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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica O corpo e seus processos de comunicação na constituição do significado musical Mariá Noronha Portugal São Paulo 2015

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica

O corpo e seus processos de comunicação na constituição do significado musical

Mariá Noronha Portugal

São Paulo 2015

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Mariá Noronha Portugal

O corpo e seus processos de comunicação na

constituição do significado musical

MESTRADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Comunicação e Semiótica, sob a orientação da Profa. Doutora Christine Greiner.

São Paulo

2015

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Banca Examinadora

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Dedico este trabalho a Patrícia Noronha, que me ensinou a dançar,

e a José Geraldo Portugal, que me ensinou a meditar.

(ainda aprendo)

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AGRADECIMENTOS

A Christine Greiner, que, com sua orientação em seu sentido mais pleno, me mostrou o que já estava lá. Assim era no princípio, metáfora pura suspensa no ar... 1

A Helena Katz e Wania Storolli, pelas preciosas palavras que me fizeram

acreditar no que já estava lá. Desde o princípio. A Patrícia Noronha, Cristiane Paoli Quito, Diogo Granato, Morena

Nascimento, Key Sawao, meus mestres em dançamúsica, pelos ensinamentos e voos, primeiros de muitos.

A José Luiz Aidar Prado, Rogério da Costa, Acácio Piedade, Fernando Iazzetta, Felipe Castellani, Michelle Agnes, Isabel Fragelli, Gisele Calazans, Ana Noronha, Maria Carolina Oliveira, Fernando Sciarra, Ruy Luduvice, Shannon Garland, Amílcar Packer, Ana Dupas, Cida Bueno, Maurício Gargel, Luisa Barreto, André Fogliano, Andrea Kaiser, Natalia Mallo, Ramiro Murillo, Anna Turra, Filipe Franco, e tantos outros professores-colegas-amigos que participaram com revisões, traduções, indicações, dicas e ensinamentos fundamentais a este trabalho.

A José de Holanda, Haroldo Saboia, Henrique Cartaxo, Julia Monteiro, Otávio Dantas, Nath Calan e Osmar Zampieri, pelas imagens.

A Rafael Menezes Bastos e Silvia Beraldo, pelo acolhimento. A Maria Beraldo Bastos, porque o amor é uma obra de arte colaborativa.

À minha família (amigos inclusos), pela compreensão e carinho.

A Arrigo Barnabé e aos crocodilos, professores, e à Quartabê, colegas da

excursão pelo apaixonante abismo. Aos dançarinos e aos músicos: estamos no mesmo barco.

                                                                                                               1 TATIT, L. O meio. Em: LUIZ TATIT. O meio. Dabliú Brasil, p2000. 1CD. Faixa 1

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O CORPO E SEUS PROCESSOS DE COMUNICAÇÃO NA CONSTITUIÇÃO DE

SIGNIFICADO MUSICAL

Mariá Noronha Portugal

RESUMO

Esta dissertação de mestrado nasce de experiências práticas de improvisação e

composição que questionam paradigmas presentes tanto na história da

linguagem musical como no senso comum, como, por exemplo, a autonomia da

música e sua comunicação exclusivmente sensível. Ao afirmar a hipótese de que

toda experiência musical constitui-se corporalmente e que é a partir dessa

conexão que emergem os seus significados, esta pesquisa traz para o campo

musical discussões que aliam teorias da comunicação e ciências cognitivas

(teoria corpomídia), insistindo na necessidade de incluir o corpo nestes debates.

Para tanto, são analisadas cinco experiências artísticas realizadas pela autora

nos últimos 13 anos, relacionadas a um escopo teórico que evidencia: a

fisicalidade, a referencialidade e a espacialidade como elementos da experiência

musical (espectromorfologia de Smalley, 1997); e a metáfora e o significado

corporificado como fundamentos da comunicação (Lakoff e Johnson, 1980; Katz

e Greiner, 2005). O resultado esperado é um levantamento preliminar de

questões que apontem para novas possibilidades no âmbito da criação e da

comunicação musical.

Palavras-chave: Linguagem musical. Metáfora. Corpomídia.

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THE BODY AND ITS PROCESSES OF COMUNNICATION IN THE

CONSTITUTION OF MUSICAL MEANING

Mariá Noronha Portugal

ABSTRACT

This Master’s thesis arises from practical artistic experiences in improvisation

and composition which question extant paradigms both of the history of musical

communication as well as of common knowledge. Such assumptions include the

autonomy of the musical text and the notion that musical communication is

exclusively sensory. In affirming the hypothesis that all music experience is

embodied and that musical meaning emerges from this connection to the body,

this research brings to the musical field a discussion which combines theories of

communication and cognitive sciences (corpomidia theory), stressing the need to

include the body in these debates. To this end, five of the author’s artistic

experiences over the last thirteen years are analyzed, in addition to a theoretical

corpus that considers both physicality, referentiality and spatiality as elements of

musical experience (Cook, Smalley); as well as the importance of conceptual

metaphor and embodied meaning as foundations of communication (Lakoff and

Johnson, Katz and Greiner). The result raises preliminary questions that suggest

new possibilities in the context of artistic creation and musical communication.

