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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC - SP Maximiliano Rosso Do Risco e do Seu Enfrentamento Mediante Intervenções Territoriais Amparadas no Direito. DOUTORADO EM DIREITO SÃO PAULO 2014

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC - SP

Maximiliano Rosso

Do Risco e do Seu Enfrentamento Mediante Intervenções Territoriais Amparadas

no Direito.

DOUTORADO EM DIREITO

SÃO PAULO

2014

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC - SP

Maximiliano Rosso

Do Risco e do Seu Enfrentamento Mediante Intervenções Territoriais Amparadas

no Direito.

DOUTORADO EM DIREITO

Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia

Universidade Católica de São Paulo, como exigência

parcial para obtenção do título de Doutor em Direito sob a

orientação do Prof. Dr. Márcio Cammarosano.

SÃO PAULO

2014

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Banca Examinadora

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DEDICATÓRIA

A Vivien, pela fibra e pelo exemplo.

A Pedro e Olivia, pelas lições diárias de vida.

A Luiza, pela perseverança.

A Enrico, pela sabedoria.

AGRADECIMENTOS

A Mariana Mencio, pela amizade.

Ao Professor Dr. Márcio Cammarosano, pela paciência.

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RESUMO

O presente trabalho tem por objeto o tema do risco em uma dimensão que denominamos

de espacial. Mencionado risco consiste, em apertada síntese, numa representação de

perigos e de situações futuras aptas a causar danos a direitos dos mais diversos. Risco

que se imbrica de forma indissociável à sociedade moderna e que pode ser amplificado

por intervenções no tecido urbano. Valendo-nos da análise de diferentes diplomas

legislativos, de ordenamentos diversos, assim como de exemplo práticos,

argumentaremos quanto às possibilidades de enfrentamento desse risco por meio de

intervenções igualmente espaciais, o risco impondo, nesses termos, um novo

intervencionismo estatal.

Palavras-chave :

Risco – Direito Urbanístico – Direito do Urbanismo – Perigo – Intervenção Estatal –

Controle Jurisdicional – Norma – Direito Urbanístico e Concretização de Outros

Direitos – Saúde – Segurança – Risco e dimensão espacial – Fenômeno urbano –

Organização dos espaços e comportamento- Concretização de direitos e intervenções no

tecido urbano – Objeto cultural

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ABSTRACT

The present study aims to debate about risk from a spatial perspective. Risk understood

as a present representation of concrete dangers and of future situations which are apt to

cause harm to rights in general. Modernity brings with it the production of risks, which

can be aggravated through interventions on the urban fabric. In the present paper we

shall argue, with the help of legal texts from different countries, as well as of practical

examples, that risks can also be managed by means of those same spatial interventions,

imposing a new mode of State intervention.

Key-words :

Risk – Urban Law – Danger – State intervention – Judicial role - Norm –

Implementation of rights – Health – Safety and Crime Prevention – Spatial dimension –

Urbanization – Place Organization and Behavior – Rights and territorial interventions –

Cultural object – State intervention

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SUMÁRIO

Introdução : objeto, corte epistemológico, método, percurso ............................ 01

Capítulo I - Do risco : perspectivas e tratamento jurídico ................................. 09

1.1 – Do risco : etimologia ..................................................................... 14

1.2 – Risco e futuro ................................................................................. 18

1.3 – Risco e a sociedade moderna ......................................................... 27

1.4 – Do risco enquanto objeto cultural ................................................. 33

1.5 - Risco e direito : da função da lei .................................................... 47

1.6 - Risco e direito : uma maior concretude ......................................... 51

1.7 - Risco e direito público .................................................................... 59

1.8 – Do risco em sua dimensão espacial – e das possibilidades de seu

enfrentamento valendo-se de normas de direito urbanístico ................... 72

1.8.1 – Do fenômeno urbano ................................................................... 73

1.8.2 - Da organização dos espaços e de sua potencial influência no

comportamento humano .......................................................................... 80

1.8.3 – Das possibilidades de concretização de direitos por meio de intervenções

no tecido urbano ....................................................................................... 98

1.8.3.1 - Dispositivos e normas ................................................................ 99

1.8.3.2 – Do direito urbanístico e da sua vocação para enfrentar o risco em sua

dimensão espacial ................................................................................... 104

1.8.3.2.1 - Direito urbanístico : breves considerações sobre sua gênese, objeto e

aptidão para enfrentar os desafios decorrentes do fenômeno urbano ..... 106

1.8.3.2.2 – Direito urbanístico e de sua aptidão à concretização de direitos .. 125

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1.8.3.2.3 – Direito urbanístico e direito à saúde ....................................... 128

1.8.3.2.4 – Direito urbanístico e direito à segurança ................................ 134

1.8.3.2.5 - Direito urbanístico e risco ....................................................... 156

1.8.3.2.5.1 – Portugal ................................................................................ 167

1.8.3.2.5.2 – Alemanha ............................................................................. 186

1.8.3.2.5.3 – Itália ...................................................................................... 196

1.8.3.2.5.4 - Brasil ..................................................................................... 200

1.8.3.2.5.4.1 - Brasil : das concretas possibilidades da organização espacial para

enfrentar o risco ......................................................................................... 228

Capítulo II - Risco e atuação Estatal ..................................................................... 242

2.1- Do novo intervencionismo Estatal ..................................................................244

2.2 – Do risco e da possibilidade de revisão de atos administrativos .................... 253

2.3 – Do risco e do planejamento urbano .............................................................. 259

2.4 – Do risco e da responsabilidade civil do Estado ............................................ 265

2.5 – Risco e decisões judiciais .............................................................................. 273

Capítulo III – Do risco e dos critérios para sua leitura ........................................... 279

CONCLUSÃO ........................................................................................................ 298

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................... 307

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1

Introdução : objeto, corte epistemológico, método, percurso.

O presente trabalho discorrerá sobre o risco e as possibilidades de seu acolhimento

pelo Direito. Um tema que, por sua proximidade com o quotidiano, com frequência evoca

saberes e conhecimentos alicerçados apenas na intuição. Sem embargo, dada a importância

que guarda não apenas para o patrimônio mas, especialmente, para a vida digna e saudável

das pessoas, merece e exige o risco um tratamento sistematizado, alicerçado em

metodologia científica1. No nosso caso, em metodologia peculiar à ciência jurídica.

Não ignoramos a pluralidade de maneiras por meio das quais os objetos, inclusive

aqueles do Direito, podem ser examinados, com “uma multiplicidade de modos de

aproximação, um número crescente de enfoques temáticos, representando cada qual uma

forma de corte metodológico com o que o ser cognoscente trava contato com o objeto do

conhecimento.”2 Na presente exposição, em decorrência de corte epistemológico,

encararemos o risco por meio de uma perspectiva que denominamos de espacial, com

ênfase no risco em áreas urbanas. E nas possibilidades das intervenções no tecido urbano,

alicerçadas no Direito, para o enfrentamento desse mesmo risco.

O risco, necessário alertar, parece transmitir a impressão de que concerne a algo

inevitável e fora de nosso alcance, especialmente por se referir a um futuro aparentemente

inacessível e incontrolável, a sociedade se encontrando recolhida e eternamente aprisionada

em um inescapável tempo presente. Contudo, nada é mais distante da realidade : as

decisões tomadas hoje certamente moldarão esse futuro. Decisões que podem se prestar a

1 Nossas opiniões não se prestam a justificar assertivas científicas, as quais devem aptas a ser testadas intersubjetivamente, sendo assim passíveis de verificação mediante critérios objetivos. Nesse sentido : POPPER, Karl. The logic of scientific discovery. London and New York : Routledge, 2002, p. 23. A primeira edição em língua inglesa foi publicada no ano de 1959).

2 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário, linguagem e método. 2ª edição. São Paulo : Noeses, 2008, p. 06.

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salvar vidas, preservar patrimônio, proteger a integridade física e psicológica. Decisões

aptas a prestigiar e proteger direitos dos mais variados. E enquanto decisões humanas, são

passíveis de ser mediadas e influenciadas pelo Direito. O risco, assim, influenciando na

construção de normas.

Nesses termos, eventos desastrosos, muitas vezes encarados como alheios à vontade

e ao controle humano3, rotulados como algo “normal”, “aceitável”, “inevitável”, como

consequência da moderna vida em sociedade e inarredável subproduto do “progresso”4,

são, a bem da verdade, o resultado de ações e de omissões humanas. Nada há de “normal”,

“aceitável” ou “inevitável” em tais situações, às quais o risco é elemento antecedente. Nos

deparamos, muitas vezes, à semelhança da alegoria da caverna de Platão5, com um estado

3 Uma interessante sistematização das diferentes percepções do risco é fornecida por Maria Luísa Pedroso de Lima (LIMA, Maria Luísa Pedroso de. Percepção de riscos ambientais. In : SOCZKA, Luis (Org.). Contextos humanos e psicologia ambiental. Lisboa : Calouste Gulbenkian, 2005, p. 227), ao abordar as quatro diferentes visões de mundo fornecidas pela teoria cultural, inspiradas no trabalho da antropóloga Mary Douglas. São elas as seguintes : 1) uma visão individualista, na qual a gestão do risco deve ser feita de maneira paternalista, através da regulamentação, educação e controle, evitando-se a desobediência; 2) visão individualista, onde a gestão do risco se norteia pelo laissez-faire, ou seja, pela não-intervenção, deixando-se a critério de cada um mencionada gestão; 3) visão igualitária : norteada pelo princípio da precaução; 4) visão fatalista: também se norteia pelo laissez-faire, considerando, todavia, que o risco é algo incontrolável e que, assim, não pode ser gerido. São perspectivas trazidas pela ciência da psicologia ambiental, mas parecem balizar, muitas vezes, o Administrador Público, em especial no que toca à adoção da visão fatalista. Em que pese estar esse mesmo Administrador compelido a cumprir com os estritos ditames da lei e obrar na proteção a bens jurídicos dos mais diversos, alguns indisponíveis, muitos dos quais sacrificados periodicamente, por exemplo, em enchentes e deslizamentos. Como se nada fosse capaz de preservar tais bens jurídicos.

4 Os denominados problemas públicos podem ser enxergados por um prisma cultural, conforme argumenta Joseph Gusfield. Para o autor, em apertada síntese, aqueles fatos que serão levados em consideração como de relevância pública não se apresentam como algo a ser descoberto, mas envolvem verdadeira construção humana que implica não apenas em julgamentos morais acerca daquilo que deve ser objeto de atenção, mas no embate entre diferentes atores sociais com distintas habilidades para se apropriarem de determinados fatos, torná-los um problema público e determinar responsabilidades decorrentes. O autor fornece exemplo extraído da realidade da cidade de San Diego, nos Estados Unidos, onde uma série de hotéis, com bares, foram construídos em área desprovida de transporte público adequado. Qual seria o impacto de referido desenvolvimento e da ausência de transporte na questão da direção de veículos automotores sob a influência de álcool ? A despeito de referida consideração, na arena dos problemas públicos, o foco das atenções se concentrou essencialmente na pessoa do infrator (In : GUSFIELD, Joseph R.. The culture of public problems. Drinking-driving and the symbolic order. Chicago : The University of Chicago Press, 1981. O exemplo relativo aos hotéis se encontra nas páginas 8 e 9).

5 Tratada no início do Livro VII, de A República. De maneira bastante abreviada, a alegoria faz alusão a uma situação na qual prisioneiros estão dentro de uma caverna, acorrentados, sempre de costas para a entrada da caverna. Eles apenas têm contato com sombras de objetos, projetadas na parede da caverna. Vivem, assim, num estado de ignorância e consideram aquelas sombras como a realidade. Sócrates apontava que, para se

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de aparente cegueira a se instalar em agentes dos mais diversos. Uma cegueira provocada

por um estado de ignorância, aqui entendido não apenas como desconhecimento, mas

também como desprezo e negligência especialmente às pessoas. Devemos, na nossa

humilde opinião, ultrapassar tal estágio da “ignorância” (ou “sensível”), para ingressar no

estágio do “inteligível”, não apenas perseguindo a compreensão dos eventos que conduzem

a enormes perdas de vidas e de patrimônio, em decorrência por exemplo de enchentes e

deslizamentos, mas também agindo, decidindo, atuando em conformidade com esse

entendimento. Um entendimento mediado pelo Direito.

Conforme já alertamos, existem aproximações quase infinitas para se abordar o

tema. Optamos, aqui, por uma aproximação valendo-nos de uma perspectiva que

denominamos de espacial, relativa às possibilidades jurídicas de intervenção no tecido

urbano para enfrentar o risco. Risco e organização espacial que, argumentaremos, se

imbricam de forma circular : a desorganização espacial tornando o risco mais acentuado e a

adequada organização dos espaços, em contrapartida, se prestando ao seu enfrentamento.

Da mesma forma, e fiéis ao corte epistemológico proposto, centraremos nossa

atenção nas aglomerações mais intensas de pessoas. Locais onde o risco, caso

negligenciado, pode trazer danos ainda mais significativos. Não sendo possível ignorar,

insistimos, que o risco não se deixa aprisionar nem em definições estreitas e tampouco em

contextos geográficos, ou políticos, restritos. Não obstante, as intervenções no tecido

urbano tampouco podem ser negligenciadas no tratamento do risco, merecendo acurada

atenção.

Mencionada dimensão espacial do risco se reveste, efetivamente, de interesse

prático. Registram-se, não apenas em grandes metrópoles, mas em toda e qualquer

atingir um estado de verdadeiro conhecimento, há que se ultrapassar esse mundo “sensível”, de meras “sombras” para um mundo de ideias, racional e organizado.

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aglomeração urbana6, profundas cicatrizes causadas pela indevida ocupação do solo,

potencializadas, por exemplo, por eventos climáticos como chuvas intensas. Cicatrizes que,

em muitas localidades, são reabertas ano após ano, tal como ocorre nos Estados do Rio de

Janeiro ou mesmo de São Paulo, no Brasil, onde são reiteradamente registradas mortes,

perdas patrimoniais, esmagamento de laços sociais e comunitários por força principalmente

de enchentes, desabamentos e deslizamentos, uma das faces nefastas do uso e ocupação do

solo levados adiante sem o devido cuidado. Eventos que se intensificam nos meses de

janeiro e fevereiro, quando algumas regiões do país experimentam chuvas mais intensas. E

aqui estamos a tratar, apenas, de uma das facetas do uso e ocupação do solo levado adiante

sem a devida cautela. Ao lado de tais exemplos somam-se inúmeros outros, tais como a

instalação de atividades comerciais aptas a gerar intenso fluxo de pessoas e veículos,

incompatível com a malha viária existente, realocação de população carente para conjuntos

habitacionais de forma negligente e conducente ao solapamento e pulverização de redes

sociais de apoio existentes, estabelecimentos que operam muitas vezes sem condições de

segurança adequadas7.

6 Um exemplo interessante nos remete a Lully, na Suíça, uma pequena cidade com vocação agrícola, onde são alegadamente produzidos os melhores vinhos da região de Genebra (TANQUEREL, Thierry. Introduction générale : les risques saisis par le droit de l’urbanisme. In : TANQUEREL, Thierry, JEGOUZO, Yves, LEBRETON, Jean-Pierre, MORAND-DEVILLER, Jacqueline. Les cahiers du GRIDAUH. Risque et droit de l’ubanisme em Europe. N.20, 2011. Paris, GRIDAUH, 2011, p. 7). Proprietários de imóveis situados às margens do rio Aire (ou Aar, no idioma pátrio) construíram ilegalmente porões em suas casas, os quais eram usados como quartos. Após uma intensa chuva, ocorrida no ano de 2002, os porões foram completamente inundados e por pouco não se viram ceifadas vidas, inclusive de crianças. Interessante, todavia, não o evento em si, o qual, sem embargo, demonstra que o uso e a ocupação do solo deve obediência a critérios legais e técnicos, sob pena de consequências desastrosas, mesmo em aglomerações urbanas de pequeno porte. Merecem destaque as lições extraídas e as ações decorrentes do evento em tela : deflagraram-se investigações nos âmbitos civil, penal e, em especial, administrativo, levantando-se as debilidades do aparelho estatal no que se referia ao uso e ocupação do solo. Com proposição de ações diversas, dentre as quais intervenções para melhorar os aspectos biológicos e ambientais do rio Aire. Ainda que tardias as ações, estavam estas a enfrentar o risco que ainda rondava a comunidade, de novos danos futuros, e que pode e deve ser enfrentado mediante intervenções. Preferencialmente antecipadas.

7 Anotamos, sem ingressar na discussão acerca de causas ou mesmo de providências cabíveis, o ocorrido na boate Madrid Arena, na cidade de Madrid, na Espanha, em 01 de novembro de 2012, onde o uso de um sinalizador acabou por semear o pânico entre os frequentadores do apontado estabelecimento resultando na morte de pelo menos quatro pessoas. (maiores informações podem ser obtidas por meio de reportagens disponíveis na rede mundial de computadores : http://elpais.com/tag/madrid_arena/a/ – última consulta realizada aos 04 de fevereiro de 2013); e, ainda, o ocorrido em casa de espetáculos denominada “Kiss”, situada na cidade de Santa Maria, no Rio Grande do Sul, no Brasil, ceifando a vida de mais de 230 pessoas (nesse sentido, fazemos alusão a reportagens disponíveis na rede mundial de computadores : http://www1.folha.uol.com.br/especial/2013/tragediaemsantamaria/ - última consulta aos 03 de fevereiro de 2013). Tragédias que infelizmente já se concretizaram. Sem embargo, o risco mantém-se presente. O que será

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Não é demasiado recordar, à luz da argumentação aqui proposta, que mencionados

desastres não se confundem com o risco, que os antecede. Risco que ainda se mostra

presente mesmo após os mencionados desastres, catástrofes, acidentes, tragédias, ou

qualquer que seja o termo utilizado para expressar perdas de bens e vidas, a impor um

verdadeiro dever de agir em relação a um futuro porvir.

Para sustentar nossa argumentação nos valeremos inicialmente do método empírico

: recolheremos experiências concretas que têm por objeto o tratamento dado a situações

entendidas como de risco pelo direito, em especial pelo direito urbanístico. Sem nos

olvidarmos da advertência de Paulo de Barros Carvalho, para quem : “O toque da cultura,

cada vez reconhecido com maior intensidade, evita que se pretenda entrever o mundo pelo

prisma reducionista do mero racionalismo descritivo. Por isso o sopro filosófico, na forma

superior da meditação crítica, há de estar presente em toda a extensão do trabalho.”8

Referida “meditação crítica” será perseguida, numa segunda etapa, com o apoio de método

dogmático e dialético, encetando-se esforços para extrair das mencionadas experiências

relações essenciais e características fundamentais, defendendo-se a dotação do fator “risco”

de necessária relevância jurídica a irradiar direitos e deveres. Propondo-se, nesse contexto,

critérios para uma leitura mais clara acerca do risco em sua dimensão espacial, auxiliando o

intérprete na representação de dito risco e na ulterior tomada de decisões.

Como percurso, partiremos explicitando as distintas definições do termo “risco” e,

feito, por exemplo, a respeito não apenas de outras casas de espetáculos mas de locais que recebem grandes contingentes de público (inclusive estádios de futebol ou espaços que receberão competições olímpicas, tal qual ocorrerá no Brasil nos anos de 2014 e 2016; ou, ainda, festejos de rua, como ocorre com o carnaval das cidades de Salvador e Recife, no Brasil). Há um mapeamento dos “riscos” ? O licenciamento, seus critérios e sua efetiva fiscalização, são hoje suficientes para prevenir novos eventos, sem estrangular o lícito exercício de atividade econômica ? Estariam referidos estabelecimentos inseridos em locais com estrutura urbana mínima apta a proporcionar adequado acesso a veículos de socorro médico e de combate a incêndios ou mesmo a estabelecimentos de saúde ? Perguntas que deixamos para singela reflexão.

8 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário, linguagem e método. 2ª edição. São Paulo : Noeses, 2008, p. 3 e 4;

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num passo subsequente, abordaremos as possibilidades de sua incorporação e inserção no

sistema jurídico. Antes, contudo, trataremos das possibilidades que nos oferecem os

institutos do direito urbanístico para a concretização de direitos dos mais variados, com

especial ênfase no direito à saúde e no direito à segurança pública. E, como não poderia

deixar de ser, também das situações denominadas de risco.

Dentro de nossa trilha, reservaremos espaço para breves considerações relativas às

cidades enquanto espaços com pessoas e, principalmente, para pessoas. Pessoas portadoras

de necessidades e de direitos. Argumentando-se no sentido de que a organização dos

espaços nos quais referidas pessoas vivem tem a aptidão de promover a proteção de direitos

dos mais diversos. Segue-se, portanto, que as intervenções no tecido urbano não podem se

olvidar dessa perspectiva dita “humana” e hão de se nortear pela busca da promoção e da

proteção de direitos e de bens jurídicos dos mais diversos9.

Defenderemos no curso do corrente o liame estreito e aparentemente indissociável

do risco com a sociedade moderna10. A vida em sociedade nos expõe, diariamente, a

incontáveis situações que podemos denominar de “risco” : corremos risco ao sair com o

carro de casa, ao manusear objetos dentro de nossas casas, ao praticar um aparentemente

inofensivo esporte, ao caminhar pela calçada de uma rua, ao iluminarmos nossas casas com

energia obtida de materiais fósseis ou nucleares, ao comprar um produto alimentício11

9 Propomos aqui algumas indagações, de natureza retórica, relativas às cidades onde vivemos : Que tipo de cidade está sendo planejada ? Quais os direitos e bens jurídicos que estão sendo protegidos, prestigiados, desprezados e vulnerados quando das intervenções realizadas no tecido urbano ? E ao lado dessas considerações empíricas, que tipo de cidade o ordenamento jurídico estaria a impor ? Retornaremos, ainda que de forma singela, a essas considerações na Conclusão do presente trabalho.

10 Nesse sentido, nos apoiamos, em apertada síntese, na doutrina de Ulrich Beck (In : BECK, Ulrich. Risk society. Towards a new modernity. London : Sage, 1992 (reprinted 2011) ) e de Anthony Giddens (In : GIDDENS, Anthony. The consequences of modernity. Cambridge : Polity, 1991 (reprinted 2012)). Pedimos vênia para retornar ao tema, com maior fôlego, mais adiante.

11 Veja-se, por exemplo, como questão atinente à presença de carne de cavalo em produtos da marca Nestlé que supostamente deveriam ser elaborados exclusivamente com carne de vaca. Para além de discussões sobre quão saudável é, ou não, a carne de cavalo, cabe-nos indagar acerca do quanto sabemos acerca do alimento nos é oferecido ao consumo e, em maior escala, sobre eventuais riscos alimentares outros a que podemos estar expostos (veja-se, a respeito, matéria publicada no jornal italiano “La Repubblica”, aos 20 de fevereiro de

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exposto na prateleira de um estabelecimento comercial, ao ingressar num edifício. Alguns

desses denominados “riscos” nós até conhecemos. Outros, contudo, sequer temos ciência de

sua magnitude ou mesmo de sua existência12. O próprio conceito de risco recebe

significados dos mais diversos e parece estar presente em searas das mais variadas, tais

como a saúde, a economia, o meio ambiente, o entorno urbano, se imbricando e se

imiscuindo na vida em sociedade.

Risco que não se deixa, portanto, aprisionar em definições estreitas ou estritas, que

enfeixa deveres e obrigações dos mais diversos e cuja proteção e enfrentamento se

concretiza por meio de instrumentos e institutos jurídicos dos mais variados e não apenas

por intermédio de meras proibições ou restrições, ainda que estas vias sejam importantes,

mas que devem ser necessariamente moduladas, ponderadas, impostas com gradações,

inseridas no bojo de um plano mais amplo e de prazo mais dilatado, com mecanismos de

participação popular e possibilidades de revisão e atualização. E ainda que enfrentado,

trata-se o risco de situação que jamais será completamente eliminada, mas que se renova

diante de cada ação ou omissão. Risco que pode ser definido como objeto cultural13 e

relativo a um futuro porvir e intocável, mas que impõe, quanto a esse mesmo futuro, a

2013, levando o título : “Tortellini con carne equina, i Nas alla Nestlé” – passível de consulta na rede mundial de computadores no endereço seguinte : http://ricerca.repubblica.it/repubblica/archivio/repubblica/2013/02/20/tortellini-con-carne-equina-nas-alla-nestle.html?ref=search – última consulta aos 17 de abril de 2013).

12 Tomemos mais um exemplo do continente europeu, consistente no risco à saúde decorrente do surto de Escherichia coli, ocorrido no ano de 2011. Vidas se perderam, mas pouco se sabia, de concreto, a respeito do ocorrido (como bem ilustra uma reportagem da época veiculada no periódico “El País” da Espanha, intitulado: “El Gobierno aviva la duda sobre el foco de la bactéria.”, publicado em 28 de maio de 2011 – disponível na rede mundial de computadores no endereço: http://elpais.com/diario/2011/05/28/sociedad/1306533605_850215.html – última consulta aos 17 de abril de 2013) e até a presente data não são completamente conhecidas as causas que deram azo ao apontado surto. Risco que não se confunde e muito menos se esgota com as mortes mas que se encontra, invisível, à espreita. As causas do surto possivelmente ainda estão presentes, em situação de latência, no seio da sociedade moderna. Causas que, muitas vezes, somente serão devidamente conhecidas com o passar do tempo, como ocorreu com o amianto, outrora um produto de uso comum e tido como inofensivo. O que não significa que nada há de ser feito : pelo contrário. Conforme argumentaremos ao longo do presente trabalho, mesmo em situações de incerteza ou inclusive de absoluta ignorância, persiste o dever de proteção às pessoas e o direito à não vulneração de bens e valores dos mais diversos.

13 Ou seja, como uma criação humana, e não como um objeto natural ou físico, a ser “encontrado” ou “descoberto”. Acerca da teoria dos objetos e das regiões ônticas : CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário, linguagem e método. 2ª edição. São Paulo : Noeses, 2008, p. 14 e seguintes;

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tomada de decisões no presente. Decisões aptas a transformar esse futuro, onde potenciais

danos a direitos dos mais diversos estão a espreita.

Risco, outrossim, que deve nos conduzir a uma nova maneira de pensar14, calçada

na prevenção, na antecipação, na precaução, na lógica da permanente avaliação e

acompanhamento, na preocupação não apenas com gerações presentes mas também futuras.

Uma lógica que deve integrar, também, a construção da norma, notadamente na seara da

organização territorial. Impondo-se uma relação de verdadeira circularidade entre risco e

essa mesma organização territorial : o risco influenciando na construção das normas e

consequente intervenções do tecido urbano, corte epistemológico aqui abraçado. E, a seu

turno, referidas intervenções se prestando ao adequado enfrentamento do risco.

À guisa de conclusão parcial, defenderemos que o risco, ainda que não recolhido de

forma “expressa” em dispositivos e textos de lei, deve ser levado em conta na construção

das normas de direito urbanístico, impondo-se um dever de antecipada proteção de direitos

dos mais variados. Risco que tanto pode ser potencializado e acentuado por meio de

intervenções no tecido urbano com, também, combatido e devidamente enfrentado. Risco

que reside e decorre, assim, de decisões humanas, absolutamente aptas a serem regidas pelo

Direito. Que as mãos desse mesmo Direito, notadamente do direito urbanístico, auxiliem na

condução da sociedade para fora da “caverna”, permitindo-se, assim, que o risco

relacionado com o uso e a ocupação do solo seja devida e efetivamente observado15,

14 As instituições de uma dada sociedade são o espelho desta. Nesse sentido, tratando especificamente da escola : “A sociedade é todo mundo e ninguém. A escola não é mais coerente. Portanto (...) se a sociedade está na escola, vale lembrar, com Mollo (1970), que, inversamente, a sociedade está na escola. A escola não é um mundo social separado do restante do sistema; nela se observam mais ou menos os mesmos conflitos, as mesmas diferenças, as mesmas apostas que na sociedade global ou em outras organizações.” (PERRENOUD, Phillippe. Escola e cidadania : o papel da escola na formação da democracia. Porto Alegre : Artmed, 2005, p. 67). Até que ponto podemos tolerar passivamente, enquanto pertencentes uma dada sociedade, a perda de vidas, de patrimônio, de laços familiares decorrentes de eventos como desabamentos e enchentes, que todo ano se repetem, nas mesmas condições e localidades ? A referência bibliográfica trazida por Perrenoud é a seguinte : MOLLO, Suzanne. L’école dans la societé. Psychosociologie des modeles éducatifs. Paris : Dunod, 1970.

15 E, à luz da exigência que nos impõe o risco, enfrentá-lo com um novo olhar. Talvez não seja bastante a simples repetição de condutas levadas a cabo no passado para fazer frente ao que nos reserva o futuro.

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identificado e enfrentado16.

Capítulo I - Do risco : perspectivas e tratamento jurídico.

O risco, dada a variedade de situações nas quais o termo é empregado, pede um

esforço de maior fôlego para sua conceituação. Pois para tratarmos de eventual

enfrentamento daquilo que se denomina risco, mostra-se medida antecedente necessária

saber com que estamos lidando, delimitando adequadamente o objeto de nossa

argumentação.

O risco é termo, e perdoem a obviedade, cuja construção de sentido é fruto de

fatores sociais e históricos e utilizado para designar situações muitas vezes aparentemente

díspares, tais como desabamentos, enchentes, furacões, epidemias, acidentes com usinas

nucleares e até mesmo o exercício de atividades lícitas mas que podem ser prejudiciais à

população. Falamos, dentre muitos outros, em risco ambiental, risco à saúde17, risco

16 Direito que pode e deve servir como instrumento à efetiva transformação social. Para Marcelo Neves (NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. São Paulo : Martins Fontes, 2007, p. 48), “efetividade se refere à implementação do ‘programa finalístico’ que orientou a atividade legislativa”. No que toca ao mencionado fim das normas jurídicas, distingue Marcelo Neves entre “efetividade, inefetividade e antiefetividade de sua atuação. Uma lei destinada a combater a inflação, por exemplo, será efetiva quando a inflação for reduzida relevantemente por sua eficácia (observância, aplicação, execução, uso). Entretanto, o vínculo ‘se-então’ previsto abstratamente em uma lei antiinflacionária pode estar sendo regularmente concretizado nas relações sociais, sem que haja nenhuma modificação significativa no aumento dos preços; tem-se, portanto, eficácia sem efetividade. Há também a possibilidade de a legislação antiinflacionária ser intensamente eficaz, mas provocar uma relevante alta de preços, implicando, portanto, antiefetividade.” Seria, assim, arriscamos com fito meramente de retórica, um risco inerente ao ato de legislar ? Pedimos vênia para prosseguir na nossa exposição, retomando o escopo de nosso trabalho.

17 Conforme matéria veiculada na revista The Economist (Edição de 30 julho de 2011, página 49), doenças relacionadas à falta de saneamento ceifaram a vida de dois presidentes norte americanos, James K. Polk e Zachary Taylor. Atualmente, dados de 2010, por volta de 783 milhões de pessoas não têm adequado acesso a água para beber, 2.5 bilhões carecem de acesso a banheiros propícios, sendo que por volta de 1.1 bilhão ainda defecam a céu aberto (dados da Organização Mundial de Saúde, disponíveis na rede mundial de computadores, no endereço www.who.int ). A falta de saneamento ainda continua cobrando muitas vidas, especialmente de crianças : no ano de 2008, por volta de 1.4 milhões de crianças com idade de até 5 anos morreram em razão de diarreia, representando aproximadamente 15% do total de mortes de crianças nessa faixa etária. Uma causa que guarda estreita relação com a falta de saneamento básico (BLACK, Robert E. et

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alimentar, risco econômico, risco sísmico, risco vulcânico, risco hidrológico. Enfim, em

risco de natureza das mais variadas. Buscar a compreensão do “risco” simplesmente

mediante sua adjetivação pouco esclarecerá quanto ao significado do termo.

Ademais, forçoso reconhecer que na seara jurídica, mais importante do que a mera

terminologia em si18 é a situação da vida que se busca regular e o regime jurídico peculiar

que recolhe e agasalha referidas situações. Consoante ressalta Agustín Gordillo19, não

existem duas coisas no universo que sejam exatamente iguais em todos os aspectos. Por

mais semelhantes que sejam, sempre se mostra possível agrupá-las em classes distintas. Da

mesma forma, provavelmente não há coisas tão diferentes entre si que não autorizem sejam

colocadas numa mesma classe. As coisas podem ser agrupadas de múltiplas maneiras, sem

que se possa falar em classificações verdadeiras ou falsas. Há classificações que, embora

distintas, podem ser igualmente válidas. As palavras, assim, não têm em princípio outro

significado a não ser aquele que lhes é conferido. Não há significados absolutamente

intrínsecos, verdadeiros ou reais20. Mais importante do que a classificação, ou

classificações perseguidas, é a real utilidade desta ou daquela classificação. Devemos

superar o dogmatismo das classificações e centrar nossa análise no regime jurídico

aplicável a determinadas situações em concreto e sua interpretação.

al. Global, regional, and national causes of child mortality in 2008: a systematic analysis. In : The Lancet, Volume 375, Issue 9730, Pages 1969 - 1987, 5 June 2010).

18 Agarrar-se a termos ou conceitos pode constituir-se, conforme nos alerta Luis Soczka (SOCZKA, Luis. As raízes da psicologia ambiental. In : SOCZKA, Luis. Contextos humanos e psicologia ambiental. Lisboa : Calouste Gulbenkian, 2005, p. 50) em verdadeiro obstáculo epistemológico. Para o autor, a “noção de obstáculo epistemológico corresponde ao facto de, no caminho histórico do conhecimento científico, se verificarem arraigamentos a conceitos pseudo-explicativos funcionando como ‘tranquilizantes’ cognitivos que entravam, por vezes, duramente o progresso desse mesmo conhecimento.” Não seria exagerado traçar um paralelo ao campo do direito no qual, para além das palavras e dos termos, há que se olhar para o tratamento que o sistema jurídico de cada local e de cada época lhes revestiu, sob pena de emperrar o processo de conhecimento ou torná-lo viciado.

19 GORDILLO, Agustín. Tratado de Derecho Administrativo. 10ª ed., Buenos Aires : F.D.A., 2009, p. 21 a 23. (disponível na rede mundial de computadores, no endereço eletrônico seguinte : www.gordillo.com/pdf_tomo1/capituloI.pdf, página 21. Consulta realizada em 05 de julho de 2012.) 20 Não adentraremos aqui na celeuma acerca da natureza das palavras enquanto signos mínimos. A esse respeito veja-se : ECO, Umberto. Semiotics and the philosophy of language. Bloomington and Indianapolis : Indiana University Press, 1983, p. 14 – 45.

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Feitas essas breves considerações, prossigamos com os esforços para buscar uma

melhor compreensão do risco, valendo-se de trabalhos e pontos de vista de autores oriundos

de campos do conhecimento dos mais diversos. Sem nos olvidarmos do alerta de José

Joaquim Gomes Canotilho21 : “Em todo o mundo, os movimentos gravíticos dos solos,

naturais ou provocados, lentos ou rápidos, deixaram de ser sinais do ‘Apocalipse’ ou do

‘Pecado’, para se tornarem pretexto de um revigorado esforço de reflexividade cultural. A

‘sociedade mundial de risco’ é mais do que um registo angustiado de ‘tsunamis’, ‘vulcões’,

‘enxurradas’ ou ‘desabamentos’. Sem a investigação dos contornos sociais do risco onde se

incluem as pegadas dos dinossauros humanos, umas vezes assentes em réguas e esquadros

dos modernos planificadores das ‘mediapolis’, outras vezes incrustados em vivências

trágicas da pobreza, pouco mais conseguimos que uma ‘semântica do risco’. O risco não é

igual a catástrofe natural. Tão pouco o risco se confunde com juízos de valor culturais sobre

o risco, muitas vezes enegrecidos com acusações à ‘técnica’, à ‘ciência, à ‘racionalidade’

dos humanos. Se quisermos evitar um totalitarismo de defesa perante os ‘perigos’, há que

assumir, isso sim, as novas formas de ‘responsabilidade’ emergentes de uma política de

risco. A ‘cartografia dos riscos’, as ‘estratégias de prevenção e de redução dos riscos’, os

‘planos nacionais, municipais de emergência’ são momentos obrigatórios de uma nova

encenação da realidade futura.” Não nos descuraremos desse alerta. Mais importante do que

o evento em si são as ações e omissões que o antecederam, locus onde efetivamente reside

o risco. Condutas humanas antecedentes que se revestem, conforme sejam levadas adiante,

da aptidão para salvar vidas, preservar patrimônio. Enfim, para prestigiar direitos dos mais

variados. Para enfrentar, em suma, o risco a direitos.

Reconhecemos, sem embargo, que devemos nos acautelar no sentido de não

21 Ao prefaciar a Revista do Centro de Estudos de Direito do ordenamento, do Urbanismo e do Ambiente (CEDOUA), n. 22, Ano XI, 2.2008. Retornaremos, mais adiante, às ideias apresentadas pelo brilhante autor português especialmente no que se refere a não serem os riscos algo decorrente apenas de incontroláveis forças da natureza, mas sim uma realidade que exige assumam-se novas formas de responsabilidade. Uma situação a ser enfrentada mediante métodos dos mais diversos corporificados em instrumentos jurídicos de uma ampla gama, inclusive e em especial aqueles de dimensão espacial.

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incorrer em verdadeira tautologia, definindo-se risco por meio de instrumentos que se

destinariam a proteger-nos desse mesmo risco, remanescendo o termo carecedor de uma

adequada delimitação. Como bem adverte Paulo Ferreira da Cunha22 : “É próprio, muito

próprio mesmo, de fenómenos ou entidades totais, totalizantes ou totalitárias definirem-se

com o definido, ou pelo puro arbítrio casuístico do todo poderoso classificador.”

Tentaremos não incorrer nesse erro.

Defenderemos a ideia do risco como uma possibilidade futura de perdas das mais

diversas, muitas irreversíveis. Risco que clama, hoje, por decisões para lidar com

mencionada possibilidade de perdas futuras, as quais não mais estariam ao sabor exclusivo

de forças que supostamente escapariam à ação humana. Risco que não se confunde com

desastres e que não merece ser aprisionado em definições estreitas23. Risco que

permanentemente se renova e impõe seja devidamente vertido para o interior do universo

jurídico, notadamente do direito urbanístico. Risco como objeto cultural, criado pela ação

humana.

Reconhecemos que a heterogeneidade de situações abraçadas ou tingidas pelo risco

produz questionamento acerca da possibilidade de se colocar sob um mesmo olhar

situações tão díspares. Sem embargo, defendemos que, ainda assim, o risco traz ínsita uma

22 CUNHA, Paulo Ferreira da. A Constituição do Crime. Da substancial constitucionalidade do Direito Penal. Coimbra : Coimbra Editora, 1998, p. 36. O autor trata do tema da tautologia na seara do Direito Penal o qual, ao ser referido ramo apresentado, nada mais, nada menos, que o Direito Penal. Ainda sobre tautologias e impasses definitórios, veja-se nota 45, de fls. 35, com referência a trabalho de Francisco Puy : PUY, Francisco. Tópica jurídica. Santiago de Compostela : Paredes, 1984.

23 Uma referencia externa ao direito bem ilustra tais assertivas. Referimo-nos ao trabalho do grafiteiro romeno Dan Perjovschi que capturou de forma interessante o uso mercantil das catástrofes, fazendo referência expressa às erupções vulcânicas na Islândia. Uma de suas obras retrata um vulcão expelindo fragmentos, imagem tachada como “tragedy” (ou, numa tradução livre : “tragédia”). Esses mesmos fragmentos, ao caírem do lado da cratera, recebem então o rótulo de “souvenirs” (disponível para consulta na rede mundial de computadores : http://anaflecha.blogspot.com.es/2012/11/niceland-dan-perjovschi.html - última consulta aos 04 de abril de 2013). O risco não se esgotou com a “tragédia”. Continua presente, pois novas erupções são uma possibilidade concreta que a exploração econômica, embora importante ao país, não expurgará.

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ideia de como lidar com situações futuras e que podem potencialmente produzir danos.

Traz a nosso ver um regime peculiar de atuação célere e antecipado em relação a realidades

futuras, com imposição de um dever de tomada de decisões mesmo em situações de

incerteza, com a consideração de um horizonte temporal mais dilatado do que aquele

normalmente levado em conta. Dever esse ainda mais intenso à luz das enormes

possibilidades que o sistema jurídico fornece para enfrentar e gerir o risco. Em especial por

meio de ferramentas de intervenção espacial. Temas que serão tratados com maior vagar,

com a devida vênia, mais adiante.

Conforme já ressaltamos, o risco se acomoda a uma multiplicidade de situações.

Para adequado manejo do tema, tal qual já alertamos, procederemos a corte epistemológico

consistente em concentrar nossa argumentação no risco decorrente do uso e ocupação do

solo, um risco que denominaremos de espacial. E, de forma correlata, nos institutos

jurídicos de intervenção no tecido urbano que recolhem referidas situações ditas de risco e

buscam enfrentá-las.

Prossigamos trazendo ao debate relativo à conceituação do risco pontos de vista não

apenas do direito, mas de outros campos do conhecimento, com o fito de distingui-lo de

situações diversas, buscando delimitá-lo24 da melhor maneira possível, sem solapar a

24 Conceituação que necessariamente envolve delimitação. Para Madeleine Grawitz o conceito não representa o fenômeno em si mas sim uma abstração, um pensamento, um instrumento para nos conduzir ao conhecimento. O conceito é um meio para se organizar a realidade e reter características distintivas de determinados objetos, de determinados fenômenos. A construção de um conceito, de maneira bastante simplificada, parte de uma representação pouco precisa. Dessa ideia, ingressa-se em etapas subsequentes de especificação, obtenção de indicadores e formação de índices, numa crescente especificação e delimitação daquela ideia originária (In : GRAWITZ, Madeleine. Méthodes des sciences sociales. 11e editiòn. Paris, Dalloz, 2001, p. 388 e seguintes). Veja-se, ainda, Paulo de Barros Carvalho (Considerações extraídas de aula do Professor Paulo de Barros Carvalho ministrada no curso de Doutorado da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, relativa à disciplina “Teoria geral do direito - Ordenamento jurídico e sistema”, no primeiro semestre de 2009), para quem o conceito pode ser entendido como a ideia a ser ulteriormente delimitada e demarcada por meio da definição. A título de exemplo, quando se fala em desapropriação, há que se delimitar referida ideia, demarcá-la. Desapropriação surge como ideia e a definição como delimitação ou demarcação da mesma.

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necessária tessitura abertura de que deve se revestir o termo.

1.1 – Do risco : etimologia.

O dicionário Aulete25, em sua versão disponível na rede mundial de computadores,

fornece a seguinte definição de risco :

“risco2 (ris.co)

1. Possibilidade de passar por perigo ger. físico à saúde ou à integridade:

Sair à noite é sempre um risco.

2. Possibilidade de insucesso; condição em que se pode perder ou ganhar

(por ex.: em um jogo de azar); Apostar dinheiro é sempre um risco.

3. Situação que gera indenização por parte de uma seguradora (risco de

roubo).

4. Jur. Responsabilidade pela perda ou dano ocasionado em uma situação de

risco que se assumiu.

[F.: Do fr. risque. Hom./Par.: risco (fl. de riscar).]

Risco cirúrgico

1 Cir. Med. Avaliação do risco que corre um paciente que deve submeter-se

a uma cirurgia, em função de seu estado geral de saúde ou de algum

25 Endereço na rede mundial de computadores : http://aulete.uol.com.br/site.php?mdl=aulete_digital&op=loadVerbete&pesquisa=1&palavra=risco&x=11&y=10; última consulta realizada aos 5 de junho de 2012;

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problema específico.

2 O exame ou bateria de exames para essa avaliação.

Risco de câmbio

1 Econ. Risco de prejuízo em operações de câmbio devido a oscilações das

moedas [O nome técnico do índice é, em inglês, Emerging Markets Bond

Index Plus (EMBI+)].

Risco marítimo

1 Acidente imprevisível de que pode resultar perda de navio ou de sua carga.

Risco país

1Econ. Indicador que tem por objetivo estabelecer o grau de instabilidade

econômica de um determinado país emergente, criado por agentes

econômicos internacionais para servir de medida de risco para o investidor.”

Por sua vez, o dicionário Michaelis26, também disponível para consultas na rede

mundial de computadores, traz a definição de risco que transcrevemos abaixo :

“risco2

ris.co2

sm (ital rischio) Possibilidade de perigo, incerto mas previsível, que ameaça de

dano a pessoa ou a coisa. R. bancário, Com: o que decorre do negócio entre

banqueiros ou entre o banco e os correntistas. R. profissional, Dir: perigo inerente

ao exercício de certas profissões, o qual é compensado pela taxa adicional de

periculosidade.”

26 Apto a ser consultado na rede mundial de computadores, no endereço seguinte : www.michaelis.uol.com.br; consulta realizada em 05 de junho de 2012.

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A referência ao termo em língua italiana nos remete à explanação seguinte :

encontramos no dicionário etimológico italiano Etimo27 o vocábulo “rischio”, definido

como um perigo não atual e influenciado pela ideia de sorte e azar. Etimologicamente o

refere ao termo “resecáre”, que reúne, dentre outros, o sentido remar para trás, ou seja, de

maneira perigosa. Traz ainda referência ao termo árabe “rizq”, que significa tudo aquilo

que vem de Deus e do qual se extrai algum benefício.

O dicionário da Real Academia Española28, disponível, tal qual seus congêneres de

língua portuguesa e italiana, na rede mundial de computadores, traz a definição de risco que

se encontra estampada a seguir, e que também faz menção ao termo árabe “rizq” :

“riesgo.

(Del it. risico o rischio, y este del ár. clás. rizq, lo que depara la

providencia).

1. m. Contingencia o proximidad de un daño.

2. m. Cada una de las contingencias que pueden ser objeto de un contrato

de seguro.”

Na esteira da ideia de providência, socorremo-nos de Anthony Giddens para quem o

risco originar-se-ia de um termo náutico da língua espanhola e que significaria deparar-se

com um perigo ou chocar-se contra uma rocha29.

27 A página na qual se encontra o dicionário, na rede mundial de computadores, é a seguinte : www.etimo.it - consulta realizada em 09 de julho de 2012.

28 Sítio da rede mundial de computadores : www.rae.es - consulta realizada em 05 de junho de 2012;

29 GIDDENS, Anthony. The consequences of modernity. Stanford : Polity, 2012 (reprint – first published in 1990), p. 30, em nota de rodapé assinalada com um asterisco.

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O risco, conforme a doutrina de Carla Amado Gomes30, antes encarado como

destino, foi conotado como progresso com a Revolução Industrial e hoje é visto como

incerteza. Como bem coloca a mencionada autora : “Falar de risco é, por isso, falar de

incerteza. Incerteza introduzida pela técnica, incerteza geradora de imprevisibilidade,

incerteza convertida em problema jurídico. A dificuldade de previsão pode incidir sobre a

verificação do próprio fenómeno, sobre o momento de sua eclosão, sobre o tipo de efeitos

que esta provocará, sobre o alcance destes efeitos, sobre o seu potencial lesivo. Por outras

palavras, pode dizer-se que o risco se desdobra em dois elementos : a probabilidade de

ocorrência de um evento, por um lado, e o potencial lesivo deste, por outro lado.”

Arremata Carla Amado Gomes31 : “A ideia de Estado, entendida como estrutura de

sobrevivência de uma comunidade politicamente organizada, traz consigo a necessidade de

evitar danos significativos em pessoas e bens. Por isso o risco foi progressivamente

deixando de ser considerado como uma fatalidade para passara a integrar, a título essencial,

a ponderação decisória de entidades públicas em determinados domínios.” Risco, portanto,

a ser vertido para o interior do sistema do Direito e a enfeixar deveres e direitos.

Possível neste ponto extrairmos algumas ideias principais relativas ao termo “risco”.

Diria respeito a um evento futuro e, via de regra, à possibilidade de um evento danoso (e,

portanto, com este não se confundindo). Não raro se encontrando o termo acompanhado de

adjetivos de natureza qualificativa ou mesmo especificativa.

Mas ainda nos falta uma melhor conceituação do risco, distinguindo-o de outros

termos, dotando-o de um sentido mais completo, caminhando no sentido de uma melhor

delimitação do mesmo, evitando-se assim a armadilha da tautologia. Buscando inseri-lo 30 GOMES, Carla Amado. Risco e modificação do acto autorizativo concretizador de deveres de proteção do ambiente. Coimbra : Coimbra Editora, 2007, p. 226 e 227.

31 GOMES, Carla Amado. Risco e modificação do acto autorizativo concretizador de deveres de proteção do ambiente. Coimbra : Coimbra Editora, 2007, p. 245.

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adequadamente no universo jurídico.

1.2 – Risco e futuro

Retomemos a ideia de risco como associado a uma situação futura e desviante. O

risco como situação relegada ao destino e a forças externas às pessoas, ou seja, como algo

oriundo do campo metafísico, respeitante ao “divino”, completamente alheio a nossas

decisões e possibilidades de enfrentamento não encontra mais guarida, seja na linguagem

comum, seja no sistema jurídico. Nesse sentido, socorremo-nos da argumentação de Peter

Lewyn Bernstein32. Discorre o autor sobre como o risco, em razão da evolução do

conhecimento humano, especialmente no campo da matemática, estaria sendo dominado.

Uma circunstância que distinguiria os tempos modernos do passado33. Para o autor o termo

inglês risk, derivado do italiano risicare, significa arriscar, aceitar um desafio (no original :

to dare34). O risco seria, portanto, fruto de nossas decisões e de nossos atos e não mais o

resultado do destino.

Bernstein reconhece que o futuro é marcado por incertezas. A natureza apresenta

padrões os quais, todavia, nem sempre são regulares. Caso o fossem, não haveria incerteza

alguma e, consequentemente, não teria sentido algum falar em risco. Sempre saberíamos,

32 BERNSTEIN, Peter Lewyn. Against the gods : the remarkable story of risk. New York : John Wiley and Sons, 1996.

33 BERNSTEIN, Peter Lewyn. Against the gods : the remarkable story of risk. New York : John Wiley and Sons, 1996, p. 3.

34 BERNSTEIN, Peter Lewyn. Against the gods : the remarkable story of risk. New York : John Wiley and Sons, 1996, p. 8.

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sem surpresas, o que o futuro nos reservaria35. Sem embargo, mediante o domínio

principalmente da matemática, notadamente das técnicas relativas à ciência das

probabilidades, passamos a dispor de meios para medir e compreender o risco e migramos,

assim, de uma posição de impotência diante do futuro para uma postura mais ativa.

Pois é através de escolhas e de atos concretos realizados no presente que

dominamos esse mesmo futuro e, assim, conseguimos levar adiante projetos de vulto36.

Cambiante, inclusive, nossa visão de vida, o futuro não mais consistindo num inimigo mas

sim numa oportunidade. Tais incertezas, verdadeiros desvios daquilo que poderia ser um

padrão normal de acontecimentos, antes tidos como fruto de alguma providência divina,

resultam de nossas decisões e de nossas ações.

Sem embargo, ainda que se possa falar numa passagem de uma situação de absoluta

impotência para a de um certo controle e domínio do risco, é certo que, conforme bem

reconhece o próprio Bernstein, não temos acesso a dados e informações que se encontram

no “futuro”. Tais informações não nos são disponíveis, hoje, no presente. Nos fiamos em

métodos37 que tentam extrair padrões do passado para compreendermos como será o futuro.

35 BERNSTEIN, Peter Lewyn. Against the gods : the remarkable story of risk. New York : John Wiley and Sons, 1996, p. 329.

36 Para Bernstein, sem o domínio do risco e das incertezas do futuro, o instituto do seguro não teria sua existência viabilizada. Sem seguro, em tese, restariam desamparados dependentes de chefes de família cujas vidas se viram ceifadas e o acesso à saúde seria mais difícil. Fazendeiros não teriam incentivos para plantar mais, haja vista que não seria viável pensar-se em um mercado de futuros, instrumento que permite entrada de recursos antes do plantio da safra. O domínio de técnicas de gestão de risco permitiram, ainda, o desenvolvimento de projetos como pontes, aviões, a vacina de poliomielite, dentre outros (BERNSTEIN, Peter Lewyn. Against the gods : the remarkable story of risk. New York : John Wiley and Sons, 1996, p. 2).

37 Sem que disponhamos, contudo, de um único método provado e comprovado, de eficácia infalível. Sequer há consenso entre autores diversos quanto ao método adequado para prever-se o futuro. Apenas com a finalidade exemplificativa, nos valendo de citação fornecida por Bernstein (BERNSTEIN, Peter Lewyn. Against the gods : the remarkable story of risk. New York : John Wiley and Sons, 1996, p. 332), proponentes da denominada teoria do caos rejeitam as teorias convencionais de probabilidade : afirmam que desvios daquilo que é esperado não se agrupam, de forma ordenada e obediente, ao redor de uma posição central normal. Sem embargo, também sustentam também que todos os resultados têm uma causa, ainda que os resultados possam não ser proporcionais às causas apontadas. Mais uma evidência a apoiar a complexidade do assunto e a apontar para a necessidade de se aprofundar o conhecimento sobre o risco, que abarca eventos futuros e suas causas. Ganhou popularidade, no que concerne à teoria do caos, o denominado “efeito

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E ainda assim estamos inexoravelmente expostos, no futuro, a desvios. O passado não nos

revela quando, nas palavras de Bernstein, “wildness will break out in the future38”, ou seja,

quando nos depararemos com o imprevisível ou o inesperado. Mesmo com a evolução da

ciência de como lidar com o risco, este ainda persistirá. Aliás, a própria ciência de

administração dos riscos é causa de novos riscos, pois nos encoraja a tomar decisões que de

outra forma não o faríamos39.

Ainda assim, esse elemento de incerteza e a correlata possibilidade de desfechos

que não foram previstos não consistem, de forma alguma, num convite à omissão ou

mesmo num reforço do argumento da impotência absoluta diante do futuro. Pelo contrário.

Muitas vezes, conforme coloca Leibniz40, citado por Bernstein41, aquilo que nos escapa,

não se trata de algo aleatório mas sim de um elemento invisível, pertencente a uma dada

estrutura. Algo que poderia ser descoberto, revelado. Uma causalidade que, apesar de não

identificada, seria efetivamente cognoscível.

Portanto, ainda que povoado por incertezas, o futuro é também fruto de nossas

decisões e escolhas. Decisões mediadas muitas vezes por ferramentas que nos ajudam na

borboleta”, segundo o qual uma pequena alteração nas condições iniciais , como o bater das asas de uma borboleta, pode trazer uma enorme consequência, como um tornado. Um termo divulgado numa exposição feita por Edward Lorenz, no ano de 1972, para a American Association for the Advancement of Science em Washington, D.C., Estados Unidos da América, com o título : Predictability: Does the Flap of a Butterfly’s Wings in Brazil set off a Tornado in Texas? . Mais sobre a teoria do caos pode ser obtida na obra : LORENZ, Edward Norton. The essence of chaos. Seattle : University of Washington Press, 1993. Obra que conta com edições posteriores.

38 BERNSTEIN, Peter Lewyn. Against the gods : the remarkable story of risk. New York : John Wiley and Sons, 1996, p. 334.

39 BERNSTEIN, Peter Lewyn. Against the gods : the remarkable story of risk. New York : John Wiley and Sons, 1996, p. 335. Uma ideia também esposada por Ulrich Beck, assim como por Niklas Luhmann, no sentido de que quanto mais conhecimento temos, maior será o risco. O trabalho dos dois autores será retomado mais adiante.

40 Bernstein se refere a Gottfried Von Liebniz e a informação trazida no texto vem extraída de : KEYNES, John Maynard. A treatise on probability. London : Macmillan, 1921, frontispício ao Capítulo XXVIII.

41 BERNSTEIN, Peter Lewyn. Against the gods : the remarkable story of risk. New York : John Wiley and Sons, 1996, p. 330

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compreensão de uma realidade cada vez mais complexa. Ferramentas, contudo, que não

podem se transformar nos novos oráculos42, como bem adverte Bernstein.

Reiteramos : o futuro será, em grande parte, fruto de nossas decisões, de nosso atos

(e, decerto, de nossas omissões). Hoje, não mais nos guiamos por uma absoluta incerteza e

impotência. Dispomos, sim, de instrumentos aptos a trazer luz ao futuro. Há que se valer

dos mesmos, usá-los em nossas decisões. E, mais importante : efetivamente decidirmos43,

especialmente no plano das intervenções no tecido urbano, para que busquemos antecipar

de que maneira como estas repercutirão na vida e no bem estar das pessoas que moram,

circulam, trabalham, se divertem em nossos espaços urbanos. Não há como deixar os

espaços em que vivemos, e principalmente as pessoas que ali vivem, à sua própria sorte.

A ideia de futuro e de risco como decorrente de nossas decisões foi também

explorada por Niklas Luhmann, com sua peculiar maneira de enxergar e de tentar explicar

os fenômenos sociais44. Não vamos aqui nos aprofundar nas ideias do autor, o que

42 BERNSTEIN, Peter Lewyn. Against the gods : the remarkable story of risk. New York : John Wiley and Sons, 1996, p. 336.

43 Mais do que apenas dispormos das técnicas, de rigor que voltemos nossos olhos para o futuro compreendendo-o como uma realidade moldada pelas decisões presentes e também por estas determinado.

44 De forma bastante abreviada, Luhmann propôs a construção de uma teoria social apta a enfrentar todo e qualquer problema social. Uma teoria sociológica universal com um corpo teórico capaz de refletir toda complexidade do mundo social. Nesse diapasão, produziu textos sobre temas dos mais variados, tais como economia (Die Wirtschaft der Gesellschaft, 1988), ciência (Die Wissenschaft der Gesellschaft, 1990), direito (Das Recht der Gesellschaft, 1993), arte (Die Kunst der Gesellschaft, 1995), religião (Die Religion der Gesellschaft, 2000), amor (Love as passion. 1998), risco (Risk : a sociological theory. 1993) e da própria sociedade (Die Gesellschaft der Gesellschaft, 1997). Para que se possa falar em sistema, necessária uma operação fundamental, que consiste em distinguir entre sistema e seu ambiente. Somente por meio dessa distinção que o sistema ganha unidade e começa operar. O mesmo ocorre com sistemas sociais, os quais não se confundem com sistemas psíquicos ou biológicos, embora sejam estes seu ambiente e condição fundamental à sua própria existência. Os sistemas possuem suas próprias regras de funcionamento e mantêm uma clara fronteira entre o que lhe pertence e aquilo que pertence ao seu ambiente. São operacionalmente fechados, se auto organizam e se auto reproduzem. Para Luhmann a sociedade não consiste num objeto que precede à observação científica, oferecendo-nos, nesses termos, uma perspectiva pós ontológica da sociedade, orientada para a epistemologia, na qual não basta observar apenas o “que” (perspectiva do observador de primeira ordem), mas também o “como” (colocando-se na posição de um observador de segunda ordem), ou seja, compreendendo de que maneira aquele observador de primeira ordem observa. Nesse sentido : BORCH, Christian. Niklas Luhmann. London and New York : Taylor & Francis e-Library, 2011.

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desbordaria o escopo do presente trabalho, mas apenas embarcar no convite que ele faz à

reflexão. Para Luhmann a questão do risco guarda relação com a maneira pela qual a

sociedade lida com situações que são desviantes daquilo que pode ser considerado

“normal”. A sociedade produz, assim, o que ele denomina da semântica do infortúnio e,

assim agindo, acaba por refletir sua própria normalidade.

Luhmann45 não nega a importância dos procedimentos estatísticos para explicar as

ocorrências não antecipadas e os desvios daquilo que pode ser considerado como “normal”.

Sem embargo, pontua sobre a necessidade de se dar um passo além, buscando a

compreensão acerca da maneira pela qual a sociedade explica e lida com tais situações

desviantes. Qualquer que seja o nome dado a tais situações, como por exemplo

“infortúnio”, as mesmas não mais são compreendidas na sociedade moderna sob a forma de

magia ou mesmo de religião46, mas sim sob a forma do risco. O risco, nesses termos, se

apresenta como a outra face da situação de normalidade, ou seja, daquilo que Luhmann

denomina de “forma normal” e acaba por fornecer um novo conteúdo a um antigo papel,

qual seja, o de alertar a sociedade.

Conforme afirma Luhmann, não podemos nos fiar apenas na etimologia para

compreender em que consiste o risco e, ainda, o problema que o subjaz. Até porque o

mundo exterior desconhece o risco ou, ainda, distinções e avaliações, a menos que

produzidas pela observação. Portanto, ao falarmos de risco, imperativo fornecer uma exata

45 LUHMANN, Niklas. Risk : a sociological theory / with a new introduction by Nico Stehr and Gotthard Bechmann. Fourth printing. New Brunswick and London : Aldine Transaction, 2008, p. xxviii da “Introdução” da mencionada obra.

46 O vulcão Vesúvio (em que pese a notoriedade do Vesúvio, há em Nápoles, lado a lado, dois cones vulcânicos, quais sejam : Vesúvio e Somma), nos arredores da cidade de Nápoles, na Itália, e com intensa atividade, entrou em erupção de forma violenta, no ano de 1631, oportunidade na qual se deflagraram pela cidade procissões religiosas em busca da salvação, do arrependimento e da purgação. Há notícia dando conta de que a liturgia se prolongou por mais de um mês após a erupção, a cidade assumindo a feição de verdadeiro templo religioso, com registro de cenas de autoflagelação e até mesmo de procissão de prostitutas, com os cabelos cortados e coroas de espinhos, em suas cabeças, exortando arrependimento diante do fim que parecia se aproximar. Nesse sentido : NAZZARO, Antonio. Il rischio Vesuvio. Storia e geodiversità di un volcano. Napoli : Alfredo Guida, 2009, p. 46 e ss..

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definição daquilo em que o mesmo consiste, realçando, para tanto, sua distinção em relação

a outros objetos.

Para Luhmann, de forma bastante abreviada, há duas maneiras de se levar a cabo

uma distinção : em primeiro lugar, podemos indicar algo como sendo diferente de tudo. O

que especificamos, nessa hipótese, são objetos. Uma segunda forma se restringe a definir

aquilo que consiste no conteúdo do “outro lado” de nossa definição, tal qual ocorre, por

exemplo, nas distinções “quente-frio”, ou mesmo “virtude-vício”47 e que Luhmann designa

de conceito.

O termo “risco” acomoda uma pluralidade de distinções sob um mesmo conceito e

exige, assim, sua construção com respaldo em múltiplas contingências, oferecendo a

diferentes observadores diferentes perspectivas. Portanto, importante, à luz de tal

consideração, que as observações busquem uma forma, aqui compreendida como uma

distinção dicotômica, com dois lados distintos. No tocante ao risco, uma forma

tradicionalmente aceita o opõe à ideia de segurança. Sem embargo, de acordo com

Luhmann, referida forma não nos fornece adequadamente um conceito de risco. Traduz a

ideia, fruto de retórica política, de que para se ter segurança deve-se assentir ao risco. Não

obstante, não é factível atingir-se um estado de absoluta segurança. A oposição do risco à

segurança se presta apenas como uma válvula de escape apta a permitir que todas as

decisões sejam calculadas sob a perspectiva do risco. Mas essa mensuração sempre variará

conforme o observador. O que conduz Luhmann a indagar, inclusive, se há mesmo de se

optar entre risco e segurança - embora seja esta uma via abraçada por muitos observadores.

De forma alternativa, mas não definitiva, Luhmann propõe que o risco seja

contraposto à noção de perigo. A distinção entre risco e perigo pressupõe a incerteza

47 LUHMANN, Niklas. Risk : a sociological theory / with a new introduction by Nico Stehr and Gotthard Bechmann. Fourth printing. New Brunswick and London : Aldine Transaction, 2008, p.16

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sempre presente em relação a perdas futuras. Sem embargo, quando referidas perdas são

atribuídas a decisões, fala-se em risco. E, de outra banda, quando a perda é carreada a uma

causa externa, chamamo-la de perigo. Diferentemente da forma que distinguia o risco da

segurança, aqui posso, valendo-se da terminologia de Luhmann, “marcar” ambos os lados

da distinção. Ou seja, enfatizar um ou outro lado. Caso a ênfase seja atribuída aos riscos, há

uma tendência que os perigos sejam deixados de lado48. Nada obstante, a forma que se vale

da distinção entre perigo e risco tampouco é indene a críticas, pois aspectos políticos

influenciam a opção. Exemplifica Luhmann, trazendo situação ocorrida na Suécia : em

uma área onde seriam realizados testes de mísseis, entendeu-se como adequada a retirada

da população de Lapões, residente no local, por meio de helicópteros. Os testes foram

encarados como risco, enquanto a retirada da população apenas como perigo, muito embora

a possibilidade de perdas fosse muito maior em face da remoção daquela população49.

Diante de determinado contexto político, torna-se mais fácil se distanciar politicamente de

perigos do que de riscos.

A própria prevenção se reveste de complexidade e de uma carga de

imprevisibilidade50. É por meio da prevenção que nos preparamos para perdas futuras e

incertas e pode se dar tanto em relação a perigos quanto no tocante a riscos. Mas no que

toca a este último, a atividade de prevenção tem impacto não apenas na avaliação mas

também na aceitação dos riscos. Uma atividade que acaba por produzir novos riscos,

conforme já ressaltado acima, em relação à remoção de população na Suécia. Ademais, por

outro lado, a omissão de adotar medidas preventivas em relação a perigos se transmuda em

um risco.

48 LUHMANN, Niklas. Risk : a sociological theory / with a new introduction by Nico Stehr and Gotthard Bechmann. Fourth printing. New Brunswick and London : Aldine Transaction, 2008, p. 24.

49 LUHMANN, Niklas. Risk : a sociological theory / with a new introduction by Nico Stehr and Gotthard Bechmann. Fourth printing. New Brunswick and London : Aldine Transaction, 2008, p. 31.

50 LUHMANN, Niklas. Risk : a sociological theory / with a new introduction by Nico Stehr and Gotthard Bechmann. Fourth printing. New Brunswick and London : Aldine Transaction, 2008, p. 29 e 30.

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O risco também se imbrica de forma indissociável com a noção de futuro e com os

modelos de tempo e metáforas espaciais da sociedade moderna51. Como aponta Luhmann,

as coisas ocorrem simultaneamente, sejam elas dentro do sistema, sejam elas pertencentes

ao ambiente desse sistema, uma primeira e única vez. No que toca ao passado, pode-se ter

acesso a este mediante operações auxiliadas pela memória. Mas o sistema não tem acesso

ao seu futuro. Ainda assim, à medida que dispõe de memória, há também a habilidade de

calcular comportamentos recorrentes e consistentes. De qualquer forma, mesmo para ter

acesso ao passado por meio da memória o sistema deve se valer da construção de distinções

temporais, tais como “antes” e “depois”, ou “passado” e “futuro”, um meio para organizar a

complexidade social valendo-se de uma perspectiva temporal52. Nesse contexto, enquanto é

possível saber o que ocorreu no passado, ainda que não se disponha de clareza quanto a

eventuais relações causais, essa mesma segurança não existe em relação ao futuro. O

passado faz referência a eventos específicos, mas o futuro não pode ser antecipado dessa

maneira. O presente, nesses termos, se torna o ponto do qual se observa o passado e o

futuro. Um presente que se encontra em constante alteração53. Um presente do qual

também depende a avaliação do risco e que, tal qual esse mesmo presente, altera-se com o

transcurso do tempo. Torna-se assim inerente ao risco que sua avaliação sofra alterações ao

longo do tempo. A avaliação de riscos acaba por se integrar a uma máquina histórica mas

que, numa visão crítica, ou procederá com base em seu estado presente, ou se agarrará a

ideias preconcebidas sobre o que consiste em patamares aceitáveis ou inaceitáveis de risco,

ou acabará por revisar todo e qualquer julgamento produzindo incerteza ainda maior. A

própria atividade de “virar a página”, do futuro ao passado, de forma quase cega, num

contexto onde o futuro tem grande possibilidade de ser diferente do passado envolve risco.

Na sociedade moderna o peso dado a decisões e a consequente preocupação com o futuro 51 LUHMANN, Niklas. Risk : a sociological theory / with a new introduction by Nico Stehr and Gotthard Bechmann. Fourth printing. New Brunswick and London : Aldine Transaction, 2008, p. 33.

52 Quanto à temática do tempo, veja-se : SMOLIN, Lee. Time reborn : from the crisis in physics to the future of the Universe. Boston : Houghton Mifflin Harcourt, 2013. E, ainda : GLEICK, James. Time reborn. In : New York Review of Books, May 23rd. issue (2013).

53 Conforme argumenta Luhmann : “In the present one can this look forward to the future and from the future one will be able to look back at a present that will then be past;”. Traduzindo livremente temos : No presente, pode-se olhar adiante ao futuro e do futuro olhar para trás a um presente que então terá se tornado passado (LUHMANN, Niklas. Risk : a sociological theory / with a new introduction by Nico Stehr and Gotthard Bechmann. Fourth printing. New Brunswick and London : Aldine Transaction, 2008, p. 40).

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aumentam. Doenças que antes eram encaradas como perigos são hoje atribuídas ao risco

decorrente do estilo de vida de pacientes. A escolha de profissões, outrora decorrência da

tradição familiar, recai em nós. Nossas escolhas educacionais envolvem decisões e o risco

de poder usar o que foi aprendido ou não. E esse peso maior às decisões acaba por

transformar perigos em riscos. Em suma, para a sociedade moderna o futuro é simbolizado

como risco54, que se apresenta como uma forma para enfrentar o problema representado por

esse mesmo futuro e suas incertezas55.

Assim sendo, como acrescenta Ulrich Beck56, é por intermédio do risco que

conseguimos trazer para o presente desastres e catástrofes futuras (e que portanto ainda não

ocorreram). O risco é uma maneira de representar esse futuro porvir e de compelir, no

presente, à tomada de ações, à tomada de decisões. À tomada de medidas preventivas.

Luhmann alerta que estabelecer diferenças não se limita ao mero exercício de

elaboração de listas, tais como : coisas grandes e pequenas, brancas e negras ou minha casa

e a casa dos outros57. Ao procedermos dessa maneira estamos a adotar a perspectiva

daqueles que Luhmann denomina de observadores de primeira ordem. Necessário que se

passe a observar aquele observador de primeira ordem58. Ou seja, que perquiramos ou

busquemos compreender de quais distinções se valeu o observador de primeira ordem. Um

singelo exemplo auxiliará na nossa exposição. Tomemos o tema da segurança : quando

observadores diversos se referem à segurança podem estar fazendo alusão a significados

54 LUHMANN, Niklas. Risk : a sociological theory / with a new introduction by Nico Stehr and Gotthard Bechmann. Fourth printing. New Brunswick and London : Aldine Transaction, 2008, p. 37.

55 LUHMANN, Niklas. Risk : a sociological theory / with a new introduction by Nico Stehr and Gotthard Bechmann. Fourth printing. New Brunswick and London : Aldine Transaction, 2008, p. 51.

56 BECK, Ulrich. World at risk. Cambridge : Polity, 2009, p. 9-11.

57 LUHMANN, Niklas. Risk : a sociological theory / with a new introduction by Nico Stehr and Gotthard Bechmann. Fourth printing. New Brunswick and London : Aldine Transaction, 2008, p. 223.

58 LUHMANN, Niklas. Risk : a sociological theory / with a new introduction by Nico Stehr and Gotthard Bechmann. Fourth printing. New Brunswick and London : Aldine Transaction, 2008, p. 226.

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completamente distintos e que apenas se tornam claros quando logramos compreender o

“outro lado”. Socorrendo-nos da doutrina de Borch59, para uma vítima de crime contra os

costumes, o “outro lado” da segurança pode consistir em violência sexual, para um órfão de

um terremoto no Haiti significa viver nas ruas, para um Europeu de classe média pode ser a

elevação dos custos de saúde. O observador de primeira ordem está preocupado com o

objeto, com o “que”, enquanto o observador de segunda ordem se centra no “como”. A

adequada compreensão do significado de um conceito exige que não nos limitemos a

permanecer apenas no patamar dos objetos, mas que haja a compreensão de como se está a

observar o risco.

A argumentação de Luhmann, longe de nos fornecer uma resposta definitiva sobre o

tema do risco, nos impõe a adoção de uma postura de permanente reflexão e

inconformismo. Aliás, a busca de um conceito concreto de definitivo em relação a tema

que, por natureza, é fluido e dinâmico, militaria em desfavor do adequado enfrentamento de

situações futuras desviantes e não mais deixadas à mercê do destino, da magia e da crença.

Fundamental que se disponha de uma postura crítica para enxergar não apenas o que

podemos chamar de objeto do risco, com suas inúmeras manifestações, tais como risco

sísmico, risco vulcânico, risco relativo a grandes empreendimentos, mas também sua

forma, seu “outro lado”, a maneira como o risco está sendo encarado e observado, o

contexto político no qual está inserido. Só assim nos desprenderemos, na terminologia

“Luhmanniana”, da posição de observadores de primeira ordem, aprisionados na quase

insuperável complexidade do plano ontológico, com suas perspectivas quase infinitas. Sem

embargo, reforçada, assim, a ideia de risco como um objeto cultural60, ou seja, como

criação humana destinada a dar resposta a situações futuras consideradas desviantes da

normalidade e que se encontra enraizado na sociedade moderna. E, insistimos, enquanto

criação humana e apoiado e construído por decisões, apto a ser consequentemente regulado

pelo direito.

59 BORCH, Christian. Niklas Luhmann. London and New York : Taylor & Francis e-Library, 2011, p. 53.

60 Retornaremos ao tema do risco enquanto objeto cultural, com a devida vênia, mais adiante.

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Risco que assume uma dimensão quase inseparável da sociedade moderna, tal qual

veremos no item seguinte.

1.3 – Risco e a sociedade moderna.

O risco é apontado como uma característica inseparável da sociedade moderna,

afirmação que tomamos por empréstimo do sociólogo alemão Ulrich Beck61. Para Beck,

vivemos atualmente numa sociedade global de risco : encontrar-se em situação de risco é

não só uma forma de ser, de existir, mas também uma forma de governar e de dominação. E

diante desse risco, que Beck caracteriza como sendo onipresente na atual sociedade, seriam

possíveis três espécies de reações : negação, apatia ou transformação62.

Neste ponto, para uma adequada compreensão do risco, se faz necessária uma

distinção essencial, qual seja, a distinção entre risco e catástrofe. O risco apenas existe em

um estado virtual. Ele representa a antecipação da catástrofe. E tão logo referidos riscos se

tornam reais, se concretizam, eles deixam de ser riscos para se tornarem catástrofes. E o

que se denomina de risco já se deslocou para qualificar outra situação potencial, ainda não

realizada. Portanto, necessita o risco de técnicas adequadas de visualização ou mesmo de

formas simbólicas, sem as quais os riscos não são absolutamente nada.

O risco, dentro desse contexto, não pode ser exclusivamente reduzido ao produto da 61 BECK, Ulrich. Living in the world risk society. In : Economy and society. Volume 35, number 03, august 2006 : 329-345.

62 BECK, Ulrich. Living in the world risk society. In : Economy and society. Volume 35, number 03, august 2006, p. 331.

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probabilidade da ocorrência de um dano multiplicado pela intensidade e escopo de seus

danos potenciais. Trata-se, sim, de um fenômeno construído socialmente. E envolve,

invariavelmente, apreciações políticas, éticas e morais que nem sempre são evidentes. A

definição daquilo que consiste e daquilo que não consiste em “risco” é, portanto,

determinada no seio de um verdadeiro jogo de poder. Modernamente, a exposição ao risco

vem se traduzindo na principal causa de desigualdade, superando a iniquidade decorrente

da estrutura de classes sociais. Algumas pessoas têm maior capacidade de definir em que

consistirá o risco. Assim, a desigualdade se expressará por meio da possibilidade que detêm

atores poderosos do cenário global em maximizar o risco para os outros, minimizando

consequentemente o risco para si. Os conflitos, agora, não mais se circunscrevem àqueles

entre o capital e o trabalho, mas sim entre a percepção cultural do risco. As novas linhas

mestras dos conflitos atuais seriam, assim, culturais, afetas à crença de quão real é o risco.

O princípio da sorte e do fortuito é substituído pelo princípio de deliberadamente explorar a

vulnerabilidade da sociedade moderna63, cujas instituições não estão aptas a enfrentar os

riscos denominados de globais.

Portanto, nos termos do parágrafo anterior, não haveria um objeto “risco”

aguardando para ser descoberto ou desvendado, um objeto que se imporia natural e

objetivamente. À semelhança de Bernstein, Beck também esposa o entendimento de que o

risco é fruto, sim, das decisões humanas. Sai de cena a figura de Deus e a partir de então

são os próprios seres humanos que deverão buscar explicações e justificativas para os

desastres que os ameaçam. Riscos cuja percepção e construção é atualmente marcada por

três características básicas64 : em primeiro lugar, as consequências dos riscos não mais se

circunscrevem a uma localização geográfica, percebendo-se os riscos, portanto, como

onipresentes; em segundo lugar os riscos seriam, em princípio, incalculáveis65; e, por fim,

63 BECK, Ulrich. Living in the world risk society. In : Economy and society. Volume 35, number 03, august 2006, p. 330.

64 No original (BECK, Ulrich. Living in the world risk society. In : Economy and society. Volume 35, number 03, august 2006, p. 333 e 33 ): “de-localization”, “incalculableness” e “non-compensability”.

65 Beck pontua que, em principio, os riscos poderiam efetivamente ser explicados, antecipados e controlados. Sem embargo, dentro da dinâmica da sociedade mundial de risco, tal explicação se mostra inviável. Nesse

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irreparáveis66.

Dentro desse contexto, de acordo com Beck, as atuais instituições nacionais não se

mostram aptas a fazer frente a referidas situações de risco. Pior ainda : referidas instituições

são percebidas como a própria fonte de riscos. Os desafios dos riscos denominados globais

exigem uma forma alternativa de governo. A coalizão entre o Estado mínimo e o capital

global, até hoje prestigiada pela ordem global, não está conseguindo responder a contento

àqueles desafios. O que nos reenvia a uma das reações cabíveis ante o risco mencionadas há

pouco : a de transformação. Os riscos globais clamam por uma forma de Estado que Beck

denomina de cosmopolita. Um Estado marcado por uma ordem pós-nacional, envolta em

uma aura de direitos humanos e de justiça global, diversa daquela do Estado neoliberal,

marcada pela auto regulação, pelo estado mínimo, e pela coalizão deste predominantemente

com o capital. Um novo arranjo onde há transferência de poder também à sociedade civil,

hoje mais envolvida nos debates relativos aos riscos globais. Um arranjo onde a coalizão do

Estado deve ser com essa mesma sociedade civil.

Acentua Beck, sem embargo, que o risco pode ser um importante aliado na

consecução dessa nova ordem mundial, convergindo-nos àquela forma cosmopolita de

Estado. Todavia, como bem alerta Beck, um aliado que não é completamente confiável,

pois sempre possível sua utilização abusiva como mera retórica para justificar fins

hegemônicos de atores específicos.

Traz Beck, assim, uma visão interessante do risco como uma construção social,

mediada por apreciações políticas, éticas e morais e também alimentado por decisões

sentido : BECK, Ulrich. Living in the world risk society. In : Economy and society. Volume 35, number 03, august 2006, p. 340.

66 Diante da irreversibilidade de alguns riscos a lógica da compensação e da indenização seriam substituídas pelo princípio da precaução por meio da prevenção (BECK, Ulrich. Living in the world risk society. In : Economy and society. Volume 35, number 03, august 2006, p. 334).

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humanas. Sem embargo, pode consistir o risco, também, num impulsor para mudanças,

inclusive estruturais, alicerçadas em direitos humanos. Ainda que possa o risco se

transformar num instrumento para levar-nos a mais segregação e mais negação e nos

conduza a um novo arranjo institucional, mais democrático e mais transparente, inclusive

no que toca à construção das normas. Ainda que não seja possível erradicar o risco, inerente

à sociedade moderna, temos que avançar sempre em direção a uma nova ordem,

prestigiadora de direitos fundamentais67.

Beck ainda vai além. Hoje não somos mais, simplesmente, uma sociedade de risco,

mas sim uma sociedade mundial de risco. O risco não mais se confunde com a catástrofe,

mas consiste em uma representação presente desse evento futuro. Uma antecipação que nos

impõe, destarte, um dever de agir antecipado68. Nesses termos, a construção ou

representação dos risco globais coloca em marcha uma produção social da realidade69. O

risco assume assim um papel tanto de causa, como de meio para transformações sociais,

derrubando barreiras nacionais, dada sua característica global.

67 Estado de ignorância, falta de aptidão institucional, incapacidade de antecipação, necessidade de uma nova ordem alicerçada em direitos e não apenas no individualismo e na auto regulação : seriam tais circunstâncias inerentes apenas a alguns países, notadamente aqueles mais pobres e ditos “em desenvolvimento” ? Não estamos tão certos disso, e um breve exemplo se presta a justificar nosso questionamento. Um artigo publicado na revista médica The Lancet (TANIGAWA, Koichi , HOSOI, Yoshio, HIROHASHI, Nobuyuki, IWASAKI, Yasumasa, KAMIYA, Kenji. Loss of life after evacuation: lessons learned from the Fukushima accident . In : The Lancet, Volume 379, Issue 9819, Pages 889 - 891, 10 March 2012) traz relatos preocupantes relativos ao terremoto ocorrido nas cercanias da cidade de Fukushima, aos 11 de março de 2011, no Japão e que causou danos em uma central nuclear (Central I - Daiichi) situada naquela localidade. Decerto que se tratou de uma catástrofe de proporções gigantescas. Sem embargo, relata o apontado artigo sobre a trágica situação de pacientes internados em hospitais da redondeza. Pacientes foram retirados de mencionados estabelecimentos, aos 13 de março de 2011, sem maiores cautelas. Eram colocados em ônibus, inclusive aqueles acamados, alguns amarrados com peças de vestimenta aos bancos dos veículos e sem acompanhamento médico. Houve em alguns casos demora de até 24 horas para que pacientes fossem recepcionados em estabelecimentos públicos de saúde. Em que pese não haver o registro de nenhuma morte decorrente, de forma imediata, da ação da radiação, pelo menos 10 pessoas morreram durante o apontado transporte. E registraram-se mais de 50 mortes durante ou após a evacuação em decorrência de hipotermia, desidratação ou da piora das condições clínicas. Cumpre aqui acrescentar que no plano de desastre nuclear do Japão não havia qualquer previsão específica aos pacientes de hospitais. Sem nos alongarmos mais, cremos sinceramente que tais situações de catástrofe devem reconduzir nossas instituições a uma nova leitura e construção do que se entende por risco. O risco como impulsionador de transformações, envoltas numa aura de preservação de direitos. 68 BECK, Ulrich. World at risk. Translated by Ciaran Cronin. Cambridge : Polity, 2009, p. 09.

69 BECK, Ulrich. World at risk. Translated by Ciaran Cronin. Cambridge : Polity, 2009, p. 16.

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Para Anthony Giddens, risco e sociedade moderna também se imbricam. Vivemos

atualmente em um mundo que se opõe às previsões das “principais figuras do Iluminismo”,

para as quais quanto mais conhecêssemos de nosso mundo, mas poderíamos controlá-lo e

direcioná-lo. Conforme prossegue Giddens : “As conexões entre o desenvolvimento do

conhecimento humano e o auto-entendimento humano provaram ser mais complexas do

que sugere essa visão. Atualmente, a característica de nossas vidas é o que se poderia

chamar de ‘incerteza fabricada’.”70 Isso não quer dizer que a vida apenas agora passou a ser

incerta e marcada por contingências. Sempre o foi. Para Giddens “o que mudou foram as

origens dessa imprevisibilidade. Muitas das incertezas com que nos defrontamos hoje

foram criadas pelo próprio desenvolvimento do conhecimento humano.”71

O risco, assim, assume um perfil peculiar no mundo moderno, e que Giddens

sintetiza nos termos seguintes : em primeiro lugar, o risco é globalizado, seja em termos de

intensidade (e.g. : um conflito bélico nuclear coloca em risco a vida de todas as pessoas da

face da terra) assim como no que diz respeito à ocorrência cada vez mais dispersa e

expansiva de eventos que afetam a um grande número de pessoas (tal qual ocorre, por

exemplo, com as mudanças na divisão de trabalho em escala global). Risco este, ademais,

que deriva da ação do próprio homem e chega a ser institucionalizado, tal qual ocorre, a

título de exemplo, no mercado de investimentos, afetando igualmente a vida de milhões de

pessoas. O próprio risco é percebido como um risco : ou seja, as lacunas do conhecimento

não poderão ser convertidas em certeza por meio da religião ou da magia. E mesmo o

conhecimento é assaz limitado para esclarecer-nos acerca do futuro, em especial o

70 GIDDENS, Anthony. Risco, confiança e reflexividade. In : BECK, Ulrich, GIDDENS, Anthony, LASH, Scott. Modernização reflexiva : política, tradição e estética na ordem social moderna. Tradução de Magda Lopes. São Paulo : Editora da Universidade Estadual Paulista, 1997, p. 219.

71 GIDDENS, Anthony. Risco, confiança e reflexividade. In : BECK, Ulrich, GIDDENS, Anthony, LASH, Scott. Modernização reflexiva : política, tradição e estética na ordem social moderna. Tradução de Magda Lopes. São Paulo : Editora da Universidade Estadual Paulista, 1997, p. 220.

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conhecimento científico que não mais goza de uma hegemonia absoluta.72

Em suma, o que nos resta é a inevitabilidade do convívio com perigos que fogem ao

controle não apenas dos indivíduos, mas inclusive de grandes organizações, dentre as quais

os Estados. Riscos que são de grande intensidade e afetam à própria sobrevivência

humana.73

O risco se impõe, nesses termos, como um elemento inarredável do mundo

moderno. Risco que potencialmente reverberará em todos os rincões do globo. Risco que

jamais será erradicado, mas que está sempre a se renovar e com o qual necessariamente

devemos aprender a conviver e administrar. Risco que detém, sem embargo, uma clara

dimensão espacial, e cuja administração ou convívio passa necessariamente pelo uso de

ferramentas de intervenção no tecido urbano, consoante defenderemos mais adiante.

1.4 – Do risco enquanto objeto cultural

Importa trazer, em complementação à seção anterior, algumas considerações

adicionais sobre o risco e sua natureza de objeto cultural, aqui entendido como uma criação

humana e não como um objeto a ser meramente desvelado ou descoberto na Natureza.

Explicamo-nos.

A definição de risco que estamos aqui a construir não se confunde com o evento

72 GIDDENS, Anthony. The consequences of modernity. Cambridge : Polity, 1991, p. 124 e 125.

73 GIDDENS, Anthony. The consequences of modernity. Cambridge : Polity, 1991, p. 131.

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danoso ao qual o mesmo estaria, em tese, associado, tal qual já asseverado anteriormente. O

risco consiste, sim, num potencial evento danoso futuro. Ou melhor : numa representação

que se constrói, no presente, acerca desse evento futuro potencialmente danoso. Mas, mais

do que isso, está ligado às decisões que serão tomadas no presente para enfrentar referido

evento danoso. Uma representação que compele à decisão. Decisões que, diferentemente de

concepções medievais, são aptas, sim, a moldar o futuro porvir.

