pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo …livros01.livrosgratis.com.br/cp116502.pdf · resumo...

166
1 PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC - SP José Assunção Fernandes Leite A República de Platão: relação entre os livros I, II, III, IV e VIII DOUTORADO EM FILOSOFIA São Paulo 2009

Upload: dothuan

Post on 05-Oct-2018

215 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 1

    PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO

    PUC - SP

    Jos Assuno Fernandes Leite

    A Repblica de Plato: relao entre os livros I, II, III, IV e VIII

    DOUTORADO EM FILOSOFIA

    So Paulo 2009

  • Livros Grtis

    http://www.livrosgratis.com.br

    Milhares de livros grtis para download.

  • 2

    PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO

    PUC - SP

    Jos Assuno Fernandes Leite

    A Repblica de Plato: relao entre os livros I, II, III, IV e VIII

    Teses apresentada Banca Examinadora da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, como exigncia parcial para obteno do ttulo de Doutor em Filosofia sob a orientao da Profa. Doutora Rachel Gazolla de Andrade.

    So Paulo 2009

  • 3

    BANCA EXAMINADORA

    _________________________________________________ _________________________________________________ _________________________________________________ _________________________________________________ _________________________________________________

  • 4

    Aos meus Mestres pela confiana, respeito e dedicao.

  • 5

    AGRADECIMENTO

    Quando atingimos a finalizao de uma tese, chega o momento de

    pensarmos sobre tudo o que nos foi possibilitado para sua concluso. Isso

    me faz lembrar da conversa entre Cfalo e Scrates em que o ancio

    reclama da falta do amigo, que no o procurou devido s suas condies

    fsicas e pede para Scrates que no deixe de ficar, tambm, com os mais

    velhos, pois nessa idade o prazer da conversa aflora. Scrates, ento,

    responde ao ancio (328 d e) que para ele um prazer conversar com

    pessoas de idade avanada para que possa se informar, junto deles, como

    pessoas que foram frente num caminho que, talvez, tenhamos de

    percorrer, sobre as suas caractersticas, se spero e difcil, ou fcil e

    transitvel.

    Essa uma forma de olhar para todo o processo da elaborao de

    uma tese e pensar que o caminho no muito fcil de ser trilhado, mas, se

    olharmos para as coisas positivas e ouvirmos os mais velhos e os amigos, o

    caminho torna-se prazeroso.

    Depois do caminho trilhado, tenho de agradecer a Deus por ter sido o

    meu porto seguro nos momentos difceis. professora Dra. Rachel Gazolla

    pela segurana e determinao quanto forma de orientar, e por deixar

    reviver o orculo nos momentos necessrios. Meu muito obrigado sempre.

    valiosa contribuio da Profa. Dra. Gilda Nacia e o Prof. Dr.

    Henrique Murachco durante o exame de qualificao.

    A CAPES, via programa PQI, sem a qual no teria condio

    econmica para realizar os estudos.

    UFMA pelo incentivo aos seus professores do DEFIL em suas

    qualificaes, em especial Dona Batista pelo carinho e ateno.

    A minha famlia, Carlos, Carlos William e Mauricio, pela aceitao de

    minha ausncia durante o percurso da elaborao da tese.

    famlia Leal, em especial ao Sr. Roque Leal e Dona Rachel Leal,

    por me terem acolhido como um filho, minha eterna gratido.

    Nildinha e Aline pelos momentos de alegria com os coraes

    sempre acolhedores, o meu eterno respeito a vocs. A minha querida irm

  • 6

    Elizete Gavazzone e ao Prof. Adelino da Rosa, meu respeito sempre. A

    meus dois anjos da guarda, Ivanete Pereira e Marcos, meus irmos, amigos,

    porto seguro de amor e de acolhimento, vocs fizeram com que eu

    fortalecesse a minha f que o bem e a bondade valem a pena ser vividos. Ao

    meu amado Mestre Rolland e Ana Paula Garrido, pelos coraes sempre

    abertos para me acolherem e por me terem dado uma boa e grande famlia

    NEFRU, fonte de minha fora e do meu caminho. Aos meus amigos e irmos

    da UFMA: Zilmara, Hamilton, Luciano Faanha, pela eterna alegria na

    convivncia e por acreditarmos que podemos ser cada dia melhores. A

    Snia Rangel (PUC-SP) e a Profa. Mrcia Manir (UFMA) pela ateno e

    cuidado na correo do texto. Aos meus amigos de estudos platnicos da

    PUC-SP, pelas conversas e apoio. E a todos os meus amigos que torceram

    por mim, mas, l no fundo do corao, respeitaram minha ausncia,

    esperando o retorno. Por tudo o que tenho de agradecer, volto fala de

    Scrates para dizer que o percurso foi longo, mas com certeza sinto-me um

    homem melhor. Meu muito obrigado sempre a todos vocs.

  • 7

    Resumo

    Uma das crticas feitas ao Livro I de A Repblica o fato de ele ser

    um livro desvinculado do restante da obra por apresentar uma aporia no

    final, caracterstica dos dilogos considerados da juventude de Plato,

    conhecidos tambm como socrticos por lidarem com questes

    compreendidas como ticas. Esse modelo de dilogo produzido por Plato

    na juventude e suas semelhanas com o Livro I eferido levam alguns

    comentadores a acreditarem que ele seja anterior aos demais e at

    descontextualizado da obra. Sabemos da complexidade dessa obra e, por

    isso, fomos verificar se realmente esse primeiro livro ou no desvinculado

    do restante. Para tanto, tivemos que escolher um caminho, j que,

    dependendo do objetivo, A Repblica se pode trilhar por percursos distintos.

    Nesse caso, recolhemos as teses dos personagens do Livro I e II para

    verificarmos se Plato abandona ou no o que apresentado por Cfalo,

    Polemarco, Trasmaco, Glauco e Adimanto. Dadas essas teses,

    constatamos, logo ao incio, as diferenas metodolgicas nos dilogos

    entre os personagens. Em seguida, detectamos uma relao entre as trs

    primeiras teses do Livro I com os estamentos, as trs potncias da alma e o

    mito das raas. Por fim, dada a cidade justa e seus fundamentos, fomos

    verificar a relao das teses dos primeiros personagens com os modelos de

    constituies consideradas decadentes no Livro VIII, se esto ou no

    presentes quer na totalidade, quer parcialmente. Nesse processo de

    observao das constituies, verificamos a educao adotada em cada um

    dos modelos das poleis. Nossa reflexo, no presente trabalho, foi a de

    demonstrar que o Livro I de A Repblica se encontra vinculado ao restante

  • 8

    dos outros livros, tanto que as primeiras teses reaparecem de algum modo

    no Livro VIII.

  • 9

    Abstract

    One of the criticisms that have been made to the Book I of the Republic is

    the fact that it is disconnected from the remaining of the work, since there is

    an aporia at the end of the dialogue, a characteristic of dialogues from Platos

    youth, also known as Socratic for dealing with questions deemed as ethical.

    The model of dialogue written by Plato in his youth, and its similarities with

    the Book I have lead some commentators to believe that this book may

    precede the others, and even be out of the context of the work. Being aware

    of the complexity of this piece of work from Plato, we proceeded to verify

    whether in fact this first book does not belong with the others. To this end it

    was necessary to choose a proper approach, since depending on ones

    purpose different paths can be followed in the Republic. We collected the

    theses of the characters from Book I and II to check whether or not the

    aforementioned philosopher will abandon the ideas presented by Cephalus,

    Polemarchus, Thrasymachus, Glaucus and Adeimantus. Given their theses,

    we noticed firstly the methodological differences in the dialogues between

    the characters. Secondly, we detected a relationship between the three

    theses and the three sectors, and between the three powers of the soul and

    the myth of the races in the Book III. Finally, given the just city and its

    fundaments, we studied the relationship between the characters theses and

    the constitution models regarded as decadent in the Book VIII, analysing

    whether such theses are present or not, partially or integrally. In this process

    of analysing the constitutions, we also paid attention to the education

    adopted in each one of the plis models. Our reflection in the present work

    consisted in demonstrating that the Book I of the Republic is not

  • 10

    disconnected from the remaining of the work, since the earlier theses

    reappear in some form in the Book VIII.

  • 11

    SUMRIO Introduo........................................................................................ 12

    Cap. I - Os livros I e II da Repblica e a questo dos personagens....................................................................................

    18

    1 - As vertentes de uma interpretao dos dilogos................ 19 2 - Os personagens do livro I e II ............................................. 28 3 - Livro I: quem Cfalo?....................................................... 31 4 - A lgica do discurso de Cfalo............................................ 45 5 - Quem Polemarco.............................................................. 46 6 - O discurso de Polemarco e sua arete................................. 50 7 - Quem Trasmaco ............................................................. 57 8 - A tese de Trasmaco........................................................... 60 9 - A lgica do discurso de Trasmaco: os dissoi logoi............. 64

    10 - Glauco e Adimanto............................................................ 72

    Cap. II A relao do Livro I com os trs estamentos, as trs potncias da alma e o Mito das Raas..........................................

    78

    1 - A cidade justa primria................................................... 79 2 - A introduo do estamento dos guardies e a educao (Livros II, III ao IV)....................................................................

    85

    3 - As trs potncias da alma................................................... 87 4 - A educao dos trs estamentos........................................ 94 5 - As teses do Livro I acomodadas na cidade justa................ 99 6 - A justia e o modelo educativo............................................ 113

    Cap. III O Livro VIII e as teses sobre a justia dos livros I e II: relaes ...........................................................................................

    124

    1 - A decadncia das formas de governo................................. 125 2 - As mudanas educacionais nas formas de governo........... 136 3 - Democracia e Liberdade..................................................... 142

    IV - Consideraes finais................................................................ 155

    V Referncia Bibliogrfica........................................................... 158

  • 12

    INTRODUO

    Princpio dos seres... ele disse (que era) o ilimitado... Pois donde a gerao para os seres, para onde tambm a corrupo se gera segundo o necessrio; pois concedem eles mesmos justia e deferncia uns aos outros pela injustia, segundo a ordenao do tempo. (Anaximando de Mileto. Frag. 1, recolhimento por Diels-Kranz)1

    Plato tem algo de fascinante nos seus dilogos: ao expor suas reflexes,

    apresenta personagens que tm um simbolismo muito especfico para a poca e

    para o prprio dilogo e que o leitor moderno deve investigar. Tais personagens

    so figuras significantes para a cultura grega de ento, quer por suas funes,

    quer por seu modo de vida ou pelos acontecimentos que viveram. Ao dialogarem

    com Scrates, deixam-nos um campo rico que une a filosofia platnica e a histria

    da poca, fato que no podemos marginalizar.