Keywords: Music Language. Metaphor. Corpomidia

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO: ALGUNS PONTOS DE PARTIDA 9

CAPÍTULO 1: FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA DAS PRINCIPAIS QUESTÕES 26 1.1 O SIGNIFICADO MUSICAL EMBASADO NO CORPO 26 1.2 A EMERGÊNCIA DA CORPORALIDADE NA MÚSICA DO SÉCULO XX 36 1.3. O PROBLEMA DO CONCEITO DE GESTO MUSICAL 40 1.4 EM BUSCA DE UM MÉTODO DE ANÁLISE BASEADO NO CORPO 45

CAPÍTULO 2 - EXPERIMENTOS 58 2.1 DESTE MEU TODO TEU SER 63 2.2 IMPROVISOS E PESSOAL E INSTRANSFERÍVEL 66 2.3 ORI JAM – UMA RAPSÓDIA PARA ANTES DA MEIA-NOITE 74 2.4 LADIES – DA INOCÊNCIA À CRUELDADE 76 2.5 EXPERIÊNCIA 3 85

CONSIDERAÇÕES (PROVISORIAMENTE) FINAIS 87

REFERÊNCIAS 92

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INTRODUÇÃO: alguns pontos de partida

Esta pesquisa surge de duas experiências distintas: a prática de

composição de música para e com dança; e minha formação como compositora,

desenvolvida dentro do meio musical acadêmico autodenominado “erudito”.

Nos últimos anos, meu trabalho com dança seguiu dois caminhos

diferentes: em alguns casos, a música era composta à parte, antes ou depois da

composição coreográfica, com maior ou menor interação com o diretor e os

dançarinos; em outros, a improvisação acontecia junto aos dançarinos,

tornando-se o método principal de composição. Em ambas as situações, era

comum que música e dança se valessem dos mesmos procedimentos

composicionais; mas era sempre na improvisação que isso ficava mais latente.

Neste caso, os procedimentos organizavam a um só tempo as dinâmicas do

corpo e do som, explicitando, em cena, o poder da música e da dança de criar e

manipular significado conjuntamente, numa troca dinâmica entre si e com o

contexto.

Mas como este significado é construído? Onde ele surge e do que é feito?

O que faz com que dança e música pareçam atadas intimamente, ao mesmo

tempo em que esse laço pode ser alterado, contestado, rompido e refeito na

criação artística? Se o significado é criado em uma aliança com o contexto, por

que razão as correspondências entre som e corpo parecem soberanas? Até que

ponto estas correspondências seriam instáveis, uma vez que dependem das

circunstâncias, e até que ponto tornam-se estáveis? Não estariam estas

relações implicadas na composição e na improvisação de música com dança,

mesmo que o compositor ou os improvisadores não quisessem levá-las em

consideração? Não estariam calcadas, em realidade, nas relações mais íntimas

e primeiras entre som e corpo, ou seja, em relações que antecedem a própria

experiência musical? Ou ainda: não seria a própria música fundamentada na

experiência de um corpo sonoro imerso num ambiente igualmente sonoro? Não

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estariam dança e música, mesmo quando não estão juntas, manipulando

significados em comum?

Essas são algumas das perguntas que surgiram da minha experiência de

criação e que suscitaram as seguintes hipóteses: 1) a experiência e o significado

musicais estão fundamentados em algo anterior à estruturação da linguagem

musical: 2 são formados, primeiramente, por padrões experienciais de

movimento, constituídos no corpo a partir de suas contínuas transações com o

ambiente. Tais padrões experienciais são a base mais profunda da própria

música- sem estes padrões ela não existiria; 2) estes padrões se estabelecem

de maneira intermodal, pertencendo ao domínio da percepção do som, das

imagens e do movimento do corpo; portanto, eles estão implicados na percepção

auditiva, mas não são limitados a ela; 3) estes padrões possuem uma certa

estabilidade, pois formam-se a partir das nossas experiências mais primárias

com som e movimento, mas suas combinações são altamente dinâmicas e

processuais, dependendo da interação do corpo com outros corpos no ambiente.

Para testar as hipóteses, decidi reunir práticas artísticas e abordagens

teóricas que apontassem caminhos para a fundamentação de uma ideia de

música como algo que se dá no corpo e a partir do corpo. Acredito que as

questões envolvidas nesta pesquisa dizem respeito a toda experiência artística,

e que essas experiências, por sua vez, representam um poderoso tubo de

ensaio de processos de significação mais gerais. Portanto, gosto de pensar que

este trabalho não está limitado à criação de significado através da música, da

dança ou mesmo da arte, mas que diz respeito também à própria maneira de

darmos sentido a nós mesmos e ao mundo.

                                                                                                               2 Há uma vasta bibliografia – p. e. Meyer (1956); Nattiez (1987, 1990); Orlov (1981); Mcmullen e

Saffran (2004) etc. – que discute até onde a música pode ser considerada uma linguagem. Esta discussão, na verdade, está baseada em outra, anterior, sobre o que é linguagem de fato. Abordagens fortemente calcadas na linguística tendem a excluir a música desta categoria; já abordagens próximas da etologia e das ciências cognitivas tendem a ver a linguagem como algo mais amplo. Neste trabalho, utilizar-me-ei da segunda delas, assumindo que a música é uma linguagem, apesar de não ser uma linguagem referencial tal como a linguagem verbal.

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Se na criação com dança os processos de significação entre corpo e som

se faziam evidentes, na minha educação musical formal eles pareciam ser

deliberadamente ignorados. Estava em contato com uma escola de cunho

fortemente formalista, ainda impregnada pela ideologia do serialismo do início do

século XX, com foco quase exclusivo na análise melódico-harmônica de

partituras. Mesmo quando se falava em movimento musical – uma metáfora,

aliás, essencial para o discurso musical – suprimia-se desta metáfora seu viés

corporal. O pensamento de dentro deste ambiente musical, imbuído pela ideia

de uma música pretensa e idealmente “cerebral” – a música de concerto –

estaria em oposição a uma música de fora, “corporal” – o jazz, a música

“folclórica”, a música de mercado, ou seja, tudo o que era colocado sob o

mesmo rótulo de “música popular”. A consideração do corpo como algo

secundário e até nocivo (pelo menos à música que aquele meio considerava

válida) tornava muito mais difícil a pesquisa a respeito de seu papel na

experiência musical.3 Era uma escola cuja tradição estava fundada na ideia de

autonomia musical: a ideia de que a música é completa e autossuficiente em sua

estrutura, possuindo um fim em si mesma.