Como bem colocam Szerszynski, Lash e Wynne : “The future is not a pre-existing

land towards which we are all moving, and which it is our task to discern through the mist

and prepare for, but something which is created and shaped through all the decisions we

make.”74

Não estamos aqui a negar os perigos e os desastres. Infelizmente eventos danosos

são praticamente lugar comum : casas e famílias tragadas pelas águas ou por movimentos

de terras75, prédios que desabam ceifando vidas76, mulheres que são agredidas ou mesmo

74 SZERSZYNSKI, Bronislaw; LASH, Scott; WYNNE, Brian. Introduction : Ecology, realism and the social sciences. In : LASH, Scott; SZERSZYNSKI, Bronislaw; WYNNE, Brian (Editores). Risk, Environment and Modernity Towards a New Ecology. London : SAGE, 1998 (reprinted), p. 10. Numa tradução livre temos : O futuro não consiste em um território pré-existente em direção ao qual nos movemos, e que é nossa tarefa discernir em meio à bruma e nos preparamos para sua chegada, mas sim como algo que é criado e moldado pelas decisões que todos nós tomamos.”

75 Tal qual ocorre, por exemplo, em imóveis construídos em encostas instáveis. Incontáveis indícios permitem inferir-se pela probabilidade do evento danoso futuro. Indícios que, em princípio, podem ser lidos antecipadamente. Indícios que não se circunscrevem apenas a aspectos do imóvel em si, mas devem abraçar outras questões, tais como : o da devida fiscalização de imóveis, do efetivo controle das ocupações em áreas ambientalmente sensíveis, da construção e efetivação de uma política habitacional apta a atender às diferentes demandas por moradia, de forma digna e segura. E, preliminarmente, de elaboração de cadastros e mapas de riscos, pois quantos outros imóveis não estarão em condições semelhantes, com vidas e patrimônio expostos a risco.

76 Deixamos aqui, apenas para reflexão uma questão : é de surpreender a queda de um prédio construído sem licença e sem critérios de engenharia adequados? Cremos que é também pertinente uma outra pergunta, de natureza retórica : quantos outros prédios não se encontram em situação semelhante, ostentando sinais a indicar uma enorme possibilidade da ocorrência de eventos danosos futuros, mas sem que ninguém lhes dê ouvidos ? Parece que se está no aguardo de novas tragédias e do triste espetáculo que as acompanha. E nada mais. Não queremos afirmar que absolutamente nada está a ser feito, pois desprestigiaria o trabalho de muitos atores desenvolvido na fiscalização de obras por exemplo. Mas certamente há amplas possibilidades de ações presentes para evitar tragédias futuras. Inclusive em relação às quais não contamos com indícios tão veementes de sua ocorrência porvir.

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assassinadas por seus companheiros77, crianças e adolescentes que se vêm obrigados a

deixar o local onde moram em razão de ameaças de morte78. Todas estas situações, ainda

que aparentemente díspares, têm algo em comum. Certamente as antecederam decisões,

sejam no sentido de agir, seja no sentido de se omitir. Não é demasiado afirmar, como

regra, que se tratam de situações que não eclodiram simplesmente em um determinado

momento no espaço e no tempo, mas que estavam a se instalar de forma insidiosa e

paulatina, fornecendo indícios do evento futuro danoso que estava porvir e que era apto a

ser mudado em face de decisões tomadas antes. Todos esses eventos futuros têm no risco

seu antecedente lógico. Risco que pode ser maior ou menor, percebido ou não, trazido para

o centro do debate ao alijado, até mesmo de forma proposital, do cenário público. Mas,

sempre, o risco. Risco que pode e deve ser construído com base em fatos e indícios

presentes. Mas, ainda, assim, uma construção humana, uma representação relativa a eventos

futuros.

Ainda a tratar de objetos culturais, cremos caberem considerações adicionais no

sentido de distingui-lo, principalmente, dos naturais. Conforme leciona Paulo de Barros

Carvalho, alicerçado em Edmund Husserl e Carlos Cossio, a definição de objeto cultural é

matéria afeta à teoria geral dos objetos79. Nesta “vemos quatro ontologias regionais ou

77 A violência doméstica pode ter como deflagradores, a título de exemplo, o consumo de substâncias, crenças enraizadas em determinadas parcelas da sociedade sobre o papel subalterno da mulher, a carência de recursos cognitivos, seja da mulher para enfrentar a violência, seja do homem para respeitar sua companheira. Deflagradores que podem e devem ser lidos antecipadamente para evitar o desfecho futuro de violações de direitos. Deflagradores em relação aos quais cabem ações e medidas antecipadas para, no mínimo, mitigá-los. Aguardar que ecloda a violência é não enxergar esses deflagradores, é não enxergar o risco.

78 Aqui, à semelhança da nota anterior, temos inúmeras situações antecedentes que podem nos levar a inferir sobre a alta probabilidade de que jovens se encontrarão, futuramente, em circunstâncias que podem levá-los à morte e que exigirão sua proteção até mesmo com a retirada do seio da comunidade em que cresceram : numa enumeração não exaustiva, podemos citar o envolvimento com drogas, a desestruturação familiar, a ausência de oferta cultural, educacional e de lazer apropriados, a ausência de perspectivas de trabalho digno, um efetivo combate ao crime organizado, notadamente ao tráfico de drogas, um dos grandes algozes desses jovens. As informações aqui retratadas foram colhidas, informalmente, junto a atores que operam o PPCAAM, - Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte. Trata-se de programa que acolhe jovens em situações de potencial letalidade e os estabelece, juntamente com suas famílias, em locais diversos daquele onde se originou a dita ameaça.

79 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário, linguagem e método. 2ª edição. São Paulo : Noeses, 2008, p.

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regiões ônticas, tendo o ser humano como ponto de referência de onde se irradiam os

espaços correspondentes.” A cada região ôntica pertence um determinado objeto. São eles :

os objetos naturais, os objetos culturais, os objetos ideais e os objetos metafísicos. Trata-se,

sem embargo, de uma forma de enxergar os objetos, que como bem alerta Paulo de Barros

não esgota “com precisão o mundo objetal.” Nada obstante, trata-se de sistematização útil à

nossa explanação, em especial para auxiliar na distinção entre o risco e o evento futuro

danoso associado a esse mesmo risco.

No que toca aos objetos físicos, estes são “naturais ou reais, manifestam-se no

tempo e no espaço, o que significa dizer que podem ser colhidos na experiência (...).

Todavia, tendem à neutralidade axiológica, vale dizer, inclinam-se para a condição de

objetos neutros com relação a valores(...). O ato gnosiológico apropriado para objetos dessa

região ontológica é a explicação e o método é o empírico-indutivo.”80

“Os objetos ideais são irreais, inocorrendo no âmbito das coordenadas de espaço e

de tempo, o que implica declara a impossibilidade de seu conhecimento empírico (...),

tendem à neutralidade axiológica, o ato gnosiológico que lhes é próprio chama-se

intelecção e o método eficaz para o trato com tais elementos é o racional-dedutivo.” 81

“Já os culturais são reais, têm existência espaço-temporal, susceptíveis, portanto, à

experiência, além de serem valiosos, positiva ou negativamente. O acesso cognoscitivo se

dá pela compreensão e o método próprio é o empírico-dialético”.82

80 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário, linguagem e método. 2ª edição. São Paulo : Noeses, 2008, p. 17.

81 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário, linguagem e método. 2ª edição. São Paulo : Noeses, 2008, p. 17.

82 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário, linguagem e método. 2ª edição. São Paulo : Noeses, 2008, p. 17

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Por fim, no que concerne aos objetos metafísicos, estes “não podem ser

surpreendidos pela experiência, ainda que sejam valiosos, positiva ou negativamente. É

desconhecida a possibilidade de acesso, ao menos em termos científicos, ao mundo da

metafísica, formada por objetos que estão para lá da experiência, justificando-se,

unicamente, pela via da crença”83.

Nesse contexto, situamos o risco como algo diverso do fato concreto que

potencialmente o sucede. Risco enquanto objeto cultural, construído forçosamente com a

emissão de um juízo de valor. Risco, portanto, fruto de decisão humana, trazendo ínsita

uma decisão sobre aquilo que deverá ser objeto de nossa atenção e ação.

Reportando-nos ao alerta de Canotilho84 já mencionado anteriormente, não há como

investigar o risco sem adentrar em seus contornos sociais, entende-lo como um objeto

cultural, mas sem se contentar com a mera semântica, com discursos vazios. Há sim que se

impor um dever de agir acentuado, novas responsabilidades, que podem e devem ser

mediadas pelo Direito. O risco a moldar o Direito e a ser moldado por este.

A característica do risco como algo produto do engenho e da criação humana vem

reforçada por autores como Ulrich Beck e Mary Douglas.

83 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário, linguagem e método. 2ª edição. São Paulo : Noeses, 2008, p. 18.

84 As ideias são da lavra de José Joaquim Gomes Canotilho, ao prefaciar a Revista do Centro de Estudos de Direito do ordenamento, do Urbanismo e do Ambiente (CEDOUA), n. 22, Ano XI, 2.2008.

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Para Mary Douglas e Aaron Wildavsky85, as considerações acerca do risco

envolvem algumas peculiaridades. Consiste em tema em torno do qual não existe consenso,

com pessoas diferentes preocupando-se com riscos diversos, tais como a guerra, a poluição,

o emprego ou a inflação. Tampouco há acordo em relação às ações que devem ser tomadas

diante do risco. Em suma, remanesce um inarredável dissenso acerca do que deve ser

considerado como risco, sua magnitude e o que necessita ser feito a respeito86.

Portanto, prosseguem os autores87, o risco não se oferece a nós como um objeto a

ser descoberto, como se estivesse sob um manto a ser levantado, desvelando aquilo que se

esconde sob o mesmo. A multiplicidade de posições e de opiniões acerca do tema são uma

clara demonstração desta afirmação. E apenas uma análise cultural será capaz de extrair

algum sentido dessa miríade de opiniões, alicerçada em valores e crenças de uma dada

forma social. Um julgamento que é essencialmente social.

Cada forma de organização social, nos termos da doutrina de Mary Douglas e Aaron

Wildavsky, produz sua visão própria acerca do meio ambiente, uma visão que influencia

suas escolhas acerca dos perigos que merecem atenção. A escolha dos riscos dignos de

atenção é fruto desse arquétipo social. Tal qual exemplificam os autores, os perigos são

concretos : a qualidade da água para consumo humano no século XIV certamente consistia

num perigo à saúde, mas esta apenas se tornou uma preocupação pública a partir do

momento em que se passou, de forma supostamente plausível, a acusar os Judeus de

85 DOUGLAS, Mary Tew; WILDAVSKY, Aaron B.. Risk and Culture. An essay on the Selection of Technological and Environmental Dangers. Berkeley : University of California Press, 1983 (texto convertido ao formato eletrônico, em plataforma Kindle, da Amazon).

86 DOUGLAS, Mary Tew; WILDAVSKY, Aaron B.. Risk and Culture. An essay on the Selection of Technological and Environmental Dangers. Berkeley : University of California Press, 1983 (texto convertido ao formato eletrônico, em plataforma Kindle, da Amazon – posição 24/2515).

87 DOUGLAS, Mary Tew; WILDAVSKY, Aaron B.. Risk and Culture. An essay on the Selection of Technological and Environmental Dangers. Berkeley : University of California Press, 1983 (texto convertido ao formato eletrônico, em plataforma Kindle, da Amazon – posições 111/2515 e 168/2515).

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envenenar os poços88.

Já o risco, acrescentamos, representa uma seleção daquilo que será recolhido da

realidade para se tornar objeto de atenção pública, mediado por valores e crenças.

E mesmo a questão da aceitabilidade do risco envolve um antecedente lógico : qual

seja, do tipo de sociedade que se deseja e se persegue. Como acentua Mary Douglas, cada

sociedade detém seu particular sistema ético. Análises de custo benefício levadas adiante

para tentar estabelecer o quantum de risco que seria aceitável em determinada sociedade

são contingentes do sistema ético abraçado por essa mesma sociedade89.

Portanto, seja a delimitação do risco, seja a sua representação ou mesmo a fixação

de seu patamar aceitável, estas não passam ao largo de questões culturais. Pelo contrário : é

o risco um objeto cultural, construído cultural e socialmente, produto da criação humana. E

como tal, repetimos, apto a ser regulado pelo Direito.

Ulrich Beck, em seu livro World at Risk90, também milita com a questão do risco e

de sua natureza de objeto cultural.

88 DOUGLAS, Mary Tew; WILDAVSKY, Aaron B.. Risk and Culture. An essay on the Selection of Technological and Environmental Dangers. Berkeley : University of California Press, 1983 (texto convertido ao formato eletrônico, em plataforma Kindle, da Amazon – posição 94/2515 e 85/2515). A ideia de que a atribuição de culpa pelos infortúnios guarda relação com o sistema de justiça é explorada por Mary Douglas em outro trabalho de sua lavra. Os desastres, e o risco que os antecede, somente depois de codificados, ou seja, depois de representados como um comportamento repreensível de quem quer que seja, imporão um dever de agir a tais agentes tidos como responsáveis. Em não se determinado eventuais “culpados”, não haverá como exigir ação ou comportamento de quem quer que seja. Veja-se : DOUGLAS, Mary Tew. Risk and Blame. Essays in cultural theory. London : Routledge, 1994 - texto convertido ao formato eletrônico, em plataforma Kindle, da Amazon.

89 DOUGLAS, Mary Tew. Risk acceptability according to the social sciences. (Social research perspectives : occasional reports on current topics; 11). New York : Russel Sage Foundation, 1985, p. 14 e 15.

90 BECK, Ulrich. World at Risk. Cambridge : Polity, 2012.

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Para Beck91, risco não é sinônimo de catástrofe. Risco significa, sim, a antecipação

de catástrofes e diz respeito à possibilidade de ocorrências futuras. Traz para o presente um

estado das coisas que ainda não existe. Enquanto a catástrofe é espacial, temporal e

socialmente determinada, sua antecipação não o é. Uma vez que os riscos se tornam reais,

eles se transmudam em catástrofes. Riscos são, sempre, eventos futuros que podem ocorrer

e que nos rondam e nos ameaçam. E, dessa maneira, se transformam em forças políticas.

Trata-se o risco de uma encenação da realidade. E dita encenação de catástrofes e desastres

acaba por impor um dever de agir no presente.

Essa representação de um futuro que ainda não ocorreu se torna bastante evidente,

como acentua Beck, no trabalho de Nicholas Stern92, que tem por objeto as mudanças

climáticas. Stern nos brinda com uma visão apocalíptica dos impactos da mudança

climática, retratando previsões relativas à possível destruição de Londres e Nova Iorque, ao

colapso da agricultura, à falta de água, e a uma explosão das mortes em decorrência da

malária, dentre outras consequências. Para Beck93, o trabalho de Stern é uma peça

extremamente hábil de encenação. Transforma o invisível em algo visível e a antecipação

de catástrofes é realçada com o uso de indicadores empíricos (e.g. : a morte por malária, a

destruição de Londres, dentre outras) os quais, nos dizeres do próprio Beck, acabam por

tocar em pontos culturais extremamente sensíveis (no original : “cultural nerves”). O que

temos é o risco, uma antecipação cuja finalidade é mudar e nortear ações presentes.

Nada obstante, longe de ser uma ideia unívoca, subjaz à mencionada representação

do futuro um debate entre correntes diversas que Beck94, ao tratar da sociedade mundial de

91 BECK, Ulrich. World at Risk. Cambridge : Polity, 2012, p. 9 -12.

92 STERN, Nicholas. The Economics of Climate Change : The Stern Review. Cambridge : Cambridge University Press, 2007.

93 BECK, Ulrich. World at Risk. Cambridge : Polity, 2012, p. 85.

94 BECK, Ulrich. World at Risk. Cambridge : Polity, 2012, p. 85.

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risco, condensa em duas grandes visões : uma visão construtivista e outra realista.

Numa perspectiva realista, tal qual a de Stern, os perigos da sociedade industrial

desenvolvida já “são” globais. Ou seja, são concretos e alicerçados em dados científicos.

Sem embargo, como ressalta Beck95, as imagens e símbolos trazidos pela corrente realista

não se confirmam cientificamente, mas são fruto, sim, de uma construção cultural. As

consequências catastróficas da mudança climática ganharam forma mediante uma

encenação cuja finalidade precípua é compelir à ação determinados atores sociais96.

À visão realista podemos contrapor uma visão construtivista, na qual a ênfase é

colocada não no aspecto empírico, ou seja, no perigo em si, mas sim no aspecto social, ou

seja, nos discursos relativos a determinadas situações. Para a visão social-construtivista, a

sociedade global de risco não é fruto de problemas globais, assim detectados e identificados

pela ciência, mas sim de coalisões discursivas internacionais. O conhecimento científico

relativo ao futuro faz uso de assertivas que, hoje, não podem ser refutadas mas tampouco

podem ser confirmadas.

Mas mesmo referidas visões, seja a realista, seja a construtivista, têm nuances ou

gradações97. Podemos encontrar desde autores que se filiam a uma posição radicalmente

realista, tais como Catton e Dunlap. Passando por uma posição realista reflexiva, dos

autores Dickens, Burns e Dietz. Prosseguindo-se até uma posição construtivista moderada

(ou um realismo construtivista), onde sustentada por Beck, Giddens e Latour. Até

95 BECK, Ulrich. World at Risk. Cambridge : Polity, 2012, p. 86.

96 Relatamos uma opinião de Beck. Não adentraremos na discussão acerca de quão real é a mudança climática. Questão, aliás, que terá resposta distinta conforme a visão abraçada, seja realista, seja construtivista.

97 As referências bibliográficas são fornecidas por : STRYDOM, Piet. Risk, Environment and Society : Ongoing Debates, Current Issues and Future Prospects. Buckingham : Open University Press, 2002. Referência extraída de : BECK, Ulrich. World at Risk. Cambridge : Polity, 2012, p. 88.

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chegarmos a uma perspectiva construtivista radical, extraída dos trabalhos de Luhmann,

Esser e Douglas. Posição esta, segundo Beck98, que subestima os aspectos materiais ou

naturais, e que acaba por não mais distinguir entre evento (concreto) e o discurso relativo a

mencionado evento.

Em se tratando da temática do risco, arriscamos acrescentar, é de rigor a influência

construtivista, haja vista que se está a falar de um futuro ainda porvir. Não há como “tocá-

lo”. Indicadores empíricos deverão ser utilizados para inferir-se uma teoria de causalidade,

de maior ou de menor incerteza. Mas, será sempre uma inferência, uma representação de

dito futuro porvir, um objeto cultural produto da criação humana.

A discriminação de uma dentre muitas “realidades”, e sua correlata representação,

também é objeto da análise de Joseph Gusfield99, ao tratar da temática de consumo de

álcool e condução de veículos automotores. Sua argumentação é pertinente às nossas

considerações relativas a objetos culturais e ao risco. Para Gusfield os problemas humanos

simplesmente não brotam do solo e se oferecem a nós como objetos concretos, prontos e

acabados. Para que determinada situação da vida seja alçada à categoria de um problema de

relevância pública, certamente ocorreu um processo seletivo por intermédio do qual

mencionada situação ganhou destaque dentre diversas realidades potenciais alternativas.

A construção dos apontados problemas públicos, segundo Gusfield, obedece a uma

estrutura determinada. Num primeiro momento, as situações que serão objeto de dita

construção hão de se submeter a um crivo de natureza cognitiva e moral. O aspecto

cognitivo envolve a crença de que aquela referida situação é real ou concreta e, ainda, apta

a ser modificada. Uma representação do mundo dos fatos é construída e assumida como

98 BECK, Ulrich. World at Risk. Cambridge : Polity, 2012, p. 89.

99 GUSFIELD, Joseph R.. The culture of public problems. Drinking-driving and the symbolic order. Chicago : The University of Chicago Press, 1981, p. 9-23.

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existente.

Já no que toca ao aspecto moral, referido fato ou situação há de receber um juízo de

reprovabilidade, assumindo o status de uma situação condenável. Circunstância que

compele, ou deveria compelir, à sua modificação.

A realidade de um problema acaba assim por se expandir ou mesmo se contrair,

conforme se alteram os juízos cognitivos e morais acerca de determinado fenômeno. E sem

que haja uma crença na possibilidade de alteração de determinada situação, assim como um

juízo moral acerca da mesma, tal fenômeno não é alçado à categoria de um problema

público.

Outros dois conceitos são centrais à teoria de Gusfield : o de apropriação e o de

responsabilidade.

A apropriação envolve o poder que determinado grupo social (ou grupos sociais)

detém para efetivamente definir e descrever o problema como sendo de relevância. Vale

lembrar que diferentes grupos detêm poder diverso em relação a determinados assuntos.

Poder esse que pode se alterar com o decurso do tempo. Conforme exemplifica Gusfield, a

Associação Americana de Psiquiatria, num determinado momento histórico, se apropriou

da questão do homossexualismo. O que a Câmara de Comércio fazia em relação ao tema

era de relevância menor no tocante à delimitação cognitiva e moral de referida situação. De

outra banda, em relação ao controle do consumo de álcool, ao longo da história norte-

americana, diferentes instituições se apropriaram do problema, tais como : a igreja

Protestante, passando às universidades e ao poder público. Cada qual com uma perspectiva

diversa.

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O conceito de apropriação nos indica o “quem”. Resta, sem embargo, definir o “o

que”, ou seja, delimitar a responsabilidade. Responsabilidade que, conforme Gusfield, se

desdobra em duas : responsabilidade causal e responsabilidade política.

A responsabilidade causal nos fornece a resposta sobre o “como isso aconteceu”. A

responsabilidade política, por sua vez, nos diz “o que deve ser feito”. Enquanto a

responsabilidade causal se refere à crença acerca da causa daquele problema, ou seja, o que

o deflagrou, a responsabilidade política concerne às obrigações decorrentes do problema,

àquilo que dever ser feito para enfrentar ou erradicá-lo.

Para Gusfield, o álcool, que no século XIX recebia pouca atenção, passou a ocupar

o palco principal dos problemas relacionados com a prática de crimes e a ocorrência de

acidentes. Mencionada substância foi escolhida como a grande vilã, a responsabilidade pelo

seu consumo recaindo essencialmente sobre o motorista. Perspectivas diversas deixaram de

ser levadas em consideração, tais como a destreza de determinados grupos de motoristas.

Ou, ainda, a organização da estrutura urbana : por exemplo, tal qual já asseverado

anteriormente, qual seria a relação entre condução de veículo sob a influência de álcool e o

licenciamento de estabelecimentos dedicados ao lazer e ao consumo de bebidas alcoólicas

em locais sem acesso por meio de transporte público100.

Segundo Gusfield101, criou-se uma representação ordenada do perigo no mundo

contemporâneo. Uma ordem cognitiva, na qual o consumo de álcool torna o motorista

incapaz de conduzir veículos. E uma ordem moral onde o consumo de álcool assume a

pecha de indesejado, ao menos no que diz respeito a beber e dirigir.

100 A questão vem realçada por Gusfield, às páginas 7 e 8 de sua obra (GUSFIELD, Joseph R.. The culture of public problems. Drinking-driving and the symbolic order. Chicago : The University of Chicago Press, 1981).

101 GUSFIELD, Joseph R.. The culture of public problems. Drinking-driving and the symbolic order. Chicago : The University of Chicago Press, 1981, p. 173 – 195.

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Portanto, mediante um exercício de retórica , constrói-se uma ordem moral e

cognitiva, uma verdadeira dramatização com vistas à construção da representação de uma

dada realidade. Não se nega aqui a importância de combater o consumo de álcool e seus

malefícios. Tampouco se ignora que condução de veículos e consumo de bebidas alcoólicas

são incompatíveis. Mas, muitas vezes, a eleição de uma determinada perspectiva para se

enxergar determinado problema pode bloquear modos alternativos de encarar tais situações.

Mais importante do que construir representações do futuro é compreender a forma como

tais representações foram construídas e, de forma crítica, não ignorar as possibilidades de

construções alternativas. Indagar-se : a quem o problema foi carreado e quais grupos

acabaram por se desincumbir de suas responsabilidades. Voltando ao tema do álcool e da

condução de veículo automotor, Gusfield102 ressalta que a indústria de bebidas, de forma

propositada, procura se afastar de dito problema, acentuando em seu discurso a

responsabilização individual.

A teoria de Gusfield pode ser transportada para outras situações de nosso

quotidiano, inclusive aquelas relacionadas com a organização espacial e o risco. Apenas a

título de exemplo, tomemos a questão das pessoas em situação de rua. Quem circula pelo

centro da cidade de São Paulo na presente data (referimo-nos ao mês de novembro de

2013), em especial nos arredores do Pátio do Colégio, ou cercanias do Jardim da Luz, ainda

se depara com grandes contingentes de pessoas morando nas ruas. Mencionada situação

pode dar azo a uma série de perguntas, na esteira da teoria de Gusfield : trata-se de um

problema público, ou seja, de uma situação que requer atenção e ação ? É uma situação

reprovável ? Em que sentido se torna reprovável : pela presença de “diferentes” em meio a

locais de grande fluxo de pessoas, ou pela falta de acesso a determinados direitos por essas

mesmas pessoas, cidadãos e seres humanos como todos nós ? Quem é o responsável por

102 GUSFIELD, Joseph R.. The culture of public problems. Drinking-driving and the symbolic order. Chicago : The University of Chicago Press, 1981, p. 12. Da mesma forma que grupos se apropriam dos problemas, há outros, que, valendo-se de sua força, tentam se desincumbir desses mesmo problemas. No original, Gusfield se vale dos termos : “ownership and disownership”.

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fazer com que mencionada situação seja enxergada como um problema? Qual a causa, ou

causas, acabaram por levar tais pessoas às ruas ? E ainda nessa seara das causas, quão

relevante é o aspecto de organização de espaços ? E qual a responsabilidade política : ou

seja, quem deve agir, e fazendo o que ? Quais perspectivas outras existem e que poderiam

ser levadas em conta para enxergar a situação de tais pessoas ?

Não responderemos às questões colocadas no parágrafo anterior103. Apenas

queremos ressaltar que, dentre a multiplicidade de fatos da vida, alguns, por força de uma

criação humana, assumirão uma determinada feição e serão objeto de maior atenção.

O mesmo se dá, de forma ainda mais acentuada, com o risco, haja vista consistir não

em um objeto natural, mas sim de uma representação de eventos porvir. Ainda que calçada

em indicadores empíricos. E que nos conduz a novas indagações : quais desses prováveis

eventos serão hoje sujeitos à cognição, valorados negativamente e objeto de apropriação e

responsabilização ? Que representações do futuro serão hoje construídas, apontadas como

algo reprovável, a impor ações ?

Mais importante do que a representação em si, a qual não podemos tachar de “certa”

ou “errada”, é justamente ter consciência de que referida construção é um processo, objeto

da criação humana. Aguardar que a “verdade” surja por si só, brotando do solo e saltando

aos nossos olhos é uma expectativa no mínimo ingênua.

103 A ressaltar a importância dos espaços como promotores de competências ou disfunções : MASON, Michael J., MENNIS, Jeremy, COATSWORTH, J. Douglas, VALENTE, Thomas, LAWRENCE, Frank, PATE, Patricia. The relationship of place to substance use and perceptions of risk and safety in urban adolescents. In : Journal of environmental psychology, 29 (2009), p. 485-492. Os autores acentuam que características físicas e sociais dos espaços habitáveis são poderosos prognosticadores de comportamentos, inclusive aqueles relacionados à saúde mental e ao consumo de substâncias.

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Isso não significa que estejamos a negar ou menosprezar os eventos danosos que

todos os anos ceifam inúmeras vidas, seja em enchentes, deslizamentos de terra, acidentes

de trânsito, criminalidade, ausência de adequado acesso à saúde, dentre outras tantas

mazelas. Sem embargo, referidos eventos não se confundem, insistimos, com o risco, o qual

os antecede. Para que possamos lidar adequadamente com o futuro, em especial com um

futuro que pode nos reservar surpresas desagradáveis, inclusive com vulnerações de direitos

caros, indisponíveis e irreparáveis como o direito à vida, há que se eleger o próprio futuro

como um problema, construir uma representação desse mesmo futuro. Diminuir, portanto,

a parcela desse futuro deixada à sua própria sorte. Uma construção levada adiante pela ação

do homem e, portanto, apta a ser regulada pelo Direito.

Prossigamos, ressaltando o papel do Direito nessa tarefa de trazer ao palco das

atenções o risco, impondo um novo intervencionismo estatal e, ainda, uma novel

responsabilização. Vale ressaltar que o risco já se encontra intensamente imbricado com a

ordem jurídica e traz consigo um dever de agir acentuado e antecipado. Vejamos.

1.5 Risco e Direito : da função da lei

Mas como capturar o risco sem fazê-lo de forma demasiado rígida ? Como dar

contornos a algo que parece ser, por natureza, demasiadamente fluido para tanto ? Como

representar uma realidade assaz dinâmica e mediada por percepções individuais, por

valores sociais, por contextos situados no tempo e no espaço ? Tal assertiva não seria em si

mesma paradoxal ? O Direito, enquanto disciplina que também lida com um futuro ainda

incerto, mas o qual busca moldar e tornar mais previsível por meio da influência de

condutas humanas, é um aliado potente e devidamente vocacionado para tal mister.

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Como bem coloca Niklas Luhmann, diante de tal quadro de incerteza o Direito

assume um papel fundamental. Tem a lei como função desempenhar um papel de

manutenção de expectativas, a despeito de eventuais desapontamentos. Traz, assim, a

produção e a estabilização de expectativas normativas.

Mas, afinal, qual é a função da lei ? Referida questão é colocada por Luhmann que

assevera não existir uma resposta certa ou errada à questão, mas sim perspectivas diversas

para encarar um mesmo problema104. Para Luhmann105 a função única da lei é manter, ou

estabilizar, expectativas mesmo num cenário de potencial desapontamento, ou melhor, de

possíveis eventos e condutas futuras desviantes. Mencionadas expectativas constroem uma

verdadeira ponte entre o presente e o futuro, a que Luhmann106. denomina, numa tradução

livre, de ligação temporal (no original : “time-binding”). As comunicações realizadas

dentro do âmbito da lei criam significados estabelecidos e estáveis, e que não podem ser

rejeitados. Sabemos de antemão quais as condutas, futuras que serão aceitáveis dentro do

contexto social no qual se inserem. Ainda que haja dissenso, as expectativas veiculadas

pela lei se estabilizam. Quer-se ter certeza em relação a um futuro que é, por natureza,

incerto.

Mas, conforme alerta Luhmann, referida habilidade de manter expectativas não se

sustenta sob toda e qualquer condição. Requer a lei condições, tanto internas quanto

externas, para alcançar mencionada estabilidade. Internamente, deve a lei ter a capacidade

de desenvolver subsistemas que permitam decidir-se acerca do que é a lei, e inclusive da

sua necessidade de modificação. Um subsistema gerido por pessoas, a quem cabe o papel

de manter a estabilidade do sistema legal. Externamente, deve o sistema legal ter a

104 LUHMANN, Niklas. Risk : a sociological theory / with a new introduction by Nico Stehr and Gotthard Bechmann. Fourth printing. New Brunswick : Aldine, 2008, p. 142 e 143, notas 1, 2 e 3.

105 LUHMANN, Niklas. Risk : a sociological theory / with a new introduction by Nico Stehr and Gotthard Bechmann. Fourth printing. New Brunswick : Aldine, 2008, p. 142.

106 LUHMANN, Niklas. Risk : a sociological theory / with a new introduction by Nico Stehr and Gotthard Bechmann. Fourth printing. New Brunswick : Aldine, 2008, p. 146.

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capacidade de administrar o dissenso, mantendo adequadamente ao longo do tempo as

comunicações relativas às expectativas normativas (no original : “maintenance of

meaningful communications of normative expectations”)107. As normas têm, assim, a

função de antecipar, ao menos no nível das expectativas, um futuro ainda incerto108.

Uma função que encerra em si custos sociais, pois ao mesmo tempo em que produz

consenso, também gera dissenso. A lei, nesses termos, abstratamente, surge para lidar com

esses custos sociais, gerir tal conflito. E numa escala concreta, estabiliza as expectativas

normativas, pois permite, de antemão, conforme já ressaltado, que se saiba quais

expectativas terão aprovação social, e quais não a terão. Permitindo uma vida em

sociedades mais complexas, nas quais os mecanismos pessoais para assegurar a confiança

não mais são suficientes.

Sem embargo, Luhmann externa um certo pessimismo acerca da capacidade da lei

de enfrentar o risco na sociedade moderna, questionando se a sociedade não estaria prestes

a enfrentar problemas de magnitude tal que não poderiam ser resolvidos por meio de

sistemas autopoiéticos, em relação aos quais não haveria qualquer possibilidade de

imunização e que as operações do sistema não seriam aptas a bloquear ou mesmo a

enfrentar. Em particular, Luhmann preocupa-se com os riscos da sociedade moderna onde

decisões equivocadas não poderão ser posteriormente corrigidas e potencialmente nos

conduzirão a uma situação onde sequer existirá sistema algum.

Em que pese o pessimismo de Luhmann, não há como descartar o papel de

estabilização trazido pela lei. Um papel que guarda grande afeição ao tema do risco, que

também concerne a uma representação presente de um futuro instável. 107 LUHMANN, Niklas. Risk : a sociological theory / with a new introduction by Nico Stehr and Gotthard Bechmann. Fourth printing. New Brunswick : Aldine, 2008, p. 15.

108 LUHMANN, Niklas. Risk : a sociological theory / with a new introduction by Nico Stehr and Gotthard Bechmann. Fourth printing. New Brunswick : Aldine, 2008, p. 147.

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Mas mais do que isso. A lei permite inserir referidas representações dentro de uma

lógica deôntica, estabelecendo deveres de agir, hoje, em relação a esse futuro

potencialmente desviante.

E decerto que a lei não traz mencionada estabilidade sob toda e qualquer

circunstância. Deve a lei, por meio de seus operadores, ter uma visão de mundo

consentânea com as circunstâncias fáticas desse mesmo mundo. Lei a ser entendida, aqui,

em sentido mais lato, como norma, modal deôntico devidamente construído com alicerce

em disposições das mais diversas ordens e também com um pé na realidade.

E não apenas promover estabilidade mas também, especialmente em países como o

Brasil, deve a lei assumir um papel essencial na preservação de bens jurídicos caros e na

realização de fins em prol da consolidação de um Estado Social e Democrático. Antecipa a

lei os perigos a que tais bens estão e estarão expostos. Constrói, hoje, uma representação de

tais perigos. Tinge com a lógica deôntica referida representação do futuro, estabelecendo,

dessa maneira, proibições, permissões e obrigações, assim como os sujeitos ativos e

passivos de tais modais. Aquilo que antes era relegado ao divino ou ao acaso agora tem um

responsável claro. As ações voltadas, num círculo virtuoso, à realização de valores sociais

caros devidamente prestigiados pela ordem jurídica.

E para conseguir, no mínimo, manter as expectativas, deve a lei ser dotada das já

mencionadas capacidades internas, quais sejam, a título de exemplo : da admissão de um

novo intervencionismo estatal alicerçado na precaução, na gestão do risco (a exigir a

reavaliação permanente de ações), a imposição de uma devida e completa proteção de bens

jurídicos dos mais diversos, uma novel hermenêutica judicial, uma reparação de danos mais

ampla e lastreada na solidariedade. Trataremos mais detalhadamente de cada um desses

temas a seguir.

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Todavia, o quanto explanado até aqui pode ser aplicável a toda e qualquer situação

regrada pelo Direito. Mas e o risco, como fica diante desse quadro ? E o risco em sua

dimensão espacial ? Prosseguiremos buscando conferir uma melhor delimitação desse

mesmo papel de estabilização proporcionado pelo Direito, mas com os olhos voltados

especificamente para o risco em sua dimensão espacial e para sua inserção na ordem

jurídica.

1.6 Risco e direito : uma maior concretude.

Consoante já apontamos em outra oportunidade109, todo e qualquer fato ou

fenômeno, por mais evidente que seja, deve ser adequadamente inserido no que podemos

denominar do mundo do Direito. Os fatos da vida social, defende Paulo de Barros

Carvalho, devem necessariamente ser juridicizados pelo Direito para que possam ser, por

esse mesmo Direito, trabalhados, manipulados, transformados em modais deônticos. Só

assim conseguem ganhar aptidão para regular comportamentos e proteger bens da vida

prestigiados por esse mesmo ordenamento jurídico. Anota Paulo de Barros Carvalho que :

“Ou a mutação ocorrida na vida real é contada, fielmente, de acordo com os

meios de prova admitidos pelo sistema positivo, consubstanciando a categoria dos

fatos jurídicos (lícitos ou ilícitos, pouco importa) e da eficácia que deles se irradia;

ou nada terá acontecido de relevante para o direito.”110

109 ROSSO, Maximiliano. Áreas de risco : a convivência com um estado de coisas inconstitucional. In : USSIER, Jorge Luiz, MALAQUIAS, Mario Augusto Vicente. Temas de Direito Urbanístico 6. São Paulo : Imprensa Oficial, 2011, p. 293 e seguintes.

110 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário, linguagem e método. 2ª edição. São Paulo : Noeses, 2008, p. 824.

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Portanto, imperiosa a mão do intérprete para que um dado fato social ganhe

relevância aos olhos do direito. E uma vez tutelado pela ordem jurídica, passa a receber a

proteção das normas não apenas contra sua efetiva vulneração, mas até mesmo contra

ameaças de vulneração. Passam a receber a qualificação de bem jurídico :

“todos los objetos que son legítimamente protegibles por las normas bajo

estas condiciones (…): la vida, la integridad física o el poder de disposición sobre

valores materiales (la propiedad). Los bienes jurídicos no tienen por qué tener

realidad material. La disponibilidad sobre las cosas que garantiza la propiedad o la

libertad de actuación que protege la prohibición de las coacciones no son objetos

físicos, pero sin embargo son parte de la realidad empírica. También son bienes

jurídicos los derechos humanos y los derechos fundamentales, como el libre

desarrollo de la personalidad, la libertad de conciencia o la libertad de culto. Su

privación conlleva perjuicios muy reales de la vida en sociedad. Del mismo modo,

tampoco son objetos físicos las instituciones estatales, como la Administración de

justicia (…) u otros bienes da la comunidad, pero sí son realidades para la vida,

cuya lesión puede perjudicar de forma duradera la capacidad de prestación de la

sociedad y la vida de los ciudadanos.”111

Os bens jurídicos são, portanto, aqueles necessários para uma vida social livre,

segura e com qualidade e bem-estar. E, enquanto jurídicos, são criados pelo legislador e,

consequentemente, prestigiados e protegidos pelo ordenamento.

111 ROXIN, Claus. ¿Es la protección de bienes jurídicos una finalidad del derecho penal?. In : HEFENDEHL, Roland (Ed.), La teoría del bien jurídico. ¿Fundamento de legitimación del Derecho penal o juego de abalorios dogmático?. Madrid : Marcial Pons, 2007, p. 447.

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Mas então de que forma o risco é, ou pode ser, vertido ao mundo do Direito ? Como

o risco se apresenta quando da formação e construção da norma, notadamente de normas de

intervenção no tecido urbano ? Qual o bem jurídico que aqui se busca proteger mediante a

inserção do risco no universo do Direito ? É o risco em si mesmo um objeto a ser protegido,

ou protege-se o risco a determinados bens jurídicos ?

A questão relativa ao risco e sua conexão com o direito foi objeto de trabalho da

lavra de Christopher Schroeder112. O autor traz à baila discussão sobre a existência, ou não,

de um direito a não ser exposto a riscos. A perspectiva abraçada pelo autor se volta para a

construção de argumentos aptos a justificar medidas estatais de regulação do risco. Embora

exista um dever natural de não causar danos, conforme aponta Schroeder, não há como se

esquivar do fato de que a vida em sociedade envolve, sempre, riscos. Por exemplo :

conduzir um automóvel sujeita não apenas condutores, mas praticamente toda a população

a riscos – e, quando amalgamadas num conjunto de ações similares, a ocorrência de um

dano concreto é quase certa113. Daí não nos ser possível concluir que, em causando risco,

nasceria automaticamente um direito no sentido de obstar o uso do automóvel, ou mesmo

outros meios de transporte. Tentativas de proteger as pessoas por detrás de um muro

inexpugnável contra riscos desatenderia aos preceitos de justiça. E certamente sufocaria

outros direitos.

Mas então como tratar a questão do risco, e dos direitos e deveres dele decorrentes ?

Dentro de uma perspectiva puramente utilitarista, seria plausível a exposição de pessoas a

112 SHROEDER, Christopher Henry. Right against risks. In : Columbia Law Review, 86 (1986), p. 495 e ss.

113 Distinguindo, assim, o autor, o risco do dano (“harm”). Fala o autor, num tradução livre, do “assassinato da pessoa estatística” (ou, no original : “murder of the statistical person” (SHROEDER, Christopher Henry. Right against risks. In : Columbia Law Review, 86 (1986), nota 23, da página 501). Ainda que vivendo em uma sociedade de riscos, o autor, nada obstante, externa uma posição de objeção à tolerância de determinados riscos, os quais conduzirão alguma pessoa à morte (a já mencionada “pessoa estatística”). Pessoa essa que certamente também é portadora de direitos. Sobre a insuficiência do uso de técnicas de probabilidade, sob o prisma social, para lidar com eventos futuros, veja-se : LUHMANN, Niklas. Risk : a sociological theory / with a new introduction by Nico Stehr and Gotthard Bechmann. Fourth printing. New Brunswick and London : Aldine Transaction, 2008, p. 49.

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riscos em face dos ganhos decorrentes dessa exposição. Assim sendo, nos deparamos com

riscos que podemos denominar de justificáveis. Uma posição, contudo, que pode nos

conduzir a situações de extrema indiferença em relação à vida humana114.

De outra banda, numa tradição que Schroeder denomina de “direitos”, ou de

“direitos como trunfos” 115, seria medida de rigor levar em consideração os impactos

sofridos pelas vítimas, independentemente dos benefícios que possam ser extraídos da

exposição dessas pessoas a situações de risco. Mas aqui, em determinadas situações, ter-se-

ia um indevido desprezo àqueles que o autor denomina de “criadores de risco”. Note-se que

o texto não se refere a um tipo específico de risco, podendo este abarcar, por exemplo,

riscos inerentes a novas tecnologias, como a telefonia celular ou, ainda, fontes alternativas

de energia e mesmo a exploração de petróleo em grandes profundidades, tal qual ocorre

com o denominado “pré-sal”. Deparar-nos-emos, via de regra, com um inevitável conflito

entre diferentes atores do cenário social, todos a exigir tratamento como agentes

autônomos. Lidar com riscos, inclusive no que toca à sua hipotética proibição completa,

sempre redundará em consequências. O que se deve buscar, assim, são fundamentos que

nos permitam distinguir entre riscos que são aceitáveis e não aceitáveis. Numa perspectiva

de progressiva diminuição de riscos. Não seriam, para Schroeder, mutuamente excludentes,

a ambição de se buscar um sistema que nos garanta um mundo no qual nenhum dano é

114 O autor faz referencia a litígio envolvendo a mudança de lugar do tanque de combustível do veículo denominado Ford Pinto (SHROEDER, Christopher Henry. Right against risks. In : Columbia Law Review, 86 (1986), p. 506, incluindo-se as notas de número 41 e 42). Causou espécie aos jurados a adoção de uma análise de custos e benefícios como fundamento para decidir-se pela referida mudança (a qual, nada obstante, redundaria em maior segurança aos proprietários). Seria mais barato arcar com os custos de eventual responsabilização por acidentes (por volta de 49.5 milhões de dólares) do que proceder à alteração no veículo (que custaria por volta de 137 milhões de dólares). Interessante, ainda, artigo da lavra de Ronald Dworkin, denominado “Is wealth a value?” (numa tradução livre : Seria a riqueza um valor?). O artigo tece críticas ao livro de Richard Posner, que leva o “Economic analysis of law”. Posner defende que Juízes, ao decidirem casos mais difíceis, devem optar por soluções aptas a maximizar a riqueza social. Referida maximização somente seria atingida quando os bens e recursos estiverem nas mãos daqueles que mais os valorizam ou prezam (conforme o próprio Posner, àqueles dispostos a pagar mais por tais bens). Argumento com o qual não concorda Dworkin (DWORKIN, Ronald. A matter of principle. Cambridge : Harvard University Press, 2000, ninth printing, p. 237).

115 No original os direitos são apontados como “trumps” (SHROEDER, Christopher Henry. Right against risks. In : Columbia Law Review, 86 (1986), p. 509), haja vista que podem restringir ou delimitar a ação da sociedade em relação ao indivíduo, um ser dotado de liberdade e de autonomia.

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causado a outrem e o fato de que alguns riscos necessariamente hão de ser, ao menos no

presente momento, tolerados e aceitos.

A teoria dos “direitos”, argumenta Schroeder, acaba por colocar alguns direitos

acima de outros, de maneira injustificada. A seu turno, as teorias utilitaristas reduziriam

todos os valores a uma única medida, a do maior benefício. Ambas, todavia, são dimensões

de um mesmo monismo, que deve ser rejeitado. Há que se perguntar, conforme coloca o

autor, qual o grau de liberdade que estamos dispostos a abrir mão para que obtenhamos

uma maior proteção contra riscos. E arremata oferecendo uma terceira via para a regulação

dos riscos, onde tanto as regras de regulação destes, assim como as consequências adversas

de tais regras sejam tomadas como interesses legítimos e válidos. Os direitos são fruto não

apenas da interação entre valores e interesses humanos, mas, principalmente, de fatos

empíricos relativos ao mundo que nos cerca, e que necessariamente deverão ser levados em

conta.

Portanto, um alegado direito ao “não-risco” não é, por si só, suficiente para alicerçar

proibições ou mesmo regulação de atividades causadoras de risco. Monismos, como o de

entender pela existência de interesses, mesmo veiculados por meio de normas, que

supostamente pairem por sobre outros interesses e direitos, carecem de uma maior

justificação.

Em contraste com a visão de Schroeder, ao menos no que diz respeito à inexistência

de um direito que podemos denominar de “absoluto” para nos proteger dos riscos,

contamos com a argumentação de John Oberdiek, em seu artigo “Towards a right against

risking”116. Oberdiek defende a existência de um direito autônomo contra o risco. Um

direito, contudo, que exige a explicitação de seu conteúdo, não sendo suficiente tomá-lo 116 OBERDIEK, John. Towards a right against risking. In : Law and Philosophy (2009) 28 : p. 367-392. Em uma tradução livre, podemos denominar referido “right against risking” como um direito contra riscos, ou um direito de não ser exposto a riscos.

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como algo evidente e que se justificaria per se.

Para Oberdiek, um conceito chave à questão da delimitação do conteúdo do direito a

não ser exposto a risco é a autonomia. As pessoas têm em suas vidas opções das mais

diversas. Opções não apenas concretas, ou seja, aquelas já tomadas, mas, principalmente,

opções potenciais, futuras. Quando essas potenciais opções são limitadas, há um impacto

negativo na autonomia do indivíduo. E em se tratando de opções potenciais, mesmo a

imposição de limitações sem que a pessoa sequer tenha conhecimento de tal circunstância,

estar-se-á diante de uma circunstância limitante.

O risco acaba por diminuir as opções aceitáveis. Por exemplo, a colocação no

mercado de um automóvel com defeito de fabricação apto a causar acidentes reduz as

opções potenciais de um consumidor no que toca à compra de carros seguros. Ainda que

referido consumidor não tenha comprado o carro que especificamente traz um defeito. Tal

circunstancia reduz as potenciais opções aceitáveis daquele consumidor e,

consequentemente, reduz sua autonomia117.

Portanto, o “right against risking”, que traduzimos livremente como o direito a não

ser exposto a riscos, não seria mera expressão ou derivação de outros direitos tais como o

de não sofrer dano, ou de preservação da vida. Não estaria o “right against risking” a

proteger imediatamente interesses como a integridade física, ou mesmo a vida, mas sim

interesse diverso, que subsiste por si só, qual seja, a autonomia da pessoa humana.

Todavia, como bem reconhece o autor, o risco é algo onipresente e está em todas as

partes. Mais uma vez se valendo de exemplo extraído da indústria automobilística,

Oberdiek argumenta ser inegável que conduzir um veículo é uma situação a envolver a

117 OBERDIEK, John. Towards a right against risking. In : Law and Philosophy (2009) 28, p. 385.

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possibilidade de morte em um acidente. Há riscos, portanto, que devem ser aceitos, como

consequência da vida em sociedade. Segue-se que um direito contra a exposição de riscos

não seria suficiente para proibir, portanto, todo e qualquer tipo de risco. Haveria, nesses

termos, riscos permissíveis e não permissíveis. E somente no que toca aos riscos não

permissíveis é que se pode falar na violação do direito a não ser exposto a risco.

Em apertada síntese, no sentido de distinguir entre riscos permissíveis e não

permissíveis, traz Oberdiek os argumentos que seguem. Preliminarmente, para que se possa

falar em aptidão para diminuição de autonomia, deve o risco ser de alguma monta e ter,

ainda, proximidade ou correlação com a vida da pessoa cuja autonomia se leva em

consideração118. Mas não apenas isso : envolve, ainda, que mencionada limitação às

opções potenciais de que disponha uma pessoa, e, consequentemente, à sua autonomia,

sejam levadas adiante sem uma justificação, que sejam levadas adiante por terceiros, sem

que os mesmos disponham da necessária autoridade119 para tanto.

Portanto, ainda que toleráveis determinados riscos como consequência da vida em

sociedade, defende Oberdiek a existência de um direito autônomo contra riscos, a proteger

as opções potenciais de que dispomos para reger nossas vidas, ou seja, a defender nossa

autonomia.

Mas seria mesmo o risco um bem jurídico autônomo ? Ou, necessariamente, se

encontraria o risco sempre atrelado a algum direito ? Representaria uma potencial

vulneração a direitos variados ? Defendemos que o risco não pode consistir em um

118 Todavia, creio que, para determinados “riscos”, essa delimitação que podemos denominar de individual se torna cada vez mais difícil. Desastres hoje, conforme já apontado anteriormente, assumem uma dimensão global, tal qual defendido por Ulrich Beck (BECK, Ulrich. Risk society. Towards a new modernity. London : Sage, 1992).

119 No original, usa o autor a expressão “in the absence of any rightful claim”, conforme se verifica à página 389, do texto de Oberdiek (OBERDIEK, John. Towards a right against risking. In : Law and Philosophy (2009) 28).

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sobredireito, apto a sufocar outros direitos. Ou tampouco de bem jurídico autônomo, que

pairaria acima, ou mesmo ao lado de outros direitos. Pelo contrário. A ótica do risco se

alinha e se alia com direitos dos mais diversos, com o fito de conferir-lhes uma garantia

antecipada e ampliada. Um elemento integrante da necessária ponderação que deve ser

levada adiante dentre diferentes direitos que estão sempre a colidir, em especial na

organização doe espaços. Assumiria, nesse contexto, a natureza de verdadeiro “postulado

normativo aplicativo (...) – uma condição formal ou estrutural de conhecimento concreto (=

aplicação) de outras normas.”120 Risco que não seria ponderado em relação a outros

princípios ou direito, mas que integraria elemento a ser considerado quando dessa mesma

ponderação, como representação de situações futuras que hão de ser necessariamente

levadas em conta no presente.

Por força de corte epistemológico já anunciado, centraremos nossa atenção de como

a ótica do risco acaba por se imbricar na acentuada proteção a bens jurídicos sujeitos à

vulneração em razão do uso e ocupação do solo. Imbricação essa que reverbera nos

métodos mais diversos para a proteção de referida vulneração de cunho espacial. Pois é em

razão da ocupação indevida do solo que, apenas a título exemplificativo, vidas se perdem,

patrimônios são dura e permanentemente atingidos, crianças são forçadas a morar fora de

seus lares, com nefastas consequências ao seu desenvolvimento, cidadãos se vêm obrigados

a perder horas de seu dia de para se desvencilharem das agruras do trânsito, áreas de

importância ambiental são irremediavelmente devastadas, com prejuízos não só para as

presentes mas para as futuras gerações.

Ressalte-se que o indevido uso e ocupação do solo não se limita ou restringe apenas

a ocupações realizadas de forma ilegal. Temos ocupações e atividades que, mesmo

120 GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. 5ª edição revista e ampliada. São Paulo : Malheiros, p. 188 e 189. Eros Grau faz referência, em sua citação, aos “princípios” da proporcionalidade e da razoabilidade. Raciocínio o qual, conforme apresentamos no corpo do presente, consideramos também aplicável ao risco. Com a devida vênia, o assunto será tratado com maior atenção mais adiante.

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devidamente licenciadas e conduzidas sob o manto da legalidade, podem também acarretar

danos e, em conseqüência, consistir em um risco : exemplificativamente, gerando fluxos

excessivos de pessoas e carros, trazendo transtornos àqueles que lá vivem ou circulam.

Assim, o risco há de ser levado em conta mesmo em situações onde viceja a legalidade,

como fito de antecipar-se a situações de vulneração a direitos futuras e melhor enfrentá-las

desde logo.

Aprofundemos a argumentação relativa à imbricação do risco com o Direito e com a

proteção antecipada de direitos. E, num segundo momento, a temática da proteção de

direitos a ser levada adiante mediante institutos de intervenção no espaço urbano. Proteção

essa mediada pelo olhar do risco, a impor uma antecipada proteção a bens jurídicos,

especificamente por meio de intervenções no tecido urbano.

1.7 Risco e direito público.

No presente segmento do nosso trabalho prosseguiremos analisando como o risco

acaba por se imbricar com o Direito. Ou seja, como o risco é traduzido e incorporado a esse

mesmo Direito, valendo-nos de um olhar mais detido do direito positivo de alguns países

do continente Europeu. Num passo seguinte, nos debruçaremos sobre o tratamento que o

risco recebe por meio de institutos do direito urbanístico, numa dimensão desse risco que

denominamos de espacial.

Iniciemos com as implicações jurídicas do risco, expondo algumas posições

doutrinárias sobre o tema. Nos lançaremos em busca de uma análise acerca dos diferentes

meios de proteção que se nos oferecem distintos sistemas jurídicos, alicerçados nos

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ensinamentos de Canotilho121. Ao tratar do tema da proteção de direitos fundamentais,

propõe o autor uma outra forma de enxergar os problemas, qual seja, a de “captar os

métodos de proteção, ao invés de estudar os regimes.” Para o autor, ainda que regime e

método se encontrem imbricados122, revela-se a perspectiva metodológica como uma outra

possibilidade para encarar os problemas dos direitos fundamentais.

Nesse diapasão, analisaremos os distintos métodos abraçados e recolhidos por

normas de natureza diversa, e que se prestam a enfrentar situações de risco. Referido estudo

de métodos nos auxiliará, mais adiante, na tentativa de se identificar um regime peculiar ao

tratamento do risco, em especial com o nascimento de deveres claros ao poder público e de

um novo intervencionismo estatal.

Hans-Heinrich Trute123 argumenta que o risco é, atualmente, uma característica

central das sociedades modernas. Trute dá ênfase a três circunstâncias de tais sociedades

modernas que imporão transformações profundas na forma como o risco tratado, inclusive

na esfera das normas.

Em primeiro lugar, o risco é relacionado com decisões tomadas diante de um futuro

aberto à incerteza e à ignorância.

Em segundo lugar, temos nessa sociedade moderna uma produção cada vez maior

121 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Estudo sobre direitos fundamentais 1ª edição, 3ª tiragem. São Paulo : Editora Revista dos Tribunais; Portugal : Coimbra Editora, 2008, p. 138.

122 Canotilho distingue regimes e métodos, nos termos seguintes : “A doutrina dos regimes dos direitos fundamentais procura captar trações da disciplina jurídico-constitucional dos direitos fundamentais. A indagação dos métodos de protecção visa descobrir instrumentos, mecanismos, categorias e institutos jurídicos utilizados pela Constituição na tessitura dessa mesma disciplina.” (Ibid., p. 138).

123 TRUTE, Hans-Heinrich. From past to future risk – from private to public law. In : European Review of Public Law Vol. 15 – No. 1, spring 2003. London : Esperia, 2003, p. 73 – 103.

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de perigos os quais podem ser, efetivamente, atrelados a ações humanas.

Por fim, tal quadro coloca a administração pública diante de um dilema de como

controlar referidos riscos, pois exigir-se-á da lei uma capacidade para aprender e para

adaptar-se que, aparentemente, conflitaria com a necessária certeza que se espera dos

comandos legais.

A sociedade, conforme argumenta Trute, que antes era dominada pelo passado,

apresenta modernamente uma mudança de perspectiva e é agora orientada para o futuro124.

Dentro desse contexto, e com respaldo em lições extraídas da sociologia do risco125, os

infortúnios que o futuro nos reserva não mais são atribuíveis a entes “externos” ou

metafísicos, mas sim a decisões que são tomadas (ou não tomadas) no presente. O risco

passa, assim, a ser um elemento integrante do processo de decisão na sociedade moderna.

Conforme argumenta Trute, o liame entre risco e decisões é também explorado pelo

já mencionado Niklas Luhmann126, que distingue entre risco e perigo. Tanto o risco quanto

o perigo referem-se a um dano futuro. Nada obstante, enquanto o risco é fruto de uma

decisão, o perigo é algo que ocorre em concreto. Assim, nesse contexto, risco se refere à

probabilidade de danos futuros atribuídos a uma decisão tomada não apenas por atores

públicos mas também privados. E uma vez que a sociedade se volta a um futuro que

todavia ainda se desconhece, o processo decisório acaba por se acoplar de forma

124 TRUTE, Hans-Heinrich. From past to future risk – from private to public law. In : European Review of Public Law Vol. 15 – No. 1, spring 2003. London : Esperia, 2003, p. 75. Trute alicerça suas afirmações em trabalho de lavra de Peter Bernstein (BERNSTEIN, Peter Lewyn. Against the gods : the remarkable story of risk. New York : John Wiley and Sons, 1996.)

125 TRUTE, Hans-Heinrich. From past to future risk – from private to public law. In : European Review of Public Law Vol. 15 – No. 1, spring 2003. London : Esperia, 2003, p. 75. Com referência explícita a Ulrich Beck, a quem Trute atribui a cunhagem do termo sociedade de risco, no ano de 1986.

126 TRUTE, Hans-Heinrich. From past to future risk – from private to public law. In : European Review of Public Law Vol. 15 – No. 1, spring 2003. London : Esperia, 2003, p. 76. O autor cita Niklas Luhmann, fazendo menção à obra : LUHMANN, Niklas. Soziologie des Risikos, 1991.

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indissociável ao risco.

Sem embargo, a definição trazida no parágrafo anterior exige, conforme bem aponta

Trute, algumas considerações adicionais, em especial distinguindo-se entre o risco tomado

na sua acepção estrita e os conceitos de incerteza e de ignorância127.

O termo risco, em sentido lato, se prestaria a cobrir situações nas quais se verificam

diferentes graus de incerteza e, portanto, merecedoras de designações próprias mais

apropriadas e precisas. O risco em sentido estrito, que também por sua vez se aplica a uma

gama ampla de situações, haveria de ser utilizado para descrever situações nas quais os

resultados possíveis de decisões são previsíveis. Define-se o risco como o produto da

probabilidade de um evento e a intensidade, ou magnitude, de um possível dano. Para lidar

com referido risco, dentre outras providências, se mostram aptos institutos clássicos como

avaliações de risco ou mesmo estudos de impacto.

Para além do risco em sentido estrito, temos situações denominadas de incerteza,

nas quais não há como se atribuir probabilidades concretas às consequências de decisões e

ações levadas a cabo no presente. Neste contexto, as avaliações de risco e os estudos de

impacto, embora úteis, são demasiadamente estreitos para os fins de tomada de decisão. As

informações científicas hão de vir acompanhadas de suposições subjetivas e valorativas.

Por fim, Trute nos apresenta com uma situação que denomina de ignorância, na qual

as possibilidades são absolutamente desconhecidas e não se dispõe de qualquer base ou

fundamento atribuir probabilidades a eventuais resultados que sequer são conhecidos. Uma

situação cuja regulação imporá, para além de estudos de impacto, uma capacidade

127 TRUTE, Hans-Heinrich. From past to future risk – from private to public law. In : European Review of Public Law Vol. 15 – No. 1, spring 2003. London : Esperia, 2003, p. 79.

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institucional apta a promover ajustes e até mesmo a reversão de ao longo do tempo no que

toca a decisões tomadas no presente.

À taxonomia de riscos tratada nos parágrafos anteriores contrapõem-se duas

aproximações possíveis ao risco, verdadeiras expressões de duas culturas distintas : uma

cultura a que Trute denomina de clássica e outra que designa o autor de cultura de

precaução.

Na denominada cultura clássica, característica da sociedade liberal, assumir riscos é

percebido como elemento integrante da promessa de autonomia individual. Eventuais danos

produzidos são vistos como uma decorrência necessária e inevitável da liberdade e da

inovação. Enquanto não houver danos a terceiros, trata-se de assunto afeto a interesses

privados. E a preocupação com a eventual externalização de tais danos encontra solução em

instrumentos jurídicos destinados à proteção contra perdas, tais como seguros ou contratos.

Mecanismos estes preocupados apenas com a responsabilização e a reparação de danos já

concretizados ou, ainda, com a garantia de uma alegada segurança jurídica. Parte-se, assim,

de uma noção de reversibilidade de eventuais danos causados, sendo as ações do Estado

orientadas para recompor o status quo ante. Uma orientação que olha eminentemente ao

passado. E onde o exercício daquela autonomia privada, ainda que apto a causar danos, é

socialmente aceitável.

A cultura clássica se mostra afinada com o risco em sentido estrito. Sem embargo,

como expõe Trute, se mostra insuficiente para lidar com a incerteza e a ignorância, e que

são cada vez mais comuns em nossa complexa sociedade moderna. Sociedade moderna

essa onde o risco é uma de suas características fundamentais, marcado por uma

multidimensionalidade, e onde muitos dos danos são irreversíveis, com uma produção cada

vez maior de perigos pela mão do próprio homem.

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Soma-se a este quadro mais um argumento trazido por Trute128, com respaldo na

doutrina de Ulrich Beck : tampouco se prestarão a ciência e o conhecimento como meios

para se atingir maior segurança e para conduzir a sociedade a uma situação de segurança

absoluta. A ciência, à luz das transformações sociais, não mais pode ser tida como um

recurso inconteste de legitimação da atividade política e administrativa. Paradoxalmente, de

quanto mais conhecimento dispomos, mais nos damos conta daquilo que desconhecemos. O

conhecimento não mais se apresenta como absoluto, mas deverá ser socialmente

construído, ou seja, ser negociado. Como consequência, a regulação deverá ser também

negociada.

O contexto da sociedade moderna é terreno fértil para a denominada cultura de

precaução. Nesta, o risco não mais é algo visto como um complemento necessário à

liberdade, mas sim como algo a se evitar. Referida cultura traz mudanças sensíveis na

forma pela se encara e se lida com o risco.

As decisões afetas ao risco não mais podem se alicerçar exclusivamente no mito do

conhecimento objetivo. Os riscos são hoje, insistimos, multidimensionais, o que impõe

limitações sérias ao uso apenas de técnicas probabilísticas características do modelo

clássico para lidar com situações de incerteza e de ignorância. Mostra-se necessária uma

arquitetura normativa que saiba lidar também com tais situações de incerteza e ignorância.

À ciência somar-se-ão interesses e valores. O conhecimento científico há de se submeter a

um processo de negociação para poder adequadamente incorporar mencionados interesses e

valores. Consequentemente, também deverá ser objeto de negociação a construção do

conceito de risco, assumindo destarte uma feição normativa, dando suporte a uma moldura

normativa não mais alicerçada na ilusão da objetividade, mas sim apta a fazer frente ao

problema da incerteza que se encontrava sem a devida solução.

128 TRUTE, Hans-Heinrich. From past to future risk – from private to public law. In : European Review of Public Law Vol. 15 – No. 1, spring 2003. London : Esperia, 2003, p.75.

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A cultura da precaução também traz peculiaridades à questão do ônus da prova. No

modelo tradicional, combina-se regulação ex ante com responsabilização ex post, um

modelo que admite a tomada de riscos.

A cultura da precaução, a seu turno, longe de prestigiar uma situação de “risco

zero”, na qual estaria vigente uma presunção praticamente absoluta de dano e que

virtualmente sufocaria a iniciativa privada e a liberdade individual, busca uma arquitetura

normativa suficientemente flexível para fazer frente às diferentes formas de risco. Assim,

fazendo Trute alusão a taxonomia fornecida por Renn e Klenke129, riscos com alto grau de

incerteza poderiam justificar uma estratégia de precaução bastante estrita. Por outro lado,

situações com pouca incerteza, mas alto potencial de dano, podem se valer de estratégias

tradicionais de licenciamento.

Por fim, a cultura da precaução merece e pede uma novel estrutura normativa. O

risco requer diferentes graus de precaução, com distintos institutos e medidas, aplicáveis a

contextos dos mais diversos. Tais circunstâncias trazem limites à tradicional regulação

legal. A legislação afeta ao risco exigirá o que Trute130 denomina de aproximação

procedimental. Ganha em importância referido aspecto procedimental da regulação do

risco, no qual as informações forçosamente são recolhidas ao longo de processos de decisão

com a participação dos diferentes atores envolvidos. A atuação se torna mais e mais

provisional, à luz do cambiante conhecimento, devendo as normas fomentar e promover

uma capacidade de aprender, de se adaptar, com flexibilização de instrumentos

administrativos tradicionais tal qual o licenciamento. Uma estrutura legal que permita a

ponderação dos interesses em jogo e dos custos envolvidos, prestigie a produção de

conhecimento131, estruture o processo de negociação envolvido na produção desse

129 TRUTE, Hans-Heinrich. From past to future risk – from private to public law. In : European Review of Public Law Vol. 15 – No. 1, spring 2003. London : Esperia, 2003, p.98.

130 TRUTE, Hans-Heinrich. From past to future risk – from private to public law. In : European Review of Public Law Vol. 15 – No. 1, spring 2003. London : Esperia, 2003, p. 96.

131 Inclusive, a nosso ver, mediante estudos de impacto e afins. O reconhecimento de dita dimensão normativa

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conhecimento.

Consequentemente, por meio da precaução, legitima-se, ultima ratio, uma atuação

administrativa mais ampla em relação à cultura clássica. A administração não apenas

poderá, mas deverá interferir em situações de incerteza. Intervenções realizadas com maior

presteza, mormente diante de possíveis danos irreversíveis, legitimando ainda a gestão de

recursos escassos com base em uma visão de mais longo prazo. O que acaba, ao final, por

traçar uma nova arquitetura institucional do Estado, com maior protagonismo da

administração pública. Advertindo-se, contudo, para a necessária preservação da liberdade

individual132, com observância da proporcionalidade e dos custos envolvidos na atuação

estatal, assim como para a necessidade de instrumentos hábeis ao controle dessa atuação

administrativa ampliada.

Portanto, Trute nos traça um panorama onde o risco se mostra como algo inerente

ao moderno processo de tomada de decisões e, destarte, indissociável da sociedade

moderna. Risco que abrange, ainda, situações de incerteza e mesmo de ignorância, exigindo

uma nova leitura do papel da ciência e uma novel estrutura normativa, apta a fazer frente à

do risco não implica em desprezar o conhecimento científico, elemento necessário à negociação e à produção do saber. A produção deste deve inserir-se num processo de busca contínua.

132 Interessante artigo sobre as Olimpíadas de 2012, na cidade de Londres, no Reino Unido, alerta, também, para a retórica do risco. Diante de uma situação de absoluta incerteza concernente à segurança dos jogos, as autoridades lançam mão de artifícios alicerçados, dentre outros, no discurso dos denominados gestores do medo, verdadeira encenação grandiosa de projetos e demonstrações de força. Dessa maneira, acabam, ao final, amplificando essas mesmas incertezas e, como consequência, reforçando a securitização da nossa vida quotidiana. E, destarte, acrescentamos : sufocando gradualmente nossa liberdade individual (BOYLE, Philip, HAGGERTY, Kevin D. , Planning for the worst: risk, uncertainty and the Olympic Games. In : British Journal of Sociology. Volume 63, Issue 02, June 2012). A retórica do risco e seu uso para fins que não o de enfrentar as incertezas se mostra como prática presente não só em eventos de grande magnitude, mas até mesmo na nossa vida quotidiana. Exemplificamos : vozes se levantam, acertadamente, contra abusos perpetrados durante atuação policial específica e levada adiante em desrespeito aos ditames da lei. Mas toleram-se as revistas não apenas em malas, mas inclusive em pessoas, dentre as quais até mesmo crianças, por funcionários de empresas privadas em aeroportos. Remanescendo nossa inquietação sobre até que ponto não se está a amplificar a incerteza, sufocando-se liberdades. E, ainda, quão efetivas são referidas medidas em confronto com os sacrifícios que se impõem a todos aqueles que se deslocam em transporte aéreo. Perguntas de cunho apenas retórico.

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dinâmica do conhecimento, à celeridade que muitas situações exigem, à maior participação

dos diferentes atores no estabelecimento da já mencionada dimensão normativa do risco.

Clamando, nesse contexto, por uma ampliação do papel do Estado, instado a agir em

situações também de incerteza ou mesmo de ignorância e, por consequência, uma nova

dimensão ao dever de proteção. Risco que recebe seu sentido do sistema jurídico e, ao

mesmo tempo, vem se mostrando hábil a influenciar a própria estrutura do sistema jurídico

e da organização estatal.

O risco, portanto, ainda que lastreado em fatos, não se impõe de forma necessária e

automática à luz dos mesmos, mas é fruto de decisões e, ainda, de negociação. Assume uma

natureza normativa, vocacionado assim à sua regulação por meio de normas. Conforme já

ressaltamos, fatos devem ser vertidos em linguagem adequada ao seu ingresso no sistema

jurídico, para só então ser possível falar-se em direitos e deveres. Tal qual vem ocorrendo,

por exemplo, na cidade de São Paulo, onde a identificação e mapeamento de áreas de risco

é utilizada no planejamento urbano, vertendo-se o conhecimento científico relativo ao risco

para o processo, e normativa correlata, de tomada de decisões133.

Os novos desafios que a sociedade moderna enfrenta no tocante ao risco são

também objeto da análise de José Esteve Pardo134. Pardo olha o risco pelas lentes do direito

à saúde, mas com considerações que extrapolam referido campo do conhecimento.

José Esteve Pardo parte inicialmente de uma distinção entre risco e perigo.

Enquanto o perigo encontra sua origem em forças da natureza, o risco, a seu turno encontra

133 Nesse sentido, reportamo-nos ao trabalho seguinte : MACEDO, Eduardo Soares de, CANIL, Kátia, GRAMANI, Marcelo Fischer. Instrumentos para a gestão de áreas de risco em assentamentos urbanos precários. In : Temas de Direito Urbanístico 6. Coordenação : Jorge Luiz Ussier. Organização : Mário Augusto Vicente Malaquias. São Paulo : Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2011, p. 121 a 137. O assunto será retomado mais adiante.

134 PARDO, Jose Esteve. Privileged domain of risk treatment : risk and health. In : European Review of Public Law Vol. 15 – No. 1, spring 2003. London : Esperia, 2003, p.109 - 129.

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sua gênese na tecnologia.

Muitos dos perigos com os quais nos defrontávamos no passado, tais como a fome

ou mesmo pragas, foram debeladas com o uso da tecnologia. A qual, nada obstante, teve

como subproduto o risco. Para Pardo, uma vez que subjaz à tecnologia a tomada de

decisões, sejam estas positivas ou negativas, explícitas ou implícitas, segue-se que o risco é

também fruto de tais decisões. E enquanto decisões humanas, podem e devem ser objeto de

regulação por meio de lei. Uma tarefa nada fácil, haja vista que, ante a complexidade da

sociedade moderna, não há como estabelecer uma relação clara entre determinados riscos

concretos e as decisões que lhes deram causa, decisões essas muitas vezes difusas e

esparsas no tempo.

A luta contra o risco envolve, na visão de Pardo, não um combate à ilegalidade mas

sim um enfrentamento de atividades industriais devidamente estabelecidas e desenvolvidas

sob o manto da legalidade formal. Não mais se visa, portanto, a total eliminação do risco,

pois se estaria a eliminar a própria atividade tecnológica. Impõe-se uma atitude que Pardo

denomina de reflexiva135, a sociedade a enfrentar-se a si mesma. Um movimento da lei

contra o progresso tecnológico e econômico, que se traduz num movimento contra o

próprio sistema legal : se mostra necessária, portanto, uma nova relação entre ciência e o

sistema jurídico. Muitas vezes valemo-nos de tecnologia para enfrentar riscos, sendo que

essa mesma tecnologia poderá ela própria trazer mais risco136.

135 PARDO, Jose Esteve. Privileged domain of risk treatment : risk and health. In : European Review of Public Law Vol. 15 – No. 1, spring 2003. London : Esperia, 2003, p. 113, com menção aos trabalhos seguintes : TEUBNER, Gunther. Substantive and reflexive elements in modern law. In : Law and Society Review, 17 (1982-1983), p. 239 e ss. A lei, numa concepção reflexiva, ao invés de regular por completo determinado assunto, apenas se limitaria a fornecer uma moldura à auto regulação, algo já emergente em alguns setores do direito privado. E, ainda : ORTS, Eric W., Reflexive environmental law. In : Northwestern University Law Review, 89 (1994-1995). O autor afirma que a complexidade atual da sociedade pede uma nova abordagem deôntica apta a capitanear as mudanças sociais. Ao invés de valer-se de uma intervenção legal direta, que se faça uso das capacidades de atores externos aos Tribunais, órgãos estatais e agências na busca por uma melhor qualidade ambiental.

136 Pardo traz alguns exemplos, registrados à página 114 de sua obra (PARDO, Jose Esteve. Privileged domain of risk treatment : risk and health. In : European Review of Public Law Vol. 15 – No. 1, spring 2003.

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Sem embargo, a ordem jurídica Europeia já vem enfrentando a questão do risco,

especialmente o risco à saúde o qual, em tese, encontra-se devidamente vertido para o

interior do Direito137, inclusive sob a forma de decisões judiciais138.

Referido enfrentamento do risco, ainda insuficiente na visão de Pardo, deve

incumbir-se adequadamente de três tarefas essenciais : da tomada de decisões relativas ao

risco; do controle e regulação do risco; e, finalmente, da responsabilização. Vejamos cada

uma dessas tarefas com maior vagar.

Repisando seus argumentos anteriores, Pardo ressalta que as decisões relativas a

London : Esperia, 2003) : incineração de carcaças de animais relacionados com a “doença da vaca louca” (a denominada encefalopatia espongiforme bovina), prática que também poderá gerar danos; da mesma forma, o uso de plantas geneticamente modificadas para a descontaminação de solos.

137 Pardo traz, ao longo de seu artigo, inúmeras referências a apontar para a incorporação do risco e também da incerteza ao sistema jurídico, tais como (os grifos são nossos) : a) Regulação da Comunidade Europeia relativa a princípios e exigências da legislação alimentícia (EC 178/2002) : a normativa exige avaliação de riscos para tomada de medidas dispondo, ainda, em prestígio ao princípio da precaução, que em situações nas quais se identifiquem potenciais efeitos nocivos à saúde, ainda que carecedoras de uma certeza científica, serão legítimas medidas provisórias de gestão dos riscos; b) Regulação EEC 2309/93 relativa à autorização e fiscalização de produtos para uso veterinário e humano : trata também da fármaco-vigilância e da possibilidade da rápida retirada do mercado de produtos medicinais previamente autorizados mas que acabam por apresentar um nível inadequado de risco; c) “White Paper on Food Safety” : documento da Comissão da Comunidade Europeia referente à segurança de alimentos e que, dentre outras medidas, impõe a avaliação e monitoramento não apenas de riscos existentes, mas também emergentes, relacionados a toda a cadeia produtiva de produtos alimentícios; d) O autor faz menção também ao artigo 174.2, do Tratado da Comunidade Europeia, que trata de forma expressa do princípio da precaução (atualmente o tema é tratado no artigo 191.2, do Tratado de Funcionamento da União Europeia que também dispõe sobre o princípio da precaução e da ação preventiva);

138 Mencionamos, com fito exemplificativo as Decisões da Corte Europeia (casos C-157/96 e C 180/96) que tratam de medidas de emergência tomadas em face da encefalopatia espongiforme bovina, denominada vulgarmente de “doença da vaca louca”. Ditas decisões ingressam no tema do risco tolerado ou admitido, dispondo que em situações nas quais houver incerteza, instituições podem tomar medidas protetivas sem ter que esperar se atinja um grau maior de certeza quanto aos riscos; ou ainda a decisão da Corte Europeia de Primeira Instância (caso T 13/99), no qual se reconhece a ampla discricionariedade de instituições da Comunidade Europeia (atualmente denominada União Europeia) para adotar medidas protetivas à saúde, mesmo na falta de informações científicas completas e ainda que em detrimento de posições empresariais devidamente protegidas por lei (a ação refere-se à insurgência de empresa privada contra retirada de licença relativa a produto utilizado como suplemento para crescimento de animais o qual apresenta a possibilidade de transferência da resistência a antibióticos, especificamente o Virginiamycin, de animais para pessoas);

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riscos envolvem atualmente uma nova relação entre a ciência, o direito e a política. Na

atualidade a ciência não mais é apta a nos fornecer certeza sobre muitos dos riscos com os

quais nos deparamos diariamente. Em determinadas situações reina um cenário de incerteza

dentro do qual, ainda assim, decisões devem ser tomadas. Algo que não é novidade ao

direito, mediante os institutos da presunção e também do ônus da prova. Sem embargo,

Pardo ressalta a importância do princípio da precaução, vocacionado a respaldar decisões

tomadas num cenário de incerteza, princípio esse já vertido para o interior do sistema

jurídico conforme tratado nos parágrafos anteriores. Um princípio, sem embargo, sujeito a

limites de três ordens : limite interno139, limites externos140 e limite de ordem temporal141.

Naquilo que concerne ao controle e à regulação do risco, Pardo142 entende que há

novidades. Passa-se de uma atuação calçada no conceito de polícia administrativa para a

gestão de risco. A atuação articulada ao redor do conceito de polícia administrativa volta-se

especialmente contra atividades ilegais143 e tem como finalidade restabelecer a ordem

pública com a eliminação completa do perigo. A seu turno, gestão de risco enfrenta

atividades que têm um componente tecnológico complexo e estão sendo realizadas dentro

da legalidade. Não há como se almejar uma eliminação completa dos riscos, mas sim

permitir optar e decidir entre riscos diferentes e muitas vezes opostos. Por vezes, riscos

139 Ou seja, cabe valer-se do princípio da precaução somente ante hipóteses de incerteza. Uma afirmação, contudo, que traz em si uma dificuldade : de que forma aquilato se estou ou não diante da incerteza ? Como sei aquilo que não sei ?

140 Limite que envolve, conforme narra Pardo (PARDO, Jose Esteve. Privileged domain of risk treatment : risk and health. In : European Review of Public Law Vol. 15 – No. 1, spring 2003. London : Esperia, 2003, p. 120) a colisão entre o princípio da precaução e outros princípios envolvendo o progresso econômico. A exigir, portanto, proporcionalidade das medidas adotadas na gestão dos riscos, como aliás estabelece o artigo 7.2 da já citada Regulação CE 178/2002.

141 Toda e qualquer medida tomada com fulcro no princípio da precaução deve ser objeto de revisão dentro de um intervalo razoável de tempo, levando-se em conta a natureza do risco e as características da informação científica pertinente. Nesse sentido, o artigo 7.2 da Resolução CE 178/2002.

142 PARDO, Jose Esteve. Privileged domain of risk treatment : risk and health. In : European Review of Public Law Vol. 15 – No. 1, spring 2003. London : Esperia, 2003, p. 121 e seguintes;

143 Entendemos que ambas as atuações não seriam mutuamente excludentes, haja vista possuírem objetos distintos, ambos aptos a preservar bens jurídicos caros. Ainda que para o risco encarado em sua perspectiva tecnológica o uso exclusivo de sanções e restrições não se mostre como o melhor caminho à gestão de tais riscos.

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tecnológicos são combatidos com outra tecnologia, também geradora de riscos. O conceito

de gestão de risco envolve, assim, delimitar-se o risco tolerado ou permitido dentro da

sociedade. Enquanto a atividade denominada por Pardo de polícia alicerça suas atuações

em proibições, sanções e atos unilaterais de intervenção, a gestão dos riscos se direciona a

atividades legais e necessitará da cooperação entre agentes para seu mister. As medidas

serão baseadas em informação, cooperação, consenso e acordos. Um contexto onde a auto

regulação adquire grande importância.

Por fim, no que concerne ao tema da responsabilidade, Pardo adverte quanto ao

dever da União Europeia de buscar um alto nível de proteção à saúde, comando que alcança

também as empresas privadas. As medidas estatais tomadas com respaldo no princípio da

precaução, ainda que impondo limitações a determinada atividade empresarial, se prestarão

a preservar bens outros. Mas uma vez que obra a Administração com poderes

discricionários mais amplos, de rigor seja referida atuação passível de controle Judicial.

Não podendo, sem embargo, Poder Judiciário se substituir às instituições na avaliação de

riscos. Mas cabendo-lhe suspender decisões públicas até que informações completas sejam

fornecidas pelo órgão ou entidade envolvidos144.

Novamente em pauta a ideia do risco como resultante de decisões humanas e, por

consequência, passível de regulação pelo Direito. Risco com uma face normativa, recolhido

por normas diversas e também em decisões judiciais, extrapolando-se o dever de proteção

também para situações denominadas de incerteza, inclusive no que toca a atividades legais

e devidamente licenciadas. E, ainda, com uma face espacial, encontrando sua gênese em

intervenções desse cariz e ao mesmo tempo sendo apto a ser enfrentado por atuações

também de cunho territorial, conforme será desenvolvido em seguida.

144 PARDO, Jose Esteve. Privileged domain of risk treatment : risk and health. In : European Review of Public Law Vol. 15 – No. 1, spring 2003. London : Esperia, 2003, p. 120.

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1.8 – Do risco em sua dimensão espacial – e das possibilidades de seu

enfrentamento valendo-se de normas de direito urbanístico

O risco, como já afirmado, necessariamente encontra lugar no sistema jurídico.

Necessitamos, contudo, dar um passo além. À luz do corte epistemológico adotado no

presente trabalho, imperioso centrarmos nossos esforços naqueles riscos que têm uma

pertinência ou dimensão espacial e que podem ser enfrentados, principalmente, por

institutos afeiçoados ao direito urbanístico.

Como ponto de partida, exporemos posições doutrinárias afetas ao tema com

colheita de experiências extraídas de sistemas jurídicos de países diversos. Centrando

nossos esforços e recortando a realidade para explicitar o risco em sua dimensão espacial.

Referida dimensão espacial do risco ostenta uma dupla faceta, aparentemente

paradoxal : de um lado, a organização dos espaços potencializando e intensificando o risco,

mormente diante da crescente aglomeração de parcelas populacionais em espaços urbanos.

E de outra banda, essa mesma organização dos espaços propiciando o adequado

enfrentamento e convívio com o risco, a pertinente promoção e proteção de bens e direitos

dos mais diversos de eventuais danos futuros. Em suma : do enfrentamento do risco a esses

bens e direitos levado adiante mediante intervenções de cunho espacial no tecido urbano.

Portanto, antes de prosseguirmos, é de rigor fornecer suporte às afirmações acima,

em especial acerca da aglomeração crescente de pessoas em cidades, e das possibilidades

que nos são oferecidas pela organização dos espaços à concretização de direitos dos mais

variados. E, nesses termos, nas possibilidades também do enfrentamento do risco por meio

dessas mesmas intervenções. Vejamos.

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1.8.1 – Do fenômeno urbano

A crescente aglomeração de contingentes populacionais em determinadas

localidades pode ser encarada como um fenômeno inegável e característico das últimas

décadas. Trata-se, contudo, de um fenômeno que guarda estreita relação com a questão do

risco, especialmente o risco que nos interessa no presente trabalho e que denominamos de

espacial. Referida concentração populacional, muitas vezes consolidada de forma

desordenada, é terreno fértil para a ocorrência de conflitos e para a vulneração de direitos

dos mais variados. Conflitos e vulnerações decorrentes, em última análise, de ações e

omissões e, nesses termos fruto de decisões humanas aptas a serem disciplinadas pelo

Direito.

É principalmente nas aglomerações urbanas onde se desenrola a vida da maior parte

da população mundial145. É nessas aglomerações urbanas onde seus moradores

potencialmente cultivam amizades, iniciam relacionamentos amorosos, casam-se,

constituem família, trabalham, estudam, se divertem. Enfim, onde constroem sua

identidade.

Conforme já asseverado há pouco, a concentração de pessoas em núcleos

populacionais é um fenômeno que se mostra plausível e defensável. E ainda que se

questione se dispomos de dados suficientes que possam nos levar a concluir pela

continuidade da tendência à concentração cada vez maior de pessoas nesses núcleos

145 Em 2011, segundo dados da Organização das Nações Unidas, 52,1 % da população mundial vive em áreas urbanas, consideradas como tal segundo os critérios de cada um dos países onde os dados foram coletados. Dados disponíveis para consulta na página da rede mundial de computadores : http://esa.un.org/unpd/wup/CD-ROM/Urban-Rural-Population.htm; consulta realizada aos 14 de julho de 2012.

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populacionais146, ou mesmo à propalada tendência à sociabilidade dos seres humanos, não

há como fechar aos olhos à intensa aglomeração de pessoas que já se verifica na presente

data em inúmeras cidades não apenas do denominado “primeiro mundo”, mas

especialmente dos ditos “países em desenvolvimento”. Cidades de características das mais

variadas, algumas a apresentar tamanha diversidade que torna impossível difícil tomá-las

como um todo orgânico, tal qual ocorre, a título de exemplo, com São Paulo, no Brasil147.

A diversidade das cidades, seu crescimento impressionante e sua importância cada

vez maior no cenário global são exploradas em publicação conjunta da London School of

Economics e do Deutsche Bank’s Alfred Herrhausen Society148, cujas informações

relataremos abreviadamente abaixo.

No ano de 1900 apenas 10% da população mundial vivia em cidades. Esse número

saltou para 50% em 2007 (data da publicação do citado livro), estimando-se que chegue a

75% no ano de 2050149. Uma concentração nada desprezível, alterando o perfil não apenas

146 Não ignoramos a existência de núcleos populacionais que, ao contrário do afirmado, estão a perder população, muitas vezes em decorrência da deterioração de sua atividade econômica, tal qual ocorre, por exemplo, com a cidade de Detroit, nos Estados Unidos da América. Não defendemos a existência de uma tendência universal de crescimento aplicável a todas as cidades indistintamente. Buscamos apenas explicitar que, em determinados centros urbanos, referido crescimento é acentuado e não pode ser desconsiderado, uma vez que de ocupações levadas adiante sem o respeito a direitos fundamentais estarão a expor parcelas cada vez maiores de seres humanos a riscos dos mais variados.

147 Conforme levantamento realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia Estatística no ano de 2010, São Paulo (Brasil) contava à época com mais de 11 milhões de habitantes. De seus domicílios, 99,1 % estavam situados em zona urbana. A cidade ocupa uma área que supera os 1.500 quilômetros quadrados. No ano da pesquisa apurou-se a existência de 3.574.286 domicílios e 517.711 empresas, dedicadas predominantemente a atividades de serviços. Não bastasse a magnitude da cidade, São Paulo é também o pólo de região metropolitana que inclui outros 38 Municípios e cuja população atinge quase 20 milhões de habitantes, cada qual com um Poder Legislativo e Executivo próprios, e características, vocações e problemas distintos e peculiares. Dentro da própria cidade verificam-se uma diversidade e desigualdade enormes. São Paulo se encontra dividida em 31 subprefeituras, as quais agregam 96 distritos, cada qual um perfil distinto. Uma diversidade que cremos ser, além de um desafio, também uma de suas maiores forças.