    A obra A Repblica2 , entre tantos escritos de Plato, uma das que mais

    chamam a ateno pela diversidade de problemas apresentados nos seus dez

    livros. Trata do que a justia e de como seria uma cidade justa a ser pensada

    mantendo-se a relao corpo-alma, de modo a estabelecer os modos de a alma

    ser e as formas de governo possveis, bem como o valor do conhecimento e seus

    graus, levando em conta o tipo de alma que se tem. A partir disso, como se sabe,

    Plato pensa na educao dessa cidade justa e na educao do filsofo, seu 1 Fragmentos. Simplcio, Fsica, 24,31.Trad. J. Cavalcante de Souza, Abril Cultural. Essa concepo de ordem e desordem existente no cosmos enquanto movimento, possibilita a justia para as coisas serem e a injustia para deixarem de ser no eterno ciclo de gerao e corrupo; essa idia de Anaximandro nos parece muito prxima da idia de justia de Plato em A Repblic, ao tratar das formas polticas, como veremos. 2 Para nosso trabalho, tomaremos como referncia as seguintes tradues de A Repblica: a edio bilnge da Belles Lettres; a traduo da Fundao Calouste Gulbenkian, de Maria Helena da Rocha Pereira; a traduo da EDUFPA, de Carlos Alberto Nunes; a publicao da Editora Martins Fontes, traduo de Anna Lia Amaral de Almeida Prado; a traduo mexicana de Antonio Gmez Robledo, da Universidad Nacional Autnoma de Mxico. Algumas pequenas mudanas de traduo devem-se a sugestes da Prof. Dr. Rachel Gazolla, orientadora.

  • 13

    governante principal o filsofo-rei -, bem como na injustia e seu reflexo na

    alma, aes e na organizao poltica. Dos dez livros, os que mais nos

    interessam, primeiramente, so os trs primeiros sobre os quais nos deteremos.

    Aps o seu estudo, investigaremos o Livro IV em parte e as relaes com o livro

    VIII, quanto s formas de governo, educao dos cidados, alma e educao

    de cada um e destruio dessas sociedades elencadas por Plato.

    Uma vez que o Livro I, segundo comentrios de I. M. Crombie, estaria

    descontextualizado dos restantes por apresentar caractersticas prprias dos

    primeiros dilogos, ditos socrticos, nossa pretenso consistir em demonstrar o

    contrrio, ou seja, que o Livro I, longe de encontrar-se destacado dos demais,

    constitui nosso ponto de ligao com os outros livros, pois nele est contida a

    matria-prima cuja moldagem dar-se- em tal grau de sutileza, que muitos

    leitores deixaro de reconhec-la no restante da obra.

    Inicialmente, no Livro I, a nossa ateno se volta para os personagens e

    suas teses quanto noo de justia. Primeiro, perguntamos por que Plato

    escolhe esses personagens especficos para refletir sobre o que a justia? Com

    certeza, no so eles aleatrios; no coloca nas suas falas algo insignificante

    para sua reflexo filosfica posterior. Nas leituras dos intrpretes, registramos que

    diversos comentrios so tecidos sobre os dez livros, mas, em geral, o primeiro

    livro lido como somente propedutico, sem grande importncia, o que nos deixa

    intrigados, j que no o que vemos. Plato sempre tem um porqu ao colocar,

    em suas obras, certos personagens, certa cenografia ao dilogo, possveis

    alegorias, metforas, e mitos, como se sabe. Este comeo de A Repblica

    sustenta, a nosso ver, trs importantes teses sobre o que a justia poca e

  • 14

    que Plato, por algum motivo que tentaremos explicitar, quer recolh-las para

    melhor pens-las.

    Em certo momento da orientao, foi chamada nossa ateno para os

    enunciados do Livro I relacionados s teses apresentadas pelos personagens

    Cfalo, Polemarco e Trasmaco, que poderiam ser resgatadas por Plato para a

    sua cidade criada em lgos em livros posteriores. Essas teses, aps receberem a

    devida investigao, mostram que, realmente, suportam a ordem e a forma de

    ao de cada estamento da cidade justa e ajudam a compreender melhor o

    estudo do Livro VIII. O problema maior, para ns, foi o de perceber que essa

    perspectiva no tem significativa contribuio dos intrpretes, isto , a relao

    entre o Livro I e os Livros II, III e IV, bem como o Livro VIII no costuma ser

    estudada. Essa dificuldade refere-se ao fato de essa tradio afirmar que o Livro I

    um texto anterior aos outros nove e, ademais, no costuma ligar os primeiros

    livros aos ltimos, como foi dito, e mostraremos que possvel faze-lo e se deve

    faz-lo.

    Demonstraremos que as teses de Cfalo, Polemarco e Trasmaco e os

    valores da tradio poltica grega que elas carregam, tm aspectos que sero

    necessrios a Plato e ele os aglutinar em suas reflexes sobre a cidade. A

    nosso ver, no Livro I, preciso expor a forma como Plato se utiliza de uma

    estratgia metodolgica entre os personagens e sua evolutiva superao destes.

    Inicia com a maieutica socrtica - utilizada para com os dois primeiros

    personagens, Cfalo e Polemarco -, vai eristica no dilogo com o sofista

    Trasmaco e, com Glauco e Adimanto, introduz a sua dialtica propriamente, e a

    pontuao da questo a ser desenvolvida no restante da obra: a origem da justia

  • 15

    e da injustia solicitada pelos dois dialogadores. Isso fica bem delimitado quando

    analisamos a estrutura lgica das falas entre Scrates e seus debatedores.

    Nessa perspectiva, entendemos que o Livro I esteja bem contextualizado no

    restante da obra, mas falta perceber a relao existente entre os significados da

    dikaiosyne, exposta no Livro I, e a ordem dos estamentos da cidade justa. Quanto

    diferena do Livro I para o Livro II, a nosso ver, apenas metodolgica. Plato,

    num primeiro momento, utiliza-se da maieutica para dialogar com personagens

    aparentemente mais elementares em suas colocaes, e quando dizemos isso

    significa que esto menos acostumados com a filosofia; em seguida, usa da

    eristica para enfrentar um sofista e, por fim, pensa poder usar a dialtica com

    Glauco e Adimanto por serem mais afoitos s perguntas, o que o conduzir ao

    logos que pretende, mais complexo, para explicitar o que a justia nos Livros II,

    III, IV. Ele sabe que o caminho utilizado no Livro I no d o fundamento da

    dikaiosyne, uma vez que recolhia as opinies vigentes e debatia maieuticamente

    com os personagens. Mostrava apenas a fora do questionamento do prprio

    logos, sem expor totalmente sua fora argumentativa e investigativa at onde se

    pudesse levar.

    Assim, num primeiro momento, mostraremos as teses do Livro I e suas

    implicaes mais diretas. Num segundo momento, faremos uma relao entre as

    trs teses, com os estamentos, apresentados por Scrates na sua cidade justa e

    a relao com o que ele chamar de as trs potncias da alma, aps o que nos

    deteremos no nomeado Mito das Raas.

    Com a cidade criada, encontramos a justia enquanto virtude e, na alma,

    enquanto o equilbrio das trs potncias que sustentam as diferenas, entre os

    homens e o modo de diviso da cidade em estamentos, servindo de base para o

  • 16

    exerccio das funes de cada estamento da cidade. Para que os cidados

    aceitem exercitar-se nas suas respectivas funes, Plato critica o contedo

    pedaggico da educao grega e censura, em parte, os poetas tradicionais,

    Homero e Hesodo, base da paidia, como ser apontado. Resgata, ainda, da

    tradio mtica potica o Mito das Raas que, em suas mos, modifica-se para

    ser um instrumento educativo, diferenciado, uma nobre mentira capaz de criar,

    entre os habitantes dessa cidade, o sentimento de philia e a aceitao das

    diferenas, sem o que nada se sustentar.

    Num terceiro e ltimo momento, dado o modelo da cidade justa e do homem

    justo e virtuoso dessa cidade, necessrio verificar o Livro VIII e suas formas de

    governo, discuti-las e entender por que Plato cria esse livro. Apontaremos alguns

    caminhos possveis para um estudo do referido livro. Dos caminhos indicados

    acolhemos a tese de Jaeger que afirma ser, esse livro uma parte que trata da

    stasis na alma humana. Com essa suposio acreditamos que o que Plato faz

    uma experincia investigativa sobre o ser humano, observando o reflexo da

    educao na alma de cada um, fazendo corresponder cada potncia anmica a

    uma forma de governo. Seguindo seus passos, estudaremos outras formas de

    governo apresentadas no Livro VIII: Timocracia, Oligarquia e Democracia que se

    modificaro ou em virtude da ao da prpria physis, ou em funo do tipo de

    educao que as crianas recebem, quer no lar, quer na cidade. o caso da

    passagem da Aristocracia para a Timocracia, desta para a Oligarquia, depois para

    a Democracia, obtendo uma srie de paradigmas educativos que nos parecem

    fundamentais para esta investigao. Por fim, procuraremos entender a ideia de

    liberdade presente na obra. Deixaremos margem de nosso estudo a tirania

    exposta no Livro IX.

  • 17

    Neste processo, da decadncia das formas de governo, a desintegrao

    pela via da gerao e educao adotada pela cidade e de sua necessria

    corrupo ser estudada com cuidado, pois nisso est, tambm, a disposio da

    alma de cada um. A Mimesis como forma de educao transforma os homens na

    medida do possvel, logo transforma tambm os governos. Com isto,

    concluiremos nosso estudo.

  • 18

    Capitulo I Os Livros I e II da Repblica e a questo dos personagens

  • 19

    1. As vertentes de uma interpretao dos dilogos

    O acervo de Plato, organizado ao longo dos sculos, deixa entrever, muita

    discusso quanto ordem dos dilogos. Segundo Robin,3 essa organizao a

    seguinte: primeiros escritos ou escritos de juventude, intermedirios ou escritos

    de maturidade e os tardios ou da velhice. Alm dos dilogos, existem tambm as

    cartas e os dilogos suspeitos e os considerados apcrifos. A discusso vasta e

    sempre so apresentadas novas observaes com relao. H outra corrente que

    considera a questo cronolgica secundria. Entre os interpretes que seguem

    essa via est Szlezk4 e Vegetti,5 que usam, a elaem parte, o pensamento de

    Friedrich Schleiermacher que considera a questo cronolgica dos dilogos

    desprovida de significao profunda, e o que mais importa para esses intrpretes

    a questo orgnica de cada dilogo.