Esta ideia encontra-se disseminada em parte do pensamento musical e

artístico, em especial no meio autointitulado “erudito”, mas também no senso

comum e em parte do meio acadêmico da música chamada de “popular”. Traz

em si duas dicotomias implícitas: a dicotomia mente/corpo – na medida em que

restringe a experiência artística ao plano intelectual – e a dicotomia

corpo/ambiente – na medida em que considera a arte como tendo um fim em si

                                                                                                               3 É significante, por exemplo, o fato de a Sagração da Primavera (1913), de Stravinski e Nijinski,

ter sido analisada em sala de aula incontáveis vezes ao longo da minha graduação, sem ao menos uma vez ser mostrado um só registro de qualquer uma das 185 coreografias (cf. JORDAN; NICHOLAS, 2007) dedicadas à peça, nem ser feita qualquer menção ao balé original de Nijinski. Tampouco me lembro de ter ouvido seu nome sendo citado. É sabido que a Sagração da Primavera foi concebida como um balé, e criada através do trabalho colaborativo de ambos os artistas – por mais que Stravinski negasse isso futuramente. (COOK, 1998, p. 196-214).

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mesma (a arte pela arte), e, portanto, livre de qualquer interferência contextual.4

Assume-se, assim, que a obra artística possui fronteiras bem definidas, e

portanto um “dentro” e um “fora”; que o significado é algo guardado “dentro” da

obra artística; que ele não pode estar ao mesmo tempo “dentro” e “fora”; e que

corre o risco de ser diluído ou mesmo perdido uma vez “fora”. A ideia de

autonomia internaliza o que Johnson e Lakoff (1980, 1999) chamam de esquema

do recipiente, que será explicado nos capítulos seguintes.

É evidente que este tipo de pensamento atrapalha qualquer especulação

a respeito do papel do corpo nos processos de comunicação e significação. Por

isso, faz-se necessário ter como ponto de partida a desestabilização da ideia de

autonomia da obra de arte. Para essa tarefa, é preciso primeiro identificá-la,

conhecendo um pouco da sua origem e seu desenvolvimento histórico. Neste

sentido, apresento a seguir uma breve retrospectiva, sobretudo para evidenciar

como a ideia de autonomia foi disseminada, modificando tanto a relação entre

dança e música quanto a experiência musical e artística em geral.

A ideia de autonomia da obra de arte é algo típico do pensamento

artístico eurocêntrico. Surgiu por volta do século XVII (informação verbal)5, mas

consolidou-se no romantismo do século XIX, quando a música de concerto

burguesa tornou-se seu símbolo. Pela primeira vez, a música instrumental

assumia um papel preponderante em relação à música vocal e programática, à

ópera e ao balé. Se a presumida ausência de elementos externos6 havia sido o

motivo para que a música instrumental fosse outrora considerada uma

“modalidade deficitária” da prática musical, foi também o que a tornou

“paradigma estético – a essência do que é realmente a música” (DAHLHAUS,

1999, p. 10, grifo meu, tradução minha), chegando a sobrepujar a pintura, a

                                                                                                               4 Se entendermos que o fluxo entre corpo e ambiente é um fluxo de informação, e que tanto

corpo quanto ambiente são formados, a cada instante, por esse fluxo, então vemos que a dicotomia corpo/ambiente é análoga à dicotomia texto/contexto.

5 Informação fornecida pela Profª. Lia Tomás no curso de Estética Musical, durante a graduação em Música na UNESP, em 2007.

6 Inclui-se, aqui, a dança, a palavra, a narrativa, a referencialidade a elementos considerados extra-musicais, além de qualquer tipo de funcionalidade que a música poderia vir a ter.

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escultura, o teatro e mesmo a filosofia em importância. A ideia de música

absoluta – termo cunhado por Wagner e utilizado na época como sinônimo de

música autônoma, ou música instrumental – foi “uma ideia de todo o século XIX,

que representou um sentir artístico de toda uma época” (p. 139, tradução

minha).

A mais influente asserção da ideia de música autônoma encontra-se no

livro O Belo Musical (1ª edição, 1854), do crítico alemão Eduard Hanslick. Nele,

Hanslick (2011, p. 41)7 radicaliza a ideia, afirmando que a essência da música

consistiria apenas em “formas musicais em movimento”. Essa famigerada frase

refere-se, exclusivamente, ao movimento da estrutura musical (p. e. o

movimento melódico ou o movimento harmônico, rítmica etc.) e, portanto, deixa

de lado qualquer conexão com nossa experiência cinestésica mais concreta: o

movimento do corpo.

Se agora se perguntar o que se há de expressar com este material sonoro, a resposta reza assim: ideias musicais. Mas uma ideia musical trazida inteiramente à manifestação é já um belo autônomo, é fim em si mesmo, e de nenhum modo apenas meio ou material para a representação de sentimentos e pensamentos […]. (HANSLICK, 2011, p. 41).

A música absoluta seria linguagem e substância em si mesma

(DAHLHAUS, 1999) e, justamente por isso mesmo, música em seu mais alto

grau de desenvolvimento. Mas só alcançaria essa importância na medida em

que estivesse supostamente fechada em sua própria forma; livre, portanto, de

qualquer função e de qualquer influência de outras artes, do contexto, da palavra

e do corpo. É a música das salas de concerto – como bem define Cook (1998, p.

vii, tradução minha), “câmaras anecóicas de baixa qualidade”, um ambiente

                                                                                                               7 O conceito de forma em Hanslick é paradoxal, pois se refere, ao mesmo tempo, à forma e ao

conteúdo. De nenhuma maneira ele se restringe à forma aparente. Para uma explicação aprofundada do conceito de forma em Hanslick, bem como da autonomia musical, ver Dahlhaus (1999).

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pretensamente isolado de qualquer intervenção externa, em que o ouvinte ideal

deve permanecer em silêncio absoluto, extático e estático.