148 BURDETT, Ricky; SUDJIC, Deyan (editors). The endless city. The Urban Age Project by the London School of Economics and Deutsche Bank’s Alfred Herrhausen Society. New York : Phaidon, 2007.

149 BURDETT, Ricky; SUDJIC, Deyan (editors). The endless city. The Urban Age Project by the London School of Economics and Deutsche Bank’s Alfred Herrhausen Society. New York : Phaidon, 2007, p. 09.

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das cidades que recebem tais contingentes enormes de população, mas de nações e

continentes. Com 80% da superfície de terra do globo já afetada de alguma maneira pela

presença do ser humano150.

Ao lado desse crescimento visto sob uma perspectiva mais geral temos, para

diferentes cidades, perfis e padrões de crescimento absolutamente peculiares.

Exemplificamos : a cidade de Nova Iorque, nos Estados Unidos da América apresenta, na

presente data, em sua região metropolitana, um número de habitantes de aproximadamente

21 milhões de pessoas. A esse impressionante número, há que se acrescentar a cifra de 43

milhões de visitantes por ano. Da população residente, 19% vivem abaixo da linha de

pobreza e 3.2 milhões são imigrantes. Quanto ao mercado de trabalho, no ano de 1964,

29% da população estava empregada no setor de manufaturas. Esse número caiu para 4%

em 2004, com 93% dos empregos sendo oferecidos pelo setor de serviços atualmente151.

Shanghai, na China, conta hoje com mais de 16 milhões de residentes, dentre os

quais há 3 milhões de migrantes chineses ilegais, população que cresceu por volta de oito

vezes desde o ano de 1920. Uma cidade com uma frota de 16 milhões de bicicletas e um

incremento nos acidentes de trânsito da ordem de 612%, entre os anos de 1990 e 2002. Em

1980 havia na cidade apenas 121 prédios com mais de oito andares. Esse número saltou

para 3529 em 2000 e atingiu, em 2005, a marca de 10045 prédios152.

150 BURDETT, Ricky; SUDJIC, Deyan (editors). The endless city. The Urban Age Project by the London School of Economics and Deutsche Bank’s Alfred Herrhausen Society. New York : Phaidon, 2007, p. 24. Sem embargo, conforme a extensão e alcance que se pode dar à expressão “afetada”, não seria exagero considerar, à luz das teorias relativas ao aquecimento global, que a ação humana já produz consequências em todos os rincões do planeta.

151 BURDETT, Ricky; SUDJIC, Deyan (editors). The endless city. The Urban Age Project by the London School of Economics and Deutsche Bank’s Alfred Herrhausen Society. New York : Phaidon, 2007, p.76.

152 BURDETT, Ricky; SUDJIC, Deyan (editors). The endless city. The Urban Age Project by the London School of Economics and Deutsche Bank’s Alfred Herrhausen Society. New York : Phaidon, 2007, p. 110.

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Londres, no Reino Unido, tem uma população de 7.5 milhões de pessoas, das quais

27% são nascidas no exterior (número que vem crescendo ano a ano). O setor de serviços

empregando, nos tempos atuais, 91 % da força de trabalho153.

Passando-se à Cidade do México, no México, aponta-se para uma aglomeração de

19 milhões de pessoas em sua região metropolitana. Esse número era de 400 mil pessoas

em 1900 e de três milhões e cem mil habitantes em 1950. Uma cidade onde 60% das

construções são feitas pelo setor informal o qual representa 22% do produto interno bruto

do país154.

No continente Africano, outro exemplo de crescimento quase sem precedentes : a

cidade de Johanesburgo, na África do Sul. Conta a urbe com 3.2 milhões de habitantes,

uma taxa de desemprego que atinge a marca de 31% (um incremento de 65% entre 1996 e

2001), e 34% da população com idade entre 25 e 29 anos infectada pelo vírus da AIDS155.

Ainda em Johanesburgo, um terço de todos os deslocamentos são feitos a pé. Uma cidade

ainda marcada pela pobreza e pela desigualdade, contando atualmente com

aproximadamente 600 comunidades fechadas (as denominadas gated communities),

“protegidas” por um número de guaritas (no original : “checkpoints”) ao redor de 1100156.

Berlim, na Alemanha, ostenta 4.4 milhões de habitantes em sua região

Metropolitana. Uma cidade onde 35% dos deslocamentos são feitos a pé ou de bicicleta e

que tem 35.6% de sua área reservada a espaços verdes. Uma localidade devastada na

153 BURDETT, Ricky; SUDJIC, Deyan (editors). The endless city. The Urban Age Project by the London School of Economics and Deutsche Bank’s Alfred Herrhausen Society. New York : Phaidon, 2007, p. 140.

154 BURDETT, Ricky; SUDJIC, Deyan (editors). The endless city. The Urban Age Project by the London School of Economics and Deutsche Bank’s Alfred Herrhausen Society. New York : Phaidon, 2007, p.168.

155 Ou, em vernáculo : SIDA – Síndrome da Imunodeficência Adquirida.

156 BURDETT, Ricky; SUDJIC, Deyan (editors). The endless city. The Urban Age Project by the London School of Economics and Deutsche Bank’s Alfred Herrhausen Society. New York : Phaidon, 2007, p.198.

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Segunda Guerra Mundial (50% de suas construções foram destruídas durante o conflito) e

que encerra em seu próprio âmago diferenças importantes (na parte Oriental, apenas 6% das

pessoas são nascidas no exterior. Esse número é três vezes maior na parte Ocidental)157.

A seleção das informações acima pode ser merecedora de críticas, seja quanto às

localidades escolhidas, ou mesmo quanto às possibilidades, ou não, de, por meio de método

indutivo, extrapolar as tendências de tais cidades para outras aglomerações urbanas. O

presente trabalho não é o palco adequado para enfrentar tais críticas. O que buscamos

demonstrar é a relevância sociológica representada pelas aglomerações de pessoas em

núcleos populacionais, em espaços geográficos determinados e delimitados. Concentrações

humanas, sem embargo, dotadas de peculiaridades e de dinâmicas próprias. São cidades

moldadas pelas pessoas que ali vivem e que nos afastam de uma ideia de cidade como uma

entidade ou órgão único e homogêneo. Pelo contrário : cada núcleo populacional tem

características, problemas, vantagens e forças que lhes são próprias, tais como : imigração,

trânsito e circulação, verticalização, violência, questões de saúde, de educação, de

desemprego, de capital humano, tolerância (ou falta de tolerância), inclusão (ou exclusão).

Cidades, ademais, cuja descrição se faz acompanhar de adjetivos dos mais diversos,

dotados de significados diferentes. Fala-se, exemplificativamente, em cidades

“múltiplas”158, cidades sustentáveis, megacidades159, cidades que tenham boa qualidade de

157 BURDETT, Ricky; SUDJIC, Deyan (editors). The endless city. The Urban Age Project by the London School of Economics and Deutsche Bank’s Alfred Herrhausen Society. New York : Phaidon, 2007, p. 226.

158 Conforme publicação da Universidade de Munich (Technischen Universität München), denominada Multiple City. Urban Concepts 1908 | 2008 (In : Multiple City. Urban Concepts 1908 | 2008 Berlin : Jovis, 2008), o fenômeno “cidade” pode se manifestar de diferentes maneiras, tais como a cidade sustentável, a cidade da perfeição, a cidade como um prêmio, dentre outras. Em seu prefácio, os organizadores pontuam que : “every city consists of numerous individually interpreted, concurrent cities. Every person lives in his or her own city, constructs his or her own mental map of the environment. The city is moreover a chronotopos in whose spaces various eras overlap. Which of these eras we currently value, which past is cultivated, is both an expression and an interpretational act of the present. Furthermore we can perceive the diversity of city and cities from different lines of debate. These differing views overlap or run parallel (...) Cities do not emerge of their own accord, they are made by people.” Teríamos, destarte, não uma, mas diversas “cidades”, todas produzidas por pessoas. E, podemos acrescentar, produzidas para as pessoas. Ou, ao menos, assim deveria sê-lo.

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vida160, cidades verticais, cidades aeroportos (“aerotropolis161”), cidades invisíveis162,

detendo-nos apenas em algumas dentre muitas outras denominações. As quais muitas vezes

tentam simplificar uma realidade que encerra uma dinâmica muito mais complexa e

merecedora de análise mais detida163.

Nossa exposição se centrará em relação aos centros populacionais onde há

aglomerações mais acentuadas de pessoas. Onde temos, consequentemente, um número

maior de pessoas expostas a eventuais negligências na organização dos espaços em que

vivem. Expostas, assim a risco, que pode se manifestar das formas mais diversas. Tão

diversas como as próprias cidades. Nos valeremos, na presente exposição, do termo cidade

para designar as diferentes aglomerações, fugindo ao nosso escopo uma análise de maior

fôlego em relação à conceituação do apontado termo164. O que não significa que em áreas

159 Um conceito de megacidades pode ser encontrado no livro The endless city. The Urban Age Project by the London School of Economics and Deutsche Bank’s Alfred Herrhausen Society. New York : Phaidon, 2007 (Editores : BURDETT, Ricky; SUDJIC, Deyan), em sua página 58 : regiões de megacidades seriam aquelas com mais de 10 milhões de habitantes.

160 Recente edição da revista Britânica Monocle (issue 45, volume 05, july/august 2011) dedicou grande parte de suas páginas para a qualidade de vida nas cidades, chegando a elaborar uma lista de cidades ordenadas de acordo com critérios que trariam a seus moradores qualidade de vida, tais como baixa criminalidade, transportes eficientes, serviços públicos que funcionam, preservação histórica e ambiental, planejamento inovador, dentre outras.

161 KASARDA, John D., LIDSAY, Greg. Aerotropolis : the way we’ll live next. New York : Farrar, Strauss and Giraux, 2001. Os autores debatem acerca da fundamental importância dos meios de transporte para a futura competitividade e até mesmo viabilidade de cidades, dando ênfase ao transporte aéreo.

162 Nesse sentido : CALVINO, Italo. Le Città Invisibili. Presentazione dell’autore con uno scritto di Pier Paolo Pasolini. Milano : Mondadori, 2012 (Ristampa). : obra ficcional na qual o autor explora os motivos que conduzem as pessoas a viver em cidades. Para o autor, as cidades são um conjunto de coisas diversas, tais como memórias, desejos, sinais e trocas – trocas não apenas de mercadorias, mas também de palavras, desejos, recordações. Cidades invisíveis que surgem como um sonho que nasce no coração das cidades “invivibili” (que, numa tradução livre, pode ser vertido ao português como cidades nas quais sequer se consegue viver).

163 Luis Soczka, citando Bachelard (In : BACHELARD, Gaston. La formation de l’Esprit Scientifique. Paris : Vrin, 1938), aponta para obstáculo epistemológico que denomina de substancialismo, “correspondente à atribuição de propriedades substanciais aos fenómenos imediatos, de molde a ‘abafar’ todas as perguntas subsequentes. A palavra qualificativa substitui-se tranquilamente à análise, e o real é encerrado na circularidade do discurso nominalista”. Nos esforçaremos para não cair essa armadilha. (Referência obtida em : SOCZKA, Luis. As raízes da psicologia ambiental. In : SOCZKA, Luis (org.). Contextos humanos e psicologia ambiental. Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2005, p. 50).

164 No que toca à definição de cidade, veja-se, exemplificativamente : a) tratando do fenômeno urbano e do

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outras, tais como as rurais, não haja o dever de proteção a direitos dos mais variados, dentre

os quais o de não ser exposto a risco, ou de não ver vulnerados bens e direitos que podem

ficar expostos em razão de determinadas decisões tomadas, notadamente pelo poder

público. Reiteramos nossa opção, por força de corte epistemológico, em concentrar nossos

esforços nas áreas urbanas, e que denominaremos de “cidade”, sem nos olvidarmos de sua

indissociável imbricação com todo o território e com o fato de o risco, via de regra, não

respeitar limites administrativos ou mesmo acidentes geográficos.

Prossigamos. Mencionada diversidade dos espaços impõe o dever de orientar sua

organização com os olhos voltados à preservação de valores caros aos seus habitantes.

Notadamente aqueles valores prestigiados pelo ordenamento jurídico. Até porque os

espaços, assim como a forma pela qual são organizados, trazem profundas consequências

na vida e, principalmente, no comportamento das pessoas. A organização dos espaços,

assim como as decisões que subjazem a tal organização, podem tanto preservar como

vulnerar direitos dos mais variados. Falamos aqui, portanto, de decisões antecedentes,

assim como de impacto no comportamento das pessoas, a evocar a incidência e a

intervenção do direito, disciplina que, por excelência, busca regular condutas165,

conceito de cidade para o geógrafo : BEAJEU-GARNIER, Jacqueline. Geografia urbana. 3ª edição. Lisboa : Calouste Gulbenkian, 2010; b) aludindo tanto a critérios de natureza demográfica, assim como de natureza não-demográfica para distinguir a realidade “urbana” da “rural” : CORREIA, Fernando Alves. Manual do Direito do Urbanismo. Volume I. 2ª edição. Coimbra : Almedina, 2004, páginas 20 e seguintes; c) do conceito e das diferentes concepções e elementos essenciais à cidade : SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico Brasileiro. 4ª edição, revista e atualizada. São Paulo : Malheiros, 2006, página 26 e seguinte; d) da transformação urbana como algo além do mero aumento numérico da comunidade : MUMFORD, Lewis. A cidade na história : suas origens, transformações e perspectivas. 5ª edição. São Paulo : Martins Fontes, 2008, em especial à página 32 e seguintes; e) da cidade como mosaico cultural : SOCZKA, Luis. Viver (n)a cidade. In : Contextos humanos e psicologia ambiental. Lisboa : Calouste Gulbenkian, 2005, páginas 95 e seguintes; f) da cidade como algo mais do que a reunião de pessoas e de infraestruturas : PARK, Robert Ezra., BURGESS, Ernest Watson, McKENZIE, Roderick D. The City. Chicago : University of Chicago Press. Published 1925. Sixth Impression 1970. g) a cidade não é mais a “cidade antiga”, demarcada por fronteiras políticas, mas antes uma “sociedade de pessoas” definida em termos de partilha e comunhão de valores : QUEIROZ, Cristina. Poder constituinte, democracia e direitos fundamentais. Uma via constitucional para a Europa? Coimbra : Coimbra, 2013.

165 Para Paulo de Barros Carvalho (In : CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário, linguagem e método. São Paulo : Noeses, p. 162) o objetivo primordial do direito consiste em : “Orientar as condutas inter-humanas, no sentido de propiciar a realização de valores caros aos sentimentos sociais, num determinado tempo histórico”.

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canalizando-as em nome de valores166. Uma organização dos espaços centrada nas

pessoas167, com seus sonhos, anseios, sentimentos, planos futuros e especialmente direitos

aptos a irradiar feixes de obrigações.

Mostra-se pertinente, neste ponto, traçar breves considerações acerca do alegado

impacto que a organização dos espaços tem na vida das pessoas e na vulneração ou no

prestígio de direitos dos mais variados. Referidas considerações, num segundo momento,

incluirão exposição singela sobre as possibilidades que oferece o direito urbanístico para a

concretização de direitos variados, tais como a saúde e a segurança. Mais do que um mero

instrumento de separação de usos e de orientação à edificação, o direito do urbanismo não

pode se mostrar alheio a valores e bens jurídicos dos mais diversos, prestigiados pela ordem

jurídica.

1.8.2 - Da organização dos espaços e de sua potencial influência no

comportamento humano

Consoante registramos há pouco, prosseguiremos tratando da eventual existência de

166 Socorremo-nos, mais uma vez, da doutrina de Paulo de Barros Carvalho : “Não é exagero referir que o dado valorativo está presente em toda configuração do jurídico (...). Em outras palavras, onde houver direito haverá, certamente, o elemento axiológico.” Prossegue Paulo de Barros afirmando que : “Ao escolher, na multiplicidade intensiva e extensiva do real-social, quais os acontecimentos que serão postos na condição de antecedente de normas tributárias, o legislador exerce ume preferência : recolhe um (...). Nesse instante, sem duvida, já emite juízo de valor” Assim, a título de exemplo, numa conduta tida como proibida pelo legislador “fica nítida a desaprovação social da conduta, manifestando-se inequívoco valor negativo. Vê-se que o valor está na raiz mesma do dever-ser, isto é, na sua configuração lógico formal.” O direito, assim, vai canalizando condutas em nome desses valores. (In : CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário, linguagem e método. São Paulo : Noeses, p. 174 e 175).

167 Não que seja referida perspectiva uma novidade. Muito pelo contrário. Deixamos, aqui, menção exemplificativa ao trabalho de Jan Gehl (GEHL, Jan. Cities for people. Washington : Island Press, 2010) : resumidamente, argumenta o autor sobre maneiras de melhorar os espaços públicos e qualidade de vida dos cidadãos mediante um planejamento que leve em conta as pessoas.

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nexo entre a organização dos espaços humanos, em especial nos grandes centros urbanos, e

o comportamento das pessoas. O faremos, não obstante, de maneira bastante abreviada e

sem a pretensão de esgotar a análise do tema, para não fugir aos fins da presente exposição.

Sem embargo, expor referido nexo, ainda que de maneira simplificada, reforça nosso

argumento quanto à necessidade de se levar em conta tal influência no comportamento

humano quando das intervenções no tecido urbano. Seja para promover direitos e proteger

bens e valores, e, em consequência, enfrentar o risco a que estão expostos esses mesmos

bens e valores.

Conforme já defendemos em outra oportunidade168, para além do cimento e do

asfalto das cidades, temos as pessoas que fazem uso desses espaços físicos e para quem

estes foram, em última análise, construídos. Cidades para cidadãos, dotados de direitos e

deveres. De acordo com Park e Burgess169 a cidade é mais do que um mecanismo físico ou

uma construção artificial e está envolvida nos principais processos das pessoas que a

compõem. É um produto da natureza humana, dotada de cultura própria e de uma

organização não apenas física mas também moral. Arriscamos dizer que possui vida,

constituída pela vida de cada uma das pessoas que ali moram, trabalham, circulam, se

divertem. Ao mesmo tempo em que produz impactos na vida de cada um de seus habitantes

e “usuários”, numa relação circular. Como bem aponta Luis Soczka , “a cidade faz-nos,

sendo simultaneamente o que fazemos dela.”170

Mas qual será efetivamente, se algum, o impacto que a organização dos espaços

produz no comportamento de seus moradores e, em consequência, no prestígio ou na

168 MATHIS, Ruy de; ROSSO, Maximiliano. Do consumo abusivo de substâncias e do dever estatal de proteção mediante intervenções no tecido urbano. In : COUTINHO, Nilton Carlos de Almeida (Coord.). Advocacia e Direito Público : aspectos processuais, constitucionais, tributários e trabalhistas. Belo Horizonte : Del Rey, 2013, p. 173 – 201.

169 PARK, Robert Ernest, BURGESS, Ernest Watson, McKENZIE, Roderick Duncan, WIRTH, Louis. The City. Sixth impression. Chicago : University of Chicago Press, 1970, p. 1 e 3.

170 SOCZKA, Luis . Viver (n)a Cidade. In : SOCZKA, Luis (Org.). Contextos humanos e psicologia ambiental. Lisboa : Fundação Calouste Gulbenkian, 2005, p. 126.

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vulneração de direitos? Expondo, assim, referidos direitos a risco? Vejamos.

Há autores que enfatizam os impactos negativos no comportamento humano,

decorrentes da organização dos espaços e, em especial, em razão da aglomeração de

pessoas. Dentre tais autores mencionamos Simmel171, Wirth172, e Milgram173, os quais

tratam dos efeitos de “sobrecarga” que a vida nas cidades produz em seus moradores174. Em

perspectiva diametralmente oposta, temos aqueles que enxergam as cidades como

produtoras de efeitos positivos àqueles que ali vivem ou circulam, incluindo-se neste grupo,

de forma meramente exemplificativa, os trabalhos de Young & Willmott175, ou ainda de

Fried & Gleicher176.

171 SIMMEL, Georg. As Metrópoles e a vida mental. In : SIMMEL, Georg. Fidelidade e gratidão e outros textos. Tradução do original alemão de Maria Joao Costa Pereira. Lisboa : Relógio de Água : Lisboa, 2004. O texto original consiste em um ensaio publicado no ano de 1903, em língua alemã (Die Großstadt und das Geistesleben), que aborda a intensificação da estimulação nervosa resultante da vida nas metrópoles.

172 Louis Wirth, que trabalhou em colaboração com Robert Ezra Park e Ernest Watson Burgess na fundação da denominada Escola de Chicago e com eles escreveu, em co-autoria, a obra The City (PARK, Robert Ernest, BURGESS, Ernest Watson, McKENZIE, Roderick Duncan, WIRTH, Louis. The City. Sixth impression. Chicago : University of Chicago Press, 1970. A primeira publicação da obra ocorreu em 1925).

173 MILGRAM, Stanley. A experiência de viver na cidade : adaptações à sobrecarga urbana criam qualidades características à vida nas cidades que podem ser mensuradas. In : Science, 167 (1970), p. 1461 – 1468. (Tradução : Andréa de Almeida Lara). Série : Textos de Psicologia Ambiental, n.07, Brasília, DF : UnB, Laboratório de Psicologia Ambiental. (original 1970). Na vida urbana o morador, via de regra, se depara com um sem número de estímulos dos mais variados, os quais não consegue processar. Referida sobrecarga, conforme aduz Milgram, acaba por deformar a vida diária e, consequentemente, por determinar em grande parte o comportamento do morador da cidade, que deverá se adaptar a tal situação. O morador de uma cidade grande revela incapacidade, para reconhecer a maior parte das pessoas que vê diariamente, redundando em uma filtragem de estímulos e, em consequência, numa indiferença frente a comportamentos desviantes assim como num anonimato social. Como exemplo, Milgram aponta para o urbanita que ignora o bêbado doente na via pública. Ou também, podemos acrescentar, os moradores de rua que se aglomeram no Centro da cidade de São Paulo, no Brasil.

174 Teoria, todavia, que não é imune a críticas, como bem apontam Gans (In : GANS, Herbert J. The urban villagers. Nova Iorque, Free Press, 1962.), Oscar Lewis (LEWIS, Oscar. Urbanization without breakdown. In : The Scientific Monthly, 75.), e até mesmo o próprio Milgram (a fls. 06 da obra já mencionada).

175 YOUNG, M., WILLMOTT, P. (1957). Family and Kinship in East London. London : Routledge and Kegan, 1957. Conforme citação fornecida por Soczka (In : SOCZKA, Luis . Viver (n)a Cidade. In : SOCZKA, Luis (Org.). Contextos humanos e psicologia ambiental. Lisboa : Fundação Calouste Gulbenkian, 2005, p.111).

176 FRIED, M.;GLEICHER, P.. Some source of residential satisfaction in an Urban Slum. In : J. Am. Inst. of Planners, 27, 1961 : pp. 305-315.

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Retomemos, num primeiro momento, os argumentos daqueles que acentuam os

efeitos prejudiciais decorrentes das aglomerações humanas. Ênfase dada, insistimos, à

perspectiva da sobredensidade populacional.

Uma das linhas de pensamento, denominada de tradição sociológica177, reporta-se

ao efeito de “sobrecarga” que experimentariam os moradores de cidades de maior porte, e é

defendida por autores como Soczka178, Simmel179, Wirth180, Park e Burgess181 e

Milgram182.

177 Referida tradição “procura ligar como variável independente o macrofenómeno sociodemográfico que é a densidade populacional às variáveis dependentes de ordem microssociológica ou mesmo aos comportamentos individuais.” (SOCZKA, Luis. Viver (n)a cidade. In : SOCZKA, Luis (org.). Contextos humanos e psicologia ambiental. Lisboa : Fundação Calouste Gulbenkian, 2005, p. 100).

178 SOCZKA, Luis. Viver (n)a cidade. In : SOCZKA, Luis (org.). Contextos humanos e psicologia ambiental. Lisboa : Fundação Calouste Gulbenkian, 2005, p. 96.

179 SIMMEL, Georg. As Metrópoles e a vida mental. In : SIMMEL, Georg. Fidelidade e gratidão e outros textos. Tradução do original alemão de Maria João Costa Pereira. Lisboa : Relógio de Água : Lisboa, 2004. O texto original consiste num ensaio de 1903, na língua alemã (Die Großstadt und das Geistesleben), que aborda a intensificação da estimulação nervosa resultante da vida nas metrópoles.

180 PARK, Robert Ernest, BURGESS, Ernest Watson, McKENZIE, Roderick Duncan, WIRTH, Louis. The City. Sixth Impression. Chicago : The University of Chicago Press, 1970.) Conforme relata SOCKA, a fls. 97, para WIRTH o homem urbano seria “uma vítima da sobredensidade populacional, refugiando-se numa insulação cognitivo-emocional protectora. As vinculações afectivas são destruídas e o isolamento é a marca da vida urbana. Perdem-se os laços comunitários”. Uma leitura, todavia, pessimista e inclusive contestada por outros autores, também pertencentes à denominada “Escola de Chicago”, tais como Gans (GANS, Herbert J. The urban villagers. New York, Free Press, 1962) e Oscar Lewis (Urbanization without breakdown. In : The Scientific Monthly, 75), conforme referência fornecida por SOCZKA (fls. 98) o qual relata que “à massificação anónima e anómica, com os seus riscos de apatia defensiva contra a sobrecarga, a cidade contrapunha ela própria os seus sistema de adaptação, através da organização social em agrupamentos relacionais directos, constituindo-se como um ‘mosaico de mundos sociais’ relativamente imunes aos efeitos do gigantismo urbano.”

181 PARK, Robert Ernest, BURGESS, Ernest Watson, McKENZIE, Roderick Duncan, WIRTH, Louis. The City. Sixth impression. Chicago : University of Chicago Press, 1970.

182 MILGRAM, Stanley. A experiência de viver na cidade : adaptações à sobrecarga urbana criam qualidades características à vida nas cidades que podem ser mensuradas. Science, 167 (1970), p. 1461 – 1468. (Tradução : Andréa de Almeida Lara). Série : Textos de Psicologia Ambiental, n.07, Brasília, DF : UnB, Laboratório de Psicologia Ambiental. (original 1970)

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O termo “sobrecarga”, empregado por Milgram, tem suas origens na análise de

sistemas. Num sistema, quando nos deparamos com inputs183 em excesso, surge uma

incapacidade de processá-los, e, por consequência uma adaptação. O mesmo se verifica na

vida urbana, onde o morador, via de regra, se depara com um sem número de estímulos dos

mais variados184 os quais não consegue processar. Situação que exigirá, reiteramos, um

processo de adaptação. Referida sobrecarga, à luz dos argumentos de Milgram, acaba por

deformar a vida diária e principalmente por determinar em grande parte o comportamento

do morador da cidade. Conforme argumenta Milgram, o conceito de sobrecarga explicaria

os contrastes entre os comportamentos de moradores de cidades grandes e pequenas,

notadamente : a) a diferença no desempenho de papéis, os moradores de cidades grandes

apresentando tendência a se relacionar com outros de maneira segmentada e funcional; b)

na evolução das normas sociais (e.g. : aceitação do não envolvimento e da indiferença na

vida urbana); c) e no funcionamento cognitivo do morador de uma cidade grande, o qual

revela incapacidade, por exemplo, para reconhecer a maior parte das pessoas que vê

diariamente, redundando em uma filtragem de estímulos e, em consequência, numa

indiferença frente a comportamentos desviantes assim como num anonimato social.

Portanto, em resposta a referida sobrecarga o morador da cidade dedicará menos

tempo a cada input, se mostrará desatento a inputs de baixa prioridade185 e filtrará ou

mesmo bloqueará a recepção de tais inputs. O envolvimento moral e social acaba por ser

mais restrito, chegando a se desconsiderar totalmente as necessidades daqueles que não se

definem como relevantes. A título de exemplo, narra Milgram acerca de um homicídio

ocorrido no bairro de Queens, em Nova Iorque, no ano de 1964. A vítima, Catherine 183 Numa tradução livre, “entradas” ou “informações”.

184 Conforme aponta o autor, em uma caminhada de aproximadamente dez minutos, um morador do Centro de Manhattan cruza com aproximadamente 220 mil pessoas. Informação a fls. 01 do já mencionado artigo de Milgram. Note-se, ademais, que o artigo é da década de 70. Possível que esse número seja ainda maior na presente data. Seja para Nova Iorque ou mesmo para outras cidades de grande porte.

185 Como exemplo, Milgram aponta para o urbano que ignora o bêbado doente na via pública, tal qual já ressaltamos há pouco (in : MILGRAM, Stanley. A experiência de viver na cidade : adaptações à sobrecarga urbana criam qualidades características à vida nas cidades que podem ser mensuradas. Science, 167 (1970), p. 1461 - 1468 - Tradução : Andréa de Almeida Lara. Série : Textos de Psicologia Ambiental, n.07, Brasília, DF : UnB, Laboratório de Psicologia Ambiental, p. 02).

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Genovese, foi apunhalada repetidamente, por prolongado período de tempo. Pelo menos 38

residentes testemunharam no mínimo em parte o ataque, mas ninguém intercedeu.

Aparentemente ninguém sentiu que tivesse uma responsabilidade especial por aquela

situação. Não se tratava de pessoa que integrava grupo de interesse a tais moradores, como

por exemplo um amigo. E não que a vítima provavelmente não dispusesse de amigos.

Nenhum, todavia, se encontrava naquela localidade.

Sem embargo, conforme reconhece o próprio Milgram, o conceito de sobrecarga

não se presta a produzir uma descrição única e exclusiva da vida nas cidades grandes,

verificando-se outros aspectos da vida urbana que não se encaixam no mencionado

conceito186. A vida nas grandes cidades não produz, portanto, exclusivamente impactos

negativos no comportamento. Não há, tampouco, como ignorar as enormes diferenças

existentes entre cidades, fato esse que tampouco passou despercebido ao próprio Milgram.

Cidades não podem ser tratadas como um organismo homogêneo e tampouco como a causa

de todos os males ou, pior ainda, como um local que apenas apresenta desvantagens.

Interessa, portanto, compreender como a organização dos espaços afeta o comportamento

humano, de forma a intervir no tecido urbano com vistas a concretizar direitos dos mais

diversos.

Uma outra corrente de pensamento que também explora os efeitos negativos da

acentuada densidade populacional de centro urbanos recebe a denominação de etológica187

186 Conforme apontado a página 6, e seguintes, Milgram faz referência a aspectos adicionais da experiência urbana, tais como seus componentes visuais, tempo e ritmo, que trariam uma atmosfera diferencial a tais agrupamentos humanos (veja-se : MILGRAM, Stanley. A experiência de viver na cidade : adaptações à sobrecarga urbana criam qualidades características à vida nas cidades que podem ser mensuradas. Science, 167 (1970), p. 1461 - 1468 - Tradução : Andréa de Almeida Lara. Série : Textos de Psicologia Ambiental, n.07, Brasília, DF : UnB, Laboratório de Psicologia Ambiental, p. 06 e seguintes).

187 Etologia como a ciência que estuda o comportamento, tanto de animais como de homens. Sobre o tema, discorre Elsa M. A. P. A. Figueiredo (FIGUEIREDO, Elsa M. A. P. A., Ambientes de saúde – o hospital numa perspectiva ambiental terapêutica. In : SOCZKA, Luis (org.), Contextos humanos e psicologia ambiental. Lisboa : Calouste Gulbenkian, 2005, p. 304) nos termos seguintes : “A noção de território é transportada do comportamento animal (da Etologia) para o comportamento humano de apropriação, de protecção e de defesa de um espaço.”

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e tem como conceito chave a noção de território. Entram aqui trabalhos como o de

Howard188, Hediger189 e Edward T. Hall190.

Para Hediger há uma área invisível delimitada ao redor de cada indivíduo a qual,

caso infringida, gerará uma situação de stress. Sem embargo, referida violação da distância

crítica, que pode ser fruto de uma densidade populacional acentuada, no que concerne a

seres humanos, é “condição necessária mas manifestamente insuficiente para a eclosão do

sentimento subjetivo de apinhamento ou percepção sobre concentração populacional.”191

Não bastam as altas densidades populacionais, sendo também “imperativo o seu

cruzamento com outros indicadores de natureza sociocultural, de modo a ser integrado num

mais complexo modelo explicativo dos comportamentos humanos. Aos psicólogos

interessa, mais do que o fenómeno meramente demográfico, o problema da percepção da

densidade populacional, o sentimento subjectivo de apinhamento e os seus subsequentes

efeitos comportamentais.”

A aplicação dos conceitos de espaços a seres humanos deram origem à proxémica,

assim designada pelo antropólogo Edward T. Hall. Para Hall, a proxémica é definida

como “o estudo das observações inter-relacionadas do uso do espaço pelo homem

enquanto elaboração especializada da cultura (Hall 1966) ou o estudo das transações do

homem na medida em que ele percepciona e usa os espaços íntimos, pessoais, sociais e

públicos em diversos cenários ou situações, de acordo com regras implícitas dos

188 HOWARD, H.E. . Territory in Bird life. London : Murray, 1920.

189 HEDIGER, F. . Wild animals in captivity. London : Butterworths, 1950. O autor desenvolveu, conforme nos ensina Soczka (SOCZKA, Luís. Contextos territoriais e a perspectiva ecológica em Psicologia Social. In : VALA, Jorge, MONTEIRO, Maria Benedicta. Psicologia Social. 7ª edição, Lisboa : Calouste Gulbenkian, 2006, p.526), “o conceito de distância crítica, como a delimitação de uma área invisível que rodeia o indivíduo e cuja violação das fronteiras conduz a reacções agonísticas.”

190 HALL, E. T., The hidden dimension. New York : Doubleday, 1966.

191 SOCZKA, Luís. Contextos territoriais e a perspectiva ecológica em Psicologia Social. In : VALA, Jorge, MONTEIRO, Maria Benedicta. Psicologia Social. 7ª edição, Lisboa : Calouste Gulbenkian, 2006, p. 530.

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paradigmas culturais”192. A tipologia de Hall distribui-se, assim, pelos quatro tipos de

espaço citados, sendo o espaço íntimo onde há contato físico próximo, tal qual ocorre nos

atos sexuais, progredindo-se até as distâncias públicas, mais dilatadas. Referidas distâncias,

sem embargo, não obedecem a uma escala matemática, mas sofrem influências de aspectos

culturais e de contexto. O toque de dois corpos em um transporte coletivo apinhado, em

princípio, não se equivale a esse mesmo toque num aposento privado. Nada obstante, em

linhas gerais, referidas distâncias, caso não respeitadas, poderão gerar a já mencionada

sensação, desagradável segundo o autor, de apinhamento.

Mas, tal qual já alertamos, não há que se encarar as aglomerações populacionais

apenas como geradoras de males. Conforme expõe Soczka: “A sobredensidade

populacional é, sem dúvida, um elemento importante para compreendermos os

comportamentos dos urbanitas. Mas não basta. Não existem provas de que esse elemento

exerça, por si só influencias significativas (...) nem que conduza à anomia e à quebra de

vínculos sociais.”193Os espaços urbanos, com sua alta concentração populacional, também

podem favorecer contatos e, em consequência, a formação de laços sociais e funcionais

estáveis entre as pessoas que ali vivem194, circunstância que ganha especial relevo em

comunidades de menor poder aquisitivo. Nesse sentido, o trabalho de Young & Willmott195

aludindo à comunidade operária de Bethnal Green, situada em área economicamente

desfavorecida da cidade de Londres, no Reino Unido, onde o principal suporte social dos

moradores se alicerçava em seus familiares. Nessa localidade a rede familiar consistia

numa das principais fundações à sobrevivência humana sendo que alterações nesse

equilíbrio causariam consequências extremamente danosas. Tratava-se de uma comunidade 192 SOCZKA, Luís. Contextos territoriais e a perspectiva ecológica em Psicologia Social. In : VALA, Jorge, MONTEIRO, Maria Benedicta. Psicologia Social. 7ª edição, Lisboa : Calouste Gulbenkian, 2006, p. 535

193 SOCZKA, Luis . Viver (n)a Cidade. In : SOCZKA, Luis (Org.). Contextos humanos e psicologia ambiental. Lisboa : Fundação Calouste Gulbenkian, 2005, p. 107.

194 SOCZKA, Luis . Viver (n)a Cidade. In : SOCZKA, Luis (Org.). Contextos humanos e psicologia ambiental. Lisboa : Fundação Calouste Gulbenkian, 2005, p. 112.

195 YOUNG, M., WILLMOTT, P. (1957). Family and Kinship in East London. London : Routledge and Kegan, 1957. Conforme citação fornecida por Soczka (In : SOCZKA, Luis . Viver (n)a Cidade. In : SOCZKA, Luis (Org.). Contextos humanos e psicologia ambiental. Lisboa : Fundação Calouste Gulbenkian, 2005, p.111).

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pobre em termos econômicos mas que era, em contrapartida, extremamente rica e complexa

do ponto de vista afetivo.

Ainda a questionar essa visão monotemática das cidades, como geradoras

exclusivamente de males, mais uma vez trazemos à baila a doutrina de Luis Soczka : “As

teorias que defendem os efeitos nocivos da densidade populacional em si mesma

normalmente ignoram as variáveis mediadoras (cognitivo-emocionais e contextuais) que

permitem à pessoa controlar as informações, processá-las e responder em função dessa

decodificação.” Para além dos males, enquanto “mosaico de subculturas, a cidade é

simultaneamente um espaço possível de diálogo enriquecedor, de transferências de valores

entre os múltiplos cenários urbano, mas também de conflitos de modelos de vida e

representações sociais. Longe de ser um universo de indivíduos atomizados, o espaço

urbano é sobretudo um espaço de relações intergrupos, que se interpenetram em graus

variáveis, mas não deixam de se mirar como pseudo-espécies. São esses grupos, com as

suas dinâmicas e valores próprios, o espaço de vida do citadino, e permitem-lhe sobreviver

sem a anomia preconizada” 196.

Fried e Gleicher197 também explicitaram quão rica pode ser a teia de

relacionamentos existente em uma comunidade, ainda que desprovida de recursos e, em sua

aparência, supostamente decadente. O estudo dos autores, focado no bairro de West End, na

cidade de Boston, Estados Unidos, aponta que “a pobreza residencial e dos espaços urbanos

envolventes não significa necessariamente desejo de mudança em relação ao meio

habitacional, e que os residentes nos bairros degradados são contrários a iniciativas

196 SOCZKA, Luís. Contextos territoriais e a perspectiva ecológica em Psicologia Social. In : VALA, Jorge, MONTEIRO, Maria Benedicta. Psicologia Social. 7ª edição, Lisboa : Calouste Gulbenkian, 2006, p. 534. Mais do que proporcionar a sobrevivência sem anomia, os espaços, cremos, podem ser propiciadores ao exercício e à concretização de direitos dos mais variados, conforme defenderemos mais adiante.

197 FRIED, M.;GLEICHER, P.. Some source of residential satisfaction in an Urban Slum. In : J. Am. Inst. of Planners, 27. 1961 : pp. 305-315.

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municipais que os realojam não importa de que maneira.”198 Fica ressaltado no mencionado

estudo o “sentimento de pertença dos residentes ao seu local, ao seu bairro, o que

percepcionado claramente como uma autêntica extensão da casa, isto é : como um território

secundário, lugar quotidiano de intercâmbios sociais e funcionais numa comunidade de

vizinhança rica em afectos, que as feias e tristes fachadas dos prédios semiarruinados

tendiam a esconder ao observador desprevenido.”199

Em linhas semelhantes à doutrina de Fried e Gleicher, mencionamos a pesquisa de

Hallmann200, que realça o papel da rede familiar em bairros pobres para o suporte à

sobrevivência daqueles que ali vivem. Ou, ainda, os trabalhos de Wellman201, a apontar

para a importância, diante de situações de emergência, do apoio das redes sociais restritas e

compostas por familiares, amigos ou vizinhos nessas situações.

Referidas redes e correlatos vínculos assumem enorme importância na vida das

pessoas, cumprindo uma “função reguladora na organização cognitivo emocional dos

urbanitas”202. Contribuindo para a formação da própria identidade pessoal, tal qual

198 SOCZKA, Luis . Viver (n)a Cidade. In : SOCZKA, Luis (Org.). Contextos humanos e psicologia ambiental. Lisboa : Fundação Calouste Gulbenkian, 2005, p. 113.

199 SOCZKA, Luis . Viver (n)a Cidade. In : SOCZKA, Luis (Org.). Contextos humanos e psicologia ambiental. Lisboa : Fundação Calouste Gulbenkian, 2005, p. 113. Os conceitos de territórios primários, secundários e terciários são fornecidos por Altman (ALTMAN, Irwin. Environment and social behavior : Privacy, personal space, territory and crowding. Monterey : Brooks/Cole, 1975). Altman distingue entre territórios primários, que constituem um “espaço limitado de que um sujeito ou um grupo limitado de sujeitos se apropria e identifica como espaço próprio ( a casa de cada qual, o gabinete de trabalho no emprego, etc.); territórios secundários, que são espaços colectivamente apropriados por um grupo de indivíduos ou grupos (famílias por exemplo) e identificados como espaços territoriais de grupo; e territórios terciários, que são espaços abertos, colectivos e sem propriedade ou apropriação por indivíduos ou grupos particulares (uma auto-estrada, um jardim público, uma grande avenida, um monumento nacional, etc.).” Referência fornecida por : SOCZKA, Luis . Viver (n)a Cidade. In : SOCZKA, Luis (Org.). Contextos humanos e psicologia ambiental. Lisboa : Fundação Calouste Gulbenkian, 2005, p. 105.

200 HALLMAN, H.W. . Neighborhoods : their place in Urban life. Beverly Hills : SAGE, 1984.

201 WELLMAN, B. . Urban Connection, University of Toronto, Centre for Urban and Community Studies, Research Paper 84, Toronto, 1976.

202 SOCZKA, Luis . Viver (n)a Cidade. In : SOCZKA, Luis (Org.). Contextos humanos e psicologia ambiental. Lisboa : Fundação Calouste Gulbenkian, 2005, p. 108

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assinalam Fuhrer e Kaiser203, para quem : “Assim tal como os lugares podem ser alterados

ou adaptados para ir ao encontro das necessidades pessoais também representam o

indivíduo no sentido em que fornecem retroalimentação da informação acerca do próprio. É

nesse sentido que os lugares conduzem à formação da identidade pessoal (...). O lugar

exterioriza a sua identidade para outros facilitando a informação acerca do próprio aos

outros.”204

Essa vinculação pode inclusive se referir a bens existentes dentro de uma casa,

conforme revelam investigações realizadas junto a idosos por Rubinstein205, Parmellee206,

assim como Csikszentmihalyi e Rochberg-Halton207. Explicitaram mencionados autores

que determinados objetos “constituem referências para acontecimentos distintos ou

propriedades da vida de uma pessoa (personalização), uma extensão do self”208, a

identidade dos mesmos “construída dentro e pelo lar.”209

As ligações que podemos denominar de positivas com um determinado lugar se

tornam ainda mais evidentes à luz das denominadas translocações forçadas. Consistem

estas, em apertada síntese, na retirada de pessoas de um determinado local com sua

203 FUHRER, U.; KAISER, F.G.. Bindung an das Zuhause : Die emotionalen Ursachen. In : Zeitschrift für Sozialpsychologie, 1992, p. 105-118.

204 SPELLER, Gerda M.; A importância da vinculação ao lugar. In : In : SOCZKA, Luis. Contextos humanos e psicologia ambiental. Lisboa : Calouste Gulbenkian, 2005, p. 144

205 RUBINSTEIN, R.L.. The significance of personal objects to older people. Journal of Aging Studies, 197, 1 : pp.226-238.

206 RUBINSTEIN, R.L.; PARMELEE, P.A.. Attachment to place and the representation of the life course by the elderly. In : ALTMAN, I; LOW, S. (eds.). Place Attachment. New York : Plenum Press, 1992, pp. 139-160.

207 CSIKSZENTMIHALYI, M.; ROCHBERG-HALTON, E. (1981). The Meaning of Things : Domestic Symbols of the Self. Cambridge : University Press.

208 SPELLER, Gerda M.; A importância da vinculação ao lugar. In : In : SOCZKA, Luis. Contextos humanos e psicologia ambiental. Lisboa : Calouste Gulbenkian, p. 149.

209 SPELLER, Gerda M.; A importância da vinculação ao lugar. In : In : SOCZKA, Luis. Contextos humanos e psicologia ambiental. Lisboa : Calouste Gulbenkian, p. 149.

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trasladação a outro, por motivos alheios à vontade das mesmas. Tal qual ocorre, por

exemplo, quando da realocação de pessoas de uma área que ostenta risco hidrogeológico

(e.g. : de enchentes ou mesmo de deslizamentos) ou mesmo diante de desastres naturais ou

tecnológicos. Dentro desse escopo, alinham-se os trabalhos de Fried210, Rowles211 e

Speller212.

A pesquisa de Fried teve por objeto o realojamento forçado de população da classe

trabalhadora no bairro de West End, em Boston. Mencionados cidadãos, que estavam se

mudando de um local tachado como um “bairro degradado”213, experimentaram com a

mudança “ ‘a fragmentação de duas componentes essenciais para a identidade dos seus

residentes, nomeadamente, a identidade espacial e a identidade de grupo.’”. Identidades que

o autor reafirma como essenciais ao funcionamento humano. Para o pesquisador, as

consequências da perda de um lar acabaram se assemelhando ao luto decorrente da perda de

um ente querido.

Speller, a seu turno, realizou um estudo sobre a realocação forçada de uma

comunidade mineira situada em Arkwright, no norte da Inglaterra, realçando os aspectos

relativos à vinculação ao lugar. Tais aspectos de vinculação, “quando alcançados, facilitam

um laço emocional com o lugar e que, quando em falta, facilitam a desvinculação e/ou

210 FRIED, Marc, Grieving for a lost home. In : DUHL, L. (ed.), The Urban Condition. New York : Basic Books, 1963.

211 ROWLES, G., Place and personal identity in old age : Observations from Appalachia. Journal of Environmental Psychology, 3, 1983, p. 57-83.

212 SPELLER, G.M., A community in Transition : a longitudinal study of place attachment and identity processes in the context of an enforced relocation. PhD Thesis, University of Surrey, Guildford, GU2 7XH, UK, 2000. E, ainda : SPELLER, G.M., LYONS, E., TWIGGER-ROSS, C.L., A community in transition : the relationship between spatial change and identity processes. In : Social Psychological Review, 4 (2), 2002 : pp.39-58.

213 SPELLER, Gerda M.; A importância da vinculação ao lugar. In : In : SOCZKA, Luis. Contextos humanos e psicologia ambiental. Lisboa : Calouste Gulbenkian, p. 159.

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inibe a vinculação com o lugar.”214 Prossegue Speller asseverando que “ ‘o lugar organiza

as experiências passadas ao longo do tempo e suas interpretações subjectivas e, por esta

razão, representa um importante papel na formação e no suporte da identidade da pessoa.’

”215

O trabalho de Rowles enfoca “a natureza da relação entre os anciãos de uma

comunidade dos Apalaches e o meio circundante”216. Afirma que eventual translocação de

uma pessoa idosa representa uma ameaça, pois, mais do que apartá-la de um lugar, aparta-a

também de sua história, de sua identidade pessoal. Rowles conclui que “ ‘a tarefa dos

responsáveis pela redução das consequências do trauma da translocação no que respeita à

identidade é identificar e reforçar as componentes transferíveis da vinculação ao lugar’”217.

Assim, afastar pessoas de uma situação de risco pode representar ação que encerra

em si mesma um novo risco e impõe aos responsáveis pela dita remoção um olhar que

supera os aspectos meramente estruturais e inclui o devido respeito às relações pessoais e

comunitárias que também vicejam naquela determinada localidade e são estruturantes da

própria identidade pessoal das pessoas que ali residem. Cuja ruptura pode trazer

consequências nefastas, pode representar um risco a direitos caros.

Um derradeiro exemplo reforça as ideias até aqui veiculadas e se refere à

urbanização de Pruitt-Igoe, situada nos arredores de Saint Louis, Estado de Missouri, nos

214 SPELLER, Gerda M.; A importância da vinculação ao lugar. In : In : SOCZKA, Luis. Contextos humanos e psicologia ambiental. Lisboa : Calouste Gulbenkian, p. 160 e 161.

215 SPELLER, Gerda M.; A importância da vinculação ao lugar. In : In : SOCZKA, Luis. Contextos humanos e psicologia ambiental. Lisboa : Calouste Gulbenkian, p. 161.

216 SPELLER, Gerda M.; A importância da vinculação ao lugar. In : In : SOCZKA, Luis. Contextos humanos e psicologia ambiental. Lisboa : Calouste Gulbenkian, p. 146.

217 SPELLER, Gerda M.; A importância da vinculação ao lugar. In : In : SOCZKA, Luis. Contextos humanos e psicologia ambiental. Lisboa : Calouste Gulbenkian, p. 147.

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Estados Unidos da América. Tratava-se de projeto destinado a recepcionar pessoas de baixa

renda provenientes de áreas degradadas da cidade, inaugurado no ano de 1954. O projeto

contava com 43 modernos edifícios de onze andares cada e 2740 apartamentos e chegou,

segundo consta, a ser premiado pela revista americana Architectural Forum, no ano de

1951218. Nada obstante, encontrou sem fim por meio de implosão, no ano de 1972.

Temos, na visão de Soczka, um claro exemplo da falência de um projeto urbano no

qual não se verificou, em sua execução, uma adequada inserção dos componentes

psicológicos e sociológicos. Os moradores de Pruitt-Igoe vinham, via de regra, de bairros

mais pobres onde se verificava uma “uma complexa e rica teia de relações sociais que se

prolongavam transgeracionalmente. A vida nos seus bairros degradados era rica do ponto

de vista social, e o arraigamento local assentava numa rede de relações funcionais e

afectivas que permitiam o sentimento de pertença e de identidade dos residentes (...) – tudo

isso contribuía para a constituição de uma vida em microcultura com apropriação

secundária do território (...). A nova urbanização de Pruitt-Igoe veio a destruir essas redes

locais, e a própria concepção urbanística do novo espaço residencial não era de molde a

proporcionar a construção coletiva de espaços de vizinhança219”

Os moradores, apesar de transferidos a unidades habitacionais supostamente de

melhor qualidade em seu aspecto físico, estavam confinados a apenas dois territórios, o

primário (as unidades habitacionais) e o terciário (representado pela via pública)220.

218 A premiação foi para o projeto, idealizado pelo arquiteto Minoru Yamasaki, responsável também, posteriormente, pelo projeto do World Trade Center, na cidade de Nova Iorque, nos Estados Unidos da América.

219 YANCEY, William Lowndes. Architecture, interaction and social control. The case of a large-scale housing project. In : Environment and behavior. March, 1971, p. 118.

220 Os conceitos de territórios primários, secundários e terciários, conforme já abordamos, são fornecidos por Altman (ALTMAN, Irwin. Environment and social behavior : Privacy, personal space, territory and crowding. Monterey : Brooks/Cole, 1975). Altman distingue entre territórios primários, que constituem um “espaço limitado de que um sujeito ou um grupo limitado de sujeitos se apropria e identifica como espaço próprio (a casa de cada qual, o gabinete de trabalho no emprego, etc.); territórios secundários, que são espaços colectivamente apropriados por um grupo de indivíduos ou grupos (famílias, por exemplo) e

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No mesmo sentido, as impressões de Yancey221, para quem o projeto arquitetônico

de Pruitt-Igoe teve um efeito atomizador nas redes sociais informais, haja vista que não

proporcionava espaços adequados, que ele denominou de semi-públicos (ou “defensible

space”, conforme fls. 17 do já apontado artigo). As famílias acabavam, então, por se

refugiar no interior de seus apartamentos, sem que se produzissem as redes de apoio,

proteção e controle social, normalmente presentes em comunidades assentadas em

vizinhanças mais desfavorecidas economicamente. Ressalta Yancey que, ao lado de fatores

sociais e econômicos, o desenho e as condições das unidades habitacionais são aptos a

produzir impactos intensos na maneira em que as pessoas vivem. Projetos habitacionais não

podem ter como único objetivo fornecer um teto, ignorando o quanto se faz necessário para

o desenvolvimento de uma comunidade ou de uma vizinhança222.

Reafirmada, cremos, a importância da concepção urbanística para a qualidade de

vida dos moradores do projeto habitacional. Especificamente no caso de Pruitt-Igoe, para

evitar a atomização das relações sociais, circunstância que acabou contribuindo223 à

violência, ao medo e ao vandalismo, com vulneração de bens jurídicos caros como a

identificados como espaços territoriais de grupo; e territórios terciários, que são espaços abertos, colectivos e sem propriedade ou apropriação por indivíduos ou grupos particulares (uma auto-estrada, um jardim público, uma grande avenida, um monumento nacional, etc.).” A referência foi extraída de : SOCZKA, Luis . Viver (n)a Cidade. In : SOCZKA, Luis (Org.). Contextos humanos e psicologia ambiental. Lisboa : Fundação Calouste Gulbenkian, 2005, p. 105.

221 YANCEY, William Lowndes. Architecture, interaction and social control. The case of a large-scale housing project. In : Environment and behavior. March, 1971.

222 O autor aponta Pruitt-Igoe como um exemplo de um projeto de moradia cujo objetivo único é justamente prover um teto, descurando-se do desenvolvimento de uma comunidade ou mesmo de uma vizinhança. No original (YANCEY, William Lowndes. Architecture, interaction and social control. The case of a large-scale housing project. In : Environment and behavior. March, 1971, p. 8) Yancey aponta o projeto de Pruitt-Igoe como : “an example of a national housing policy whose single goal is provision of housing with little knowledge about or concern for the development of a community or a neighborhood.”

223 Yancey, conforme já tratado anteriormente, argumenta quanto à importância das intervenções arquitetônicas mas reconhece, todavia, a necessidade de ulteriores estudos, em especial, se possível, um estudo comparativo entre Pruitt-Igoe e um projeto semelhante, para melhor estabelecer o efetivo impacto das intervenções arquitetônicas (YANCEY, William Lowndes. Architecture, interaction and social control. The case of a large-scale housing project. In : Environment and behavior. March, 1971, p.18).

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integridade física, a liberdade sexual, a vida ou mesmo o patrimônio, tanto privado quanto

público, qual seja, dos órgãos públicos responsáveis pela manutenção das áreas comuns.

A preocupação com a organização espacial e o comportamento humano encontra

espaço inclusive em projetos individuais. Nesse sentido, a linha de pesquisa de Proshansky,

Ittelson e Rivlin224, tendo por objeto “instalações psiquiátricas facilitadoras de uma

atmosfera terapêutica para os doentes internados”.225 Em mencionado trabalho os autores

lograram “identificar certos tipos de comportamentos que apareciam com persistente

continuidade associados a espaços característicos das instituições psiquiátricas, ao longo do

tempo e independentemente dos indivíduos.” Conhecendo eventual liame entre espaços e

comportamentos, fica mas fácil manipular referidas condições ambientais com a finalidade

de prestigiar determinados comportamentos e, assim, atingir, no caso em tela, fins

terapêuticos. Em última análise, em jogo o direito à saúde em uma de suas muitas maneiras

de ser concretizado. À semelhança do direito à saúde, outros direitos também são aptos a

ser prestigiados mediante as intervenções espaciais. E negligenciar referida circunstância

implica, por si, em um risco a referidos direitos.

Consoante verificamos até aqui, as posições doutrinárias relativas ao impacto da

organização dos espaços no comportamento humano distribuem-se por um amplo espectro.

Perspectivas das mais distintas, sustentadas por autores diversos, convivem. Não é nossa

pretensão, respeitado o espaço de que dispomos, defender uma ou outra posição ou buscar

entendimento definitivo acerca do tema, algo que, aliás, julgamos ser impossível.

Sustentamos, sim, que não se pode negligenciar a busca pela adequada compreensão da

influência dessa organização dos espaços no comportamento. Não se justifica sua

224 PROSHANSKY, H.; ITTELSON, W. ; RIVLIN, L.. Environmental psychology – man and his physical settings. New York : Holt, Rinehart and Winston, 1967. Ainda na seara da saúde e de interferências ambientais aptas a influenciar o comportamento de usuários de hospitais veja-se : FIGUEIREDO, Elsa M. A. P. A., Ambientes de saúde – o hospital numa perspectiva ambiental terapêutica. In : SOCZKA, Luis. Contextos humanos e psicologia ambiental. Lisboa : Calouste Gulbenkian, p. 303 a 335.

225 SOCZKA, Luis. As raízes da Psicologia Ambiental. In : SOCZKA, Luis. Contextos humanos e psicologia ambiental. Lisboa : Calouste Gulbenkian, p. 64.

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desconsideração especialmente quando das intervenções no tecido urbano, inclusive no

âmbito de projetos individuais.

As intervenções no tecido urbano, tendo estas um impacto potencial enorme na vida

das pessoas, podem prestigiar ou vulnerar bens caros como a vida, a integridade física, a

liberdade sexual, apenas para mencionar alguns. Tudo dependerá da forma através da qual

se intervém (ou deixa-se de intervir) no tecido urbano. Os espaços, portanto, não são

intrinsecamente bons ou maus. Eventuais influências positivas ou negativas são fruto,

essencialmente, da forma através da qual são levadas a cabo as intervenções no tecido

urbano.

E ao mesmo tempo em que referida organização dos espaços tem o condão de

prestigiar ou vulnerar direitos dos mais diversos, pode o Direito, com suas regras, também

se interpor para promover a adequada organização desses espaços, num verdadeiro círculo

virtuoso. A organização dos espaços assumindo o papel de promotora de direitos dos mais

variados, tais como o direito à educação, à saúde, à vida e a integridade física, o direito à

liberdade de crença, dentre outros. E, por sua vez, o próprio direito regendo essa

organização, com vistas à concretização da educação, da saúde e assim por diante. Passo

seguinte, cabe-nos explicitar as possibilidades da organização dos espaços, valendo-se

especialmente de institutos do direito urbanístico, para a concretização de direitos variados,

e da necessária imbricação do risco nessa mesma organização.

Merece a exposição, neste ponto, um alerta : não podemos cair na armadilha de

considerar aqueles afetados pela pobreza como a causa de todas as mazelas da moderna

vida social226. Trata-se de visão preconceituosa e que não raro se exterioriza por meio da

226 Tratando dos aspectos negativos e dos desajustamentos sociais produzidos pela vida em grande cidades, Luis Soczka argumenta que : “a pobreza não é uma ‘causa’ em si, mas uma aglomeração de factores concomitantes que se estendem das parcas condições habitacionais, à subnutrição, à ausência de cuidados primários de saúde e de higiene, à constituição de modelos culturais específicos (...), ao analfabetismo”. Arriscamos acrescentar que é nas zonas pobres onde as consequências do desprezo principalmente do poder

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segregação de populações carentes, colocando-se os pobres e os “diferentes” cada vez mais

longe dos olhos de determinados grupos sociais. As intervenções no tecido urbano, assim

como a maneira através da qual estas se consolidam e tomam corpo são, a nosso ver, um

claro reflexo dos valores subjacentes ao poder público e à sociedade em geral. Expulsão e a

consequente exclusão de “desiguais” e de hipossuficientes do acesso aos mais comezinhos

bens e serviços, a construção de muros para promover uma divisão de pessoas baseadas na

sua crença227, o enfrentamento de conflitos sem critérios ou preocupações com sua

efetividade228, a alocação de parcelas de população em conjuntos habitacionais desprovidos

de transporte público adequado229 são exemplos de ações e omissões que revelam o

desprezo de seus responsáveis pelos direitos e pela dignidade das pessoas. São intervenções

urbanas que, longe de respeitar a ordem jurídica, acabam por vulnerar valores

público pelos direitos das pessoas se mostra mais evidente e, talvez, mais incômodo para determinados grupos e atores sociais. Mais eficiente do que segregar referidas populações, portadoras de direitos como todos e cada um de nós, é inicialmente dotar a mesma dos mínimos serviços e confortos, de um mínimo acesso a direitos. Referência bibliográfica : SOCZKA, Luis. Viver (n)a cidade. In : SOCZKA, Luis (organizador). Contextos humanos e psicologia ambiental . Lisboa : Calouste Gulbenkian, 2005, p. 120.

227 Tal qual os denominados “peace walls” ou “peace lines”, muros que separam católicos de protestantes na Irlanda do Norte, Reino Unido, com a suposta finalidade de evitar conflitos e promover a paz. Conforme reportagem veiculada no periódico inglês “The Observer”, intitulada “Belfast, divided in the name of peace”, em 22 de janeiro de 2012, da lavra de Sean O’Hagan, apenas na cidade de Belfast havia 99 muros dessa natureza (Veja-se, na rede mundial de computadores : http://www.guardian.co.uk/uk/2012/jan/22/peace-walls-troubles-belfast-feature (última consulta realizada aos 16 de janeiro de 2013).

228 A resolução de conflitos, embora envolva a possibilidade de convívio, vai além desta. Impõe, resumidamente, uma preocupação com estatutos comuns e sua devida inserção em programas que deverão ter metas e instrumentos de avaliação de sua eficiência. A título de exemplo, a introdução em tecido urbano já dotado de uma dinâmica peculiar de usos mistos ou mesmo o “mixed-income housing” (habitação destinada a estratos sociais diferentes), embora importante, não pode consistir em atividade que se encerra em si mesma, mas um primeiro passo à busca da integração e da tolerância. No que concerne aos critérios para a solução de conflitos, veja-se : MONTEIRO, Maria Benedicta. Conflito e negociação entre grupos. In : VALA, Jorge, MONTEIRO, Maria Benedicta (coordenadores). Psicologia social. 7ª edição. Lisboa : Calouste Gulbenkian, 2006, p. 434, e seguintes. No sentido da necessidade de se implantar um urbanismo de coesão social, a se contrapor a um urbanismo de segregação, ideia com a qual compactuamos, sugerimos a seguinte leitura : PAULA OLIVEIRA, Fernanda. Novas tendências do direito do urbanismo : de um urbanismo de expansão e de segregação a um urbanismo de contenção, de reabilitação urbana e de coesão social. 2ª edição. Coimbra : Almedina, 2012, p. 133.

229 Nesse sentido, reportagem veiculada no jornal “O Globo”, intitulada : “Sem transporte para Minha Casa Minha Vida", de 7 de janeiro de 2013, das mãos de Alessandra Duarte e Carolina Benevides. Conforme relatado no artigo, moradias fornecidas à população de baixa renda, valendo-se de recursos do programa do Governo Federal do Brasil denominado “Minha Casa Minha Vida”, encontram-se em áreas sem adequada infraestrutura de transportes. Veja-se : http://oglobo.globo.com/pais/sem-transporte-para-minha-casa-minha-vida-7224679 (última consulta realizada aos 16 de janeiro de 2013). Não que um programa dessa natureza seja despido de importância. Não o é. Mas há a necessidade de implantar projetos de moradia popular de forma adequada, respeitando aqueles que serão beneficiados pelo dito programa.

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constitucionalmente consagrados, como o são a igualdade e a dignidade, apenas para citar

alguns.

Retomemos o curso de nossa exposição para desenvolver e aclarar as possibilidades

oferecidas pelo Direito para a organização dos espaços. E, de forma correlata, como

mencionada organização pode ser levada adiante com vistas à preservação de direitos dos

mais variados, dando especial atenção às possibilidades que nos oferecem os instrumentos

de direito urbanístico. Instrumentos que não se mostram insensíveis ao risco.

1.8.3 – Das possibilidades de concretização de direitos por meio de intervenções

no tecido urbano.

Trataremos neste capítulo, consoante já adiantamos, da aptidão que têm as

intervenções no tecido urbano, mediadas pela ordem jurídica, à concretização de direitos

dos mais variados. Num segundo momento, argumentaremos quanto à possibilidade da

inclusão do risco na seara de mencionadas intervenções . Reiterando a opção, fruto de corte

epistemológico, de concentrar nossa atenção nos riscos que denominados espaciais.

Como argumentos preliminares nos vemos obrigados a tecer breves considerações

sobre normas e dispositivos, bem como acerca do direito urbanístico, disciplina que tem

como fim precípuo a organização dos espaços humanos com vistas à preservação e ao

fomento de direitos.

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1.8.3.1 - Dispositivos e normas

Muitas vezes há quem se valha de argumentos que aludem à escassez ou mesmo

inadequada produção legislativa para justificar omissões ou imobilismo diante de

determinadas situações sociais que reclamam por ação e transformação. Mencionados

pontos de vista partem, algumas vezes, de uma concepção equivocada acerca dos conceitos

de dispositivo e de norma, termos que devemos distinguir. Vejamos.

A distinção entre normas e dispositivos é sustentada por Humberto Ávila230, para

quem : “Normas não são textos nem o conjunto deles, mas os sentidos construídos a partir

da interpretação sistemática dos textos normativos. Daí se afirmar que os dispositivos se

constituem no objeto da interpretação; e as normas, no seu resultado.”

Prossegue Humberto Ávila asseverando que “o significado não é algo incorporado

ao conteúdo das palavras, mas algo que depende precisamente de seu uso e de sua

interpretação, como comprovam as modificações de sentidos dos termos no tempo e no

espaço e as controvérsias doutrinárias. (...) Sendo assim, a interpretação não se caracteriza

como um ato de descrição de um significado previamente dado, mas com um ato de decisão

que constitui a significação e os sentidos de um texto.”231

O que não permite concluir, todavia, que não haja significado algum. O dispositivo

é o ponto de partida e o limite à liberdade do intérprete. Ainda se valendo da doutrina de

Humberto Ávila : “O ordenamento jurídico estabelece a realização de fins, a preservação de

valores e a manutenção ou busca de determinados bens jurídicos essenciais à realização 230 ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 4ª edição revista, 2ª tiragem. São Paulo : Malheiros, 2005, p. 22.

231 ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 4ª edição revista, 2ª tiragem. São Paulo : Malheiros, 2005, p. 23.

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daqueles fins e à preservação desses valores. O intérprete não pode desprezar esses pontos

de partida. Exatamente por isso a atividade de interpretação traduz melhor uma atividade de

reconstrução : o intérprete deve interpretar os dispositivos constitucionais de modo a

explicitar suas versões de significado de acordo com os fins e valores entremostrados na

linguagem constitucional.”232

Paulo de Barros Carvalho também distingue entre enunciado e norma. Muito

embora reconheça o “direito como algo que necessariamente se manifesta em linguagem

prescritiva, inserido numa realidade recortada em textos”233, os textos e as normas não se

confundem. Como bem coloca o apontado autor : “Uma coisa são os enunciados

prescritivos, isto é, usados na função pragmática de prescrever condutas; outras, as normas

jurídicas, como significações construídas a partir dos textos positivados e estruturadas

consoante a forma lógica dos juízos condicionais, compostos pela associação de duas ou

mais proposições prescritivas.”234

Eros Roberto Grau235, ao tratar da interpretação e aplicação do direito236, também

distingue entre texto e norma : “Aparecem de modo bem distinto (...) o texto (enunciado,

disposição) e a norma. Texto e norma não se identificam : o texto é o sinal linguístico; a

norma é o que se revela, se designa.” Nesses termos a : “interpretação, destarte, é meio de

232 ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 4ª edição revista, 2ª tiragem. São Paulo : Malheiros, 2005, p. 26. Aliás, não apenas os dispositivos constitucionais.

233 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário, linguagem e método. 2ª edição. São Paulo : Noeses, 2008, p. 127.

234 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário, linguagem e método. 2ª edição. São Paulo : Noeses, 2008, p. 129.

235 GRAU, Eros Robert. Ensaio e discurso sobre a interpretação / aplicação do direito. 5ª edição, revista e ampliada. São Paulo : Malheiros, 2009, p. 84. Grifos no original.

236 Eros Grau define a interpretação/aplicação do direito como uma atividade de natureza constitutiva e não apenas declaratória, que “parte da compreensão dos textos normativos e dos fatos, passa pela produção das normas que devem ser ponderadas para a solução do caso e finda com a escolha de uma determinada solução para ele, consignada norma de decisão.” (In : GRAU, Eros Robert. Ensaio e discurso sobre a interpretação / aplicação do direito. 5ª edição, revista e ampliada. São Paulo : Malheiros, 2009, p. 26).

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expressão dos conteúdos normativos das disposições, meio através do qual pesquisamos as

normas contidas nas disposições.”

Portanto, a norma é produto da interpretação e se encontra em “estado de potência,

involucrada no enunciado (texto ou disposição); o intérprete a desnuda.”237 E o

ordenamento, por sua vez, “no seu valor histórico-concreto, é um conjunto de

interpretações, isto é, conjunto de normas. O conjunto das disposições é apenas

ordenamento em potência, um conjunto de possibilidades de interpretação¸ um conjunto de

normas potenciais.”238

Nesses termos, o direito é uno e não pode ser interpretado em “tiras”, como bem

adverte Eros Grau. Para o mencionado autor, “a interpretação do direito é interpretação do

direito, e não textos isolados, desprendidos do direito.”

Um direito, ainda se valendo da doutrina de Eros Grau, “que existe em função da

sociedade, e não a sociedade em função dele”239. Sua interpretação não consiste em mera

dedução, “mas sim processo de contínua adaptação de seus textos normativos à realidade e

seus conflitos. O direito é um dinamismo(...). É do presente, na vida real, que se tomam as

forças que conferem vida ao direito. Assim, o significado válido dos textos é variável no

tempo e no espaço.”240

237 GRAU, Eros Robert. Ensaio e discurso sobre a interpretação / aplicação do direito. 5ª edição, revista e ampliada. São Paulo : Malheiros, 2009, p. 87.

238 GRAU, Eros Robert. Ensaio e discurso sobre a interpretação / aplicação do direito. 5ª edição, revista e ampliada. São Paulo : Malheiros, 2009, p. 85.

239 GRAU, Eros Robert. Ensaio e discurso sobre a interpretação / aplicação do direito. 5ª edição, revista e ampliada. São Paulo : Malheiros, 2009, p. 129

240 GRAU, Eros Robert. Ensaio e discurso sobre a interpretação / aplicação do direito. 5ª edição, revista e ampliada. São Paulo : Malheiros, 2009, p. 130.

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Não se quer aqui menosprezar ou diminuir a importância da produção legislativa.

Pelo contrário. Tal qual já asseveramos, os textos são da essência do Direito, como bem

adverte Paulo de Barros : “Seja como for, o processo de interpretação não pode abrir mão

das unidades enunciativas esparsas do sistema positivo, elaborando suas significações

frásicas para, somente depois, organizar as entidades normativas (sentido estrito).

Principalmente porque o sentido completo das mensagens do direito depende da integração

de enunciados que indiquem as pessoas (físicas ou jurídicas), suas capacidades ou

competências, as ações que podem ou devem praticar, tudo em determinadas condições de

espaço e de tempo.”241

Rodrigo Bornholdt, ao tratar da metódica estruturante do direito, alicerçado

especialmente nos ensinamentos de Friedrich Müller, também distingue entre norma e texto

da norma. O texto é o ponto de partida para a construção da norma de direito. A norma

deixa de ser algo dado previamente, a ser tão somente descoberto pelo intérprete. Para o

autor : “A norma não mais se retira exclusivamente da análise do texto. Será diretamente

formada por uma parte da realidade social, o âmbito normativo, que será disciplinado, ou

mesmo criado, pelo programa da norma.” 242

O programa da norma “é formado pelo texto da norma, trabalhado pelos dados de

linguagem, visando à sua aplicação ao caso.”243 Não se trata de simplesmente descobrir ou

revelar um sentido previamente contido no texto, mas sim de formar mencionado programa

da norma “a partir da integração e recíproca influência entre o caso e o texto da norma. O

que significa que a formação do programa da norma não poderá ser feita sem uma prévia

referência a casos (ainda que imaginários). De modo que não haverá um simples jogo

241 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário, linguagem e método. 2ª edição. São Paulo : Noeses, 2008, p. 131.

242 BORNHOLDT, Rodrigo Meyer. Métodos para resolução do conflito entre direitos fundamentais. São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 36.

243 BORNHOLDT, Rodrigo Meyer. Métodos para resolução do conflito entre direitos fundamentais. São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 40.

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autônomo entre os elementos textuais de interpretação que não os refira ao contexto,

representado pelo caso.”244

Já âmbito normativo é aquela “parcela da realidade situada em conformidade com

as prescrições do Normprogramm. Portanto, não se confundirá com ‘a realidade’, como

utilizada comumente pelos juristas, para contrapô-la à ‘norma’ (correspondente, na

metódica ora adotada, ao texto da norma) A realidade será, antes, correspondente ao

‘âmbito de realidade’ (Sachbereich), que, existente na pré-compreensão do jurista, deverá

sofrer, pelas lentes do Normprogramm, um processo de filtragem, a culminar no

surgimento do âmbito normativo.”245

Os conceitos jurídicos veiculados pelo texto “são, sem dúvida, fórmulas

encurtadoras, ordenadoras, referidas à realidade (...). Não serão, porém, simples abstrações

desta. Ao contextualizá-lo, dentro de um texto válido, com pretensão de normatividade, o

conceito jurídico transforma aquele conceito oriundo de outra área do conhecimento ao

mesmo tempo que com ele se relaciona.”246

Há, assim, uma constante interação entre texto e realidade, a norma de direito

formada por uma “combinação entre o programa da norma e o âmbito da norma, Contudo,

o próprio caso concreto poderá possuir particularidades que determinarão as coordenadas

da norma de decisão (...). Esta representará o final do processo de concretização.”247

244 BORNHOLDT, Rodrigo Meyer. Métodos para resolução do conflito entre direitos fundamentais. São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 41.

245 BORNHOLDT, Rodrigo Meyer. Métodos para resolução do conflito entre direitos fundamentais. São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 46.

246 BORNHOLDT, Rodrigo Meyer. Métodos para resolução do conflito entre direitos fundamentais. São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 40.

247 BORNHOLDT, Rodrigo Meyer. Métodos para resolução do conflito entre direitos fundamentais. São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 51.

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Não escapa a esse raciocínio a formação das normas destinadas a disciplinar as

intervenções no tecido urbano. Entram, ou devem entrar em sua construção, todo o plexo de

valores consagrados no ordenamento jurídico. Sem que referida construção possa se

descolar da complexa realidade das aglomerações urbanas. Realidade na qual se imbrica,

também, o risco.

Nesses termos, insistimos, o risco não pode ser desprezado quando da construção

das normas de intervenção do tecido urbano. Ainda que não se encontre vertido, de forma

expressa, para o interior de textos do ordenamento jurídico. Impondo um dever de proteção

antecipada de bens jurídicos caros. Risco que acaba por se interpor de duas maneiras,

distintas mas conjugadas, na construção das normas : enquanto fato ou realidade, ainda que

mediado por aspectos culturais; e, ainda, como conceito ou elemento devidamente

traduzido e vertido para o interior do sistema jurídico. Aprofundemo-nos nessas ideias.

Antes, contudo, necessário se faz tratar abreviadamente sobre o direito urbanístico e sua

aptidão para concretizar direitos. E, nesse contexto, para enfrentar o risco a mencionados

direitos. Este sim um verdadeiro dever, e que deve ser perseguido quando da construção das

normas de intervenção no tecido urbano.

1.8.3.2 – Do direito urbanístico e da sua vocação para enfrentar o risco em sua

dimensão espacial.

Decerto que a organização dos espaços humanos não recai exclusivamente sobre os

ombros do direito urbanístico. Ramo o qual, aliás, sequer encontra consenso quanto ao seu

objeto, seu conceito ou mesmo sua autonomia. Apenas com fito exemplificativo, políticas

setoriais como a econômica ou a de transportes terão intenso impacto na conformação do

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tecido urbano, ao criarem vetores de expansão ou gerarem atração de contingentes

populacionais impelidos pela busca de empregos para determinadas localidades, ou mesmo

a áreas dentro de uma mesma cidade.

Da mesma forma, o risco, que modernamente se imbrica de forma aparentemente

inseparável à sociedade, não deposita todas as armas para seu enfrentamento no direito

urbanístico. Risco que muitas vezes não respeita limites geográficos ou mesmo políticos.

Veja-se, por exemplo, e erupção, na Islândia, no ano de 2010, do vulcão Eyjafjallajökull,

lançando grande quantidade de partículas à atmosfera, interrompendo o tráfego aéreo em

vastas regiões da Europa248.

Sem embargo, e mesmo diante de tais limitações, consideramos que o direito

urbanístico se mostra especialmente vocacionado para fazer frente aos desafios que nos

impõe a vida em aglomerações humanas cada vez maiores, mais plurais, mais complexas, e

ao mesmo tempo mais vulneráveis. Uma seara na qual também não há como se alhear,

especialmente à luz da mencionada vulnerabilidade, a questão do risco.

Defenderemos que o direito urbanístico não apenas pode mas também deve se

interpor para enfrentar o risco numa perspectiva dita espacial, de organização dos espaços

humanos, com vistas ao prestígio e à concretização de direitos dos mais variados.

Até porque a construção das normas do direito urbanístico deve ser levada adiante

248 Risco, insistimos, que não se confunde com o evento concreto em si, mas o precede. E, da mesma forma, risco que se projeta para o futuro do evento, mesmo com este já consumado : ou seja, risco relativo à possibilidade de eventos semelhantes futuros e, principalmente, a impor um olhar sobre como se está atuando hoje no sentido de se preparar e se precaver diante de novos eventos futuros (e.g. : mediante elaboração de planos de evacuação, regramento do uso e da ocupação do solo em regiões mais vulneráveis, localização de estruturas mais sensíveis como centrais de energia, hospitais, e aquelas destinadas ao transporte, apenas para citar algumas ações).

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com os olhos voltados para não apenas para a realidade, tal qual já asseverado há pouco,

mas também a todo o ordenamento. Para tanto, necessariamente concorrerão e contribuirão

os valores prestigiados pelo ordem jurídica em sua integralidade, os quais não poderão

desprezados e muito menos vulnerados. Igual sorte deve ser destinada ao risco, elemento

também essencial à construção das normas de intervenção no tecido urbano. Risco que

tanto pode ser criado ou amplificado pela má organização de tais espaços. E, ao mesmo

tempo, risco que também pode ser enfrentado por essa mesma organização espacial.

Risco, conforme argumentaremos mais adiante, devidamente recolhido por normas

de intervenção no tecido urbano, bem como intensamente imbricado num novel

intervencionismo estatal, a influenciar a aplicação da lei por meio de decisões judiciais.

Prossigamos trazendo algumas notas acerca do direito urbanístico e de sua vocação para a

concretização de direitos dos mais variados. E em especial do enfrentamento do risco.

1.8.3.2.1 - Direito urbanístico : breves considerações sobre sua gênese, objeto e

aptidão para enfrentar os desafios decorrentes do fenômeno urbano.

O direito urbanístico influencia e se faz presente na rotina diária de todos aqueles

que vivem ou que simplesmente passam por aglomerações humanas. Todos que circulam,

trabalham, moram, se divertem, enfim, constroem suas identidades por intermédio do uso

de espaços, sejam privados ou públicos, têm opiniões, ideias, sonhos, críticas com relação a

mencionada organização. Não raro nos deparamos com exercícios que nos conduzem a

pensar, a sonhar a cidade que queremos, no futuro, para nós e para nossos filhos249. O

249 Veja-se, como exemplos, as iniciativas da Rede Nossa São Paulo, com proposta de ideias, indicadores, diretrizes e metas para a São Paulo de 2022 (disponível na rede mundial de computadores, no endereço eletrônico : http://www.saopaulo2022.org.br/publicacao-sao-paulo-2022.pdf - última consulta realizada em 02 de fevereiro de 2013); e, à semelhança, iniciativas da cidade de Sydney, com vistas ao ano de 2030, (na rede mundial de computadores : http://www.sydney2030.com.au/ – última consulta em 02 de fevereiro de 2013); e, ainda, de Nova Iorque (informações publicadas na rede mundial de computadores :

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direito entra em cena como instrumento para aglutinar e concretizar tais sonhos e anseios na

medida em que prestigiados pelo sistema jurídico. O ordenamento traz fins, balizas e meios

para a persecução de tais sonhos e desejos. Não é diferente com o direito urbanístico, que

traz uma moldura dentro da qual há que se acomodar e vicejar o modelo urbano de cada

uma das aglomerações de pessoas. Espaços que podem ser aptos tanto a prestigiar como a

vulnerar direitos dos mais diversos, tudo a depender das decisões tomadas em relação à sua

organização. Trata-se, sintetizamos, de ramo do direito que detém acentuada vocação para

prestigiar direitos dos mais variados, mediante a organização dos espaços humanos250.

Direito urbanístico, reiteramos, que não goza de uma conceituação una e

consensual. O que, aliás, não deixa de ser óbvio, dada a variedade de realidades jurídicas e

a diversidade ideológica e cultural em que se inserem os diferentes doutrinadores que

tratam do tema. Ainda assim persiste, a nosso ver, sua vocação para a concretização de

direitos dos mais variados mediante a organização dos espaços. E sua capacidade para

enfrentar os desafios impostos pelo “fenômeno urbano” e o risco a este associado.

José Afonso da Silva251 apresenta o direito do urbanismo numa perspectiva

histórica, como resposta a determinados problemas sociais. Para o autor, o crescimento

acelerado e sem planejamento das cidades trouxe consigo consequências nefastas. Dentre

estas, podemos exemplificar : concentração de população nas zonas urbanas com ocupação

desordenada do solo, poluição, ocupação de áreas de proteção ambiental e de áreas

públicas, exclusão e segregação dos mais pobres, concentração de renda, especulação

imobiliária, violência, dificuldades para a mobilidade, desprezo aos idosos e aos portadores

http://www.nyc.gov/html/planyc2030/html/theplan/the-plan.shtml – derradeira consulta aos 02 de fevereiro de 2013). Sem saber onde se quer chegar, pode a cidade ficar à deriva e ao sabor de intervenções pontuais e muitas vezes populistas e eleitoreiras.

250 Pedimos licença para utilizar argumentos dos quais já nos servimos quando defesa de dissertação de mestrado na área de direito público, perante a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, apresentada no ano de 2008, sob o título : “Do regime jurídico das sanções urbanísticas.”

251 SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro. 3ª edição revista e ampliada. São Paulo : Malheiros, 2000, p. 36 e pp. 51 – 60.

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de deficiência, parcelamento ilegal do solo, construções em desconformidade com os

parâmetros legais, ausência de equipamentos públicos suficientes para atender à demanda

da população, dentre outras tantas.

Prossegue José Afonso da Silva argumentando que embora o fenômeno da

concentração de população nas cidades ser recente e fruto principalmente da revolução

industrial, a preocupação com o urbanismo remonta à Roma antiga252 . Sem embargo,

conclui o autor que “embora as cidades existam há cerca de cinco mil e quinhentos anos, a

urbanização constitui fenômeno tipicamente moderno”253. Para o autor, a urbanização

consiste no “processo pelo qual a população urbana cresce em proporção superior à

população rural”254, situação essa que “gera enormes problemas. Deteriora o ambiente

urbano. Provoca desorganização social, com carência de habitação, desemprego, problemas

de higiene e saneamento básico. Modifica a utilização do solo e transforma a paisagem

urbana”255.

E se a urbanização é apontada por José Afonso da Silva como um problema, o

urbanismo surge, a seu turno, como o meio para correção dos desequilíbrios causados pela

urbanização. Ou seja, como técnica para a adequada ordenação dos espaços habitáveis.

Nessa seara o direito urbanístico, tomado em seu sentido objetivo, “consiste no conjunto de

normas que têm por objeto organizar os espaços habitáveis, de modo a propiciar melhores

252 José Afonso da Silva, fazendo remissão à Enciclopédia Ilustrada Europeia Americana, t. 65, p. 1336, narra que após o incêndio provocado pelo Imperador Nero em Roma, previu-se, na reconstrução da cidade, a criação de ruas largas, de edifícios com limitação de altura, de praças amplas e distantes dos prédios existentes.

253 SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro. 3ª edição revista e ampliada. São Paulo : Malheiros, 2000, p. 20.

254 SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro. 3ª edição revista e ampliada. São Paulo : Malheiros, 2000, p. 26.

255 SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro. 3ª edição revista e ampliada. São Paulo : Malheiros, 2000, p. 27.

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condições de vida ao homem na comunidade”256. Espaços esses tanto urbanos quanto

rurais, dada a visão integrada que se tem da cidade.

Hely Lopes Meirelles parte também de uma definição de urbanismo para então

construir um conceito de direito urbanístico. Para o autor, urbanismo “é o conjunto de

medidas estatais destinadas a organizar os espaços habitáveis, de modo a propiciar

melhores condições de vida ao homem na comunidade. Entendam-se por espaços

habitáveis todas as áreas em que o homem exerce coletivamente qualquer das quatro

funções sociais : habitação, trabalho, circulação, recreação.257”

Prossegue Hely afirmando que o urbanismo atua por intermédio de normas de duas

ordens, quais sejam : “normas técnicas de planejamento e construção, recomendadas pelas

ciências e pelas artes que lhe são tributárias; e normas jurídicas de conduta social, exigidas

e impostas pelo ordenamento legal vigente. As primeiras disciplinam a utilização do solo, o

traçado urbano, as áreas livres e os espaços verdes, as edificações, o sistema viário, os

serviços públicos e o que mais se relacione com a ordenação espacial e a organização

comunitária; as últimas visam a assegurar coercitivamente a observância das regras

técnicas. Aquelas são normas-fins; estas, normas-meios.258”

256 SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro. 3ª edição revista e ampliada. São Paulo : Malheiros, 2000, p. 48. O autor distingue o direito urbanístico enquanto conjunto de normas, a que denominou direito urbanístico objetivo, do direito objetivo enquanto ciência, entendido como “o ramo do Direito Público que tem por objeto expor, interpretar e sistematizar as normas e princípios disciplinadores dos espaços habitáveis.”

257 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Municipal Brasileiro. 14a edição, atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva. São Paulo : Malheiros, 2006, p. 511. As quatro funções sociais do urbanismo, conforme bem apontam os autores, são fruto de conclusões obtidas quando da realização do Congresso Internacional de Arquitetura Moderna, realizado em Atenas, no ano de 1933, corporificadas na Carta de Atenas. Funções que, no campo jurídico, hão de ser buscadas no ordenamento, o espaço e sua organização como concretizadores de valores prestigiados pelo Direito.

258 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Municipal Brasileiro. 14a edição, atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva. São Paulo : Malheiros, 2006, p. 512.

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Para Fernando Alves Correia, o direito do urbanismo surge como ferramenta do

Direito apta a intervir nos problemas decorrentes do aumento da população urbana e da

ausência de estrutura das cidades para fazer frente a esse incremento populacional, em

especial no que toca à oferta de emprego e de moradia259.

Fernando Alves Correia prossegue brindando-nos com a seguinte definição : “o

direito do urbanismo é o conjunto de normas e de institutos respeitantes à ocupação, uso e

transformação do solo, isto é, ao complexo das intervenções e das formas de utilização

deste bem (para fins de urbanização e de construção, agrícolas e florestais, de valorização e

protecção da natureza, de recuperação de centros históricos, etc.). Esta noção de direito do

urbanismo – que se baseia num conceito amplo de ‘urbanismo’, como ciência que tem por

objeto o território globalmente entendido, e não apenas o espaço da cidade ou da urbe (já

que esta não se apresenta como uma entidade com vida própria, independente e isolada,

antes sofre influências de diversos tipos do vasto território em que está inserida)260”.