    Quanto questo interna dos dilogos, Szlezak6, ao fazer sua anlise das

    questes orgnicas das obras de Plato, afirma que elas se aproximam das

    convices do prprio filsofo, e que os dilogos retratam sempre uma

    conversao e, muitas vezes, longos discursos monolgicos. Essas conversas se

    do sempre em certertos lugares e com certas pessoas de caractersticas muito

    prximas s do cotidiano grego. Plato elege os participantes da conversa, sendo

    esta conduzida por um mestre. Expe o comentador que:

    O lder da conversa pode responder a todas as objees. Em

    conversao de carter agonstico, pode refutar todos os

    participantes; ele mesmo nunca refutado. Todos os elementos da

    conversao que realmente a fazem avanar so introduzidos por

    3 ROBIN, Lon. Platon. Paris : Presses Universitaire de France, 1968.p.29-35. 4 SZLEZAK, Thomas A. Ler Plato. trad. Milton Camargo Mota. So Paulo: Edies Loyola, 2005. 5 VEGETTI, Mario. La Repubblica. Vol. I. Pavia: Bibliopolis, 1998. 6 Idem. Ib. p. 37 a39.

  • 20

    ele (s vezes, de fato, de maneira maieutica: trazendo luz

    pensamentos alheios).7

    Alm disso, considera que as conversas no progridem de maneira linear,

    mas vo sofrendo impulsos para degraus qualitativamente superiores, de acordo

    com a forma como se desenvolve. Quando chega o final da obra, o lder da

    conversa no encerra de forma orgnica o dilogo, mas aponta para questes

    futuras. Esse um dos modos como podemos nos aproximar de Plato, levando

    em conta essas caractersticas, mas pode-se levar em conta tambm a questo

    cronolgica, sem ignorar a forma como est constitudo inteiramente o dilogo.

    Isso exposto, voltemos classificao dos primeiros dilogos pelo estilo de

    dialogar, os que so chamados de socrticos ou aporticos por apresentarem

    uma proposta de definio de uma virtude e, como ocorre na maieutica, Scrates

    demonstra a insuficincia dos seus dialogadores em responderem, sendo que, se

    conclui sem a definio pretendida. Goldschmidt, 8 ao tratar dos dilogos

    aporticos, comenta que Scrates quer despertar a reflexo do ouvinte, e essa

    a funo de um dilogo aportico, pois a discusso no traz nenhuma clareza

    finalizadora, e no se preocupa com tal pretenso.

    Vejamos o dilogo Lisis, como exemplo de obra considerada de juventude e

    aportico. Plato apresenta um local determinado: Scrates faz um caminho ao

    lado da muralha de Atenas, quando encontra o primeiro personagem, Hiptales,

    que direciona o condutor do dilogo at o recinto prximo muralha, onde se

    renem belos jovens para aulas de formao, que so enviados pelas famlias

    para os pedagogos. Percebendo que o jovem Hiptales se encontra apaixonado,

    7 Idem. Ib. 8 GOLDSCHMIDT, Victor. Os dilogos de Plato: estrutura e mtodo dialtico. Trad. Dion Davi Macedo. So Paulo: Edies Loyola, 2002. pp. 23 a 30.

  • 21

    Scrates quer conversar sobre Eros e como ele se reflete no comportamento do

    apaixonado diante do seu escolhido (205b). A conversa ocorre entre todos os

    jovens que ali se encontram e, entre eles, esto Menexeno e Lisis.

    Primeiro Scrates (207c) afirma que os amigos em nada so desiguais, mas

    a pergunta feita por Scrates a Menexeno (212 a - b) como algum que se torna

    amigo de outrem (ama), e quando algum ama outro qual o que se torna amigo

    qual o que ama e qual o amado ou o que se ama no amado. Para sabermos h

    que haver essa relao entre iguais, entre homens bons, e at a passagem 215c,

    lembrado que, para Hesodo, o igual maior inimigo do igual. Assim o oleiro

    tem dio do outro oleiro e o aedo do outro, semelhante tem inveja de semelhante.

    Essa posio Plato no pode aceitar. Quando chegam a certo ponto da conversa

    (221d), Scrates descobre que a causa da amizade o desejo, mas daquilo que

    no se tem, como tambm dito no Banquete. Scrates levado a concluir, ao

    final, (223 b), que no foram capazes de descobrir no dilogo o que era a

    amizade e no a procuraram por ela mesma.

    O que vemos neste texto e em outros do mesmo tipo, ditos aporticos ou

    socrticos exatamente essa organicidade sem uma definio ao final. No

    entanto, se lembrarmos do Banquete, h uma finalizao e o assunto o mesmo,

    alm de dizer-se que este um dilogo, quem sabe, de juventude ou

    intermedirio. De qualquer modo, do ponto de vista temtico, um dilogo

    complexo, tanto o Lisis quanto o Banquete e mesmo a Repblica que necessitam

    da noo de Eros em diversos de seus aspectos.

    Quanto aos dilogos do perodo intermedirio, estaria A Repblica, por

    apresentar um predomnio da tica e pela Metafsica, o que nos parece tambm

    discutvel. Os dilogos intermedirios so considerados portadores da maieutica,

  • 22

    mas apresentam caractersticas prprias: a elaborao do caminho dialtico (isto

    , do complexo desenvolvimento platnico dos argumentos).

    A Repblica, no primeiro livro, seria desse tipo. Plato apresenta um local

    determinado, o porto do Pireu, uma situao especfica, o festejo para a deusa

    Bndis. Scrates foi ao festejo com Glauco e por l convidado por um amigo,

    Polemarco, para se juntar a outros amigos em sua casa, para o final do festejo

    que se prolongaria pela noite. Scrates aceita o convite e se encontra por l com

    vrios convidados e com o anfitrio da casa: Cfalo, pai de Polemarco, e entre os

    amigos esto mais dois que sero importantes para o dilogo: Trasmaco e

    Adimanto.

    Scrates trava uma conversa primeiramente com o ancio Cfalo, que

    expe o que ele, com o tempo e forma de vida que levou, acredita ser a justia

    (331 c): dizer a verdade e restituir o que se toma de algum. Havendo

    necessidade de continuar as libaes ao deus protetor da casa, Cfalo se afasta

    do dilogo e deixa seu filho Polemarco como herdeiro da conversa. Veremos que,

    num primeiro momento, o herdeiro segue a afirmao da justia deixada pelo pai,

    mas Scrates vai estimul-lo, segundo o dito do poeta Simnides (332a), quanto

    compreenso do ser justo restituir o que se deve, at que ele diga ser a justia

    (332d) dar ajuda aos amigos e prejuzo aos inimigos. Polemarco no consegue

    diferenciar amigos de inimigos para que possa agir da forma como ele prope,

    pois est habituado, conforme vai expondo, com a aparncia do significado ser

    amigo e inimigo. Isso dificulta, segundo Scrates, uma ao justa, j que no se

    sabe quem verdadeiramente amigo e inimigo em certas situaes. De forma

    impetuosa, adentra depois na conversa Trasmaco e quer dar sua definio de

    justia: (338c): no outra coisa seno a convenincia do mais forte, uma

  • 23

    afirmao a ser provada, pois o restante do Livro I procura saber se realmente

    essa a noo de justia. Por fim, e aps muitos embates entre Scrates e o

    sofista, este chega seguinte concluso:

    (...) tambm eu, antes de descobrir o que procurvamos primeiro o

    que a justia largando esse assunto, precipitei-me para

    examinar, a esse propsito, se ela era um vcio e ignorncia, ou

    sabedoria e virtude; depois, como surgisse novo argumento que

    mais vantajosa a injustia do que a justia no me abstive de

    passar daquele assunto para este; de tal maneira que da resultou

    agora para mim que nada fiquei a saber com esta discusso. Desde

    que no sei o que a justia, menos ainda saberei se se d o caso

    de ela ser uma virtude ou no, e se quem a possui ou no feliz.

    (354b-c)9

    Scrates fecha o Livro I em aporia, tal como ocorre no Lisis. Ora, a

    exposio classificatria dos dilogos serve de base para que alguns intrpretes

    os comparem e indiquem possveis problemas ou semelhanas existentes entre

    os textos de Plato. M. H. da R. Pereira10, na sua introduo traduo de A

    Repblica, pergunta se o Livro I seria independente dos outros, e que talvez, s

    mais tarde, teria sido retocado para servir de promio da Repblica. A tradutora

    tem como suporte a classificao cronolgica dos dilogos e observa a diferena

    de estilo e de vocabulrio do Livro I em comparao com os demais livros. Nos

    seus recolhimentos, aponta alguns pesquisadores, entre eles, Dmmler que notou

    a relao do Livro I com os primeiros dilogos e, por isso, denominou-o

    9 , , o , , , , , , | , , . (354 b c) 10 PEREIRA. M. H. da Rocha. Introduo. In Repblica. 8 Ed. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 1972, p.18.

  • 24

    Trasmaco, por ser o principal dialogador de Scrates no desenvolvimento. Se

    tomado em separado, pode ser considerado um livro socrtico, mas, se for

    analisado no conjunto, perde o sentido a separao, pois ali se encontra a matria

    necessria para a reflexo do restante da obra, tese que demonstraremos. No

    mais concordamos com o Szlezk11 quando afirma que:

    Se nos dilogos aporticos, depois de uma ampla investigao que

    resulta v, tambm no se alcana uma soluo na ltima tentativa,

    o leitor, a quem permanece oculto o sentido da singular

    perambulao, fica facilmente com a impresso de que o conjunto

    trabalho perdido ou, em todo caso, um promio demasiadamente

    extenso para o filosofar fecundo que, todavia, ainda fica por vir.

    Essa a impresso que nos deixam alguns interpretes quando se trata de A

    Repblica. I. M. Crombie,12 por seu lado, deixa de observar que Plato apresenta

    recolhimentos histricos do que seja a justia para, depois, retom-los na sua

    reflexo. Para ns, o Livro I abre para um leque de questes que sero ampliadas

    nos outros livros que seguem.

    Os personagens que expem sobre o que a justia, no incio, so

    representativos dos valores da cidade de Atenas, e o investigador tem que

    consider-los por esse vis, e devemos atentar para o que expe Vidal-Naquet13

    ao analisar as formas de pensamento na Grcia. Ele afirma que se deve atentar

    para o conjunto que compe a sociedade grega, suas representaes

    institucionais, polticas e sociais recolhidas nos textos literrios, histricos,

    filosficos, bem como nos relatos mticos e nas anlises descritivas, se se quiser

    11 Ob. Cit. pp.25-26. 12 CROMBIE, I. M. Anlisis de ls doctrinas de Platn: el hombre y la sociedad. Trad. Espaola de Ana Torn y Julio Csar Armero. Madrid: Alianza Editorial, 1990, pp. 85 a 97. 13 NAQUET-VIDAL, Pierre. Formas de pensamiento y formas de sociedad en el mundo griego. Trad. Marco-Aurelio Galmarini. Barcelona: Ediciones Pennsula, 1983, p. 12.

  • 25

    compreender melhor o pensamento dessa poca. Esse ngulo metodolgico

    acolhido na nossa investigao ao lermos o Livro I e ao apreciarmos seus

    personagens. Afirma o intrprete:

    Dificilmente escapa histria da civilizao um duplo problema.