A ideia de música absoluta possuía um teor inegavelmente libertário:

surgiu como um ímpeto de emancipação da música de seu caráter funcional em

relação à religião e ao convívio social, bem como de emancipação do artista em

relação às exigências de um patrão ou cliente.8 (DAHLHAUS, 1999). Entretanto,

por ser um autêntico produto de uma cultura baseada na visão descorporificada

da mente e da linguagem, mostrou-se como uma poderosa afirmação da

dicotomia mente/corpo.

Em sua busca pela transcendência, a música absoluta colocou a maior importância nas mais elevadas faculdades da mente. Neste sentido afirmou a ideologia do dualismo mente/corpo […] funcionando portanto como um meio engenhoso de suprimir o corpo […]. Chamo-o de engenhoso porque o fez por trás de uma aparência de uma manifesta autonomia com respeito à referencialidade social subjacente, e desta forma fez seu programa muito mais sutil e difícil de identificar. (CITRON, 1993, p. 142).

Ao mesmo tempo em que suprimia o corpo, a ideia de obra de arte

autônoma partia do princípio de que a significação só poderia acontecer no

domínio das palavras e do pensamento proposicional. Assim, para justificar uma

suposta inefabilidade da linguagem musical, a ideia de obra de arte autônoma

terminava por negar à música sua própria capacidade de produzir significado.

Além da música instrumental, a proposta de autonomia da obra de arte

expandiu-se por outras áreas, tais como a dança, o teatro e as artes visuais. Não

por coincidência, foi no século XIX que o balé se tornou uma atividade autônoma

em relação à ópera e soberana em relação à música. A música utilizada nos

balés assumia um papel subserviente, mesmo quando o compositor já possuía

                                                                                                               8 Beethoven era a personificação do gênio criativo da arte autônoma – tanto quanto é

considerado o primeiro compositor livre das exigências servis que recaíam sobre Mozart e Haydn, seus antecessores mais próximos. Sobre esse assunto, ver Elias (1995).

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algum reconhecimento.9 Sua falta de inovação era algo desejável, pois, segundo

Sally Banes (1992, p. 311), sua função consistia apenas em fornecer “uma base

rítmica clara e uma linha melódica que desse contorno aos fluxos de energia e

expressão dos dançarinos”.

É presumível que a relação soberana da dança sobre a música deixaria

descontente boa parte dos compositores identificados com a ideia de autonomia

musical. Para eles, a presença de outra linguagem significava o perigo da perda

de liberdade e identidade. Os compositores ditos autônomos eram os

considerados “de primeira linha”; os que tinham que lidar com contextos de

interação entre linguagens e entre criadores seriam compositores menores, ou

então frustrados. Essa discriminação ainda aparece, até hoje, nos ambientes

musicais permeados pela ideia de autonomia.

Na medida em que se estabelecia a ideia de autonomia da obra artística,

esta foi sendo encarada como um território de disputa, em que uma linguagem

necessariamente deveria submeter-se à outra. Dependendo do contexto, dança

ou música ditariam as regras da relação. Segundo Cook (1998), esta metáfora

bélica aparece, até os dias atuais, na maior parte da literatura a respeito da

interação entre linguagens artísticas.

Se os compositores adeptos da ideia de música autônoma viam sua

degradação na união da música com outras linguagens, Wagner situava-se em

seu lado radicalmente oposto:

A música absoluta é uma música separada de suas raízes, que são a linguagem e a dança. […] Para ser verdadeira música no sentido pleno da palavra, a harmonia, a trama sonora, devem manter-se unidas ao ritmo e ao logos, o que quer dizer: unida à palavra e com um movimento ordenado. E isso significa para Wagner: no drama musical a música atua em conjunto com a ação cênica – como movimento corporal – e com o texto poético,

                                                                                                               9 Era o caso, por exemplo, do russo Pyotr Ilych Tchaikovsky, que frequentemente recebia

encomendas de música para balé. Apesar de já ser conhecido e respeitado como compositor sinfônico, o coreógrafo Marius Petipa não hesitou em ditar requisitos completos para a música de A Bela Adormecida (1890), os quais Tchaikovsky aceitava sem nenhuma reclamação. Este era o método padrão da colaboração entre compositor e coreógrafo. (BANES, 1992, p. 311).

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e só assim alcança essa plenitude que lhe é negada como música absoluta. (DAHLHAUS, 1999, p. 23-4, grifo meu, tradução minha).

De acordo com Wagner, música, movimento corporal, texto, cenário e

figurino estariam unidos em todas as suas potências em torno da narrativa

dramática de um mito universal, aos moldes das tragédias de Ésquilo. O

compositor sintetizou este ideal no conceito de “obra de arte total”

(Gesamtkunstwerk), que foi altamente disseminado entre os artistas da virada do

século XIX para o XX, infiltrando-se, também, na dança, na arquitetura, na

música e no teatro modernos.

Cada um adquire a capacidade de ser e fazer o que, de suas próprias essências, desejam ser e fazer. Cada uma, até onde sua própria capacidade termina, pode ser absorvida na outra […], provendo sua própria pureza, liberdade e independência assim como ela é. (WAGNER apud KOSS, 2009, p. xii, tradução minha).

A contradição dentro do próprio conceito de obra de arte total fica

evidente aqui, nas palavras de seu bastião. O Gesamtkunstwerk reunia em si os

conflitos entre controle e independência, autoridade e descentralização, pureza e

contaminação, totalidade e fragmentação, que futuramente perpassariam os

modernismos. (HARVEY, 1992). Para Wagner, a ideia de autonomia da obra de

arte não era uma mentira a ser rechaçada, mas uma verdade a ser integrada na

ideia de Gesamtkunstwerk – e, na prática, um problema a ser solucionado. Se a

música deveria ser pura, livre e independente, ao mesmo tempo deveria ser

absorvida nos outros elementos envolvidos no trabalho para que houvesse uma

unidade do todo.