A essência do direito do urbanismo “reside na harmonização ou compatibilização

entre os diferentes interesses implicados no uso e transformação desse bem essencial – por

natureza escasso e irreprodutível – que é o solo, sendo, por isso, constituído por normas

jurídicas cuja função precípua é a ponderação de interesses e a superação dos conflitos de

interesses surgidos a propósito da utilização do mesmo (ponderação que reveste uma

tríplice vertente : entre interesses públicos e privados colidentes, entre interesses públicos

que não são coincidentes e entre interesses privados divergentes).261”

259 CORREIA, Fernando Alves. Manual de direito do urbanismo. Volume I, 2a edição. Coimbra : Almedina, 2004, p. 28 a 31.

260 CORREIA, Fernando Alves. Manual de direito do urbanismo. Volume I, 2a edição. Coimbra : Almedina, 2004, p. 54.

261 CORREIA, Fernando Alves. Manual de direito do urbanismo. Volume I, 2a edição. Coimbra : Almedina, 2004, p.55.

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Prossegue Fernando Alves Correia apontando para o objeto do direito urbanístico

como sendo “os seguintes quatro grandes sectores : as regras jurídicas que disciplinam a

ocupação, uso e transformação do solo, ou seja, as normas que determinam os tipos de

modalidades de utilização dos solos, as quais podem ter como fonte a lei ou (...) os planos

territoriais (...); o direito e política de solos (que inclui, entre o mais, o regime urbanístico

do direito de propriedade privada do solo e os mecanismos de intervenção da

Administração Pública nos solos urbanos); os sistemas e instrumentos de execução dos

planos (...); o direito administrativo da construção, que abrange as regras técnicas e

jurídicas a que deve obedecer a construção de edifícios (não somente as respeitantes à

segurança, salubridade e estética das edificações, mas também normas que visam garantir,

de acordo com os princípios do Estado de Direito Social, que as habitações sejam saudáveis

e apresentem os requisitos (...) necessários para que se tornem verdadeiramente dignas do

homem); e o contencioso do urbanismo”262.

A aptidão ao enfrentamento dos novos desafios urbanos por parte do direito do

urbanismo é tema abordado por Fernanda Paula Oliveira263 que descreve mencionado ramo

do direito como “uma disciplina tradicionalmente perspectivada como uma parte especial

do direito administrativo” mas que, cada vez mais, “vem adquirindo uma autonomia

particular, desde logo porque os instrumentos de que lança mão, muito embora

correspondam aos clássicos instrumentos do direito administrativo (atos, regulamentos e

contratos administrativos), assumem especificidades que justificam cada vez mais regimes

especiais (...) com regimes próprios distintos dos gerais, na medida em que já não é

suficiente uma mera adaptação destes para dar resposta às necessidades que este ramo do

direito tem de enfrentar.”

262 CORREIA, Fernando Alves. Manual de direito do urbanismo. Volume I, 2a edição. Coimbra : Almedina, 2004, p.56.

263 OLIVEIRA, Fernanda Paula. Novas tendências do direito do urbanismo. 2ª edição. Coimbra : Almedina, 2012, p. 9.

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O direito do urbanismo, conforme segue Fernanda Paula Oliveira, inclui os

domínios clássicos do direito do planejamento urbanístico, do direito dos solos e do direito

das construções. Sem embargo, vai além e se envereda por novos caminhos para o

enfrentamento dos desafios da vida urbana. Contudo, conforme pontua a autora, a atual

situação urbanística não apenas deixou de ser resolvida, mas muitas vezes acabou sendo

potenciada pelos instrumentos de planejamento a que a autora designa de “primeira

geração”. Com intervenções urbanas marcadas por uma falta de programação264, por um

crescimento “casuístico e disperso”265 experimentando, destarte, “repercussões negativas

traduzidas na dispersão da ocupação urbanística pelo território e, em consequência, numa

irracional expansão das infraestruturas que a servem.”266.

As mencionadas repercussões negativas foram devidamente reconhecidas e

recolhidas pelo sistema jurídico Português, notadamente pelo Programa Nacional da

Política de Ordenamento do Território (PNPOT)267. Mencionado Programa traz em seu

bojo Relatório com um diagnóstico da ocupação territorial de Portugal268, identificando 24

264 A programação implica, por parte dos Municípios, numa “atitude mais proativa, programando as operações privadas em função das suas prioridades, condicionando as operações urbanísticas a soluções de conjunto e promovendo parcerias entre privados e destes com a Administração na concretização dos planos.” (In : OLIVEIRA, Fernanda Paula. Novas tendências do direito do urbanismo. 2ª edição. Coimbra : Almedina, 2012, p. 59). Uma gestão urbanística que não mais se limita a apenas controlar mas que também inclui as atividades de programar e coordenar.

265 OLIVEIRA, Fernanda Paula. Novas tendências do direito do urbanismo. 2ª edição. Coimbra : Almedina, 2012, p. 53. O crescimento seria, assim, fruto essencialmente das iniciativas dos particulares, promovido dentro dos limites de suas respectivas propriedades por intermédio de licenciamentos dispersos. Ainda que legais, isolados e descolados da realidade conjunta e mais ampla do tecido urbano.

266 OLIVEIRA, Fernanda Paula. Novas tendências do direito do urbanismo. 2ª edição. Coimbra : Almedina, 2012, p. 53.

267 Veiculado pela Lei 58/2007, de 4 de setembro de 2007 e seu respectivo Relatório e Programa de Acção. A qual veio retificada, posteriormente, pela Declarações de Retificação n. 80-A/2007, de 7 de setembro e n. 103-A/2007, de 2 de novembro. Referido Programa estabelece as grandes opções para a organização do território português e o quadro de referência à elaboração dos demais instrumentos de gestão territorial, com eficácia jurídica, vinculando entidades públicas para além daquela que o elaborou e aprovou. Retornaremos ao PNPOT mais adiante, quando tratarmos do risco e do seu tratamento por instrumentos do direito urbanístico.

268 Diagnóstico que talvez possa não ter muito sentido em outros países ou mesmo em algumas cidades específicas. Ou que se mostre insuficiente em relação a ditas localidades. Sem embargo, mais importante do que os problemas específicos levantados e explicitados é justamente o procedimento de preocupar-se com as tendências futuras, inseri-las no corpo de textos legislativos e na execução de ações públicas e privadas. Com vistas ao devido enfrentamento de situações futuras potencialmente daninhas a direitos dos mais variados. Em

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problemas para o ordenamento do território, alguns dizendo respeito ao “processo de

urbanização, a saber :

(i) A expansão urbana desordenada e correspondentes efeitos na

fragmentação e desqualificação do tecido urbano e do espaço envolvente;

(ii) A expansão desordenada das áreas metropolitanas e outras

áreas urbanas, invadindo e fragmentando os espaços abertos, afetando a sua

qualidade e potencial ecológico, paisagístico e produtivo e encarecendo as

infraestruturas e a prestação de serviços públicos;

(iii) O despovoamento e a fragilização demográfica de vastas

áreas;

(iv) O insuficiente desenvolvimento dos sistemas urbanos não

metropolitanos e da sua articulação com espaços rurais envolventes,

enfraquecendo a competitividade e a coesão territorial do país;

(v) A degradação da qualidade de muitas áreas residenciais,

sobretudo nas periferias e nos centros históricos das cidades e persistência

de importantes segmentos da população sem acesso condigno a habitação,

agravando disparidades sociais intraurbanas;

(vi) A insuficiência de políticas públicas e de cultura cívica no

acolhimento e integração de imigrantes, acentuando a segregação espacial e

exclusão social nas áreas urbanas;”269

Para a superação dos apontados problemas do urbanismo, as “palavras de ordem

para a concretização de um novo modelo de ocupação do território que se pretende instituir

passam, assim, a ser as de programação municipal, de promoção ou condicionamento das

suma, é a devida inserção da lógica afeta ao risco nas intervenções no tecido urbano, conforme argumentaremos no decorrer do presente trabalho.

269 OLIVEIRA, Fernanda Paula. Novas tendências do direito do urbanismo. 2ª edição. Coimbra : Almedina, 2012, p. 50 e 51.

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operações urbanísticas a soluções de conjunto e de promoção de parcerias entre privados e

destes com a Administração na concretização dos planos.”270 Conforme prossegue

Fernanda Paula Oliveira : “A intenção final é inverter as tendências expansionistas dos

perímetros e dispersivas da ocupação territorial : em vez de expansão urbana, promoção da

contenção de perímetros, do preenchimento de espaços vazios no seu interior e da

revitalização/reabilitação urbana.” 271

Referida superação inclui a exigência de uma mais apurada sensibilidade às

questões sociais, com o fito de “assegurar a humanização das cidades, promover a

qualidade de vida e vivificar, de uma forma sustentável, os centro urbanos.”272 E impõe

uma lógica diversa na condução das intervenções no tecido urbano : passa-se de “um

urbanismo de expansão a um urbanismo de contenção”273 e de “reabilitação”274 . E, ainda,

de “um urbanismo de segregação a um urbanismo de coesão social (planeamento

urbanístico e sustentabilidade social).”275 Vejamos cada uma dessas tendências com um

pouco mais de vagar.

Iniciemos com o tema da contenção, tal qual tratado por Fernanda Paula Oliveira.

Uma das formas de buscar essa contenção reside na gestão urbanística, compreendida como

a execução dos planos urbanísticos. Referida gestão, sem embargo, pode ser norteada por

270 OLIVEIRA, Fernanda Paula. Novas tendências do direito do urbanismo. 2ª edição. Coimbra : Almedina, 2012, p. 56.

271 OLIVEIRA, Fernanda Paula. Novas tendências do direito do urbanismo. 2ª edição. Coimbra : Almedina, 2012, p. 56.

272 OLIVEIRA, Fernanda Paula. Novas tendências do direito do urbanismo. 2ª edição. Coimbra : Almedina, 2012, p. 155.

273 OLIVEIRA, Fernanda Paula. Novas tendências do direito do urbanismo. 2ª edição. Coimbra : Almedina, 2012, p. 47 a 78.

274 OLIVEIRA, Fernanda Paula. Novas tendências do direito do urbanismo. 2ª edição. Coimbra : Almedina, 2012, p. 79 a 132.

275 OLIVEIRA, Fernanda Paula. Novas tendências do direito do urbanismo. 2ª edição. Coimbra : Almedina, 2012, p. 133 a 155.

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lógicas distintas. Uma das lógicas, a que a autora denomina de tradicional, “é feita pelos

municípios ‘a reboque’ de iniciativas privadas : situação típica em que os interessados,

designadamente proprietários de solos, lhe apresentam, para apreciação e controlo prévios,

projetos para a realização das mais variadas operações urbanísticas”276. Referida forma de

gestão se exterioriza mediante atos tais como os de licenciamento, comunicação prévia ou

autorização, e que encontram guarida, no sistema jurídico, por intermédio do Regime

Jurídico da Urbanização e Edificação - RJUE277.

Convive com mencionada lógica tradicional uma outra, mais recente, que “aponta

para um papel mais ativo dos municípios, que passam a programar e coordenar as várias

intervenções no território, assumindo a este propósito especial relevância as formas de

execução sistemática dos planos por intermédio da delimitação de unidades de execução.”

Mencionadas unidades de execução encontram-se previstas no n.2, do artigo 119º, do

RJIGT – Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial )278 e consistem em áreas

sujeitas a operações urbanísticas marcadas por “intervenções de conjunto, programação e

contratualização entre proprietários.” 279

As medidas de gestão urbanística mencionadas nos parágrafos anteriores são

contudo “vocacionadas para a concretização de operações de nova urbanização ou

276 OLIVEIRA, Fernanda Paula. Novas tendências do direito do urbanismo. 2ª edição. Coimbra : Almedina, 2012,, p. 59.

277 Aprovado pelo Decreto-Lei n. 555/99, de 16 de dezembro, e alterado sucessivamente pelo Decreto-Lei n. 177/2001, de 4 de junho, pela Lei n. 15/2002, de 22 de fevereiro, pela Lei n. 60/2007, de 4 de setembro, pelo Decreto-Lei n 18/2008, de 29 de janeiro, pelo Decreto-Lei 116/2008, de 4 de julho, pelo Decreto-Lei n. 26/2010, de 30 de março e pela Lei 28/2010, de 2 de setembro.

278 Decreto-Lei n. 380/99, de 22 de setembro, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n. 53/2000, de 7 de abril, pelo Decreto-Lei n. 310/2003, de 10 de dezembro, pela Lei n. 58/2005, de 29 de dezembro, pela Lei n. 56/2007, de 31 de agosto, pelo Decreto-Lei n. 316/2007, de 19 de setembro, pelo Decreto-Lei n. 46/2009, de 20 de fevereiro e pelo Decreto-Lei 181/2009, de 7 de agosto. Sendo certo que convivem no ordenamento português o RJUE e o RJIGT, sendo medida de rigor a busca pela harmonização das distintas lógicas de gestão urbanística.

279 OLIVEIRA, Fernanda Paula. Novas tendências do direito do urbanismo. 2ª edição. Coimbra : Almedina, 2012, p.64.

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edificação”. Para se intervir naquilo que já se encontra edificado, é apto o instituto da

reabilitação urbana, acolhido legislativamente no Regime Jurídico da Reabilitação Urbana

– RJRU280. Referida reabilitação se encontra alinhada com a nova lógica de ocupação do

território, passando-se de um urbanismo de expansão a “um urbanismo de contenção dos

perímetros, em que as necessidades urbanísticas são satisfeitas, por um lado, com a

mobilização dos solos expectantes dentro dos perímetros urbanos (nos quais devem ser

concretizados projetos que os considerem de forma global e integrada) – a que poderíamos

chamar de urbanismo de colmatação – e, por outro lado, com a utilização (após

reabilitação) do edificado existente, precedida de requalificação (dos) espaços públicos que

os servem – um urbanismo de reabilitação urbana.”281

E no que toca à busca por uma maior coesão social, referido fim pode ser atingido

mediante a devida aplicação do princípio da sustentabilidade ao planejamento urbanístico.

Sustentabilidade perspectivada em sua tripla vertente, qual seja, econômica, ambiental e

principalmente social282.

A dimensão social da sustentabilidade tem merecido particular atenção “em face do

crescimento acentuado de fenómenos de segregação espacial urbana, uma das formas de

segregação e exclusão sociais. A segregação espacial surge, precisamente, como a marca

territorial da exclusão e da injustiça social, que pode, na sua vertente mais radical, dar

280 Decreto-Lei n. 307/2009, de 23 de outubro, alterado pela Lei n. 32/2012, de 14 de agosto.

281 OLIVEIRA, Fernanda Paula. Novas tendências do direito do urbanismo. 2ª edição. Coimbra : Almedina, 2012, p. 81.

282 Sustentabilidade que, para alguns autores, abarcaria não apenas aspectos ambientais, sociais e econômicos, mas também de governança. Nesse sentido, veja-se por exemplo a doutrina de Glasson e Cozens (GLASSON, John, COZENS, Paul. Making communities safer from crime : an undervalued element in impact assessment. In : Environmental Impact Assessment Review, 31 (2011), p. 25 – 35.) aludindo à acepção ampla da sustentabilidade, ou seja, ao denominado “quadruple bottom line”, ou ainda ao “triple bottom line + 1”) e que envolve, reprisamos, os aspectos ambiental, econômico, social e também de governança. Os autores tratam do tema no âmbito da segurança. Segundo os autores, a ausência da segurança consiste numa externalidade do desenvolvimento, ou seja, numa forma de poluição, o crime produzindo uma “pegada ecológica” haja vista implicar em deslocamentos de viaturas, de vítimas a hospitais, reposição de bens subtraídos ou mesmo no restauro de propriedade danificada.

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origem à constituição de guetos, os quais se apresentam como fontes de instabilidade

social, marginalidade, violência, delinquência (...) A crescente segregação espacial surge

num contexto de maior desigualdade social, tornando premente a procura de instrumentos

que a permitam combater.”283

Referida vertente social da sustentabilidade há que se imbricar, forçosamente, no

seio do planejamento urbano e pode ser alcançada, na esteira da doutrina de Fernanda Paula

Oliveira, por meio da “ponderação dos interesses sociais, em especial dos mais

desfavorecidos”284, com ênfase às necessidades sociais e habitacionais de mencionada

população.

O planejamento sustentável, com vistas à coesão social, também pode ser

concretizado por meio da denominada “mistura”, ou seja, mediante a imposição, pelos

planos, da “coexistência, na mesma zona, de usos urbanísticos variados (residencial,

industrial, comercial) e/ou de tipologias de habitação destinadas a estratos sociais

diferentes (mais favorecidos e menos favorecidos), com o que se potencia a convivência,

num espaço comum, de pessoas pertencentes a classes sociais ou grupos culturais distintos,

promovendo uma maior riqueza do tecido social e o fortalecimento da respetiva coesão.” 285

283 OLIVEIRA, Fernanda Paula. Novas tendências do direito do urbanismo. 2ª edição. Coimbra : Almedina, 2012, p. 135 e 136.

284 OLIVEIRA, Fernanda Paula. Novas tendências do direito do urbanismo. 2ª edição. Coimbra : Almedina, 2012, p. 139.

285 OLIVEIRA, Fernanda Paula. Novas tendências do direito do urbanismo. 2ª edição. Coimbra : Almedina, 2012, p. 141.

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Há, nos diferentes ordenamentos, técnicas das mais variadas para buscar essa

denominada “mistura”, pontua Fernanda Paula Oliveira286. Na Espanha, por exemplo, leis

de determinadas Comunidades Autônomas tanto habilitam os entes locais a reservar

terrenos para a construção de habitações submetidas de algum modo a um regime peculiar

de proteção, assim como impõem tal reserva por meio da fixação de uma percentagem

determinada para tais habitações.

Merece menção, também, a iniciativa de inclusionary zoning nos Estados Unidos da

América, que tem como fim a “mistura de classes sociais numa mesma área territorial, com

vista ao reforço da coesão social (...) que visava garantir a inserção de camadas da

população desfavorecida em determinadas áreas urbanas, através da imposição à iniciativa

privada de disponibilização de habitações a preços acessíveis ou de inclusão de uma

percentagem mínima de unidades de habitação destinadas a famílias de rendimentos baixos,

em alguns casos fazendo-as acompanhar de ajudas federais.”287

O princípio da participação também pode ser uma via à concretização do princípio

da sustentabilidade social nas intervenções urbanas, promovendo-se a efetiva aproximação

dos encarregados de elaborar os planos aos diversos grupos da população, levando-se em

conta os interesses desses grupos, mesmo daqueles excluídos, quando das intervenções no

tecido urbano.

286 OLIVEIRA, Fernanda Paula. Novas tendências do direito do urbanismo. 2ª edição. Coimbra : Almedina, 2012, p. 139 e 140, e respectiva nota 162.

287 OLIVEIRA, Fernanda Paula. Novas tendências do direito do urbanismo. 2ª edição. Coimbra : Almedina, 2012, p. 143. Fazendo a autora menção à importância do papel do Tribunal Supremo de Nova Jérsei em relação ao tema, com a prolação das sentenças Mount Laurel (1975) e Mount Laurel II (1983), determinando, com fundamento nos princípios da igualdade e da não discriminação, a construção de habitação para população de baixa renda tendo em vista as necessidades presentes e futuras, garantindo-se a mão de obra necessária para o funcionamento de indústrias e comércio. Maiores informações podem ser obtidas na rede mundial de computadores : http://njlegallib.rutgers.edu/mtlaurel/aboutmtlaurel.php - última consulta em 06 de março de 2013.

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Por fim, o controle judicial também se alinha como método à concretização da

sustentabilidade. Embora, conforme acentue Fernanda Paula Oliveira288, “exista ainda

pouca sensibilidade judicial para as questões sociais no planeamento do território”

remanesce a possibilidade de se recorrer a “princípios jurídicos mais tradicionais (...) como

o princípio da igualdade (que permite anular decisões que impliquem numa discriminação

de facto ao impedir, por exemplo, determinados grupos sociais e/ou étnicos de aceder a

uma habitação digna e adequada, originando uma segregação espacial e uma discriminação

por motivos econômicos), e o da proporcionalidade (que permite a anulação judicial de

soluções urbanísticas com impactos negativos pelas suas consequências segregadoras sem

que existam benefícios para o interesse geral que correlativamente possam se justificar).”

Disponível, ainda, uma outra via apta a ser controlada judicialmente com vistas à

concretização da sustentabilidade social e que tem por objeto o próprio procedimento do

planejamento, aquilatando-se com base na documentação produzida se a questão da

segregação foi devidamente considerada e sopesada quando da elaboração dos instrumentos

de planificação.

Em suma, há que se perspectivar e construir o direito do urbanismo de maneira

sensível à realidade urbana contemporânea289. Um meio pelo qual, conforme arremata

Fernanda Paula Oliveira, alicerçada na doutrina de Diogo Freitas do Amaral290, é possível

concretizar valores jurídicos consagrados pelo ordenamento como um todo : “o direito do

urbanismo traduz em normas jurídicas as opções fundamentais do Estado quanto à sua

política urbanística. Não se trata de uma mera ‘legislação técnica’ nem de uma ‘política

traduzida em normas legais’, na medida em que tendo de conformar-se com a Constituição

288 OLIVEIRA, Fernanda Paula. Novas tendências do direito do urbanismo. 2ª edição. Coimbra : Almedina, 2012, p. 154.

289 Não apenas em referência ao cenário presente e atual, mas também, e especialmente, em relação ao futuro.

290 AMARAL, Diogo Freitas do. Ordenamento do Território, Urbanismo e Ambiente : Objeto, Autonomia e Distinções. In : Revista Jurídica do Urbanismo e do Ambiente, n. 1, 1994, p. 17; Veja-se, ainda : AMARAL, Diogo Freitas do. Direito do Urbanismo (Sumários). Lisboa : Polocopiada, 1993, p. 26. E também : AMARAL, Diogo Freitas do. Apreciação da Dissertação de Doutoramento do Licenciado Fernando Alves Correia – O Plano Urbanístico e o Princípio da Igualdade. In : Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Vol. XXXII, Lisboa, 1991, pp. 95-96.

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e com os princípios gerais da ordem jurídica, há de respeitar os direitos fundamentais dos

cidadãos”.

As transformações sociais e seu reflexo no direito urbanístico, no contexto da ordem

jurídica da França, foram objeto de análise por parte de Jacqueline Morand-Deviller291.

Para a autora o direito do urbanismo consiste no conjunto de regras que dizem respeito à

afetação dos espaços e à sua gestão. Consoante assinala Morand-Deviller, o direito do

urbanismo, cuja reflexão remonta à antiguidade, inicialmente restringiu-se à imposição de

limitações à propriedade privada. Sem embargo, em face da transformação imposta pelas

duas grandes guerras do século XX, a exigir a reconstrução de um pais devastado e o

enfrentamento da explosão populacional urbana, assumiu o direito do urbanismo uma

perspectiva mais contemporânea, qual seja, a de planejamento e de gestão.

O percurso que conduziu à gênese do atual direito do urbanismo passou

inicialmente pela edição de disposições destinadas à disciplina de objetos determinados,

disposições essas inspiradas na persecução da ordem pública. Incluem-se em mencionado

rol, exemplificativamente, as disposições referentes ao alinhamento de vias públicas292, à

segurança de estabelecimentos293, a aspectos de saúde294 e à proteção da estética e

conservação do patrimônio295.

291 MORAND-DEVILLER, Jacqueline. Droit de l’urbanisme. 3e édition. Paris : Dalloz, 1996, p. 1.

292 Conforme menciona a autora (MORAND-DEVILLER, Jacqueline. Droit de l’urbanisme. 3e édition. Paris : Dalloz, 1996, p.3) : Edit de Sully, de 1607. E os planos de alinhamento contidos na Lei de 1791 (da Revolução) e na Lei de 1807 (do Primeiro Império).

293 Nesses termos, conforme menção da autora, um decreto imperial do ano de 1810, que trazia previsão de três classes de periculosidade relativa a estabelecimentos.

294 Alude a autora, aqui, ao Decreto lei de 26 de maio de 1852, que exigia dos construtores que fossem contempladas redes para escoamento das águas. E, ainda, nos termos de Lei de 1902, de higiene pública, a imposição de regulamentos sanitários.

295 Consoante exemplifica a autora : Leis de 30 de março de 1887 e de 31 de dezembro de 1913, relativas a monumentos históricos.

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Passou-se então a uma fase que Morand-Deviller denomina de salvaguarda e de

início das atividades de planejamento, espelhando-se a França em iniciativas de países

vizinhos, tais como a Suécia (lei de 1874), Países Baixos (legislação editada em 1901) e

Grã-Bretanha (lei elaborada no ano de 1909) e pressionada pela necessidade de

reconstrução das cidades, veio à luz a denominada Lei Cornudet, de 14 de março de 1919,

que tinha por objeto projetos de planejamento e desenvolvimento, de embelezamento e de

ampliação das cidades. Ou, ainda, legislação afeta à regulamentação de loteamentos (Lei de

10 de julho de 1924) e a projetos regionais de desenvolvimento (com edição de uma grande

Lei de urbanismo, de 15 de junho de 1943).

E num terceiro momento caminhou-se em direção a um direito urbanístico protetor

e qualitativo, superando uma perspectiva do urbanismo voltada apenas à imposição de

limitações ao direito de propriedade. Entram em cena preocupações com o meio-ambiente,

com políticas sociais de habitação, substituindo-se a segregação e a exclusão pela coesão

social296. As preocupações de cunho social mostram-se indissociáveis das econômicas e das

ambientais. A diversidade entre as classes sociais e as atividades econômicas são

encorajadas mediante uma adequada organização dos espaços e por intermédio da

solidariedade financeira entre as comunidades. No âmbito institucional cria-se,

exemplificativamente, o Ministério da Cidade297.

296 Matéria publicada na revista “The Economist”, dos dias 23 de fevereiro a 1º de março de 2013 ( a reportagem se encontra acostada a fls. 23 e leva o título : France´s troubled suburbs. Forgotten in the banlieus. – numa tradução livre : Os subúrbios críticos da França. Abandonado na periferia.) bem demonstra que referida preocupação tem sua razão de ser. Em bairros da periferia de Paris, tais como o de Sevran, mais da metade de seus moradores é de origem estrangeira. Os índices de desemprego são duas vezes maior que a média nacional. Nos mencionados locais 36% de seus moradores vivem abaixo da linha de pobreza e 75 % dos mesmo moram em residências que de alguma forma são subsidiadas pelo Estado. Um desses bairros, Clichy-sous-Bois, foi palco no ano de 2005 de distúrbios que se arrastaram por três semanas. A realidade urbana gera novos desafios, os quais imporão uma adequada resposta à organização dos espaços. O Ministério Delegado de Cidades da França divulgou 27 decisões que têm como finalidade restabelecer a igualdade em bairros populares e que versam, dentre outras providências, sobre educação, emprego, renovação urbana e participação popular (passível de consulta na rede mundial de computadores : http://www.ville.gouv.fr/?comite-interministeriel-des-villes,2530 – última consulta realizada aos 28 de fevereiro de 2013).

297 No original : Ministère de la Ville. Atualmente podemos fazer menção ao Ministère délégué a la Ville, cuja página da rede mundial de computadores é a que segue : http://www.ville.gouv.fr/ (última consulta realizada aos 28 de fevereiro de 2013)

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A necessária atenção aos desafios impostos pela adequada organização dos espaços

urbanos também é acentuada por Desmond Heap298, referindo-se especificamente ao

ordenamento jurídico do Reino Unido e com ênfase especial a três diplomas legislativos, a

saber : The Public Health Code (1948 – 1996), The Housing Code (1890 – 1996) e The

Town and Country Planning Code (1909 – 1996).

A Revolução Industrial na Inglaterra, com seu sistema fabril e seus métodos de

manufatura, produziu um êxodo populacional do campo para as cidades. Estas passaram a

receber contingentes de pessoas em busca de trabalho. Pessoas que se amontoavam em

habitações sem condições sanitárias e construídas, muitas vezes, à sombra das fábricas.

Tais construções não eram objeto de controle ou mesmo de supervisão das autoridades

locais. Em consequência, as moradias eram erigidas demasiadamente próximas das

unidades fabris e em condições deploráveis.

Tolerou-se a situação apontada no parágrafo anterior até quando da edição do

Public Health Act de 1848. O primeiro de uma série de diplomas normativos, culminando

com a edição do Public Health Act de 1875. Mencionados diplomas conferiam poderes às

autoridades locais para controlar novas construções, especialmente no que dizia respeito à

saúde pública. Sem embargo, ainda permaneciam a descoberto as construções já existentes.

Ademais, as soluções preconizadas tinham um enfoque mais individual do que coletivo. Os

textos legais não se prestavam , por exemplo, a impedir construções de moradias em locais

inadequados ou mesmo o avanço das instalações fabris em direção a zonas residenciais.

O enfrentamento da questão afeta às construções precárias existentes iniciou-se com

o diploma legislativo denominado Housing of The Working Classes Act 1890 que previa a

298 HEAP, Desmond. An outline of planning law. 11th Edition. London : Sweet and Maxwell, 1996.

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remoção dos imóveis insalubres e o fornecimento de novas casas à classe trabalhadora,

culminando com o Housing Act 1925, e suas alterações posteriores.

Sem embargo, ainda que remediada a questão das construções precárias e do

suprimento de moradia às classes trabalhadoras, remanesciam as questões da construção de

casas à sombra de instalações fabris e da instalação de indústrias em meio a bairros

residenciais, circunstâncias que não eram enfrentadas pela legislação. Entra em cena, então,

a preocupação com o planejamento das cidades, recolhida na esfera legislativa pelos

denominados Town and Country Planning Code, cuja primeira edição data de 1909.

Consistiam em disposições jurídicas que lidavam com a questão do planejamento e com o

controle não apenas de edificações individualmente consideradas mas também do

desenvolvimento edilício como um todo.

Tomás-Ramón Fernández299 ressalta que as transformações da vida urbana põem em

cheque uma visão estritamente local do urbanismo, encarado tão só como a ordenação do

espaço físico da cidade. Uma perspectiva que embora “históricamente válida hasta la

segunda guerra mundial, se ha roto estrepitosamente en la segunda mitad de este siglo al

comprobar hasta qué punto las tensiones que sacuden la vida urbana y todo lo que en el

interior de la ciudad ocurre es una función de los fenómenos que tienen lugar fuera de ella,

en su hinterland inmediato, por lo pronto, y en el contexto general del país entero en último

término.”

O urbanismo da atualidade caracteriza-se, do ponto de vista de Tomás-Ramón

Fernández, por uma “perspectiva global e integradora de todo lo que se refiere a la relación

299 FERNÁNDEZ, Tomás-Ramón. Manual de Derecho Urbanístico. 21ª edición. Madrid : La Ley, 2008, p. 16.

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del hombre con el medio en el que se desenvuelve y que hace de la tierra, del suelo, su eje

operativo.”300

Solo, sem embargo, tal qual arremata Tomás-Ramon Fernandez301, fazendo menção

a disposição legislativa da Grã-Bretanha, especificamente ao Land Community Act de 1975,

que consiste no único bem de um país que não pode ser incrementado ou ampliado. O solo

tem seu suprimento determinado e fixo, diferentemente de outros recursos tais como

alimentos ou manufaturas, sendo necessário assegurar o equilíbrio apropriado dentre todas

as demandas pelo mesmo, de forma que esse bem escasso seja utilizado em nome e no

interesse de todos.

Não é nossa intenção perseguir, no espaço reservado à presente exposição, a busca

por um conceito único e uno ao direito urbanístico. O queremos ressaltar são, sem embargo,

as possibilidades do direito urbanístico no sentido de concretizar direitos dos mais variados.

E sua vocação potencial para enfrentar e se adaptar aos desafios com os quais nos

deparamos ante a atual vida em sociedade, notadamente nas aglomerações urbanas.

Desafios dentre os quais incluímos, exemplificativamente : a criação de empregos dignos, a

adequada inserção de grupos culturais, étnicos e sociais, a preocupação com a segurança e

com fenômenos naturais intensos, o prestígio e o fomento a valores, o respeito ao mínimo

existencial de todos e de cada um de seus moradores, independentemente de classe social

ou local de moradia. Desafios inseridos em um contexto onde se verifica, muitas vezes,

concentrações de contingentes populacionais cada vez maiores em situações de crescente

vulnerabilidade. Com a consequente exposição de bens e de valores a danos potenciais cada

vez mais prováveis e muitas vezes irreversíveis. O desafio de lidar com um futuro incerto

mas modelado pelas decisões presentes. O desafio, em suma, de lidar com o risco.

300 FERNÁNDEZ, Tomás-Ramón. Manual de Derecho Urbanístico. 21ª edición. Madrid : La Ley, 2008, p. 16.

301 FERNÁNDEZ, Tomás-Ramón. Manual de Derecho Urbanístico. 21ª edición. Madrid : La Ley, 2008, p. 16 e 17.

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Necessário antes de prosseguirmos fazer uma breve consideração : a defesa de

intervenções predominantemente locais, tais quais as levadas adiante mediante institutos de

direito urbanístico, para enfrentamento de desafios que transcendem em muito os limites

geográficos e administrativos de nossos centros urbanos parece encerrar uma contradição

em si mesma. Sem embargo, conforme veremos a seguir, é a doutrina pródiga em exemplos

que exploram a importância de tais intervenções locais no enfrentamento de mencionados

desafios. Enfrentamento que também inclui aquele relativo ao risco. Ainda que, sozinhas,

mencionadas intervenções não resolvam a questão do risco, sua negligência certamente

deixará a descoberto direitos dos mais variados. Ressaltando que a ideia da aniquilação do

risco é não apenas utópica mas incompatível com o conceito aqui abraçado.

Até aqui defendemos as possibilidades do direito urbanístico para a lidar com

desafios da vida em concentrações urbanas, em especial aquelas de maior porte.

Prossigamos com esta linha de raciocínio, dilatando-nos na argumentação relativa ao direito

urbanístico como apto a viabilizar não apenas um modelo urbano, mas um modelo urbano

voltado à concretização de direitos dos mais variados. Um modelo urbano apto a enfrentar

adequadamente o risco que o futuro pode reservar aos feixes quase infindáveis de direitos

que irradiam das, e nas, aglomerações humanas.

1.8.3.2.2 – Direito urbanístico e de sua aptidão à concretização de direitos.

Conforme afirmamos há pouco, o direito urbanístico encerra em si potencial para a

concretização de direitos dos mais variados, na busca da construção de uma “cidade de

direitos”, ou seja, de um modelo urbano prestigiador da ordem jurídica como um todo e de

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espaços que obrigatoriamente sejam garantidores de um mínimo existencial302. Algo que

somente se tornará realidade caso as intervenções no tecido urbano sejam feitas com o

devido zelo e respeito ao ordenamento jurídico303. Uma perspectiva na qual se imbrica

necessariamente o risco, com sua ótica de proteção antecipada e contínua de bens jurídicos,

calçada em decisões humanas.

Importante ressaltar que mencionada possibilidade de concretização de direitos por

meio de intervenções urbanísticas encontra eco no sistema jurídico e em exemplos que

podemos extrair do universo empírico. Prosseguiremos numa análise de maior fôlego

relativa às possibilidades das intervenções territoriais destinadas ao fortalecimento,

promoção e prestígio de direitos dos mais diversos. Decerto que outros direitos que não os

aqui mencionados podem ser objeto de prestígio e de proteção por meio de intervenções no

tecido urbano304. Da mesma forma, os direitos não se concretizam de maneira

302 Termo originalmente cunhado pela doutrina italiana e relacionado com a recuperação de centros históricos e o fim precípuo de torná-los aptos ao enfrentamento de riscos sísmicos (Veja-se : FABIETTI, Walter (a cura di). Vulnerabilitá e transformazione dello spazio urbano. Firenze : Alinea, 1999; FABIETTI, Walter. Linee guida per la riduzione urbanistica del rischio sismico. Il ricupero dei centri storici di Rosarno e Melicucco. Roma : Inu, 2001; De PAOLI, Rosa Grazia. Rischio sismico e centri urbani. Verso nuove forme di pianificazione del territorio e di ricupero dei centri urbani. Milano : Franco Angeli, 2010, páginas 62, nota 9 e 75; PISTUCCI, Massimiliano. Le rete degli spazi aperti per l’emergenza. In : GALDERISI, Adriana. Città e terremoti. Metodi e tecniche per la mitigazione del rischio sismico. Roma : Gangemi, 2004, página 172.) Ainda em fase de elaboração artigo de nossa lavra defendendo que a estrutura urbana deve proporcionar um mínimo existencial garantidor de direitos fundamentais, aquém do qual caberia a dedução de direitos subjetivos e de sua respectiva judicialização. Assunto que retomaremos, com a devida vênia, em momento mais oportuno. Aliás, o mínimo existencial deve ser o limiar do tolerável no que toca à organização dos espaços. As intervenções hão de, sempre, construir ao menos acima desse “piso”, prestigiando e respeitando aqueles que ali vivem.

303 Para Jorge Miranda, a organização dos espaços habitáveis, especificamente sob a forma do ordenamento do território, assume feição de tarefa fundamental do Estado Português (constante, ademais, de disposição expressa da Constituição da República de Portugal, em seu artigo 9º, alínea “e”). O direito do ordenamento adquire, à luz da “Lei Básica, uma dimensão concomitantemente objectiva e subjectiva – a de elemento institucional e organizatório e a de feixe de direitos fundamentais e de situações subjectivas e conexas ou afins.” E embora contemplado o direito do ordenamento no título Título III, da Parte I, da Constituição Portuguesa (que trata dos “Direitos e deveres económicos, sociais e culturais”), também se projeta no “domínio dos direitos fundamentais. (In : MIRANDA, Jorge. O Ordenamento do Território e Constituição (sobre a constitucionalidade do Decreto-Lei 351/93). In : MIRANDA, Jorge. Escritos vários sobre direitos fundamentais. São João do Estoril : Princípia, 2006, p. 340 e seguintes.)

304 Podemos mencionar, com fito meramente exemplificativo, alguns trabalhos e diplomas legais que realçam o papel do direito urbanístico na concretização de direitos dos mais variados : a) educação e políticas públicas urbanas : SOLÉ, Juli Ponce. Segregación escolar e inmigración : contra los guetos escolares : derecho y políticas públicas urbana. Madrid : Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2007; b) planejamento

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monotemática, e um de cada vez. Ao contrário. As intervenções no tecido urbano enfeixam

inúmeros direitos e deveres, e impactos nestes. Aqui, apenas com o fito de simplificação

didática, trataremos de alguns direitos específicos, nomeadamente o direito à segurança e à

saúde.

Importante reconhecermos também que as ferramentas de intervenção no tecido

urbano não se mostram com a solução única e última para preservar direitos e para

enfrentar o risco. Não se trata de um suposto remédio para todos os males e muito menos de

um caminho apto a eliminar definitivamente o risco em nossas vidas, meta ilusória e

inatingível. Nada obstante, a organização dos espaços habitáveis pode, sim, contribuir para

a concretização de direitos dos mais diversos. E negligenciar mencionada aptidão

certamente não auxiliará nessa tarefa de concretização de direitos e do devido

enfrentamento do risco.

Neste capítulo desdobraremos nossos argumentos em duas vertentes distintas.

Numa primeira vertente, abordaremos as possibilidades do direito urbanístico na

concretização de direitos. Em seguida ingressaremos no tema do risco, sua conceituação,

sua tradução para o mundo do direito e as possibilidades de seu enfrentamento mediante a

urbano e identidade cultural : NEILL, William J. V., Urban Planning and Cultural Identity. London : Routledge, 2004; c) planejamento territorial e mobilidade, encarada como verdadeira condição de participação na vida urbana : OLIVEIRA, Fernanda Paula. Transportes e Planeamento Territorial. In : Revista CEDOUA (Centro de Estudos de Direito do Ordenamento, do Urbanismo e do Ambiente – Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra), n. 30, Ano XV, 2012, páginas 09 a 26. d) direito urbanístico e direito à moradia : SAULE JUNIOR, Nelson. A proteção jurídica da moradia nos assentamentos irregulares. Porto Alegre : Sergio Antonio Fabris, 2004; e) direito urbanístico e liberdade de culto : e.1) SOLÉ, Juli Ponce (coordenação). Ciudades, derecho urbanístico y libertad religiosa : elementos comparados de Europa y Estados Unidos. Barcelona : Fundació Carles Pi i Sunyer, 2010; e.2) A concretização da inviolável liberdade de culto valendo-se de institutos de intervenção no tecido urbano também é objeto da legislação portuguesa. A Lei 16/2001, de 22 de junho, em seu artigo 28º, n. 2, impõe que os instrumentos de gestão territorial devem prever afetação de espaços para fins religiosos. Referido dispositivo assume a feição de diretriz, vinculando o planejador municipal, cujas opções devem guardar relação de compatibilidade com mencionada determinação; f) intervenção nos espaços e concretização de um direito à atividade física e desportiva : ainda valendo-se da legislação portuguesa, merece nota o Decreto Lei 5/2007, de 17 de janeiro, que dispõe em seu artigo 8º, n. 2 : “Os instrumentos de gestão territorial devem prever a existência de infra-estruturas de utilização colectiva para a prática desportiva”. Trata-se de disposição que assume a natureza de diretiva (retornaremos, com a devida vênia, ao tema das diretivas mais adiante, ao tratar de risco e direito urbanístico) e impõe aos planos municipais um dever de compatibilidade, ou seja, de que as opções tomadas pelo planejador municipal não lhe sejam contrárias ou incompatíveis.

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organização dos espaços e a utilização de ferramentas que podemos considerar como

pertencentes ao direito urbanístico.

1.8.3.2.3 – Direito urbanístico e direito à saúde

Iniciemos analisando a possibilidade da utilização de institutos de organização

territorial como meio para a concretização do direito à saúde, especificamente com vistas à

prevenção do consumo de substâncias305.

Conforme já ressaltamos em oportunidade distinta306 , a prevenção307 ao consumo

305 O consumo de substâncias é tema afeto, em nossa opinião, acentuadamente à saúde, sendo inclusive merecedor de atenção pela disciplina médica da psiquiatria. O Manual Estatístico de Transtornos Mentais, da Associação Americana de Psiquiatria (DSM-IV-TR) possui um capítulo que trata de desordens relativas ao consumo de substâncias, com menções específicas ao consumo de álcool (mencionamos, exemplificativamente, os códigos 303.90, 305.00, 291.0 e 291.2, que fazem alusão, respectivamente, à dependência, ao abuso, a delírios e à demência relacionados com o consumo do álcool), Cannabis (aqui também mencionamos, de forma exemplificativa, os códigos 304.30, 305.20, 292.81 e 292.xx, que tratam da dependência, do abuso, de delírios e de desordens psicóticas), cocaína (merecendo menção exemplificativa os códigos 304.20, 305.60, 292.81 e 292.xx, afetos à dependência, abuso, delírios e desordens psicóticas), nicotina (código 305.1, que corresponde à dependência) e até mesmo de cafeína (código 305.1, relativo à dependência), dentre outras substâncias. In : Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, Fourth Edition, Text Revision (DSM-IV-TR). American Psychiatric Association, 2000. O mencionado manual conta com uma quinta edição recentemente lançada em meio a polêmicas sobre eventual “medicalização” de condutas que, antes, não seriam merecedoras de atenção médica.

306 Conforme artigo que contou com a nossa participação: MATHIS, Ruy de, ROSSO, Maximiliano. Do consumo abusivo de substâncias e do dever estatal de proteção mediante intervenções no tecido urbano. In : COUTINHO, Nilton Carlos de Almeida (Coordenador). Advocacia e Direito Público : aspectos processuais, constitucionais, tributários e trabalhistas. Belo Horizonte : Del Rey, 2013, p. 173 – 201.

307 Com apoio em conceitos forjados no seio da medicina, fala-se em prevenção primária, secundária e terciária. A prevenção primária consiste em evitar que apareça o problema que se quer tratar, fortalecendo os recursos de que dispõe não apenas o indivíduo mas também o meio social em que este se encontra. A prevenção secundária, por sua vez, se orienta para evitar que os problemas se consolidem. Atua-se onde e quando o problema começa a se exteriorizar. Finalmente, na prevenção terciária trabalha-se para diminuir danos e evitar recidivas. Age-se quando o problema já se deflagrou, com políticas de reinserção social e de reabilitação (nesse sentido : GARRIDO, Vicente, STANGELAND, Per, REDONDO, Santiago. Principios de Criminología. 2ª edición. Valencia : Tirant Lo Blanch, 2001, p. 834 e 835; e 906).

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de drogas ou de álcool não apenas pode mas deve ser levada adiante mediante intervenções

de cunho espacial ou territorial.

O direito à saúde é reconhecido no ordenamento jurídico brasileiro como um direito

fundamental social, consoante preconiza o artigo 6º, da Carta Magna Brasileira308. E

enquanto dispositivo constitucional, goza de imediata aptidão para gerar efeitos309. Decerto

que podem decorrer das disposições constitucionais posições jurídicas e efeitos dos mais

variados. Especificamente no que toca aos direitos sociais, conforme ressalta Canotilho310,

os mesmos podem se encontrar positivados “sob a forma de normas programáticas,

definidoras de tarefas e fins do Estado”; ou, ainda, “na qualidade de normas de organização

atributivas de competência para a emanação de medidas relevantes no plano económico,

social e cultural;” uma terceira forma de positivação dos direitos sociais apresentada por

Canotilho faz alusão à “consagração constitucional de garantias institucionais (...)

obrigando o legislador a proteger a essência de certas instituições (família, administração

local, saúde pública)”; a positivação desses direitos pode se dar, inclusive, “como direitos

subjectivos públicos, isto é, como direitos inerentes ao espaço existencial dos cidadãos.”

Portanto, qualquer que seja sua forma de positivação, não se lhes pode negar eficácia e

consequente aptidão para gerar, imediatamente, deveres ao poder público.

Importante ressaltar que os direitos sociais fundamentais, onde se insere, no caso do

Brasil, o direito à saúde, contam também com a possibilidade de justiciabilidade imediata,

308 No que toca ao direito à saúde como um direito fundamental veja-se : SARLET, Ingo Wolfgang. Algumas considerações em torno do conteúdo, eficácia e efetividade do direito à saúde na constituição de 1988. Revista Diálogo Jurídico, Salvador, CAJ - Centro de Atualização Jurídica, nº. 10, janeiro, 2002. Disponível na rede mundial de computadores : <http://www.direitopublico.com.br>. Último acesso aos 06 de agosto de 2012. 309 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 8ª edição revista e atualizada. Porto Alegre : Livraria do Advogado, 2007, p. 262 e seguintes.

310 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Estudos sobre direitos fundamentais. 1ª edição, 3ª tiragem. São Paulo : Revista dos Tribunais; 2ª edição, Portugal : Coimbra, 2008, p. 37 e 38.

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conforme ensina Kazuo Watanabe311. Justiciabilidade que não se restringe ao “requisito

para acesso à justiça ou para o exame do mérito da ação, e sim o requisito para o

acolhimento, pelo mérito, da pretensão de tutela jurisdicional dos direitos fundamentais

sociais”312. Para Kazuo Watanabe, os direitos fundamentais sociais podem ser distribuídos

em três categorias : “I – os que correspondem ao núcleo básico do princípio da dignidade

da pessoa humana e configuram o chamado ‘mínimo existencial’; II – os que embora não

estejam referidos ao ‘mínimo existencial’, estão previstos em normas constitucionais de

‘densidade suficiente’ e por isso não são dependentes, para a judicialização, de prévia

ponderação do Legislativo ou do Executivo por meio de política pública específica; III – os

demais direitos fundamentais sociais, previstos em normas constitucionais de cunho

programático.” Prossegue Kazuo afirmando que, no seu entender, as duas primeiras

categorias “são imediatamente judicializáveis, independentemente de prévia definição de

política pública pelo Legislativo ou Executivo”. Não sendo invocável, no que toca ao

mínimo existencial, a denominada cláusula da reserva do possível.

Segue-se, na esteira do quanto afirmado nos parágrafos anteriores, que o direito à

saúde, enquanto direito fundamental social, impõe deveres dos mais diversos ao poder

público, consistindo num “direito fundamental completo”313. Diferentemente de direitos

que se esgotam em uma simples prestação fática, mencionado direito à saúde exige um

feixe de prestações fáticas e normativas. Que incluem desde a proteção contra terceiros

(e.g.: punição penal suficiente daqueles que se dedicam ao fornecimento e produção de

substâncias ilícitas) até medidas fáticas benéficas (e.g. : elaboração e implantação de planos

de ação relativos à venda de álcool a crianças e adolescentes) . E envolve um infindável 311 WATANABE, Kazuo. Controle jurisdicional das políticas públicas – “mínimo existencial” e demais direitos fundamentais imediatamente judicializáveis. In : GRINOVER, Ada Pellegrini. O controle jurisdicional de políticas públicas. Coordenadores : Ada Pellegrini Grinover, Kazuo Watanabe. Rio de Janeiro : Forense, 2011, p. 213 – 224.

312 WATANABE, Kazuo. Controle jurisdicional das políticas públicas – “mínimo existencial” e demais direitos fundamentais imediatamente judicializáveis. In : GRINOVER, Ada Pellegrini. O controle jurisdicional de políticas públicas. Coordenadores : Ada Pellegrini Grinover, Kazuo Watanabe. Rio de Janeiro : Forense, 2011, p.216.

313 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva, da 5ª edição alemã. São Paulo : Malheiros, 2008, p. 248 e seguintes.

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feixe de posições dentre as quais certamente se insere a questão da prevenção ao consumo

indevido de substâncias, inclusive por meio de intervenções no tecido urbano314. Sob pena

de remanescer insuficiente a proteção a ser conferida ao direito à saúde.

Feitas essas considerações, retomemos a questão específica da prevenção do

consumo de substâncias. Não obstante a eficácia já presente em normas de natureza

constitucional, foi mencionada prevenção objeto também de interposição legislativa

infraconstitucional, com prestígio também à realização de intervenções no tecido urbano315.

Sem ingressarmos numa análise mais aprofundada, mencionamos a Lei Federal n. 11.343,

de 23 de agosto de 2006, que institui o SISNAD316 e que prestigia não apenas a repressão,

mas também a prevenção, conforme seu artigo 3º, incisos I e II. Mencionado diploma legal,

em seu artigo 19, fornece princípios e diretrizes específicos à prevenção ao uso de drogas,

impondo em seu inciso V “a adoção de estratégias preventivas diferenciadas e adequadas às

especificidades socioculturais das diversas populações, bem como das diferentes drogas

utilizadas”. Cumpre ressaltar que apontadas estratégias preventivas não podem prescindir

314 À semelhança, mas tratando do direito do meio ambiente saudável, Alexy (In : ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva, da 5ª edição alemã. São Paulo : Malheiros, 2008, p. 443) inclui dentre os direitos que podem ser incorporados a esse feixe, tais como : “um direito a que o Estado se abstenha de determinadas intervenções no meio ambiente (direito de defesa), um direito a que o Estado proteja o titular do direito fundamental contra intervenções de terceiros que sejam lesivas ao meio ambiente (direito a proteção), um direito a que o Estado inclua o titular do direito fundamental nos procedimentos relevantes para o meio ambiente (direito a procedimentos) e um direito a que o próprio Estado tome medidas fáticas benéficas ao meio ambiente (direito a prestação fática).”

315 A questão da repartição de competências, embora fundamental, não será objeto da presente exposição. Nada obstante, verificam-se deveres inerentes aos três entes federativos no que diz respeito a intervenções no tecido urbano. Compete concorrentemente à União, Estados e Distrito Federal legislar sobre direito urbanístico, devendo a União se limitar a estabelecer normas gerais (conforme artigo 24, caput, e seu parágrafo 3º, ambos da Constituição Federal). Sendo possível ao Município legislar sobre assuntos de interesse local, assim como suplementar a legislação federal e estadual naquilo que couber (artigo 30, incisos I e II, da Constituição Federal). Da mesma forma, Estado, União, Distrito Federal e Municípios detêm competência material comum para, por exemplo, para promover a construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico, nos termos do artigo 23, inciso IX, da Constituição Federal. Competindo aos Municípios a edição de plano diretor (artigo 182, parágrafo 1º, da Lei Maior), assim como a promoção do adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento, e da ocupação do solo urbano (artigo 30, inciso VII, da Constituição Federal).

316 Diploma legal que, nos termos se seu artigo 1º : “Institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas – Sisnad; prescreve medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas; estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas; define crimes e dá outras providências.”

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de intervenções no espaço, especialmente para dotá-lo de adequada infraestrutura,

conforme imposição do inciso IX, do artigo 19, da Lei de Tóxicos, o qual determina “o

investimento em alternativas esportivas, culturais, artísticas, profissionais, entre outras,

como forma de inclusão social e de melhoria da qualidade de vida”.

Da mesma forma, a prestigiar as atividades de prevenção com respaldo na

infraestrutura espacial, notadamente em estabelecimentos de ensino, encontramos a diretriz

estampada no inciso XI , do artigo 19, da Lei Federal 11.343/2006, que determina “a

implantação de projetos pedagógicos de prevenção do uso indevido de drogas, nas

instituições de ensino público e privado”.

Merece menção, também, a Política Nacional sobre o Álcool, positivada por meio

do Decreto Federal n. 6.117, de 22 de maio de 2007. Referido diploma explicita a inegável

associação do consumo de álcool com a aspectos afetos à saúde e também à violência (item

1, dos Objetivos do Plano, assim como seu Anexo II). E prestigia a atividade de prevenção,

a qual deve ser devidamente inserida no bojo do planejamento estatal (artigo 3º, do Decreto

Federal 6117, de 22 de maio de 2007). Dentre as diretrizes da Política Nacional (item 6, do

Plano de Ação), incluem-se diversas intervenções espaciais orientadas à redução do

consumo indevido de álcool, tais como : ter uma rede de cuidados acessível aos usuários e

que contemple em seu planejamento as lógicas de território (6.7); “facilitar o acesso da

população à alternativas culturais e de lazer” (6.11); estimular e fomentar medidas que

restrinjam, espacial e temporalmente, os pontos de venda e consumo de bebidas alcoólicas

(6.13); estimular ações de prevenção em instituições de ensino (6.17). E, finalmente, em

claro prestígio ao princípio da eficiência, impondo a criação de mecanismos para avaliar os

impactos das ações propostas e implementadas (Item 6.20, do Plano que segue anexo ao

Decreto 6117, de 22 de maio de 2007).

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As normas do direito urbanístico fornecem densidade ainda maior para adoção de

atividades de planejamento e de dotação de infraestrutura quando das intervenções no

tecido urbano, em harmonia com as exigências de prevenção prestigiadas na legislação

especial afeta ao consumo de substâncias. Nesse sentido, as diretrizes gerais da política

urbana externadas pelo artigo 2º, da Lei Federal 10.257, de 10 de julho de 2001, a impor

exemplificativamente : a garantia do direito a cidades sustentáveis e que envolve, dentre

outras exigências, o direito a infraestrutura urbana, trabalho e lazer, não apenas para as

presentes mas para as futuras gerações (ar. 2º, inciso I); a imposição do planejamento como

instrumento para evitar as distorções do crescimento e seus efeitos negativos sobre o meio

ambiente (art. 2º, inciso IV); a necessidade de uma adequada oferta de equipamentos

urbanos e comunitários (art. 2º, inciso V).

Questões afetas ao direito à saúde podem, ainda, ser vertidas para o interior de

planos e projetos de intervenção no tecido urbano, conforme ocorre na Grã-Bretanha317,

com previsão inclusive de estudos de impacto de igualdade, dirigidos a diagnosticar as

desigualdades produzidas na área de saúde em razão de planos, projetos ou políticas. São

avaliações que se incorporam, como elemento essencial, ao plexo de atos formadores de

planos, projetos e políticas públicas e que necessariamente nortearão a tomada de decisões

dos atores envolvidos318, prestigiando também o direito fundamental à saúde319.

317 Sobre a diversidade de instrumentos de avaliação de impacto cabíveis no contexto da Grã-Bretanha, veja-se : WALKER, Gordon. Environmental justice, impact assessment and the politics of knowledge: The implications of assessing the social distribution of environmental outcomes. In : Environmental Impact Assessment Review n. 30 (2010), p. 312–318. As avaliações de impacto, além de fornecerem uma análise sistemática dos impactos diversos decorrentes de projetos, planos e propostas, também permitem a adequada participação dos diversos atores interessados. 318 Acerca das barreiras e dos facilitadores concernentes à inserção da avaliação de impactos na área da saúde nos Estados Unidos da América e na Grã-Bretanha veja-se : CARMICHAEL, Laurence, BARTON, Hugh, GRAY, Selena, LEASE, Helen, PILKINGTON, Paul. Integration of health into urban spatial planning through impact assessment: Identifying governance and policy barriers and facilitators. In : Environmental Impact Assessment Review, Volume 32, Issue 1, January 2012, Pages 187-194.

319 Concernente aos deveres das autoridades públicas no sentido de salvaguardar a saúde de seus cidadãos, ante os olhos da Corte Europeia de Direitos Humanos : HART, David. Health impact assessment : where does the law come in. In : Environmental Impact Assessment Review, 24 (2004), p. 161–168.

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A organização dos espaços ostenta aptidão para contribuir à concretização do direito

à saúde. Sem embargo, conforme alerta Reynaldo Mapelli Júnior, a inadequada organização

desses mesmos espaços pode conduzir à formação de verdadeiras áreas de risco

“identificadas como aqueles locais onde são negadas ou reduzidas as condições para a

plena saúde da população, núcleos habitacionais onde um conjunto de fatores determinantes

potencializam as condições adversas de saúde. Nesses núcleos habitacionais formam-se

verdadeiros ‘cenários de risco’ para a saúde dos moradores”.320 Risco que também pode se

referir ao consumo abusivo de substâncias.

Portanto, a forma pela qual se leva a cabo a organização dos espaços pode prestigiar

ou vulnerar direitos afetos à saúde. Nos termos do quanto tratado até aqui, notadamente o

direito à saúde em sua dimensão relativa ao consumo de substâncias e sua prevenção. Age-

se hoje no tecido urbano para evitar eventos danosos futuros. São instrumentos e

ferramentas de dimensão espacial destinadas a enfrentar o risco à saúde. Risco esse que

pode tanto ser potencializado mediante intervenções insensatas (ou pela ausência de

intervenções), como também devidamente enfrentado por intermédio dessas mesmas

intervenções.

1.8.3.2.4 – Direito urbanístico e direito à segurança

Dentre os direitos que podem ser prestigiados pela organização espacial podemos

também incluir o direito à segurança.

320 MAPELLI JÚNIOR, Reynaldo. O Sistema Único de Saúde e as áreas de risco. In : Temas de Direito Urbanístico 6. Coordenação : Jorge Luiz Ussier. Organização : Mário Augusto Vicente Malaquias. São Paulo : Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2011, p. 346

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Conforme defenderemos em trabalho ainda em fase de elaboração321, intervenções

no ambiente artificial têm aptidão para concretizar um direito à segurança em suas diversas

dimensões. Segurança entendida aqui não apenas como combate à criminalidade, mas

também, num sentido mais lato, como contrapartida normativa do ilegal, do instável,

daquilo que se situa aquém de um mínimo existencial.

Referido direito à segurança assume, no ordenamento brasileiro, a feição de direito

e garantia fundamental, individual, coletivo e social, consoante os artigos 5º, caput e 6º, da

Constituição Federal do Brasil. Direito esse que se concretiza das mais variadas formas, tais

como, por exemplo, a promoção e garantia de : segurança da incolumidade, mediante a

proteção do direito à vida, à integridade física e ao patrimônio322; segurança jurídica, por

meio da adequada organização de instituições aptas a resolver conflitos de forma

tempestiva e efetiva323; promoção de segurança no trabalho324; segurança da posse,

mediante a regularização fundiária e a promoção do devido acesso à moradia e à terra325;

segurança afeta à saúde mental, por meio da adequada oferta de equipamentos públicos

destinados ao atendimento326; segurança ambiental, não apenas preservando mas também

321 E objeto de estudos de doutoramento na Universidad Complutense de Madrid, sob a orientação dos Professores Doutores Juan Ramón Fernández Torres e Maria Astrid Muñoz Guijosa.

322 Preconizado como dever do Estado, nos termos do artigo 144, da Constituição Federal.

323 Cabe referência, aqui, apenas com o fito exemplificativo, aos incisos XXXIV, alínea a (direito de petição), LIV (devido processo), LV (garantia do contraditório e da ampla defesa), LXXIV (assistência jurídica), LXXVIII (celeridade processual), todos do artigo 5º, da Carta Magna, garantidores do adequado acesso à Justiça;

324 Segurança que recebe menção expressa, no campo do trabalho, no artigo 7º, inciso XXII, da Lei Maior brasileira.

325 A qual recebe a devida densidade legislativa por meio, dentre outras, dos artigos 46 e seguintes, da Lei Federal 11.977, de 7 de julho de 2009.

326 Nesses termos, a Lei Federal 10.216, de 6 de abril de 2001, a qual, em seu artigo 3º, determina que é “responsabilidade do Estado o desenvolvimento da política de saúde mental, a assistência e a promoção de ações de saúde aos portadores de transtornos mentais, com a devida participação da sociedade e da família, a qual será prestada em estabelecimento de saúde mental, assim entendidas as instituições ou unidades que ofereçam assistência em saúde aos portadores de transtornos mentais.”

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restaurando os processos ecológicos essenciais327.

Ainda que o conceito “segurança” não se restrinja apenas à sua dimensão criminal,

conforme já ressaltado, os trabalhos desenvolvidos no campo da criminologia são de grande

auxílio para a compreensão da importância da organização dos espaços à concretização do

direito à segurança.

Iniciemos com um singelo exemplo para melhor ilustrar a importância da

organização dos espaços na promoção da segurança. Tomemos a cidade de São Paulo, no

Brasil : a urbe contava em 2010, conforme censo do IBGE, com mais de 11 milhões de

habitantes, sendo 99,1 % de seus domicílios situados em zona urbana. A cidade, que ocupa

uma área superior a 1.500 quilômetros quadrados, ostentava à época um Produto Interno

Bruto de quase 390 bilhões de reais (2009), um total de 3.574.286 domicílios e de 517.711

empresas, predominantemente dedicadas à prestação de serviços328. Não bastasse a

magnitude da cidade, São Paulo integra uma região metropolitana que inclui outros 38

Municípios e cuja população ascende à cifra dos 20 milhões de habitantes329, cada um dos

entes Municipais dispondo de um Poder Legislativo e Executivo próprios, além de

características, vocações e problemas peculiares330.

327 Artigo 225, parágrafo 1º, inciso I, da Constituição Brasileira.

328 Dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia Estatística) relativos, quando pertinente, ao censo de 2010. A população exata revelada pelo censo é de 11.253.503 habitantes. A área da unidade territorial é de 1.523,278 quilômetros quadrados. PIB registrado em 2009 (em reais) : R$ 389.317.167.000,00.

329 IBGE – Estimativa Populacional 2011 – o número exato é de 19 822 572 habitantes.

330 No tocante à região metropolitana de São Paulo, em sua perspectiva normativa, veja-se a Lei Complementar do Estado de São Paulo 1.139, de 16 de junho de 2011. Os municípios que integram a região metropolitana, além, é claro, da própria cidade de São Paulo, são : Caieiras, Cajamar, Francisco Morato, Franco da Rocha, Mairiporã, Arujá, Biritiba-Mirim, Ferraz de Vasconcelos, Guararema, Guarulhos, Itaquaquecetuba, Mogi das Cruzes, Poá, Salesópolis, Santa Isabel, Suzano, Diadema, Mauá, Ribeirão Pires, Rio Grande da Serra, Santo André, São Bernardo do Campo, São Caetano do Sul, Cotia, Embu, Embu-Guaçu, Itapecerica da Serra, Juquitiba, São Lourenço da Serra, Taboão da Serra, Vargem Grande Paulista, Barueri, Carapicuíba, Itapevi, Jandira, Osasco, Pirapora do Bom Jesus e Santana de Parnaíba. Cidades que sofrem influencia da Capital assim como, por sua vez, também influenciam a cidade de São Paulo.

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Dentro da própria cidade encontramos um quadro marcado pela diversidade e pela

desigualdade. São Paulo se encontra dividida em 31 subprefeituras, as quais agregam 96

distritos331, cada qual com um perfil distinto. Referida desigualdade foi tratada em pesquisa

realizada por organização não governamental denominada “Rede Nossa São Paulo”332.

O estudo coleta informações de fontes distintas sobre uma série de indicadores tais

como violência, saúde, educação, habitação, dentre outros e os compara entre os diferentes

distritos e subprefeituras, com ênfase na demonstração da extrema desigualdade que existe

na cidade.333

Dos 96 distritos de São Paulo, 58 não contam com centros culturais ou cinemas, 53

não dispõem de teatros, 26 não têm nenhum leito hospitalar e 56 não reúnem qualquer

quadra ou espaços para praticar esportes.

Temos distritos onde a taxa de homicídios por cem mil habitantes é zero, tais como

Alto de Pinheiros334, Aricanduva335, Barra Funda336. Da mesma forma, contamos com

331 Da divisão em distritos, veja-se o inciso IV, do artigo 30, da Constituição Federal do Brasil.

332 As informações podem ser consultadas no sítio da organização : www.nossasaopaulo.org.br (última consulta realizada em fevereiro de 2012). Decerto que nos é possível, sempre, questionar metodologia empregada ou dados coletados. Da mesma forma, as conclusões eventualmente extraídas de tais estudos se mostram sempre abertas a escrutínio mais rigoroso. O presente trabalho não tem a menor pretensão de levar adiante uma análise estatística mais aprofundada dos dados apresentados, haja vista que se afastaria de escopo. Nada obstante, os dados apresentados servem, sim, para mostrar uma absoluta ausência de estruturas à disposição da população, muitas vezes em áreas onde a violência parece ter uma presença mais acentuada. Pode não ser possível afirmar-se com rigor estatístico que a falta de tais estruturas gera violência. Mas também não se pode, de plano, negar peremptoriamente tais influências. Necessário, a nosso ver, um aprofundamento no assunto, mormente quando da realização das intervenções urbanas, sob pena de deixar-se a descoberto a segurança de seus habitantes. Planejar uma cidade não se limita apenas a dizer onde se pode e onde não se pode construir.

333 Os dados referem-se ao ano de 2010. Os dados populacionais do estudo aqui reproduzidos têm como fonte o IBGE/Censo Demográfico 2010.

334 Distrito situado na zona oeste da cidade de São Paulo, com 43.117 habitantes.

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distritos que não registraram qualquer homicídio juvenil, quais sejam, Barra Funda e

Pinheiros. Por outro lado, há distritos onde as taxas são alarmantemente altas. O distrito de

Socorro337 apresentou, no ano de 2010, uma taxa de 144,30 homicídios juvenis por cem mil

habitantes338. Distritos como Brasilândia, Grajaú, Jardim Ângela, Capão Redondo, ou

Sapopemba, que serão tratados com maior profundidade a seguir, registraram

respectivamente o seguinte número absoluto de homicídios no ano de 2010 : 44, 54, 55, 50

e 34.

Tomaremos como exemplo, sem a pretensão de esgotar o tema, alguns distritos

onde os indicadores de violência são altos, e, como contraponto, distrito dentre os mais

seguros, verificando a disponibilidade, ou não, de equipamentos públicos dos mais

diversos, assim como indicadores relacionados a emprego ou educação.

Iniciemos pelo distrito de Brasilândia. Trata-se de região situada na zona norte da

cidade de São Paulo e que conta com 264.918 habitantes, população que supera a de muitas

cidades, seja no Brasil, seja no exterior. Pois bem, tomando-se apenas os indicadores de

violência acima apresentados, verificamos taxas de homicídio de 16,61 por cem mil

habitantes. E de homicídio juvenil no preocupante patamar de 47,49 por cem mil

habitantes. Esse mesmo distrito não conta com nenhum acervo de livros infanto-juvenis339

335 Localizado na zona leste da cidade. Apresenta uma população de 89.922 habitantes.

336 Situado na zona oeste da urbe, ostentando uma população de 14.383 habitantes.

337 Distrito da zona sul de São Paulo, com 37.783 habitantes.

338 Conforme dados colhidos junto às Nações Unidas, as taxas globais de homicídios são as seguintes (homicídios por cem mil habitantes – dados relativos a 2010) : Taxa mundial – 6,9; África – 17,4; Américas – 15,5; Oceania – 3,5; Europa – 3,5; Ásia -3,1; A taxa global de homicídios de homens, com idade entre 15 e 29 salta para mais de 20 ocorrências para cada grupo de cem mil habitantes. As Informações foram colhidas na rede mundial de computadores : www.unodc.org/documents/data-and-analysis/statistics/Homicide/Globa_study_on_homicide_2011_web.pdf (última consulta realizada em marços de 2012).

339 Critério adotado pelo estudo : número de livros infanto-juvenis disponíveis em acervos de bibliotecas e pontos de leitura municipais por habitante na faixa etária de 7 a 14 anos, não contabilizadas as bibliotecas dos centros educacionais CEUs.

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ou adultos340 em bibliotecas. Tampouco há no distrito cinemas, centros culturais, salas de

show ou concertos, teatros, leitos hospitalares ou mesmo equipamentos esportivos. Dos

domicílios, 30,36 % são em favelas. Tem taxas de emprego enquadradas na faixa mais

baixa para a cidade. Apesar da demanda por creches e pré-escola se ver atendida em

patamar acima da média para a cidade, a qualidade do ensino341 é abaixo da média.

Na Zona Sul de São Paulo, o distrito do Jardim Ângela, com 295.434 habitantes,

registrou 55 homicídios em 2010 (taxa de 18,62 por cem mil habitantes). A taxa de

homicídios juvenis atingiu o patamar de 57,64 por cem mil habitantes (foram 24

homicídios no ano de 2010). Não há no distrito centros culturais, cinemas, equipamentos

esportivos, teatros, salas de show ou concertos. Os acervos de livros disponíveis à

população, assim como a disponibilidade de leitos hospitalares, ou, ainda, o atendimento da

demanda de vagas em creches pré-escolas e o nível de emprego estão entre os piores da

cidade. Do total de domicílios, 24,93% são em favelas.

O distrito do Capão Redondo, também na zona sul, com 268.729 habitantes,

apresenta igualmente altas taxas de violência : foram 50 homicídios em 2010 (18,61 por

cem mil habitantes). E, ainda, uma taxa de 62,45 homicídios juvenis por cem mil

habitantes. De seus domicílios, 31,24% se encontram em favelas. O distrito não dispõe de

acervo de livros, sejam eles infanto-juvenis ou para adultos, e tampouco centros culturais,

teatros, museus, salas de show e concertos, equipamentos esportivos. Tem nível de

emprego, disponibilidade de leitos hospitalares, demandas atendida em creches (apenas

37,09 % da demanda é atendida) e pré-escola, assim como qualidade do ensino dentre os

piores da cidade.

340 Critério adotado pelo estudo : número de livros disponíveis em acervos de bibliotecas e pontos de leitura municipais por habitante na faixa etária de 15 anos ou mais , não contabilizadas as bibliotecas dos centros educacionais CEUs.

341 Critério adotado pelo estudo : valeu-se o estudo do Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica) que combina informações de desempenho em exames padronizados com informações sobre rendimento escolar.

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O distrito de Sapopemba na zona leste de São Paulo, registrando uma população de

284.524 habitantes no ano de 2010 é outro distrito que ostenta altas taxas de violência. No

ano de 2010 foram registrados 34 homicídios na localidade (taxa de 11,95 por cem mil

habitantes). E os homicídios juvenis atingiram a marca de 55,35 por cem mil habitantes. De

seus domicílios, 24,11 % se encontram em favelas. À semelhança dos distritos acima, não

conta com cinemas, centros culturais, museus, salas de concertos ou teatros. Ostenta, ainda,

as piores taxas dentre os distritos no que diz respeito a leitos hospitalares, equipamentos

esportivos e empregos.

Como contraponto, elegemos o distrito de Pinheiros, apontado, em princípio, como

seguro no que toca às estatísticas relativas a número de homicídios. Trata-se de bairro da

zona oeste da cidade e que conta com 65.364 habitantes. Apenas 0,09% de seus domicílios

são em favelas. Está dentre os melhores distritos no que diz respeito à existência de centros

culturais, cinemas, equipamentos culturais públicos, museus, salas de shows ou concertos e

teatros ou mesmo empregos. Mas mesmo em Pinheiros, há também indicadores abaixo da

média, tal qual ocorre com presença de equipamentos esportivos ou, ainda, de leitos

hospitalares.

Portanto, temos em zonas muito violentas uma ausência quase que completa de

equipamentos342 de lazer, de saúde ou mesmo de cultura, assim como baixos índices de

emprego e problemas de regularização de ocupações, muitas das quais em favelas e quase

342 Cremos que, todavia, a mera existência de equipamentos, sem nenhuma funcionalidade, ou seja, sem cumprir adequadamente com qualquer função, além de ser situação violadora, no mínimo, do princípio da eficiência, pouco ajuda. “Encaixar” artificialmente equipamentos pelo território, sem um planejamento para seu uso adequado e sem que os mesmos sejam adequadamente estruturados para efetivo uso. Revelam desconhecimento das componentes psicológicas e sociológicas que são inerentes àquele equipamento, e que condicionarão seu uso. Sem embargo, cremos que a existência de referidas estruturas são o ponto de partida para iniciar qualquer política de concretização de direitos.

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certamente desprovidas de título de propriedade, ou mesmo do devido licenciamento de

suas construções.

O exemplo acima exposto não nos permite concluir, com o necessário rigor

científico, que a ausência de equipamentos gera violência. Referida afirmação certamente

desbordaria o objeto do presente trabalho e exigiria um uso mais escrupuloso de estudos

estatísticos. Mais importante do que o exemplo em si é a ideia que desejamos reforçar, qual

seja : da distribuição espacial desigual de condutas violadoras de direitos – e da importância

de não se descurar de referida circunstância quando da realização de intervenções no tecido

urbano. Da importância, ainda, de tentar compreender referidos processos e buscar não

apenas controlar tais atividades mas também preveni-las. Em princípio, o risco de novas

vulnerações de direitos em referidas regiões, em especial em detrimento de populações

mais vulneráveis, como o são os jovens, se encontra em estado de latência. E exige, hoje,

sua devida representação, para permitir ações no presente destinadas a evitar danos futuros,

a evitar o risco a direitos. Ações que incluem certamente intervenções no tecido urbano.

E ainda que não possamos extrair uma relação de causalidade dos dados acima

trazidos, não há como ignorar o arcabouço teórico existente, em especial aquele extraído da

criminologia, concernente à importância da organização dos espaços na promoção do

direito à segurança343.

Mais importante do que buscar padrões é realçar o papel potencialmente ocupado

pela organização dos espaços habitáveis nesse contexto. E explicitar a importância da

adequada inserção, na construção de políticas públicas destinadas à promoção do direito à

343 A acentuar o importante papel ocupado pelo direito urbanístico na promoção do direito à segurança veja-se ainda : CARMONA, Paulo Afonso Cavichioli. A Violência Urbana e o Papel do Direito Urbanístico. Tese de Doutorado em Direito apresentada na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, no ano de 2012. E também : GIMENO, Iñigo Ortiz de Urbina; SOLÉ, Juli Ponce. Convivencia ciudadana, seguridad pública y urbanismo. Diez textos fundamentales del panorama internacional. Barcelona : Fundación Democracia y Gobierno Local, 2008.

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segurança em todas as suas vertentes, da preocupação com a organização dos espaços.

Mencionada organização de espaços acaba por assumir, nesses termos, um duplo e

aparentemente paradoxal papel, tanto de “causa” quanto de “remédio” : a organização

espacial na gênese do crime e, ao mesmo tempo, organização espacial como um

instrumento para controle e repressão de delitos, e, em consequência, para preservação de

bens jurídicos caros tais como a vida, a incolumidade física, o patrimônio, a liberdade

sexual, dentre outros. A organização espacial norteada pelo risco a esses direitos, buscando

preservá-los antes que sejam eles vulnerados, muitas vezes de forma irreversível.

Desenvolveremos um pouco mais os argumentos trazidos no parágrafo anterior,

alicerçados, por força de corte epistemológico, nos trabalhos da criminologia voltados à

prevenção de delitos. Sendo certo que em muitos desses modelos as intervenções de cunho

espacial assumem um papel de relevância, auxiliando, assim, no enfrentamento do risco à

segurança em suas diferentes manifestações.

Na mencionada seara da prevenção de delitos convivem teorias das mais diversas.

Para a criminologia clássica, o delito consiste tão somente num mero enfrentamento formal,

simbólico e direto entre Estado e infrator que lutam entre si de forma solitária e isolada.

Um conflito entre o bem e o mal, entre a luz e as trevas. Aos olhos do mencionado modelo

criminológico, a punição do criminoso esgota a resposta estatal. E, nesse contexto, a vítima

e a reparação dos danos causados a esta desaparecem. Da mesma forma, tampouco há

qualquer preocupação com a ressocialização do infrator, encarada como mito inútil ou

eufemismo piedoso344.

Dentro da criminologia clássica o papel ocupado pela organização dos espaços

como ferramenta destinada à prevenção do crime é pouco relevante. Pior ainda : ações

344GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antonio. Tratado de Criminología. 4ª edición actualizada, corregida y aumentada. Valencia : Tirant Lo Blanch, 2009, p. 902.

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orientadas por essa perspectiva podem reverberar de forma negativa na organização

espacial, mediante a segregação dos “diferentes” e supostamente tidos como aqueles de

maior propensão delitiva (e.g. : pobres, imigrantes, minorias étnicas e religiosas) e a

proliferação da construção de estabelecimentos prisionais para recepcionar uma população

carcerária cada vez maior.

Nada obstante, aos olhos da moderna criminologia345, se reconhece o rol ativo e

dinâmico dos protagonistas do fato delitivo (delinquente, vítima e comunidade), assim

como a relevância de fatores diversos que interagem nesse cenário criminal. A impor uma

serena análise de sua etiologia, sua gênese, sua dinâmica e a um debate acerca dos meios

adequado para o seu enfrentamento no bojo do Estado Social e Democrático de Direito.

Neste modelo o castigo do infrator não esgota o enfrentamento do crime, o qual deve

também incluir, dentre outras medidas, a ressocialização do delinquente, a reparação da

vítima.

Do ponto de vista metodológico, a moderna criminologia impôs um giro qualitativo

à prevenção da delinquência : para além da leitura do aspecto clínico individual de

infratores, busca-se uma previsão científica dos fatores de risco, ponderando-se

informações das fontes mais diversas sobre tais fatores e sua avaliação empírica346. Aqui,

acrescentamos, melhor do que esperar o delito acontecer é conhecer sua dinâmica,

antecipar-se. O que apenas é possível mediante uma representação do futuro, mediante a

construção, hoje, do conceito de risco.

No que toca à prevenção, trata-se também de conceito que tampouco goza de

univocidade ou consenso na seara da criminalística. Como bem anota Antonio García- 345 GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antonio. Tratado de Criminología. 4ª edición actualizada, corregida y aumentada. Valencia : Tirant Lo Blanch, 2009, p. 903.

346 GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antonio. Tratado de Criminología. 4ª edición actualizada, corregida y aumentada. Valencia : Tirant Lo Blanch, 2009, p. 903 – 904.

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Pablos de Molina347, para alguns a prevenção se identifica como o mero efeito dissuasório

da pena. A prevenção é, assim, concebida como prevenção criminal (eficácia preventiva da

pena) e age no processo motivacional do infrator, dissuadindo-o.

Outros autores consideram que a prevenção é alcançada por meio de instrumentos

não criminais, que alteram o cenário penal mediante modificações de fatores ou elementos

relacionados com a prática do delito, tais como alterações no espaço físico, no desenho

arquitetônico e urbanístico, no comportamento das vítimas, dentre outros). Há ainda

doutrinadores que apontam para a prevenção como o produto de ações direcionadas ao

apenado, de forma a evitar sua reincidência.348

Sem embargo, prossegue García-Pablos, prevenir é mais do que simplesmente

dificultar o cometimento do delito, ou mesmo dissuadir condutas por meio da ameaça da

punição. A prevenção não pode se desligar da gênese do fenômeno criminal, mas deve, sim,

ter uma perspectiva etiológica, reclamando por uma intervenção dinâmica e positiva, que

neutralize as causas do crime, as quais permanecerão intactas com a mera dissuasão349.

Conforme sua maior ou menor relevância etiológica, a prevenção pode ser

classificada como primária, secundária ou terciária350.

347 GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antonio. Tratado de Criminología. 4ª edición actualizada, corregida y aumentada. Valencia : Tirant Lo Blanch, 2009, p. 904.

348 GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antonio. Tratado de Criminología. 4ª edición actualizada, corregida y aumentada. Valencia : Tirant Lo Blanch, 2009, p. 904.

349 GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antonio. Tratado de Criminología. 4ª edición actualizada, corregida y aumentada. Valencia : Tirant Lo Blanch, 2009, p. 905.

350 GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antonio. Tratado de Criminología. 4ª edición actualizada, corregida y aumentada. Valencia : Tirant Lo Blanch, 2009, p. 905 - 907

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A prevenção primária se orienta para a raiz do problema criminal, buscando

eliminá-lo antes mesmo que se manifeste. Busca criar os pressupostos necessários para

resolver situações de carência criminógena, atuando, exemplificativamente, nos âmbitos da

educação e da socialização, da moradia, do trabalho, do bem-estar social e da qualidade de

vida. Obra a médio e longo prazo, tendo como destinatários todos os cidadãos. É alcançada

por meio de políticas culturais, econômicas e sociais.

Aqui, apenas exemplificativamente, acesso à moradia digna, oferta de lazer sadio e

de educação adequada ou mesmo disponibilidade de serviços os mais comezinhos são

alguns dos instrumentos aptos a alcançar dita prevenção, ações com evidente ancoragem

espacial.

A prevenção secundária envolve ações levadas a cabo mais tarde, no momento em

que o conflito criminal se manifesta, se exterioriza. Orienta-se seletivamente, tendo como

destinatários grupos ou subgrupos em situação de maior risco. Incluem-se aqui programas

de prevenção policial, de ordenação urbana e de utilização do desenho arquitetônico como

instrumento de proteção351.

Por fim, a prevenção terciária entra em cena quando o problema já se instalou.

Possui, nesses termos, destinatários perfeitamente identificados, tais como a população

encarcerada. Agrupam-se aqui os programas ressocializadores e destinados a evitar a

reincidência352.

Longe de serem mutuamente excludentes, cada uma dessas frentes atende a 351 GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antonio. Tratado de Criminología. 4ª edición actualizada, corregida y aumentada. Valencia : Tirant Lo Blanch, 2009, p. 906.

352 GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antonio. Tratado de Criminología. 4ª edición actualizada, corregida y aumentada. Valencia : Tirant Lo Blanch, 2009, p. 907

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objetivos específicos. Os programas, nesses termos devem se complementar para atingir a

um fim maior que é a preservação de direitos caros como a vida e a integridade física,

dentre outros.

Os programas de prevenção são inúmeros e se distribuem por uma ampla gama de

frentes e de métodos. Mais importante do que o programa em si é, conforme pontuamos no

parágrafo anterior, como ele se insere dentro de um quadro maior destinado, em última

análise, a promover de forma ampla a segurança, principalmente resgatando jovens das

garras do mundo do delito e preservando vidas e integridade física. Visões monotemáticas

da questão da segurança, em especial aquelas calçadas apenas no efeito dissuasório da

pena353, serão pouco efetivas. Passaremos a uma breve análise dos principais programas de

prevenção, pontuando acerca da maior ou menor relevância de seu aspecto espacial.

Um primeiro grupo diz respeito aos programas de prevenção sobre determinadas

áreas geográficas354. Assenta-se na premissa de que a criminalidade se concentra em

determinadas áreas de uma cidade, trazendo como resposta a intervenção pelo poder

público em áreas deprimidas, por meio de programas de recuperação urbana, melhoria das

infraestruturas, dotação de serviços, dentre outras providências. Mencionados programas,

sem embargo, tal qual propostos originariamente pelas Escolas de Boston355 e de

Chicago356, assumiam uma natureza mais policial e repressiva do que social, com ênfase na

vigilância e na exclusão dos “perigosos”, grupos tradicionalmente discriminados. Referidas 353 Pena que, decerto, tem um papel relevante. Mas um papel que deve ser conjugado com outras medidas repressivas e preventivas. No que toca ao fracasso do papel preventivo geral da pena, veja-se : GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antonio. Tratado de Criminología. 4ª edición actualizada, corregida y aumentada. Valencia : Tirant Lo Blanch, 2009, p. 922, nota 79.

354 GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antonio. Tratado de Criminología. 4ª edición actualizada, corregida y aumentada. Valencia : Tirant Lo Blanch, 2009, p. 964.

355 Para referências sobre a Escola de Boston, veja-se : GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antonio. Tratado de Criminología. 4ª edición actualizada, corregida y aumentada. Valencia : Tirant Lo Blanch, 2009, Cap. XVII.6.

356 No tocante à Escola de Chicago, reportamo-nos a: GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antonio. Tratado de Criminología. 4ª edición actualizada, corregida y aumentada. Valencia : Tirant Lo Blanch, 2009, p. 964.

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intervenções, sem embargo, têm um papel importante, desde que alicerçadas no Estado

Social, e voltadas a intervenções em áreas geográficas deprimidas destinadas a melhorar a

qualidade de vida, os níveis de saúde, de educação, de cultura, assim como os serviços, a

infraestrutura. Interessam aqui prestações positivas, mais do que estratégias dissuasórias,

repressivas ou policiais. Mencionadas áreas devem ser devidamente inseridas no tecido

social, de forma integradora, com respeito, e não transformadas em guetos apartados do

restante do restante da sociedade do qual, sem embargo, fazem indissociavelmente parte.

Um outro grupo de programas de prevenção se baseia no desenho arquitetônico e

urbanístico357. Tem como base os trabalhos de Oscar Newman358 e se orienta em direção à

reestruturação urbana. A intervenção se dá em cenários criminógenos : nas edificações e em

seus arredores, dificultando o cometimento de delitos mediante a interposição de barreiras

ou simbólicas359. Fomentam, ainda, atitudes positivas junto a vizinhos, o que melhoraria o

controle social informal, inclusive de atos criminosos. Mencionados programas sabem bem

aproveitar a relevância à gênese de delitos com respeito a determinados espaços físicos, em

especial em uma escala que podemos chamar de individual, ou microscópica. Enquanto

mero “target hardening”, ainda que dotados de relevância, apenas deslocam o crime e não

assumem propriamente um papel de prevenção primária, pois deixam intactas as causas

últimas do delito. A seu turno, programas mais ambiciosos perseguem a própria

remodelação da convivência social. Importante ressaltar para a insuficiência de se alicerçar

programas apenas em dados físicos, os quais devem ser conjugados necessariamente com

aspectos sociais do meio em que as pessoas vivem, conforme já alertado anteriormente.

357 GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antonio. Tratado de Criminología. 4ª edición actualizada, corregida y aumentada. Valencia : Tirant Lo Blanch, 2009, p. 965 – 969.