    Uma primeira concepo faz dela uma sorte de anexos que

    compreenderiam, por sua vez, a arte, os costumes, os usos

    funerrios, a cozinha, em uma palavra, tudo o que no pertence

    histria poltica nem histria econmica e social, nem histria

    das idias. Uma segunda concepo deriva de uma tentativa

    inversa, ao postular que todos os feitos religiosos, artsticos, sociais,

    econmicos e mentais que se situam em uma mesma poca, em um

    mesmo grupo humano, tm entre eles vnculos especiais para

    construir um conjunto dotado de unidade e estrutura prprias, mais

    ou menos similares a um organismo vivo14.

    O autor cr que a primeira concepo dificulta a leitura e a interpretao de

    um texto quando recortado da poca e neutro interferncia dos acontecimentos

    que o rodeiam. Alm disso, se olharmos para os escritos como resultado de

    vrios fatores de uma poca - artstico, econmico, poltico e ideolgico -, eles

    tero uma riqueza de informaes quanto ao iderio no qual est mergulhado.

    Nesse sentido, a afirmao de Naquet considera que Plato, tendo vivido em uma

    poca politicamente conflituosa, quando Atenas se encontrava envolvida na

    guerra do Peloponeso e com problemas no s polticos, mas ticos e

    econmicos, registrados por loggrafos, poetas e cronistas de ento -, foi

    fortemente influenciado por ela ao criar personagens em situaes diferentes das

    que realmente viveram, conforme faz nos primeiros livros de A Repblica. Ele

    fara teatro nos dilogos, com algumas intenes que cabem a ns descobrir,

    14 Ibid., p.19.

  • 26

    ligando, na medida do possvel, a pergunta que feita a cada personagem e o

    que este responde, com o que de fato ocorreu historicamente.

    Devemos, pois, pensar Plato contextualizado, representante de sua poca

    e herdeiro de toda tradio cultural de Atenas dos sculos anteriores. No por

    acaso que seu modo de pensar e de escrever dialgico: como poeta trgico

    conheceu o teatro do sculo V a. C., quer as comdias, quer as tragdias que

    inauguraram um modo de escrita dialgica que, de algum modo, o inspirarou. Os

    textos de Sfocles ou Aristfanes,15 por exemplo, e a forma como apresentam

    seus personagens, que so figuras importantes para a cultura grega arcaica,

    demonstram um modo de expor semelhante ao usado por Plato: os poetas

    trgicos recolhem e discutem o ethos dos heris em dilogo usando a prpria

    narrao dos poetas, o filsofo faz o mesmo com a Atenas de seu tempo, ao

    dialogar com Scrates e outros personagens. Estes no so os conselheiros e

    coreutas do teatro trgico, mas algo deles h quando expem seus valores nas

    falas, e podemos dizer que fazem a intermediao necessria para o

    desenvolvimento do fio condutor que o filsofo pretende elaborar sobre uma

    pergunta inicial. Essa observao meramente exterior e formal, pois a forma

    dialgica platnica pretende algo bem diferente do que aconselhar, por isso

    to complexa.

    No texto trgico, por exemplo, um Agammnon ou uma Media personificam

    conflitos humanos enquanto heris e mantm suas identidades mticas. Ora,

    Plato recolhe, na histria de sua poca, figuras importantes que guardam

    relao com o que desenvolve no tema de um dilogo, como se quisesse revolver

    15 Plato aproxima-se tambm de caractersticas da comdia de Aristfanes, que se utiliza de figuras ainda vivas no contexto social de Atenas para expor suas ideias. Por exemplo, em As Nuvens, quando Aristfanes se utiliza da imagem de Scrates, que era seu contemporneo, para critic-lo.

  • 27

    o que se pensa na poca, maneira da tragdia. esse o argumento de

    Nettleship,16 para quem o filsofo escolhe vrios personagens reais, alguns

    contemporneos, outros no, e alguns homens pblicos ou amigos, e faz deles

    expositores de opinies sobre o contexto grego e as idias filosficas que se

    sustentam na cultura grega. Esses personagens realmente expem certos

    valores, que Plato precisa ressaltar e aprofundar ou modificar. Esse aspecto

    apontado por Scolnicov17, quando liga o personagem quilo que ele fala, ou seja,

    quem fala e como fala algo a ser apreciado com cuidado:

    Portanto, Scrates nunca examinaria proposies em si ss,

    desligadas de quem as props. Deixemos Grgias de lado, ele diz

    a Mnon, pois que no est aqui; diz-me, em vez, o que pensas tu

    que a virtude. Assim tambm, no Eutidemo, Scrates no

    responder antes que entenda qual seja o sentido que seu

    interlocutor d pergunta que faz. Nisso ele concorda, pelo menos

    primeira vista, com os dois sofistas, que palavras em si no tm

    sentido. So pessoas que do sentido s palavras, por meio de suas

    almas.

    A exposio de Scolnicov obriga-nos a alguns cuidados na leitura dos

    dilogos, ricos em personagens envolvidos na histria ateniense e, cada um, ao

    tentar definir para Scrates algo do tema proposto, mostra valores que constituem

    formas de viver ou percepes de mundo em acordo com a educao grega

    recebida desde o nascimento. desse modo que nos aproximaremos do texto

    platnico e seus personagens: com a determinao de verificar o que foi dito, por

    quem, em que local.

    16 NETTLESHIP, Richard Lewis. Lectures on the Republic of plato. New York: University Press of the Pacific, 1961, p.7. 17 SCOLNICOV, Samuel. Como ler um dilogo platnico. Hypnos, So Paulo: Edies Loyola, vol. 11, 2003, p 51.

  • 28

    2. Os personagens do livro I e II

    No Livro I, Cfalo, o primeiro personagem a ser apresentado, apresenta uma

    forma de vida baseada nos valores religiosos (ritos e mitos vigentes) e sua

    definio de justia segue a dos poetas aceitos por Atenas como educadores;

    Polemarco, o segundo, ao definir a justia como fazer bem aos amigos e mal aos

    inimigos, tambm apresenta uma tese da poca, proveniente da cultura grega

    mais prxima ao sculo IV a. C. e suas guerras; e Trasmaco que, segundo

    Plato, representante dos sofistas, defende a justia como a convenincia do

    mais forte e indica a prtica usada nos debates cvicos, caracterstica das

    assemblias pblicas e dos tribunais, em que o poder de persuaso prevalece

    para a vitria. J no Livro II, Glauco e Adimanto, co-irmos de Plato, questionam

    sobre a melhor forma de vida para o homem, se a do homem justo ou do

    injusto, em funo das discusses anteriores, pois ser injusto parece mais

    interessante do que ser justo.

    O que teriam de to importante esses personagens e suas definies de

    justia para o corpo terico de A Repblica? Cremos que eles servem como

    inspirao e suporte para Plato desenvolver sua cidade justa e pensar sua

    Paideia margem da vida histrica de ento, bem como para pensar que tipo de

    cidade tem potencial para educar de modo justo seus cidados. e no , para

    ele, Atenas. Cada uma das teses apresentadas traz consigo certo modelo de

    sociedade e educao que Plato resgata, em parte, para a sua cidade em logos,

    para auxili-lo em alguns aspectos.

    Se estivermos certos em nossas expectativas, consideramos que no

    mero acaso o local onde se d o incio do dilogo e a apresentao dos primeiros

  • 29

    personagens e seus pontos de vista: o Porto do Pireu que, alm de sua

    simbologia poltica que quer evidenciar Plato como lugar de conflitos

    enfrentados pela cidade de Atenas em vrias ocasies , o local em que

    habitam diversas etnias formadoras dos nomeados metecos, isto , estrangeiros

    que fazem parte da sociedade ateniense quanto aos deveres e no quanto aos

    direitos, como se sabe. Plato no poderia ter escolhido melhor lugar para pensar

    a justia, uma vez que, no Pireu, encontram-se homens diferentes que a se

    fixaram e aceitaram as leis gregas, havendo uma mistura de raas. Mais ainda,

    um porto de ida e vinda de gregos e no-gregos, de miscigenao de culturas e

    valores. No se trata, aqui, da amizade entre iguais, mas entre diferentes, ponto

    ao qual voltaremos mais adiante.

    Para Jaeger18, Plato pode, de um lado, dispensar o histrico ao edificar sua

    A Repblica; de outro lado, quer expandir sua cidade a todos os homens,

    negando as fronteiras em que vive. No entanto, se a cidade platnica no nasce

    de uma construo dada historicamente, o filsofo precisa das experincias

    histricas de governo para melhor desenvolver a sua plis, mesmo que esta se

    afaste muito de outras j conhecidas. Ento, Plato no parte de um povo

    histrico existente, como Atenas ou Esparta. Ainda quando se refere

    conscientemente s condies vigentes na Grcia, no se sente vinculado a um

    determinado torro nem a uma cidade determinada.19

    Os personagens do dilogo representam, portanto, ideais de vida e de

    justia que Plato no pode desprezar totalmente, mas que sero confrontados

    em nova estrutura aps debater com eles sobre a justia. No sem razo que

    Scrates afirma para seu companheiro de dilogo, Adimanto (377b), que, ao

    18 JAEGER, Werner. Paidia: a formao do homem grego. Trad. Arthur M. Parreira. 3 ed. So Paulo: Martins Fontes, 1994. 19 Op. Cit. p. 750.