Entretanto, o Gesamtkunstwerk foi sendo, na prática, interpretado da

mesma maneira que qualquer outra interação entre linguagens artísticas: como

um lugar em que a primazia de uma linguagem sobre as demais se fazia

necessária. Comumente, era a música que centralizaria o controle dos diferentes

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elementos envolvidos no trabalho artístico, fornecendo a desejada unidade à

obra.

Adolphe Appia, famoso cenógrafo das óperas de Wagner, afirmava que o

drama deveria ser corporificado diretamente pela dança.10 Segundo Appia (apud

ROGERS, 1969, p. 25-6), “a vida do corpo tende à anarquia, e então à feiura; é a

música que deve libertar o corpo, impondo a ele sua disciplina.” Se no

Gesamtkunstwerk o corpo era algo fundamental, era apenas na medida em que

esse corpo estaria devidamente controlado. A obra de arte total tentava reatar o

laço entre música (disciplina) e corpo (anarquia) negado pela música absoluta,

mas, por estar calcada na dicotomia mente/corpo, também acabava operando

numa lógica que buscava tirar o papel do corpo da construção ativa de

significado.

Influenciada tanto pela ideia de música absoluta quanto pelo conceito de

Gesamtkunstwerk, a arte moderna herdava do século XIX o modus operandi da

primazia na relação entre música e dança. Ora a música passava a ter papel

preponderante, como nas interpretações de clássicos do repertório por Isadora

Duncan (BANES, 1992) ora era comissionada para compositores, o que

consistia em trabalhar no estúdio juntamente com o coreógrafo ou em cima da

coreografia já pronta, encontrando os repousos e pontos fortes e compondo

música que encaixasse com uma dança já estruturada. Assim trabalhavam Louis

Horst, Lou Harrison, o jovem John Cage e Henry Cowell. (MILLER, 2002). O

                                                                                                               10 Para isso, Appia lançava mão da recém-criada euritmia, concebida pelo seu parceiro Émile

Jaques-Dalcroze. Inicialmente desenvolvida para instrumentistas, a euritmia consistia em um programa pedagógico que envolvia ginástica e estudo do ritmo e visava a resposta instantânea do corpo ao estímulo musical, minimizando o intervalo entre ambos. Seu objetivo seria dar respostas imediatas, pré-conscientes ao estímulo musical. Nas palavras de Dalcroze (apud COPELAND, 2004, p. 137, tradução minha), “o objetivo não é interpretar a música, mas traduzi-la numa apropriação corporal direta”. Como Copeland (2004) nos aponta, a euritmia de Dalcroze exerceu grande influência em Isadora Duncan e Mary Wigman (que teve aulas com Dalcroze em Hellerau), bem como na dança moderna em geral, além de ser utilizada para a superação de dificuldades dos bailarinos com obras de extrema complexidade rítmica, como, por exemplo, na montagem pelos Ballets Russes da Sagração da Primavera (p. 137). Se a euritmia de Dalcroze foi, sem dúvida, uma abordagem pioneira do papel do corpo na cognição musical, aqui ela seria usada como ferramenta de uma política disciplinar do corpo.

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  18  

papel de compositor ou músico para dança continuava sendo considerado de

segunda linha – muitas vezes, era apenas um trabalho para pagar as contas.

Foi o próprio Cage que, junto a Cunningham, rompeu com essa dinâmica,

propondo algo até então inédito: a independência total entre música e dança,

tanto nos processos criativos quanto em cena. Seus primeiros trabalhos já

apontavam uma maneira diferente de colaboração, tal como Cage já havia

testado com outros artistas. Eram colaborativos no conceito e na forma geral,

mas Cage e Cunningham desenvolviam métrica e materiais independentemente.

(pos. 3414). Nos trabalhos feitos a partir dos anos 1950, música e dança

tornaram-se totalmente independentes, seguindo um caminho sem volta.11

Essa relação de coexistência sem codependência entre dança e música

em Cage e Cunningham surgiu, segundo o próprio Cage, a partir de um episódio

que ele relatou em diversas conferências: ao ver, ao som de uma jukebox, uma

aula de natação através da janela de um café, Cage notou que a canção tocada

se encaixava perfeitamente no movimento dos nadadores. (LUCIER, 2012).

Percebendo que as associações entre dança e música eram aleatórias e além

das possibilidades de controle dos criadores, Cage e Cunningham foram

desistindo cada vez mais das estruturas micromacrocósmicas que utilizavam

nas suas obras colaborativas iniciais12, vez por outra tornando o próprio acaso

um agente criador, como, por exemplo, em seus experimentos com o I Ching.13

                                                                                                               11 A única exceção desta regra talvez seja Variations V (1965), que buscava, através de uma

parafernália tecnológica, a cooperação intrincada entre compositores, dançarinos, artistas visuais e engenheiros, no que Gordon Mumma chamou de “a primeira obra wagneriana que Cage fez” (MUMMA, 2000 apud MILLER, 2002, pos. 3468, tradução minha). A música de Variations V era selecionada pelos dançarinos através de sistemas de antenas espalhadas pelo palco, de funcionamento semelhante ao do Theremin. A dança, portanto, influenciava diretamente na música, mas de forma aleatória– o dançarino não sabia qual som exatamente ele estava escolhendo.

12 As formas micromacrocósmicas de Cage consistiam em estruturas nas quais as durações das seções maiores da peça espelhavam “aquelas de suas partes constituintes” e que, em seus trabalhos com Cunningham, coordenavam tanto música quanto dança. (MILLER, 2002, pos. 3393).