358 NEWMAN, Oscar. Crime prevention through urban design. Defensible space. New York : Macmillan, 1972. Outros trabalhos que seguem a linha do desenho arquitetônico : a) JEFFERY, Clarence Ray. Crime prevention through environmental design. Beverly Hills : SAGE, 1977; b) CLARKE, Robert (editor). Situational Crime Prevention. Successful case Studies. Albany : Harrow and Heston, 1992.

359 O denominado “target hardening”, a ser alcançado mediante, exemplificativamente, melhoria da iluminação, melhoria dos acessos a prédios, eliminação de barreiras à visão.

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Uma outra gama de programas de prevenção recebe a denominação de

comunitária360. Migra-se, aqui, do modelo repressivo clássico a outro, de integração social,

orientado para uma política criminal participativa no qual o envolvimento da comunidade é

essencial. Neste contexto inserem-se programas e planos de natureza territorial, tais como a

remodelação física de bairros com a finalidade de melhorar serviços e infraestruturas.

Parte-se da evidência de que áreas mais pobres e mais desorganizadas dispõem de menos

recursos, ou competências, para enfrentar o problema do delito. Por força do princípio da

igualdade, impõem-se intervenções positivas, ou prestacionais, em tais localidades.

Alinham-se aqui iniciativas como a do Community Building Initiative361, projeto destinado

da dar impulso a organizações locais de vizinhos, para que estes labutem no sentido de

revitalizar seus bairros e atacar problemas locais, tal qual o de moradia.

Temos, ainda, programas de inspiração político-social, ou seja, de luta contra a

pobreza, de igualdade de oportunidades, de bem-estar social e de qualidade de vida362. Para

esta corrente, o crime encontra suas raízes em conflitos inerentes à sociedade : situações

carenciais, conflitos latentes, desigualdades. Uma sociedade mais justa, que assegure a seus

membros o acesso a quotas satisfatórias de bem-estar e de qualidade de vida certamente

reduzirá os conflitos e, por consequência, também as taxas de criminalidade. Um exemplo a

ser aqui aportado, mencionado por García-Pablos de Molina, se refere ao Projeto da Área

de Chicago363, que visava trazer organização social a ocupações semelhantes a favelas

daquela cidade. O programa propôs importantes melhorias comunitárias em áreas sociais

tais como a da educação, segurança viária e urbanismo. Gerando bem-estar social em áreas

deprimidas e com altas taxas de delinquência, perseguindo eliminar o isolamento de que

360 GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antonio. Tratado de Criminología. 4ª edición actualizada, corregida y aumentada. Valencia : Tirant Lo Blanch, 2009, p. 969.

361 Nesse sentido, o trabalho de : CHAVIS, D.M., LEE, K., MERCHLINSKY, S.. National Cross-site evaluation of the community building initiative. Bethesda : Cosmos Inc., 1997.

362 GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antonio. Tratado de Criminología. 4ª edición actualizada, corregida y aumentada. Valencia : Tirant Lo Blanch, 2009, p. 973 – 975.

363 GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antonio. Tratado de Criminología. 4ª edición actualizada, corregida y aumentada. Valencia : Tirant Lo Blanch, 2009, p. 974.

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padecem, muitas vezes, moradores de núcleos urbanos vulneráveis.

García-Pablos de Molina ainda traz à baila programas de prevenção de

criminalidade voltados para a reflexão axiológica, ou seja, para a revisão de atitudes,

valores e pautas sociais de comportamento. Os valores são um marco referencial para as

pessoas. Muitos desses valores, modelos e pautas de conduta são inequivocamente

geradores de condutas desviantes, de condutas criminosas. E não estamos aqui fazendo

referência exclusivamente ao comportamento de delinquentes que possam porventura

influenciar jovens, da mesma forma, uma cultura social que valoriza o consumo, não

encontra limites, é guiada por um hedonismo insaciável, incapaz de postergar prazer e

satisfação individual, não auxilia na formação de valores sociais e aptos a um convívio

pacífico e sadio. Há que se iniciar por uma radical mudança do comportamento de adultos.

Igualmente, necessário perseguir uma ambiciosa política social, a reverberarem matéria de

educação, saúde, moradia, lazer, dentre outros. Com oferta de uma igualdade de

oportunidades, em especial aos mais jovens. Esses valores também transpiram nas

intervenções no tecido urbano. O que nos leva a algumas indagações : quais os valores que

estão sendo prestigiados quando das intervenções realizadas nas cidades em que vivemos ?

Mera tolerância e inação com relação, por exemplo, a pessoas em situação de rua, muitas

das quais portadores de transtornos mentais, é efetivamente uma valorização à liberdade ?

Segregar parcelas da população a guetos é iniciativa que prestigia a inclusão ou a tolerância

? Pouco adianta um discurso dito oficial calçado em valores, mas cuja prática reflita

exatamente o oposto : referido divórcio flagrante entre discurso e prática, aliás, gera por si

só atitudes negativas e mais conflito.

Um derradeiro exemplo empírico bastante popular tornará mais clara nossa

argumentação. Reportar-nos-emos a experiência recolhida pelo já mencionado Oscar

Newman364 e que alude a dois projetos destinados a proporcionar moradia para população

364 NEWMAN, Oscar. Crime prevention through urban design. Defensible space. New York : Macmillan, 1972.

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de baixa renda, denominados Brownsville e Van Dyke (ambos na cidade de Nova Iorque,

Estado de Nova Iorque, nos Estados Unidos da América). Os projetos, separados apenas

por uma rua, possuíam características sociais praticamente idênticas, tais como : quantidade

de moradores (aproximadamente 6000 pessoas), densidade populacional (por volta de 288

pessoas por acre), tamanho das famílias, renda familiar, tempo de ocupação das moradias, e

presenças de pessoas da raça negra, da raça branca, assim como de origem Porto-Riquenha.

Sem embargo, diferiam, segundo argumenta Newman, de maneira bastante

acentuada no que concerne ao seu arranjo físico, ou seja, na sua estrutura física, na forma

como os prédios foram concretamente desenhados e construídos. E, por consequência, nos

níveis de criminalidade experimentados em ambos os projetos. Os quais, repetimos, eram

separados tão só por uma rua. Ademais, a região onde os dois projetos habitacionais se

situavam estava bastante deteriorada.

O conjunto habitacional de Brownsville era composto por prédios com três ou seis

andares. A entrada para os apartamentos era, via de regra, pela rua, a facilitar a vigilância.

Sendo certo que cada entrada era compartilhada por um número de famílias que oscilava

entre 9 e 13. As áreas comuns do térreo fomentavam sua utilização. O mesmo ocorria com

os corredores, com uma escada vazada em cada andar, o que também facilitava a vigilância

de responsáveis sobre crianças.

A seu turno, Van Dyke ostentava alguns poucos prédios de três andares, e torres de

catorze andares, as quais abrigavam à época do estudo 87% de sua população. Nenhum dos

edifícios possuía entrada diretamente pela rua, exigindo que os moradores, para alcançarem

suas casas, se deslocassem pelas extensas áreas livres existentes entre os edifícios (a

construção ocupava 16.6 % da área do terreno) : áreas de grande extensão, e praticamente

sem nenhum liame com os edifícios do conjunto. Ademais, cada entrada de edifício era

compartilhada por um número de famílias que variava de 112 a 136. Cada andar, servido

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por um elevador, abrigava oito famílias, com apartamentos dispostos em compridos

corredores.

Embora tenha havido em ambos os prédios registro de atividades criminosas, o

problema se mostrou de uma intensidade significativamente maior em Van Dyke. Uma

comparação entre os dois projetos revelou que Van Dyke registrava um número 66% maior

de incidentes de natureza criminosa. Sendo que para os roubos a diferença se alçava ao

patamar de 264% em desfavor de Van Dyke.

Da mesma forma, Van Dyke exigia intervenções de manutenção da ordem de 72% a

mais do que para Brownsville, embora este último projeto fosse mais antigo. Van Dyke

também consumia mais dinheiro e mais tempo para sua manutenção. Já em Brownsville, a

necessidade de reparos era menor, sendo que muitos dos problemas acabavam por ser

solucionados pelos próprios moradores.

Variavam, ainda, os prédios no que se referia à satisfação de seus moradores (maior

em Brownsville) e até mesmo no que toca à percepção das autoridades. Policiais encaravam

Van Dyke com pessimismo, e, ao revés, ostentavam uma atitude mais positiva no que toca

a Brownsville, atendendo melhor e de maneira mais digna aos seus moradores. Pode-se

aqui falar, inclusive, em uma espécie de estereótipo, ou mesmo estigma, gerado pelas

características de cada um dos projetos.

Temos, insistimos, conjuntos habitacionais vizinhos, separados apenas por uma rua,

com características sociais quase idênticas e distinguindo-se apenas no que toca à estrutura

física de cada um dos projetos. Estrutura física que mostrou ter uma enorme influência no

comportamento dos moradores de cada um dos projetos.

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Para Newman, diferiam ambos, em especial num aspecto fundamental : na

capacidade de seus habitantes de controlar seu ambiente. Capacidade essa que resulta de

diferentes características dos espaços construídos365, mediante mecanismos que Oscar

Newman denomina de “Espaços Defensáveis”, e que envolvem, em termos bastante

abreviados, a colocação de barreiras reais ou simbólicas aptas a permitir um maior controle

do ambiente pelos moradores de uma dada localidade.366 Para Newman, elementos dos

espaços construídos contribuem, conjuntamente, para a criação de um entorno seguro, tais

como : a capacidade de um projeto de proporcionar a possibilidade de vigilância de áreas

que não sejam privadas, como por exemplo mediante o posicionamento de janelas; a

adoção de um desenho que neutralize a percepção estigmatizada de muitos conjuntos

habitacionais, reduzindo a imagem de isolamento e vulnerabilidade de tais construções;

inserção de áreas residenciais em zonas comerciais, industriais ou de entretenimento, a

garantir a presença de grande número de pessoas a circular pelas ruas, fator apto a deter a

prática de condutas criminosas.

Não nos deteremos na análise da teoria de Oscar Newman367. O que buscamos

repisar, para além das características físicas individuais de cada um dos projetos, é a

influência do ambiente construído no comportamento das pessoas e, em consequência, na

segurança dos moradores que ali residem. O ambiente construído, conforme sua

configuração, pode produzir impactos no comportamento e na vida das pessoas, o qual

365 NEWMAN, Oscar. Crime prevention through urban design. Defensible space. New York : Macmillan, 1972, p. 49. No original : “physical design of housing”.

366 NEWMAN, Oscar. Crime prevention through urban design. Defensible space. New York : Macmillan, 1972, p. 3. No original : “Defensible space is a model for residential environments which inhibits crime by creating the physical expression of a social fabric that defends itself.” O próprio autor esclarece, contudo, que não fomenta a cada cidadão chamar para si a aplicação da lei, atuando pessoalmente. Pelo contrário : argumenta Newman que, quando as pessoas passam a buscar a proteção contra o crime de maneira única e exclusivamente individual, valendo-se, exemplificativamente, de guardas ou trancas, ao invés de fazê-lo como uma comunidade, a luta contra o crime estará perdida.

367 Newman enxerga a questão da segurança através das lentes da teoria criminalística da opção racional do autor de atos contrários a direitos, dentre os quais se inserem os atos criminosos. No que toca aos diferentes modelos teóricos de explicação do delito, reiteramos citação anteriormente mencionada : GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antonio. Tratado de Criminología. 4ª edición actualizada, corregida y aumentada. Valencia : Tirant Lo Blanch, 2009.

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pode ser positivo, como ocorreu em Brownsville368, ou negativo como se verificou em Van

Dyke369. O próprio Oscar Newman reconhece que referido estudo não traz uma conclusão

definitiva e final sobre a influência de variáveis relativas à estrutura física dos espaços em

que vivemos no que diz respeito ao crime e ao vandalismo370. De qualquer forma, as

evidências colhidas apontam, sim, para os benefícios sociais e psicológicos que podem ser

alcançados mediante a organização adequada dos espaços em que vivemos, apto a inibir a

prática, por exemplo, de crimes. Tudo dependerá de como, mediante ações e omissões, em

especial do poder público, se organizarão os espaços destinados às pessoas. As intervenções

no tecido urbano se prestando, assim, a enfrentar o risco ao direito à segurança.

Cumpre ressaltar que referido direito à segurança, conforme defende Santim371,

pode ser objeto até mesmo de controle jurisdicional. Como bem defende o autor : “A

eficiência dos serviços de segurança pública pode ser controlada judicialmente, com o uso

da razoabilidade e proporcionalidade, para que o Poder Público proceda à adequada

prestação do serviço de segurança pública e atenda às necessidades do cidadão e da

sociedade de receber atendimento apto à preservação da ordem pública e da incolumidade

pessoal e do patrimônio”.

368 Não obstante, conforme ressalta Oscar Newman, ainda que ostentando melhor situação do que o vizinho Van Dyke, Brownsville estava longe de ser um exemplo no que se refere às barreiras físicas e simbólicas para impedir o crime. 369 Os mecanismos afetos aos espaços defensáveis, segundo Oscar Newman, podem também ser aplicados a projetos de moradias já existentes e levado a cabo mediante a modificação dos mesmos. NEWMAN, Oscar. Crime prevention through urban design. Defensible space. New York : Macmillan, 1972, p. 163.

370 A compreensão de como os espaços influenciam as pessoas é tema que merece, permanentemente, estudos mais aprofundados. Sob pena, insistimos, de desperdício de recursos e de sofrimento desnecessário, em especial junto a populações vulneráveis. Nesse sentido : MERRY, Sally E., Defensible space undefended. Social factors in crime control through environmental design. In : Urban affairs review, June 1981, vol. 16, n. 4, p. 397-422. Argumenta a autora que mesmo espaços onde a arquitetura é propensa à redução da criminalidade (“architecturally defensible spaces”) podem permanecer vulneráveis, exigindo-se estudos mais aprofundados sobre os processos sociais que induzem residentes a intervir na prevenção do crime. Perseguir o direito à segurança, tal qual aborda a autora, é um processo contínuo e dinâmico e certamente não se esgota simplesmente com o uso de técnicas construtivas aptas a dar maior visibilidade de espaços públicos. A realidade é por demais dinâmica para se deixar aprisionar dentro de um olhar estreito e diacrônico.

371 SANTIN, Valter Foleto. Controle judicial da segurança pública : eficiência do serviço na prevenção e repressão ao crime. São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2004, p. 266.

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Direito à segurança a ser concretizado também por meio de intervenções urbanas.

Não é razoável admitir-se que persistam situações como a desenhada no início do presente

capítulo, do distrito de Socorro, com uma taxa de 144,30 homicídios juvenis por cem mil

habitantes em 2010, patamar que se assemelha à de regiões com conflitos armados.

Estamos diante de uma patente situação de risco à segurança e à vida a ser necessariamente

inserida nos estudos de impacto e nos esforços de planejamento e de intervenção naquela

parcela, dentre outras, da cidade, inclusive para compreender, se o caso, que competências

e disfunções estão sendo geradas por aquela organização espacial; quais valores o Poder

Público está prestigiando com suas ações naquela localidade; de que forma a organização

espacial pode ser levada adiante com o fito de preservar, dentre outros, valores caros como

a vida e a integridade física, auxiliando na concretização do direito à segurança em sua

múltiplas dimensões.

Portanto, a prevenção de delitos também encontra uma dimensão espacial. Crime

que pode ter sua gênese, ou seu recrudescimento, em aspectos territoriais. Mas que também

pode ser devidamente enfrentado e até mesmo prevenido por meio de ditas intervenções. E

não faltam instrumentos concretos aptos a promover essa mencionada prevenção e

consequente preservação de direitos caros. Com o fito meramente exemplificativo,

podemos fazer menção a estudos de impacto, inclusive de crime e de exclusão social, nos

termos tratados por Gordon Walker372e Pierre Lebreton373. Passando-se às possibilidades

relativas a projetos individuais que levem em consideração a segurança374 e especialmente

372 WALKER, Gordon. Environmental justice, impact assessment and the politics of knowledge: The implications of assessing the social distribution of environmental outcomes. In : Environmental Impact Assessment Review n. 30 (2010), p. 312–318. O autor trata de inúmeras modalidades de estudos de impacto, quais sejam, ambientais, sociais, econômicas e integradas, ou seja, a analisar o impacto de medidas diversas junto a determinadas comunidades. No bojo das avaliações sociais temos estudos relativos a gênero, igualdade, saúde e até mesmo de bem-estar. Impactos que podem ter efeitos na esfera da prática de delitos.

373 LEBRETON, Jean-Pierre. Les modes d’action. In : TANQUEREL, Thierry, JÉGOUZO, Yves, MORAND-DEVILLER, Jacqueline, Lebreton, Jean-Pierre. Risque et droit de l’urbanisme en Europe. Les cahiers du GRIDAUH. N. 20. Paris : GRIDAUH, 2011, p. 71 e 72. O autor faz menção a estudo de segurança previsto no artigo L 111.3.1 do Código de Urbanismo Francês e se refere a projetos que, em razão de sua dimensão, características, localização e importância, podem representar um risco à segurança de pessoas e bens.

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do adequado planejamento375 que não negligencie sua vertente social.

A preservação de vidas, ou mesmo a garantia de direitos de crianças e jovens são

esforços que não podem esperar. O risco ronda, persiste, é amplificado em razão de

circunstâncias espaciais. Nesta seara, o direito urbanístico tem aptidão para ser usado como

um poderoso instrumento à concretização de direitos e à proteção de tais bens jurídicos.

Mas para tanto, o risco há de ser, antes, devidamente identificado e inserido nos processos

de decisão, de forma clara e transparente. Negligenciar o risco à segurança em sua

dimensão espacial é negligenciar a própria vida.

Decerto, conforme já apontamos, que o direito urbanístico não é o único remédio

disponível para todos os males das aglomerações. Sem embargo, seu bom uso pode se

mostrar bastante efetivo no prestígio a direitos dos mais variados. De outra banda, seu

desuso, ou seu mal uso, certamente não auxiliará no enfrentamento dos riscos decorrentes

do uso e ocupação do solo, hoje seguramente um problema que assume dimensões globais,

com efeitos intensos também no Brasil376.

374 Nesse sentido, a Circular 5/94 (Reino Unido) Referido documento tem como pressuposto que a prevenção de crimes pode ser levada em consideração quando da expedição de licenças e no bojo do planejamento. Que mencionada preocupação se imbrique precocemente nesse processo, já nos estágio de elaboração de projetos. In : COLQUOHON, Ian. Design out Crime : Creating Safe and Sustainable Communities. Oxford : Elsevier, 2007 (reprinted), p. 198.

375 Veja-se a esse respeito, a doutrina de Fernanda Paula Oliveira, tratando da vertente social da sustentabilidade no planejamento do território, acentuando que referida diretriz “obriga a integrar no planeamento do território um conjunto de preocupações relevantes tendentes a fomentar o desenvolvimento social e a evitar fenômenos de segregação espacial de uma sociedade diversificada (...) impondo a inclusão nos planos de políticas sociais e culturais, de combate à pobreza e de apoio a sectores da população mais vulneráveis, de políticas de segurança urbana, de habitação, de oferta de serviços públicos”. In : OLIVEIRA, Fernanda Paula. A discricionariedade de Planeamento Urbanístico Municipal na Dogmática da Discricionariedade Administrativa (Tese de Doutoramento). Coimbra : Almedina, 2011, p. 530.

376 Conforme apontado por Murphy e Gardoni (MURPHY, Colleen, GARDONI, Paolo. Evaluating the sources of risks associated with natural events. In : Res Publica (2011) 17 : 125 – 140), dados fornecidos pelas Nações Unidas (www.unisdr.org) apontam para a impressionante cifra de um milhão de mortos, entre 1991 e 2005, em razão dos denominados desastres naturais. Com um contingente de 3.5 bilhões de pessoas afetadas diretamente por mencionados eventos. Ainda conforme dados colhidos junto à UNISDR, no ano de 2011, o Brasil ocupou uma preocupante terceira posição dentre os países com maior número de mortos em catástrofes naturais, ficando atrás apenas de Japão (palco de um terremoto de magnitude de 8.9 graus nesse

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Prosseguiremos nos debruçando com maior vagar na necessária imbricação entre o

risco e as intervenções no tecido urbano. Risco que, ao mesmo tempo, pode ser aumentado

por tais intervenções urbanas, assim como pode ser também minimizado ou mitigado.

Impondo, portanto, sua devida consideração, um olhar por meio de lentes de proteção

antecipada. Apto até mesmo a enfeixar direitos subjetivos devidamente judicializáveis, tal

qual já abordamos de forma abreviada há pouco. Risco que, aliás, já se encontra presente e

devidamente inserido e vertido para o interior de textos de ordenamentos dos mais variados.

Prossigamos com o fito de tratara acerca da imbricação do risco com o direito

urbanístico.

1.8.3.2.5 – Direito urbanístico e risco

Caminhemos. Seria mesmo possível falar-se em um risco de dimensão espacial ? A

resposta a esta questão é afirmativa, tal qual nos demonstram algumas experiências

colhidas de países diversos, notadamente do continente europeu.

Dito risco de dimensão espacial, conforme já tratado, ostenta uma dupla faceta : um

risco que é intensificado em face da organização territorial ou dos espaços. E ainda, um

risco que pode, e deve, ser devidamente enfrentado por essa mesma organização espacial.

mesmo ano) e das Filipinas (onde inundações de enorme magnitude ceifaram um grande número de vidas). Mortes essas às quais antecede o risco, em uma dimensão espacial. O risco de cegamente tolerar, por exemplo, ocupações em margens de rios ou em encostas instáveis.

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No que toca à intensificação dos riscos, esta se verifica pelo aumento da

vulnerabilidade. Ou seja, a desorganização espacial acaba por alocar contingentes cada vez

maiores de pessoas em situação de potencial vulneração de direitos. Apenas com o fito

exemplificativo, podemos fazer menção a assentamentos de pessoas nas margens de rios e

em encostas com probabilidade de escorregamento e deslizamento.

Mas, por outro lado, essa mesma organização dos espaços pode oferecer alternativas

ao enfrentamento, gerenciamento e convívio com o risco. Nos ocuparemos, a seguir, de tais

possibilidades, trazendo experiências jurídicas de países diversos. Prossigamos.

Thierry Tanquerel, professor da Universidade de Genebra, trata da questão do risco

e, especificamente, da forma como o mesmo é conhecido e tratado pelo direito urbanístico.

Tanquerel reconhece a existência de riscos aos quais adjetiva como de dimensão espacial

definindo-os como uma incerteza quanto à possibilidade de ocorrência de um dano em um

espaço concretamente definido377. Além dos tradicionais elementos da incerteza e da

possibilidade de ocorrência de um dano, acrescenta o autor um elemento que podemos

denominar de espacial.

Para Tanquerel, de forma bastante simplificada, são possíveis três aproximações ao

risco considerado em sua dimensão espacial378.

377 TANQUEREL, Thierry. Introduction générale : les risques saisis par le droit de l’urbanisme. In : TANQUEREL, Thierry, JÉGOUZO, Yves, MORAND-DEVILLER, Jacqueline, Lebreton, Jean-Pierre. Risque et droit de l’urbanisme en Europe. Les cahiers du GRIDAUH. N. 20. Paris : GRIDAUH, 2011, p. 09.

378 TANQUEREL, Thierry. Introduction générale : les risques saisis par le droit de l’urbanisme. In : TANQUEREL, Thierry, JÉGOUZO, Yves, MORAND-DEVILLER, Jacqueline, Lebreton, Jean-Pierre. Risque et droit de l’urbanisme en Europe. Les cahiers du GRIDAUH. N. 20. Paris : GRIDAUH, 2011, p. 09.

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Numa primeira aproximação, o risco pode estar associado a uma ação determinada

ou a uma situação de fato. Entende-se por ação, por exemplo, a construção de uma

instalação industrial. E por situação de fato, a seu turno, um abalo sísmico. Em se tratando

de uma ação, abre-se a possibilidade de interdição ou mesmo de submissão das atividades

causadoras de risco a determinadas condições. Já no que toca à situação de fato, maneja-se

a possibilidade de se modificar determinadas circunstâncias para minimizar ou evitar o

risco.

Numa segunda aproximação, deve ser considerado o espaço que se encontra

submetido ao risco. Dando azo, por exemplo a providências no sentido de submeter a

utilização de tais espaços a restrições379 particulares ou até mesmo à renúncia de

determinados usos.

As providências retratadas nas duas aproximações acima não são mutuamente

excludentes mas podem e devem ser levadas adiante de maneira conjunta. A equação

jurídica das providências destinada à prevenção de riscos se completaria com medidas

destinadas à identificação dos mesmos. E, num passo subsequente, com ações preventivas,

valendo-se de instrumentos clássicos do direito urbanístico, tais como o planejamento e as

autorizações ou licenças380. Abrindo-se a possibilidade do controle jurisdicional, inclusive

no tocante à avaliação dos riscos assim como das escolhas levadas a cabo em face de tal

avaliação. Ponderando-se as consequências das ações destinadas à prevenção dos riscos em

relação a outros direitos também prestigiados pela ordem jurídica, tais como o direito à

379 O termo “restrições” foi utilizado, aqui, como tradução livre do original : “restrictions”, estampado a página 09 do texto de Tanquerel (TANQUEREL, Thierry. Introduction générale : les risques saisis par le droit de l’urbanisme. In : TANQUEREL, Thierry, JÉGOUZO, Yves, MORAND-DEVILLER, Jacqueline, Lebreton, Jean-Pierre. Risque et droit de l’urbanisme en Europe. Les cahiers du GRIDAUH. N. 20. Paris : GRIDAUH, 2011).

380 Tanquerel faz referencia à “autorisation de police”, consoante se verifica a fls. 10 da obra já mencionada nas notas anteriores (TANQUEREL, Thierry. Introduction générale : les risques saisis par le droit de l’urbanisme. In : TANQUEREL, Thierry, JÉGOUZO, Yves, MORAND-DEVILLER, Jacqueline, Lebreton, Jean-Pierre. Risque et droit de l’urbanisme en Europe. Les cahiers du GRIDAUH. N. 20. Paris : GRIDAUH, 2011).

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liberdade ou mesmo à propriedade381.

Por fim, uma terceira aproximação enfocaria os custos envolvidos em se levar em

consideração os riscos382, assim como a questão da responsabilidade pela reparação de

danos383.

Enrico Ferrari384 também discorre sobre o risco, ou os riscos, e como os mesmos

são levados em conta pela ordem jurídica. O conceito inicial de “risco”, tal qual fornecido

381 Apenas a título de exemplo, formulando-se situação absolutamente hipotética : para evitar acidentes automobilísticos, bastaria proibir que todos os veículos circulassem. Mas qual seria o impacto dessa decisão em outros bens e direitos ? Impor-se-iam restrições severas à circulação não apenas de pessoas mas de mercadorias. Fábricas seriam desativadas, com perdas substanciais de empregos, e, como consequência, de renda, com impactos sociais enormes. Avulta, assim, a importância da ponderação dos direitos envolvidos em toda e qualquer providência ou decisão.

382 Para Tanquerel, a prevenção traz ínsita um custo que pode ser direto (e.g. : os custos relativos à realização das avaliações de impacto ou mesmo avaliações específicas de riscos) ou indireto (ou seja, o impacto que a prevenção ou mitigação dos riscos poderá trazer para outros bens, em virtude, exemplificativamente, de eventuais restrições de utilização impostas). Indagando-se, ainda, quem arcará com tais custos (e.g. : apenas os causadores do risco, ou deverá haver alguma forma de solidariedade dentro da sociedade). Nesses termos, veja-se : TANQUEREL, Thierry. Introduction générale : les risques saisis par le droit de l’urbanisme. In : TANQUEREL, Thierry, JÉGOUZO, Yves, MORAND-DEVILLER, Jacqueline, Lebreton, Jean-Pierre. Risque et droit de l’urbanisme en Europe. Les cahiers du GRIDAUH. N. 20. Paris : GRIDAUH, 2011, página 11.

383 E indagações como, por exemplo, se a responsabilização deve exigir, ou não, culpa; ou se para haver responsabilização bastaria a mera criação do risco. Considerações trazidas na página 11 da obra de Tanquerel (TANQUEREL, Thierry. Introduction générale : les risques saisis par le droit de l’urbanisme. In : TANQUEREL, Thierry, JÉGOUZO, Yves, MORAND-DEVILLER, Jacqueline, Lebreton, Jean-Pierre. Risque et droit de l’urbanisme en Europe. Les cahiers du GRIDAUH. N. 20. Paris : GRIDAUH, 2011). Ainda na seara da responsabilização por riscos, traz o autor à colação decisão judicial proferida pela Corte Europeia de Direitos Humanos relativa à responsabilização de um Estado-membro em razão de sua omissão na prevenção de riscos e face não só de tolerar, mas de promover o licenciamento para funcionamento de empresa causadora de danos ambientais e à saúde da população, conduta em tese violadora do artigo 8º da Convenção Europeia de Direitos Humanos, que protege a vida familiar e a vida privada (Caso Tatar vs. Romênia – 67021/01 : o acórdão se encontra disponível para consulta na página eletrônica da Corte Europeia, no endereço seguinte : http://www.echr.coe.int/ECHR/EN/Header/Case-Law/Decisions+and+judgments/HUDOC+database/ - consulta realizada em 28 de junho de 2012).

384 FERRARI, Erminio. La notion de risque prise en considération par l’ordre juridique. In : TANQUEREL, Thierry, JÉGOUZO, Yves, MORAND-DEVILLER, Jacqueline, Lebreton, Jean-Pierre. Risque et droit de l’urbanisme en Europe. Les cahiers du GRIDAUH. N. 20. Paris : GRIDAUH, 2011, p. 13-24.

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por Henri Capitant, em seu Vocabulário Jurídico, em 1936385, encontrava-se circunscrito a

interesses privados.

O termo “risco”, contudo, não mais detém nos dias atuais o significado trazido por

Capitant. Para além dos interesses privados, se reconhece o enorme interesse social em

lidar com situações de potencial dano caracterizadoras do risco. Parte-se de uma anterior

situação de risco, no singular, para a de “riscos”, agora no plural, a designar situações

potencialmente perigosas, aptas a causar danos e de ocorrência provável. O risco se

multiplica e se torna uma característica central das sociedades386, um elemento da própria

governabilidade dessas mesmas sociedades387. Um conceito em relação ao qual a cultura

tem um papel fundamental em sua construção388, não consistindo o risco tão somente num

cálculo de probabilidade, mas também numa memória coletiva, num produto dos hábitos, 385 Conforme citado por Erminio Ferrari (FERRARI, Erminio. La notion de risque prise en considération par l’ordre juridique. In : TANQUEREL, Thierry, JÉGOUZO, Yves, MORAND-DEVILLER, Jacqueline, Lebreton, Jean-Pierre. Risque et droit de l’urbanisme en Europe. Les cahiers du GRIDAUH. N. 20. Paris : GRIDAUH, 2011, p. 14, nota número 04) : CAPITANT, Henri. Vocabulaire Juridique, PUF, 1936. No original, a definição de risco é a que segue : “l’eventualité d’um événement futur, incertain, ou d’un terme indetermine, né dépendant pas exclusivemente des parties et pouvant causer la perte d’um objet ou tout autre dommage”. O que, numa tradução livre, pode ser compreendido como a eventualidade de um evento futuro, incerto ou de termo indeterminado e que tem a aptidão para causar a perda de um objeto ou, ainda, outros danos.

386 Ferrari (FERRARI, Erminio. La notion de risque prise en considération par l’ordre juridique. In : TANQUEREL, Thierry, JÉGOUZO, Yves, MORAND-DEVILLER, Jacqueline, Lebreton, Jean-Pierre. Risque et droit de l’urbanisme en Europe. Les cahiers du GRIDAUH. N. 20. Paris : GRIDAUH, 2011, p. 14 e 17) traz como referência Ulrich Beck : BECK, Ulrich. Risikogesellshaft. Frankfurt a.M. : 1986 e 1991.

387 Ferrari (FERRARI, Erminio. La notion de risque prise en considération par l’ordre juridique. In : TANQUEREL, Thierry, JÉGOUZO, Yves, MORAND-DEVILLER, Jacqueline, Lebreton, Jean-Pierre. Risque et droit de l’urbanisme en Europe. Les cahiers du GRIDAUH. N. 20. Paris : GRIDAUH, 2011, p. 17, nota 13), dá crédito a Foucault por mencionada afirmação : FOCAULT, Michel. Sécurité, territoire, population. Cours au Collège de France 1977-78. Paris : 2004.

388 Ideias que Ferrari (FERRARI, Erminio. La notion de risque prise en considération par l’ordre juridique. In : TANQUEREL, Thierry, JÉGOUZO, Yves, MORAND-DEVILLER, Jacqueline, Lebreton, Jean-Pierre. Risque et droit de l’urbanisme en Europe. Les cahiers du GRIDAUH. N. 20. Paris : GRIDAUH, 2011, p. 17, nota 12), colheu de Mary Douglas: Risk and culture : an essay on the selection of the technological and environmental dangers, Berkeley, 1982; The risk acceptability according to the social sciences, London 1985; Risk and blame : essays in cultural theory, New York 1992. Neste último, argumenta a autora que, para cada tipo de evento inesperado e danoso, há um repertório fixo de causas e outro de ações obrigatórias. Por exemplo, num contexto de explicações moralistas, o pecado seria a causa de referido evento, e a expiação sua ação subsequente. Os desastres podem assim ser codificados como sinais de um comportamento repreensível, sendo a culpa utilizada, nesse contexto, como um instrumento para persuadir os membros da comunidade a obedecer as regras, sejam elas morais ou mesmo jurídicas. Um uso político do infortúnio.

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da história comum, das tradições.

No que toca à ordem jurídica, como nos discorre Ferrari389, passamos de uma

situação relegada à esfera privada e de natureza essencialmente econômica, marcada pela

disponibilidade dos interesses em jogo, para uma etapa intermediária onde predomina a

atuação da polícia administrativa e, posteriormente, para um estágio marcado pela

exigência de proteção frente ao Estado em relação aos riscos. O Estado assume, assim, um

papel central na garantia, realização e manutenção da segurança. E também na sua

regulação, com os riscos sendo recolhidos e traduzidos à ordem jurídica.

Decerto que, diante dessa multiplicação dos riscos, se torna difícil encontrar um

critério apto ordená-los. Como construir um sistema de riscos ? É uma indagação que ainda

desafia a grande parte dos sistemas jurídicos, notadamente os Europeus. Debate-se

inclusive quanto à denominada sedes materiae390 na qual deveriam se acomodar as

situações denominadas de risco, ou riscos, e as providências correlatas, dentre as quais :

direito ambiental, direito das construções, direito da proteção civil, o direito regedor do

denominado poder de polícia, assim como o direito urbanístico.

Reconhece Ferrari que os sistemas jurídicos europeus apresentam graus de

desenvolvimento distintos no que concerne ao tratamento do risco, ou, como prefere o

389 FERRARI, Erminio. La notion de risque prise en considération par l’ordre juridique. In : TANQUEREL, Thierry, JÉGOUZO, Yves, MORAND-DEVILLER, Jacqueline, Lebreton, Jean-Pierre. Risque et droit de l’urbanisme en Europe. Les cahiers du GRIDAUH. N. 20. Paris : GRIDAUH, 2011, p. 18 e 23.

390 Nesse sentido, também, a Diretiva 96/82/CE, de 9 de dezembro de 1996, do Conselho da União Europeia, que se refere ao controle de riscos inerentes a acidentes graves nos quais há substâncias perigosas, com obrigações não apenas para os entes privados mas, notadamente, para os Estados, inclusive no que toca a medidas de prevenção, planos de emergência e, especialmente, no controle do processo de urbanização O texto normativo traz uma interessante distinção entre perigo e risco, em seu artigo terceiro, itens 6 e 7. O perigo consistiria numa propriedade intrínseca de uma substância ou situação de causar danos à saúde ou ao meio ambiente. A seu turno, o risco consistiria na probabilidade de que um efeito danoso específico se produza num dado período ou em circunstâncias determinadas.

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autor, dos riscos, persistindo assim a busca pela construção de um sistema de riscos.

Sistemas que podem ser, por exemplo, calçados na construção de um modelo que tem como

base o agrupamento dos riscos em tipos diferentes, sendo certo que cada tipo acarretaria em

diferentes graus de responsabilidade ao Estado391. Ou, ainda, de técnicas legislativas

consistentes em construir classes de riscos para então dotar tais classes de regras especiais,

especificando-se o que será considerado risco, qual sua probabilidade, quais as

providências cabíveis.

Da mesma forma, a questão acerca da dimensão espacial dos riscos e de seu

correlato tratamento jurídico é também objeto de amadurecimento. Permanecendo, sem

embargo, o argumento favorável ao reconhecimento de um dever de proteção por parte do

Estado.

Aprofundemo-nos em relação às diversas formas por meio das quais o risco, seja em

sua dimensão espacial, seja em seu enfrentamento por meio de métodos de intervenção

territoriais, vem sendo tratado por diferentes sistemas jurídicos.

Jean -Pierre Lebreton392 traça um panorama geral acerca dos diferentes modos de

391 Na Alemanha foram reconhecidas em sede de decisão judicial relativa a questionamento sobre a adequada em relação a centrais nucleares (aresto do Tribunal Constitucional Alemão – aresto Kalkar – BVerfG de 8 de outubro de 1978) três situações distintas afetas ao risco, quais sejam : situações de perigo (Gefuhren – nas quais, no decorrer normal dos eventos é certo que ocorrerão consequências negativas), situações de risco (Risiken – consequências negativas são prováveis, mas remanesce a possibilidade de intervir para mitigar ou eliminar tais consequências) e de riscos residuais (Restrisiko – situações nas quais não será possível eliminar todas as possibilidades de dano, inclusive em face de interesses outros colidentes e que serão afetados, não havendo obrigação de intervenção estatal). Referida classificação fornece padrões jurídicos abstratos que auxiliam na compreensão dos deveres de intervenção do Estado, no controle judicial dos atos administrativos e, ainda, no controle da constitucionalidade das leis, as quais não podem violar o direito constitucional à segurança. Nesse sentido : FERRARI, Erminio. La notion de risque prise en considération par l’ordre juridique. In : TANQUEREL, Thierry, JÉGOUZO, Yves, MORAND-DEVILLER, Jacqueline, Lebreton, Jean-Pierre. Risque et droit de l’urbanisme en Europe. Les cahiers du GRIDAUH. N. 20. Paris : GRIDAUH, 2011, p. 23.

392 LEBRETON, Jean-Pierre. Les modes d’action. In : Risque et droit de l’urbanisme en Europe. Les cahiers du GRIDAUH. N. 20. Paris : GRIDAUH, 2011, p. 51, e ss.

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ação para enfrentar o risco que nos oferecem os distintos sistemas jurídicos. Enfoca o autor

os modos de ação afetos a intervenções territoriais os quais, necessariamente, têm como

antecedente o adequado conhecimento e avaliação desses mesmos riscos. O enfrentamento

do risco se reveste de natureza de atividade pública e pode, de forma bastante resumida,

assumir duas posturas : uma de afastamento, ou seja, de conhecer o perigo e evitar

exposição de pessoas e bens, ou limitar as consequências de referida exposição. De outra

banda, pode se proceder a enfrentar as causas desse risco, tal qual se dá com esforços de

redução de impermeabilização dos solos no combate a inundações.

Um conjunto de instrumentos propícios para o enfrentamento dos riscos se alicerça

no controle do uso dos solos, seja mediante a atividade de planejamento bem como por

intermédio mediante o controle de intervenções particulares no tecido urbano. Nada

obstante, controle do uso do solo, ainda que importante para o enfrentamento do risco, se

mostra todavia insuficiente para tal tarefa e clama por métodos adicionais, tais como ações

fundiárias, realização de obras e serviços públicos, envolvimento de atores privados e

meios de gestão estratégica integrada.

Na seara das atividades de controle do uso do solo o risco pode tanto ser objeto de

leis especiais, tal qual ocorre exemplificativamente na França e no Reino Unido em relação

a instalações perigosas. São regras, sem embargo, que se imbricam com a organização dos

espaços, tarefa primordial do direito urbanístico, veiculando disposições relativas a

exigências no licenciamento de determinadas atividades perigosas, possibilitando o controle

de riscos afetos à produção industrial também mediante sua distribuição espacial.

Tal qual prossegue o autor, integram a essência da prevenção do risco tanto o

“saber”, assim como o “saber fazer”393. O “saber” implica em esforços para tentar

393 LEBRETON, Jean-Pierre. Les modes d’action. In : Risque et droit de l’urbanisme en Europe. Les cahiers du GRIDAUH. N. 20. Paris : GRIDAUH, 2011, p. 57.

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determinar a identificação e a localização dos riscos. Por outro lado, o “saber fazer”, que

tem como antecedente lógico o “saber”, envolve a identificação do espaço afetado assim

como a delimitação e a imposição de prescrições ao uso do solo. E neste contexto, temos a

coexistência de dois tipos de regras distintas : aquelas ditas territorializadas, que localizam

o risco e aplicam ao território afetado restrições ao uso do solo, assim como regras gerais,

as quais habilitam, de forma genérica, à autoridade competente a tomada de medidas

específicas voltadas ao enfrentamento do risco, especialmente no que concerne à expedição

de licenças394.

O enfrentamento do risco também pode ser levado adiante mediante decisões

urbanísticas individuais, seja quando da expedição de licenças, impondo-se contrapartidas

aos particulares. Ou até mesmo mediante a fixação de obrigações de fazer diante de

situações extraordinárias, tal qual ocorre na Espanha, à luz da denominada “Ley de Bases

del Régimen Local 7/1985”, que confere ao Prefeito o poder de determinar medidas

preventivas e temporárias a particulares determinados, diante de catástrofes ou infortúnios,

tais como a suspensão temporária de licenças e de trabalhos urbanísticos, assim como a

obrigação de levar a cabo a demolição de imóveis. Nesse sentido, ainda, o artigo 89, do

Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação de Portugal, o qual admite a imposição da

obrigação de realizar trabalhos de conservação assim como de obras necessárias à

segurança, inclusive a demolição, em relação a obras que apresentem risco de ruína ou,

ainda, risco à saúde pública ou à segurança.

Mas, conforme já pontuado, o controle de utilização dos solos não se apresenta

como método suficiente para o enfrentamento, sozinho, do risco, sendo ladeado por

iniciativas como as de natureza fundiária assim como de cunho prestacional, em especial

394 Tal qual ocorre, por exemplo, na França : o artigo R.111-2 do Código de Urbanismo admite o indeferimento de um pedido de licença de instalações que gerem algum perigo à saúde ou à segurança pública. Há disposições semelhantes nas legislações da Bélgica, Grécia e Suíça. Nesse sentido : LEBRETON, Jean-Pierre. Les modes d’action. In : Risque et droit de l’urbanisme en Europe. Les cahiers du GRIDAUH. N. 20. Paris : GRIDAUH, 2011, p. 63 e 64.

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por parte do Estado e a gestão integrada de territórios expostos ao risco.

No que toca aos aspectos fundiários, Lebreton395 explora as possibilidades da

desapropriação em matéria de risco, ferramenta admitida em países como Espanha,

Portugal, Romênia e Suíça. Encontra a desapropriação fundamento na utilidade pública,

destinando-se notadamente à realização de obras de proteção. Na França e na Bélgica, o

recurso à desapropriação se mostra como medida necessária em territórios já urbanizados,

mas com populações expostas ao risco, tanto natural quanto tecnológico, situações na quais

o mero exercício do poder de polícia não será suficiente. Há situações onde a interdição ao

direito de construir atingirá apenas novas construções e não trará efeito algum ante eventual

degradação do tecido urbano, em especial de espaços sujeitos ao risco tecnológico. Ditos

países ostentam em suas legislações mecanismos de aquisição de imóveis com o fito de

enfrentar o risco, havendo, inclusive, previsão de fontes de financiamento para que se

concretizem apontadas aquisições.

O enfrentamento do risco também se dá mediante a realização de obras públicas, tal

qual ocorre com a construção de diques para lutar contra a submersão de zonas de costa.

Pode também envolver outra atividade de cunho positivo consistente na prestação de um

serviço público, aqui incluído o de alerta a perigos. Aliás, a atividade prestacional pode ter

como ator não apenas o Estado, mas contar também com o concurso de particulares,

envolvendo-os na atividade de prevenção. Nesse sentido, apenas a título de exemplo, o

projeto denominado de Aquaprotect, extraído da realidade suíça, que conta com a co-

participação do Estado e de empresa privada de seguros (a Swiss Re), voltada ao

mapeamento dos danos potenciais decorrentes de enchentes. Ou, ainda, o envolvimento de

associação sindical de proprietários franceses na luta contra as enchentes. Possível inclusive

a realização de obras individuais, por particulares, destinadas à proteção contra riscos.

395 LEBRETON, Jean-Pierre. Les modes d’action. In : Risque et droit de l’urbanisme en Europe. Les cahiers du GRIDAUH. N. 20. Paris : GRIDAUH, 2011, p. 67.

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Por fim, pontua Lebreton acerca de medidas denominadas de gestão integradas,

destinadas a lidar com riscos de tamanha gravidade aos quais não bastam apenas medidas

de natureza preventiva, mas exigem também medidas de fomento, em especial as de

natureza econômica. Fornece o autor exemplo extraído da realidade francesa, relativo à

região de Lorena (Lorraine). Na mencionada região, diante do declínio da atividade de

mineração, mostrou-se necessária sua reconversão econômica. Sem embargo, essa mesma

atividade de mineração acabou por trazer instabilidade ao solo, dificultando meios

alternativos de sobrevivência econômica, tal qual o aproveitamento do mesmo para fins de

construção. Deparamo-nos, assim, com um risco multidimensional, e que deu azo ao uso de

um plano estratégico territorial, com a finalidade de levar adiante a recuperação econômica

de mencionada região.

Verifica-se, assim, uma panóplia de ferramentas e de métodos de intervenção

territorial voltados ao enfrentamento de riscos. Riscos que assumem faces das mais diversas

e, efetivamente, exigem para o seu enfrentamento uma atuação que vai além de meras

regras de uso e ocupação do solo, embora também as inclua. Risco, sem embargo, que tem

quase que invariavelmente uma dimensão espacial, palco propício à atuação de ferramentas

do direito urbanístico. Esse mesmo risco, de outra banda, caso negligenciado, pode ser

potencializado e amplificado em razão da forma como é levada adiante o uso e a ocupação

do solo.

Passemos adiante com uma análise mais aprofundada do tratamento do risco em sua

dimensão espacial e, ainda, das possibilidades afetas a instrumentos de intervenção espacial

para seu enfrentamento, tal qual se verifica alguns países. Sem pretensão, ressaltamos, de

uma análise exaustiva e completa dos diferentes sistemas jurídicos. Presta-se referida

exposição, julgamos, a fornecer-nos fundamental apoio à argumentação não apenas da

possibilidade, mas da necessidade da devida inserção da questão do risco nas intervenções

no espaço em que vivemos.

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1.8.3.2.5.1 – Portugal

Em Portugal, o risco também se encontra recolhido pelo ordenamento jurídico, e,

dentro desse contexto, por normas disciplinadoras dos espaços habitáveis. Fernando Alves

Correia e Ana Raquel Gonçalves Moniz396 apontam para o risco como algo transversal a

toda a ordem jurídica, como inerente a toda e qualquer decisão administrativa. Risco,

inclusive, a emanar de decisões judiciais397 ou como objeto de construção do direito

administrativo398 para fazer-lhe frente. Risco, conforme relatam os autores, que chega a por

em cheque princípios do próprio Estado de Direito, haja vista contrapor-se ao princípio da

proteção da confiança399. Risco, ademais, que não apenas se relaciona mas colide com

direitos fundamentais dos mais diversos, tais como o direito à vida, o direito à liberdade de

empreender, o direito de propriedade.

Risco recolhido por normas esparsas do ordenamento português, as quais são

reforçadas por disposições da União Europeia e do Direito Internacional. Normas que têm

por objeto não apenas o risco em si, mas outros assuntos, de natureza bastante diversa.

Tome-se, como exemplo, a Resolução do Conselho de Ministros 65/2001, de 6 de junho de

396 CORREIA, Fernando Alves, MONIZ, Ana Raquel Gonçalves. Portugal, rapport national. In : Risque et droit de l’urbanisme en Europe. Les cahiers du GRIDAUH. N. 20. Paris : GRIDAUH, 2011, p. 258.

397 Nesse sentido : BRONZE, Fernando José. Argumentação Jurídica : O Domínio do Risco ou o Risco Dominado ? In : Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, vol. LXXVI, 2000, conforme referência fornecida por Fernando Alves Correia e Ana Raquel Gonçalves Moniz (CORREIA, Fernando Alves, MONIZ, Ana Raquel Gonçalves. Portugal, rapport national. In : Risque et droit de l’urbanisme en Europe. Les cahiers du GRIDAUH. N. 20. Paris : GRIDAUH, 2011, p. 258, nota 07.

398 Veja-se : BROYELLE, Camille. Le risque en droit administratif "classique" : fin du XIXe, milieu du XXe siècle. In : Revue du droit public et de la science politique en France et à l'étranger Paris, n. 6, 2008, nos termos de referencia fornecida por Fernando Alves Correia e Ana Raquel Gonçalves Moniz (CORREIA, Fernando Alves, MONIZ, Ana Raquel Gonçalves. Portugal, rapport national. In : Risque et droit de l’urbanisme en Europe. Les cahiers du GRIDAUH. N. 20. Paris : GRIDAUH, 2011, p. 258, nota 06.

399 CORREIA, Fernando Alves, MONIZ, Ana Raquel Gonçalves. Portugal, rapport national. In : Risque et droit de l’urbanisme en Europe. Les cahiers du GRIDAUH. N. 20. Paris : GRIDAUH, 2011, p. p. 260.

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2001, que dispõe sobre uma política de minimização de riscos e arrola aqueles que

denomina de públicos e que estão sujeitos à disciplina e ao controle por parte das

autoridades administrativas. Riscos, dentre outros, relacionados com a poluição industrial,

infraestruturas, edifícios e transporte, atividade sísmica e vulcânica assim como com a

proteção radiológica e nuclear. Riscos que, opinamos, guardam íntima relação o uso e a

ocupação do solo, possuindo, nesses termos, uma dimensão espacial ou territorial que não

pode ser desprezada.

Da mesma forma, desta vez na seara da prevenção de riscos de acidentes graves

causados por determinadas atividades industriais, vem o risco tratado de forma expressa no

Decreto Lei 164/2001400, de 23 de maio de 2001. Referido diploma, consoante consta no

preâmbulo do texto legal, veio “introduzir uma nova exigência em sede de segurança e

protecção da saúde humana e do ambiente quanto a riscos de acidentes graves derivados de

actividades industriais consideradas de maior risco.” O texto legal fornece, ainda, definição

do termo risco (artigo 3º, “j”) como : “a probabilidade de que um efeito específico ocorra

dentro de um período determinado ou em circunstâncias determinadas.” Contrapondo

mencionada definição à de perigo que, de acordo com o texto legal (artigo 3º, “h”), consiste

na propriedade intrínseca de uma substância perigosa ou de uma situação física de poder

provocar danos à saúde humana e ou ao ambiente.” Aqui, mais do que a própria definição

em si, merece ênfase a circunstância da efetiva e intensa densidade legislativa afeta ao tema

do risco.

O mesmo se dá na seara dos campos eletromagnéticos, onde cabe menção

exemplificativa à Recomendação do Conselho 199/519/CE, de 12 de julho de 1999, reativa

à limitação da exposição da população aos campos electromagnéticos, e que fornece

princípios de orientação para a instalação e localização de equipamentos que geram campos

eletromagnéticos, com a finalidade de eliminar ou reduzir seus efeitos sobre seres

400 Referido Decreto Lei 164/2001 transpôs ao ordenamento português a Diretiva da União Europeia 96/82/CE, de 9 de dezembro de 1996. E que foi modificado pelo Decreto Lei 69/2003, de 10 de abril de 2003, relativo à transposição ao ordenamento português da Diretiva 2003/105/CE, de 16 de dezembro de 2006.

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humanos401.

No que toca à energia nuclear, fazemos menção à Recomendação da Comissão da

União Europeia 2000/473/Euratom, de 8 de junho de 2000, a qual dispõe sobre a vigilância

das taxas de radioatividade na água, ar e solo por meio de monitoramento contínuo,

estabelecendo-se um padrão de segurança destinado à proteção de trabalhadores e do

público em geral contra o perigo da radiação ionizante.

Os diplomas normativos acima não apenas recolheram, alguns de forma expressa, o

termo risco em seus textos, mas, e principalmente, forneceram métodos aptos ao

enfrentamento desse mencionado risco, ou seja, para lidar com situações futuras, sem uma

paralisia ou imobilismo e, em especial, mediante intervenções afetas ao uso e ocupação do

solo.

O risco também ocupa espaço dentro do contexto específico de normas passíveis de

serem classificadas como afetas ao direito do urbanismo, algo que se dá desde o direito

romano ou mesmo à época da Revolução Industrial, como meio de proteção à saúde e de

luta contra epidemias em áreas urbanas que estavam a receber fluxos significativos de

população oriunda do meio rural.

A imbricação do risco no direito do urbanismo pode ser encarada por meio de duas

401 Referida Recomendação deu azo à elaboração, em Portugal, da Resolução a Assembleia da República (RAR) 53/2002. Cabe menção, também, à Lei 30/2010, de 2 de setembro, que trata da proteção à exposição aos campos elétricos e magnéticos derivados de linhas, de instalações e de equipamentos elétricos, recomendando especial prudência no tocante a determinados usos do solo tais como estabelecimentos de saúde, de ensino, edifícios residenciais, lares da terceira idade, asilos e afins, dentre outras (artigo 2º). Prevendo, ainda, um prazo de 13 anos para a adaptação de linhas de transmissão de energia aos limites de exposição traçados pela Lei. São diplomas que disciplinam a localização e determinados equipamentos e usos do solo, norteados pela lógica afeta ao enfrentamento do risco.

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frentes diversas : uma primeira, relativa à avaliação e prevenção de riscos; e uma segunda

afeta às consequências jurídicas decorrentes tanto da percepção assim como da efetiva

concretização dos riscos. Vejamos.

O sistema de prevenção aos riscos oferece-nos, conforme argumentam Fernando

Alves Correia e Ana Raquel Gonçalves Moniz, uma arquitetura que pode ser desdobrada

em dois níveis : um nível de natureza normativa e outro relativo à gestão urbanística402.

No patamar normativo, e conforme já explicitado acima, o risco vem recolhido por

normas de cunho urbanístico das mais diversas. Veja-se, a título de exemplo, as disposições

do Programa Nacional da Política de Ordenamento do Território (designado pela sigla

PNPOT, e veiculado por meio da Lei 58/2007, de 4 de setembro de 2007 e seu respectivo

Relatório e Programa de Acção. Retificada, posteriormente, pela Declarações de

Retificação n. 80-A/2007, de 7 de setembro e n. 103-A/2007, de 2 de novembro403), que

estabelece as grandes opções para a organização do território português e o quadro de

referência à elaboração dos demais instrumentos de gestão territorial. Programa este dotado

de eficácia jurídica, vinculando entidades públicas para além daquela que o elaborou e

aprovou404. E mantém, no tocante a todos os demais planos territoriais, uma superioridade

402 Conforme a doutrina de Fernando Alves Correia (In : ALVES CORREIA, Fernando. Manual de Direito do Urbanismo, Volume II. Coimbra : Almedina, 2010, p. 21), gestão urbanística inclui a execução das prescrições dos planos, mas vai além para abarcar também “todas as atividades relacionadas com a ocupação, uso e transformação do solo, quer sejam realizadas diretamente pela Administração Pública, quer pelos particulares, sob a direcção, promoção, coordenação ou controlo daquela.” Pode haver, portanto, gestão urbanística sem que haja execução de planos, tal qual ocorre, exemplifica o autor, com o licenciamento de operação de loteamento em área não abrangida por qualquer plano, prevista no artigo 42º, do regime Jurídico da Urbanização e da Edificação (RJUE). Registra o autor, não obstante, vozes discordantes para as quais haveria coincidência entre os conceitos de gestão urbanística e execução de planos, dentre as quais se inclui a de López Ramón (In : LOPEZ RAMÓN, Fernando. Introducción al Derecho Urbanístico. 2ª ed., Madrid : Pons, 2007, p. 145).

403 Disposições e outras informações sobre o PNPOT se encontram disponíveis na rede mundial de computadores, na página : www.territorioportugal.pt/pnpot/ - última consulta realizada aos 22 de janeiro de 2013.

404 Conforme aponta Fernando Alves Correia, os planos territoriais são, todos, “dotados de eficácia jurídica, variando, no entanto, o círculo de destinatários e o grau de vinculatividade de suas disposições.” Sugere o autor, conforme a eficácia, uma classificação “que distingue entre autoplanificação, heteroplanificação e

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hierárquica, na modalidade compatibilidade, fornecendo diretrizes de necessária

observância quando da elaboração de mencionados instrumentos de organização

territorial405.

Para o PNPOT, a ineficiente gestão de riscos constitui-se num dos grandes

problemas do ordenamento território Português (artigo 251, “a”, do Relatório do PNPOT).

E sua prevenção e minimização como um dentre seis objetivos estratégicos constitutivos do

quadro referencial de compromissos das políticas com incidência territorial (nesse sentido,

o artigo 5º, n.1, 2, “a”, da Lei 58/2007). O risco, portanto, é tratado pelo PNPOT como

verdadeiro vetor estruturante à identificação e organização dos recursos territoriais,

erigindo a gestão preventiva dos riscos como uma prioridade na política de organização

territorial.

Ao lado do Programa Nacional, o risco é recepcionado e recolhido por diplomas

legais dos mais diversos, e cuja prevenção e mitigação é levada adiante mediante

intervenções no tecido urbano. Apenas com fito exemplificativo, mencionamos, na esteira

dos ensinamentos de Fernando Alves Correia e Ana Raquel Gonçalves Moniz, os diplomas

seguintes : Decreto Lei 364/1998, de 21 de novembro, impondo quando da confecção dos

planificação plurissbujectiva. A primeira engloba os planos que produzem efeitos jurídicos ou que vinculam os próprios sujeitos de direito público a quem são imputados os planos; a segunda abrange os planos que vinculam outras entidades públicas para além daquela que os elaborou e aprovou; e a terceira compreende os planos que vinculam directa e imediatamente os particulares.” (In: CORREIA, Fernando Alves. Manual de Direito do Urbanismo. Vol. I. 2ª edição, revista e aumentada. Coimbra : Almedina, 2004, p. 306). Quanto à vinculatividade do PNPOT em relação a outras entidades públicas além daquela que o aprovou, veja-se nota 51, de fls. 307, da mencionada obra, que trata especificamente da aplicabilidade do PNPOT às Regiões Autónomas de Açores e da Madeira.

405 Para Fernando Alves Correia (In: CORREIA, Fernando Alves. Manual de Direito do Urbanismo. Vol. I. 2ª edição, revista e aumentada. Coimbra : Almedina, 2004, p. 364 e p. 368), a relação entre o PNPOT e os restantes planos “se trata de uma relação comandada pelo princípio da hierarquia, na modalidade de princípio da compatibilidade, visto que aquele ‘instrumento de desenvolvimento territorial’ é, como se viu, um plano de directivas.” Referido princípio da hierarquia pode ser pautado por uma maior ou menor força vinculativa em relação aos restantes planos. Manifesta-se, assim, como uma imposição de conformidade, “impondo que o plano inferior consagre disposições conformes às do plano superior (relação hierárquica mais rigorosa e estreita) ou limitando-se a exigir que o plano inferior respeite as directivas do superior, determinando apenas que o primeiro não contenha disposições contrárias ou incompatíveis com as do segundo (relação hierárquica menos exigente e menos apertada).” O PNPOT encaixa-se nesta segunda hipótese.

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Planos Municipais de Ordenamento do Território a delimitação, em cartografia, das zonas

inundáveis, bem como as restrições cabíveis para enfrentar o risco de enchentes (artigo 2º);

Decreto Lei 164/2001, de 23 de maio406, o qual impõe que, na “elaboração e execução dos

instrumentos de gestão territorial devem as entidades competentes assegurar as distâncias

adequadas entre os estabelecimentos abrangidos pelo presente diploma e as zonas

residenciais, as zonas de utilização pública e as zonas ambientalmente sensíveis” (artigo 4º,

n.3); Decreto Lei 124/2006, de 28 de junho, que estabelece as medidas e ações a

desenvolver no âmbito do Sistema Nacional de Defesa da Floresta contra Incêndios,

traçando diretrizes, a partir de seu artigo 7º, para a realização de planejamento da defesa da

floresta contra incêndios, o qual é devidamente inserido num contexto de ordenamento do

território407; Decreto Lei 178/2006, de 5 de setembro, referente à gestão de resíduos e que

insere dentre seus princípios a redução do risco à saúde e ao meio ambiente, mediante

planejamento cujo conteúdo também há de contemplar locais e instalações apropriadas para

a valorização ou eliminação de resíduos (artigo 17, “c”); Decreto Lei 309/93, de 2 de

setembro, que veicula diretrizes respeitantes à organização da gestão dos solos da faixa

costeira, determinando ainda óbices concretos à construção em zonas de risco elevado

(artigo 3º, n. 2).

Em patamar infra legislativo, a prevenção de riscos pode se dar tanto por meio do

planejamento territorial quanto da gestão urbanística.

No que toca ao planejamento, este assume um papel importante na prevenção de

riscos, pois o mesmo contribui à previsibilidade, posicionando-se como um instrumento de 406 Referido diploma legal trata da prevenção de risco de acidentes graves causados por certas atividades industriais. Na senda do mencionado Decreto Lei 164/2001, foi editado o Decreto Lei 254/2007, de 12 de julho, que trata da prevenção de acidentes graves e limitação de suas consequências, com disposições específicas relativas à prevenção e controle, seara na qual se incluem os planos municipais de ordenamento do território e operações urbanísticas (artigo 5º, e seguintes). 407 Com disposições que tratam, exemplificativamente, de zoneamento (ou, conforme o texto original, de “zonagem”) do continente segundo o risco espacial de incêndios (artigo 5º), assim como de medidas para a proteção não apenas de recursos florestais mas também de pessoas e bens, que incluem regras relativas à edificação em zonas de elevado risco de incêndios (artigo 16) e previsão da possibilidade de expropriação e instituição de servidões administrativas (artigo 14). Conforme versão do Decreto-Lei 17/2009, de 14 de janeiro.

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antecipação de riscos. O planejamento se materializa em planos que podem ser setoriais,

tais como os já mencionados planos de defesa de florestas contra incêndios e de gestão de

dejetos, assim como aqueles de gestão territorial. Os planos cumprem importante papel na

seara do enfrentamento do risco, seja prevenindo os riscos decorrentes da ação humana,

seja contemplando os riscos que o ambiente pode representar para atividades futuras de

urbanização, seja protegendo a integridade biofísica.

O conteúdo dos planos deve levar em conta os riscos e conduzir à edição de

interdições, restrições ou mesmo condições relativas à utilização, ocupação e transformação

do solo. O direito de propriedade, especialmente quando tem por objeto o solo, o qual é

marcado pela insuficiência e a não reprodutibilidade, deve inserir-se portanto num regime

jurídico socialmente justo. Consistirá, assim, num direito de propriedade emoldurado pela

vinculação situacional, eventuais interdições resultando de aspectos físicos inerentes ao

solo, incluindo-se os riscos aos bens naturais e às pessoas. Tal qual ocorre, por exemplo,

com a normativa relativa à prevenção de acidentes graves causados por certas atividades

industriais, a qual determina que determinados estabelecimentos guardem uma distância

adequada de zonas residências, de uso público e ambientalmente sensíveis408.

E o enfrentamento dos riscos não se limita apenas ao conteúdo dos planos. A

prevenção e a mitigação de riscos acaba sendo concretizada também por meio de três

princípios afetos à elaboração dos planos, quais sejam : o da colaboração entre as pessoas

públicas, o de avaliação ambiental estratégica e o da participação popular na elaboração de

planos. A colaboração entre as pessoas públicas que pode envolver a criação de organismos

para acompanhamento da elaboração dos planos, com assento de representantes diversos e

potencialmente com o dever de transmitir as informações necessárias à identificação e

avaliação dos diferentes tipos de riscos subjacentes relativos às opções de planejamento.

408 Artigo 5º, n.1, do Decreto Lei 164/2001, de 23 de maio, alterado pelo Decreto Lei 254/2007, de 12 de julho.

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Quanto à avaliação estratégica de planos, elemento procedimental essencial, esta se

encontra prevista pelo Decreto Lei 232/2007, de 15 de junho de 2007409 e consiste em

corolário da aplicação do princípio da prevenção, a que se sujeitam não apenas os

instrumentos de planejamento territorial mas todos os planos e programas suscetíveis de

produzir efeitos significativos ao meio ambiente.

Por fim, a participação dos interessados fornece mecanismos adequados para levar

ao conhecimento das autoridades eventuais riscos por estas desconhecidos.

Também contribui à lógica de enfrentamento do risco o regime jurídico relativo à

dinâmica dos planos. Os planos, embora devam revestir-se de estabilidade, não podem ser

tampouco imutáveis e necessitam estar sensíveis à “dinamicidade da atividade

urbanística.410” A ordem jurídica portuguesa admite, assim, diante de determinadas

situações, a modificação de planos411. São situações nas quais, em momento posterior ao da

sua elaboração, verifica-se uma alteração de circunstâncias de fato ou de direito aptas a

ensejar uma mudança dos apontados instrumentos do planejamento. Um regime jurídico

que permite, também, o enfrentamento do risco. A título de exemplo, alude-se ao artigo 95,

n.2, “c”, do RJIGT412, que admite a alteração dos instrumentos de planeamento territorial e

dos instrumentos de natureza especial diante de “circunstâncias excepcionais,

designadamente em situações de calamidade pública ou de alteração substancial das

condições económicas, sociais, culturais e ambientais que fundamentaram as opções

definidas no plano;”. Acrescentamos : não há de se confundir calamidade com risco, mas

409 Transpondo para a ordem jurídica interna de Portugal as Directivas nos. 2001/42/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de Junho, e 2003/35/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de junho de 2001. 410 CORREIA, Fernando Alves. Manual de Direito do Urbanismo. Vol. I. 2ª edição, revista e aumentada. Coimbra : Almedina, 2004, p. 408.

411 Nesses termos, o artigo 93, n. 1, do RJIGT (Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial, veiculado pelo Decreto-Lei 380/99, de 22 de setembro, modificado e republicado pelo Decreto Lei 60/2007, de 4 de setembro).

412 Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial, veiculado pelo Decreto-Lei 380/99, de 22 de setembro, modificado e republicado pelo Decreto Lei 60/2007, de 4 de setembro.

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indubitavelmente referidas situações excepcionais darão azo a novos riscos. Habilita-se,

portanto, a possibilidade de mudança para adequadamente enfrentar tais riscos.

O risco, nesses termos, acaba, segundo Fernanda Paula Oliveira413, se convertendo

em verdadeiro princípio relativo ao planejamento. A autora defende “a formulação de um

princípio da coincidência, que perfilha o respeito pela ‘vinculação situacional’ dos solos,

determinando que a sua afectação urbanística seja o mais próxima possível da real aptidão

dos terrenos que a suportarão. Numa formulação negativa, e que tem subjacente ainda o

princípio da separação de usos incompatíveis e da consideração de todos os factos

(interesses) relevantes para a decisão de planeamento, o princípio em causa obriga a arredar

certos usos de localizações de risco, trazendo à colação a necessidade de introdução, no

domínio do planeamento do território, de um princípio de consideração dos riscos, que

permita ao plano enfrentar e gerir este tipo de situação e evitar a ocorrência de novas

catástrofes que poderiam ser originadas pela decisão de localização de certas funções em

solos particularmente vulneráveis àquela ocorrência.”

O risco acaba por impor determinados métodos para o seu apto enfrentamento.

Como bem coloca a Fernanda Paula Oliveira : “Interessa aqui acentuar não só a

necessidade de introdução do fenómeno do risco e da sua relevância na ocupação do espaço

e do planeamento do território, mas também compreender como este pode fornecer

indicações e instrumentos úteis a reduzir e/ou mitigar os níveis de riscos crescentes a que

estão expostas a colectividades humanas, de forma a tornar o território menos vulnerável a

este tipo de fenómenos.”414 Nesses termos, a gestão de riscos se concretiza,

413 OLIVEIRA, Fernanda Paula. A discricionariedade de Planeamento Urbanístico Municipal na Dogmática da Discricionariedade Administrativa (Tese de Doutoramento). Coimbra : Almedina, 2011, p. 549. Risco, acrescentamos, que deve ser devidamente considerado e inserido não apenas quando da realização do planejamento urbano, mas em todas as intervenções no tecido urbano. E a irradiar não apenas restrições e proibições, mas também ações, decisões. A devida proteção de direitos pelo Estado enfeixa ampla gama de ações, sejam elas de cunho negativo, proibitivo, mas também de natureza positiva e prestacional, conforme trataremos mais adiante.

414 OLIVEIRA, Fernanda Paula. A discricionariedade de Planeamento Urbanístico Municipal na Dogmática da Discricionariedade Administrativa (Tese de Doutoramento). Coimbra : Almedina, 2011, p. 550.

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exemplificativamente, por meio de planos setoriais, tais como os planos de emergência415,

pela elaboração de cartas de riscos ou cartas de áreas perigosas416 ou mesmo mediante a

incorporação de “políticas reguladoras consubstanciadas em normas de natureza

prestacional e em standards que impõem limitações ao uso dos solos e à sua

mudança/transformação a fim de evitar o aumento de vulnerabilidade/risco já existente.” 417E, à luz dessas considerações, arremata Fernanda Paula Oliveira418 quanto à necessidade

de “introduzir e reforçar uma cultura do risco na planificação urbana e territorial”.

Ainda no patamar infra legal, exploram Fernando Alves Correia e Ana Raquel

Gonçalves Moniz as possibilidades oferecidas pelos regulamentos para o enfrentamento do

risco. A título de exemplo, apontam para a obrigatoriedade da realização de estudos

geológicos e hidrológicos em precedência às construções, prevista nos Regulamentos

Municipais de Urbanização e Edificação das cidades de Coimbra419 de e de Lisboa420. Da

mesma forma, veiculam os regulamentos normas de compatibilidade de usos e atividades,

tal qual ocorre com o já mencionado Regulamento de Urbanização e Edificação de

Coimbra, em seu atual artigo 5º, letra “c”, o qual exige que as utilizações, ocupações ou

atividades a instalar não podem “constituir fator de risco para a integridade das pessoas e

bens, incluindo o risco de incêndio, explosão ou toxicidade”.

A prevenção ao risco ainda merece ser levada a cabo por meio da gestão

415 OLIVEIRA, Fernanda Paula. A discricionariedade de Planeamento Urbanístico Municipal na Dogmática da Discricionariedade Administrativa (Tese de Doutoramento). Coimbra : Almedina, 2011, p. 551.

416 OLIVEIRA, Fernanda Paula. A discricionariedade de Planeamento Urbanístico Municipal na Dogmática da Discricionariedade Administrativa (Tese de Doutoramento). Coimbra : Almedina, 2011, p. 553.

417 OLIVEIRA, Fernanda Paula. A discricionariedade de Planeamento Urbanístico Municipal na Dogmática da Discricionariedade Administrativa (Tese de Doutoramento). Coimbra : Almedina, 2011, p. 554.

418 OLIVEIRA, Fernanda Paula. A discricionariedade de Planeamento Urbanístico Municipal na Dogmática da Discricionariedade Administrativa (Tese de Doutoramento). Coimbra : Almedina, 2011, p. 554.

419 Regulamento Municipal de Urbanização e Edificação de Coimbra, em seus atuais artigos 8º e 9º (atual Regulamento 252/2012, publicado no Diário da República, 2.ª série — N.º 132 — 10 de julho de 2012);

420 Regulamento Municipal de Urbanização e Edificação de Lisboa, em seu Anexo III (Diário da República, 2.ª série — N.º 8 — 13 de Janeiro de 2009);

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urbanística, ou seja, pela atividade de controle da Administração quanto à legalidade das

operações urbanísticas levadas adiante pelos particulares. Referido controle exercido pela

Administração pode se dar, por exemplo, quando da expedição de licenças ou avaliação de

comunicações prévias421. Da mesma forma, cabe para verificar a conformidade das

operações realizadas com fulcro em licenças ou comunicações prévias anteriormente

expedidas de forma regular422. E mesmo após finda a operação os controles relativos a

questões de segurança são aptos a ser renovados423.

Mesmo diante da ulterior aparição de riscos ou do posterior conhecimento destes,

pode dar azo à caducidade de licenças, tal qual se verifica, a título de exemplo com a Lei de

Águas (Lei 58/2005, de 29 de dezembro), em seu artigo 68, n.6, o qual admite a revogação

de títulos de utilização privativa de recursos hídricos em razão de uma proteção maior ou

mesmo da alteração das circunstâncias que se encontravam presentes quando de sua

emissão.

Por fim, abordam Fernando Alves Correia e Ana Raquel Gonçalves Moniz o que

denominaram de realização de riscos, ou seja, o aspecto relativo à responsabilização em

razão da efetiva concretização dos riscos. Responsabilidade que pode ser criminal424,

421 Quando as licenças ou as comunicações não sejam compatíveis com as normas as disposições legais, regulamentares ou mesmo afetas aos planos estas serão negadas. Nesse sentido, os artigos 20, 21, 24, 36, 67 e 68 do Regulamento Jurídico da Urbanização e Edificação (RJUE – Decreto Lei 555/99, de 19 de dezembro, modificado e republicado pela Lei 60/2007,de 4 de setembro e pelo Decreto-Lei 26/2010, de 30 de março). As comunicações prévias consistem em forma de controle prévio de determinadas operações urbanísticas mais simples e mais célere que a licença (veja-se o artigo 4º, n. 4, do RJUE. E, ainda : CORREIA, Fernando Alves. Manual de direito do urbanismo - 3º volume. Coimbra : Almedina, 2010, p. 51).

422 Nesse sentido, o artigo 93º, n.2, do já mencionado RJUE, e que menciona de forma expressa a prevenção de perigos para a saúde e segurança das pessoas como finalidade da fiscalização das operações. 423 Possibilitando a lei, a título de exemplo, a verificação quanto a ser construção apropriada aos seus fins (artigo 64º, n.2, “c” e 65º, ambos do RJUE), impondo trabalhos de conservação (RJUE, artigo 89º) e até mesmo a execução de obras coercivas com possibilidade de despejo administrativa para realização das mesmas (RJUE, artigos 91º e 92º).

424 Menção exemplificativa feita aos crimes de perigo comum, veiculados pelos artigos 277º, n.1, 278º e 280º, todos do Código Penal Português (Lei 59/2007,de 4 de setembro).

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disciplinar425 ou mesmo das coletividades públicas, alcançando inclusive a omissão

legislativa426 e, ainda, ao lado da responsabilização por atos ilícitos427, aquela decorrente do

exercício de atividades particularmente perigosas428.

Portanto, o que não faltam são instrumentos e métodos de intervenção no uso e na

ocupação do solo que não apenas são aptos mas muitas vezes imprescindíveis para o

enfrentamento do risco em suas diferentes e múltiplas manifestações.

Em linha semelhante, mas tratando especificamente de catástrofes naturais,

trazemos à baila a doutrina de Fernanda Paula Oliveira e Dulce Lopes429, as quais também

explicitam métodos dos mais diversos recolhidos pelo direito do urbanismo e aptos a lidar

com o risco em sua dimensão espacial. Argumentam as autoras quanto à existência de um

regime jurídico público para se enfrentar catástrofes assente nos vetores de prevenção e de

reação e que envolve a utilização de várias medidas de regulamentação de uso e ocupação

do solo, tanto com a finalidade de se limitar ou até mesmo impedir a implantação de

pretensões urbanísticas em zonas de risco, bem como voltadas à intervenção em zonas

425 O artigo 101º, do RJUE, trata da responsabilização disciplinar de funcionários e agentes que deixem de informar, ou prestem informações falsas ou errôneas relativas a infrações a lei ou regulamentos de que tenham conhecimento no exercício de suas funções.

426 Responsabilização por prejuízos anormais e somente se a omissão concerne à aplicação de normas constitucionais, e desde que constatado previamente pelo Tribunal Constitucional (conforme artigo 283 da Constituição da República Portuguesa e artigo 15, ns. 3 e 5, do RCEE – Lei 67/2007, de 31 de dezembro, alterada pela Lei 31/2008, de 17 de junho, que Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, que aprova o Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas).

427 Mencionam os autores portugueses julgado da Corte Europeia de Direitos Humanos (aresto Öneryilidiz c. Turquia, de 28 de abril de 2004, P. 48939/99), relativo a explosão de gás metano em depósito intermunicipal de resíduos em Istambul, que causou a morte de membros de uma família. Decidiu-se que o conhecimento de riscos, os quais já haviam sido apontados em relatório, e a não adoção de medidas necessárias para prevenir ou minimizar tais riscos, ensejavam a responsabilização do poder público (In : CORREIA, Fernando Alves, MONIZ, Ana Raquel Gonçalves. Portugal, rapport national. In : Risque et droit de l’urbanisme en Europe. Les cahiers du GRIDAUH. N. 20. Paris : GRIDAUH, 2011, p. 278, nota 60).

428 Responsabilidade pelo risco. Nesse sentido, o artigo 11, do RCEE.

429 OLIVEIRA, Fernanda Paula, LOPES, Dulce. Catástrofes naturais e direito do urbanismo. In : AMADO GOMES, Carla. Direito (s) das catástrofes naturais. Coimbra : Almedina, 2012, p. 173 e seguintes.

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urbanizadas e já expostas a situações de risco.

Para as autoras o risco pode se referir tanto a atividades, potenciadoras de riscos,

assim como a espaços, alguns particularmente sensíveis e vulneráveis. Sendo possível, por

meio do plano urbanístico, proceder à correta localização das atividades.

Introduzem, nesses termos, um novo princípio no domínio do planejamento do

território, qual seja, o de consideração dos riscos e de vinculação situacional, segundo a

qual determinados solos “não têm aptidão para receber implantações humanas (...)

precisamente por estas ficarem especialmente expostas à ocorrência de catástrofes

naturais”430. O planejamento, portanto, não pode se limitar apenas à racionalização dos

fenômenos de crescimento urbano e à reorganização das estruturas urbanísticas, mas deverá

incorporar, necessariamente, medidas para prevenção, mitigação e redução de riscos.

Ressaltam Fernanda Paula Oliveira e Dulce Lopes431 que “os riscos não devem ser

perspectivados unicamente como condicionantes ao planeamento. Pelo contrário, os planos

municipais, como instrumentos orientados para a gestão, devem estabelecer uma

regulamentação especial para áreas vulneráveis com vista a minimizá-los ou mitigá-los.”

Tais instrumentos se prestam a incorporar, tal qual já asseverado anteriormente, “políticas

reguladoras consubstanciadas em normas de natureza prestacional, e em standards que

impõem limitações ao uso dos solos e à sua mudança/transformação, as quais podem ser

utilizadas com a finalidade de evitar o aumento da vulnerabilidade/risco já existente.”432 É

430 OLIVEIRA, Fernanda Paula, LOPES, Dulce. Catástrofes naturais e direito do urbanismo. In : AMADO GOMES, Carla. Direito (s) das catástrofes naturais. Coimbra : Almedina, 2012, p. 175.

431 OLIVEIRA, Fernanda Paula, LOPES, Dulce. Catástrofes naturais e direito do urbanismo. In : AMADO GOMES, Carla. Direito (s) das catástrofes naturais. Coimbra : Almedina, 2012, p. 178.

432 Fernanda Paula Oliveira e Dulce Lopes distinguem entre riscos naturais, perigosidade e vulnerabilidade (In : OLIVEIRA, Fernanda Paula, LOPES, Dulce. Catástrofes naturais e direito do urbanismo. In : AMADO GOMES, Carla. Direito (s) das catástrofes naturais. Coimbra : Almedina, 2012, p. 173 e 174). Os riscos naturais referem-se à “possibilidade de ocorrência – e respectiva quantificação em termos de custos – de

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o que sucede, conforme apontam as autoras, com as áreas com ocorrência de riscos naturais

ou tecnológicos e incompatíveis com sua integração em solo urbano, as quais devem ser

classificadas como rurais, consoante disposições do Decreto Regulamentar 11/2009, de 29

de maio, em seu artigo 5º, 2, “d”. Riscos que também podem dar azo à suspensão dos

planos municipais, em face da ocorrência de catástrofes, com imposição da obrigação de

integrar em referidos planos as disposições necessárias para fazer frente a riscos

subsistentes, nos termos do artigo 26º, da Lei n. 27/2006, Lei de Bases da Protecção Civil.

O risco também assume relevo, pontuam Fernanda Paula Oliveira e Dulce Lopes433,

“no domínio das directivas de planeamento – normas dirigidas à entidade planeadora que,

embora dotadas de um grau de vinculação pouco denso, orientam as concretas opções

planificadoras”. Algumas dessas directivas434 têm como fundamento os riscos territoriais e

consequências gravosas (...) em resultado do desencadeamento de um fenômeno natural.” A seu turno, a perigosidade é “entendida como a probabilidade de ocorrência de um fenômeno com uma determinada magnitude (...) num determinado período de tempo e numa dada área.” Por fim, corresponde a vulnerabilidade ao “grau de perda de um elemento ou conjunto de elementos vulneráveis (..) resultante da ocorrência de um fenómeno (natural ou induzido pelo Homem) com determinada magnitude ou intensidade.”

433 OLIVEIRA, Fernanda Paula, LOPES, Dulce. Catástrofes naturais e direito do urbanismo. In : AMADO GOMES, Carla. Direito (s) das catástrofes naturais. Coimbra : Almedina, 2012, p. 181.

434 Fernanda Paula Oliveira (OLIVEIRA, Fernanda Paula. A discricionariedade de planeamento urbanístico Municipal na dogmática da discricionariedade Administrativa (Tese de Doutoramento). Coimbra : Almedina, 2011, p. 503), ao tratar das limitações legais que se impõem ao planejador municipal, reconhece-as como classificáveis em graus distintos. Variam desde determinações que fixam fins ou objetivos até aquelas que dispõem sobre regras concretas. Nesse contexto, temos os objetivos ou diretrizes, de grau de vinculação pouco denso – denominados pela doutrina alemã de diretivas de planejamento e que consistem “normas de conduta dirigidas à Administração na sua atividade planeadora (...) tomadas em consideração como linhas gerais de orientação nesta tarefa legislativa.” (Ibid., p. 503). Ainda neste grupo, menção é feita aos “interesses públicos com expressão territorial a ser considerados (e integrados) nos planos, designadamente municipais (cfr. Artigos 10º e ss. do RJIGT). Mencionados interesses, embora não apontem necessariamente num determinado sentido quanto às opções de planeamento, condicionam-nas amplamente, na medida em que existe a obrigação de os mesmo serem integrados na ponderação e de serem especificamente tratados (regulados) nos planos municipais. Num segundo grupo de normas limitadoras da discricionariedade do planejador municipal nos deparamos com os standards que veiculam, dentro de uma concepção mais estrita, “indicadores numéricos, normalmente limiares mínimos a cumprir no planeamento de forma a satisfazer necessidades ou exigências sociais” (Ibid., p. 510). Por fim, num terceiro grupo concebem-se as imposições ou proibições, dotadas de maior grau de precisão, “visando a salvaguarda de um concreto ou específico interesse público, lhe atribuem uma preferência em relação aos restantes, excluindo-o da ponderação (...) É o que sucede com as normas legais que definem um regime particular para determinado tipo de bens, quer em função das suas particulares características (limitações de caráter real), quer da especial finalidade a que a lei as destina (limitações de caráter funcional)” (Ibid., p. 513). Consistindo, conforme já abordado há pouco, o RJIGT no Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial (Decreto-Lei n. 380/99, de 22 de setembro, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n. 53/2000, de 7 de abril, pelo Decreto-Lei n. 310/2003, de

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as “zonas com particulares perigosidades.” É o que ocorre, consoante exemplificam as

autoras, com municípios e aglomerados urbanos atingidos por cheias, os quais devem

elaborar cartas de zonas inundáveis, sendo respectiva delimitação de inserção obrigatória

em seus planos de ordenamento do território, conforme o artigo 2º, do Decreto-Lei 364/98,

de 21 de novembro. Decorre do referido diploma legal o dever de “introduzir medidas de

proteção contra riscos de cheias nos planos municipais dos municípios por elas

atingidos”435. Medidas que podem incluir normas específicas de edificação, sistemas de

proteção e drenagem e até mesmo medidas não só de manutenção, mas de recuperação das

condições de permeabilidade dos solos. A determinação das específicas medidas a serem

adotadas caberá aos municípios, os quais encontrarão, não obstante, limites à sua

discricionariedade436 em face do dever de “considerar e ponderar os riscos de cheias nas

decisões de planeamento nas decisões de sua responsabilidade”437.

A imbricação do risco com o planejamento também é manifesta em outros

domínios, como por exemplo no tocante à ocorrência de incêndios florestais, uma realidade

frequente no território português.

Prevê o ordenamento de Portugal um instrumento para prevenção e defesa da

10 de dezembro, pela Lei n. 58/2005, de 29 de dezembro, pela Lei n. 56/2007, de 31 de agosto, pelo Decreto-Lei n. 316/2007, de 19 de setembro, pelo Decreto-Lei n. 46/2009, de 20 de fevereiro e pelo Decreto-Lei 181/2009, de 7 de agosto.)

435 OLIVEIRA, Fernanda Paula, LOPES, Dulce. Catástrofes naturais e direito do urbanismo. In : AMADO GOMES, Carla. Direito (s) das catástrofes naturais. Coimbra : Almedina, 2012, p. 180.

436 Anota Fernanda Paula Oliveira, tratando da discricionariedade do planejador municipal, afirma o quanto segue: “O grau de condicionamento ou de limitação dos planos de escalão superior em relação aos planos municipais depende do tipo ou nível de sujeição hierárquica que entre eles se estabeleça : ou estamos perante a vertente mais rígida e exigente da conformidade – situação em que o plano superior contém opções territoriais concretas e mais precisas, limitando em maior medida o poder de opção municipal – ou a vertente mais flexível e menos apertada da compatibilidade – (...) exigindo-se apenas que as opções a tomar por eles não sejam contrárias ou incompatíveis com as dos planos hierarquicamente superiores.” (In : OLIVEIRA, Fernanda Paula. A discricionariedade de planeamento urbanístico Municipal na dogmática da discricionariedade Administrativa (Tese de Doutoramento). Coimbra : Almedina, 2011, p. 516.)

437 OLIVEIRA, Fernanda Paula, LOPES, Dulce. Catástrofes naturais e direito do urbanismo. In : AMADO GOMES, Carla. Direito (s) das catástrofes naturais. Coimbra : Almedina, 2012, p. 180.

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floresta contra incêndios, consistente nos planos municipal de defesa da floresta contra

incêndios (PMDFCI), regulado pelo Decreto-Lei n. 124/2006, de 28 de junho (na versão

do Decreto-lei 17/2009, de 14 de janeiro). Referido PMDFCI vincula o Município e deve

ser obrigatoriamente integrado aos respectivos planos municipais, conforme disposição

expressa do n.1 e n.2, do artigo 16º, do mencionado diploma legal. A cartografia de risco de

incêndio deverá ser levada em conta na classificação e qualificação do solo, sendo vedada a

atividade construtiva para habitação, comércio, serviços e indústria nos terrenos

classificados pelos PMDFCI como de risco de incêndio elevado ou muito elevado438.