  • 30

    investigar sobre o que a justia e o que uma cidade justa, preciso saber

    como educar, pois a Grcia tem o governo conforme educou seus cidados:

    Ento no sabes que, em todo o trabalho, o mais importante o

    comeo, principalmente quando se trata de jovens e de crianas de

    tenra idade? , sobretudo nesse momento que, na cidade, se

    modelado e se enterra (na alma) a marca (typos) que algum queira

    assinalar em cada um deles?20

    Assim, educao e justia esto juntas, no se educa nem se governa sem

    saber sobre o justo. Cada homem tem em si o registro de um modelo poltico e a

    concepo de justia que aprendeu durante a vida, desde cedo. A alma fica

    marcada pelo que lhe ensinado de modo que (367a):

    Se, portanto, todos vs falsseis assim desde o comeo, e nos

    persuadissem desde novos, no andaramos a guardar-nos uns aos

    outros para no praticarmos injustias, mas cada um seria o melhor

    guardio de si mesmo, com receio de coabitar com o maior dos

    males, se praticasse a injustia.21

    Lembremos que o filsofo, no Crton, demonstra a fora que as leis tm na

    formao dos homens. A preocupao a mesma. Descreve Scrates seguidor

    das normas da cidade e, nem por isso, internalizadas como sua prpria verdade e

    virtude, porque nele h o que Plato quer evidenciar e que no h nos cidados

    atenienses: o cuidado de si como conhecimento de sua alma. Quando ele se

    nega a fugir da sentena de morte do tribunal de Atenas, aceitando a lei externa

    como bom cidado, ressalta a tenso entre o que se entende como arete exterior

    e a sua prpria interior, a de seu daimon, no caso. A arete interna fica bem

    20 , / ; , . (377b) 21 || , , , . (367a)

  • 31

    marcada na Apologia, e, aps os juzes terem votado, lembremos que Scrates

    chama aqueles que votaram a seu favor e expe o momento vivido por ele no

    tribunal. Diz a eles:

    Passou-se hoje comigo, juzes o nome de juzes pertence-vos de

    pleno direito, uma coisa bem extraordinria. A minha voz proftica

    habitual, a voz da divindade, tem sido muito freqente em mim at

    ao presente, marcando a sua oposio, mesmo em pequenas

    coisas, sempre que me dispus a fazer o que no era bem. Agora,

    porm, que como vedes, me acontece o que se poder considerar e

    normalmente se considerar o maior dos males, nem ao sair de casa

    pela manh, nem quando subi a este tribunal, nem enquanto estive

    no uso da palavra, a voz divina me deteve. E no entanto, em muitas

    circunstncias, muitas vezes me interrompeu no meio dos meus

    discursos. Mas hoje, no decurso deste processo, no esboou a

    mnima oposio s minhas aes ou s minhas palavras. (40 b)

    Mesmo seguindo as leis, e as tradies que aprendeu em sua vida, como

    cidado grego educado, fica claro que algo h de novo em Scrates e que h

    regras novas para Plato refletir quanto s aes.

    3. Livro I: quem Cfalo?

    Quem Cfalo, quem esse ancio? Para responder a esta pergunta, h

    dois problemas: a existncia de dois Cfalos, um histrico e outro personagem de

    Plato. O que sabemos de Cfalo histrico que nasceu em Siracusa e viveu no

    Pireu como estrangeiro; morreu provavelmente em torno dos anos 420 a 415 a.C.

  • 32

    Esses so informes do famoso orador de Atenas em seus discursos, Lsias22, seu

    filho e irmo de Polemarco, conforme as historiadoras C. Moss23e Nails. 24

    Segundo C. Moss, 25 com a expanso comercial de Atenas e a construo

    do porto do Pireu, 26 Pricles, na segunda metade do sculo V a.C., d abertura

    aos comerciantes que ali se instalaram como metecos, recebendo em troca a

    proteo da cidade, e Cfalo teria chegado nessa poca. Complementando esses

    informes, Rocha Pereira27 comenta que ele foi convidado por Pricles para viver

    no porto e, pelas datas apontadas e comparando-as com a fase do governo de

    Pricles (460 a. C a 428 a.C.), Cfalo deve ter vivido de 30 a 35 anos no referido

    porto. Vivenciou parte da Guerra do Peloponeso (431 a.C. - 404 a.C.) e a morte

    de Pricles (428 a.C.). Com base no suposto ano de sua morte, no viveu at o

    final dessa guerra e, consequentemente, no presenciou a instalao do governo

    dos Trinta Tiranos,28 que marcou sua famlia pela morte do seu filho Polemarco e

    pelo exlio de seu outro filho, Lsias, o orador. Esses fatos so importantes, uma

    vez que Plato escolheu o pai e um dos filhos (Polemarco) como personagens do

    Livro I, exatamente para falarem sobre o que a justia.

    22 LYSIAS. Discours XII. Trad. Louis Genet, Paris : Belles Lettres,1955. 23 MOSS, Claude. Atenas: a histria de uma democracia. Trad. Joo Batista da Costa. Braslia: UnB, 1982. 24 NAILS, Debra. The people of Plato: a prosopography of plat and other Socratics, Cambrige: Ed. Hackett lpublishing Company.2002. 25 Op. cit., pp. 38 39. 26 Conforme Tucdides (sc. V. a.C.), na Histria da Guerra do Peloponeso, Livro I, 90, Temstocles foi o idealizador e autor do porto do Pireu. Complementando esse informe, Yvon Garlan, Guerra e economia na Grcia antiga, p. 122, comenta que o Porto do Pireu foi um dos primeiros trabalhos de fortificao na tica, decidido no momento das Guerras Mdicas, instigado por Temstocles, seu autor. Com a construo do porto, Atenas, em 482-481, desenvolve um vasto programa de construo naval que devia garantir o domnio dos mares no Mediterrneo oriental. 27 PEREIRA, Maria Helena da Rocha. Introduo. In: Repblica. 8 ed. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 1972, p.12. 28 Segundo o nosso recolhimento, Cfalo morre entre 420 a 415 a.C. Sobre a sua famlia, logo aps a sua morte, ocorre a execuo do seu filho Polemarco, em 404 a.C, no governo dos Trinta Tiranos, assim como o exlio do seu filho Lsias.

  • 33

    Homens ricos existiam muitos no Pireu, mas Cfalo foi um meteco

    perseguido politicamente, perdeu toda a fortuna que ali fez e teve famlia

    execrada, vindo a refazer-se mais tarde, com dificuldade. Foi, portanto, um

    homem seguidor das leis gregas, trabalhador, dono de fbrica de escudos que

    chegou a possuir cem escravos em sua propriedade instalada no porto do Pireu.

    Foi um bem sucedido meteco, portanto, e estes so dados teis para

    compreendermos o pensamento de Cfalo sobre o que a justia.

    Se Plato nasce em Atenas por volta de 427 a.C., e comparando sua data

    de nascimento com o tempo vivido por Cfalo no Pireu, o filsofo teria

    provavelmente entre 7 a 12 anos quando o meteco j era ancio em Atenas e,

    claro, no se encontrou com ele para dialogar. Essa uma caracterstica de

    Plato: usar personagens que julga importantes quanto a certos valores, levar em

    conta suas virtudes e aes e acrescentar o que necessita para o

    desenvolvimento da temtica proposta, teatralizando, como nas tragdias e

    comdias, independente de o personagem estar ou no vivo, ter existido ou no.

    Quanto ao incio do dilogo, sabemos que Scrates e Glauco esto nas

    comemoraes da deusa Bndis e vo at a casa de Cfalo a convite de

    Polemarco, como j adiantamos inicialmente. O prprio Cfalo l est, e Scrates

    o considera muito envelhecido (328c). Acabara ele de fazer um ritual de sacrifcio

    e estava com uma coroa de louros na cabea. Ora, o Cfalo de A Repblica, pai

    de Lsias, de Polemarco e de Eutidemo (330b), neto do primeiro Cfalo e filho

    de Lisnias. No Pireu, o ancio recebe Scrates como um velho amigo (328d) e

    ntimo da famlia, o que leva os comentadores a no separarem o personagem

    platnico do Cfalo histrico. Vegetti,29 quando descreve esse Cfalo enquanto

    29 VEGETTI, Mario. In: Platone. La Republica. Napolis: Bibliopolis, Vol. I, Livro I. 1998, p.134.

  • 34

    personagem, o expe como um rico meteco que teve os bens confiscados por

    Eraststenes:

    Cfalo tambm rico e dono de uma fbrica de escudos e tais so

    seus herdeiros, como mostra Lsias, fazendo um amargo relato dos

    bens subtrados a ele e Polemarco pelos emissrios dos Trinta

    Tiranos. Estes tinham de fato lhe confiscado setecentos escudos,

    prata e ouro em abundncia, cobre, jias, utenslios, vestes

    femininas muita mais de quanto esperariam um dia possuir e,

    sobretudo cento e vinte escravos, dos quais tinham ficado para si os

    melhores, deixando o restante para o tesouro.

    O que observamos a no preocupao em distinguir o ancio personagem

    do histrico em nenhum momento da interpretao do Livro I, mas seria bom

    faz-lo porque o importante saber o contexto em que o filsofo o coloca para

    que responda o que a justia. E a resposta de Cfalo, espantosamente, no

    deixa de ser, logo no incio de A Repblica, uma primeira mentira nobre do

    filsofo, pois o prprio Plato quem coloca na boca do Cfalo-personagem o

    que ele talvez jamais tenha dito em vida, ou seja:

    [...] na medida em que vo definhando para mim os prazeres do

    corpo, nessa mesma medida aumentam os desejos e os prazeres da

    conversa. No deixes de estar na companhia destes jovens, mas

    vem tambm aqui nossa casa, como a casa de amigos, e de

    amigos muito ntimos (328 d). 30

    Essa fala ter ressonncia na colocao platnica sobre a justia no

    decorrer da obra. Ele marcar, nitidamente, a importncia da amizade (philia) na

    vida dos homens, noo que o fundamento para uma cidade justa. 30 , . , , , . (328d)

  • 35

    Na sequncia da conversa, Cfalo trata de situaes aparentemente

    corriqueiras do dia-a-dia e, no seu caso especfico, da velhice e do carter que

    cada um apresenta durante sua vida. Ao expressar algo sobre a velhice e a

    amizade, que diz ser importante a todas as pessoas, aponta duas questes: a dos

    desejos fsicos que tomam conta, na juventude, e a do desejo de conversas, mais

    presente conforme o homem vai envelhecendo. Como um homem vivido, sabe

    bem disso. Nesta colocao de Plato pela voz de Cfalo, temos uma tese em

    nada desprezvel, que ser retomada em livros posteriores de A Repblica,

    principalmente no Livro VIII. Sabe-se, ainda, que Scrates procura estar sempre

    junto aos jovens para dialogar, sinal de que h algo prazeroso para a filosofia

    nesse contato com os poucos experientes na vida, porm a conversa entre os

    mais velhos, quando os desejos imediatos j esto arrefecidos, interessa a Plato

    principalmente tambm no Livro IX, ao tratar da tirania e da fora dos prazeres

    para o transtorno da alma, o que, em Cfalo, no ocorre. Desejos exacerbados e

    tirania esto prximos, de modo que o fato de Cfalo ter prazer nas conversas e

    tranquilidade nos desejos um valor de suma importncia. Scrates afirma na

    conversa que:

    Eu tambm me comprazo bastante, Cfalo, respondi, em dialogar

    com pessoas de idade avanada. Sempre achei que me podem

    dizer como o caminho por eles percorrido e que ns tambm talvez

    tenhamos de vencer; irregular e penoso, ou fcil e de boa sada para

    partilhar? (328e). 31

    Por tal condio, cremos no ser ingnua a colocao de Cfalo e sua tese,

    que costuma ser apontada como excessivamente simplria (talvez porque no

    31 , , , | , , , , . (328e)

  • 36

    seja argumentativa), e no entanto, no de forma alguma idesprezvel. N.