13 Nas palavras de Cunningham: “John Cage e eu nos tornamos interessados no uso da sorte nos anos 50 […], [com a] publicação do I Ching, o livro chinês das mutações, a partir do qual você pode tirar sua fortuna: os hexagramas. Cage o trouxe à sua maneira de compor na época; ele usava a ideia de 64 – o número de hexagramas – para dizer que você teria, por exemplo,

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  19  

Depois disso, música e dança coexistiriam sem nenhuma relação de

interdependência.

Para Cage e Cunningham, essa era a única alternativa para que música e

dança possuíssem, de fato, igual importância e qualidade dentro de um mesmo

trabalho, chegando assim a seus propósitos artísticos singulares. A música não

mais forneceria estrutura rítmica para a dança, nem um contorno melódico que

conferisse qualidades expressivas. E coreografia não forneceria diretrizes para a

composição musical, tampouco se limitaria a ilustrá-la de maneira supostamente

“literal”.

Nunca a autonomia das linguagens havia sido tão radicalizada. Obras

como The Seasons (1947), Aeon (1961) e Roaratorio (1983) são alguns dos

muitos exemplos desta que virou, inclusive, prática habitual de colaboração entre

Cunnningham e seus demais parceiros. Na maior parte das vezes, os bailarinos

conheciam a música, o cenário e o figurino no último ensaio ou mesmo no dia da

estreia do trabalho. Para os artistas em cena, seria uma experiência totalmente

oposta da que se via no balé e na dança moderna. Como diz Copeland (2004),

parafraseando Baudelaire, eles deveriam se agarrar a uma “inabalável resolução

de não serem comovidos” (l’inébranlable résolution de ne pas être ému).14

A princípio, a independência entre música e dança operada por Cage e

Cunningham aparenta ser apenas uma recusa, uma desistência da interação –

tal como afirma Cook (1998). Mas é, na verdade, uma afirmação veemente de

seu potencial de significação. A chave para esse entendimento é o episódio

supracitado da aula de natação. Cage e Cunningham perceberam que o

significado não seria algo inerente a uma suposta “essência” das linguagens,

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                         64 sons. Você poderia jogar [as moedas, as varetas] […] para definir, pela sorte, qual som viria primeiro, e depois jogar de novo para decidir qual som viria depois. Ao invés de tentar descobrir o que você pensa que deveria vir em seguida […] o que o I Ching sugeriria? Bom, eu levei isso também para a dança.” (ATLAS et al, 2001, tradução minha).

14 Aqui, creio que a tradução mais imediata para ému seja emocionado. Entretanto, tomei a liberdade de optar pelo menos óbvio comovido para frisar a ligação com o movimento, que é evidente no francês e principalmente no inglês moved. Emocionado também possui a mesma ligação, mas creio que seu uso mais corriqueiro não nos ajude a percebê-la. O uso de comovido foi sugestão de Isabel Fragelli.

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  20  

mas construído na negociação entre essas linguagens e dentro de um contexto.

Percebendo que a fronteira entre textos e contexto era flexível e maleável,

eliminaram a ideia do significado como algo estático, implodindo a noção de uma

substância contida dentro do recipiente da linguagem. A partir de então, a

relação entre música e dança tornou-se, necessariamente, uma questão que não

deveria ser solucionada, mas sim explicitada em cena.

A declaração de independência entre dança e música por Cage e

Cunningham é, a um só tempo, a eliminação da disputa de território entre

linguagens, a vitória da estética sobre a poiética como campo de criação de

significado e a dissolução da figura do autor moderno que havia sido criada e

fomentada desde o romantismo, intimamente ligada à ideia de obra de arte

autônoma.

[Daisetz Teitaro Suzuki] então falou de duas qualidades: desimpedimento (unimpededness) e interpenetração. Desimpedimento significa que em todo o espaço cada coisa e cada ser humano está no centro e ainda que cada um no centro é o mais honrado de todos. Interpenetração significa que cada um desses mais honrados de todos está se movendo em todas as direções, penetrando e sendo penetrado por todos os outros, não importa o tempo ou o espaço. (CAGE, 1961, p. 48, tradução minha).

Essa fala de Suzuki era comumente citada por Cage e Cunningham

acompanhada de outra, atribuída a Albert Einstein: “Não há pontos fixos no

espaço.” (DICKINSON, 2014, p. 59, tradução minha). Ambas ilustram bem o que

o compositor e o coreógrafo almejavam em seus trabalhos colaborativos. Para

uma tradição artístico-musical fundada na ideia de autonomia, acostumada a

pensar a colaboração através da primazia de uma linguagem sobre as outras,

era inimaginável que desimpedimento e interpenetração pudessem ser

características de uma mesma obra artística. Esta era, sem dúvida, uma visão

revolucionária.

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Esta escolha metodológica também pode ser reconhecida nas primeiras

apresentações do Judson Dance Theater: um grupo formado em 1962, em Nova

York, por dançarinos, músicos e artistas visuais que eram alunos do músico e

coreógrafo Robert Dunn. Dunn havia estudado com Cage e aplicado vários de

seus princípios composicionais em suas aulas. Muitos integrantes do Judson

Dance Theater também haviam estudado e trabalhado com Cunningham.

Em sua primeira apresentação, em 1962, o Judson Dance Theater testou

inúmeras possibilidades de interação entre música e dança: música

comissionada, improvisada, incidental ou executada pela plateia; música

composta por coreógrafos; coreografia composta por compositores; apropriação

de peças de John Cage e Erik Satie; canções do rock ’n’ roll; dançarinos

cantando, grunhindo e falando; dança sem música; e até música sem dança. O

Judson Dance Theater fazia no palco uma profunda reflexão crítica a respeito do

papel da música na dança, bem como da colaboração em si. Se (e o quanto)

uma exerceria domínio sobre a outra, ou vice-versa, seria uma escolha

deliberada do artista. Quando falam sobre autonomia, o fazem de um lugar bem

diferente dos românticos da “arte pela arte”, e mais diferente ainda do

modernismo formalista. O pós-modernismo analítico que encontramos em boa

parte dos artistas do Judson Dance Theater, assim como em seus antecessores

diretos, Cage e Cunningham, prefere expôr a relação entre música e dança no

próprio discurso artístico.