O conhecimento de perigos e a redução de riscos também importam à gestão

urbanística, haja vista que a atividade de edificação e de utilização humana podem

contribuir para o agravamento das situações de risco. Ao lado do planejamento, pode o

enfrentamento do risco pode ser levado a cabo também por meio de disposições relativas ao

direito público da construção, área também integrada ao direito do urbanismo, consoante

defendem Dulce Lopes e Fernanda Paula Oliveira. Referidas disposições também têm um

papel fundamental no enfrentamento de riscos à luz das exigências impostas para a

realização de “operações urbanísticas de iniciativa particular.”439 Veja-se, por exemplo, as

medidas destinadas a aumentar a resistência de edifícios quanto à passagem de fogo e à

contenção de fontes de ignição de incêndios trazidas pelo artigo 16º, n.3, do Decreto-Lei n.

438 Conforme anotam Fernanda Paula Oliveira e Dulce Lopes, discute-se acerca da natureza dos PMDFCI : seriam referidos instrumentos standards, produzindo efeitos imediatos ? Ou teriam a natureza de diretivas, aptas a produzirem efeitos em relação aos particulares apenas após sua integração ao planejamento ? Para as autoras os mencionados planos consistiriam em diretriz de meios, impondo a ponderação adequada dos riscos de incêndio quando da elaboração dos instrumentos de planejamento. Referida discussão ganha relevância no contexto doutrinário Português, onde distinguem-se os planos também em face de sua eficácia jurídica. Para Fernando Alves Correia, todos os planos territoriais vinculam os sujeitos de direito público, mas apenas os planos municipais e especiais de ordenamento do território vinculam direta e imediatamente os particulares (In : ALVES CORREIA, Fernando. Manual de Direito do Urbanismo, Volume I. 2ª edição revista e aumentada. Coimbra : Almedina, 2004, p. 306 e seguintes). Sem embargo, como voz discordante, reconhecendo o efeito vinculativo de outros planos também a particulares, temos Jorge Miranda (MIRANDA, Jorge. Escritos vários sobre Direitos Fundamentais. Estoril : Princípia, 2006, p. 344). Seja como for, importa para a nossa exposição que, de uma forma ou de outra, a questão do risco, aqui se tratando do risco de incêndios, deve ser devidamente levada em conta quando da elaboração dos planos urbanísticos e de toda e qualquer intervenção no tecido urbano.

439 OLIVEIRA, Fernanda Paula, LOPES, Dulce. Catástrofes naturais e direito do urbanismo. In : AMADO GOMES, Carla. Direito (s) das catástrofes naturais. Coimbra : Almedina, 2012, p.191.

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124/2006, de 28 de junho (conforme versão do Decreto-Lei n. 17/2009, de 14 de janeiro).

Merecem menção, ainda, as disposições fornecidas pela legislação relativa a cheias e

enchentes, determinando-se a delimitação gráfica das zonas inundáveis ou ameaçadas pelas

cheias e, em decorrência, condicionamentos e proibições referentes à edificação440.

O desrespeito a disposições normativas afetas ao risco, seja na seara do

planejamento, seja na esfera da gestão urbanística, conduzirão à invalidade dos atos

administrativos praticados. Nada obstante, e se estivermos diante de uma situação onde

eventual mitigação do risco não encontra, ainda, respaldo em qualquer disposição legal

expressa ? Tal qual ocorre, por exemplo, com a solicitação de licença para construir e área

inundável ? Fernanda Paula Oliveira e Dulce Lopes reconhecem que eventual denegação de

licença sem o respaldo de um dos motivos trazidos pelo elenco taxativo do artigo 36º-A, da

(RJUE), e com respaldo tão só no princípio da precaução seria difícil de conceber. Sem

embargo, diante de casos limites, havendo fortes evidências de que a concessão da licença

cristalizará uma situação de perigo, clama o interesse público pela denegação do ato, em

caráter excepcional, alicerçado em evidências substanciais e no princípio da

proporcionalidade441.

Ainda em sede de gestão urbanística, pode a ocorrência de uma catástrofe natural442

servir de fundamento para a revisão e revogação de atos anteriormente praticados. Referida

situação, a título de exemplo, pode impedir a realização de alterações ou mesmo de 440 Lei 58/2005, de 29 de dezembro (Lei de Água), especialmente em seus artigos 24º, 25º e 40º.

441 Trazem as autoras menção relativa à admissão, pela jurisprudência francesa, da emissão de um certificado de urbanismo negativo, obstando a construção em parcelas em zona inundável, em que pese não haver sido editado à época plano de prevenção de riscos contemplando referida área (OLIVEIRA, Fernanda Paula, LOPES, Dulce. Catástrofes naturais e direito do urbanismo. In : AMADO GOMES, Carla. Direito (s) das catástrofes naturais. Coimbra : Almedina, 2012, p. 197, nota 36).

442 As catástrofes podem trazer consequências de natureza física e fundiária. Nesse sentido, consoante referência fornecida por Fernanda Paula Oliveira e Dulce Lopes (OLIVEIRA, Fernanda Paula, LOPES, Dulce. Catástrofes naturais e direito do urbanismo. In : AMADO GOMES, Carla. Direito (s) das catástrofes naturais. Coimbra : Almedina, 2012, p. 199, nota 42), menciona-se o artigo de Monica Jardim e Margarida Costa Andrade : “O desaparecimento e recomposição de imóveis : a perda, a acessão, a demarcação.”, Revista CEDOUA, n. 24 (2/2009), p. 55 e seguintes.

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reconstrução de edificação erigida ao abrigo de legislação anterior. Pode também admitir

operações mesmo em edificações em desconformidade com a legislação vigente, desde que

se destinem à melhoria das condições de segurança funcional, estrutural e construtiva da

edificação (nesses termos, o artigo 60, do Decreto-Lei 307/2009, de 23 de outubro –

Regime Jurídico da Reabilitação Urbana – RJRU).

Fornece o risco, por fim, meios de ação às autoridades públicas de forma a evitar a

produção de danos maiores a bens jurídicos públicos, tal qual ocorre, exemplificativamente,

com a possibilidade de autotutela executiva fornecida pelo artigo 89º, n.3, do Regime

Jurídico da Urbanização e Edificação – RJUE (aprovado pelo Decreto-Lei n. 555/99, de 16

de dezembro, e alterado sucessivamente pelo Decreto-Lei n. 177/2001, de 4 de junho, pela

Lei n. 15/2002, de 22 de fevereiro, pela Lei n. 60/2007, de 4 de setembro, pelo Decreto-Lei

n. 18/2008, de 29 de janeiro, pelo Decreto-Lei n.116/2008, de 4 de julho, e pelo Decreto-

Lei n. 26/2010, de 30de março), que possibilita a demolição total ou parcial de construções

que ameacem ruína ou ofereçam perigo à saúde pública e para a segurança. Sendo inclusive

possível a imposição de deveres ao proprietários tendentes à mitigação de riscos

relacionados com os seus prédios, nos termos da Lei n. 27/2006, de 3 de julho (Lei de

Bases da Proteção Civil), ou até mesmo a adoção de medidas expropriatórias, adquirindo-se

áreas de risco, indenizando-se o proprietário.

A atuação em relação a infraestruturas que já se encontram devidamente inseridas

no tecido urbano e na qual se imbrica o risco é também objeto do Decreto-Lei 62/2011, de

9 de maio, de Portugal. Mencionado diploma consiste na transposição ao ordenamento

português da Diretiva da União Europeia 443 de número 2008/117/CE, do Conselho, de 8 de

Dezembro. O texto legal fornece critérios à identificação das denominadas infraestruturas

críticas europeias, ou “ICE”, assim entendidas como “a infra-estrutura crítica situada em

território nacional cuja perturbação ou destruição teria um impacto significativo em, pelo

443 Sobre Directivas e sua transposição aos ordenamentos pátrios, veja-se : artigos 288 e 291, do Tratado de Funcionamento da União Europeia – TFUE.

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menos, mais um Estado membro da União Europeia, sendo o impacto avaliado em função

de critérios transversais, incluindo os efeitos resultantes de dependências intersectoriais em

relação a outros tipos de infra-estruturas”444. Ditas infraestruturas, uma vez identificadas,

imporão, dentre outras providências, a adoção de um plano de segurança destinado à

identificação de riscos e seu correlato enfrentamento.

Assim, o desenvolvimento urbanístico pode tanto gerar uma maior vulnerabilidade

em relação aos riscos naturais como também pode conduzir a um ambiente propício para a

implantação, por exemplo, de medidas de mitigação. Mostrando-se medida de rigor que

apontados riscos sejam inseridos de forma apropriada no âmbito do direito do urbanismo.

Todavia, conforme arrematam Fernanda Paula Oliveira e Dulce Lopes, dada a

fragmentaridade do quadro normativo português, não cumpre o direito do urbanismo

“plenamente a sua função de mediador em situações de risco, pelo que urge a sua revisão.”

445 Necessária, ainda, “a criação de uma cultura de prevenção do risco através da integração

da sua consideração nas políticas de desenvolvimento e ordenamento territorial e de

urbanismo.” 446 Talvez, acrescentamos, mais importante do que a alteração das disposições

legais em si, é a alteração do modo de pensar do intérprete, daquele que constrói as normas,

mesmo no exercício da função administrativa e a quem cabe promover a devida inserção do

risco nessa mencionada construção, preservando antecipadamente direitos dos mais

variados, tais como a vida e a propriedade.

Risco, portanto, que não apenas influencia mas é também influenciado pelos mais

diversos instrumentos jurídicos, ganhando expressão e corpo por meio de institutos

jurídicos de diferente natureza, seja por meio de comandos dotados de maior densidade e

444 Artigo 2º, letra “b”, do Decreto-Lei 62/2011, de 9 de maio, de Portugal.

445 OLIVEIRA, Fernanda Paula, LOPES, Dulce. Catástrofes naturais e direito do urbanismo. In : AMADO GOMES, Carla. Direito (s) das catástrofes naturais. Coimbra : Almedina, 2012,, p. 206.

446 OLIVEIRA, Fernanda Paula, LOPES, Dulce. Catástrofes naturais e direito do urbanismo. In : AMADO GOMES, Carla. Direito (s) das catástrofes naturais. Coimbra : Almedina, 2012, p. 189.

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eficácia mais intensa, como os standards, ou mesmo como elemento a ser levado adiante na

ponderação de interesses, inclusive ante ausência de disposição normativa expressa e

específica, limitando a discricionariedade do agente público e fornecendo adequada

conformação, concretização ou moldura a direitos fundamentais, tais como o direito de

propriedade ou mesmo o direito à vida. Risco que deve ser encarado não como uma

restrição, mas sim como uma lente através da qual enxergamos as intervenções urbanas

num contexto mais amplo, antecipando-se a problemas, agindo mesmo na incerteza, se

acautelando na coleta de informações, ampliando o horizonte temporal e espacial de ditas

intervenções, reavaliando ações, renovando atuações.

1.8.3.2.5.2 – Alemanha

O risco também se encontra devidamente inserido na ordem jurídica da Alemanha,

conforme aponta Mathhias Rossi447. Risco este que pode ser causado pela ação humana, tal

qual ocorre, em relação a instalações industriais, ou mesmo decorrente de eventos

longínquos como a Segunda Grande Guerra, cujos efeitos ainda podem ser sentidos, em

especial no que toca à existência de petardos com explosivos abandonados após o conflito e

que representam possibilidade de danos à população.

Ao lado dos riscos causados pela ação humana, temos aqueles denominados de

naturais, a englobar, exemplificativamente, a proteção contra elevações no nível do mar do

Norte e do Mar Báltico, assim como de territórios próximos a rios.

Um terceiro risco seria o de danos do próprio homem ao ambiente e que é marcado,

447 ROSSI, Mathias. Allemagne, rapport national. In : Risque et droit de l’urbanisme en Europe. Les cahiers du GRIDAUH. N. 20. Paris : GRIDAUH, 2011, p. 119, e ss.

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no direito alemão, pelo desenvolvimento sustentável a impor uma minimização desses

riscos.

E, por fim, riscos que são uma combinação dos precedentes, tal qual ocorre com a

intensificação dos denominados riscos naturais de cheias em razão da ação de

impermeabilização dos solos.

Para a prevenção de riscos, um dos modelos de que dispõe o ordenamento alemão

se alicerça numa divisão tripartite entre perigo, risco e risco residual. Referida divisão,

oriunda do direito ambiental, se presta também a determinar os deveres do Estado diante de

cada uma dessas situações.

A existência de um perigo se alicerça numa acentuada probabilidade da ocorrência

de um prejuízo ou dano ante o livre desenrolar dos eventos.

A seu turno, estar-se-á diante de um risco quando a probabilidade de ocorrência de

dano ou de prejuízo se encontre num patamar inferior àquela que caracterizou o perigo.

A prevenção de perigos, conforme acentua Matthias Rossi, recebe proteção

diretamente da Constituição. Quando os riscos superam determinado patamar surge o dever

constitucional estatal de lançar mão de medidas de salvaguarda, dever esse que se deduz da

proteção exigida, por exemplo, pelo artigo 2 al.II, que trata do direito fundamental à vida e

à integridade física, e artigo 20 a, alusivo ao dever estatal de proteção ao ambiente, ambos

do GG (Grundgesetz - Lei Fundamental para a República Federal Alemã).

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Referido dever de proteção também existe para os denominados riscos, nascendo ao

Estado o dever de minimizá-los.

Sem embargo, reconhece Matthias Rossi quanto à impossibilidade de se garantir

uma segurança absoluta no que diz respeito aos riscos. Inviável sua absoluta erradicação.

Nesses termos, abaixo de um determinado patamar, estar-se-ia diante de uma situação

denominada de risco residual, a qual não ensejaria qualquer obrigação ou dever por parte

do Estado448.

À semelhança do quanto tratado por Matthias Rossi, Brenner e Nehrig449 também

ressaltam o dever de proteção por parte do Estado, seja ele em relação a perigos ou mesmo

a riscos. Conforme esclarecem os autores, a extensão e os limites de tais deveres de

proteção dependem da natureza e da extensão da situação potencialmente apta a produzir

danos ou prejuízos, assim como da relevância do interesse em jogo, o qual deve ser também

ponderado com outros interesses conflitantes. Ressaltam que os deveres de proteção

existem tanto em relação a perigos como no tocante a riscos, mas não no que diz respeito a

riscos residuais.

Prosseguem Brenner e Nehrig450 argumentando que a prevenção de perigos lida

com fatos que são facilmente reconhecidos, sejam eles concretos ou abstratos, e o dever de

proteção decorre diretamente de deveres objetivos positivados em sede constitucional. No

que toca aos riscos, ainda que se esteja diante de uma situação de incerteza, subsiste

448 Menção feita, pelo autor (ROSSI, Mathias. Allemagne, rapport national. In : Risque et droit de l’urbanisme en Europe. Les cahiers du GRIDAUH. N. 20. Paris : GRIDAUH, 2011, p. 123), à noção de proteção mínima que deve ser proporcionada pelo Estado (Untermassverbot) e que pode ser objeto de controle em relação às suas omissões. Atuação estatal que também vem balizada pela interdição do excesso (Übermassverbot).

449 BRENNER, Michael, NEHRIG, Anja. Public Law and Risk in Germany. In : European Review of Public Law, Vol. 15 – No. 1, spring 2003, p. 311.

450 BRENNER, Michael, NEHRIG, Anja. Public Law and Risk in Germany. In : European Review of Public Law, Vol. 15 – No. 1, spring 2003, p. 310.

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também um dever de decidir do Estado.

Nada obstante, conforme ressaltam Brenner e Nehrig451, referido critério tripartite

não se mostra satisfatório para enfrentar situações nas quais a linha divisória entre riscos e

perigos não é evidente, tal qual ocorre, por exemplo, na seara da engenharia genética452.

Sem embargo, qualquer que seja o critério de classificação de riscos esposado,

mostra-se essencial a análise e pesquisa sobre riscos, assim como a adequada avaliação e

utilização de mencionadas informações no processos decisórios. Em especial para se

estabelecer a divisa entre o risco residual em relação a perigos e riscos, e assim permitir a

escorreita e transparente ponderação dos diversos interesses que se encontram em disputa.

Uma primeira medida que se mostra de rigor refere-se à coleta e avaliação prévia de

todos os interesses, ponderando-se aqui também os riscos. A coleta de informações

envolve, inclusive, a criação de órgãos453 tais como : o Instituto Federal de Avaliação de

Riscos, com poderes para avaliar e notificar acerca de riscos relacionados com a proteção

de consumidores e a segurança alimentos; ou ainda a Agência Federal para Medicamentos

e Produtos Farmacêuticos, responsável pela prevenção de perigos e monitoramento de risco

451 BRENNER, Michael, NEHRIG, Anja. Public Law and Risk in Germany. In : European Review of Public Law, Vol. 15 – No. 1, spring 2003, p. 309 e 310.

452 Consoante o parágrafo 7 (1) GenTG (Gentechnikgesetz – Lei de Engenharia Genética), que traz uma divisão dicotômica, não distinguindo entre perigos e riscos. Diferencia apenas entre situações nas quais há que se prevenir o risco daquelas onde não se vislumbra risco algum. O mencionado dispositivo traça quatro níveis diferentes de segurança, que variam desde o nível 1, no qual não se verifica qualquer risco à saúde humana ou ao meio ambiente, até o nível 4, no qual há, de acordo com os conhecimentos científicos, um alto risco, ou razoável suspeita desse risco, à saúde humana e ao meio ambiente. O que, acrescentamos, tampouco liberta da tarefa de definir-se qual o patamar de risco que é aceitável daquele que não o é.

453 Conforme bem coloca César Bechara Nader Mattar Júnior, Presidente da CONAMP (Associação Nacional dos Membros do Ministério Público), a garantia de direitos fundamentais não é alcançada apenas com sua contemplação no texto constitucional mas também se faz necessário que o Poder Público forneça os mecanismos e recursos necessários à sua concretização, forneça garantias institucionais (as Institutionelle garantien do direito alemão). In : Notícia da hora, Brasília, 28 de novembro de 2012. Boletim CONAMP.

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relacionado com medicamentos; e, ainda, órgãos que desenvolvem atividades que incluem

coordenação central, avaliação, e tomada de decisões relativas a perigos, como ocorre

exemplificativamente com a Agência Federal de Proteção contra Radiação.

A mencionada coleta de informações pode envolver, também, o dever de

cooperação entre entes privados e o Poder Público, tal qual ocorre na legislação relativa a

produtos químicos da Alemanha (ChemG – Chemikaliengestez – Legislação sobre Produtos

Químicos, em seus parágrafos 6 e 7). Apontado diploma legal impõe um dever de

notificação a empresas privadas quando da comercialização de novos produtos químicos,

providenciando nesse ato informações e protocolos de teste relativos ao produto e aos

perigos que o mesmo oferece454.

É reconhecida a responsabilidade do Estado não apenas pela adequada coleta das

informações, inclusive aquelas inerentes ao risco, mas também pela pertinente utilização de

tais informações, sujeitando tais providências, ou ausência das mesmas, ao controle

judicial455.

Ao lado da imposição da obrigação de adequada coleta de informações acerca do

risco e de sua devida consideração, oferece o sistema jurídico outros métodos de

enfrentamento desse risco, tal qual o regime de licenciamento, seja para a construção ou

mesmo para a operação de determinadas atividades industriais456.

454 BRENNER, Michael, NEHRIG, Anja. Public Law and Risk in Germany. In : European Review of Public Law, Vol. 15 – No. 1, spring 2003, p. 313.

455 Em que pese dispor a Administração de uma considerável margem de liberdade, pode o Poder Judiciário examinar se a Administração recolheu dados suficientes sobre aquela determinada situação e, ainda, se baseou suas avaliações em tais dados e se referidas avaliações foram feitas com suficiente zelo. Nesse sentido, as decisões da Corte Administrativa Federal da Alemanha : BVerwGE 72, p. 300 e BVerwGE 106, pp. 115 e 116.

456 Artigo 4 (1), s.1 BImSchG (Bundes-Immisionsschutzgesetz – Normativa relativa à prevenção dos efeitos prejudiciais ao meio-ambiente causados pela poluição do ar, sonora, vibrações e fenômenos semelhantes). Mencionado artigo trata, em linhas gerais, do dever de licenciamento em relação a atividades que não apenas

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Aprofundando-se naquilo que concerne ao direito urbanístico e à organização dos

espaços habitáveis, o risco também vem recolhido e contemplado pela ordem jurídica

alemã. Ainda na esteira da doutrina de Matthias Rossi457, dispõe o Estado de modelos dos

mais diversos para a tomada de decisões no que concerne ao risco e que incluem,

exemplificativamente, a utilização de procedimentos de licenciamento assim como normas

repressivas de interdição.

Inicialmente, e conforme já ressaltado acima, deve o Estado partir do necessário

reconhecimento dos riscos, que pode ser levado adiante por meio de levantamentos e

pesquisas a priori, assim como mediante a cartografia de riscos ou mesmo de inventários.

Nesse sentido movem-se, por exemplo, os estudos de impacto ambiental458.

Em sede de planejamento urbano, contempla-se o risco por meio da adequada

ponderação de diferentes interesses, seja na elaboração de planos de desenvolvimento459,

bem como no tocante à elaboração dos planos de escopo mais geral, de gestão territorial460

e mesmo em relação a leis especiais461. Há, assim, uma inicial obrigação geral de adequada

sejam passíveis de produzir danos ao meio ambiente, mas também causem desconforto e desvantagens à vizinhança de mencionados empreendimentos e também ao público em geral.

457 ROSSI, Matthias. Allemagne, rapport national. In : Risque et droit de l’urbanisme en Europe. Les cahiers du GRIDAUH. N. 20. Paris : GRIDAUH, 2011, p. 122.

458 Nesse sentido, o parágrafo 2, (4) BauGB (Baugesetzbuch – Código Federal Alemão de Construções).

459 Da mesma forma, quando da elaboração dos denominados planos de desenvolvimento, hão de ser devidamente ponderados interesses que incluem, por exemplo, exigências de higiene (parágrafo 1, 6, 1 BauGB), de proteção ambiental (1, 6, 7 BauGB), e até mesmo de proteção contra cheias (1, VI,12 BauGB). Refere-se o BauGB ao Código Federal Alemão de Construções (Baugesetzbuch).

460 Nesses termos, a Lei de Planejamento Territorial (ROG - Raumordnungsgesetz ), que traz, exemplificativamente, comandos relativos à necessidade da ponderação dos interesses diversos em jogo, da consideração dos usos diversos, da preocupação com cheias, inclusive em escala transnacional (nesses termos, as disposições seguintes, todas do já mencionado ROG : 2, (2), 8; 7 (2); 8 (5) 1 c; 8 (5) 2 d:

461 Tal qual ocorre, conforme exemplifica Mathhias Rossi, no artigo 50, do BImSchG (Bundes-Immisionsschutzgesetz – Normativa relativa à prevenção dos efeitos prejudiciais ao meio-ambiente causados

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coleta de todas as informações pertinentes às intervenções no tecido urbano e sua devida

ponderação, seara na qual não se podem negligenciar aspectos relacionados ao risco e ao

perigo. E da referida obrigação geral de levar em consideração todos os interesses

pertinentes decorre, exemplificativamente, o dever de separar usos incompatíveis, de prever

medidas preventivas e de evitar conflitos. Nesses termos, uma vez identificado

adequadamente o risco, este pode ser remediado por meio do planejamento urbano, tal que

se dá, dentre outras medidas, com o estabelecimento de zonas de proteção ou zonas de

risco462. Métodos de natureza espacial e que se destinam, também, a enfrentar e mitigar o

risco em uma dimensão igualmente espacial.

Ainda na seara das intervenções no tecido urbano, o enfrentamento dos riscos e dos

perigos se dá ainda, por exemplo, no que toca a projetos concretos, para os quais a

determinação dos riscos existentes e das medidas aptas à sua prevenção e minimização se

inserem dentre as exigências da atividade de licenciamento. Existindo um dever contínuo

de vigilância e informação. Da mesma forma, legitimada a possibilidade geral de

intervenção da Administração para verificar a existência de um perigo463, também

alicerçada na legislação de polícia e de segurança dos diferentes Länder464, e, ainda, a

devida documentação de riscos em cadastros465.

pela poluição do ar, sonora, vibrações e fenômenos semelhantes). O referido artigo impõe à elaboração de projetos que, por meio de zoneamento, que os efeitos nocivos dos apontados fenômenos, notadamente em áreas residenciais, sejam mantidos em um patamar mínimo.

462 Nesse sentido, dentre outras, as disposições seguintes do BauGB (Baugesetzbuch – Código Federal Alemão de Construções) : 5 (3) 1 –dispõe que o plano de uso de solo deve indicar medidas especiais de segurança em áreas sujeitas a determinados eventos naturais; 9 (1) 23 a – determina que os planos de desenvolvimento devem discriminar as áreas nas quais se imporão limites quanto a determinados contaminantes do ar; 9 (1) 24 – que impõe a obrigação de se indicarem nos planos de desenvolvimento as superfícies que não devem ser objeto de qualquer intervenção com vistas a proteger, ou mesmo a reduzir impactos ao meio ambiente;

463 Nesse sentido : 9 BBodSchG (Bodenschutzgesetz – Legislação Federal Alemã de Proteção do Solo);

464 ROSSI, Matthias. Allemagne, rapport national. In : Risque et droit de l’urbanisme en Europe. Les cahiers du GRIDAUH. N. 20. Paris : GRIDAUH, 2011, p. 126;

465 Exemplificativamente, menciona Matthias Rossi as disposições seguintes : parágrafo 16a, GenTG (Gentechnikgesetz – Lei de Engenharia Genética) relativo a registro de locais; parágrafo 11 BBodSchG

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Eventuais riscos que sejam recém descobertos podem ser enfrentados, seja no bojo

de procedimentos em curso466, ou mesmo em áreas já “consolidadas” por intermédio, por

exemplo, de medidas de reabilitação urbana467.

Risco que também pode ser objeto de compensações financeiras em face de hipótese

de acentuada restrição ao direito de propriedade468, com possibilidade também de aquisição

de terras privadas pelo poder público como medida para levar adiante projetos de

reabilitação urbana pelo ente local469.

A participação popular se apresenta como mais um método de enfrentamento do

risco, haja vista consistir em elemento essencial ao auxílio à coleta das informações que

serão ponderadas no desenrolar de projetos e do planejamento, dentre as quais aquela afeta

ao risco. O direito à participação pode ser aberto ao público em geral, tal qual se verifica no

procedimento de planejamento urbano470 assim como nos procedimentos individuais de

autorização471 e nos projetos submetidos a avaliação de impacto472. Ou, ainda, pode dizer

((Bodenschutzgesetz – Legislação Federal de Proteção do Solo), que trata da identificação de solos contaminados ou com suspeita de contaminação;

466 Veja-se, exemplificativamente : 1 (8) BauGB (Baugesetzbuch – Código Federal Alemão de Construções), que trata da possibilidade de modificação de planos de desenvolvimento urbano;

467 Veja-se : 136 BauGB (Baugesetzbuch – Código Federal Alemão de Construções), que versa sobre a reabilitação urbana a ser levada adiante, dentre outras situações, para atender aos reclamos de uma vida saudável e da segurança dos residentes.

468 Consoante o 14 GG (Grundgesetz - Lei Fundamental para a República Federal Alemã);

469 Nesses termos : 147 BauGB (Baugesetzbuch – Código Federal Alemão de Construções).

470 Veja-se : 3 BauGB (Baugesetzbuch – Código Federal Alemão de Construções);

471 Exemplificativamente, cabe menção aos dispositivos seguintes : 10 (3) BImSchG (Bundes-Immisionsschutzgesetz – Legislação Federal Alemã relativa a Emissões), que trata da participação pública no processo de aprovação de projetos de estabelecimentos fabris; 18 GenTG (Gentechnikgesetz – Lei de Engenharia Genética), relativo ao processo de consulta concernente a atividades de engenharia genética;

472 Veja-se : 9 UVPG (Gesetz über die Umweltverträglichkeitsprüfung - Legislação relativa à Avaliação de Impactos Ambientais);

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respeito às pessoas interessadas em procedimentos administrativos473. Ao lado de

mencionados direitos enfeixam-se, ainda, deveres diversos tais como o dever de informação

ativo474, o dever geral de informação pela comissão de expertos475 ou dever de

comunicação proativa pelo Ministério Federal do Interior em situações de crise, mesmo

porque os cidadãos necessitam de informações sobre riscos no mínimo para não serem

colhidos de surpresa por determinados eventos.

O papel das pessoas privadas no enfrentamento do risco também ganha relevo, por

exemplo, nos métodos contratuais de prevenção de riscos, por meio dos quais transferem-se

ao contratado medidas de desenvolvimento urbano476. Ou mesmo à luz da exigência de

contratação obrigatória de seguro na seara da responsabilidade ambiental477. E, ainda, por

intermédio do mecanismo da responsabilização, com imposição da obrigação da eliminação

do risco a cargo daquele que o provocou478.

Matthias Rossi também alude a situações nas quais o risco já se tornou uma

realidade, consoante se verifica nas catástrofes, apontando para um dever de agir que

decorre, sem prejuízo de legislação especial, do princípio do Estado Social.

473 Cabendo referência ao 28 VwVfG (Verwaltungsverfahrensgesetz – Legislação do Procedimento Administrativo), que traça, como regra, a obrigatória oitiva do interessado antes da execução de um ato administrativo que afete seus direitos;

474 Cabe menção ao 11 UIG (Umweltinformationsgesetz – Legislação sobre Informação Ambiental), que tem por objeto o dever do Governo Federal Alemão de divulgar a cada quatro anos um informe sobre o meio ambiente.

475 Conforme o 4 (4) GenTG (Gentechnikgesetz – Lei de Engenharia Genética);

476 No sentido do texto, o parágrafo 11 (1) BauGB (Baugesetzbuch – Código Federal Alemão de Construções) que aponta como objeto de referidos contratos, dentro outros, a remediação de solos.

477 Nesses termos : 19 UmweltHG (Umwelthaftungsgesetz – Legislação de Responsabilidade Ambiental);

478 Cabendo referência aos artigos 4 e 9, do BBoddSchG (Bodenschutzgesetz – Legislação Federal Alemã de Proteção do Solo);

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À guisa de conclusão parcial, como bem colocam Brenner e Nehrig479 a tradicional

prevenção de perigos cede passo à prevenção de riscos. A própria prevenção de perigos

passa a se nortear por essa lógica de prevenção de riscos, com inicial coleta de informações

e avaliação desses riscos e posterior consideração dos mesmos no processo de decisão.

Decisão, aliás, que se apresenta como um dever mesmo diante da incerteza. É o que ocorre,

por exemplo na atividade policial, onde a avaliação de riscos relativos à criminalidade

torna-se o ponto de partida para a adoção de medidas preventivas ou mesmo para

minimização desses mesmo riscos. Ou seja, acrescentamos, opta-se por uma atuação

preventiva com o intento de antecipar-se à lesão de bens jurídicos, alguns caros,

indisponíveis e por vezes irreparáveis, como o é a vida.

Nesse contexto, acrescentamos, o risco é enxergado como algo com que convive a

sociedade e que deve ser necessariamente reconhecido e considerado, em especial nas

intervenções do tecido urbano. Esse conhecimento, e correlata avaliação inicial do risco, se

mostra como o necessário ponto de partida para ulteriores ações e medidas, inclusive

relativas a intervenções no tecido urbano. Dispõe o poder público de instrumentos

suficientes para tanto e um verdadeiro dever de agir mesmo em situações de incerteza. A

convivência com o risco, ademais, impõe seu permanente acompanhamento.

Principalmente, arriscamos, à luz do contexto em que vivemos, que se apresenta cada vez

mais complexo, mais dinâmico, com maior número de pessoas e bens expostos a potenciais

danos futuros480.

479 BRENNER, Michael, NEHRIG, Anja. Public Law and Risk in Germany. In : European Review of Public Law, Vol. 15 – No. 1, spring 2003, p. 317 e 318.

480 Encontra-se em trâmite proposta de criação de um centro de pesquisas na Universidade de Cambridge para tratar de novas tecnologias que oferecem o risco de extinguir a própria espécie humana, tais como inteligência artificial e biotecnologia. Nesse sentido, as informações constantes do endereço abaixo, da rede mundial de computadores :

http://www.cam.ac.uk/research/news/humanitys-last-invention-and-our-uncertain-future/# (Última consulta realizada em 28 de novembro de 2012).

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1.8.3.2.5.3 – Itália

Na Itália, o risco não se limita às intempéries e aos movimentos do solo481, mas

trata-se de termo que pode abraçar e recolher uma gama quase interminável de situações.

Breve consulta na página de defesa civil482 daquele país, nos revela uma pluralidade de

situações taxadas como de “risco”. Risco que, para fins da defesa civil italiana, é definido

como a possibilidade de que um fenômeno natural ou induzido pela ação do homem possa

causar efeitos danosos sobre uma população, assentamentos habitacionais e produtivos e à

infraestrutura, num dado momento e numa localidade específica483.

O conceito de risco, mais uma vez ressaltamos, não pode ser confundido com o de

perigo. Enquanto o perigo consiste no evento calamitoso que pode atingir um determinado

local (ou seja, a causa), o risco guarda relação com as consequências daquele mesmo

evento, ou seja, com os danos que podem ser verificados e experimentados (ou seja, os

efeitos). Todavia, não é suficiente conhecer o perigo. O risco envolve, além da

periculosidade (aqui apontada como a probabilidade de que um fenômeno de dada

intensidade venha a ocorrer, em um determinado momento e numa área específica), a

vulnerabilidade ( a propensão a sofrer danos decorrentes de um dado fenômeno) e, ainda, a

exposição (ou valor exposto – ou seja, numa tradução livre, cada um dos bens e valores

expostos numa dada área, tais como vidas ou assentamentos)484.

481 O país experimentou no ano de 2012 intensos problemas relacionados com terremotos. Um primeiro tremor, com intensidade de 5.9 graus, aos 20 de maio de 2012, o qual atingiu as províncias de Modena e Ferrara e, em menor grau, de Bologna e Mantova. Seguiram-se outros tremores, registrando-se outro, com magnitude de 5.8 graus aos 29 de maio de 2012, na província de, seguido também tremores menos intensos, com repercussão nas províncias de Reggio Emilia, Mantova e Rovigo.

482 A página da rede mundial de computadores da defesa civil Italiana pode ser consultada por meio do endereço seguinte : www.protezionecivile.gov.it – últimas consultas realizadas em maio e junho de 2012.

483 No original, extraído do endereço da página da rede mundial de computadores já mencionada na nota anterior : “Ai fini di protezione civile, il rischio è rappresentato dalla possibilità che un fenomeno naturale o indotto dalle attività dell’uomo possa causare effetti dannosi sulla popolazione, gli insediamenti abitativi e produttivi e le infrastrutture, all’interno di una particolare area, in un determinato periodo di tempo.”

484 Tal qual consta, no original, na página da defesa civil italiana disponível na rede mundial de computadores

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Risco que, insistimos, se manifesta em frentes das mais diversas. Seguindo-se com

o exemplo da defesa civil italiana, traz o órgão, em sua página da rede mundial de

computadores, informações485 sobre os riscos seguintes : risco sísmico486, risco

vulcânico487, risco hidrogeológico488, risco de incêndios489, risco à saúde490, risco

nuclear491, risco ambiental492 e risco industrial493.

Cabe ressaltar, desde logo, que mesmo os riscos sísmicos ou vulcânicos têm uma

faceta que podemos chamar de espacial. Adotando-se a terminologia usada pela defesa civil

: “Il rischio quindi è traducibile nella formula: R = P x V x E

P = Pericolosità: la probabilità che un fenomeno di una determinata intensità si verifichi in un certo periodo di tempo, in una data area. V = Vulnerabilità: la vulnerabilità di un elemento (persone, edifici, infrastrutture, attività economiche) è la propensione a subire danneggiamenti in conseguenza delle sollecitazioni indotte da un evento di una certa intensità. E = Esposizione o Valore esposto: è il numero di unità (o "valore") di ognuno degli elementi a rischio presenti in una data area, come le vite umane o gli insediamenti”.

485 Conforme já ressaltado, o endereço da defesa civil italiana na rede mundial de computadores, de onde foram extraídas, ademais, as demais informações em nota de pé de página, é o seguinte : www.protezionecivile.org.it; Uma lista que, decerto, não é exaustiva.

486 A Itália é um dos países com maior risco sísmico do Mediterrâneo.

487 Ao lado da Islândia, a Itália está dentre os países europeus com maior concentração de vulcões ativos. E dentre os locais mais críticos, em escala global, relativo à exposição de pessoas aos riscos vulcânicos.

488 Um risco fortemente condicionado pela ação humana, relacionado com águas subterrâneas e superficiais e que se manifesta por meio das formas seguintes : deslizamentos, inundações, erosão costeira, afundamento do solo, avalanches (no original “frane, alluvioni, erosioni costiere, subsidenze e valanghe”).

489 Por volta de 30% da superfície da Itália é composta por cobertura vegetal, representando um enorme patrimônio ambiental que se encontra exposto à possibilidade de incêndios, provocados muitas vezes em face da ação humana, inclusive decorrente da especulação imobiliária.

490 Consiste em um risco denominado de segundo grau, ou seja, decorrente de outros riscos ou calamidades.

491 A Itália, após o incidente ocorrido em Chernobyl, no ano de 1986 e em face de referendo realizado no ano de 1987 suspendeu as atividades de suas centrais nucleares. Ainda assim, persiste o risco nuclear em razão da presença de centrais nucleares em países vizinhos (França, Suíça, Alemanha e Eslováquia), algumas a menos de 200 quilômetros da fronteira italiana. Encontrando-se em vigor um Plano Nacional de Medidas Protetivas contra Emergências Radiológicas, editado aos 19 de março de 2010.

492 Tem por objeto a poluição causada pela produção, gestão ou distribuição de bens, de serviços, de produtos ou de processos industriais, relativos aos setores primário, secundário e terciário.

493 Decorrente do exercício de atividades industriais.

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italiana, quanto maior o número de pessoas que vivem em áreas afetas a riscos vulcânicos

ou mesmo sísmicos, maior será a vulnerabilidade e a exposição. Mais vidas e mais

patrimônio estarão exposto a eventos catastróficos. E, insistimos, o direito pode e deve

contribuir para a proteção de vidas e do patrimônio, inclusive o histórico, mediante,

exemplificativamente, normas edilícias, imposição de avaliações constantes e

institucionalizadas, normas relativas ao uso e ocupação do solo, atividade de licenciamento,

inclusive com a possibilidade de revisão ante novas situações de fato (cláusula rebus sic

stantibus).

Ainda se valendo do exemplo dos abalos sísmicos494, trata-se de situação que exige

providências das mais diversas, sejam elas antecedentes, concomitantes e até mesmo

posteriores aos tremores. Providências que envolvem, por exemplo a realização de obras e

o respeito a posturas edilícias495, a tomada de providências urgentes496 e adoção de um

mapa oficial de riscos sísmicos497.

494 Os tremores de terra, na Itália, cobraram a vida de pelo menos 26 pessoas no ano de 2012 e produziram enormes danos patrimoniais e sociais. Dados colhidos do jornal “Corriere Della Sera”, aos 06 de junho de 2012 (Altre otto scosse nella notte. La più forte nel Mantovano: 2,9 gradi. – disponível em : http://www.corriere.it/cronache/12_giugno_06/sisma6giugno_a525df40-af91-11e1-8359-3661d1b45fc6.shtml - última consulta aos 17/11/2013) Data na qual ainda registrava a região abalos sísmicos. Informações do mesmo jornal, aos 10 de junho de 2012, apontavam para o registro de cem tremores em apenas um dia (Tutta l'Italia trema: cento terremoti in un solo giorno, da fine maggio sono mille. – disponível em : http://www.corriere.it/cronache/12_giugno_10/Terremoti-tutta-Italia-trema-cento-scosse-sabato_36df9a06-b2c2-11e1-8b75-00f6d7ee22cc.shtml - última consulta aos 17/11/2013).

495 Digno de menção um decreto recém editado contendo as novas normas técnicas para construções : “DM 14 gennaio 2008, pubblicato sulla Gazzetta Ufficiale n. 29 del 4 febbraio 2008 - Suppl. Ordinario n. 30 sono state approvate le NUOVE NORME TECNICHE PER LE COSTRUZIONI.”

496 A normativa inclui, dentre outras, disposições sobre alojamento de urgência, reconstrução não apenas de imóveis privados mas também públicos, com recuperação das funções destes, suspensão de processos criminais, civis e administrativos, destinação a ser dada a material de demolição, intervenções para a recuperação econômica, medidas de prevenção, com criação de um fundo para tanto e previsão de edição de um plano nacional e até mesmo medidas de prevenção à infiltração de atividades criminosas organizadas, que porventura poderiam se aproveitar da situação de calamidade (mencionamos, sem o fito de exaurir o tema, o diploma que segue : Legge n. 77 del 24 giugno 2009: conversione del dl n. 39 del 28 aprile 2009 con interventi urgenti per il terremoto del 6 aprile 2009 in Abruzzo)

497 Recolhidos ao mundo do direito os critérios gerais à classificação sísmica do território nacional assim como a normativa para a edificação em zona sísmica, por meio do seguinte diploma legal : “Ordinanza OPCM 3274 del 20/03/2003”

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Mesmo em outras searas, como a relativa ao risco vulcânico, as situações de fato

também se vêm recolhidas por normativa específica, tal qual ocorre, apenas a título de

exemplo, com o Vesúvio498, nas cercanias da cidade de Nápoles, na Itália, ou mesmo em

Hierro499, nas ilhas Canárias, no Reino de Espanha. Normativa que certamente concorre

para a prevenção de riscos, tomada de decisões e mitigação de eventos danosos.

As possibilidades que o ordenamento italiano traz para o enfrentamento do risco,

mediante instrumentos de intervenção espacial, também são tratadas por Francesco

Volpe500. Menciona o autor, em caráter exemplificativo, dispositivos relativos à poluição

eletromagnética, que trazem regras atinentes a distâncias mínimas obrigatórias que hão de

ser mantidas de tais campos de radiação, corporificados na Lei de 22 de fevereiro de 2001,

de número 36.

498 A última grande erupção do Vesúvio ocorreu no ano de 1631. Segundo consta, no mês de junho de 1631 surgiram os primeiros sinais de instabilidade consistentes em pequenos tremores de terra e presença mais intensa de fumaça. A erupção, nada obstante, veio a ocorrer tão somente aos 16 de dezembro daquele mesmo ano, e se caracterizou por uma forte explosão. Na presente data existe um plano nacional de emergência elaborado por cientistas e incorporado à atuação da defesa civil italiana. Prevê o mencionado plano, apenas a título de exemplo, a remoção de aproximadamente 600 mil pessoas que vivem numa região denominada de “vermelha” diante de uma situação de erupção. Há, ainda, medidas previstas para a proteção, por exemplo, do patrimônio histórico, com retirada de bens para locais seguros e de reforço de peças que não podem ser removidas. O vulcão é monitorado 24 horas pelo INGV (Instituto Nazionale di Geofisica e Vulcanologia – com página disponível na rede mundial de computadores: www.ingv.it ). As intervenções, embora alicerçadas em entes locais, exigem a cooperação e a articulação de atores regionais e nacionais. Cada uma das 18 comunidades que existem na denominada zona vermelha situada ao redor do Vesúvio está irmanada com uma região da Itália, que receberá e acolherá as pessoas eventualmente removidas de suas casa diante de uma erupção do Vesúvio.

499 A ilha foi palco de erupções vulcânicas submarinas que se iniciaram em outubro de 2011. A prevenção dos riscos também se opera no plano das normas, sendo recolhida referida situação critica pela ordem jurídica por intermédio, também, da edição de plano especial relativo ao risco vulcânico (Plano que ganhou forma jurídica, dentre outras providências pela norma seguinte : “DECRETO 73/2010, de 1 de julio, por el que se aprueba el Plan Especial de Protección Civil y Atención de Emergencias por riesgo volcánico en la Comunidad Autónoma de Canarias (PEVOLCA)).” 500 VOLPE, Francesco. Italie, rapport national. In : TANQUEREL, Thierry, JÉGOUZO, Yves, MORAND-DEVILLER, Jacqueline, Lebreton, Jean-Pierre. Risque et droit de l’urbanisme en Europe. Les cahiers du GRIDAUH. N. 20. Paris : GRIDAUH, 2011, p. 245 – 256.

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No que toca à poluição, faz o autor referência ao artigo 240, do Código Ambiental

Italiano, que obriga o monitoramento permanente das fontes de poluição. Com a

possibilidade de elaboração, para sítios potencialmente poluídos, de plano de redução de

elementos potencialmente contaminados, o qual, inclusive, se sobreporá aos planos

urbanísticos, conforme artigo 242, do já mencionado Código Ambiental.

No setor de construção, merece menção a regulamentação destinada à remoção de

barreiras arquitetônicas, com a finalidade de eliminar os riscos que podem decorrer da

utilização de bens públicos por pessoas portadores de deficiência.

Riscos, ademais, que podem ser objeto de identificação por intermédio de

cartografia de zonas expostas, documento que se prestará a informar procedimentos de

licenciamento de determinados empreendimentos.

Portanto, temos riscos das mais variadas ordens : sísmicos, hidrogeológicos,

vulcânicos ou mesmo relacionados com a poluição. Riscos que detém uma dimensão

espacial, seja em sua manifestação, haja vista produzirem impactos potenciais em espaços

determinados. E, da mesma forma, que admitem seu enfrentamento também por intermédio

de intervenções de natureza igualmente espacial.

1.8.3.2.5.4 - Brasil

No que toca à realidade brasileira, tampouco há que se argumentar quanto à

insuficiência da produção legislativa para fazer frente ao risco. Dispõe o ordenamento

brasileiro de um verdadeiro arsenal de métodos de intervenção espacial aptos a enfrentar o

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risco. E a reforçar tal assertiva, não faltam exemplos concretos de intervenções territoriais

destinadas a enfrentar o risco em suas mais diversas manifestações.

O risco, consoante já asseverado até aqui, não se deixa aprisionar por definições

estreitas moldadas, muitas vezes, pelo calor dos acontecimentos.

Pelo contrário : imprescindível ao risco uma roupagem que lhe confira uma tessitura

aberta, e flexibilidade para o seu enfrentamento. Risco que permanentemente se renova e se

revigora, especialmente em razão de intervenções realizadas. E cujas possibilidades ao seu

enfrentamento por meio de intervenções espaciais são múltiplas.

Intervenções, insistimos, que não se restringem a aspectos hidrogeológicos, mas vão

além, muito além e podem se prestar a prestigiar direitos dos mais diversos, tais como a

segurança, a mobilidade urbana, dentre outros.

Pois passemos os olhos, ainda que de forma abreviada, em alguns métodos de

enfrentamento e de convívio com o risco, prestigiados pelo ordenamento pátrio.

Iniciemos, pois, pelo planejamento urbano. A Lei Federal 12608, de 10 de abril de

2012, nos termos de seu artigo 1º, “institui a Política Nacional de Proteção e Defesa Civil -

PNPDEC, dispõe sobre o Sistema Nacional de Proteção e Defesa Civil - SINPDEC e o

Conselho Nacional de Proteção e Defesa Civil - CONPDEC, autoriza a criação de sistema

de informações e monitoramento de desastres e dá outras providências.”

Mencionada Lei 12608/2012 encontra sua gênese na Medida Provisória 547, de 11

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de outubro de 2011, e que busca imbricar a gestão de riscos, notadamente aqueles

decorrentes de desastres naturais, no planejamento urbano. Nesse sentido, aliás, a

disposição de motivos da indigitada Medida Provisória, que assim dispõe :

“Os recorrentes desastres naturais dos últimos anos afetaram de forma

drástica vários municípios brasileiros, demonstrando a necessidade urgente de se

incorporar nas políticas urbanas municipais as componentes de planejamento e

gestão voltadas para a prevenção e mitigação de impactos desses eventos, em

especial dos associados a escorregamentos de encostas e processos correlatos,

responsáveis pelo maior número de vítimas e de mortes.

2. A prevenção e mitigação de impactos desse tipo de desastre

natural urbano implica a adoção de uma abordagem integrada da gestão de riscos,

que pressupõe ações no campo da prevenção da formação de novas áreas de risco,

da redução dos níveis de risco nas ocupações urbanas já instaladas e da implantação

de planos de contingência voltados para a proteção da população no caso da

ocorrência de eventos pluviométricos extremos.

3. A efetivação dessa abordagem integrada da gestão de riscos

exige a atuação articulada dos três níveis de governo, na esfera de suas

competências e a definição de medidas claras para o enfrentamento do problema,

que relacionem o planejamento e a gestão do espaço urbano com as condicionantes

do meio físico.”

Trata-se, numa análise perfunctória, de legislação afeta à Defesa Civil, cuja lavra é

de competência privativa da União, nos termos do artigo 22, inciso XXVIII, da

Constituição Federal. Mas que procura imbricar o tema do risco na legislação urbanística, a

qual, sem embargo, é de competência legislativa concorrente entre União, Estados e

Distrito Federal. Devendo a União se limitar a estabelecer normas gerais (conforme artigo

24, caput, e seu parágrafo 3º, ambos da Constituição Federal). Sendo possível ao Município

legislar sobre assuntos de interesse local, assim como suplementar a legislação federal e

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estadual naquilo que couber (artigo 30, incisos I e II, da Constituição Federal).

Competindo, ademais, privativamente aos Municípios a edição de plano diretor (artigo

182, parágrafo 1º, da Lei Maior), assim como a promoção do adequado ordenamento

territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento, e da ocupação do

solo urbano (artigo 30, inciso VII, da Constituição Federal).

Possível uma intepretação consentânea com referida repartição de competências, de

forma a preservar as disposições trazidas pelo mencionado diploma legal. Muitas das quais

a serem devidamente densificadas pelos Municípios, por meio de seu planejamento local501.

Pois bem, retomando o tema dos métodos de enfretamento do risco em sua

dimensão espacial, temos na mencionada Lei 12608, de 10 de abril de 2012, disposições

das mais variadas, e que interessam sobremaneira ao risco, em especial ao risco em sua

dimensão territorial.

O mencionado diploma legal busca integrar o risco nas mais variadas políticas, tais

como, nos termos do parágrafo único, do artigo 3º, as “de ordenamento territorial,

desenvolvimento urbano, saúde, meio ambiente, mudanças climáticas, gestão de recursos

hídricos, geologia, infraestrutura, educação, ciência e tecnologia e às demais políticas

setoriais, tendo em vista a promoção do desenvolvimento sustentável.”

E, em termos específicos, integrar o risco na organização dos espaços : nesse

sentido, o artigo 5º, inciso 4º, da Lei 12608, de 10 de abril de 2012, que estabelece como

objetivo da Política Nacional incorporar “a redução do risco de desastre e as ações de

proteção e defesa civil entre os elementos da gestão territorial e do planejamento das

501

Matéria que, sem embargo, poderá dar azo a maiores discussões concernentes à repartição de competências constitucionais, as quais merecem um espaço mais dilatado do que aquele de que aqui dispomos.

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políticas setoriais;”

Ressaltando-se que a incerteza não pode constituir óbice à adoção de medidas tanto

mitigadoras, assim como preventivas em relação ao risco (artigo 2º, parágrafo 2º, da Lei

12.608, de 10 de abril de 2012).

A imbricação do risco com a organização espacial se torna ainda mais acentuada à

luz do artigo 23, da Lei 12608/2012, o qual obsta a concessão de licenças em áreas de risco,

que veda a “concessão de licença ou alvará de construção em áreas de risco indicadas como

não edificáveis no plano diretor ou legislação dele derivada.”

Portanto, o risco acaba por se inserir no contexto do planejamento urbano como

diretriz, a irradiar efeitos a todos os demais entes federativos, em especial ao Município.

Podendo este, à luz de suas peculiaridades, dar tratamento peculiar ao tema, mas não

podendo se furtar de sua adequada inserção na organização dos espaços. E também como

regra de maior densidade, tal qual a disposta no artigo 23, da Lei 12608, de 10 de abril de

2012, a impor restrição clara e precisa acerca da vedação de concessão de licenças em áreas

de risco.

De outra banda, a desapropriação também pode se prestar a enfrentar o risco.

Vejamos.

O Decreto Lei 3365, de 21 de junho de 1941, considera como hipótese de utilidade

pública e, portanto, passível de desapropriação, o socorro público em caso de calamidade

(nesse sentido, o artigo 5º, letra “c”, do mencionado diploma legal). Decerto que não se

confunde o risco com a calamidade, aquele a antecedendo. Sem embargo, o enfrentamento

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de desastres envolve não apenas a prevenção, mas também a mitigação de seus efeitos.

Mitigação esta que se presta, muitas vezes, a enfrentar riscos futuros decorrentes de ditas

catástrofes, tais como problemas de saúde, econômicos, de moradia.

Mediante a desapropriação possível, a título de exemplo, estabelecer uma base

territorial definitiva para ações posteriores ao evento danoso. Com o fito de evitar novos

danos futuros, gerindo, dessa maneira, o risco.

Da mesma forma, eventuais riscos à saúde também podem ser objeto de proteção,

em face da possibilidade de desapropriação em razão da salubridade pública, nos termos do

artigo 5º, letra “d” , do Decreto Lei 3365, de 21 de junho de 1941. Ou, ainda, consoante o

artigo 5º, letra “k”, do já tratado diploma legal, a utilização da desapropriação para proteção

do patrimônio histórico.

Por sua vez, a Lei Federal 4132, de 10 de setembro de 1962, em seu artigo 2º, inciso

VII, considera como interesse social, apto a fundamentar a desapropriação,: “a proteção do

solo e a preservação de cursos e mananciais de água e de reservas florestais;” Não é

demasiado olvidar a que a preservação de cursos de água se presta a evitar de forma

bastante eficaz enchentes na jusante de cursos de água502.

Somem-se aos métodos acima tratados, ainda, a atividade de licenciamento, que

permite um controle preventivo de atividades potencialmente causadoras de risco e, ainda,

502

Nesse sentido : MANARA, Marcelo Pereira; CABRAL, Ricardo Navarro. Estratégia de Prevenção Contra os Desastres Naturais no Vale do Rio Paraitinga. Proposta de Atuação para os Membros do MPSP. In : Temas

de Direito Urbanístico 6. Coordenação : Jorge Luiz Ussier. Organização : Mário Augusto Vicente Malaquias. São Paulo : Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2011, p. 261 – 283.

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os estudos de impacto, sejam de natureza ambiental503, ou mesmo de vizinhança504, que

também se prestam a efetuar esse controle antecipado de determinadas atividades,

impondo-lhes condições e, assim, enfrentando potenciais danos futuros. Enfrentando,

destarte, o risco.

Mas não basta licenciar. Há que se fiscalizar continuamente, exercendo de forma

convincente a gestão urbanística. Conforme repetido quase à saciedade, o risco se renova.

Imóveis mal utilizados, ou utilizados em desconformidade com licenças expedidas,

certamente ostentarão renovado potencial de vulneração a direitos. Ou seja, oferecerão

riscos à população. E exemplos não faltam nessa seara, tais como prédios que ruem em face

de obras ulteriores feitas para acomodar novas estruturas não contempladas no projeto

original, realizadas quase sempre ao arrepio da lei505.

Mas, nos espaços urbanos, marcados por uma complexidade cada vez maior, há

riscos outros, não tão evidentes. Faremos referência, aqui, à concretização do direito social

fundamental à moradia que se oferece também como um meio para o enfrentamento de

riscos.

Assistimos a uma dinâmica assaz complexa de movimentação de pessoas nos

503 Conforme expressa disposição constitucional, veiculada pelo inciso IV, do parágrafo 1º, do artigo 225, da Leio Maior Brasileira, será exigido estudo prévio de impacto ambiental, na forma da lei, para a instalação dede obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação ambiental.

504 Nos termos do artigo 36, da Lei Federal 10.257, de 10 de julho de 2001 (Estatuto da Cidade), nos termos de lei municipal, pode ser exigido estudo de impacto de vizinhança (EIV) de empreendimentos e atividades privadas e públicas, o qual contemplará os efeitos negativos e positivos de mencionadas atividades.

505 Apenas com o fito exemplificativo, numa obra realizada em consonância com os ditames legais, vigas de sustentação são objeto de estrito escrutínio : eventuais incongruências de forma são avaliadas por técnicos, e são extraídas provas do material para ulterior teste com a finalidade de verificar se a capacidade de sustentação da mesma é adequada à carga daquela estrutura. Obras realizadas na clandestinidade certamente não contarão com mencionada cautela. E os riscos permanecerão latentes, até que alguém fiscalize a obra. Ou então até que alguma tragédia ocorra, atraindo a momentânea e sensacionalista atenção de atores dos mais diversos, desde agentes públicos até veículos de comunicação.

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espaços de nossas cidades. Tomando-se como exemplo a cidade de São Paulo, no Brasil,

são inúmeros os influxos e as influências que determinam a fixação das pessoas no espaços

da cidade.

Temos contingentes de nacionais, assim como de estrangeiros, atraídos à cidade em

busca principalmente de oportunidades de emprego ou mesmo de possibilidades de

sustento, ainda que na informalidade. Grupos heterogêneos, atraídos para um espaço que

também é marcado pela heterogeneidade. Indivíduos que tentam se integrar a um tecido

urbano, sem contar, muitas vezes, com qualquer apoio, seja comunitário, seja cultural, ou

mesmo estatal.

Nos deparamos com uma demanda por moradia crescente, frequentemente de

grupos econômica e socialmente vulneráveis, atraídos de forma contínua a espaços que não

estão dotados a recebê-los.

Mas então como enfrentar dito risco, que tem sim sua faceta territorial, dentre as

quais podemos mencionar, extraídas da realidade cotidiana, a concentração de grandes

contingentes populacionais, seja nos denominados aglomerados subnormais506, nos quais se

inserem os cortiços e as favelas, seja até mesmo nas ruas de nossa cidade.

Na cidade de São Paulo, segundo dados do IBGE507, de um total de 3.576.864

506 Conforme definição do IBGE, aglomerados subnormais consistem em : “um conjunto constituído de, no mínimo, 51 unidades habitacionais (barracos, casas...) carentes, em sua maioria de serviços públicos essenciais, ocupando ou tendo ocupado, até período recente, terreno de propriedade alheia (pública ou particular) e estando dispostas, em geral, de forma desordenada e densa.” Nesses termos, informação disponibilizada pelo IBGE na rede mundial de computadores : http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/imprensa/ppts/00000006960012162011001721999177.pdf - última consulta aos 08/12/2013. 507 Informação disponível para consulta na rede mundial de computadores, no endereço que segue : http://cod.ibge.gov.br/122C - última consulta aos 08 dias do mês de dezembro de 2013.

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domicílios particulares ocupados, 355.756 são considerados como subnormais. Dentro

deste universo, conforme informação colhida junto ao endereço eletrônico da Prefeitura de

São Paulo508, há na cidade um total de 23.688 imóveis "encortiçados"509, onde vivem

160.841 famílias (dados relativos a censo efetuado em 1993).

E nos termos de censo realizado também pela Prefeitura de São Paulo510 aponta-se,

no ano de 2011, para um total de 14478 pessoas em situação de rua511.

Os riscos decorrentes da situação acima retratada são das mais variadas ordens, tais

como o risco à segurança jurídica, representado pela ausência de instrumentos formais

aptos a conferir segurança à posse ou mesmo à detenção.

Risco, ainda, à incolumidade física, diante da ocupação de imóveis muitas vezes

construídos sem o devido licenciamento e consequentemente sem a observância de

qualquer normativa afeta à construção civil. Ou, ainda que construídos de maneira

adequada à luz dos preceitos técnicos da engenharia civil, são utilizados de forma

completamente atípica, a amplificar os riscos à população ali residente, potencializando

eventos como. Nos deparamos, assim, não raro, com explosões de instalações de gás

inadequadas, incêndios decorrentes de ligações impróprias de luz, ausência de qualquer

508 Disponível para consultas no endereço da rede mundial de computadores : http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/habitacao/programas/index.php?p=3380 – última consulta em 08 de dezembro de 2013.

509 Os cortiços, segundo Nelson Saule Júnior (SAULE JÚNIOR, Nelson. A Proteção Jurídica da Moradia nos Assentamentos Irregulares. Porto Alegre : Sérgio Antonio Fabris, 2004, p. 439), “são imóveis que têm como principal característica a precariedade das condições habitacionais”, em geral em imóveis “que passaram a ser subdivididos em cômodos com metragens não compatíveis com a dignidade da pessoa humana, considerando-se que, na maioria dos casos, são famílias que vivem nesses cômodos e não somente um indivíduo.”

510 As informações se encontram disponíveis na página da Prefeitura, na rede mundial de computadores, no endereço : http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/upload/chamadas/censo_1338734359.pdf - última consulta em 08 de dezembro de 2013.

511 Os dados incluem tanto pessoas morando nas ruas, como em centros de acolhida da Municipalidade.

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controle no que toca a saneamento, qualidade da água, aeração, dentre outras

características.

As possibilidades de vulneração de direitos são, portanto, inúmeras : falta de acesso

a saúde por força de assentamentos sem quaisquer condições de saneamento ou mesmo de

salubridade, conflitos entre moradores, ausência de controle das construções ou mesmo de

sua utilização, muitas vezes feitas de maneira desconforme com eventual projeto originário

(se existente), inadequação de acesso a equipamentos educacionais ou mesmo de lazer ou

cultura, segregação e exclusão, dentre outras.

Mas não basta apenas regularizar ou titular. A dinâmica de fluxos populacionais não

se estanca. Pelo contrário, se renova e se altera de forma inexorável. Novos riscos se

apresentam ao futuro : como acomodar novos contingentes populacionais que estão a ir e

vir em nossas cidades grandes ? Como dar acolhida econômica e, ao mesmo tempo,

autonomia a dita populações, as quais já se encontram acomodadas, de uma forma ou de

outra, em nossos espaços ? Como evitar nova deterioração e declínio dos imóveis, e de seu

entorno ? Como minimizar os conflitos decorrentes da sedimentação de populações

heterogêneas cultural e socialmente ? Como dar resposta ao tema do consumo de

substâncias, que inclusive atinge adolescentes e mulheres grávidas512 ? Como se vê, o

desafio é permanente. A ótica do risco impõe um agir contínuo. Um infindável olhar para o

futuro, agindo hoje para enfrentá-lo adequadamente.

E nem há que se argumentar quanto à insuficiência de instrumentos ou métodos

aptos ao enfrentamento da questão da moradia.

512 Mencionado dados integram impressões pessoais colhidas mediante constatações empíricas, despidas de um rigor científico maior, ou mesmo de rigor estatístico adequado. Sem embargo, trazem à luz situações, ainda que individuais, de vulneração de direitos caros as quais, a nosso ver, não só merecem mas impõem um adequado enfrentamento.

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Primeiramente, cumpre recordar que direito à moradia é alçado à categoria de

direito fundamental social, nos termos do artigo 6º, da Constituição Brasileira. Trata-se de

direito fundamental social, com aplicabilidade imediata, conforme expressa determinação

constitucional, insculpida no parágrafo 1º, do artigo 5º, do apontado diploma legal, tal qual

defende, também, Ingo Wolfgang Sarlet.

Conforme pontua o autor : “aos direitos sociais se aplica o disposto no art. 5º, § 1º,

da CF, de tal sorte que, a exemplo das demais normas de direitos fundamentais, as normas

consagradoras de direitos sociais possuem aplicabilidade direta e eficácia, ainda que o

alcance desta eficácia deva ser avaliado sempre no contexto de cada direito social e à luz de

outros direitos e princípios.”513 Ainda que dotados de baixa densidade normativa, “essa

peculiaridade não afasta o dever de se atribuir também às normas de direitos sociais uma

máxima eficácia e efetividade, obrigação cometida a todos os órgãos estatais, no âmbito das

duas respectivas competências.”514

Os direitos sociais ostentam, ainda, uma perspectiva subjetiva, qual seja, de serem

exigidos em juízo, “no sentido do reconhecimento de um direito subjetivo ao mínimo

existencial, concebido como garantia (fundamental) das condições materiais mínimas à

vida com dignidade, isto é, uma vida saudável e, portanto, com certa qualidade. Para além

desse parâmetro, a afirmação de posições subjetivas passíveis de exigibilidade judicial

diretamente decorrente da norma constitucional dependerá sempre das circunstâncias do

caso concreto – o que não exclui, contudo, uma presunção, em favor da maximização das

normas de direitos sociais e, pois, da admissão de direitos fundamentais subjetivos.”515

513 SARLET, Ingo Wolfgang. Comentário ao artigo 6º. In : CANOTILHO, J. J. Gomes; MENDES, Gilmar F.; SARLET, Ingo W.; (Coords.). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo : Saraiva, 2013, p. 541.

514 SARLET, Ingo Wolfgang. Comentário ao artigo 6º. In : CANOTILHO, J. J. Gomes; MENDES, Gilmar F.; SARLET, Ingo W.; (Coords.). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo : Saraiva, 2013. p. 541.

515 SARLET, Ingo Wolfgang. Comentário ao artigo 6º. In : CANOTILHO, J. J. Gomes; MENDES, Gilmar F.; SARLET, Ingo W.; (Coords.). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo : Saraiva, 2013. p. 541.

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Ao lado dessa perspectiva subjetiva, os direitos sociais possuem “uma eficácia

dirigente ou irradiante, decorrente da perspectiva objetiva, que impõe ao Estado o dever

permanente de realização dos direitos sociais, além de permitir às normas de direito social

operarem como parâmetro, tanto para a aplicação e interpretação do direito

infraconstitucional, quanto para a criação e o desenvolvimento de instituições, organizações

e procedimentos voltados à proteção dos direitos sociais, o que inclui a garantia de um

procedimento justo e eficaz que os assegure e a vedação de medidas de cunho

retrocessivo.”516

Especificamente no que se refere à moradia como direito social, realça Ingo

Wolfgang Sarlet que : “não há mais dúvidas de que o direito à moradia é um direito

fundamental autônomo, de forte conteúdo existencial, considerado até mesmo um direito de

personalidade (pelo menos naquilo em que vinculado à dignidade da pessoa humana e às

condições para o pleno desenvolvimento da personalidade), não se confundindo com o

direito à (e de) propriedade.” E envolve, por exemplo, critérios materiais tais como “a

segurança jurídica da posse, a disponibilidade de infraestrutura básica capaz de assegurar

condições saudáveis de habitabilidade, o acesso a serviços essenciais e o respeito às

peculiaridades locais, inclusive em termos de identidade e diversidade cultural da

população”. 517

Prossigamos, aqui, tratando de dois temas que consideramos de importância, e que

se imbricam com o direito à moradia, quais sejam, o dos cortiços e o das pessoas em

situação de rua.

516 SARLET, Ingo Wolfgang. Comentário ao artigo 6º. In : CANOTILHO, J. J. Gomes; MENDES, Gilmar F.; SARLET, Ingo W.; (Coords.). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo : Saraiva, 2013. p. 541.

517 SARLET, Ingo Wolfgang. Comentário ao artigo 6º. In : CANOTILHO, J. J. Gomes; MENDES, Gilmar F.; SARLET, Ingo W.; (Coords.). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo : Saraiva, 2013. p. 547.

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Deitaremos primeiramente um olhar mais atento na situação dos cortiços na cidade

de São Paulo, alicerçados na doutrina de Nelson Saule Junior. Como bem acentua o autor :

“A explosão demográfica da população, na cidade de São Paulo, no final do século XIX,

ocorreu sem a devida oferta de habitação popular para a população trabalhadora, os

operários, resultando, como única alternativa para essa classe social, a moradia de aluguel

em habitações coletivas conhecidas como cortiços. No ano de 1886, a população era de

44.030 habitantes; em 1895, este número cresceu para 184.145 habitantes, somando, em

1900, 239.820 habitantes.”518

Eram imóveis marcados pela precariedade e pelas condições indignas que

impunham aos seus moradores, desamparados inclusive pelo ordenamento jurídico,

conforme coloca Nelson Saule Júnior : “A aplicação das leis urbanísticas e posturas

municipais de edificação e normas sanitárias do final do século XIX, no Município de São

Paulo, e também em outras cidades, como Rio de Janeiro e Salvador, sempre impediram o

reconhecimento dos cortiços como uma habitação popular legalmente constituída,

contribuindo de forma decisiva para a histórica divisão da cidade em territórios de uso

exclusiva das elites, que têm prioridade nos investimentos públicos e na prestação dos

serviços urbanos, e em bairros populares e áreas com concentração de habitações populares,

como os cortiços, que não recebem o mesmo tratamento do Poder Público no fornecimento

dos serviços e condições adequadas de habitabilidade.”519 Veja-se, por exemplo, o Código

de Posturas do Município de São Paulo, de 6 de outubro de 1886, que trazia como regra a

proibição da construção de cortiços. Por sua vez, o Padrão Municipal de 11 de agosto de

1886, também proscrevia a construção de cortiços na área central da cidade. Ou, ainda, o

Código sanitário Estadual, de 1894, que praticamente proscreveu a existência dos cortiços,

proibindo a construção de novos, determinando a demolição daqueles insalubres.

518 SAULE JÚNIOR, Nelson. A Proteção Jurídica da Moradia nos Assentamentos Irregulares. Porto Alegre : Sérgio Antonio Fabris, 2004, p. 437 e 438.

519 SAULE JÚNIOR, Nelson. A Proteção Jurídica da Moradia nos Assentamentos Irregulares. Porto Alegre : Sérgio Antonio Fabris, 2004, p. 444.

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E “até o Código de Edificações e Obras, do final do século XX, os cortiços

continuaram não reconhecidos pela legislação urbana como imóveis regulares destinados

para habitação coletiva de aluguel.”520

Havia, assim, um claro descompasso entre a legislação e a realidade. Gerando,

conforme já tratado, riscos das mais variadas ordens : riscos criados e intensificados pela

desorganização espacial.

Mas, da mesma forma que encontram sua gênese na organização dos espaços, ditos

riscos também podem ser enfrentados mediante instrumentos de intervenção espacial

A Lei Orgânica do Município de São Paulo, de 4 de abril de 1990, não apenas

reconhece a existência dos cortiços mas permite a realização de ações no sentido de dotá-

los das adequadas condições de segurança, consolidando as ocupações e conferindo efetivo

respeito ao existente.

De outra banda, a Lei Municipal 10.928/91, também conhecida como Lei Moura,

reconhece a existência dos cortiços, assim como fixa responsabilidades e decorrentes

direitos aos moradores, impondo ainda a obrigatoriedade da elaboração de um cadastro e o

dever de realização de obras no sentido de eliminação de riscos.

O Plano Diretor da Cidade de São Paulo, corporificado por meio da Lei 13.430, de

13 de setembro de 2002, também traz em seu bojo preceitos que conferem proteção à

moradia nos cortiços. Mencionado diploma, em seu artigo 81, impõe ao Poder Público

520 SAULE JÚNIOR, Nelson. A Proteção Jurídica da Moradia nos Assentamentos Irregulares. Porto Alegre : Sérgio Antonio Fabris, 2004, p. 449.

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Municipal o dever de elaborar um diagnóstico acerca dos problemas de moradias em

situação de risco, dentre as quais inclui os cortiços. Prevê, ainda, como ação estratégica a

possibilidade de se realizarem reformas nos imóveis que se prestam à moradia sob a forma

de cortiços. E abre caminho para a utilização de instrumentos de regularização fundiária em

prol da concretização do direito à moradia nos cortiços, mediante a delimitação de Zonas

Especiais de Interesse Social. São estas, nos termos do artigo 171, do Plano Diretor,

“destinadas, prioritariamente, à recuperação urbanística, à regularização fundiária e à

produção de Habitações de Interesse Social (...) bem como à recuperação de imóveis

degradados.”521 Onde houver uma alta concentração de cortiços, ditas regiões podem ser

declaradas como ZEIS 3, cabendo ao Poder Executivo Municipal não apenas elaborar, mas

também executar um plano de urbanização voltado para “atender à necessidade social de

proteger o direito à moradia da população dos cortiços, nas regiões centrais da cidade;

visando a melhorar as condições de habitação dos imóveis enquadrados nessa categoria de

habitação de interesse social, sem resultar na expulsão da população dos cortiços.”522

A situação dos cortiços ostenta, portanto, um risco com dupla ancoragem espacial:

em primeiro lugar, um risco que é criado pela desorganização espacial, notadamente pela

ausência de uma política habitacional adequada às camadas mais desfavorecidas

economicamente da população. Risco esse, ademais, que se renova e se transforma,

reverberando em outras frentes, tais como a da saúde ou mesmo a segurança, não apensa

jurídica dessas pessoas, mas inclusive física, em face do propício palco que é para conflitos.

Mas, ao mesmo tempo, risco cujo enfrentamento repousa, também, em instrumentos

de natureza espacial, tais como : elaboração de cadastros, realização de reformas, inserção

em Zonas Especiais de Interesse Social, com o correlato regime jurídico peculiar.

521 SAULE JÚNIOR, Nelson. A Proteção Jurídica da Moradia nos Assentamentos Irregulares. Porto Alegre : Sérgio Antonio Fabris, 2004, p. 470.

522 SAULE JÚNIOR, Nelson. A Proteção Jurídica da Moradia nos Assentamentos Irregulares. Porto Alegre : Sérgio Antonio Fabris, 2004, p. 471.

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Consolidando situações já marcadas por uma permanência, prestigiando e dando a devida

importância ao direito social jusfundamental à moradia, mantendo comunidades onde as

mesmas já se encontram devidamente estabelecidas, com suas redes pessoais e sociais

praticamente cristalizadas. Lhes fornindo, sem embargo, da necessária legalidade e

segurança jurídica, assim exigíveis como concretização daquele direito à moradia.

Passemos, agora, à questão das pessoas em situação de rua a qual certamente

também envolve o direito à moradia, mas vai além. Ou, ao menos, envolve a concretização

desse direito à moradia mediante mais do que a mera oferta de um teto, ou mesmo de

imóveis, muitas vezes inacessíveis a ditas parcelas da população, seja por razões

econômicas – haja vista não disporem de recursos para a aquisição de um imóvel – seja em

termos de recursos cognitivos e intelectuais, muitas vezes comprometidos em face de

transtornos mentais e do consumo de substâncias, ou mesmo da prolongada permanência

nas ruas e em abrigos.

Conforme já apontado há pouco, nos deparamos, tomando-se por exemplo a cidade

de São Paulo, com contingentes consideráveis de pessoas que se encontram em situação de

rua. E, portanto, numa situação de risco social, risco esse de potencial violação a direitos

fundamentais tais como a vida ou mesmo a saúde e a moradia. São pessoas extremamente

vulneráveis, que vivem em um estado de quase penúria, num patamar certamente bem

abaixo daquilo que poderia ser considerado como o mínimo existencial. Uma situação que

necessariamente não pode ser aceita, impondo um dever de agir523.

As políticas públicas destinadas às pessoas em situação de rua ostentaram, ao longo

do tempo, facetas das mais variadas.

523 Nesse sentido : REDBURN, Stevens F., BUSS, Terry F. . Responding to America’s Homeless. Public Policy Alternatives. New York : Praeger, 1986, p. 98.

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Na França, a título de exemplo, no Século XVI, o Parlamento impunha trabalhos

forçados a mendigos. Em Paris, no ano de 1534, as pessoas em situação de rua eram

coagidas a deixar a cidade em três dias, sob pena de enforcamento. E, no ano de 1596, o

Parlamento ordenou que todas as pessoas em situação de rua deixassem a cidade de Paris

em 24 horas, sob pena de enforcamento sem qualquer julgamento prévio. 524

Nos Estados Unidos, passamos inicialmente de uma situação na qual as pessoas em

situação de rua sequer eram consideradas como objeto apropriado de políticas públicas a

outra, na qual mencionado grupo é visto como um problema social, com características e

problemas peculiares. Somente no ano de 1984 iniciam-se esforços nacionais sistemáticos

para diagnosticar o problema, por meio dos trabalhos do HUD (U.S. Department of

Housing and Urban Development – numa tradução livre : Departamento de Habitação e

Desenvolvimento Urbano dos Estados Unidos da América). Da visão estereotipada no que

tange às pessoas em situação de rua, qual seja, de que são “vagabundos” ou “pessoas que

ficam a vagar” (no original : “vagrant”), culturalmente desviantes e estigmatizados,

necessariamente evoluiu-se, os pesquisadores se deparando, atualmente, com novos grupos

de pessoas em situação de rua, tais como : famílias desalojadas de suas casas em face de

situação de desemprego, pessoas despejadas ou aqueles alcançados por cortes em

programas assistenciais, mulheres abusadas, adolescentes que fugiram de suas casas, assim

como as pessoas com problemas afetos à saúde mental que foram desinstitucionalizadas, ou

que jamais foram devidamente acolhidas.525

524 REDBURN, Stevens F., BUSS, Terry F. . Responding to America’s Homeless. Public Policy Alternatives. New York : Praeger, 1986, p. 8.

525 REDBURN, Stevens F., BUSS, Terry F. . Responding to America’s Homeless. Public Policy Alternatives. New York : Praeger, 1986, p. 4 e 5. Ainda segundo os autores, as crises econômicas, embora de forma não exclusiva, alimentam as fileiras das pessoas em situação de rua. A Grande Depressão dos Estados Unidos, da década de 30, lançou às ruas um grande contingente de jovens às ruas em busca de emprego. Da mesma forma, na década de 1980, cerca de 11 milhões de pessoas perderam seus empregos. E muito embora novos empregos tenham sido posteriormente criados, muitas famílias já haviam experimentado uma ruptura tal que as conduzira às ruas. Nem sempre os novos empregos criados serão ocupados por aqueles cujas vidas sofreram dita ruptura. Os números, vistos de uma perspectiva global, podem esconder situações individuais críticas.

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Trata-se, portanto, de situação vivenciada há séculos e que merece uma resposta

adequada à luz do atual ordenamento jurídico. E muito embora as iniciativas, em especial

da França, causem espécie, infelizmente não nos deparamos com grandes evoluções no

sentido de concretização e respeito ao direito das pessoas em situação de rua mesmo nos

tempos atuais, onde enormes contingentes de seres humanos se amontoam nos grandes

centros urbanos, sem que se vislumbre uma política clara a respeito de tais pessoas. E,

muito menos, com uma política cujos olhos estejam voltados à etiologia do problema e,

nesses termos, ao enfrentamento dos riscos hoje latentes em inúmeras famílias onde o

processo de perda de um lar ou mesmo de enfraquecimento de vínculos já se encontre

instalado.

Como já dissemos, o enfrentamento dos riscos decorrentes das pessoas em situação

de rua inclui a concretização do direito à moradia, mas o ultrapassa. Implica, ademais,

numa questão antecedente que consiste nos objetivos que se busca com a política pública

voltada a esse grupo de pessoas marginalizado : se se está apenas a buscar para eles abrigos

de emergência e talvez uma refeição. Ou o que se busca efetivamente é a reintegração de

tais pessoas à sociedade526.

Conforme os objetivos perseguidos pela política pública, ainda que implícitos, as

necessidades a serem atendidas serão absolutamente distintas. Forçoso acrescentar que a

ordem jurídica se interpõe nessa fixação de objetivos. Em jogo, e sob risco de intensa

violação, direitos dos mais diversos, reconhecidos como fundamentais pelo ordenamento

brasileiro, tais como a vida, a moradia, a saúde, a família. Necessária, sim, uma perspectiva

que forneça adequada e suficiente proteção a tais direitos fundamentais.

Mencionada perspectiva protetiva, na nossa opinião, decerto que envolve a

526 REDBURN, Stevens F., BUSS, Terry F. . Responding to America’s Homeless. Public Policy Alternatives. New York : Praeger, 1986, p. 98.

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adequada oferta de moradia e de abrigos, mas vai além.

Em primeiro lugar, necessário conhecer o perfil, as necessidades, a mobilidade, a

demografia, a disponibilidade de serviços e, enfim, etiologia relativa às pessoas em situação

de rua. Uma leitura não apenas diacrônica mas sincrônica e preocupada com os riscos a

direitos fundamentais. Riscos que se renovam e se intensificam com o passar do tempo.

As pessoas em situação de rua podem ser reunidas em quatro grandes grupos,

conforme pontuam Redburn e Buss527, com correlatas demandas específicas por serviços e

atenção.

Um primeiro grupo inclui aqueles que necessitam de cuidados permanentes. São

pessoas cuja idade, histórico e capacitação laboral, assim como seu quadro físico e mental

não lhes permite uma vida autônoma. As mesmas necessitarão de um apoio intenso e

próximo de agências ou equipamentos, no sentido de que suas necessidades mais

comezinhas sejam atendidas. E com o passar do tempo e o avançar da idade, referida

condição vai se tornando de reversão cada vez mais difícil, seja em razão da deterioração

física, assim como em face do crescente isolamento social que acarreta.

Um segundo grupo abarca aqueles que não necessitam de um tratamento de custódia

permanente, tal qual ocorre com o grupo anterior, mas ainda assim apresentam déficits e

problemas, remediáveis, os quais devem ser enfrentados antes de os mesmo enveredarem

por uma vida autônoma. Inserem-se neste grupo aqueles que necessitam de apoio no que

toca a consumo de substâncias ou reinserção profissional.

527 REDBURN, Stevens F., BUSS, Terry F. . Responding to America’s Homeless. Public Policy Alternatives. New York : Praeger, 1986, p. 98 e seguintes. Os dados dos autores são relativos a estudo realizado no Estado de Ohio, nos Estados Unidos da América, no ano de 1984.

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219

Um terceiro grupo consiste nas pessoas que apenas necessitam de um auxílio para

situações determinadas de crise. Este grupo é composto especialmente por pessoas que se

encontram há pouco tempo nas ruas e é engrossado, exemplificativamente, por aqueles que

foram despejados ou perderam seus imóveis em razão de fogo ou de alguma catástrofe

natural. Um outro motivo que os levou às ruas pode ser decorrente de conflitos familiares

ou perda recente de emprego. Tais pessoas, necessitam, em princípio, de auxílio temporário

para encontrarem moradia, ainda que subsidiada, ou mesmo emprego, assim como ajuda

legal e aconselhamento no que toca à crise familiar.

Por fim, e mediante um processo de exclusão, reúnem-se num quarto grupo os que

não necessitam de acompanhamento permanente ou mesmo temporário, e tampouco de

auxílio a situações de crises, mas simplesmente demandam um lugar para ficar, ou seja,

requerem um abrigo.

Dentro desse contexto, a organização dos espaços, assim como a adoção de

estratégias baseadas em critérios geográficos se mostram imprescindíveis. A organização

dos espaços pode ser levada adiante para contribuir no sentido de cotejar e contemplar de

forma devida a dinâmica e as necessidades das pessoas em situação de rua, fornecendo-lhes

o acesso adequado a serviços dos mais variados onde destes possam se valer. E, assim,

conferindo suficiente proteção a direitos fundamentais.

Por exemplo, a oferta de vagas em abrigos há de ser em locais onde a capacidade

adicional seja apropriada à demanda528. E, da mesma forma, equipamentos destinados a

prover assistência, inclusive após eventual institucionalização, preferentemente deverão se

situar nas comunidades de onde as pessoas detêm, ou detinham, laços familiares e de 528 REDBURN, Stevens F., BUSS, Terry F. . Responding to America’s Homeless. Public Policy Alternatives. New York : Praeger, 1986, p. 8.

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amizade, facilitando a reinserção dessas pessoas.

Estamos aqui, efetivamente, diante de formas das mais diversas para a

concretização de direitos fundamentais. Não nos aprofundaremos nessa seara, por fugir ao

objeto do nosso trabalho, cabendo registrar, todavia, que a adequada oferta de

equipamentos funcionais para atendimento também de populações de ruas, em suas

necessidades assistenciais e de saúde se inserem nesse contexto de suficiente concretização

de tais direitos fundamentais, como por exemplo a vida ou a saúde.

Em apertada síntese, necessário se faz proceder-se a uma correta leitura do perfil

das pessoas em situação de rua, de seu contingente, de suas necessidades, e da correlata

demanda por serviços. Cotejando-se essa demanda com a estrutura efetivamente disponível

para atender a essa população, seja em termos de quantidade de equipamentos, seja em

termos de sua qualidade e natureza (ou seja, se estão capacitados para receber às pessoas,

tanto em termos de estrutura, assim como em termos de capacitação de pessoal) e, ainda,

em termos de sua localização (por exemplo, inviável exigir-se deslocamentos intensos para

a utilização de determinados serviços, devendo os mesmos ser, também, acessíveis às

pessoas em situação de rua). E, inclusive, a eficiente e adequada articulação entre os

diferentes serviços colocados à disposição das pessoas em situação de rua. Não é suficiente,

por exemplo, acolher-se determinada pessoa em equipamento de saúde de atendimento

intensivo para, ao final de um tempo, pura e simplesmente levá-la novamente às ruas, sem

qualquer trabalho, por exemplo, de aproximação com a família ou mesmo de reinserção

social ou laboral, apenas para citar algumas iniciativas529.

529 Narrativa informal colhida por este subscritor junto a policiais da Zona Sul de São Paulo dá conta de pessoa em situação de rua, acolhida em equipamento de saúde, para internação em razão de consumo de drogas, acabou, após um mês, ganhando novamente as ruas, sem uma devida articulação com equipamentos outros ou mesmo com familiares. Acabou voltando ao consumo de substâncias e às ruas, onde teve sua vida ceifada mediante golpes de facão. Talvez não seja possível estabelecer-se uma relação de causalidade cristalina entre a situação de rua e a morte, mas remanesce a questão se um olhar mais atento à reinserção, com articulação entre os serviços, poderia ter salvo essa vida.

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O olhar, aqui, deve ser necessariamente tanto sincrônico quanto diacrônico. Os

contingentes e as necessidades são cambiantes. A rede deve estar preparada para atender a

essa dinâmica da demanda. Sempre, assim entendemos, com vistas à reinserção digna e à

autonomia desses contingentes de pessoas. Pois se houver tão somente a preocupação em

fornecimento de vagas em abrigos, estar-se-á a consolidar a situação de rua dessas pessoas.

O que, com o passar do tempo, deixará cicatrizes cada vez mais profundas nesses seres

humanos, acirrando-se muitas vezes, de forma irreversível, condições relacionadas com

saúde mental e com o consumo de substâncias.

Uma outra consideração importante, e que inclusive deve anteceder as questões

afetas às necessidades presentes das pessoas em situação de rua, diz respeito à dinâmica

que os levou a tal situação. E aqui também os aspectos territoriais se imiscuem e detém sua

importância.

Como bem apontam Redburn e Buss530, as pessoas declaram razões das mais

variadas ordens que as levaram às ruas, tais como problemas econômicos ou financeiros,

desastres, conflitos familiares, desinstitucionalização, problemas com álcool e drogas. Para

os autores não é possível estabelecer uma razão única apta a levar cidadãos a viver nas ruas.

O que temos, sim, é uma causalidade múltipla e sequencial. O parar nas ruas não é

resultado, via de regra, de um evento único e isolado, mas sim de processos insidiosos, que

incluem a privação de recursos financeiros, o isolamento de amigos e parentes, a ausência

de apoio assistencial adequado.

Não lograremos, aqui, fornecer evidências definitivas no que toca à causalidade que

conduziu contingentes de pessoas às ruas. Nada obstante, conforme já acentuamos, decerto

que o papel da organização dos espaços tampouco pode ser negligenciado nessa seara.