    Pappas,32 ao analis-la, e apesar de consider-la muito ampla, diz que no se

    deve esperar um discernimento apurado de Cfalo sobre a justia, pois ele

    apenas apresenta o que absorveu do contexto social como forma de agir

    corretamente, mas incapaz de responder ao porqu da sua ao. No nos

    parece pouco o que diz Cfalo, e achamos esse dizer do ancio uma boa forma

    de viver a partir de toda a tradio educadora mtico-potica, que fundamenta os

    valores da aristocracia arcaica ainda vigente no ethos grego e que no desgosta a

    Plato. Considerar irrelevante a fala de Cfalo no inseri-lo no conjunto de A

    Repblica, pois a vivncia da diferena entre os desejos e o carter (ethos) j

    seria um bom motivo para no tom-lo por simplrio.

    Vrias caractersticas de Cfalo so apontadas nesse primeiro momento:

    sua debilidade fsica, sua impossibilidade de locomoo para lugares que exijam

    grande esforo, o arrefecimento dos prazeres fsicos e o aumento do prazer de

    conversar, como foi dito. Tudo isso uma imposio da prpria natureza aos

    homens ou, melhor dizendo, de forma mtico-potica, o que a Moira d aos

    homens. Lembremo-nos da narrao de Hesodo,33 de que a velhice seria mais

    uma das mazelas da Raa de ferro. No entanto, a velhice que recolhe a

    sabedoria acumulada com o passar do tempo, e se, de um lado, a juventude tem

    a fora fsica e os desejos abundantes, a velhice pode ter a sabedoria que o

    tempo lhe d e a tranquilidade do mpeto, algo que interessa filosofia e regra

    do nada em excesso.

    interessante apontar que esse despreendimento dos prazeres do corpo,

    que so naturais na velhice, um dos requisitos da ascese filosfica platnica,

    32 PAPPAS, Nickolas. A Repblica de Plato. Trad. Ablio Queiroz. Lisboa: Edies 70, 1995. 33 HESODO. Os trabalhos e os dias. Trad. Mary de Camargo Neves Lafer. So Paulo: Iluminuras, 1996, vv170- 200.

  • 37

    como revela o prprio filsofo, no Fdon, ao tratar da imagem da alma e sua

    queda na nsia para vislumbrar as verdades (248b-c): A causa que atrai as

    almas para a contemplao da Verdade consiste em que s ali encontram o

    alimento que as pode satisfazer inteiramente, desenvolver as asas, esse alimento

    que, enfim, liberta as almas das terrenas paixes.

    No entanto, e quanto idade avanada dos homens e suas possibilidades

    de virtude dentro da perspectiva filosfica, a tradio homrica no pensa assim e

    se abre para duas leituras possveis dos intrpretes: uma positiva, quando aponta

    para a velhice como um momento em que os homens j acumularam sabedoria

    com o tempo; e outra negativa, quando se refere perda da arete guerreira.

    Comenta Moss34:

    Com efeito, os ancios, queles que, por fora da idade, j no

    participam no combate, tm um outro papel a desempenhar. Tendo

    escapado morte gloriosa, eles passam a colocar a sua sabedoria a

    servio da comunidade. No obstante, mesmo entre os guerreiros,

    d-se tambm o caso de haver alguns que se destacam mais pelo

    sua clarividncia que pelo valor no campo de batalha.

    Ao superarem as vrias batalhas, muitos passavam a fazer parte dos

    conselhos estabelecidos nas cidades e muitos eram grandes lderes nos

    combates. No campo de batalha, o exemplo de Nestor, rei de Pilos, que serve de

    grande conselheiro, apresentado como velho sbio, participante de vrios

    combates, por isso pode aconselhar os novos guerreiros que esto contra Tria.

    Ao conversar com Agamenon, no canto IV (Ilada. VV. 310 a 321), este canta

    sobre a valentia e a sabedoria adquirida com o tempo de Nestor, mas reconhece

    o peso da velhice:

    34 MOSS, Claude. A Grcia arcaica de Homero Esquilo. Lisboa : Edies 70, 1987, p.49.

  • 38

    Tira (Nestor) da antiga experincia o saber com que inflama os seus

    homens. Vendo-o, exultante se mostra Agamenon, rei poderoso, e,

    aproximando-se dele, lhe diz as palavras aladas: Se conservasses,

    velho, nos membros a antiga energia e agilidade dos joelhos, tal

    como a coragem conserva! Mas a velhice, que a todos oprime, em ti

    pesa. Quem dera que passasses para outro, deixando-te moo de

    novo! Disse-lhe, ento, o gernio Nestor, condutor de cavalos: Eu

    prprio, filho de Atreu, desejara de novo encontrar-me com o vigor

    daquela poca, quando privei da existncia Ereutalio. Mas os

    deuses nem tudo aos humanos concedem. Era, ento moo; mas

    ora a velhice nos ombros me pesa.

    Nem tudo os deuses permitem aos homens e, quando possibilitam a fora

    para a guerra, retiram a experincia que vem com a idade. Essa uma

    notoriedade da velhice, ter o poder para evocar o passado, tal como faz Nestor,

    para legitimar um pouco o ser velho. Alm dos sbios com estirpe guerreira,

    existem outros velhos sbios que no se utilizam desse tipo de sabedoria blica,

    mas, por terem uma linhagem divina, sabem falar de fatos presentes, passados e

    futuros. o caso dos adivinhos Tirsias e Calcas, cuja velhice lhes deu respeito

    e reverncias que s a idade d. Alm dessas duas funes, os conselhos das

    cidades eram formados por ancios ouvidos nos momentos mais difceis, quando

    da deliberao sobre problemas que envolvessem a segurana da cidade. Ainda

    mais, cabiam aos ancios os rituais familiares e pblicos. Essa idia de que a

    idade d certas capacidades importantes no abandonada por Plato. Tanto

    que ele cria uma escola crescente para a formao dos homens na cidade justa

    de acordo com a idade, e seu processo pedaggico, quando da formao

    estamentos da sua A Repblica, levar em conta o amadurecimento de cada um.

    Somente lembramos, por agora, que um filsofo no poder ser jovem, questo

    que abordada nos livros VI e VII que no analizaremos.

  • 39

    Perseguindo um pouco mais a questo da velhice do ngulo dos valores

    arcaicos, vemos que o ncleo est no desgaste do corpo, algo muito negativo

    para quem tem arete guerreira. As interpretaes sugerem35 que, na poesia de

    Homero - cujos valores educam o cidado grego e estruturam a memria de sua

    raa , o modelo de virtude est nos deuses, e a relao mundo humano e

    mortal com o mundo divino e imortal inalcanvel. A velhice aparece, segundo

    Vernant, 36 de modo negativo, porque o corpo velho no tem vitalidade, no tem

    aret guerreira. Na Ilada (XXII v. 60, 65), quando Pramo, rei de Tria, sente-se

    sem fora fsica para defender o filho Heitor -que trava combate com Aquiles, e

    sabendo o rei que o Pelida desejava vingar a morte do seu melhor amigo,

    Ptroclo (executado em batalha pelo prncipe troiano -, v-se sem o impulso da

    juventude, s lhe restando o desespero. H a ira e o vigor guerreiro do filho de

    Ttis, que se abate sobre Heitor, e h o corpo envelhecido do rei e pai, sem fora

    fsica para agir a favor do filho. Virilidade de um lado; decrepitude, de outro.

    Diante de tal situao, lamenta-se Pramo a Zeus:

    Na extrema velhice quer Zeus que eu morra de uma sorte

    amarga, aps ter visto muitssimas maldades: filhos trucidados,

    filhas raptadas, tlamos vilipendiados, crianas, na turbamulta,

    esmagadas na terra; noras, por mos aquias, funestas

    seqestradas. (XXII v. 60, 65) 37

    Pramo expe a dor da perda dos filhos em consequncia da idade, pois no

    mais portador da arete guerreira e do vigor para gerar filhos, seu lamento vai

    dirigido a Zeus como pai de tantas divindades. O poeta tambm faz referncia

    35 Ver : VERNANT, Jean-Pierre. Mortal and Immortals. LORAUX, Nicole. Linvention dAthnes: Histoire de loraison fnebre dans la cit classique. Paris : Civilisations et Socits 65, 1981. GAZOLLA, Rachel. Bela morte, boa morte. I Curso livre de humanidades. Abril, DvD, 2002. 36 Op. Cit. 37 , , , , ,

  • 40

    velhice na Ilada (Canto XXIV), logo aps a morte de Heitor. Morto o prncipe

    troiano, Aquiles, tomado pela clera, arrasta seu corpo e nega-se a entregar o

    cadver para a execuo dos ritos fnebres. Essa atitude causa problemas entre

    as divindades, sendo necessrio a Zeus solicitar a presena de Ttis, me do

    semidivino Pelida, para aconselh-lo a devolver o cadver a Pramo e para que se

    realize o ritual de passagem ao Hades. Ao entrar na tenda do semidivino, Pramo

    causa espanto a todos que l se encontram ao fazer sua lamentao ao filho da

    divina Ttis. Suplica Pramo a Aquiles:

    Lembra-te, Aquiles, igual a um dos deuses, teu pai venervel da

    mesma idade que a minha e, portanto, como eu, assim, velho.

    bem possvel que estejas cercado por fortes vizinhos, cheios de

    angstia, sem ter quem lhe sirva de amparo e defesa; mas, s de

    ouvir que ests vivo alegria indizvel lhe invade o corao, dia a dia

    esperando poder ante os olhos ter a figura do filho glorioso, de volta

    de Tria. (XXIV - vv. 486 a 495) 38

    Com a idade, perde-se a fora fsica e, junto com isso, chegam o medo e a

    insegurana, de modo que os inimigos se tornam mais fortes e, de alguma forma,

    os ancios necessitaro de proteo. Isso o que se passa com o rei de Tria

    com a perda do filho: fica vulnervel. Para uma sociedade guerreira, a velhice

    problemtica por isso.

    Ora, a mudana de postura apresentada com o personagem Cfalo digna

    de nota e por isso interessa a leitura do Livro I para o restante da obra. Plato

    est longe dessa sociedade homrica, mas esses valores arcaicos impregnam os

    habitantes de Atenas, provenientes que so dos poetas educadores, so

    paradigmas da formao grega. O filsofo recolhe esses valores tradicionais, quer 38 , , , . ,

  • 41

    lhes dando sentido positivo, quer o negativo, para us-los em sua nova polis justa

    de outro modo que, como veremos, ter parcialmente fundamento em valores

    guerreiros no seu segundo estamento, porm remodelado.