Eu gostaria de dizer que sou uma music-hater. O único papel restante à muzeek em relação à dança é ser totalmente ausente ou rir de si mesma. Usar muzache “séria” simultaneamente à dança é dar uma aura de “alta arte” ao que se vê. Usar moosick de “programa” ou pop ou rock é gerar excitamento ou coloração que a dança em si não evocaria de outra maneira. Porque me oponho a este tipo de realçamento? Uma razão é que eu amo dançar e fico ciumenta com a intromissão de qualquer outro elemento. Eu quero que minha dança seja a superstar e se recuse a dividir seu refletor com qualquer forma de colaboração ou co-existência. Muzak não acompanha pinturas numa galeria […]

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[…] Eu simplesmente não quero a alta arte de ninguém perto da minha… eu não colaboro… além disso, sou totalmente a favor de uma mídia por vez. (RAINER, 1968 apud BANES, 1992, p. 317-8, grifo da autora, tradução minha).

Esse texto de Yvonne Rainer é extraído de um tape usado em uma seção

de Performance Demonstration (1968), gravado pela própria artista. Rainer aqui

faz um ataque (irônico, já que também utilizava música na peça) à música,

explicitando o problema que se tornou sua presença em espetáculos de dança

depois de Cage e Cunningham. Discorre, também, sobre o duplo processo de

kitzchização a que foi submetida no século XX: de um lado a onipresença líquida

da música pop; de outro, a rigidez da música culta, confinada na câmara

anecóica da sala de concerto. Além disso, denuncia a transformação da música

num “discurso invísível”, característico das trilhas de Hollywood, bem como da

companhia Muzak 15, em que a música assume o papel que Cook (1998, p. 21)

chama de persuasor oculto: um “discurso que se passa por natureza; participa

na construção do significado, mas dissimula seus significados em efeitos”.

Frente a todos esses processos, Rainer aponta que a única alternativa

para a música é rir de si mesma, desconstruindo, assim, sua seriedade e

abrindo mão de seu poder de persuasão. Sua análise expõe, de maneira

precisa, as mudanças radicais que acometeram a música logo na primeira

metade do século XX e aponta também a urgência de uma visão crítica do uso

da música em cena, bem como uma autocrítica da música em si.

                                                                                                               15 Neste texto, Rainer faz uma transformação, através de trocadilhos, da palavra music (música),

que é transmutada em muzak e moosick (junção da palavra music com a palavra sick, doente), até transformar-se finalmente em Muzak, que aparece com letra maiúscula. Muzak, hoje sinônimo de música ambiente, é o nome de uma companhia especializada na produção de música ambiente para fábricas, para estimular e acelerar a produção, e lojas, para manipular hábitos de consumo. A palavra music aparece em sua grafia normal apenas em music-hater, logo no início do texto. Muzache um neologismo - talvez uma brincadeira com o acento francês e um trocadilho com a palavra francesa moustache - e se refere à “música séria”, que seria a música “culta” ou “erudita” eurocêntrica, tanto a tradicional quanto a experimental. Já para se referir à música de programa e ao pop e o rock, utiliza o termo moosick (music + sick), indicando a música de massas espalhada pelo rádio e pela TV, digamos, ad nauseum.

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  23  

Em suma, as experiências de Cage e Cunningham e dos artistas da

Judson Dance Theater realizaram transformações radicais na relação entre

dança e música: desnaturalizaram-nas, mostrando que o significado gerado por

ambas está em função do contexto; questionaram o modo de colaboração até

então dominante, calcado na primazia de uma sobre outra, propondo e

experimentando inúmeras alternativas; e tiraram da música seu papel de

persuasor oculto, expondo-o e problematizando-o em cena. Colocaram em jogo,

assim, a necessidade de um novo plano de interação, não inteiramente

identificado, nem completamente alheio, mas definitivamente reflexivo.

Este panorama nada exaustivo da história da colaboração entre dança e

música e da evolução da noção de autonomia está incluído nesta introdução

para apresentar, logo de saída, um conjunto de experiências que me ajudaram a

começar a elaborar as questões e hipóteses surgidas no decorrer da pesquisa.

No capítulo 1, apresentei algumas bibliografias com o objetivo de reunir

“ferramentas” para pensar o significado musical de maneira não circunscrita à

linguagem musical, mas, sim, embasado no corpo e construído em interação

constante com o ambiente. Este me parece ser um caminho mais apropriado

para discutir a emergência de significado, tanto na experiência musical quanto

na sua interação com a dança.

Para não dar a falsa impressão de que tudo que está sendo proposto

neste trabalho é novidade, é importante mencionar que, dentro do próprio campo

da música autodenominada “erudita”, há algumas linhas de pensamento que

fogem da ideia de autonomia. Dentre elas, destacam-se algumas visões do

campo da música eletroacústica, em especial as baseadas no pensamento de

Pierre Schaeffer.16

                                                                                                               16 A música eletroacústica é filha do surgimento e do desenvolvimento ímpar da tecnologia de

áudio no século XX. É a junção de duas vertentes da música que se apoiaram, cada uma, numa destas novas possiblidades tecnológicas: a música eletrônica, nascida no Estúdio de Colônia, que procurava criar novos sons através de sintetizadores, e a música concreta, nascida no GRMC de Paris, que dedicava-se à manipulação de sons capturados do ambiente, focando, a princípio, em sons excluídos da prática musical tradicional, tais como sons cotidianos ou da natureza. Pierre Schaeffer (1910 – 1995), compositor, escritor, musicólogo,

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A possibilidade da escuta sem a sua fonte sonora originária fez com que a

música começasse a lidar, tanto na teoria quanto na prática, com a

referencialidade, a fisicalidade e a espacialidade – aspectos evidentemente

presentes na nossa experiência mais fundamental com o som e que, pelo menos

desde o romantismo, eram ignorados pela bibliografia musical. Ao mesmo tempo

em que Schaeffer buscava uma escuta ideal do som, na medida em que era

desvinculado de seu corpo sonoro, era esta mesma ausência que faria o corpo

sonoro presente. Paradoxalmente, se a ideia de autonomia da obra de arte

dificulta a resposta para perguntas a respeito do papel do corpo na significação

artística, é também ela própria que faz com que essas questões existam.