530 REDBURN, Stevens F., BUSS, Terry F. . Responding to America’s Homeless. Public Policy Alternatives. New York : Praeger, 1986, p. 55 a 77.

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Imiscuindo-se potencialmente nesse processo causal. E, assim, oferecendo mais uma frente

ao adequado enfrentamento dos riscos decorrentes da situação de rua em que muitas

pessoas se vêm empurradas. Vejamos.

Conforme já apontado, há aqueles desalojados de suas casas em razão de eventos

catastróficos. Tais eventos, combinados por exemplo com a falta de apoio para a realocação

e reinserção de pessoas em locais diversos pode efetivamente levar à situação de rua.

Antecederam a tais catástrofes ações ou omissões que certamente intensificaram os danos a

bens dos mais variados. Riscos que têm uma ancoragem territorial, seja no sentido de

medidas de mitigação locais, para evitar danos maiores. Seja, por exemplo, na dotação de

serviços adequados a receber contingentes de população atingidos por desastres531.

Temos, ainda, a organização dos espaços a contribuir para disfunções e conduzir,

exemplificativamente, a situações de violência ou mesmo de consumo de substâncias532, o

que também pode enfraquecer vínculos familiares, deteriorar a situação financeira, levar a

pessoas às ruas, um caminho muitas vezes com retorno bastante tortuoso.

A organização dos espaços também parece exercer uma força atrativa às pessoas em

situação de rua, tal qual sugere sua distribuição espacial desigual533, conforme se verifica,

531 Veja-se, por exemplo, o ocorrido com a passagem dos furacões Katrina e Rita, nos Estados Unidos da América, que impôs o deslocamento de centenas de milhares de pessoas. Acarretando potencialmente na piora da saúde mental de parcelas significativas dessa população, sem uma correlata capacitação dos serviços para o adequado atendimento dessa nova demanda (In : GREEN, Traci Craig, POPE, Cynthia. Using a GIS Framework to Assess Hurricane Recovery Needs of Substance Abuse Center Clients in Katrina and Rita-Affected Areas. In : THOMAS, Yvonette F., RICHARDSON, Douglas, CHEUNG, Ivan. Geography and Drug Addiction. Springer : 2008, p. 369 – 393.)

532 A explorar a importância dos laços familiares no tocante ao consumo de álcool entre adolescentes, sendo certo que a facilidade de acesso à substância por meio de pontos de venda tende a enfraquecer tais laços (SNEDKER, Karen A., HERTING, Jerald R. . The Spatial Context of Adolescent Alcohol Use. Assessing the Role of Neighborhood Alcohol Availability and Disadvantage. In : THOMAS, Yvonette F., RICHARDSON, Douglas, CHEUNG, Ivan. Geography and Drug Addiction. Springer : 2008, p. 43 – 63.

533 Para uma análise não só sobre a distribuição geográfica desigual relativa a situações relacionadas com a saúde, e, ainda, a correlação entre espaços e saúde e também as disparidades no acesso e localização de

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ainda que intuitivamente, na cidade de São Paulo, Brasil, onde deparamo-nos com grandes

contingentes de pessoas em situação de rua no Centro da cidade.

Referidos espaços da zona central da cidade, além de exercer atração às pessoas em

situação de rua acabam também por consolidar e acirrar disfunções. Uma vez nesses

espaços, as pessoas, caso deixadas à sua própria sorte, sofrerão um comprometimento cada

vez maior no que tange à sua saúde mental e a seus aspectos comportamentais. O consumo

de substâncias, em especial a cocaína sob a forma de pedras de Crack é uma prática

corriqueira e acessível. O agrupamento dessas pessoas, ainda que lhes confira uma aparente

e comezinha sensação de segurança e de vinculação social, certamente dificultará o resgate

digno de sua autonomia. Com o passar do tempo e diante da inércia do poder público os

riscos a essa população se intensificarão : seja no sentido de estarem expostos a abusos e a

violência, inclusive institucional, seja em razão de seu progressivo distanciamento de uma

adequada reinserção social (e.g. : com o passar do tempo, sem trabalho, mais difícil vai se

tornando a possibilidade de obtenção autônoma de renda).

Imprescindível ressaltar que não estamos a defender a dispersão de mencionadas

pessoas de ditas áreas centrais, política que muitas vezes parece integrar os “meios”

utilizados pelo poder público para enfrentar a situação das pessoas nas ruas. Pessoas,

cumpre recordar, dotadas de direitos. Mencionada dispersão pode inclusive afastar tais

cidadãos dos poucos serviços dos quais estão a fazer uso e os tornará menos visíveis. De

rigor, sim, compreender essa distribuição desigual bem como os deveres de proteção

correlatos, em especial no que toca à adequada oferta de serviços que hão de ser colocados

à disposição para atender à essa população em situação de rua, com vistas à permitir-lhes

reassumir sua autonomia em condições dignas e seguras.

sérvios de cuidados com a saúde, veja-se : McLAFFERTY, Sara. Placing Substance Abuse. In : THOMAS, Yvonette F., RICHARDSON, Douglas, CHEUNG, Ivan. Geography and Drug Addiction. Springer : 2008, p. 1 – 16)

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Em suma, não seria inexato afirmar quanto à existência de um processo insidioso

que está a despejar pessoas nas ruas de nossas cidades, e que tem uma componente

espacial.

Temos, portanto, um intenso risco a direitos fundamentais, com uma dupla faceta

espacial, qual seja : a organização dos espaços podendo fomentar disfunções e não apenas

empurrar, mas tornar ainda mais crítica a situação de pessoas que moram nas ruas; mas, ao

mesmo tempo, dita organização sendo apta a oferecer uma solução ao enfrentamento do

risco das pessoas em situação de rua e, em última análise, à preservação dos direitos dessa

parcela vulnerável da população. Fornecendo, dentro de uma estratégia geográfica e

espacial, equipamentos e serviços adequados à demanda534 dessa população em situação de

rua. Adequado, em última análise, à suficiente proteção de direitos fundamentais como a

moradia, a saúde, a vida, a família. Cremos que podemos mensurar o grau de civilidade e os

valores correntes de uma dada sociedade por meio da maneira como tratam aqueles mais

vulneráveis535.

E nem há que se argumentar quanto à insuficiência normativa no sentido de se

contemplar as necessidades das pessoas em situação de rua. Resguardando seus direitos

notadamente mediante intervenções de natureza espacial. Vejamos alguns exemplos.

534 Importa acrescentar que muitas vezes, ainda que disponíveis, os serviços não são utilizados. A trazer para o debate não apenas a capacidade dos equipamentos em atender à demanda, em termos quantitativos, mas também qualitativos : ou seja, se ditos equipamentos estão em locais apropriados, se são organizados de forma a efetivamente atrair e acolher a população de rua. Note-se que a ausência de adequada acolhida gera riscos outros como, por exemplo, a transmissão de doenças sexualmente transmissíveis. Nesse sentido a explorar a subutilização de equipamentos por pessoas em situação de rua, e no risco à saúde em face da transmissão de doenças, veja-se : LANKENAU, Stephen E.; SANDERS, Bill; BLOOM, Jennifer Jackson; HATHAZI, Dodi; ALARCON, Erica; TORTU, Stephanie; CLATTS. Migration Patterns and Substance Abuse among Young Homeless Travelers. In : THOMAS, Yvonette F., RICHARDSON, Douglas, CHEUNG, Ivan. Geography and Drug Addiction. Springer : 2008, p. 65 – 83.

535 No mesmo sentido, citando Samuel Johnson : REDBURN, Stevens F., BUSS, Terry F. . Responding to America’s Homeless. Public Policy Alternatives. New York : Praeger, 1986, p. 131.

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Uma das formas de garantir os direitos das pessoas em situação de rua é mediante a

adequada oferta de equipamentos talhados às suas necessidades. Mencionada oferta vem

prestigiada, por exemplo, pela determinação expressa de criação de programas de amparo

para pessoas em situação de rua, prevista no inciso II, do § 2o , do artigo 23, da Lei Federal

8.742, de 7 de dezembro de 1993 (Lei Orgânica de Assistência Social – artigo cuja redação

foi modificada pela Lei Federal 12.435, de 2011).

Outra possibilidade territorializada de atendimento reside nos denominados Centros

de Atendimento Psicossocial (CAPS). Os CAPs “são unidades de atendimento público em

saúde mental em regime ambulatorial de atenção diária, que devem estar capacitadas para

realizar prioritariamente o atendimento de pacientes com transtornos severos e persistentes

em sua área territorial, em regime de tratamento intensivo, semi-intensivo e não-intensivo,

e que devem funcionar em área física específica e independente de qualquer estrutura

hospitalar. Trata-se de serviços substitutivos, e não complementares, aos hospitais

psiquiátricos, quem por função realizar o acompanhamento clínico e proporcionar,

mediante acesso ao trabalho, lazer, exercício dos direitos e fortalecimento dos laços

familiares e sociais, a reintegração social das pessoas portadoras de transtornos mentais.”536

O regramento dos CAPs é fornecido pela Portarias Ministério da Saúde GM n. 336,

de 19 de fevereiro de 2002 bem como GM n. 3.088, de 23 de dezembro de 2011.

Cabe menção, ainda, a instrumentos destinados a fornecer moradia em situações de

emergência, evitando-se, como prevenção secundária537, que se inicie o processo que acaba

por levar as pessoas às ruas, ou então coarctando dito processo ainda em sua fase inicial.

536 SANTORO FILHO, Antonio Carlos. Direito e Saúde Mental. 1ª edição, São Paulo : Verlu, 2012, p. 52.

537 Sobre prevenção secundária veja-se : REDBURN, Stevens F., BUSS, Terry F. . Responding to America’s Homeless. Public Policy Alternatives. New York : Praeger, 1986, p. 129 e 130.

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São eles, dentre outros, o auxílio moradia provisório para situações emergenciais538, que

fornece recursos a pessoas para a obtenção de moradia, sob a forma de aluguel, e ainda o

Programa Novo Começo, voltado à construção de unidades habitacionais em regime de

urgência539.

Os métodos para enfrentamento dos riscos decorrentes da situação de rua vêm

reforçados pelo Decreto 7.053, de 23 de dezembro de 2009, o qual institui a Política

Nacional para a População em Situação de Rua. O qual arrola em seu artigo 7º, inciso I,

como um dos objetivos da mencionada Política Nacional “assegurar o acesso amplo,

simplificado e seguro aos serviços e programas que integram as políticas públicas de saúde,

educação, previdência, assistência social, moradia, segurança, cultura, esporte, lazer,

trabalho e renda;” O inciso XII desse mesmo artigo impõe, ainda dentre os objetivos da

Política Nacional, a implementação de “centros de referência especializados para

atendimento da população em situação de rua, no âmbito da proteção social especial do

Sistema Único de Assistência Social;”

Essa suficiência institucional, representada por uma oferta condizente de

equipamentos, vem também reconhecida dentro das diretrizes gerais da política urbana,

veiculadas pelo artigo 2º, da Lei Federal 10.257, de 10 de julho de 2001, a impor a

necessidade de uma adequada oferta de equipamentos urbanos e comunitários (art. 2º,

inciso V).

Especificamente no que concerne à prevenção ao consumo de substâncias mediante

intervenções no tecido urbano, medida que também se imbrica na questão das pessoas em

situação de rua, contamos também com densidade normativa, representada, por exemplo :

538 Ou AME, no Estado de São Paulo, regrado pelos Decretos 55.370/10 e 55.664/11.

539 Trata-se de programa do Estado de São Paulo disciplinado pelos Decretos 55.432/10 e 55.663/11.

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pelo inciso IX, do artigo 19, da Lei Federal n. 11.343, de 23 de agosto de 2006, o qual

determina “o investimento em alternativas esportivas, culturais, artísticas, profissionais,

entre outras, como forma de inclusão social e de melhoria da qualidade de vida”; ou, ainda,

o inciso XI , do artigo 19, também da Lei Federal 11.343/2006, que determina “a

implantação de projetos pedagógicos de prevenção do uso indevido de drogas, nas

instituições de ensino público e privado”; na mesma linha, a Política Nacional sobre o

Álcool, positivada por meio do Decreto Federal n. 6.117, de 22 de maio de 2007, que

prestigia a atividade de prevenção por meio de intervenções territoriais em suas diretrizes

(item 6, do Plano de Ação), tais como : ter uma rede de cuidados acessível aos usuários e

que contemple em seu planejamento as lógicas de território (6.7); “facilitar o acesso da

população à alternativas culturais e de lazer” (6.11); estimular e fomentar medidas que

restrinjam, espacial e temporalmente, os pontos de venda e consumo de bebidas alcoólicas

(6.13); estimular ações de prevenção em instituições de ensino (6.17). E, finalmente, em

claro prestígio ao princípio da eficiência, impondo a criação de mecanismos para avaliar os

impactos das ações propostas e implementadas (Item 6.20, do Plano que segue anexo ao

Decreto 6117, de 22 de maio de 2007).

Mencionadas disposições, sem embargo, nada mais são do que formas à

concretização de direitos fundamentais como o da saúde, da moradia, ou mesmo da vida

digna. Direitos fundamentais que, conforme coloca Alexy540, são completos, a enfeixar

consequentemente uma série de posições. Enfeixam-se diversas normas a um mesmo

direito fundamental, cuja concretização perpassa por deveres e direitos dos mais diversos.

Especificamente no que concerne às pessoas em situação de rua, a concretização e à

suficiente proteção de seus direitos fundamentais, tal qual a moradia, já tratada há pouco,

passa necessariamente por uma adequada oferta de equipamentos destinados a recebê-los e

a atender às suas necessidades.

540 ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva, da 5ª edição alemã. São Paulo : Malheiros, 2008, p. 248.

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Da mesma forma, a adequada organização espacial, com vistas à prevenção de

consumo de substâncias, ou, ainda, ao enfrentamento de espaços que possam levar a

disfunções que potencialmente conduzam a consumo de substâncias e à situação de rua,

também se soma a tais esforços destinados à suficiente proteção dos direitos fundamentais

daqueles indivíduos que hoje se encontram nas ruas. Sendo certo que a permanência de

grandes contingentes de pessoas nas ruas, desamparadas ou sem o devido acolhimento

representa um risco bastante intenso à vulneração daqueles mesmos direitos.

Portanto, em nosso entendimento, o alçamento da moradia à categoria de direito

fundamental traz ao Estado um dever acentuado de promover sua adequada proteção da

melhor maneira possível, das mais variadas formas, em especial a grupos extremamente

desamparados e desprovidos sequer de um mínimo que lhes assegure uma existência digna.

E ainda que dito direito à moradia não imponha, de imediato, o fornecimento de uma casa a

todos, não desincumbe o poder público de oferecer, cada vez mais, meios ao enfrentamento

do déficit habitacional. Moradia aqui entendida não apenas como um teto, mas

acompanhado da necessária infraestrutura para uma vida digna e de qualidade.

Portanto, o risco, em suas mais diversas facetas, encontra espaço no ordenamento

pátrio. Risco que pode ser majorado pela organização dos espaços, mas que também, mais

uma vez pontuamos, pode ser devidamente enfrentado por dita organização, havendo

disposições de suficiente densidade para admitir tanto. Referida possibilidade abstrata,

encontra eco, sim, em experiências adicionais, as quais passaremos a abordar em seguida.

1.8.3.2.5.4.1 - Brasil : das concretas possibilidades da organização espacial

para enfrentar o risco.

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Entendemos, contudo, que os distintos métodos de enfrentamento do risco, embora

importantes, devem ter uma mínima aderência à realidade, devem ser efetivos, produzir

concreta mudança social. Ainda que se falar em efetividade, ou seja, em efetiva

transformação social pelas mãos do direito possa ser tema apto a dar azo a animados

debates que, no entanto, fugiriam ao escopo do presente, consideramos pertinente fornecer

exemplos empíricos acerca da devida e possível inserção do risco na seara das intervenções

no tecido urbano.

Consoante já explicitamos acima, entendemos que o risco em sua dimensão espacial

há de manter uma tessitura aberta e ser consequentemente apto a recepcionar situações das

mais diversas conferindo a mencionadas situações uma roupagem jurídica adequada e um

regime peculiar. Um regime que tem como fim perseguir a realização de um interesse

público, indisponível, norteado pela precaução e pela atuação administrativa célere e ampla,

mesmo nas situações de incerteza. Uma atuação marcada por um dever estatal de proteção

suficiente, com controles de eventuais excessos, ponderação dos interesses aparentemente

conflitantes, adoção de prestações que conduzam ao prestígio de direitos fundamentais. Um

regime que forçosamente deve prestigiar a não exposição de bens jurídicos a risco, protetor

de direitos dos mais diversos, tais como a vida, o patrimônio, o meio ambiente, a saúde, a

moradia, apenas para citar alguns.

Sem maiores delongas, seguiremos com alguns exemplos empíricos adicionais

acerca do risco em sua dimensão espacial, no contexto brasileiro.

Uma das situações associadas ao risco que podemos denominar de espacial é a de

inundação. Joao Carlos Nucci541 realizou um estudo que teve por objeto o córrego do

Arouche, na cidade de São Paulo, região que é palco de reiteradas inundações. Nucci parte 541 NUCCI, Joao Carlos. Planejamento da paisagem e drenagem urbana : inundações no córrego do Arouche (São Paulo / SP). In : Temas de Direito Urbanístico 6. Coordenação : Jorge Luiz Ussier. Organização : Mário Augusto Vicente Malaquias. São Paulo : Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2011, p. 121 a 137.

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de uma distinção entre “enchente”, que ele classifica como um fenômeno natural e que, via

de regra, não afeta a população haja vista se tratar de algo cíclico, e “inundação”,

“fenômeno decorrente de modificações no uso do solo e que podem causar danos para a

sociedade.”542

O córrego do Arouche, até meados do século XIX, “corria a céu aberto, em meio a

florestas e campos, apresentando várzeas livres de edificação e que eram preenchidas pelas

cheias sem problemas para os seres humanos.”543 Referida situação, todavia, sofreu

dramática transformação. Desde o século XX a área de captação e drenagem das águas

pluviais foi gradualmente “ocupada e impermeabilizada por construções e edificações que,

simplesmente, ignoraram a presença do córrego, bem como de seus afluentes, e hoje o

córrego encontra-se canalizado e correndo sob a superfície impermeabilizada da cidade,

entretanto, ele ainda existe e continua exprimindo todo seu potencial, principalmente

durante as fortes chuvas.”544

Assim sendo, áreas de enchente se transformaram em áreas de inundação como

decorrência de decisões, ou seja, como fruto da ação do homem. Com mais construções,

aumentou-se a impermeabilização do solo. A água não apenas deixa de ser absorvida pelo

solo que hoje não mais está descoberto, mas tem sua velocidade de escoamento aumentada.

Chega às áreas mais baixas e planas, outrora a várzea, com maior velocidade e intensidade,

sítios esses que hoje estão ocupados. Sistematicamente há inundação, quase sempre nos

mesmos pontos, com transtornos consideráveis à população que não só reside ou trabalha

542 NUCCI, Joao Carlos. Planejamento da paisagem e drenagem urbana : inundações no córrego do Arouche (São Paulo / SP). In : Temas de Direito Urbanístico 6. Coordenação : Jorge Luiz Ussier. Organização : Mário Augusto Vicente Malaquias. São Paulo : Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2011, p. 194, nota 5.

543 NUCCI, Joao Carlos. Planejamento da paisagem e drenagem urbana : inundações no córrego do Arouche (São Paulo / SP). In : Temas de Direito Urbanístico 6. Coordenação : Jorge Luiz Ussier. Organização : Mário Augusto Vicente Malaquias. São Paulo : Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2011, p. 199.

544 NUCCI, Joao Carlos. Planejamento da paisagem e drenagem urbana : inundações no córrego do Arouche (São Paulo / SP). In : Temas de Direito Urbanístico 6. Coordenação : Jorge Luiz Ussier. Organização : Mário Augusto Vicente Malaquias. São Paulo : Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2011, p. 201.

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ali, mas que também tenta circular pela região.

Como medida, dentre outras, apta a mitigar as consequências danosas da excessiva

impermeabilização do solo, Nucci sugeriu a criação de áreas livres de edificação e com

vegetação545, com indicação, inclusive, de locais aptos a receber referidas intervenções.

Sem embargo, em direção aparentemente oposta, numa das áreas apontadas, ao invés de

mitigar-se a impermeabilização, foi levantado um edifício de 30 andares. O que, em tese,

aumentará a impermeabilização e, por consequência, as inundações, desrespeitando a

capacidade de suporte546 daquela localidade específica, ou seja, os limites de ocupação do

território.

Sem embargo, como em toda situação de risco espacial, este sempre se renova.

Cabíveis novas medidas e novas decisões para fazer frente a eventos danosos futuros, desde

que, por óbvio, sejam estes adequadamente representados no presente e devidamente

inseridos no processo de intervenção no tecido urbano. O mesmo se dá com a região do

Arouche, na qual ainda cabem, exemplificativamente, com a finalidade de diminuir o

problema da inundação, intervenções para aumento da permeabilidade do solo,

especialmente em estacionamentos, o aumento da retenção de águas pluviais de novos

edifícios, situação já contemplada na legislação Municipal de São Paulo547, e, ainda, a

545 NUCCI, Joao Carlos. Planejamento da paisagem e drenagem urbana : inundações no córrego do Arouche (São Paulo / SP). In : Temas de Direito Urbanístico 6. Coordenação : Jorge Luiz Ussier. Organização : Mário Augusto Vicente Malaquias. São Paulo : Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2011, p. 202, nota 8. Nucci faz uso da expressão EUPLEV, que significa espaços de uso público livres de edificação e com vegetação, da lavra de Buccheri Filho.

546 Conforme mencionado por Nucci (NUCCI, João Carlos. Planejamento da paisagem e drenagem urbana : inundações no córrego do Arouche (São Paulo / SP). In : Temas de Direito Urbanístico 6. Coordenação : Jorge Luiz Ussier. Organização : Mário Augusto Vicente Malaquias. São Paulo : Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2011, p. 192), fazendo alusão a termo cunhado por Marcus e Detwyler (In : MARCUS, Melvin Gerald , DETWYLER, Thomas Robert, Urbanization and environment : the physical geography of the city. Belmont / California, Duxbury Press, 1972.

547 O Código de Obras do Município de São Paulo (Lei Municipal 11.228, de 25.06.92) impõe, para a garantia da absorção de águas, dentre outras medidas, a reserva de no mínimo 15% da área do terreno livre de pavimentação ou construção, ou a construção de reservatório ligado ao sistema de drenagem.

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implantação dos EUPLEV´s. Um olhar norteado pelo risco nos conduziria a perguntar

quantas outras áreas temos apenas na cidade de São Paulo e que, na época das chuvas, serão

fortemente afetadas pelas enchentes, com perda de patrimônio e, por vezes, até mesmo de

vidas ? O olhar do risco impõe um mapeamento dessas área, tomada antecipada de decisões

para conviver com ditos riscos, preservando ao máximo bens jurídicos caros. E o

permanente acompanhamento de tais áreas, ainda com vistas à preservação antecipada de

mencionados bens.

Da mesma forma, ainda a apontar para a potencialização de processos de natureza

geológica, tais como escorregamentos e erosões, em decorrência do uso e ocupação do solo

levado adiante de forma indevida, merece menção o trabalho de Agostinho Tadashi

Ogura548. O mencionado autor parte de uma distinção entre suscetibilidade e

vulnerabilidade para reforçar sua argumentação. Suscetibilidade, segundo o autor, consiste

na “maior ou menor propensão ou tendência de um dado processo poder ocorrer em um

dado local549”. Termo comumente usado para “fenômenos de natureza geológica como os

escorregamentos ou as erosões”550 e que pode ser induzido por ação antrópica, como por

exemplo realização de aterros, taludes de corte e escavação de terrenos de encosta natural.

De outra banda “o termo vulnerabilidade é conceituado como o grau de perda de um

dado elemento ou conjunto de elementos sob risco de ser atingido por um fenômeno ou

548 OGURA, Agostinho Tadashi. Mudanças climáticas e gestão de desastres naturais. In : Temas de Direito Urbanístico 6. Coordenação : Jorge Luiz Ussier. Organização : Mário Augusto Vicente Malaquias. São Paulo : Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2011, p. 36 - 50.

549 OGURA, Agostinho Tadashi. Mudanças climáticas e gestão de desastres naturais. In : Temas de Direito Urbanístico 6. Coordenação : Jorge Luiz Ussier. Organização : Mário Augusto Vicente Malaquias. São Paulo : Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2011, p. 38.

550 OGURA, Agostinho Tadashi. Mudanças climáticas e gestão de desastres naturais. In : Temas de Direito Urbanístico 6. Coordenação : Jorge Luiz Ussier. Organização : Mário Augusto Vicente Malaquias. São Paulo : Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2011, p. 38.

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ameaça natural com uma dada severidade, magnitude ou potencial destrutivo.”551 Tem

relação com a “capacidade de enfrentar uma dada ameaça.”552 A diminuição da

vulnerabilidade, no contexto apresentado por Ogura, se traduz na modificação de situações

e condições de risco “relacionadas com a forma pouco cuidadosa de uso e ocupação do

território, principalmente dos terrenos mais suscetíveis aos processos de dinâmica

superficial.”553

O aumento da severidade de eventos climáticos, aliada à ocupação do solo levada

adiante sem maiores cautelas, com presença de assentamentos precários de baixa qualidade

construtiva representam uma maior suscetibilidade e vulnerabilidade. E diante desse

quadro, a o registro de óbitos no Brasil em decorrência de eventos de natureza geológica

está se intensificando ano a ano.

Sem embargo, conforme bem aponta Ogura, há medidas aptas a fazer frente a tais

situações de maior suscetibilidade e vulnerabilidade, tais como a eliminação de situações de

risco, inclusive mediante remoção de moradores554, ou também de mitigação ou

minimização de ditas situações por meio de medidas estruturais de contenção de encostas,

do controle do uso e ocupação do solo e, ainda, do planejamento urbano. Que o risco seja,

conforme bem arremata Ogura, devidamente inserido no contexto das intervenções urbanas.

Um risco, podemos acrescentar, que tem uma evidente faceta espacial e que exige decisões 551 OGURA, Agostinho Tadashi. Mudanças climáticas e gestão de desastres naturais. In : Temas de Direito Urbanístico 6. Coordenação : Jorge Luiz Ussier. Organização : Mário Augusto Vicente Malaquias. São Paulo : Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2011, p. 40.

552 OGURA, Agostinho Tadashi. Mudanças climáticas e gestão de desastres naturais. In : Temas de Direito Urbanístico 6. Coordenação : Jorge Luiz Ussier. Organização : Mário Augusto Vicente Malaquias. São Paulo : Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2011, p. 40.

553 OGURA, Agostinho Tadashi. Mudanças climáticas e gestão de desastres naturais. In : Temas de Direito Urbanístico 6. Coordenação : Jorge Luiz Ussier. Organização : Mário Augusto Vicente Malaquias. São Paulo : Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2011, p. 40.

554 Sempre ressaltando que a remoção de moradores é medida extrema e deve ser objeto de ponderação cuidadosa entre os bens jurídicos em jogo, pois estamos a falar de pessoas que são detentoras de direitos, merecedoras de tratamento digno. A toda e qualquer medida de intervenção no tecido urbano subjazem os valores daqueles que as promovem.

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hoje sobre um futuro cada vez mais preocupante. Caso contrário, permaneceremos ano após

ano, a contar os mortos555.

Passando-se à área da saúde, tal qual já tratado anteriormente, possível identificar

em determinadas localidades, segundo Reynaldo Mapelli Júnior, “verdadeiros ‘cenários de

risco’ para a saúde dos moradores”. 556Trata-se, para Luis Sérgio Ozório Valentim557, da

potencialização, num dado local, de interações das mais diversas as quais acabam por

interferir negativamente na saúde.

As precárias condições do habitat podem potencializar fatores desfavoráveis à

saúde, tal qual ocorre com uma série de doenças, as denominadas “doenças negligenciadas,

como no Brasil o são a doença de Chagas, a leishmaniose, a hanseníase, a malária, a

esquistossomose, a tuberculose e a dengue.”558 Doenças, sem embargo, ainda a afligir

camadas da população, embora desprezadas por atores envolvidos em pesquisas e

medicamentos. 555 Eventos trágicos que acabam por assumir a forma de triste espetáculo, e que têm importância mais por seu aspecto sensacionalista do que em razão de sua significação social, econômica ou mesmo humana. A tratar da sociedade do espetáculo, veja-se : VARGAS LLOSA, Mario. A civilização do espetáculo : uma radiografia do nosso tempo e da nossa cultura. Rio de Janeiro : Objetiva, 2013. Ou, ainda : DEBORD, Guy. Society of the Spectacle. Introduction by Tom Vague. Preface by Sam Cooper. London : Bread and Circuses Publishing, 1967.

556 MAPELLI JÚNIOR, Reynaldo. O Sistema Único de Saúde e as áreas de risco. In : Temas de Direito Urbanístico 6. Coordenação : Jorge Luiz Ussier. Organização : Mário Augusto Vicente Malaquias. São Paulo : Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2011, p. 346

557 VALENTIM, Luis Sérgio Ozório. Sobre a produção de bens e males nas cidades. Estrutura urbana e cenários de risco à saúde em áreas contaminadas na Região Metropolitana de São Paulo. São Paulo : 2010. (Tese : Doutorado – Área de concentração : Planejamento Urbano e Regional). FAUUSP. Ozório Valentim, analisando a questão das áreas contaminadas – são 1254 áreas na Região Metropolitana de São Paulo – argumenta que referida situação é a expressão de um modelo de desenvolvimento cujas manifestações mais agudas se dão nas cidades. O autor argumenta quanto à existência de uma relação entre a produção de cenários de risco e a estrutura metropolitana. As cidades, antes concebidas para fornecer proteção, absorvem as disfunções de um modo de produção descuidado com o meio ambiente. E nessa transformação, alguns grupos sociais estão mais expostos que outros a cenários de risco, notadamente o risco à saúde decorrente de áreas contaminadas.

558 MAPELLI JÚNIOR, Reynaldo. O Sistema Único de Saúde e as áreas de risco. In : Temas de Direito Urbanístico 6. Coordenação : Jorge Luiz Ussier. Organização : Mário Augusto Vicente Malaquias. São Paulo : Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2011, p. 347.

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A proteção à saúde, prossegue Mapelli, se mostra indissociável das atividades de

saneamento ou mesmo daquelas afetas à formação de núcleos habitacionais. Uma

circunstância que foi devidamente recolhida pelo ordenamento jurídico brasileiro. A

própria Constituição Federal do Brasil, em seu artigo 200, inciso IV, dispõe que compete ao

sistema único de saúde participar na formulação e execução das ações de saneamento

básico. Estabelecendo esse mesmo artigo 200, em seu inciso VIII, que ações

governamentais devem impedir a formação de núcleos habitacionais em áreas de risco.

Nesse mesmo diapasão, o Código Sanitário do Estado de São Paulo (Lei Estadual

10.083, de 23 de setembro de 1998), reconhece a íntima relação entre saúde e fatores

ambientais, notadamente do ambiente construído. O artigo 12 do mencionado diploma legal

inclui dentre os fatores ambientais de risco à saúde “principalmente os relacionados à

organização territorial, ao ambiente construído, ao saneamento ambiental”. Em seu

Capítulo II, trata o Código Sanitário do Estado de São Paulo da “Organização Territorial,

Assentamentos Humanos e Saneamento Ambiental” (artigo 13, e seguintes), com

disposições específicas relativas a edificações urbanas ou rurais, as quais devem ser

construídas e mantidas observando-se a proteção contra enfermidades transmissíveis e

crônicas (artigo 14, inciso I, da Lei Estadual 10.083/98). Dentre outras, possível também a

intervenção em cenários de risco à saúde mediante o exercício do poder sancionatório

legitimado pela Lei Federal 6.437, de 20 de agosto de 1977, diploma que autoriza a

aplicação de multas ou mesmo o cancelamento de autorização para funcionamento de

empresa assim como do alvará de licenciamento de estabelecimento (incisos X e XI, do

artigo 2º, da Lei Federal 6.437/77) ante a prática de infrações sanitárias559. Portanto, como

559 As infrações sanitárias especificadas na Lei 6.437/77 estão previstas nos incisos do artigo 10º, do apontado diploma. Merecem referência especial, apenas a título de exemplo, os incisos seguintes : “X - obstar ou dificultar a ação fiscalizadora das autoridades sanitárias competentes no exercício de suas funções”; e “XXIV - inobservância das exigências sanitárias relativas a imóveis, pelos seus proprietários, ou por quem detenha legalmente a sua posse:”, infração esta que admite inclusive a pena de interdição.

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bem arremata Mapelli560, não haveria justificativa para eventual omissão das autoridades

sanitárias, tendo em vista a miríade de instrumentos de que dispõem para intervir em

núcleos habitacionais com vistas, como dispõe o artigo 16, do Código Sanitário do Estado

de São Paulo, “a contribuir para a melhoria da qualidade de vida e da saúde da população”.

Mesmo de situações nas quais o risco, outrora em seu estado potencial, já se

consumou561, não se descuraram as normas relativas à saúde, com disposições diversas de

orientação para ações em situações de desastres, com a finalidade de evitar doenças e

agravos à saúde 562. E, assim, evitar novos eventos futuros aptos a vulnerar o direito

fundamental à saúde.

A organização dos espaços urbanos não pode ser desconsiderada, assim, na

preservação do direito à saúde, também garantido constitucionalmente no Brasil em seu

artigo 6º, assim como no artigo 196, e seguintes, como direito de todos e dever do Estado.

O direito à saúde sendo concretizável também por intervenções de cunho espacial, inclusive

560 Mapelli (MAPELLI JÚNIOR, Reynaldo. O Sistema Único de Saúde e as áreas de risco. In : Temas de Direito Urbanístico 6. Coordenação : Jorge Luiz Ussier. Organização : Mário Augusto Vicente Malaquias. São Paulo : Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2011, p. 351) faz referência a opinião no mesmo sentido esposada por Hely Lopes Meirelles. In : MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo brasileiro. 36ª edição. São Paulo : Malheiros, 2010, p. 146.

561 Conforme dados da SEDEC (Secretaria Nacional de Defesa Civil), fornecidos por Mapelli (MAPELLI JÚNIOR, Reynaldo. O Sistema Único de Saúde e as áreas de risco. In : Temas de Direito Urbanístico 6. Coordenação : Jorge Luiz Ussier. Organização : Mário Augusto Vicente Malaquias. São Paulo : Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2011, p. 352), no Brasil, entre os anos de 2003 e 2010, o número de pessoas vitimadas por desastres naturais foi de 22.089.804 pessoas. Um número que apresentou significativo crescimento entre 2007 e 2009 (entre 2007 e 2008, o aumento de vítimas foi da ordem de 23,77%. E de 2008 a 2009 o incremento atingiu o patamar de 43,87%). Somente na cidade de São Paulo, no Brasil, são 407 encostas e margens sujeitas a escorregamento e processos de erosão mapeadas pelo IPT (Instituto de Pesquisas Tecnológicas), equivalente a 1% do território do Município. Estamos falando aqui, acrescentamos, apenas de áreas mapeadas pelo IPT, havendo, certamente, outras áreas suscetíveis a processos geológicos danosos e com possibilidades de perdas de vidas e de patrimônio.

562 Cabendo menção, de forma tão somente exemplificativa, o Comunicado do Centro de Vigilância Sanitária de São Paulo CVS n. 6/2011, que trata da limpeza e desinfecção de caixas d’água para prevenção de riscos após enchentes. Ou, ainda, o “Guia de Preparação e Resposta aos Desastres Associados às Inundações para a Gestão Municipal do Sistema Único de Saúde, divulgado pelo Ministério de Saúde do Brasil, com disposições, dentre outras, relativas à gestão de riscos, incluindo medidas para a reorganização territorial das atividades de saúde em face de desastres.

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e especialmente para enfrentar o risco a esse direito. Com amplas possibilidades de atuação

à disposição do poder público.

Ainda a tratar da temática da saúde, retomamos a referência já feita à pesquisa de

Mason, Mennis, Coastworth, Valente, Lawrence e Pate 563, que trata da relação entre

lugares e o uso de substâncias. Segundo os autores, as características tanto físicas quanto

sociais influenciam comportamentos relacionados ao uso de substâncias e, ainda, a saúde

mental. A arquitetura e concepção dos espaços pode tanto produzir competências para

evitar o consumo de substâncias e prestigiar a saúde mental quanto, em direção oposta,

promover disfunções. A forma como tais espaços foram, são e serão organizados terá, em

tese, aptidão para promover tais competências e disfunções. E terá também a aptidão, de

acordo com a maneira pela qual serão levadas adiante as intervenções, para prevenir danos

futuros à saúde. Tais riscos à saúde, cumpre ressaltar, ostentam uma distribuição espacial

desigual. Afetam locais diversos de forma distinta. E, nesse contexto, intervenções nesse

mesmo espaço físico se alinham para a concretização do direito à saúde, dimensão espacial

esta que não pode ser negligenciada, sob pena de perpetuarem-se os processos de disfunção

instalados em determinadas localidades, à espreita de quem ali mora ou transita. Pessoas

expostas em risco, muitos dos quais jovens em situação de vulnerabilidade social.

Ainda na esteira do risco de dimensão espacial que se manifesta sob a forma de

problemas de saúde, podemos fazer referência à doutrina de José Carlos de Freitas564,

tratando especificamente da questão do saneamento.

563 MASON, Michael J., MENNIS, Jeremy, COASTWORTH, J. Douglas, VALENTE, Thomas, LAWRENCE, Frank, PATE, Patricia. The relationship of place to substance use and perceptions of risk and safety in urban adolescents. In : Journal of environmental psychology 29 (2009,) p. 485-492.

564 FREITAS, José Carlos de. Ocupações irregulares – riscos sociais decorrentes da falta de saneamento. In : Temas de Direito Urbanístico 6. Coordenação : Jorge Luiz Ussier. Organização : Mário Augusto Vicente Malaquias. São Paulo : Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2011, p. 209 a 222.

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O saneamento565 inclui atividades como o abastecimento de água, a disposição de

esgotos, o controle de vetores transmissores de doenças, a limpeza urbana, a drenagem

urbana. Alerta Freitas, contudo, que ocupações em áreas nas quais o saneamento é

deficiente ou mesmo inexistente representam uma situação de risco. Populações alojadas

em áreas passíveis de enchentes acabam tendo contato com resíduos sólidos e águas de

esgotos, o que acarreta consequências nefastas : 65 % das internações de crianças menores

de dez anos são associadas à falta de saneamento; por sua vez, no ano de 1998, morreram

29 pessoas por dia em decorrência da falta de água encanada, esgoto e coleta de lixo; e

dessas pessoas, mais da metade eram crianças de até quatro anos; doenças relacionadas com

a falta de saneamento ceifam mais vidas do que os crimes violentos (homicídios) ou, ainda,

a AIDS; em contrapartida, investimentos em saneamento trazem uma redução de 21 % nos

índices de mortalidade infantil; há inúmeras doenças de veiculação hídrica, sendo a falta de

saneamento a principal responsável pela morte por diarréia de menores de 5 anos;

Com respaldo em dados fornecidos pela FUNASA566, do Brasil, Freitas nos revela

que cada unidade monetária investida em saneamento básico redunda numa economia de

quatro unidades monetárias em saúde. E, certamente, na preservação de vidas,

especialmente de crianças provenientes de parcelas da população mais desprovida de

recursos financeiros.

A falta de saneamento representa, pois, um risco cuja dimensão espacial é evidente,

decorrente principalmente da ocupação irracional do solo, notadamente de áreas passíveis

de enchentes, ou, ainda, desprovidas de saneamento básico. E seu enfrentamento exigirá

565 As diretrizes nacionais do Brasil para o saneamento básico se encontram definidas na Lei Federal 11.445, de 5 de janeiro de 2007. Saneamento básico que, conforme o artigo 3º, do mencionado diploma legal, envolve serviço, infraestruturas e instalações operacionais de abastecimento de água potável, esgotamento sanitário, limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos, drenagem e manejo de águas pluviais urbanas.

566 A Fundação Nacional da Saúde, órgão executivo do Ministério da Saúde do Brasil, que tem como finalidade promover a inclusão social mediante ações de saneamento básico, para prevenção e controle de doenças, entidade que dispõe de endereço eletrônico na rede mundial de computadores : www.funasa.gov.br;

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intervenções no tecido urbano, lastreadas e prestigiadas pelo ordenamento567. A própria

Constituição Federal do Brasil, dentre outros dispositivos, impõe como a todos os entes

federativos, em seu artigo 23, inciso IX, a competência material de a melhoria das

condições de saneamento básico. Competência que podemos entender como dever imposto

pela norma e em relação ao qual não pode se furtar o agente público.

Da mesma forma, o Estatuto da Cidade (Lei Federal 10.257, de 10 de julho de

2001), diploma normativo que estabelece as diretrizes da política urbana, e, nos termos do

parágrafo único de seu artigo 1º : “estabelece normas de ordem pública e interesse social

que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-

estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental”. Referido diploma legal traça em

seu artigo 2º as diretrizes gerais da política urbana568 e “coloca o saneamento como

elemento indispensável, na medida em que exige a oferta de equipamentos urbanos

adequados aos interesses da população (V) e elege as obras de infraestrutura urbana (de

saneamento, p.ex.) como fator condicionante ao parcelamento, edificação e uso do solo (VI,

c).”569

O Estatuto da Cidade, ademais, em pelo menos quatro de seus instrumentos,

valoriza o saneamento o qual surge um fim a ser perseguido especialmente pela

567 Sendo certo que toda intervenção junto a pessoas em áreas de risco deve respeitar tais populações e trata-las com dignidade e respeito. Nesse sentido : VALÊNCIO, Norma, SIENA, Mariana, MARCHEZINI, Victor, GONÇALVES, Juliano Costa. Sociologia dos desastres – construção, interfaces e perspectivas no Brasil. São Carlos : Rima, 2009.

568 Diretrizes que têm natureza de normas gerais vinculantes a todos os entes federativos. Nesse sentido, tal qual menciona Freitas (Ibid., p. 218) : SUNDFELD, Carlos Ari. O Estatuto da Cidade e suas diretrizes. In : DALLARI, Adílson Abreu, FERRAZ, Sérgio (coordenadores). Estatuto da Cidade – Comentários à Lei Federal 10.257/2001. São Paulo : Malheiros, 2002.

569 FREITAS, José Carlos de. Ocupações irregulares – riscos sociais decorrentes da falta de saneamento. In : Temas de Direito Urbanístico 6. Coordenação : Jorge Luiz Ussier. Organização : Mário Augusto Vicente Malaquias. São Paulo : Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2011, p. 218. Da mesma forma, como bem aponta Freitas, a Lei de Parcelamento do Solo (Lei Federal 6.766, de 19 de dezembro de 1979 e dispõe sobre o parcelamento do solo urbano) inclui no conceito de infraestrutura básica de um loteamento os equipamentos urbanos de escoamento das águas pluviais, esgotamento sanitário e abastecimento de água potável (artigo 2º, parágrafo 5º, da Lei 6766/79, com redação dada pela Lei Federal 10.445/07).

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administração e pelo legislador. São tais instrumentos os seguintes : direito de

preempção570, outorga onerosa do direito de construir571, transferência do direito de

construir572 e o estudo de impacto de vizinhança573. Instrumentos que encontrarão no

planejamento urbano um adequado veículo para sua formulação e implantação.

À luz do quanto considerado, Freitas argumenta que “não se concebe, hoje, que a

sorte das cidades fique a reboque da conveniência (ou negligência) do administrador

público, nem que o planejamento urbano (a política de saneamento básico, por exemplo)

ocorra entre quatro paredes (...). Há, portanto, pouca margem para discricionariedade do

administrador e legisladores locais nessa lei para efeito de planejamento.”574 Normas que

podem contribuir, portanto, para a “formação de cidades mais salubres ou corrigir o quadro

de insalubridade decorrente da irracional ocupação do solo.”575

Os riscos de dimensão espacial são guardam relação, inclusive, com o tráfego aéreo. 570 O direito de preempção (artigos 25 a 27, da Lei 10.257/01) prevê a prioridade na compra de imóveis por parte da Municipalidade. O imóvel adquirido, sem embargo, terá destinação vinculada aos fins previstos no artigo 26, da Lei 10.257/01, dentre os quais se inclui a instalação de equipamentos urbanos (inciso V).

571 Nos termos dos artigos 28 a 31, da Lei 10.257/01, a outorga onerosa do direito de construir possibilita o exercício de potencial construtivo de um imóvel, ou mesmo a alteração de seu uso, mediante, dentre outros requisitos, contrapartida a ser prestada pelo beneficiário, a qual inclui a instalação de equipamentos urbanos (inciso V, do artigo 26, da Lei 10.257/01).

572 A transferência do direito de construir (artigo 35, da Lei 10.257/2001) prevê a possibilidade do exercício do direito de construir em local distinto, ou, ainda, alienar referido direito em hipótese, dentre outras, na qual o bem é tido como necessário à implantação de equipamentos urbanos.

573 O Estudo de Impacto de Vizinhança (ou EIV), previsto no artigo 37, da Lei 10.257/2001, requisito formal à expedição de licenças, deve “contemplar os efeitos positivos e negativos do empreendimento ou atividade quanto à qualidade de vida da população residente na área e suas proximidades” e levar em conta, no mínimo, dentre outras questões, o adensamento populacional, o uso e ocupação do solo e os equipamentos urbanos e comunitários. Acrescentamos : deve aquilatar, de forma bastante sintética, a capacidade de suporte, o que necessariamente inclui a disponibilidade de água, esgotamento e disposição de resíduos sólidos.

574 FREITAS, José Carlos de. Ocupações irregulares – riscos sociais decorrentes da falta de saneamento. In : Temas de Direito Urbanístico 6. Coordenação : Jorge Luiz Ussier. Organização : Mário Augusto Vicente Malaquias. São Paulo : Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2011, p. 221.

575 FREITAS, José Carlos de. Ocupações irregulares – riscos sociais decorrentes da falta de saneamento. In : Temas de Direito Urbanístico 6. Coordenação : Jorge Luiz Ussier. Organização : Mário Augusto Vicente Malaquias. São Paulo : Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2011, p. 220.

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Recente reportagem de Ricardo Gallo, publicada em 11 de julho de 2012, no jornal “A

Folha de São Paulo”, com o título “Rota de Congonhas tem 45 obstáculos”576, alerta para a

existência de 45 obstáculos na rota dos aviões que chegam ou decolam do aeroporto de

Congonhas, na cidade de São Paulo, no Estado de São Paulo, no Brasil. São imóveis,

árvores e postes que se encontram dentro da área denominada de cone de aproximação das

aeronaves. Uma situação de risco, com potenciais reflexos ao tráfego aéreo. E que,

ademais, conta com ancoragem normativa para regulação do uso e ocupação do solo,

representada pela Lei Federal 7.565, de 19 de dezembro de 1986 (Código Brasileiro de

Aeronáutica), com disposições específicas sobre uso e ocupação do solo, dentre outras, em

seu artigo 43, e seguintes, que impõe restrições especiais a propriedades vizinhas de

aeródromos e instalações de auxílio à navegação aérea.

Poderíamos prosseguir com uma lista interminável de exemplos práticos. Mesmo

atividades que, intuitivamente, são absolutamente inofensivas577, tais como o lazer em

parques, podem ostentar riscos, como resta demonstrado em recente reportagem do jornal O

Estado de São Paulo, de 25 de julho de 2012, de autoria de Ricardo Brandt, e que leva o

título : “Parques mandam por dia 4 pessoas ao hospital”578. A reportagem, fazendo menção

a dados da Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo do ano de 2011 relata que, no

mencionado período, 1641 pessoas receberam atendimento médico em decorrência de

acidentes em parques de diversão e playgrounds, sendo 1246 dos atendimentos realizados

apenas na cidade de Campinas. Os dados da Secretaria foram divulgados dois dias após a

morte de uma menina de quarto anos em um parque num hotel na cidade de Águas de São

Pedro, no Estado de São Paulo, em razão da queda de uma viga que sustentava um balanço.

Dos acidentados, a maior parte (36%) tinha entre 20 e 39 anos de idade. Decerto que

576 Disponível para consulta na rede mundial de computadores : http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidiano/53902-rota-de-congonhas-tem-45-obstaculos.shtml - última consulta aos 16 de novembro de 2013.

577 Lazer, aliás, reconhecido constitucionalmente no Brasil com um direito social, conforme estampado no artigo 6º, da Constituição Federal do Brasil.

578 Passível de consulta na rede mundial de computadores no endereço : http://www.estadao.com.br/noticias/cidades,parques-mandam-por-dia-4-pessoas-ao-hospital,905578,0.htm – última consulta realizada aos 16 dias do mês de novembro, de 2013.

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estatísticas necessitam, para sua adequada compreensão, de sua contextualização. Possível

que o número de acidentes seja ínfimo comparado à quantidade de pessoas que faz uso

desses equipamentos. Ademais, eventos que já se concretizaram não se confundem com o

risco. Risco que consiste, perdoem nossa insistência, numa representação de situações

futuras de potencial vulneração a direitos. Representação essa que clama, no presente, por

ações e decisões destinadas a preservar tais direitos. Mas aproveitando-nos do exemplo dos

parques, que decisões estão sendo tomadas hoje para evitar novas vulnerações à integridade

física de seus frequentadores ? Há um plano de manutenção preventiva ? Os riscos se

encontram devidamente mapeados ? Que oferta de lazer se valoriza para os cidadãos

daquela localidade ? Risco a moldar as decisões presentes. E a ser moldado por essas

mesmas decisões.

Os exemplo aqui tratados se prestam, ainda, a explicitar uma faceta do risco em sua

dimensão espacial, que consiste em sua distribuição espacial desigual, tal qual já

explicitamos acima. Da mesma forma, não é diferente com acidentes de trânsito, enchentes

e deslizamentos, dentre outras ocorrências. Temos locais de acentuada possibilidade de

novos eventos danosos estejam devidamente representados no presente para serem objeto

de ações e de decisões destinadas à preservação de direitos caros e muitas vezes

indisponíveis e irreparáveis. Risco, assim, que não pode ser ignorado quando nos

defrontamos com a organização dos espaços onde vivemos e cujo enfrentamento não

prescindirá da organização desses mesmos espaços.

Capítulo II - Risco e atuação Estatal

Até aqui nos limitamos a tratar do risco e de sua imbricação no sistema jurídico, em

especial de sua devida inserção e previsão em diplomas normativos das mais variadas

natureza.

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Referida imbricação, como não poderia deixar de ser, irradia efeitos à atuação

administrativa e judicial, haja vista que as mesmas devem se cingir à lei. Sem embargo, o

risco traz algumas nuances e matizes tanto no que toca atuação administrativa, assim como

à função jurisdicional, as quais trataremos, abreviadamente, a partir deste ponto.

O risco, defendemos, surge como lógica de proteção forçosamente antecipada de

direitos, inclusive e necessariamente mediante intervenções territoriais, sob pena de

insuficiência. Para a proteção de bens e direitos marcados pela indisponibilidade e pela

irreversibilidade. Portanto, novos paradigmas de atuação são necessários : não se mostra

bastante apenas repetir o quanto feito no passado. A construção do futuro, e a ênfase é,

aqui, no termos “construção”, dependerá de decisões tomadas hoje. Mas decisões que

necessitam de uma adequada representação desse futuro, levada a cabo, perdoem a

obviedade, olhando-se para esse mesmo futuro. Um futuro cada vez mais complexo, fruto

de processos sociais já em curso no presente, muitos dos quais por nós ignorados. Estado de

ignorância este que, contudo, não se presta a legitimara inação.

E na seara do tecido urbano referida complexidade, aliada a um intenso dinamismo,

torna essa tarefa ainda mais difícil.

Não basta mais, insistimos, repetir o quanto feito no passado. Meras proibições de

polícia, embora importantes, não mais se prestarão a resolver situações cada vez mais

críticas, tais como : a enorme pressão por moradia digna, o acesso ao direito à saúde

mínimo, inclusive relacionado com o consumo de substâncias e transtornos correlatos,

criminalidade e violência. O risco se imbrica nessa realidade e nos obriga não apenas a

voltar nossos olhos para o futuro, mas também nos impõe um agir antecipado. Vejamos.

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244

2.1- Do novo intervencionismo Estatal

A Administração Pública, à luz do Estado Social Democrático de Direitos, e

especificamente no Brasil, à luz dos artigos 1º, inciso III e 3º, incisos III e IV, da

Constituição Federal, encontra na dignidade da pessoa humana e na erradicação da pobreza

e promoção do bem de todos seu fundamento e seu objetivo fundamental, norte que jamais

deve ser perdido de vista579.

Conforme acentuamos até este ponto, o risco envolve potencial dano futuro a bens e

direitos dos mais diversos. E especialmente o risco em sua dimensão espacial, dada a sua

tessitura aberta, e à luz das aglomerações cada vez maiores e mais complexas de pessoas

em cidades, é apto a envolver, quase sempre, potencial dano a direitos fundamentais, como

a vida e a correlata integridade física, a saúde ou mesmo a moradia, apenas para mencionar

alguns.

Conforme discorre Jorge Reis Novais580 : “A consagração constitucional dos

direitos fundamentais, para além do sentido de proclamação emblemática e simbólica

reveladoras da natureza do Estado e da idéia de Direito prevalecente, tem um sentido

jurídico muito preciso : ela impõe sempre ao estado, e a cada um dos seus poderes

constituídos, deveres de subordinação e vinculação jurídicas de que, em geral, resultam

para os particulares, correspondentes pretensões e direitos de realização cuja consistência

579 Acerca da dignidade da pessoa humana, veja-se : SARLET, Ingo Wolfgang. Comentário ao artigo 1º, inciso III. In : CANOTILHO, J. J. Gomes; MENDES, Gilmar F.; SARLET, Ingo W.; (Coords.). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo : Saraiva, 2013, p. 121; e, ainda, no que concerne aos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil : STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan de. Comentário ao artigo 3º. In : CANOTILHO, J. J. Gomes; MENDES, Gilmar F.; SARLET, Ingo W.; (Coords.). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo : Saraiva, 2013, p. 146.

580 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Sociais. Teoria Jurídica dos Direitos Sociais Enquanto Direitos Fundamentais. Coimbra : Wolters Kluwer / Coimbra, 2010, p. 255.

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pode, tende ou aspira a traduzir-se na titularidade de direitos subjectivos públicos, ou seja,

direitos a exigir judicialmente, no interesse dos próprios, o cumprimento dos respectivos

interesses estatais.”

Traduz-se, assim, em apertada síntese, no dever do Estado de respeitar referidos

direitos fundamentais. Nesses termos: “O dever de respeitar continua a traduzir-se

essencialmente num dever de abstenção, de não interferência nas esferas de autonomia, de

liberdade e de bem-estar dos particulares garantidas pelos direitos fundamentais.” 581 Um

dever que não se esgota na mera abstenção, mas implica também em ações positivas de

remoção de eventuais impedimentos ao exercício de tais direitos, tais como a organização

de instituições. Por exemplo, o exercício do direito à vida envolve todo um plexo de ações,

que incluem, exemplificativamente, a organização de forças de segurança, com contratação

de pessoal, estruturas físicas distribuídas geograficamente de forma a atender à demanda.

Mencionado dever de proteção, como segue Jorge Reis Novais582, “não significa

apenas proteger contra as ameaças ou agressões de outros particulares, de entidades

públicas ou privadas, nacionais ou externas. Na chamada sociedade de risco, o dever de

proteção dirige-se também contra contingências ou eventualidades naturas, catástrofes,

riscos tecnológicos, actividades perigosas ou de conseqüências desconhecidas ou incertas

que, de alguma forma, ameace ou afectem o acesso individual aos bens

jusfundamentalmente protegidos.”

Mas o Estado deve avançar nessa proteção. Ainda nos valendo das lições de Jorge

581 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Sociais. Teoria Jurídica dos Direitos Sociais Enquanto Direitos Fundamentais. Coimbra : Wolters Kluwer / Coimbra, 2010, p. 257.

582 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Sociais. Teoria Jurídica dos Direitos Sociais Enquanto Direitos Fundamentais. Coimbra : Wolters Kluwer / Coimbra, 2010, p. 259.

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Reis Novais583 : “para além de respeitar o acesso individual aos bens jusfundamentais, para

além de proteger esse acesso, não apenas das ameaças e das intervenções do aparelho

estadual, mas também dos riscos naturais e das ameaças e intervenções de outros

particulares (...) o Estado passa a estar obrigado a promover esse acesso, a ajudar sobretudo

aqueles que por si sós, com o recurso a meios, aptidões ou capacidades próprias, não

dispõem de condições para um acesso igualitário e efetivo a tais bens.”

Assim, à luz da sociedade de risco, e diante dos potenciais danos que a organização

dos espaços oferece especialmente a direitos fundamentais, necessária uma atuação que seja

condizente com tal situação. Que promova a antecipada e ativa proteção desses bens

jusfundamentais. Valendo-se de todos os meios à disposição, em especial aqueles de cunho

espacial. Sob pena de insuficiente proteção a esses bens.

Essa suficiente proteção exige novas ferramentas, mormente diante das demandas

que nos impõem a sociedade moderna. Como bem aponta Georges Dellis584, no início do

Século XX, sob os auspícios do Estado liberal, a intervenção preventiva se apresentava

como ultimo recurso do poder público e somente levada a cabo diante de situações de

perigo, ou seja de acentuada possibilidade de danos a bens jurídicos. Uma atuação calçada

quase que exclusivamente no poder de polícia.

Sem embargo, especialmente após a Segunda Guerra Mundial, assiste-se a um

acentuado progresso técnico e cientifico. Progresso que trouxe consigo pontos positivos,

mas também, a reboque, conseqüências nefastas. Ocorrências como a do acidente na usina

nuclear de Chernobyl, ou, ainda, a denominada “doença da vaca louca” influenciaram de

583 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Sociais. Teoria Jurídica dos Direitos Sociais Enquanto Direitos Fundamentais. Coimbra : Wolters Kluwer / Coimbra, 2010, p. 261 e 262.

584 DELLIS, Georges. L’État Face au Risque en tant que Matière du Droit Public Européen (Un Approche Comparative). In : In : European Review of Public Law Vol. 15 – No. 1, spring 2003. London : Esperia, 2003, p. 661 – 703.

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247

forma acentuada a ordem jurídica principalmente de países europeus. Assuntos

relacionados à saúde ou ao meio ambiente passaram a integrar matérias de ordem pública e

a exigir um alto nível de proteção. A concreta violação a tais bens traz consigo

conseqüências muitas vezes irreparáveis. Hão de ser tomadas medidas, portanto, contra o

risco à violação de tais bens. Medidas tomadas a posteriori não mais serão apropriadas.

Vivemos, portanto, como bem arremata Dellis585, numa sociedade de risco, devendo

esse mesmo risco jogar um papel importante dentro do processo decisório.

Para Dellis586, migra-se a um novo intervencionismo estatal, que se assenta em três

pilares : da passagem do perigo ao risco; da prevenção para a precaução; e, finalmente, da

atividade de polícia e a avaliação e gestão de riscos.

O perigo consiste numa situação onde o nexo de causalidade entre evento presente e

danos futuros, assim como a probabilidade destes danos, são mais acentuados do que no

risco. O risco envolve danos possíveis, mas incertos. Pois ao migrarmos do perigo para o

risco, essa incerteza deixa de ser um obstáculo à atuação estatal. Amplia-se a possibilidade

de intervenção estatal mesmo em situações onde viceja a incerteza. E mesmo em situações

que o autor denomina de risco residual, a envolver níveis toleráveis desse mesmo risco,

necessário ponderar-se quão importantes sãos os bens jurídicos em jogo – pois quanto mais

irreversíveis eventuais danos a bens jurídicos , tanto mais será exigida a intervenção estatal

antecipada.

585DELLIS, Georges. L’État Face au Risque en tant que Matière du Droit Public Européen (Un Approche Comparative). In : In : European Review of Public Law Vol. 15 – No. 1, spring 2003. London : Esperia, 2003, p. 662.

586 DELLIS, Georges. L’État Face au Risque en tant que Matière du Droit Public Européen (Un Approche Comparative). In : In : European Review of Public Law Vol. 15 – No. 1, spring 2003. London : Esperia, 2003, p. 666.

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248

De outra banda, o princípio da precaução, embora despido de homogeneidade de

entendimento no que toca à sua forca jurídica, ganhou maior consistência no contexto da

União Européia à luz da Comunicação da Comissão Européia, de 2 de fevereiro de 2000,

relativa ao principio da precaução. A qual, seu item 3 do Resumo, dispõe : “O princípio da

precauc{ão não é definido no Tratado, que o prescreve apenas uma vez - para proteger o

ambiente. Mas, na prática, o seu a{mbito de aplicac{ão é muito mais vasto,

especificamente quando uma avaliac{ão científica objectiva preliminar indica que há

motivos razoáveis para suspeitar que efeitos potencialmente perigosos para o ambiente, a

saúde das pessoas e dos animais ou a protecccão vegetal podem ser incompatíveis com o

elevado nível de protecção escolhido para a Comunidade.”

Portanto, o poder público está legitimado a agir mesmo diante de situações nas

quais há uma ausência de fundamento cientifico inconteste. Amplia-se, assim, o campo de

intervenção do poder público, o qual, sem embargo, há de encontrar limites. Um dos quais

é, nos dizeres de Dellis, a fronteira entre o risco residual e o risco intolerável. Ou seja,

dentro das fronteiras do risco residual, ou seja, daquele patamar e risco aceitável, o poder

publico encontra limites para sua atuação. O risco jamais será completamente eliminado,

numa situação que estenderia a precaução quase ao infinito, e imporia restrições

draconianas ao exercício da atividade privada, também prestigiada, acrescentamos, pela

ordem jurídica.

A impossibilidade de completa erradicação do risco acaba por nos conduzir,

arriscamos, ao terceiro ponto explorado por Dellis, qual seja, da passagem da atuação

alicerçada predominantemente no exercício do poder de polícia, para uma perspectiva de

avaliação e de gestão do risco.

A atuação marcada pelo exercício do poder de polícia se caracteriza, via de regra,

por um intervencionismo tênue e, raras vezes, de cunho preventivo. O novo

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intervencionismo proposto por Dellis587 se vale, especialmente, de uma nova metodologia

para fazer frente ao novel desafio da sociedade moderna, que pode ser subdividida em duas

fases distintas : a de avaliação do risco; e a de gestão desse mesmo risco.

A fase de avaliação do risco, nos termos da Comunicação da Comissão Europeia, de

2 de fevereiro de 2000 (Anexo III), se desdobra em quatro atividades : a identificação do

perigo, que consiste e identificar as situações ou substancias suscetíveis de produzirem

efeitos desfavoráveis; a caracterização do perigo, que consiste em determinar, em termos

quantitativos, e à luz da melhor técnica disponível, a natureza e a gravidade de tais efeitos

desfavoráveis; a avaliação da exposição, que aquilata a probabilidade de exposição a um

perigo; e, por fim, a caracterização do risco, a qual corresponde a uma estimativa

quantitativa e/ou qualitativa, levando em conta as incerteza inerentes a dito exercício, da

probabilidade, frequência e gravidade dos efeitos desfavoráveis, tanto conhecidos assim

como potenciais.

As avaliações de risco podem se corporificar, ainda, por meio dos estudos de

impacto.

Mais importante do que os métodos em si, acrescentamos, é a devida inserção do

tema do risco no procedimento decisório administrativo, de forma transparente e

controlável.

Segue-se, da avaliação dos riscos, sua gestão. Uma atividade que envolve, via de

regra, instituições de natureza pública, e não possui uma forma determinada. Tem a

587 DELLIS, Georges. L’État Face au Risque en tant que Matière du Droit Public Européen (Un Approche Comparative). In : In : European Review of Public Law Vol. 15 – No. 1, spring 2003. London : Esperia, 2003, p..687

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administração a a sua disposição um vasto repertório de métodos588, os quais hão de

conformar-se, sim ao já mencionado princípio da precaução.

Dentre tais métodos faz Dellis menção, a titulo exemplificativo, ao uso e

regulamentações técnicas, ou, anda a fixação de standards de segurança. Tais meios

buscam integrar à legislação o conhecimento afeto à melhor técnica disponível,

possibilitando uma minimização dos riscos e, ainda, um restabelecimento de segurança

jurídica em um ambiente dominado pela incerteza.

Ainda na seara dos métodos destinados à gestão dos riscos, Dellis aponta para a

utilização de um sistema de aprovações prévias de determinadas atividades por parte do

poder público, mediante a utilização de licenças, autorizações. Medidas estas a serem

submetidas a controles periódicos e contínuos, com a possibilidade de sua suspensão ou

mesmo retirada caso a probabilidade de concretização de um determinado risco se veja

intensificada. Medidas essas, por óbvio, precedidas das necessárias garantias

procedimentais aos interessados prejudicados.

Somam-se, ainda, a estes métodos, sistemas de auditoria operados por operadores

privados, assim como a organização de fundos destinados a indenização de vitimas diante

da eventual concretização dos riscos. E, por fim, meios indiretos de gestão, a abarcar a

imposição de sanções e regras de responsabilização civil.

A atuação administrativa ampliada encerra em si, conforme já tratado, potencial

restrição a direitos e liberdades privadas. Assim, mencionada atuação necessariamente há

de se nortear por princípios, tanto gerais, assim como peculiares ao enfrentamento do risco. 588 DELLIS, Georges. L’État Face au Risque en tant que Matière du Droit Public Européen (Un Approche Comparative). In : In : European Review of Public Law Vol. 15 – No. 1, spring 2003. London : Esperia, 2003, p. 689 e seguintes.

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Dentre os princípios gerais encontramos aqueles tradicionalmente presentes no

direito administrativo, tais como : a legalidade, ponto de partida para toda ação

administrativa; a igualdade; a obrigação de motivação, assim como do respeito a garantias

de natureza formal ou procedimental em favor do administrado; e, ainda, a participação

popular no processo de avaliação e de gestão dos riscos, conferindo a este maior

legitimidade.

E, enquanto princípios particulares para o tratamento do risco, prestigiados como tal

pela Comunicação da Comissão, de 2 de fevereiro de 2001, arrola Dellis589 os seguintes :

da coerência, do custo-benefício, da necessária adaptabilidade à evolução do conhecimento

científico.

O princípio da coerência significa que as medidas a serem tomadas hão de guardar

compatibilidade com medidas já tomadas em situações semelhantes. Alicerça-se dito

princípio, a rigor, nos princípios da igualdade e da proporcionalidade. Nesses termos, a

legalidade de uma dada medida poderá ser questionada caso se afaste consideravelmente de

medidas outras tomadas em situações comparáveis.

Por força do princípio do custo-benefício, antes de se engajar numa ação pública

determinada, deve ser estabelecida uma comparação entre os custos globais da ação visada

e as conseqüências diante de eventual omissão, tanto a curto quanto a longo prazo. Impõe-

se aqui, diferentemente da abordagem estatal tradicional, uma obrigação positiva de agir

para assegurar uma proteção eficaz contra os perigos. E permite, ademais, a intervenção

num estagio antecedente ao perigo.

589 DELLIS, Georges. L’État Face au Risque en tant que Matière du Droit Public Européen (Un Approche Comparative). In : In : European Review of Public Law Vol. 15 – No. 1, spring 2003. London : Esperia, 2003, p. 685 e ss.

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O princípio da adaptabilidade encontra seu fundamento no contexto de incerteza

que muitas vezes se vê inserida a atividade pública. Referido contexto exige, assim, com

respaldo também no princípio da precaução, que mencionada atividade pública seja

reexaminada periodicamente e se sujeite à cláusula da melhor técnica disponível.

Essa mutabilidade inerente à situação jurídica traz conseqüências significativas, pois

priva a autoridade pública de gravar com definitividade suas decisões, e da capacidade

destas de produzirem a definitiva aquisição de direitos. Nestes termos, apenas

exemplificativamente, uma autorização expedida num contexto onde os riscos, à luz das

melhores técnicas, se situava num patamar aceitável, pode ser suspensa caso, ulteriormente,

em face de novos dados científicos, sejam exigíveis novos patamares de proteção.

O risco, assim, acaba por se integrar ao processo decisório tanto da Administração

como de particulares. Permite que se construa uma representação de um futuro ainda

porvir, mas de forma concreta, estruturada e intersubjetivamente testável. Dá, assim, forma

concreta ao risco. E, nesses termos, se apresenta como técnica de governança, pois não

somente fornece essa representação objetiva de mundo, de um mundo futuro, mas também

auxilia a definir os horizontes à atuação possível em relação a esses riscos590.

O risco, sem embargo, não se oferece a nós como objeto pronto e acabado, como

remédio para todos os males e que chegou para resolver todos os problemas da sociedade

moderna, em especial de nossas cidades caóticas.

O que traz o risco é uma perspectiva diversa, mas que deve necessariamente ser

590 Veja-se, nesse sentido : FISHER, Elizabeth. Risk and Governance. In : LEVI-FAUR, David (editor). The Oxford Book of Governance. Oxford : Oxford University Press, 2012, Chapter 29.

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abraçada pelos operadores do direitos e agentes públicos. Traz ínsita a ideia da

possibilidade de danos futuros irreversíveis a bens jurídicos fundamentais e que

necessariamente há de ser enfrentada preventivamente, mesmo num quadro de incerteza.

Nesse sentido, impõe um dever de agir antecipado, com uma correlata obrigação de

encetarem-se esforços para conhecer tais riscos, mediante sua avaliação, e, ainda, de um

agir contínuo para enfrentar e conviver com os mesmos.

Risco, insistimos, com uma clara dimensão espacial : potencializado pela

organização dos espaços, mas também apto a ser enfrentado por essa mesma organização.

Risco que deve ser, antes de mais nada, trazido à luz, devidamente avaliado, de forma a ser

testado intersubjetivamente e submetido não apenas ao crivo judicial, mas principalmente,

da sociedade civil. Risco cujo enfrentamento não mais se compadece com ações

posteriores, de mera proibição, mas que exige um concurso de esforços, permanente e

antecipado, entre particulares e o poder público. Que aqueles responsáveis pela instalação,

por exemplo, de estabelecimentos geradores de enormes fluxos de pessoas façam frente, de

forma permanente, a tais fluxos. Estes sendo aptos a gerar novos riscos e, nesses termos, a

novas intervenções do poder publico. Ou, ainda, que eventuais medidas de suposta

revitalização de centros tachados como “degradados” leve em conta, também, o efeito que

terão nas populações deslocadas. Que esse efeito seja ao menos devidamente avaliado e

registrado, juntamente com as consequências outras de dita intervenção, tais como eventual

sobrecarga a infraestruturas existentes em face da realocação desses contingentes

populacionais. A realidade é por demais dinâmica para se deixar aprisionar em medidas

estanques e isoladas no tempo.

2.2 – Do risco e da possibilidade de revisão de atos administrativos

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O risco vem, também, oferecer nova possibilidade de leitura no que toca à

estabilidade e natureza de atos de licenciamento.

Conforme nos aponta Carla Amado : “A necessidade de antecipar riscos é um facto

incontornável no estádio da sociedade em que vivemos. Domínios há, todavia, em que essa

tarefa é mais agudamente sentida, nomeadamente aqueles em que a infiltração do risco

tecnológico se verifica de forma mais intensa.”591

Prossegue Carla Amado592 argumentando que “a atitude do Estado no campo da

prevenção de perigos deve ser encarada de forma conjuntural, tendo em consideração

circunstâncias sociais e políticas. Numa gradação de intensidade do controlo de perigos,

SACH enuncia seis modelos : 1) liberdade total; 2) liberdade com reserva de repressão; 3)

liberdade com dever de comunicação prévia; 4) liberdade com reserva de autorização; 5)

planificação; 6) proibição total;”. Sendo a liberdade total, via de regra, apta a vigorar

apenas no domínio de relações essencialmente privadas. E a restrição total também

reservada a um número muito reduzido de situações. Restando entre ambas amplas

possibilidades ao Estado.

Um dos instrumentos preventivos que ganha força, em especial na seara ambiental,

consiste na autorização “enquanto método de antecipação de riscos, em virtude da posição

temporalmente estratégica em que a administração a utiliza : é prévia ao início do

desenvolvimento da atividade potencialmente lesiva pelo requerente, conformando os

591 GOMES, Carla Amado. Risco e Modificação do Acto Autorizativo Concretizador de deveres de Protecção do Ambiente. Coimbra : Coimbra Editora, 2007, p. 515.

592 GOMES, Carla Amado. Risco e Modificação do Acto Autorizativo Concretizador de deveres de Protecção do Ambiente. Coimbra : Coimbra Editora, 2007, p. 515 e 516. Quanto à citação de Sach, refere-se a autora a : SACH, K., Genehmigung als Schutzchild?, Berlin, 1994, p. 32 e segs..

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deveres de proteção do ambiente em que ficará investido, em razão da projecção de

interacções ambientais prováveis e comprovadamente previsíveis.”593

A autorização, termo aqui usado pela autora a abarcar também a expedição de

licenças, dentro do contexto do Estado liberal, se traduzia, a grosso modo, como uma mera

remoção de limites, atividade que se cingia tão somente a desvelar um direito de um

particular ao exercício de determinada atividade pré-existente. Algo assemelhado ao que

Sach denominaria de liberdade com reserva de repressão.

Mencionada concepção, sem embargo, se encontra irreversivelmente acometida de

“um processo de erosão progressiva. A intervenção do Estado na economia por um lado (i);

o avolumar da relativização dos limites de certos direitos (v.g., propriedade; iniciativa

económica), por outro lado (ii); e ainda o crescente ascendente da função administrativa em

face da incapacidade de acompanhar o passo da evolução sócio-económica por parte de um

legislador claramente ultrapassado pela vertigem dos acontecimentos (iii);”594.

Atualmente, a “autorização desponta como forma de aliciar os particulares para a

realização de fins públicos, em virtude da permeabilidade que as actividades antes

entendidas como puramente privadas revelam agora aos interesses tutelados pelo Estado

(...). De concretização fugaz de um poder de remoção de limites – da qual, em

contrapartida, emergia uma posição jurídica de duração tendencialmente eterna (...), a

autorização desvela a sua vocação de regulação duradoura, materializando poderes de

fiscalização administrativa dos termos de exercício da actividade”.595

593 GOMES, Carla Amado. Risco e Modificação do Acto Autorizativo Concretizador de deveres de Protecção do Ambiente. Coimbra : Coimbra Editora, 2007, p. 516.

594 GOMES, Carla Amado. Risco e Modificação do Acto Autorizativo Concretizador de deveres de Protecção do Ambiente. Coimbra : Coimbra Editora, 2007, p. 529 e 530.

595 GOMES, Carla Amado. Risco e Modificação do Acto Autorizativo Concretizador de deveres de Protecção do Ambiente. Coimbra : Coimbra Editora, 2007, p. 531.

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Nesses termos, a autorização, em sua concepção clássica, de mera remoção de

limites, não mais se mostra consentânea com as exigências principalmente de proteção que

o instituto deve prestigiar. Acento aqui dado, pela autora, nas autorizações de natureza

ambiental. A autorização acaba por incorporar em seu seio a concretização de deveres de

proteção ao bem ambiental. E o particular, ao licenciar sua atividade, é chamado e

compelido a contribuir para essa proteção.

Diante dos atuais reclamos da proteção ambiental, e que podemos expandir para

outros campos onde estão em jogo direitos jusfundamentais, a autorização acaba por se

revestir de “uma dupla natureza : por um lado, traduz uma leitura da situação à luz das

necessidades de salvaguarda dos interesses públicos e colectivos, nomeadamente de

antecipação de riscos para a integridade dos bens ambientais naturais (função de controlo);

por outro lado constitui uma base de actuação para o seu titular, concedendo-lhe direitos e

investindo-o em deveres, com observação do princípio racional de bens naturais (função de

estabilização). Ambas as funções se interligam e se entrechocam”.596

De um lado temos, portanto, a estabilização. E de outro a necessidade constante de

adequada proteção do bem ambiental, alicerçada em terreno extremamente fluido, a qual

deve acompanhar a evolução da técnica e também dos fatos e das normas. As autorizações,

destarte, acabam por se tornar mais precárias. “A estabilidade do acto autorizativo, em

campos de atuação fortemente dominados pela técnica, é relativa. A contínua revisão a que

estão sujeitos os métodos de aproveitamento de recursos introduz um elemento de incerteza

que faz das tutela do ambiente uma área movediça. O dinamismo da protecção do ambiente

596 GOMES, Carla Amado. Risco e Modificação do Acto Autorizativo Concretizador de deveres de Protecção do Ambiente. Coimbra : Coimbra Editora, 2007, p. 584.

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é inversamente proporcional à densidade da protecção da confiança do titular da

autorização.”597

O risco, destarte, acaba por se imbricar nesse contexto e acentuar ainda mais esse

conflito. Conduz a “um enfraquecimento da função de estabilização tradicionalmente

atribuída à autorização, por força da necessidade de adaptação dinâmica do conteúdo dos

deveres de proteção do ambiente em face do risco. Como nota SACH, o risco gera uma

tensão permanente no seio da relação autorizativa, que se fractura entre a necessidade de

proteger a confiança de seu titular e o imperativo de acompanhar as exigências de

satisfação dos interesses públicos envolvidos.”598

Nesse sentido, o risco acaba por contribuir para “uma redução sensível da

estabilidade tradicionalmente associada ao acto autorizativo. No domínio ambiental, por

força da invasão da técnica, os pressupostos de facto e a apreciação científica dos riscos

ficam sujeitos a um controlo dinâmico que pretende traduzir uma actualização permanente

do Direito em face da evolução das realidades físicas. Este quadro redunda num decréscimo

do investimento de confiança do titular da autorização relativamente aos termos desta e

num paralelo acréscimo de responsabilidade administrativa pela fiscalização do

cumprimento dos deveres de protecção do ambiente ínsitos no acto autorizativo.”599

Portanto, o risco permite a extensão dos efeitos da teoria da imprevisão ao domínio

dos atos administrativos, pondo em causa a noção de autorização como ato constitutivo de

direito e admitindo até mesmo a revisão de tais atos, revisão esta definida como : “instituto

597 GOMES, Carla Amado. Risco e Modificação do Acto Autorizativo Concretizador de deveres de Protecção do Ambiente. Coimbra : Coimbra Editora, 2007, p. 583.

598 GOMES, Carla Amado. Risco e Modificação do Acto Autorizativo Concretizador de deveres de Protecção do Ambiente. Coimbra : Coimbra Editora, 2007, p. 622 e 623.

599 GOMES, Carla Amado. Risco e Modificação do Acto Autorizativo Concretizador de deveres de Protecção do Ambiente. Coimbra : Coimbra Editora, 2007, p. 749.

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que visa a modificação ou extinção de um acto administrativo misto (que atribua direitos e

imponha deveres) por força da alteração dos pressupostos de facto ou da valoração

técnica que sobre eles incidiu, ou dos pressupostos de direito, em momento cronológica e

juridicamente posterior ao do seu conhecimento pelo destinatário, alteração essa que

ofende de tal forma os interesses públicos cuja prossecução o acto autorizativo visa que a

sua subsistência, nos moldes atuais, se revela insustentável.”600

Não mais hão de despontar como absolutos, por exemplo, o direito de propriedade

ou mesmo o de exercício da atividade econômica. Ainda que prestigiados pela ordem

jurídica, devem, no ordenamento pátrio, cumprir sua função social601. Uma visão estanque

de uma realidade assaz dinâmica pode expor a danos futuros potenciais bens jurídicos

caros, como o é o meio ambiente. É o risco a tais bens que está a espreita e que deve ser

devidamente avaliado e enfrentado, de forma constante.

Sem embargo, mais do que abraçar de plano, uma ou outra posição, seja favorável

ao detentor de eventual licença, seja em prol de bens outros como o meio ambiente, mister

se faz observar adequadamente, nos moldes do observador de segunda ordem preconizado

por Luhmann, os riscos que enfeixam dessa precarização : ou seja, os riscos tanto para a

proteção da confiança, verdadeiro princípio estruturante do Estado de Direito, assim como

para bens jurídicos tutelados e protegidos pela intervenção prévia estatal. Compreendemos

que referido conflito não encontra uma solução ex ante, mas deve esta ser buscada caso a

caso. Ganha peso, insistimos, a necessidade de adequada e constante leitura dos riscos que

enfeixam de determinadas decisões, e as correlatas ações futuras possíveis. Risco que

jamais será eliminado, sendo de rigor aprender a conviver com o mesmo, com os olhos

voltados à devida proteção de bens dos mais diversos ao longo do tempo. Risco, sem

600 GOMES, Carla Amado. Risco e Modificação do Acto Autorizativo Concretizador de deveres de Protecção do Ambiente. Coimbra : Coimbra Editora, 2007, p. 752.

601 Nesse sentido, os artigos 5º, inciso XXIII, e 170, inciso III, ambos da Constituição Federal do Brasil.

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embargo, que nos impõe esse olhar permanente de ponderação. Inclusive e especialmente

no que diz respeito a bens e direitos relacionados com a organização dos espaços.

Uma casa de espetáculos que produz fluxos de pessoas para suas dependências, mas

também acaba por fornecer um espaço propício ao de drogas, consumo de álcool

desmedido e violência, que acirra os problemas de trânsito, inclusive com acidentes. Quem

deve enfrentar tais problemas ? Seriam estes alheios àquele que explora economicamente a

atividade causadora desses transtornos e devidamente licenciada ? Em casos extremos, não

estaria uma eventual licença expedida entrando em conflito com o fim último a que a

mesma teria sido expedida, de adequada proteção à ordem urbanística e dos valores e bens

constitucionalmente prestigiados ? Entendemos que determinadas situações, ainda que a

exigir interposição legislativa, ou mesmo mediante cassação de atos expedidos ou até

mesmo de expropriação de eventuais direitos, clamam por intervenção pronta. Clamam

muitas vezes por uma precarização de atos de licenciamento, com vistas à proteção de bens

caros e irremediáveis, como por exemplo a vida602. Ou, ao menos, por um novel olhar de

dita situação, mais consentâneo com a dinâmica que permeia a organização dos espaços e

dos riscos que desta decorrem.

2.3 – Do risco e do planejamento urbano

Conforme já mencionamos anteriormente, em especial nos itens 2.8.3.2.5.4 (Brasil)

e 2.8.3.2.5.1 (Portugal) , o planejamento se oferece como um dos instrumentos urbanísticos

602 Dados colhidos informalmente junto a profissionais que atuam em serviço do Governo do Estado de São Paulo que proporciona atendimento psicológico e jurídico a vítimas (denominado CRAVI) revelam um grau crescente de letalidade de jovens, assassinados em bailes do tipo “pancadão” em regiões litorâneas do Estado.

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talhados, por excelência, para enfrentar o risco, dada sua natureza de representação do

futuro e da fixação de correlatos deveres de agir para se chegar a esse futuro.

Neste capítulo centraremos nosso olhar em uma faceta específica do planejamento e

que consideramos guardar, também, íntima relação com a temática do risco. Nos referimos

à dinâmica do planejamento. E, em especial, a métodos destinados à proteção do próprio

planejamento enquanto envolto nessa dinâmica.

Conforme discorre Fernando Alves Correia, “os planos territoriais que produzem

efeitos jurídicos directos e imediatos em relação aos particulares são um instrumento de

programação e de coordenação de decisões administrativas individuais com incidência na

ocupação do solo, bem como um factor de previsibilidade das decisões administrativas de

gestão urbanística, e constituem importante instrumento de segurança para os

particulares”603.

Sem embargo, ainda na esteira dos ensinamentos de Fernando Alves Correia : “os

planos não podem também ser instrumentos imutáveis, devem, para manterem a sua

funcionalidade, adaptar-se à dinamicidade da actividade urbanística. A alterabilidade do

plano é, assim, um elemento que lhe é natural, uma vez que o plano tem uma dimensão

realizadora, que vai ligada necessariamente a elementos espaciais e temporais. De acordo

com este contexto, poderemos falar de uma ‘coordenação justa’ ou de uma ‘harmonização’

entre os princípios da continuidade e da mudança na planificação urbanística.”604

Os planos, decerto, necessitam de estabilidade. Mas não podem ficar imunes e 603 CORREIA, Fernando Alves. Manual do Direito do Urbanismo. Volume I. 2ª edição. Coimbra : Almedina, 2004, p. 407

604 CORREIA, Fernando Alves. Manual do Direito do Urbanismo. Volume I. 2ª edição. Coimbra : Almedina, 2004, p. 408.

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muito menos insensíveis às mudanças que ocorrem nos espaços que os mesmos buscam

regrar e conformar. Espaços com demandas cada vez mais complexas.

O respeito ao existente, ou seja, a posições jurídicas consolidadas não é, nesses

termos, absoluto : “pode bem suceder que aquelas posições jurídicas não sejam

compatíveis com o modelo territorial que o município pretende instituir, situação em que se

justifica uma opção planificadora que as afecte.”605 A questão, portanto, não se trata mais

em prestigiar de forma imutável e absoluta determinadas posições, mas sim em buscar o

adequado convívio entre direitos dos mais diversos. E permitir que seja possível adequar o

ordenamento às novas circunstâncias.

Nessa senda, ainda, a doutrina de Luiz Henrique Antunes Alochio, tratando do

planejamento urbano : “Devemos, sempre, reconhecer a realidade de determinado lugar, em

determinado tempo. Daí podemos reconhecer as cargas possíveis de ocorrer, sobre as redes

de infraestrutura disponíveis e sobre a população. Então poderemos traçar os planos para o

futuro :quais as cargas pretendemos controlar, quais redes de infraestrutura pretendemos

melhorar, adequar ou criar. Só assim estaremos finalmente habilitados a proceder

adequadamente para que sejam reconhecidas e evitadas as sobrecargas urbanísticas.”606

Mas como proteger o próprio plano dessa dinâmica ? De que forma trazer a

necessária estabilidade ao plano, num contexto dinâmico e instável ? Estamos diante de

imediato risco ao próprio planejamento. E, de forma mediata, à ordem urbanística.

Nessa seara, mais uma vez entra em cena o Direito e sua capacidade de estabilizar 605 OLIVEIRA, Fernanda Paula. A Discricionariedade de Planeamento Urbanístico Municipal na Dogmática da Discricionariedade Administrativa. Coimbra : Almedina, 2011, p. 559.

606 ALOCHIO, Luiz Henrique Antunes. Plano Diretor Urbano e Estatuto da Cidade : medidas cautelares e moratórias urbanísticas. Belo Horizonte : Fórum, 2010, p. 55.

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expectativas, com sua possibilidade de estabelecer uma ponte entre o presente e o futuro.

Mediante institutos dos mais diversos destinados a construir essa ponte, medidas

acautelatórias, de urgência urbanística, destinadas a evitar que, no tempo necessário à

formação dos planos estes venham a sofrer alterações drásticas que os comprometam

enquanto instrumento de planejamento607.

Como bem expõe Alochio608 : “os planos urbanísticos visam regular as cargas e

sobrecargas urbanísticas, equalizando os interesses dos utentes da cidade e, ainda, os

interesses e limites da própria cidade. Acontece que até o planejamento deve ser alvo de

regulação. Mesmo as normas de ‘plano’ devem ser reguladas, notadamente pelo fato de

serem passíveis de obsolescência. Em dado momento a ‘cidade-regulada’ ter-se-á

modificado, enquanto o plano regulador poderá ter ficado com os mesmos dispositivos e

regras estanques. Em tese, e muito facilmente, isso acarretará norma-plano que em vez de

protegerem a cidade, acabarão transformando-se em violações dos interesses urbanísticos.”