    A guerra pode dar-se em palavras ou em efetivo campo de batalha, sabe

    bem Plato, e Cfalo a amostra da necessidade do prazer da conversa entre

    outros prazeres a manter, sem stasis. Quanto figura do guardio-guerreiro

    (phylakos), a reestruturao do ideal dos guerreiros arcaicos. Como se sabe,

    Esparta, por ser uma cidade guerreira, organizada militarmente, com certeza, o

    modelo de organizao inspirou Plato para sua cidade justa, o segundo

    estamento como veremos. Entre as caractersticas da sociedade espartana,

    estava a de formar um Conselho de ancios, conhecido como Gersia. Esses

    conselheiros resultavam de um processo de vida militar, e com a idade, adquiriam

    experincias necessrias para deliberarem sobre assuntos internos e externos da

    comunidade. Esse era um conhecimento construdo com o tempo. Seus

    membros, por sua vez, eram os dois reis e mais vinte e oito cidados com mais

    de sessenta anos, liberados das obrigaes militares. Eram vitalcios e eleitos de

    forma a preencherem as qualidades determinadas pelo conselho: seriam os

    melhores e os mais sbios entre os seus compatriotas militares. Essa era a

    exigncia para que pudessem exercer a funo de conselheiros, na preparao

    dos projetos de lei a serem votados pela assemblia, que funcionava como

    tribunal para a justia criminal. Esse modelo no se afasta muito daquele pensado

    por Plato, o que muda o fundamento de cada cidade quanto ao que se define

    como justia.

    Plato, ao nos colocar diante de um ancio, quer nos lembrar que devemos

    ouvi-los. Com a idade a fora tomada do homem pelos deuses, mas, para no

  • 42

    deix-los desamparados, deixam com eles a sabedoria. Esse mesmo percurso o

    filsofo faz ao formar as classes do governo justo. Antes, os governantes servem

    na classe dos guerreiros e depois, ao demonstrarem sua sabedoria atravs da

    sua formao especfica, j estabelecidos no processo pedaggico da cidade

    justa e mais envelhecidos, podero exercer a funo de governantes se educados

    como filsofos. Quanto a educao mais antiga dos gregos, parece unanimidade

    entre os comentadores que Cfalo seu o herdeiro na afirmao de pagar o que

    se deve e ter tranquilidade ao final da vida com receios quanto ao Hades.

    Para Strauss, 39 Cfalo aponta o problema da velhice e, ao mesmo tempo,

    um modelo de decncia ao seguir as regras da cidade. Quando Scrates (328e) o

    questiona quanto ao que sente no limiar da velhice, se o percurso foi custoso e o

    que ele teria a dizer a seus iguais (329a-c), Cfalo afirma (329d) que no a

    idade que faz a pessoa infeliz, mas a disposio do carter de cada um, tanto na

    juventude quanto na velhice. Ora, a disposio do carter ser nuclear em uma

    sociedade organizada de acordo com as potencialidades da alma de cada um,

    como quer Plato: educar pessoas com desejos diferentes e tendncias diversas

    que tm que viver de forma harmnica numa cidade, apesar de as condies

    fsico-psquicas serem to diversas.

    Na viso de Crombie,40 Cfalo feliz. De tempos em tempos, surgem

    homens de temperamento feliz como ele, que so sbrios, poucos e livres da

    tentao de tratar injustamente os demais. Esse o momento em que Plato,

    segundo o intrprete, usa o personagem para apontar a satisfao e o domnio

    dos desejos, uma vez que na busca dos prazeres sem limites que se encontra a

    causa das rivalidades e da injustia. Considera Crombie que os escrpulos morais

    39 STRAUSS, Leo et alli. History of Political Philosophy. 3 ed. London: The University Chicago Press,1987. 40 CROMBIE, I. M. Anlisis de las doctrinas de Platn. Madrid: Alianza editorial, 1999, p.86.

  • 43

    no so suficientes para impedir os homens de buscarem a realizao dos seus

    interesses, sem se submeterem disciplina necessria, e as leis devem servir

    para isso. Ademais, uma das possibilidades para se pensar o bom governante

    que s homens maduros, que percorreram a vida aprendendo firmemente certas

    regras, podem fazer bons governos, modelo que de algum modo est sinalizado,

    em parte, em Cfalo: uma espcie de oligarquia por idade e sabedoria, como

    pretende ser o Conselho dos Ancios arcaicamente, conforme explicitamos

    acima.

    Ademais, Cfalo propicia a pergunta sobre o que estimula tanto os homens a

    desejarem coisas oferecidas na cidade, e sabe-se que o primeiro modelo da

    cidade platnica dispensa as riquezas (369 a 372 d), o que abordaremos

    adiante. Os cidados no devero produzir apenas para o gasto, mas tudo ser

    em quantidade e variedade suficientes para atender aqueles a quem se deve

    suprir as necessidades (371 a). 41

    Em 329 e, Cfalo diz que seus haveres ajudam a suportar a velhice, j que

    um homem rico, mas no so s os bens a causa, mas sim, e principalmente, o

    carter (ethos). O que ele possui dependeu de sua atitude diante da herana

    deixada por seu pai, que a tinha herdado tambm do pai. O pai de Cfalo perdeu

    sua herana em boa parte, mas a atitude do filho provocou novamente o seu

    crescimento, possibilitando tranqilidade ao seguir o valor familiar e atingir o que

    a famlia necessita para o sustento e velhice confortvel. O fio que Plato semeia

    nessa fala reaparecer no Livro VIII, como j apontamos, quando mostrada a

    marca originria que os pais deixam nos filhos ao educarem e as consequncias

    para o futuro da prpria cidade.

    41 , . (371 a)

  • 44

    Sabendo que, para o homem grego, grande honra conservar ou ampliar o

    que herdado, os bens acumulados no s refletem o bem-estar da famlia, mas

    o da prpria cidade e Cfalo excelente nesse aspecto. Lembremos que

    Tucdides,42 ao recolher o discurso de Pricles aos mortos quando do combate do

    Peloponeso, conta que o general recordou os antepassados e suas honras,

    corroborando a importncia da famlia e do passado na educao grega de ento.

    Diz Tucdides:

    Se eles (os antepassados) so dignos de elogios, nossos pais o so

    ainda mais, pois aumentaram a herana recebida, construram o

    imprio que agora possumos e a duras penas nos deixaram este

    legado, a ns que estamos aqui e temos.

    No entanto, J. Annas,43 em seus comentrios sobre A Repblica, olha de

    forma desprezvel a figura de Cfalo, pelo fato de ser ele um homem rico que

    dedicou a vida ao ganho de dinheiro no porto do Pireu. Afirma a intrprete:

    Cfalo um homem que escolheu consagrar sua vida ao ganho do

    dinheiro vivendo em uma cidade estrangeira, renunciando a todos os

    direitos, deveres e atividades de um cidado, coisas de importncia

    vital aos olhos dos gregos e para o respeito de si mesmo.

    necessrio reavaliar tal colocao, talvez ideolgica e projetiva quanto ao

    desprezo dos bens crematsticos, pois, mesmo sendo um homem rico, o que no

    negativo em si, Cfalo tem valor importante como pretendido por Plato ao

    coloc-lo no incio do livro I. Afinal, ele parte do suporte da cidade para a

    realizao de desejos bsicos como a alimentao, a habitao e vestimentas,

    quando necessrio a moeda, e seguindo as exigncias do Livro II quando de

    uma cidade mais complexa, a pedido de Glauco, o ethos de Cfalo pode ser bem

    42 TUCDIDES. Histria da guerra do peloponeso. Trad. Mrio da Gama Curi. 3 ed. Braslia: UnB, 1999, Livro II. 36. 43 ANNAS, Julia. Introduction la Republique de Platon. Paris: PUF. 1981. p. 28.

  • 45

    recebido. Talvez Annas esteja em ngulo anacrnico para tal afirmao. Se, para

    Cfalo, a qualidade da justia consiste (331 c) na verdade e em restituir aquilo

    que recebemos,44 isso no em nada desprezvel, e notemos que essa fala de

    um meteco, mas poderia ser de um grego. A riqueza secundria nesse

    contexto; o carter primrio; a sophrosyne subjaz como seu modelo.

    4. A lgica do discurso de Cfalo

    Com mais detalhe o dilogo entre Scrates e Cfalo, ele se organiza da

    seguinte forma: num primeiro momento, descrito o espao onde vai se dar o

    dilogo, no porto do Pireu, mais precisamente na casa de Cfalo; para, em

    seguida, notar que Scrates v o anfitrio envelhecido, libando ao deus protetor

    da casa e, finalmente, apresenta-se o gosto da conversa entre amigos. Em 329 a-

    d, Cfalo coloca o que alguns ancios pensam das vantagens e desvantagens da

    velhice e, desejoso de ouvi-lo, Scrates sutilmente pergunta: (329e) receio que a

    maioria dos homens no concorde com o que acabaste de dizer (quanto ao uso

    da riqueza, que no to vantajoso quanto se pensa). Para o ancio, no

    importam ricos ou pobres, pois todos se lamentam, ao final, por terem levado uma

    vida desregrada, e ele, no caso, homem moderado, fez desse final um fardo

    suportvel. Se muitos forem os homens com carter no excessivo, podemos

    imaginar uma cidade organizada do mesmo modo. Seria uma cidade justa?

    possvel, numa resposta margem dos argumentos, pois a moderao que

    impulsiona tal cidade.

    Scrates quer, ainda, saber como os indivduos se relacionam com a riqueza

    de acordo com a forma como a adquiriram, uns por esforo prprio e outros por 44 , (331 c)

  • 46

    doaes, o que muda o modo de atuar. Cfalo , ao mesmo tempo, herdeiro e

    trabalhador, recebeu com facilidade, perdeu e trabalhou para obter. Para

    Scrates, de acordo com a aquisio dos bens, os que tm de construir fortuna

    so duplamente afeioados riqueza, fato que leva a perguntar (330d): ...No teu

    modo de pensar, qual foi a maior vantagem que te proporcionou a riqueza?

    Cfalo responde que alguns homens, quando chegam idade avanada, pensam

    na vida que levaram e a conscincia os atormenta pelos atos cometidos, por

    medo do Hades. Para ele, a vantagem deixar a vida sem receio de ter mentido,

    mesmo involuntariamente, e por no dever sacrifcios aos deuses nem dinheiro a

    ningum. Essa a forma de ser justo (331d): falar a verdade e restituir o que se

    recebe, como foi dito. Alongando as perguntas, Scrates quer saber de alguma

    circunstncia em que se pode restituir algo devido a algum de acordo com

    situaes especficas, pois isso pode ser um ato justo ou injusto, por exemplo, se

    devemos dinheiro a uma pessoa que quer us-lo para matar algum. Cfalo se

    afasta sem prolongar a conversa, para terminar seu ritual a Zeus, e seu herdeiro,

    Polemarco, segue na conversa.

    5. Quem Polemarco?

    Scrates parteiro conduz, agora, Polemarco reflexo sobre o que a

    justia, no como seu pai lhe ensinou, mas o que ele mesmo pensa a respeito.

