra expresso na cristalizao do passado corporificada nas palavras.97
O processo civilizacional constitui uma nova sensibilidade em que a
imagem do homem como personalidade fechada substituda pela de personalidade
aberta e que, na realidade, durante toda a vida fundamentalmente orientada para
outras pessoas e dependentes dela. A rede de interdependncias entre os seres
humanos o que os liga(...).98 a rede de interdependncias que forma o nexo da
configurao, uma estrutura de pessoas mutuamente orientadas e dependentes. As
pessoas existem como pluralidades, como configuraes; em vez de conceber os
homens imagem do homem individual, mais apropriado conjeturar a imagem de
numerosas pessoas interdependentes formando configuraes, grupos ou sociedades.
Vamos encontrar o ponto de partida de uma mudana profunda no
comportamento humano no padro medieval e na sociedade de corte francesa,
quando comea a se estabelecer um novo modelo fundamentado na cortesia e no
comportamento socialmente aceitvel. Para Elias, os trabalhos de humanistas sobre
maneiras formam uma ponte entre o comportamento da Idade Mdia e o dos tempos
modernos, apresentando a dupla face de tradio medieval e de modernidade.
95 ELIAS. O processo civilizador. Op. cit., p. 25. 96 ELIAS. O processo civilizador. Op. cit., p. 26-27. 97 ELIAS. O processo civilizador. Op. cit., p. 26-27. 98 ELIAS. O processo civilizador. Op. cit., p. 294.
51
O papel de escritores, como Erasmo99, importante na difuso das novas
maneiras e no condicionamento do indivduo e mostram, do mesmo modo, atravs do
que censuram e elogiam, a divergncia entre o que era considerado, em pocas
diferentes, maneiras boas e ms.100 Primeiro em relao s classes aristocrticas e,
posteriormente, s classes burguesas e, finalmente, por toda a sociedade. Ou seja, a
literatura trata de emaranhados especficos de classes que se traduzem em
sentimentalismo, sensibilidade, nuanas correlatas e emoo.
Os livros de boas maneiras e a literatura sobre bons costumes se
propunham, e ainda continuam a faz-lo, a criar um padro de hbitos e
comportamentos a que a sociedade, em uma dada poca, procura acostumar o
indivduo.101 Um gnero literrio que constitui-se em uma verdadeira educao dos
sentimentos, onde para ser realmente corts segundo os padres de civilidade, o
indivduo obrigado a observar, a olhar em volta e prestar ateno s pessoas e aos
seus motivos. Nisto, tambm, anuncia-se uma nova relao entre um homem e outro,
uma nova forma de integrao.102 Comea a haver um controle maior das emoes e
a base essencial do que obrigatrio e do que proibido na sociedade civilizada - o
padro da tcnica de comer, a maneira de usar faca, garfo, colher, prato individual,
guardanapo e outros utenslios - estes permanecem imutveis em seus aspectos
essenciais(...), o que muda so as tcnicas de produo.103
Desenvolve-se gradualmente uma noo que empurraria para o segundo
plano o conceito de cortesia da cavalaria-feudalismo e no decorrer do sculo XVI, o
uso do conceito de courtoisie diminui lentamen