Mas nessa dinâmica mister se confira uma certa estabilidade também ao cenário que

será objeto do próprio planejamento. Nesse sentido: “as condições da cidade, ou o cenário

momentâneo que se apresenta ao planejador (...) é um elemento de grande importância. E a

segurança temporária desse cenário, que influencia no planejamento, será crucial para a

justificação das medidas de urgência urbanística.” 609

Mencionadas “medidas de urgência nos planos urbanísticos têm como função evitar

que sejam alteradas bruscamente as circunstâncias e condições que sirvam de base para os

607 ALOCHIO, Luiz Henrique Antunes. Plano Diretor Urbano e Estatuto da Cidade : medidas cautelares e moratórias urbanísticas. Belo Horizonte : Fórum, 2010, p. 185.

608 ALOCHIO, Luiz Henrique Antunes. Plano Diretor Urbano e Estatuto da Cidade : medidas cautelares e moratórias urbanísticas. Belo Horizonte : Fórum, 2010, p. 167.

609 ALOCHIO, Luiz Henrique Antunes. Plano Diretor Urbano e Estatuto da Cidade : medidas cautelares e moratórias urbanísticas. Belo Horizonte : Fórum, 2010, p. 179.

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planejadores.”610 Medidas essas já contempladas em sistemas jurídicos diversos, e que

incluem “desde métodos de moratória de desenvolvimento urbano (ou development

moratorium, nos Estados Unidos), até as medidas de salvaguarda (ou misure di

salvaguardia, na Itália), as suspensões de outorga de licença (na Espanha), o sursis à

statuer (na França), a interdição de alteração (ou Veränderungssperre, no Direito Alemão),

e as medidas preventivas (em Portugal).”611

As dvelopment moratorium, alicerçadas na normativa da região do Lago Tahoe

(Ordinance 81-5) , impediam que novas residências fossem construídas nos arredores do

mencionado Lago até que um plano de gestão de uso do solo fosse devidamente aprovado.

A seu turno, as misure di salvaguardia do direito Italiano, corporificadas em um

texto jurídico pela primeira vez por intermédio do Decreto-Lei 740, e 17 de abril de 1948,

consistem na suspensão de permissões de construir sob o pálio de planos in itinere, ou seja,

de planos que se encontram em renovação ou confecção.

Referidas misure di salvaguardia “correspondem a uma medida cautelar, que visa

proteger, no período entre dois planos urbanísticos (aquele em vigor e outro em fase de

aprovação e publicação), os valores urbanísticos contra a busca desenfreada de licenças de

construir. Essa busca de licenças, fundada na lei em vigor, poderia (e isto se pretende evitar

cautelarmente) defasar o plano novo, antes mesmo que este entrasse em vigor.”612

610 ALOCHIO, Luiz Henrique Antunes. Plano Diretor Urbano e Estatuto da Cidade : medidas cautelares e moratórias urbanísticas. Belo Horizonte : Fórum, 2010, p. 180.

611 ALOCHIO, Luiz Henrique Antunes. Plano Diretor Urbano e Estatuto da Cidade : medidas cautelares e moratórias urbanísticas. Belo Horizonte : Fórum, 2010, p. 180.

612 ALOCHIO, Luiz Henrique Antunes. Plano Diretor Urbano e Estatuto da Cidade : medidas cautelares e moratórias urbanísticas. Belo Horizonte : Fórum, 2010, p. 186.

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Em Espanha, temos a denominada suspensión del otorgamiento de licencias,

introduzida pela Lei dos Solos de 1956, e que tem a finalidade de proteger o plano futuro,

em vias de produção. Ante a aprovação de um novo plano, suspende-se a expedição de

licenças para a área abrangida pelo mencionado plano. Até que este venha a ser aprovado.

Na Alemanha, o Código de Urbanismo e Construção (BauGB) prevê a possibilidade

de “interdição ou proibição de alterações de índole urbanística”613, com a finalidade de

evitar intervenções que sejam contrarias ao novo planejamento.

Da experiência portuguesa extraímos as medidas preventivas, as quais “podem ser

adotadas pela Administração em dois tipos de casos : o primeiro, para a salvaguarda dos

planos urbanísticos; o segundo caso. A salvaguarda de grandes empreendimentos públicos

que não sejam o próprio plano urbanístico. Podem-se entender as medidas preventivas pelo

prisma de uma fase preliminar destinada a fixar a situação de fato no momento de serem

iniciados os estudos do plano ou de sua revisão, e, no caso dos grandes empreendimentos

públicos, no momento de sua elaboração. Busca-se a plena operatividade do futuro

plano”614.

Nesses termos, à luz da legislação de Portugal, é possível indeferir pretensões de

natureza urbanística ainda que estejam de acordo com o plano em vigor, ou mesmo deferir

ditas pretensões que, embora proibidas pelo plano vigente, seriam permitidas pelo plano in

itinere. Sempre com vistas à proteção, especialmente, dos planos urbanísticos.

Arremata Alochio pela admissibilidade, também, de mencionadas medidas de 613 ALOCHIO, Luiz Henrique Antunes. Plano Diretor Urbano e Estatuto da Cidade : medidas cautelares e moratórias urbanísticas. Belo Horizonte : Fórum, 2010, p. 191.

614 ALOCHIO, Luiz Henrique Antunes. Plano Diretor Urbano e Estatuto da Cidade : medidas cautelares e moratórias urbanísticas. Belo Horizonte : Fórum, 2010, p. 198.

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urgência, no contexto do sistema jurídico brasileiro, com sobrestamento de pedidos de

licenciamento, mediante a adoção de um “regime jurídico extraordinário, compreendido,

justamente, no período de transição entre o plano em curso e o resultado da revisão ou

alteração, ou entre a inexistência de planos e a confecção de um plano urbanístico

inicial.”615 Regime esse alicerçado, em última análise, no risco ao plano em si, e a direitos

fundamentais protegidos por este plano.

Temos, assim, regras que buscam trazer uma certa estabilidade para planos que

estão sendo revistos, ou mesmo elaborados, ou seja, in itinere. Evitando assim, alterações

bruscas da realidade sobre a qual o plano busca incidir. Regras que encontram em seu

fundamento, também, o risco ao próprio planejamento.

O risco, portanto, que serve a um só tempo como fundamento ao ius variandi do

planejamento urbano. Mas que também acaba por ser enfrentado e gerido por meio desse

mesmo ius variandi. E mediante a interposição do direito, nomeadamente por intermédio de

normas de cunho espacial, enfrenta-se o risco ao próprio planejamento.

2.4 – Do risco e da responsabilidade civil do Estado

Considerando que o risco consiste não no dano em si, mas nas decisões que o

antecedem. E levando em conta que a responsabilidade civil, em princípio, busca reparar

um dano que já se concretizou, tratar de risco e de responsabilidade civil parece encerrar

uma aparente contradição.

615 ALOCHIO, Luiz Henrique Antunes. Plano Diretor Urbano e Estatuto da Cidade : medidas cautelares e moratórias urbanísticas. Belo Horizonte : Fórum, 2010, p. 257.

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Sem embargo, argumentaremos, o risco também se imbrica na seara da

responsabilidade civil : responsabilidade civil que se estrutura como método ao

enfrentamento do risco, ao mesmo tempo em que o risco se imiscui na seara daquela

responsabilização, dando-lhe novel contorno. Vejamos.

Conforme leciona Carlos Roberto Gonçalves616, a responsabilidade civil se assenta,

segundo a teoria clássica, em três pressupostos, quais sejam : dano, fato culposo e nexo de

causalidade entre ambos.

Mencionada responsabilidade civil passa, ainda segundo a doutrina de Carlos

Roberto Gonçalves617, por diversas fases. Numa primeira fase vigorava a denominada

vingança privada, o dano provocando uma reação imediata do ofendido, não havendo

regras, ou limitações. Desta passou-se a um período de composição, no qual “o prejudicado

passa a perceber as vantagens e conveniências da substituição da vindita, que gera vindita,

pela compensação econômica”, composição essa, se embargo, que ficava a critério da

vítima.

E num estágio mais avançado, “quando já existe uma soberana autoridade, o

legislador veda à vítima de fazer justiça pelas próprias mãos. A composição econômica, de

voluntária que era, passa a ser obrigatória, e, ao demais disso, tarifada.”618

A concepção de culpa, insculpida inicialmente na Lei Aquília romana, vem

616

GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade Civil. 15ª edição. São Paulo : Saraiva, 2014, p. 47.

617 GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade Civil. 15ª edição. São Paulo : Saraiva, 2014, p. 47.

618 GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade Civil. 15ª edição. São Paulo : Saraiva, 2014, p. 47.

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aperfeiçoada pelo direito francês, o qual “estabeleceu nitidamente um princípio geral da

responsabilidade civil, abandonando o critério de enumerar os casos de composição

obrigatória. Aos poucos foram sendo estabelecidos certos princípios”619, dentre os quais o

direito à reparação mesmo diante de dever indenizar mesmo diante de culpa leve.

Sem embargo, o “surto de progresso, o desenvolvimento industrial e a multiplicação

dos danos acabaram por ocasionar o surgimento de novas teorias, tendentes a propiciar

maior proteção às vítimas. Nos últimos tempos vem ganhando terreno a chamada teoria do

risco que, sem substituir a teoria da culpa, cobre muitas hipóteses em que o apelo às

concepções tradicionais se revela insuficiente para a proteção da vítima. A responsabilidade

seria encarada sob o aspecto objetivo : o operário, vítima de acidente do trabalho, tem

sempre direito à indenização, haja ou não culpa do patrão ou do acidentado. O patrão

indeniza, não porque tenha culpa, mas porque é o dono da maquinaria ou dos instrumentos

de trabalho”.620 Nesses termos, o exercício da atividade perigosa acaba por fundamentar a

responsabilidade objetiva, a qual se alicerça num princípio da equidade.

Para a teoria do risco “toda pessoa que exerce alguma atividade cria um risco de

dano para terceiros. E deve ser obrigada a repará-lo, ainda que sua conduta seja isenta de

culpa. A responsabilidade civil desloca-se da noção de culpa para a noção de risco, ora

encarada como ‘risco-proveito´, que s efunda no princípio segundo o qual é reparável o

dano causado a outrem em consequência de uma atividade realizada em benefício do

responsável (ubi emolumentum, ibi onus); ora mais genericamente como ‘risco criado’, a

que se subordina todo aquele que, sem indagação de culpa, expuser alguém a suportá-lo.”621

619 GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade Civil. 15ª edição. São Paulo : Saraiva, 2014, p. 48.

620 GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade Civil. 15ª edição. São Paulo : Saraiva, 2014, p. 48.

621 GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade Civil. 15ª edição. São Paulo : Saraiva, 2014, p. 59.

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Ao lado dessa mencionada teoria do risco, se justapõe a teoria do dano, ante a qual,

diante de um dano, este deve ser ressarcido, independentemente de culpa.

Assim sendo “a tendência atual do direito manifesta-se no sentido de substituir a

ideia da responsabilidade pela ideia da reparação, a ideia da culpa pela ideia do risco, a

responsabilidade subjetiva pela responsabilidade objetiva.” 622

A culpa, nesses termos, se mostrando insuficiente para atender aos reclamos do

progresso, o legislador fixando casos especiais nos quais há a obrigação de

independentemente de mencionada noção. Tal qual ocorre, por exemplo, com o dono do

edifício, com a responsabilidade do Estado, em relação ao exercício de atividades

perigosas, no que toca à responsabilidade decorrente do direito de vizinhança, ou mesmo à

luz das disposições do Código Brasileiro de Aeronáutica ou mesmo na Lei de Acidentes de

Trabalho.

Prossigamos com algumas situações específicas nas quais a responsabilidade

independe de culpa, esta sendo substituída pelo risco.

Iniciemos, pois, pela responsabilidade civil do Estado : “nos primórdios, subsistia o

princípio da irresponsabilidade absoluta do Estado (The King can do no wrong). Após

passar por vários estágios, atingiu o da responsabilidade, consignada no texto constitucional

em vigor, que independe da noção de culpa.” 623

622

GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade Civil. 15ª edição. São Paulo : Saraiva, 2014, p. 49.

623 GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade Civil. 15ª edição. São Paulo : Saraiva, 2014, p. 173.

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Referida responsabilidade do Estado vigora atualmente inclusive, no que toca a atos

omissivos624, ou mesmo em razão de atos lícitos. Aqui, havendo um dano injusto ao

particular, deve este ser ressarcido.

Da mesma forma, no contexto das relações de consumo, e ante “o surgimento do

consumo em massa, bem como dos conglomerados econômicos. Os princípios tradicionais

da nossa legislação privada já não mais bastavam para reger as relações humanas, sob

determinados aspectos.”625 No contexto brasileiro, adveio a edição do Código de Defesa do

Consumidor (Lei federal 8.078/90), diploma este que pressupõe a condição de vulnerável

do consumidor e estabelece, independentemente de culpa, “a obrigação de ressarcimento

nos casos de vício, falta ou insuficiência de informações, ou seja, tanto em razão de

problemas intrínsecos como extrínsecos do bem ou do serviço.”626

Por fim, encerrando nosso rol de singelos e abreviados exemplos, merece menção,

ainda, a responsabilidade civil por danos ecológicos. Aqui também, em face da

intensificação da atividade industrial e da transformação artificial do meio ambiente,

amplia-se e se intensifica o risco a esses mesmos bens ambientais, impondo destarte uma

proteção cada vez mais acentuada dos mesmos. No Brasil, resta consagrada a

responsabilidade objetiva do causador do dano, a proteger não apenas interesses

individuais, mas também difusos. Mencionada responsabilidade, ainda na esteira da

doutrina de Carlos Roberto Gonçalves627, independe “da existência de culpa e se funda na

624

Passíveis, ademais, de controle judicial. Nesse sentido : CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Controle Judicial das Omissões do Poder Público. Em busca de uma dogmática constitucional transformadora à luz do direito

fundamental à efetivação da Constituição. São Paulo : Saraiva, 2004.

625 GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade Civil. 15ª edição. São Paulo : Saraiva, 2014, p. 65.

626 GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade Civil. 15ª edição. São Paulo : Saraiva, 2014, p. 65.

627 GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade Civil. 15ª edição. São Paulo : Saraiva, 2014, p. 105.

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ideia de que a pessoa que cria o risco deve reparar os danos advindos de seu

empreendimento. Basta, portanto, a prova da ação ou omissão do réu, do dano e da relação

de causalidade.” Mesmo em se tratando de atividade legal, devidamente licenciada por

exemplo. Não se discute, para a reparação, a legalidade do ato, mas sim “a potencialidade

do dano que o ato possa trazer aos bens e valores naturais e culturais que servirá de

fundamento da sentença.”

A responsabilidade civil e a imbricação do risco com esta vem também tratada por

Bourie628. Para o apontado autor a responsabilidade civil consiste num juízo normativo pelo

qual se imputa a alguém uma obrigação reparatória em razão de um dano. O dano é, assim,

da essência da reparação, e encontra seu fundamento no dever de não causarmos dano a

outrem.

Sem embargo, referido dever de não causar danos é por demais genérico, mormente

diante dos inúmeros riscos a que estamos expostos diariamente. Nem todas as condutas de

terceiros causadoras de danos serão objeto de reparação. O sistema jurídico é que acabará

por atribuir normativamente a terceiros os danos que serão passíveis de reparação.

Mas para que haja reparação se faz necessária uma conduta reprovável, ou é

suficiente que o terceiro tenha intercedido de qualquer modo na ocorrência do dano ?

Mencionada questão nos remete aos dois principais sistemas de atribuição de

responsabilidade, quais sejam : o de responsabilidade estrita ou objetiva, que exige apenas

uma relação causal entre conduta e dano para que surja a responsabilidade. Nesta, aquele

que desempenha determinadas atividades assume integralmente o risco de acidentes que

derivam de seu mister. De outra banda, temos a responsabilidade por culpa, a qual exige do

autor do dano um atuar com negligência ou má-fé.

628 BOURIE, Enrique Barros. Tratado de Responsabilidad Extracontractual. Chile : Editorial Jurídica de Chile, 2006.

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271

A responsabilidade por culpa impõe que se estabeleçam os critérios para traçarmos

uma linha divisória entre o que se considera uma conduta diligente, daquela negligente e

passível de reparação por danos causados.

Outras perguntas podem ser colocadas : quais os danos que serão indenizáveis ? E

que conexão deve existir entre o dano e a conduta ou ato de terceiro, denominada de

causalidade ?

Há hipóteses nas quais exigir-se-á do demandado uma conduta, dolosa ou culposa.

Noutras, a lei admite apenas a mera causalidade entre a conduta e o dano. Situações estas

nas quais a lei dará por constituída uma relação obrigatória entre quem provocou o dano e

aquele que o suportou.

Nada obstante, necessária se faz a existência de uma razão jurídica para que

determinados riscos sejam atribuídos a terceiros, pois caso contrário, como princípio geral,

cada um arcará com seus riscos. Referido princípio tem como fundamento moral a

liberdade, que permite desenvolver nossos planos de vida. Uma sociedade regida por um

princípio extenso de responsabilidade seria asfixiante. Assim, a pergunta essencial a ser

feita diz respeito às razões que o direito considera suficientes para que os custos de um

determinado dano sejam suportados por um sujeito que não seja a vítima. Os riscos

decorrentes da vida na sociedade influenciam na fixação dessa razão jurídica, ampliando as

possibilidades de reparação, minimizando desta feita as situações nas quais restariam

aqueles a suportar danos das mais variadas ordens sem ressarcimento.

Em apertada síntese, podemos afirmar que a atual vida em sociedade nos expõe a

riscos de natureza da mais variadas das mais variadas natureza. Muitos destes ancorados

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272

espacialmente, tais como aqueles criados ou mesmo amplificados pela utilização do solo,

ou, ainda, pela instalação de atividades com potencial de causar danos. Danos estes, sem

embargo, que muitas vezes se emaranham numa complexa teia de causalidade, dificultando

o estabelecimento dessa relação. E, ainda, danos que se manifestam muito tempo depois, a

também dificultar o estabelecimento de dito liame.

Ainda no plano espacial, temos também, via de regra, uma concentração cada vez

maior de contingentes de pessoas em espaços cada vez mais reduzidos, aumentando a

vulnerabilidade de direitos dos mais diversos.

Este novo quadro acaba por deixar mais expostas parcelas cada vez maiores da

população, e a clássica responsabilidade civil, ancorada principalmente na culpa, não mais

se mostra suficiente para ressarcir danos sofridos para além dos normais danos sociais.

Temos, assim, em apertada síntese : o incremento do número de terceiros que se

encontram sujeitos a riscos involuntários; o aumento das situações de perigos e danos, e da

mudança qualitativa de como se produzem tais danos629; um aumento das possibilidades de

impactos irreversíveis. Nesses termos, há que se buscar um igual incremento nos

instrumentos de proteção afetos à responsabilização civil, não mais lastreados na

retribuição, de cariz eminentemente privado. O risco acaba por se imiscuir nos elementos

caracterizadores da responsabilidade civil, ampliando as possibilidades dessa

responsabilização, deixando, assim, uma gama menor de situações sem ressarcimento. Essa

responsabilização ampliada, ademais, acaba por incentivar uma cultura preventiva naqueles

que a suportarão.

629

Veja-se a respeito : CAHALI, Yussef Said. Responsabilidade Civil do Estado. 4ª edição revista, atualizada e ampliada. São Paulo : Revista dos Tribunais, 2013, p. 32.

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273

A responsabilização fundada não mais na culpa, mas no risco e no dano, permite se

contemplem essas novas situações que antes restavam sem o devido ressarcimento,

ampliando-se o que seria razoável de se exigir Estado, mesmo diante da incerteza, ou,

ainda, no exercício de atividades lícitas.

2.5 – Risco e decisões judiciais

A imbricação do risco com as funções judiciais vem explicitada por José Rubens

Morato Leite e Germana Parente Neiva Belchior630, tratando especificamente da temática

ambiental.

Para os mencionados autores, a sociedade de risco demanda transformações tanto no

Estado quanto no Direito, em especial para minimizar os impactos da crise ambiental e

controlar o risco num ambiente marcado pela incerteza científica. A racionalidade jurídica

clássica, pautada na segurança e em conceitos engessados, se mostra incapaz de lidar com a

complexidade do dano ambiental.

Há que se buscar, assim, uma nova hermenêutica jurídica, apta a fazer frente aos

desafios de uma sociedade de risco. O risco que, além de concreto, com seus contornos bem

delimitados, assume muitas vezes feições ditas abstratas, invisíveis e imprevisíveis. Dentro

desse contexto, e em especial no que toca ao risco abstrato, necessária se faz uma

transposição da teoria do risco para a seara da responsabilidade civil.

630 LEITE, José Rubens Morato; BELCHIOR, Germana Parente Neiva. Riscos e danos ambientais na jurisprudência brasileira do STJ : um exame sob a perspectiva do Estado de Direito Ambiental. In :Revista CEDOUA – Centro de Estudos de Direito do Ordenamento, do Urbanismo e do Ambiente, n. 22, Ano XI – 2.08. Coimbra : Coimbra Editora, 2008, p. 75 – 102.

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274

E, nesta seara, propugnam pela emergência de um Estado de Direito Ambiental,

com a necessidade de um novo viés hermenêutico e de uma nova gestão preventiva,

alicerçada nos pressupostos da solidariedade.

A responsabilidade civil, na teoria clássica, em termos bastante simplificados,

envolvia uma ação culposa, um dano e o nexo de causalidade entre estes. Referida lógica se

presta, de forma adequada, a enfrentar o que os autores denominam de dano tradicional. Ou

seja, um dano vinculado a determinada pessoa, amparado na certeza, atual e anormal e cujo

nexo causal entre a conduta e o dano são de fácil comprovação, em princípio.

Sem embargo, no que diz respeito ao dano ambiental, referido quadro simplista se

esvanece. Nos deparamos, não raras vezes, com danos difusos, que atingem a pessoas

diversas, muitas das quais sequer nascidas. Dano esse que pode ser incerto, de difícil

constatação, e por vezes causado pelo exercício de atividades lícitas. As quais, ainda assim,

produzem danos naqueles que nada tiveram que ver com as decisões originárias causadoras

do risco : não foram envolvidos na tomada de tais decisões e, muito menos, retiram

qualquer proveito dessas decisões. Danos que, por vezes, têm nexo causal de difícil

demonstração.

O que se iniciou como irreparável, evolui : passa por teorias do risco proveito (onde

se admitem excludentes) até chegar-se a uma teoria da responsabilidade objetiva integral.

Mas para que seja possível trilharmos pelo dito percurso, necessário se faz integrar

princípios do Direito Ambiental às novas funções da responsabilidade civil em razão de

danos ecológicos.

Assiste-se, assim, a uma “relativização da coisa julgada, do direito adquirido e do

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ato jurídico perfeito, como mecanismo de proteção ao meio ambiente”631, com respaldo na

teoria do risco. A responsabilidade civil assume, nesse contexto, nova feição.

Nesses termos, as demandas do “emergente Estado Ecológico”632 impõem uma

hermenêutica jurídica específica e que não tem passado ao largo dos tribunais. Algumas

decisões do Superior Tribunal de Justiça do Brasil bem ilustram referida assertiva, e serão

aqui retratadas.

Uma primeira decisão diz respeito à proibição de queima de cana-de-açúcar (REsp

1.094.873/SP). Referida ação, proposta pelo Ministério Público do Estado de São Paulo,

pleiteava a proibição da utilização da queimada da palha da cana como método preparatório

à colheita. Em jogo, de um lado, o interesse econômico da atividade de plantio da cana-de-

açúcar, constitucionalmente garantido. E, de outro lado, os interesses de trabalhadores e do

meio ambiente, em especial pela produção de gases de efeito estufa, com impactos

potencialmente irreversíveis no clima do planeta.

A queima da palha, embora já admitida em decisões anteriores do STJ, foi

considerada como incompatível com o princípio da sustentabilidade, existindo ademais

outras possibilidades menos lesivas de exploração da cana-de-açúcar. No acórdão em

testilha os Ministros, com fulcro no princípio da sustentabilidade, “marco axiológico do

Estado de Direito ambiental”

631 LEITE, José Rubens Morato; BELCHIOR, Germana Parente Neiva. Riscos e danos ambientais na jurisprudência brasileira do STJ : um exame sob a perspectiva do Estado de Direito Ambiental. In :Revista CEDOUA – Centro de Estudos de Direito do Ordenamento, do Urbanismo e do Ambiente, n. 22, Ano XI – 2.08. Coimbra : Coimbra Editora, 2008, p. 87.

632 LEITE, José Rubens Morato; BELCHIOR, Germana Parente Neiva. Riscos e danos ambientais na jurisprudência brasileira do STJ : um exame sob a perspectiva do Estado de Direito Ambiental. In :Revista CEDOUA – Centro de Estudos de Direito do Ordenamento, do Urbanismo e do Ambiente, n. 22, Ano XI – 2.08. Coimbra : Coimbra Editora, 2008, p. 87.

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276

Mais do que a ponderação em si, o risco reabre questões, renova discussões, se

imiscui nessa ponderação de interesses para trazer questões de maior amplitude, seja no

aspecto temporal, seja no aspecto material. Impõe seja também considerado o interesse de

gerações futuras submetido a potencial dano irreversível, ainda que marcado pela incerteza.

No aspecto material, o risco vem tingido pela transdisciplinariedade, decorrente da

tessitura aberta daquele mesmo risco, a irradiar efeitos nas direções das mais diversas,

atingindo direitos dos mais variados. Os quais hão de ser devidamente representados no

presente. Conforme já dito quase à saciedade, não enxergar o risco hoje, representa em si

mesmo um risco.

Uma outra decisão merecedora de atenção diz respeito à possibilidade de inversão

do ônus da prova em matéria ambiental. Vem dita possibilidade retratada no acórdão

proferido no REsp 972.902/RS. A ação originariamente proposta tinha por objeto a

reparação de danos ambientais causados, conforme alegado, no exercício de atividade de

borracharia. A questão chegou a Superior Tribunal de Justiça para deslinde de pedido de

inversão do ônus da prova, pleito este não fora acolhido nas instâncias inferiores.

Como colocado pelo Ministério Público nos autos : “A inversão do ônus da prova

decorre diretamente da transferência do risco para o potencial poluidor. Em virtude do

acolhimento da teoria do risco integral (...) transfere-se para o empreendedor todo o

encargo de provar que sua atividade não enseja riscos para o meio ambiente, bem como a

responsabilidade indenizar por danos causados, bastando que haja um nexo de causalidade

provável entre a atividade exercida e a degradação.”

Portanto, e na esteira da ampliada responsabilização civil, a atuação judicial, a

nosso ver, não pode se mostrar infensa ao risco da sociedade moderna. Ainda que tenhamos

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assistido a uma impressionante evolução tecnológica, tal qual ocorreu no campo da

medicina – v.g. : com a expectativa de vida alcançando patamares antes impensáveis – essa

mesma tecnologia encerra em si mesma riscos novos. Atividades aparentemente

inofensivas, e muitas vezes lícitas, encerram em si mesmas riscos que muitas vezes se

concretizam em danos a bens jurídicos caros633. Riscos cuja etiologia, muitas vezes, sequer

é clara ou plenamente conhecida.

Ainda assim estamos diante de riscos com grande potencial de danos muitas vezes

irreversíveis a “terceiros inocentes”. Danos esses que não apenas não devem ser suportados,

à luz do princípio da igualdade, de forma acentuada, por grupos particulares de pessoas.

Mas que também devem ser evitados, mediante imposição, se necessário, de ações positivas

preventivas e precoces.

Nesses termos, possível se valer, na esfera judicial, de métodos dos mais diversos

no sentido de devidamente considerar enfrentar o risco.

O risco pode reverberar em aspectos adjetivos (ou processuais), mediante métodos

que incluem a inversão do ônus da prova ou, ainda, por meio da utilização de presunções, o

que, em tese, auxiliaria na superação de eventuais dificuldades para demonstrar-se o nexo

de causalidade entre o dano e uma ação, uma omissão, ou mesmo atividade.

633

No campo da saúde e do mapeamento de doenças, servem de exemplo o desenvolvimento de câncer de pulmão em trabalhadores de um estaleiro na Georgia, Estados Unidos da América; ou, ainda, a ocorrência de um surto de asma em Barcelona, na Espanha, cuja etiologia foi relacionada com o descarregamento de grãos de soja no porto da cidade. Situações onde a análise geográfica da distribuição espacial de tais ocorrências permitiu uma adequada leitura da etiologia de tais condições médicas. Nesse sentido, veja-se : LAWSON, Andrew et. al (editors). Disease mapping and risk assessment for public health. New York : John Wiley & Sons, 1999.

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As possibilidades de atuação judicial incluem, ainda, diante do risco, a possibilidade

de revisão de atos outrora considerados como definitivos. Consoante já asseverado, o risco

acaba por reduzir a estabilidade de determinados atos administrativos, sacrificando-se em

parte a proteção da confiança em prol da proteção de bens jurídicos fundamentais outros.

Cabível, ainda, um controle de regularidade formal, consistente na aquilatação da

devida inserção e consideração do risco quando da expedição de licenças, ou mesmo

quando da formação de outros atos administrativos.

De outra banda, o risco também nos abre as portas para a imposição de um

acentuado dever de agir, em especial ao poder público, mesmo diante de situações

marcadas pela incerteza. E se de um lado, por vezes, a Administração acaba por gozar de

uma maior discricionariedade na gestão do risco, por outro, esse mesmo risco impõe a

ampliação das possibilidades de controle judicial dos atos da Administração 634. Esse

ampliado controle judicial, norteado pelo dever de proteção, não apenas pode, mas deve

pode se estender ao campo das políticas públicas635. Promovendo até mesmo a implantação

e concretização de direitos sociais, mediante prestações positivas636.

634

Como bem aponta Dellis, o novo intervencionismo estatal encontra seus limites no controle judicial de proteção a direitos fundamentais (DELLIS, Georges. L’État Face au Risque en tant que Matière du Droit Public Européen (Un Approche Comparative). In : European Review of Public Law Vol. 15 – No. 1, spring

2003. London : Esperia, 2003, p. 693 a 698). Cabendo ao Poder Judiciário não apenas proceder a uma ponderação para verificar qual direito prevalecerá, mas incumbindo-lhe o dever de perseguir a devida e efetiva proteção a esses mesmos direitos, conforme acentua Stelzer (STELZER, Manfred. The Positioning of Fundamental Rights Within Governmental Policies of Risk Management. In : In : European Review of Public

Law Vol. 15 – No. 1, spring 2003. London : Esperia, 2003, p. 203).

635 No que toca à indução de políticas públicas por meio de ações civis públicas, veja-se : MALAQUIAS,

Mário Augusto Vicente. Das Ocupações em Áreas de Risco na Cidade de São Paulo e o Trabalho Desenvolvido pela Promotoria de Justiça de Habitação e Urbanismo. In : Temas de Direito Urbanístico 6. Coordenação : Jorge Luiz Ussier. Organização : Mário Augusto Vicente Malaquias. São Paulo : Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2011.

636 Nesse sentido, apenas a título de exemplo, reportamo-nos mais uma vez à doutrina de Novais, que trata do

dever de se garantir, na esfera dos direitos sociais, um mínimo existencial. Ou, ainda, de forma ampliada, um

mínimo social, com a correlata possibilidade de se exigir do Estado, inclusive e em especial por meio do

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O risco, portanto, também tem aptidão de se inserir no seio da atuação judicial e

encontra nesta um poderoso aliado, especialmente na proteção de direitos fundamentais

ainda não dotados de uma densidade mais intensa. Para aprisionar o risco deve o

ordenamento se valer de formulas mais fluidas, aptas, assim, a capturar todas as

possibilidades de dano futuro, ponderando o risco decorrente a direitos fundamentais, de

conferir devida proteção preferencialmente antecipada a esses mesmos direitos.

E os riscos revelam, conforme já pontuado acima, uma dimensão espacial nada

desprezível. O uso e a ocupação do solo em desacordo com normas técnicas e legais, em

localidades suscetíveis a enchentes ou mesmo deslizamentos de terra. Ou, ainda, o

exercício de atividades em determinados locais, a afetar as populações vizinhas, produzindo

danos com distribuição geográfica peculiar e desigual. Ambas estas situações envolvem

utilização dos espaços de forma a acentuar riscos e, potencialmente , a causar danos. Há

que se exigir uma interposição judicial voltada não apenas para buscar a reparação desses

danos, mas, principalmente, para exigir prestações concretas e positivas nesses espaços,

destinadas a proteger direitos caros.

Capítulo III – Do risco e dos critérios para sua leitura

Diante do quanto exposto até aqui, cumpre-nos trazer uma sistematização das ideias

apresentadas, fornecendo critérios que poderíamos denominar de hermenêuticos relativos

Poder Judiciário, prestações que assegurem esse mínimo (NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Sociais. Teoria

Jurídica dos Direitos Sociais Enquanto Direitos Fundamentais. Coimbra : Wolters Kluwer / Coimbra, 2010,

p. 181 a 254).

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ao risco. E, em especial, ao risco em sua dimensão espacial.

Buscaremos, nesses termos, apresentar critérios que auxiliem na construção de uma

tipologia do risco, notadamente em sua dimensão espacial, e que possam ser utilizados

como teste de validade para decisões (ou omissões) tomadas, assim como para uma

representação do risco marcada por uma maior objetividade e passível, assim, de controle

intersubjetivo.

Nesse diapasão, traremos ao debate elementos que podem ser sopesados quando da

“leitura” do risco, ou seja, para a construção de um arquétipo do mesmo, apto a ser

utilizado e testado em situações das mais variadas. Fornecendo assim uma maior clareza

acerca do risco, de sua magnitude, do seu grau de aceitabilidade, das suas consequências, e

do correlato dever de agir diante de situações que se apresentam a nós, especialmente no

dia a dia das grandes cidades.

Quando da explanação dos ditos critérios, trataremos de fornecer uma amarração

normativa e, ainda, traçar sua utilidade prática mediante a aplicação e teste a situações

concretas.

Não desconhecemos a existência de métodos dos mais variados para mensurar o

risco637. Não é nossa intenção, no espaço de que dispomos, fazer uma análise exaustiva dos

mesmos. Sem embargo, muitos dos critérios usados em ditos métodos, tais como, por

exemplo, a consideração da intensidade dos danos assim como a probabilidade de

ocorrência dos mesmos, foram por nós aproveitados, guardadas as devidas proporções, e

feitas as necessárias adaptações ao objeto que nos interessa, que é o do risco em sua

637 Veja-se, por exemplo, o trabalho seguinte, tratando de mapeamento de doenças : LAWSON, Andrew et. al (editors). Disease mapping and risk assessment for public health. New York : John Wiley & Sons, 1999.

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dimensão espacial.

Em suma, podemos arrolar os critérios gerais seguintes que auxiliarão na construção

de um arquétipo do risco, facilitando sua delimitação e grau de aceitabilidade, e correlato

dever de agir ante o mesmo. São tais critérios os seguintes : 1) grau de probabilidade; 2)

gravidade potencial dos danos futuros; 3) reversibilidade; 4) modificabilidade; 5) alicerce

normativo e bens jurídicos em colisão; 6) respeito ao existente; 7) efeito cumulativo; 8)

grau de renovação; 9) critério inercial; 10) ancoragem territorial; Passemos a detalhá-los.

Um primeiro critério concerne ao grau de probabilidade de ocorrência do dano

futuro. Trata-se de critério que foi abraçado pela Doutrina Alemã para a fixação do dever

de agir do Estado, conforme já tratado. Leva-se em conta aqui se o evento futuro tem maior

ou menor probabilidade de ocorrência. E, ainda, se é possível, ou não, estabelecer uma

relação de causalidade entre ações ou omissões presentes e os apontados danos futuros. De

forma bastante simplificada, quanto maior a probabilidade de ocorrência de um dano

futuro, ou mais bem delineada a relação de causalidade, maior será, em principio, o dever

de agir para fazer frente a referido dano. Reiteramos, contudo, que o indigitado critério,

assim como os demais, devem ser conjugados. Ainda que um dano futuro esteja envolto na

incerteza, mas ainda assim atinja de forma dura a bens essenciais, pode fazer nascer um

dever de agir. O que nos leva ao critério seguinte.

Um segundo critério a ser levado em consideração diz respeito à gravidade

potencial dos danos futuros. Ou seja, perquire-se quão grave serão as consequências futuras

caso o risco se concretize. Referida gravidade envolve a consideração de elementos

adicionais : investiga-se, primeiramente, se o danos recairão, ou não, sobre bens

indisponíveis, tais como a vida ou a proteção à infância. Quanto mais essenciais os bens,

mais acentuado será o dever de agir preventivamente.

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De outra banda, necessário avaliar também se os bens em jogo são afetos apenas a

grupos limitados de pessoas, ou se são difusos, produzindo impacto em um grupo mais

amplo, e indeterminado de pessoas. Ou, ainda, se atinge não apenas a gerações presentes,

mas também a gerações futuras. Aqui também entendemos existir um dever mais acentuado

de prevenção caso estejam em jogo interesses mais amplos e de gerações futuras. Dos

quais, em consonância com o contido no parágrafo anterior, serão de disposição duvidosa

pelas gerações presentes.

Uma outra consideração diz respeito à circunstância de os efeitos danosos recaírem

sobre aqueles que se beneficiam da tomada decisões que envolvem riscos, ou se atingirá

terceiros. Ou seja, na esteira da doutrina de Luhmann638, há que se distinguir entre o que ele

denomina dos tomadores de decisão (“decision makers”) de terceiros alheios a dita decisão

(“third party”). A tolerância a riscos que recaiam sobre terceiros alheios ao processo

decisório relativo ao risco deverá ser menor.

O terceiro critério, que guarda estreita relação com o da gravidade, concerne à

reversibilidade. Ou seja : perquirimos aqui se os danos futuros são, ou não, reversíveis.

Apenas com o fito exemplificativo, a perda de uma vida ou mesmo a aquisição de

determinados transtorno mentais são situações que apenas podem ser enfrentadas mediante

a prevenção. Uma vez instaladas, não podem ser corrigidas. Nesses termos, quanto maior a

irreversibilidade, mais acentuado o dever de agir no sentido da prevenção. Pois o agir tarde

se mostrará absolutamente inútil.

O grau de modificabilidade é o quarto critério a ser levado em conta quando da

construção de um arquétipo do risco. O mesmo leva em conta até que ponto as decisões

tomadas hoje serão efetivas para alterar não apenas a situação existente mas também para

638 LUHMANN, Niklas. Risk : a sociological theory / with a new introduction by Nico Stehr and Gotthard Bechmann. Fourth printing. New Brunswick : Aldine, 2008, p. 101 a 123.

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produzir efeitos nos danos futuros, evitando-os ou mitigando-os. O que for feito hoje terá o

condão de produzir impacto nos danos futuros ? Quanto maior a possibilidade de se

modificar o futuro, tanto maior será o dever se atuar hoje.

Cumpre acrescentar que mencionado critério de modificabilidade há de ser encarado

dentro de uma perspectiva temporal. Deve se verificar se referido grau de modificabilidade

sofrerá, ou não, alterações ao longo do tempo. Uma dada situação poderá, com o passar do

tempo, se cristalizar e tornar cada vez mais difícil sua modificação.

A modificabilidade implica se levar em conta, também, a eventual

multidimensionalidade da concretização da proteção e defesa de tais bens. E, de forma

correlata, quão complexa será eventual intervenção exigida, inclusive no que toca aos

recursos que serão necessários para sua implementação.

A natureza dos riscos, ou seja, se os mesmos são fruto da ação humana ou da ação

da natureza, não afastaria, para nós, o dever de proteção do Estado639. Mesmo diante de

fenômenos da natureza, sempre há a possibilidade de tomada de decisões, ao menos para a

mitigação dos efeitos de catástrofes e, ainda, para a minimização de novos riscos, consoante

trataremos mais adiante ao abordar alguns exemplos práticos da aplicabilidade da tipologia

de riscos aqui proposta.

Um quinto critério diz respeito ao alicerce normativo e aos bens jurídicos em

colisão ante uma dada situação de risco. Há, aqui, de se levar em consideração quais os

bens jurídicos em jogo e, em especial, qual o alicerce normativo a impelir para a proteção

em relação ao risco. Por exemplo : o risco de danos futuros pode alcançar a bens protegidos 639 Quanto à controvérsia acerca da aplicação dos deveres de proteção também no que toca a perigos ditos derivados de forças da natureza : BALTAZAR JÚNIOR, José Paulo. Crime organizado e proibição de insuficiência. Porto Alegre : Livraria do Advogado, 2010, p.58, e sua nota de número 188.

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por norma de direitos constitucional fundamental, como o é a vida ? É ainda dotado de

suficiente densidade ? E a proteção do bem em risco colidirá com outros bens, produzindo

limitações nestes ? Aqui mister se faz proceder a uma ponderação dos bens em colisão.

Quando em jogo direitos fundamentais, sendo certo que sua proteção cabe sem que se

aniquilem outros direitos, intenso será o dever de proteção de mencionados bens.

O sexto critério aqui apresentado para sistematizar a compreensão acerca do risco

consiste em se levar em conta a estrutura existente e os esforços já em curso para enfrenta-

lo. Há de se perquirir : existe uma rede de instituições ou mesmo de atores que, em tese,

está envolvida com o enfrentamento do risco no presente, ainda que desarticulada no

presente ? Quanto maior a insuficiência ou ausência de dita rede, tanto mais há que se agir

preventivamente.

O respeito ao existente implica ainda num adequado diagnóstico, assim como na

devida consideração, das redes sociais existentes em determinadas localidades e os serviços

sociais que as mesmas prestam. Mencionada estrutura existente não poderá ser

negligenciada quando da realização de intervenções, em especial no tecido urbano,

impondo-se, no mínimo, sua adequada leitura.

Segue-se, ainda, o critério cumulativo, o sétimo aqui apresentado, e que deve ser

sopesado quando da elaboração de um arquétipo do risco. Avalia-se de que forma a

situação presente pode se aliar a outras, seja para mitigar, seja para majorar a possibilidade

e a gravidade de perdas futuras. Por exemplo, a omissão no sentido de dar adequada

acolhida a pessoas em situação de rua, aliada à negligência com o trato relativo ao consumo

e venda de substâncias, inclusive lícitas, pode amplificar as possibilidades de danos futuros.

Riscos que ostentem um efeito cumulativo acentuado merecem um olhar mais cuidadoso.

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Passemos ao oitavo critério : qual seja, do grau de renovação do risco. Aqui o que se

busca é verificar a intensidade através da qual o risco se renova. Decisões e omissões

levadas a cabo hoje se irradiarão para o futuro, reverberando potencialmente em direitos

outros dos mais variados, e produzindo novos riscos, com maior ou menor intensidade.

Conforme veremos a seguir, eventos tachados de naturais e aparentemente imodificáveis,

tais como os furacões, encerram novos e potenciais riscos não apenas no que diz respeito

aos danos diretos e imediatos do fenômeno (tais como a destruição de casas e os danos à

incolumidade física), mas também à saúde mental. Catástrofes de grande magnitude

produzem sério impacto na higidez mental das populações atingidas. E, aqui, muito pode

ser feito, em especial no que diz respeito a serviços de acolhida de populações deslocadas,

apenas para citar um exemplo. O risco que antecedia o furacão deu lugar a novos riscos, de

acentuada intensidade. Da mesma forma, tomando-se agora o exemplo do trânsito, estamos

diante de atividade dinâmica – todos os dias milhões de veículos saem às ruas, conduzidos

via de regra por pessoas sem especial qualificação para tanto. A cada momento a realidade

se renova e com esta também o risco, exigindo novas representações, novas ações. Aqui,

numa dupla faceta, com as decisões transformando a realidade e a realidade também se

modificando, impondo novas decisões, num círculo que pode tanto ser virtuoso ou vicioso.

Tudo a depender das decisões tomadas hoje.

Pois bem : quanto mais intenso esse grau de renovação, tanto maior a necessidade

de se olhar para o futuro e construir uma adequada representação deste, decidindo hoje os

caminhos que potencialmente devem ser percorridos para chegarmos de forma segura e

consentânea com o Direito àquele futuro. Conforme já acentuado, migramos do conceito de

perigo para o de risco.

Imbrica-se neste critério a necessidade de se encarar o risco tanto por uma

perspectiva diacrônica assim como sincrônica : a quantificação e delimitação do risco exige

seu acompanhamento permanente. O risco, insistimos, não se confunde com os eventos

danosos e está a renovar-se permanentemente. Exige, assim, para ser capturado, um olhar

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também permanente, atento à sua dinâmica e à sua constante transmudação. Decisões

tomadas hoje para enfrentar o risco encerrarão um risco em si mesmas. Por exemplo, a

realocação de parcelas de população acomodada em áreas com riscos de deslizamentos e

enchentes, ainda que medida muitas vezes essencial à preservação de vidas, poderá

esfacelar laços comunitários, com efeitos perversos, conforme já salientamos há pouco.

Criando, nesses termos, novos riscos.

Chegamos ao nono critério classificatório, denominado de inercial : em face deste,

levamos em conta o que poderá ocorrer se nada for feito no presente. Ou seja, se o curso

dos eventos for deixado à sua própria sorte. Decerto que, muitas vezes, estabelecer-se a

causalidade de eventos extremamente complexos como o são os fenômenos que desfilam

no espaço urbano, mostra-se tarefa difícil. Todavia, ainda que existente uma zona de

dúvida, onde mencionada causalidade se mostra de difícil determinação, certamente

teremos também zona de certeza positiva e negativa no que concerne a ditas omissões. Por

exemplo, se nada for feito de concreto para melhor a mobilidade em cidades como São

Paulo, certamente o trânsito piorará, mormente em face do grande número de veículos

novos que ingressam nas ruas da cidade a cada dia. Podemos não ter uma magnitude exata

de referida piora, mas com certeza a fluidez diminuirá.

Importante ressaltar que as ações possíveis hão de ser perspectivadas dentro de um

continuum Explicamo-nos : raramente nos depararemos com uma ausência absoluta de

iniciativas para enfrenta, ainda que de forma não declarada, o risco. Ditas medidas

possíveis hão de ser inseridas dentro de um continuum, que se polariza, apenas para fins

didáticos, entre o nada fazer e a intervenção extrema. Tome-se por exemplo a questão dos

riscos decorrentes do trânsito. Uma postura é nada fazer : não investir em melhorias na

estrutura viária ou na oferta de transportes públicos, não fiscalizar (ou fazê-lo de forma

deficiente – mas aqui já teríamos dado um passo no sentido de nos afastarmos do “nada

fazer”). De outra banda, uma medida de intervenção extrema consistiria na hipotética

proibição da circulação de veículos : aqui com certeza não teríamos mais acidentes, ao

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menos não de veículos. Mas haveria irremediável dano a direitos outros e evidente excesso.

Pois entre uma e outra providência temos uma miríade interminável de medidas

possíveis, e que são passíveis sim de enfrentar o risco decorrente da circulação, que se

ostenta como provável, apto a causar danos irreversíveis a bens essenciais, e sujeito a ser

modificado pela ação humana. Medidas que incluem exemplificativamente : mapeamento

das zonas críticas, melhorias na sinalização e na estrutura física de medidas. O risco, aliás,

não se resume a acidentes. A circulação viária propicia e dá azo a outros riscos e situações

tais como, por exemplo, a exploração sexual de adolescentes640. O que se busca, aqui, é

levar em conta os diferentes cenários, estabelecendo uma possibilidade de convívio entre os

riscos decorrentes do trânsito e aqueles decorrentes das limitações à mobilidade. Não é

porque o trânsito representa atividade essencial à vida em sociedade que nada deve ser

feito, por exemplo, com os pontos críticos relativos à exploração sexual de adolescentes.

Qual a medida da ação aqui necessária para o adequado convívio com o risco ?

Aqui, quanto mais nefastos os efeitos da inércia, tanto maior será o dever de agir no

presente.

Por fim, e afeto ao nosso corte epistemológico, inserimos um derradeiro critério,

que diz respeito ao risco em sua dimensão espacial. Trata-se da ancoragem espacial urbana

do risco. Ou seja, em que medida o risco guarda relação com a organização dos espaços. E,

de forma correlata, de que instrumentos dispomos, de natureza territorial e de organização

dos espaços, para enfrentar mencionado risco.

640 Cabe, aqui, alusão à atuação da organização não governamental denominada “Childhood”, patrocinada pela rainha da Suécia e sediada no Brasil. A entidade desenvolve trabalhos de conscientização de motoristas de caminhão para que não contratem serviços de sexo com adolescentes e crianças. Levantamento realizado no estado do Pará, revelou a existência de aproximadamente 1300 pontos críticos nas estradas daquele Estado, nos quais há adolescentes e até mesmo crianças vendendo o próprio corpo.

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À luz deste critério, quanto mais acentuada for mencionada ancoragem espacial,

tanto mais serão necessárias as intervenções de cunho igualmente espacial para o seu

enfrentamento. A gestão, por exemplo, do problema afeto a moradias em áreas que

apresentem risco de deslizamento e de enchentes não pode prescindir de intervenções

diretas em tais áreas, seja no sentido de remover populações em situação de grau acentuado

de risco, seja para realizar, se o caso, obras de contenção de encostas.

Ditos critérios se prestam apenas a sistematizar as ideias esparsas apresentadas

acerca do risco, auxiliando na construção de um cenário didático para se proceder à leitura

do mesmo, facilitando a clareza, em especial, no que toca ao correlato de dever de agir em

face do risco.

Não podemos nos olvidar que o risco consiste em um objeto cultural, produto da

criação humana : ditos critérios classificatórios, esperamos, auxiliarão numa maior

objetividade e clareza em relação à leitura” do risco.

Vale ainda ressaltar que os critérios classificatórios ora apresentados apenas fazem

sentido se tomados em conta de forma conjunta e à luz de um dado caso concreto, em face

da necessária ponderação de bens em colisão que há de ser levada adiante.

Portanto, um risco que ostente grande probabilidade de ocorrência, envolva danos

irreversíveis a bens essenciais, ostente potencial modificabilidade ante intervenções feitas

no presente, disponha de métodos e de suficiente alicerce normativo certamente não poderá

ser negligenciado. Ainda que, na prática, dificilmente nos depararemos com situação

revestida de tamanha clareza, fornecem os critérios aqui apresentados um poderoso auxílio

na sistematização e na adequada representação do risco.

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Mas, conforme prometido, ditos critérios exigem e merecem ser testados na prática.

Vejamos.

Um primeiro exemplo prático, extraído da doutrina de Green e Pope641, refere-se a

eventos ditos naturais e sua correlação com outros riscos. No caso em tela, o risco relativo à

saúde mental, representado pelo consumo de substâncias e por transtornos mentais

decorrentes ou amplificados em razão de catástrofes naturais. Mais especificamente, o

trabalho mencionado trata da passagem dos furacões Katrina e Rita, e de seu impacto junto

a usuários de substâncias e àqueles acometidos de transtornos mentais em regiões dos

estados Unidos da América.

Segundo levantamento das autoras, os mencionados eventos obrigaram

aproximadamente 470 mil pessoas a se deslocarem de seus lares. Eventos traumáticos

intensos, tais como a passagem de furacões, têm um impacto acentuado na saúde mental

daqueles afetados : estudos revelam que entre 25 e 30 % das pessoas expostas a traumas

severos, e entre 5 e 10 % de indivíduos expostos a traumas moderados desenvolverão

problemas relacionados com o uso de substâncias. Da mesma forma, verifica-se um

aumento nos distúrbios relativos à saúde mental após a ocorrência de desastres, seja no que

toca à sua frequência, assim como no que concerne à sua prevalência.

Diante desse quadro, a passagem dos furacões, com o deslocamento de enormes

contingentes de pessoas, encerra em si a probabilidade de que uma parcela considerável da

população deslocada experimente uma piora em seu estado de saúde mental, inclusive no

que toca ao consumo de substâncias. E não apenas serão afetados aqueles já acometidos de

algum transtorno : novos e significativos contingentes de pessoas desenvolverão problemas

afetos à saúde mental, incluído aqui aquele relativo ao consumo de substâncias. Com 641 GREEN, Traci Craig, POPE, Cynthia. Using a GIS Framework to Assess Hurricane Recovery Needs of Substance Abuse Center Clients in Katrina and Rita-Affected Areas. In : THOMAS, Yvonette F., RICHARDSON, Douglas, CHEUNG, Ivan. Geography and Drug Addiction. Springer : 2008, p. 369 – 393.

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impactos intensos nos serviços de acolhida social e de saúde mental, os quais, ainda

segundo as autoras, não se mostram prontos para receber tais pessoas642. Pondo em cheque

o adequado tratamento de doenças crônicas que exige, de forma bastante resumida,

aderência a tratamento, acesso a medicamentos e adequado gerenciamento mediante regular

interação com serviços de saúde.

Furacões e tornados são eventos que, em princípio, têm uma previsibilidade

limitada, seja quanto à sua ocorrência, seja quanto aos locais que serão efetivamente

atingidos, ainda que determinados sítios ostentem uma maior probabilidade de passagem

dos apontados fenômenos. Podem ser taxados de eventos naturais, alheios à ação humana, e

atingem indiscriminadamente a populações amplas, revestindo-se de um altíssimo grau de

produção de danos. Suas consequências são duradouras e, muitas vezes, irreversíveis,

ceifando vidas e destruindo o patrimônios amealhados ao longo de uma existência. Sem

embargo, são situações que ostentam, sim, diferentemente do que possa parecer, um

considerável grau de modificabilidade. Ao menos no que tange à mitigação de suas

consequências e na redução de danos. Omissões podem ter, portanto, um impacto enorme

em bens indisponíveis. Tratando-se, ademais, de risco que se renova e se imiscui em searas

diversas, como bem demonstra o estudo de Green e Pope.

Aplicando-se os critérios propostos temos, portanto, na situação apresentada por

Green e Pope :

1) grau de probabilidade : a previsibilidade dos eventos ditos naturais, assim como

das localidades que serão atingidas ainda não se mostra muito acurada – sem embargo, há

regiões que são propensas à passagem de furacões;

2) gravidade potencial dos danos futuros : os danos decorrentes de fenômenos

naturais de proporções catastróficas são enormes e muitas vezes irreversíveis : vidas se 642 GREEN, Traci Craig, POPE, Cynthia. Using a GIS Framework to Assess Hurricane Recovery Needs of Substance Abuse Center Clients in Katrina and Rita-Affected Areas. In : THOMAS, Yvonette F., RICHARDSON, Douglas, CHEUNG, Ivan. Geography and Drug Addiction. Springer : 2008, p. 389.

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perdem e economias, tanto pessoais como de um país, são duramente atingidas. Com

conseqüências outras a irradiar para bens diversos, como restou demonstrado no exemplo

trazido à baila, a destruição causada por furacões reverberando no direito à saúde;

3) reversibilidade : eventos como furacões atingem de forma bastante dura e muitas

vezes irreversível bens essenciais, tais como a vida e o patrimônio. Têm, assim, uma

intensa irreversibilidade dos danos que causam, a exigir um olhar bastante atento;

4) modificabilidade : em que pese não contarmos, hoje, com mecanismos claros

acerca da causalidade de fenômenos como furacões, e tampouco com instrumentos para

direta e imediatamente impedir que tais fenômenos se formem, incontáveis são as

possibilidades para mitigar e amenizar as conseqüências decorrentes dos mencionados

eventos.

5) alicerce normativo e bens jurídicos em colisão : em consonância com o quanto

dito no parágrafo anterior, o dever de proteção a bens essenciais compele para a ação

estatal. Uma catástrofe traz consigo potencial vulneração de máxima intensidade a direitos

fundamentais. Decerto que não se advoga a remoção de populações, até mesmo porque não

se sabe ao certo quais localidades serão, com exatidão, atingidas e com que intensidade.

Ainda assim, a mitigação dos efeitos de dita catástrofe é medida que não colide com direito

algum, mas apenas os prestigia;

6) respeito ao existente : há que se deitar um olhar atento em especial no que

concerne às ocupações já consolidadas, no sentido de mitigar eventuais danos a estas.

Muitas vezes estamos diante de enormes contingentes populacionais, cuja remoção é

inviável. Mormente em se tratando de furacões e das incertezas quanto ao local que sofrerá

o impacto mais intenso. Necessário, além de planejar ações levando em conta tais

edificações existentes, levar em conta também a rede de proteção também já disponível, e

como esta pode ser devidamente articulada diante de uma catástrofe, evitando-se ao

máximo a perda de vidas, buscando um adequado convívio com o risco;

7) efeito cumulativo : as catástrofes deixam para trás um rastro de destruição. Mas

projetam para adiante riscos das mais variadas ordens. Às perdas já consumadas (as quais

não se confundem com o risco), somam-se outras potenciais, decorrentes, por exemplo, da

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falta de gêneros essenciais, do deslocamento intenso de populações, do duro golpe muitas

vezes sentido na economia. Consideramos, nesses termos, que tais catástrofes trarão, como

resultado, situações que, acumuladas, podem trazer impacto bastante severo na vida de

enormes contingentes de pessoas;

8) grau de renovação : sem querer adentrar na discussão acerca das mudanças

climáticas e de sua intensidade, numa análise empírica e despida de maior rigor científico,

verifica-se que fenômenos ditos naturais e de grande intensidade têm se repetido ano após

ano. Temos, assim, um padrão de ocorrência de tais eventos ainda que marcado por grande

incerteza quanto à sua intensidade e exatidão geográfica acerca dos seus efeitos. Ainda

assim, há áreas onde efetivamente o risco de uma catástrofe se mostra existente e não pode

ser negligenciado. Aguardar a ocorrência da catástrofe para então tomar alguma medida

pode se mostrar demasiado tarde. Uma negligência que certamente cobrará sua fatura em

termos de vidas e de patrimônio;

9) critério inercial : seguindo-se o quanto tratado no item anterior, não se mostra a

solução mais adequada aguardar que sobrevenha o evento catastrófico para então tomar

alguma medida. Ainda que permeado pela incerteza, há que se agir de antemão, como

ocorre, a título de exemplo, na região de Nápoles, na Itália, no que diz respeito à atividade

vulcânica, ou mesmo na cidade de São Francisco, nos Estados Unidos, no que concerne à

atividade sísmica (a cidade contando com rotas de fuga ante eventuais desastres,

treinamento gratuito para moradores realizado pelo corpo de bombeiros, e, ainda,

determinações normativas acerca de construções, seja no que toca às novas, que devem

levar em conta os riscos sísmicos, seja no que concerne ao fortalecimento de estruturas já

existentes, tornando-as mais resilientes643;

10) ancoragem espacial: a ancoragem territorial, defendemos, é intensa. Os danos

643 A Academia de Ciências da cidade de São Francisco, nos Estados Unidos da América, foi devastada pelo terremoto de 1906, e a quase totalidade de seu acervo foi destruída nesse ano, não pelo tremor, mas pelos incêndios que do mesmo decorreram. E entidade, sem embargo, reabriu suas portas no ano de 2008, contando com o que há de mais avançado em termos de tecnologia sísmica. O prédio é ancorado em quatro pilastras que dão estabilidade ao prédio, e que permitem ao edifício oscilar diante de um tremor. Estruturas são fixadas com teflon, para garantir maior flexibilidade e até mesmo as estruturas dos aquários existentes no local são elaboradas com acrílico, mais resistente a eventuais tremores. Os vidros do prédio são laminados e não se estilhaçarão.

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são sentidos territorialmente. E as possibilidades de seu enfrentamento também têm um

componente espacial intenso, tal qual já mencionado : normas de construção para reforçar

estruturas já existentes, assim como para impor novas exigências a obras a serem

licenciadas; articulação de serviços de assistência e de saúde no sentido de adequada

recepção de pessoas atingidas; organização de rotas de fuga de localidades aptas a receber

contingentes de população diante de catástrofes, apenas para mencionar alguns;

Portanto, ainda que difícil estabelecer uma clara relação de causalidade entre

eventuais condutas humanas e a ocorrência dos furacões; ainda que estejamos diante de

evento com cujas consequências exatas são difíceis de precisar; ainda que se esteja a falar

de eventos da natureza, os mesmos certamente têm sua letalidade e sua capacidade de

causar danos majorada em face de omissões e da ausência de providências possíveis, as

quais são muitas e prestigiadas pelo Direito. Muitas vezes ditas providências se resumem,

conforme verificado no exemplo relativo aos furacões Katrina e Rita, em tão somente

articular e organizar serviços assistenciais já existentes, ancorados territorialmente, com

intensas possibilidades de preservação de direitos. Certamente se trata de risco que não

cabe qualquer tolerância ou inércia.

Uma outra situação que podemos encarar sob a ótica do risco diz respeito à

mobilidade nas grandes cidades. Especificamente no que diz respeito ao trânsito de

veículos, estamos diante de atividade que ceifa milhares de vidas todos os anos. Conforme

reportagem do Jornal “O Estado de São Paulo”, da lavra de Bruno Paes Manso, que leva o

título : “Acidentes de trânsito matam 980 mil pessoas no Brasil em 31 anos”644, 980. 838

pessoas morreram no Brasil em acidentes de trânsito entre os anos de 1980 e 2011. Uma

média de 22.5 mortos por cem mil habitantes, número esse que vem crescendo.

Mencionada média, já assaz preocupante (por exemplo, em países como a Alemanha ou os

Estados Unidos, para o ano de 2011, média de mortes no trânsito, por cem mil habitantes, é 644 Disponível para consulta na rede mundial de computadores, no endereço seguinte : http://www.estadao.com.br/noticias/cidades,acidentes-de-transito-matam-980-mil-pessoas-no-brasil-em-31-anos,1099082,0.htm – última consulta aos 02 de janeiro de 2014.

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respectivamente de 4,7 e 11,4645), oculta dados ainda mais graves, como o é o da cidade de

Presidente Dutra, no Maranhão, onde registra-se uma média de 285 mortes por cem mil

habitantes.

Os custos sociais da circulação de veículos são enormes. Ao lado da perda de vidas

e de eventos incapacitantes, há ainda um evidente ônus ambiental, decorrente da poluição

produzida pelos motores a combustão, assim como em face do ruído produzido pelos

veículos.

De outra banda, não há como olvidar que os veículos ampliaram sobremaneira as

possibilidades de circulação não apenas de pessoas mas também de bens e serviços :

transportes de cargas, de alimentos, de medicamentos, ou mesmo de pacientes ou pessoas

acidentadas.

Encarada sob o prisma dos critérios de classificação do risco, estamos diante de

atividade com possibilidade nada desprezível de produção de danos. Danos muitas vezes

irreversíveis, a atingir bens indisponíveis como a vida.

Sem embargo, trata-se de atividade já enraizada socialmente, a exigir acentuado

respeito ao existente. Em jogo, portanto, bens e direitos colidentes de extrema relevância.

Verificamos, assim, possibilidades de danos irreversíveis a bens e direitos indisponíveis e

onde a absoluta inércia continuará a cobrar vidas. Numa perspectiva diametralmente

oposta, o controle absoluto da circulação, com sua hipotética proibição também se mostra

inviável. Impondo-se, nesses termos, medidas intermediárias de mitigação e de convívio

com o risco, certamente ancoradas espacialmente, tais como o mapeamento de áreas críticas 645 Conforme levantamento feito pelo Instituto Avante Brasil : dados disponíveis na rede mundial de computadores : http://atualidadesdodireito.com.br/lfg/2013/12/05/desonrosamente-somos-o-campeao-em-assassinatos-e-mortes-no-transito/ - última consulta realizada em 02 de janeiro de 2014.

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onde ocorrem acidentes, melhorias estruturais e de sinalização, a adoção de estratégias

baseadas em critérios geográficos para realização de campanhas e ulterior fiscalização nos

arredores de estabelecimentos onde há corriqueiro consumo de bebidas alcoólicas (onde a

probabilidade de dano é muito mais acentuada) 646. Risco que, sem embargo, se renova a

cada momento, com contingentes de veículos ganhando as ruas, muitos sem adequado

treinamento ou mesmo acompanhamento.

Nesses termos, podemos, em apertada síntese, construir o quadro seguinte relativo

aos riscos do trânsito de veículos :

1) grau de probabilidade de danos futuros : este é significativo, especialmente em

determinadas localidades, os eventos danosos e riscos correlatos ostentando uma

distribuição geográfica extremamente desigual;

2) gravidade potencial dos danos futuros : também é acentuada, atingindo dura e

permanentemente bens jusfundamentais, tal qual a vida;

3) reversibilidade : muitos dos danos causados são irreversíveis, tal qual ocorre,

insistimos, com a perda de uma vida – ou, pior ainda, de milhares, conforme se verifica ano

após ano no Brasil;

4) modificabilidade : sem embargo, as possibilidades de intervenção são inúmeras e

podem ser alicerçadas em estruturas já existentes, apenas com singelas melhorias,

exemplificativamente, em sinalização e iluminação, melhorias da conservação de vias, ou

mesmo mediante ações de fiscalização ancoradas em critérios geográficos;

5) alicerce normativo e bens jurídicos em colisão : aqui, sem prejuízo da

preservação de bens jusfundamentais, encontramos também alicerce, no tocante à realidade

brasileira, na Lei Federal 12.587, de 3 de janeiro de 2012, a qual institui a Política Nacional

de Mobilidade Urbana. Diploma esse que, apenas a título de exemplo, traz a segurança 646 Veja-se, por exemplo, trabalho realizado com a finalidade de avaliar a efetividade de medidas relacionadas com licenciamento de estabelecimentos que vendem bebidas alcoólicas e atividades criminosas, valendo-se de estratégias ancoradas em critérios geográficos : DAVIES, Pamela; FRANCIS, Peter; JUPP, Victor. Doing Criminological Research. Second Edition. London : SAGE, 2011, p. 119

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como um de seus princípios (artigo 5º, inciso VI), e impõe a elaboração de Plano de

Mobilidade Urbana, a ser integrado ao Plano Diretor Municipal. Inserindo-se a questão da

mobilidade na organização dos espaços (artigo 24, em especial em seu parágrafo 3º);

6) respeito ao existente : este também se mostra bastante intenso – nos deparamos

com estruturas viárias já consolidadas no tecido urbano. E, ainda, com direitos difusos de

todos os que fazem uso das vias de circulação, e que podem ser realçados ou vulnerados de

acordo com as intervenções, ou ausência destas, levadas adiante. Mostrando-se tarefa de

rigor buscar um adequado convívio da mobilidade com o risco, ou riscos diversos que

defluem da atividade de circulação.

7) efeito cumulativo : os riscos decorrentes da circulação de veículos se somam a

outros – ao lado da perda de vidas, temos a deterioração da atividade econômica, com

custos maiores e prazos mais dilatados, por exemplo, para a entrega de mercadorias. A

demora se soma à insegurança e, ainda, à poluição, à tensão, à redução da qualidade de

vida, à dificuldade de acesso e equipamentos de lazer e de cultura. Os riscos vão se

acumulando e reverberando em frentes das mais diversas, impondo um olhar

pluridimensional ao risco, com correlato dever de agir intensificado.

8) grau de renovação : talvez este seja um dos pontos mais significativos dos riscos

afetos ao trânsito, pois sua possibilidade de renovação é enorme – a cada dia se enveredam

pelas ruas e avenidas um número quase incontável de veículos, muitos novos, saturando

vias existentes. O risco, assim, se renova e se transforma a cada momento, e exige um

monitoramento próximo e contínuo;

9) critério inercial : caso absolutamente nada seja feito, as violações a bens jurídicos

certamente se manterão. Ou, pior ainda, se acirrarão, em face do critério anterior de

renovação; necessário que se aja, de forma célere e permanente;

10) ancoragem espacial: conforme já pontuado, a distribuição espacial desigual dos

acidentes e dos correlatos riscos bem demonstra a importância do aspecto espacial no que

diz respeito o trânsito. A clamar por intervenções baseadas em estratégias que levem em

conta essa distribuição espacial; mediante, ainda, intervenções nesses mesmos espaços;

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Conforme já asseverado, o nada fazer se mostra como providência que não pode ser

admitida, pois implicaria em tolerar-se a perda de um enorme contingente de vidas. Mas

tampouco a absoluta limitação se mostra viável. Sem embargo, persiste um risco a bens

essenciais que deve ser enfrentado de forma permanente. A ancoragem espacial é

inequívoca, como bem demonstra a desigual distribuição espacial dos acidentes, com

concentração enorme em determinados locais, como é o caso da cidade de Presidente

Dutra, no Estado do Maranhão. O risco deve ser enfrentado, mitigado, dentro do

mencionado continuum : nascendo um inequívoco dever de agir permanente para reduzir os

danos futuros, para salvar vidas. Na busca de um adequado convívio com o risco,

mantendo-o em patamares aceitáveis. Há de ser perseguido um ponto de inflexão, onde

convivam o direito de ir e vir e a livre iniciativa, com bens outros também jusfundamentais.

Num contexto que de adequada e transparente leitura e enfrentamento dos riscos a esses

direitos.

Possível prosseguir quase que indefinidamente analisando situações das mais

diversas. Mais importante, todavia, é reconhecer que a possibilidade de danos futuros está a

rondar, e que potencialmente atingirá direitos dos mais diversos. Riscos esses que, muitas

vezes, encontram solução mediante aproveitamento de estruturas e de iniciativas já

existentes, bastando sua articulação. Mas, para tanto, preliminarmente há o dever de buscar

enxergar esses riscos, suas características e o correlato risco de nada fazer. Risco, mais uma

vez pontuamos, muitos com clara ancoragem espacial – e com meios, também espaciais,

para sua gestão e adequado convívio.

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Conclusão

Encerramos nossa exposição rogando pela realização de singelo exercício que

guarda íntima relação com o risco em sua dimensão espacial : o de olhar para o futuro e

tentar vislumbrar cenários possíveis para a localidade em que cada um de nós moramos,

circulamos, trabalhamos, estruturamos nossas vidas, constituímos família. Diante das

decisões tomadas hoje, seja no âmbito público ou privado, que cidade o futuro reserva a

nosso filhos, netos, amigos e pessoas com as quais convivemos ? É essa a cidade que

desejamos ? Que cidade, se alguma, é desejada pelo Poder Público647 para os cidadãos ?

Num cenário pessimista, teríamos uma cidade na qual as intervenções no tecido

urbano seriam motivadas em grande parte pela reação a eventos danosos e fruto de pressões

específicas de determinados grupos mais articulados. Valores e interesses de cunho

econômico, ainda que essenciais e prestigiados pelo ordenamento, assumiriam uma

acentuada proeminência em detrimento muitas vezes de parcelas de população de menor

capacidade econômica ou articulação política. A busca frenética por resultados de curto

prazo pode desprezar as vocações da cidade e a força que reside em suas redes sociais. A

participação popular se enfraquece e a voz das gerações futuras não encontra interlocução.

O próprio poder público não adaptaria sua organização institucional, seja para

adequadamente ouvir os cidadãos, seja ainda para identificar e avaliar riscos dos mais

diversos numa sociedade cada vez mais complexa. Acirra-se o processo de segregação

social, especialmente das parcelas da população mais debilitadas economicamente, gerando

maiores conflitos. Não se enfrenta o risco mas tão somente se reage, demasiado tarde, a

eventos danosos já consumados. Reação que, muitas vezes, se vale quase unicamente de

instrumentos e institutos repressivos, de proibições e restrições, de afastar-se da

responsabilidade.

647 Poder Público que não existe como ente independente e que paira acima de todos nós, mas que se insere na sociedade em que vivemos e é um reflexo desta e dos valores que a permeiam.

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299

Referido cenário, arriscamos, ainda que carecedor de um maior rigor científico, se

revela preocupante. Continuaríamos a assistir, impávidos, às mortes e perdas patrimoniais

decorrentes de enchentes, deslizamentos de terra, da criminalidade, dentre outras. A

qualidade de vida diminui, acirram-se as dificuldades para a circulação. Um quadro de

poluição, de enfraquecimento de vínculos comunitários, de desprezo às vocações da cidade,

de conflitos, segregação e exclusão. Instala-se, assim, um verdadeiro ciclo vicioso : não nos

desvencilharemos, no futuro, dos perigos, pois não há uma adequada representação dos

mesmos, hoje, apta a nortear nossas decisões. Soam demasiado familiares as permanentes

lamúrias e manifestações de suposta indignação com as quais todos os anos nos deparamos,

por exemplo, no Brasil, na época de chuvas, quando um grande número de vidas é ceifado

em razão de enchentes e desabamentos. Muito se fala depois. Há que se agir antes.

Ao lado do cenário acima podemos conceber um outro, distinto. E devidamente

alicerçado no ordenamento jurídico, dotado da necessária densidade. Um cenário onde os

riscos em sua dimensão espacial são devidamente “enxergados”, contemplados e

permanentemente enfrentados, preservando-se bens jurídicos caros cuja perda, muitas

vezes, é irreversível.

Um cenário no qual se persegue uma cidade cuja estrutura é ancorada no direito e

nos valores por este prestigiados. Uma cidade onde as ações são precedidas de um

adequado diagnóstico, contemplando-se os potenciais danos futuros. O risco é devidamente

levado em conta na formulação dos planos e das ações estatais. As vozes das ruas e das

comunidades são escutadas e levadas também em conta, evitando-se o desfazimento de

laços sociais preciosos. A estrutura institucional do Estado se mostra adequada e receptiva

aos reclamos sociais. O agir se entranha de forma permanente na agenda tanto pública

quanto privada, mesmo em condições de incerteza. O acompanhamento das ações é

permanente e contínuo, jamais se perdendo de vista os direitos e valores essenciais em jogo.

Uma atuação, arriscamos, norteada pela lógica do risco, o qual já se imbrica de forma

indissociável na sociedade moderna.

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300

E nem há que se argumentar que eventual insuficiência legislativa ou de métodos

obstaria a adoção dessa lógica do risco no tocante a intervenções no tecido urbano.

Conforme discorremos, os métodos para o enfrentamento do risco em sua dimensão

espacial, alicerçados no direito, são inúmeros e dotados, via de regra, de suficiente

densidade a conferir aplicabilidade prática do enfrentamento do risco por meio de

intervenções territoriais alicerçadas em institutos do direito. Métodos que podemos

sistematizar, abreviadamente, nos termos abaixo.

Preliminarmente, o risco pode e deve ser levado em conta quando da realização de

intervenções no tecido urbano já numa fase inicial, que podemos denominar de diagnóstico.

Vicejam aqui institutos dos mais diversos, aptos a contemplar o risco e devidamente

traduzi-lo para o interior de planos e da gestão urbanística. Dentre tais institutos podemos

mencionar : a realização de estudos geológicos e hidrológicos em precedência às

construções, a elaboração de cartas de zonas inundáveis para sua ulterior inserção

obrigatória em planos de ordenamento do território, a exigência de cartografia de risco de

incêndio a ser integrada nos planos municipais, a confecção de estudos de impacto

ambiental e de impacto de vizinhança.

Da mesma forma, o risco se imbrica no planejamento e acaba por assumir uma

feição de verdadeiro princípio dessa atividade, qual seja, o princípio de consideração de

riscos, impondo que os terrenos se atenham à sua vinculação situacional, ou seja, que a

afetação urbanística dos solos seja a mais próxima possível da real aptidão dos terrenos que

a suportarão. Nesse contexto, devem os planos efetuar a adequada ponderação dos

interesses em jogo, estabelecendo, a título de exemplo, zonas de proteção ou zonas de risco,

assim como a previsão em abstrato de interdições, zoneamento, assim como a imposição de

restrições ou mesmo condições relativas à utilização, ocupação e transformação do solo.

Pode ainda o risco impor diretrizes a serem consideradas na elaboração de planos por entes

diversos .

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301

Planos, ademais, dotados de uma dinâmica apta a acomodar o risco e sua fluidez

mediante, por exemplo, previsões de suspensão dos planos municipais em face da

ocorrência de catástrofes, com imposição da obrigação de integrar em referidos planos as

disposições necessárias para fazer frente a riscos subsistentes. E, ainda, de sua obrigatória

revisão periódica, para que os mesmo não se distanciem da realidade dos fatos.

Planejamento que pode até mesmo assumir feições estratégicas, buscando

alternativas econômicas para áreas assoladas pelo esgotamento de recursos naturais. Ou,

ainda, de preservação do patrimônio histórico, tal qual se dá na Itália, com a normativa

relativa ao risco vulcânico do Vesúvio, com previsão de retirada de bens de relevância à

cultura para locais seguros e de reforço de peças que não podem ser removidas diante de

eventual erupção vulcânica. Ou a impor que se deixem deixar áreas outrora de várzea livres

e com vegetação para evitar inundações.

Igualmente, o risco se interpõe na gestão urbanística, exigindo uma visão que

inclua, mas também supere, a clássica remoção de limites, manifestando-se, por exemplo,

por meio de : exigência de planos de segurança para infraestruturas críticas; pela atividade

de controle da Administração quanto à legalidade das operações, inclusive com revogação

ou invalidação de licenças; até mesmo pela denegação de licença, ainda que sem explícito

respaldo legal, mas em benefício de bens jurídicos cuja natureza essencial e o potencial

dano a que estejam expostos assim o justifique; por meio do dever contínuo de fiscalização

das licenças expedidas;

Risco que também abre as portas para o exercício da autotutela, mediante a

demolição e até mesmo imposição de obrigações de fazer a proprietários de imóveis,

chegando-se, em situações extremas, à desapropriação.

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302

Mesmo após consumados eventos causadores de danos, o risco não se esvanece,

mas se renova e impõe ulteriores medidas e ações. Tal qual ocorre, por exemplo, com os

riscos sísmicos, para os quais oferece, a título de exemplo, a legislação italiana, uma série

de providências, dentre as quais : alojamento de urgência, reconstrução não apenas de

imóveis privados mas também públicos, com recuperação das funções destes, suspensão de

processos criminais, civis e administrativos, destinação a ser dada a material de demolição,

intervenções para a recuperação econômica, medidas de prevenção, com criação de um

fundo para tanto e previsão de edição de um plano nacional e até mesmo medidas de

prevenção à infiltração de atividades criminosas organizadas que porventura poderiam se

aproveitar da situação de calamidade.

Ainda nessa senda, tal qual ocorre em relação a ocupações em áreas suscetíveis a

deslizamentos e escorregamentos, mediante a mitigação dos riscos por meio de medidas

estruturais de contenção de encostas.

Até mesmo em relação a riscos antes ignorados mas recém “descobertos” (ou

melhor, recém representados), cabem medidas ao seu enfrentamento, seja no bojo de

procedimentos em curso648, ou mesmo em áreas já “consolidadas” por intermédio, por

exemplo, de medidas de reabilitação urbana, com compensações e aquisições de terras para

mencionado fim.

Na seara da responsabilização e da atividade sancionatória o risco se imiscui, seja

nas maiores possibilidades de responsabilização, inclusive sem culpa ou em razão do risco.

E, ainda, mediante a imposição de sanções tais como a aplicação de multas ou mesmo o

648 Veja-se, exemplificativamente : 1 (8) BauGB (Baugesetzbuch – Código Federal Alemão de Construções), que trata da possibilidade de modificação de planos de desenvolvimento urbano;

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cancelamento de autorização para funcionamento de empresa assim como do alvará de

licenciamento de estabelecimento que violem disposições sanitárias.

Risco, ademais, que certamente conta com uma clara dimensão espacial, a qual se

manifesta das formas mais diversas.

Como bem coloca o já mencionado Tanquerel649, para além dos tradicionais

elementos da incerteza e da possibilidade de ocorrência de um dano, o risco adquire um

nove elemento, qual seja, o espacial. Trata-se do risco decorrente, por exemplo, de uma

dada atividade (e.g. indústria). Ou, ainda, o risco que diz respeito a um dado local que exige

especial proteção, dada as suas características intrínsecas. Exemplos aqui não faltam, tal

qual o fornecido por Nucci650, relativo à ocorrência de inundações como fruto de

modificações do uso e ocupação do solo, em especial mediante a edificação em regiões de

várzea, suscetíveis a serem atingidas pela natural alta das águas.

Risco que tem não só sua gênese, mas também seu enfrentamento, a defluir da

organização dos espaços. E que não reverbera apenas em aspectos da ordem urbanística,

mas em direitos dos mais diversos. Conforme já acentuado, o risco em sua dimensão

espacial pode vulnerar o direito à vida, o direito à saúde, e outros direitos. E referida

dimensão espacial ganha uma importância ainda mais intensa à luz da apontada tendência

de concentração cada vez maior de contingentes populacionais em zonas urbanas, da

crescente complexidade da vida em tais núcleos e da intensificação de fenômenos

climáticos, tudo a convergir para uma crescente vulnerabilidade das pessoas que ali vivem e

649 TANQUEREL, Thierry. Introduction générale : les risques saisis par le droit de l’urbanisme. In : TANQUEREL, Thierry, JÉGOUZO, Yves, MORAND-DEVILLER, Jacqueline, Lebreton, Jean-Pierre. Risque et droit de l’urbanisme en Europe. Les cahiers du GRIDAUH. N. 20. Paris : GRIDAUH, 2011, p. 9 – 24.

650 NUCCI, Joao Carlos. Planejamento da paisagem e drenagem urbana : inundações no córrego do Arouche (São Paulo / SP). In : Temas de Direito Urbanístico 6. Coordenação : Jorge Luiz Ussier. Organização : Mário Augusto Vicente Malaquias. São Paulo : Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2011, p. 121 a 137.

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da necessidade mais premente de se antecipar a eventos desviantes futuros aptos a causar

danos, muitos dos quais irreversíveis.

O risco, ao imbricar-se com as normas de intervenção do tecido urbano, acaba por

impor uma lógica peculiar, um regime próprio, que podemos sistematizar nos termos que

seguem:

a) traz ênfase no procedimento decisório em si e no aspecto

procedimental : ou seja, clama por um claro registro acerca de como a representação

em si do risco foi construída, de forma a ser controlável intersubjetivamente (em

especial para propiciar um controle social e judicial);

b) impõe um dever de agir mesmo diante de um quadro de incerteza ou

mesmo de ignorância – o futuro não pertencendo ao “divino” mas fruto, sim, de

decisões tomadas no presente;

c) contrapõe a cultura clássica, liberal, de cariz reparatório e calçada na

autonomia, a uma cultura de precaução, voltada ao agir, e não ao reagir, ampliando-

se a margem de manobra do Estado, sem que isso signifique sufocar liberdades

individuais;

d) traz um dever de agir permanente, inclusive em relação a situações

legais e mesmo aquelas já “consolidadas” (cláusula rebus sic stantibus); não é

demasiado afirmar : o risco sempre se renova, se projeta ao futuro porvir, e impõe

decisões hoje para lidar com esse futuro; nesse diapasão, exige também um

permanente reavaliar;

e) abre as portas à reparação de danos respaldada não mais na culpa,

mas sim na solidariedade – permitindo a composição dos danos mesmo ante

situações onde perquirir-se a causalidade e em especial a culpa obstariam que

prejuízos suportados socialmente, inclusive aqueles decorrentes de atividades

lícitas, deixassem de ser indenizados;

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f) é norteado tanto por uma visão tanto sincrônica mas principalmente

diacrônica, efetuando a ponte, normativa, entre o presente e as expectativas futuras;

g) mas, acima de tudo, risco como postulado normativo a serviço dos

direitos em geral, propiciando-lhes uma proteção antecipada e suficiente, levada a

cabo dentro de um processo de ponderação, sem que haja sacrifício indevido de

direito algum, o que representaria um risco em si mesmo;

O risco, portanto, longe de ser algo a se eliminar, deve ser conhecido, reconhecido e

devidamente contemplado nas intervenções levadas a cabo no tecido urbano. Risco que,

consoante reiteramos, é elemento indissociável da sociedade moderna; que não pode ser

confundido com acontecimentos aptos a violar direitos, mas que necessariamente os

antecede; que não é fruto do divino ou de forças sobrenaturais mas encontra sua gênese nas

decisões humanas; que não pode e não se deixa aprisionar em definições estreitas mas é

sempre cambiante, exigindo sua permanente avaliação e acompanhamento; que ostenta uma

clara e dupla dimensão espacial : risco que, nesses termos, tem sua gênese na organização

territorial, explicitada também por sua distribuição geográfica desigual. Mas, ao mesmo

tempo, risco que também pode e deve ser enfrentado mediante intervenções na organização

territorial. Uma indelével dimensão espacial que não pode ser desconsiderada651 no

enfrentamento do risco.

Mas ainda mais importante do fornecer um rol de instrumentos amparados pelo

651 A negligencia do aspecto territorial no enfrentamento de riscos, mormente aqueles cuja gênese se encontra justamente na organização dos espaços pode viciar de forma inarredável esforços para dito enfrentamento. A concretização de direitos deve necessariamente ser levada adiante em frentes das mais diversas - nesse sentido, tratando de questões afetas à saúde pública, asseverando que a justiça apenas será alcançada caso se promova, conjuntamente, as diferentes dimensões do bem-estar, quais sejam : saúde, segurança pessoal, razão, respeito, vinculação emocional e autodeterminação (uma tradução livre dos termos, no original : “health, personal security, reasoning, respect, attachment and self-determination”). In : POWERS, Madison; FADEN, Ruth. Social Justice. The Moral Foundations of Public Health and Health Policy. New York : Oxford University Press, 2006, p. 16 - texto convertido ao formato eletrônico, em plataforma Kindle, da Amazon. A insuficiência em uma das dimensões certamente não permitirá que se alcance um nível mínimo de bem-estar. Da mesma forma, a promoção de direitos e os correlatos métodos à concretização destes hão de ser pensados e utilizados “em bloco” sob pena de insuficiência.

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direito para o enfrentamento do risco em sua dimensão espacial – instrumentos que têm,

certamente, um papel importante – ou uma taxonomia destinada a facilitar a leitura desse

risco é fazer o convite para assumirmos uma posição de observador de segunda ordem, tal

qual preconizado por Luhmann652. Afastemo-nos por alguns instantes de nosso quotidiano e

busquemos compreender a forma pela qual o risco vem sendo enxergado e tratado pelos

diversos atores sociais, revendo nossa forma de pensar. Mesmo quando concretizados

determinados danos, insistimos, o risco permanece à espreita, renova-se e potencialmente

representará perdas futuras ainda maiores caso negligenciado hoje. Sem essa adequada

compreensão do risco, à semelhança dos personagens da alegoria da Caverna de Platão,

continuará a sociedade aprisionada a uma situação de verdadeira ignorância, reagindo

impotente a sombras fugazes projetadas numa parede por determinados grupos ou veículos

de comunicação, mera dramatização de uma realidade mais rica e complexa. Que não

ajamos demasiado tarde, após a destruição de vidas e patrimônio, situações em que o risco,

longe de desaparecer, se renovou e ainda ostenta potencialidade de danos futuros. Não

enxergar o risco é, provavelmente, o maior risco de todos.

652 LUHMANN, Niklas. Risk : a sociological theory. With a new introduction by Nico Stehr and Gotthard Bechmann. Fourth printing. New Brunswick : Aldine, 2008. Veja-se, em especial o, capítulo 12.

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“O Globo” : edição digital : Sem transporte para Minha Casa Minha Vida –

disponível em : http://oglobo.globo.com/pais/sem-transporte-para-minha-casa-minha-vida-

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“The Economist” : France´s troubled suburbs. Forgotten in the banlieus –

disponível em : http://www.economist.com/news/europe/21572248-young-diverse-and-

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“The Economist” : Cholera and the super-loo – disponível em :

http://www.economist.com/node/21524828