    Polemarco carrega a duplicidade de ser um modelo dramtico e uma figura

    histrica: filho de Cfalo e irmo de Lsias, 45 como foi dito. No temos a data de

    45 LYSIAS. Discours XII. Trad. Louis Gernet et Marcel Bizos. Paris : Les Belles Lettres.

  • 47

    seu nascimento, e, segundo levantamento de Nails,46 provavelmente nasceu em

    Siracusa. Como filho mais velho, era o guardio temporrio dos seus irmos,

    Lsias e Eutidemo. O problema central que o envolve narrado por seu irmo

    Lsias,47 considerado excelente loggrafo ateniense: Polemarco foi morto logo

    aps a guerra do Peloponeso, quando da derrota de Atenas em 404 a.C, e sua

    submisso ao poderio espartano pelo governo composto de trinta dirigentes

    escolhidos entre representantes da oligarquia grega, a nomeada Tirania dos

    Trinta. Crombie48 expe que esse momento poltico marca profundamente a vida

    de Plato, que teve nele dois parentes envolvidos: Crmides e Crtias, ambos

    discpulos de Scrates. Nessa poca, Plato, provavelmente, teria vinte anos e,

    apesar de convidado a participar desse governo, no aceitou, por no concordar

    com a forma utilizada pela aristocracia dirigente, a qual usava do poder para

    perseguir os dissidentes.

    Moss49 indica que o Governo dos Trinta, que exilou Lisias e confiscou os

    bens de Cfalo, foi responsvel pela instalao do terror em Atenas. Seus

    participantes no tinham escrpulos: matavam cidados atenienses para adquirir

    seus bens e, at mesmo, para eliminar os que tivessem algum prestgio perante a

    populao. Entre os cidados perseguidos e mortos est exatamente Polemarco.

    A ocorrncia de sua morte encontra-se no discurso XII, de Lsias, intitulado

    Contra Eraststenes, em que ele apresenta o processo de perseguio e aponta

    Eraststenes como aquele que prendeu seu irmo. Plato coloca tal cenografia e

    46 NAILS, Debra. The people of Plato. A prosopography of plato and other Socratics. Cambridge: Hackett lpublishing Company. 47 LYSIAS. Discours XII. 48 CROMBIE, I. M. Anlise de ls doctrinas de Platn: el hombre y la sociedad. Madrid, Alianza Universidad, 1990, pp. 13 a 20. 49 MOSS, Claude. Atenas: a histria de uma democracia. Trad. Joo B. da Costa, Braslia: UnB, 1982, p. 54.

  • 48

    inserie Polemarco como personagem no sem razo num dilogo que estrutura

    uma cidade justa e pergunta sobre a justia.

    Polemarco aparece no passo 327b do Livro I, apresentado como herdeiro

    familiar (kleronomos), primognito, tambm para seguir com as perguntas e

    respostas a Scrates (331 d). Herdeiro de fato de Cfalo, das riquezas materiais e

    dos valores educacionais que recebeu de seu pai, agora, herdeiro na

    coversao. Algumas colocaes destas passagens sero reapresentadas no

    livro IV, quando Scrates faz referncia aos filhos gerados pelos governantes,

    guardies ou artesos e indica que eles no sero herdeiros por gerao, mas

    sero filhos da cidade, o que comentaremos. Pela via das potncias anmicas o

    ngulo se modifica do Livro I ao IV, de modo que a paternidade e a herana

    paterna no esto em jogo pelo sangue, ou leis civis, mas pela alma. Em (423 c -

    d):

    Menos importante, ainda, lhe disse, a de que falamos h pouco, ao

    afirmar que seria preciso transferir para outras classes os filhos dos

    guardas que por ventura se revelassem inferiores, e o inverso

    passar para a classe dos guardas os filhos bem gerados das outras

    duas. Com isso tinha em mira demonstrar que tambm com

    referncia aos demais cidados ser preciso que cada um exera

    uma nica atividade, aquela para que for naturalmente indicado; s

    dessa maneira que o cidado pertence nico, no mltiplo, com o

    que lucra a prpria cidade, que no se multiplica, porm, se mantm

    indivisa.50

    50 , , , , , , / , . , , , , , , . (423c-d)

  • 49

    Plato afasta-se, assim, dos problemas histricos pelos quais Atenas passou

    durante o conflito com Esparta - quando houve a peste que matou muitos

    atenienses, entre eles Pricles -, para focalizar outro solo, o propriamente

    reflexivo, no Livro IV. Lembremos que, naquele perodo da peste, alguns dormiam

    pobres e amanheciam ricos devido s mortes pela doena, o que levou a

    populao a um estado desenfreado de desejos de realizao dos prazeres

    imediatos, pois no se sabia at quando uma pessoa continuaria viva. Ora, como

    abordaremos, na cidade criada em logos, os bens so da prpria cidade e devem

    ser utilizados em benefcio de todos, e para que isso ocorra, necessrio que

    cada um exera uma s funo, de acordo com a potncia existente na alma que

    mais lhe respeite por natureza (423d) e que foi aperfeioada por educao. de

    se estranhar, portanto, que os comentadores tenham dificuldades em apresentar

    as relaes entre o Livro I e o restante de A Repblica. Como a colocao de

    Cfalo, tambm de Polemarco ser retornada de modo sutil por Plato nos livros

    que se seguiro.

    Plato vivenciou esses conflitos histricos e tinha em mente que a riqueza e

    a pobreza so causas de grandes males (421d 422a), tanto para os homens

    quanto para a cidade, de modo que buscar a soluo desse tipo de conflito ao

    estruturar a cidade justa, dispondo dos bens produzidos para que todos deles

    usufruam e no se deixem arrastar para o desejo de acumulao pessoal. Se

    Cfalo serve como bom modelo num primeiro momento, por ser portador da

    virtude produtiva e familiar, qual ser o valor da tese de Polemarco?

    Ao expor a sua tese (332d), de que a justia fazer bem aos amigos e mal

    aos inimigos,51 Polemarco apresenta exatamente a viso e funo do guardio da

    cidade justa, do segundo estamento da cidade justa, como veremos no segundo 51 ; (332d)

  • 50

    captulo da nossa investigao. De forma bem mais elaborada, essa funo exige

    do guardio o saber sobre a distino entre opostos: amigos e inimigos e, para

    isso, Plato acrescenta s qualidades psquicas desse segundo estamento

    tambm a disposio filosfica. Assim, poder o guardio atuar tanto dentro da

    cidade quanto fora dela. Desse modo, a cidade justa acolhe a tese de Polemarco,

    como veremos no momento em que demonstrarmos seu o resgate um pouco

    mais frente.

    6. O discurso de Polemarco e sua arete

    Ao assumir a conversa, Polemarco defender o que foi ensinado por

    Simnides (331e), que justo restituir a cada um o que se deve.52 Scrates

    questiona-o se sua colocao realmente a mesma do poeta, e ressalva que os

    poetas se expressam de forma enigmtica (332c):

    Por conseguinte, disse eu, Simnides falou ao que nos parece,

    enigmaticamente, maneira dos poetas, ao dizer o que era a justia.

    O pensamento dele era, aparentemente, que a justia consistia em

    restituir a cada um o que lhe convm, e a isso chamou ele restituir o

    que devido.53

    O problema da afirmao de Polemarco, respaldado no ensinamento do

    poeta, com relao restituio (apodidonai) se a justia o ato de restituir o

    que devido, deve ser feita no momento em que, aquele ressarcido, goze de

    harmonia racional, caso contrrio no se deve fazer tal ao, pois o ato de ser

    ressarcido tem implicaes ticas que devem ser levadas em conta. Ser justo no

    52 , , , (331e) 53 , , , , / , , , . (332c)

  • 51

    um ato aleatrio, ou mecnico, mas um ato educativo para o correto, na medida

    que leve a ao a ser a mais bela possvel. Nessa lgica de dar o que devido

    numa justa medida e da forma correta, Scrates conduz o dilogo com o filho de

    Cfalo para o uso da tcnica, para demonstrar que o ato de restituir deve ser

    sempre visando ao bem.

    Poderamos continuar a expor a lgica, da conversa, a maieutica socrtica,

    entre esses dois personagens, mas Plato aponta para um problema que, a

    nosso ver, retomar no Livro VIII: qual o homem que age no governo privado da

    prpria razo, ou que a tenha em desarmonia? Pelo que exposto, parece-nos

    que essa a marca psquica da decadncia da cidadadnia e a construo da

    figura dodo tirano: por estar privado do uso da razo principalmente o democrata

    e o tirano quer tudo em tudo para a realizao de seus desejos desmedidos. Aqui,

    s apontamos para o problema que desenvolveremos no ltimo captulo, quando

    falarmos da Democracia. Retornamos tese de Polemarco, que necessitar de

    explicao sobre a quem se deve restituir e como.

    Segundo o uso das tcnicas, Scrates (33e c) cria um dilogo imaginrio

    com Simnides para perguntar ao poeta se o ato da medicina, enquanto uma

    techne (de dar o que devido e conveniente ao doente) no seria dar os

    remdios, a comida e a bebida devida a cada corpo, do mesmo modo para a

    culinria, dar aos alimentos os temperos necessrios. Isto aceito, fica difcil para

    Polemarco, ao tratar da justia e da injustia enquanto tcnica, de dbito e

    crdito, pois ser justo no pode ser fazer bem aos amigos e mal aos inimigos,

    pois toda tcnica d o que devido a quem devido, e a justia no comportaria

    essa dualidade sem a explicao do que ser amigo e inimigo. Tudo isso serve

    para Scrates mostrar que o ato de devolver o que devido (das technai nelas

  • 52

    mesmas), sempre o bem de quem delas necessita: o bom sapato do sapateiro

    ao que compra o sapato, por exemplo. Essa deve ser a tica de quem portador

    desse saber: visar ao bem do outro.

    J que esto em busca do que seja a justia, em 335c, Scrates faz

    Polemarco entender que ela enquanto exteriorizao na ao, visa perfeio

    dos homens, tal qual a medicina que busca a sade do corpo, a culinria para o

    alimento. Dessa forma, um homem justo jamais seria mal para quem quer que

    seja, pois um ato contrrio ao bem, levaria construo de um homem defeituoso

    e, portanto, injusto. Esse o motivo que leva Scrates a refletir sobre o ato de

    restituir e restituir para quem, quando e como.

    O que Scrates percebe que Polemarco se encontra inserido nos valores

    mais bvios da cidade. O ideal de fazer bem aos amigos e mal aos inimigos

    algo ouvido com frequncia nos tribunais gregos da poca. Os oradores

    buscavam como suporte de seus discursos uma figura, Slon. Esse legislador do

    sculo VI a. C. escreveu poemas e, no fragmento 13, um dos mais longos que

    nos restaram, denominado Sobre a