Dentro deste campo, merece destaque a abordagem espectromorfológica

de Dennis Smalley (1997, 2007), baseada em Schaeffer e fortemente calcada

em parâmetros experienciais de movimento e de deslocamento no espaço.

Smalley propõe a referencialidade como elemento fundamental na composição.

Apesar de se ater à música eletroacústica, acredito que diversos aspectos da

espectromorfologia de Smalley possam ser estendidos à experiência musical em

geral.

Ao lado desses autores, apresentei algumas bibliografias que não são

específicas da teoria musical, tendo sido concebidas por pesquisadores das

chamadas ciências cognitivas. Tais pesquisas foram fundamentais para estudar

a noção de significado, tanto no sentido da sua concepção como de sua

modificação através da experiência artística. Para analisar o papel da teoria do

significado embasado no corpo, escolhi a obra do filósofo Mark Johnson (2007),

bem como a teoria das metáforas cognitivas, desenvolvida pelo próprio Johnson

em parceria com George Lakoff (1980, 1999). Também elenquei algumas

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                         engenheiro e radiologista, foi o fundador e teorizador da música concreta, e é considerado o primeiro compositor a trabalhar com manipulação de fita magnética – embora o egípcio Halim El-Dabh também estivesse fazendo experiências com fita na mesma época. Em 1949, fundou, juntamente com Pierre Henry, o GRMC (Groupe de Recherche de Musique Concrète) na Radio France, que depois transmormou-se no GRM (Groupe de Recherche Musicale[s] ). Sua obra escrita faz parte da literatura mais fundamental da música do século XX, bem como da música em geral, abrangendo também os campos da comunicação e da acústica.

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pesquisas a respeito dos neurônios-espelho, como em Gallese et al. (1996,

2003, 2005), e sua implicação na escuta e na experiência musicais em Haueisen

e Knösche (2001) e Lahav et al. (2007). Esta noção de empatia é brevemente

mencionada aqui, podendo ser mais desenvolvida em um momento futuro da

pesquisa.

No capítulo 2, relatei minhas experiências de criação musical para e com

a dança. Identifiquei, nas parcerias com os diretores Patrícia Noronha, Cristiane

Paoli Quito, Diogo Granato, Morena Nascimento e Key Sawao, algumas

concepções apresentadas no primeiro capítulo, sobretudo o conceito de

metáfora de Lakoff e Johnson (1980), presente também em Cook (1998), para

refletir sobre a criação e manipulação de significado entre corpo e som dentro

destes processos criativos. As experiências com improvisação me fizeram

pensar, particularmente, no significado musical como algo embasado no corpo,

transformando de maneira radical a minha própria maneira de fazer música.

Neste capítulo, utilizarei exemplos em vídeo de obras e artistas citados, que

podem ser consultados no DVD que acompanha este trabalho.17

Como toda dissertação de mestrado, esta também deve ser lida como

uma introducão a algumas questões que, a meu ver, devem ser

problematizadas. A proposta é que esta pesquisa tenha uma continuidade no

doutorado para que os pontos mais relevantes sejam devidamente

aprofundados.

                                                                                                               17 Além de verificar os vídeos mencionados no DVD, é possível consultar e assistir ao mesmo

material em: <http://mportugal.com.br/mestrado>.  

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CAPÍTULO 1: fundamentação teórica das principais questões

Uma pessoa não possui nenhum território interno soberano,

ela está inteira e sempre na fronteira; olhando para dentro de si,

ela olha para dentro dos olhos de outrem ou com os olhos de outrem.

Mikhail Bakhtin (1984, p. 287, tradução minha)

1.1 O significado musical embasado no corpo

A experiência musical, em princípio, envolve sempre algum tipo de

movimento: o dos dançarinos, dos instrumentistas, dos regentes, do público.

Esta relação entre música e movimento não é de maneira alguma estranha ao

pensamento musical ocidental. Entretanto, tal como vimos na introdução, a partir

dos séculos XVIII e XIX, estabeleceu-se neste pensamento uma ideia, muito

particular de autonomia da obra musical, que não considera o corpo e o

ambiente partes importantes da experiência musical tida como válida. Assim,

também não leva em consideração o movimento, como algo originado, vivido e

terminado no corpo, nesta experiência.

Ao realizar aproximações entre teorias musicais que vão na contramão da

ideia de autonomia e bibliografias sobre estudos do corpo, apresentam-se

ferramentas conceituais e evidências empíricas para desestruturar a ideia de

autonomia da obra de arte e afirmar que a experiência musical, assim como toda

e qualquer experiência de significado, está embasada no corpo. A partir disto,

podemos dizer que o corpo e o movimento possuem um papel fundamental

também na relação entre som, imagem e significado. O objetivo deste capítulo é

apresentar estudos que fortaleçam esta proposta, estabelecendo um ponto de

partida para uma pesquisa que continuará para além dos limites desta

dissertação, tanto nas minhas práticas artísticas como na minha pesquisa

acadêmica futura.

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É importante reforçar que, tal como vimos na introdução, há um grande

número de experiências musicais e artísticas que evidenciaram o papel do corpo

nas criações musicais, em especial no século XX. Entretanto, há uma carência

do reconhecimento deste papel em boa parte das bibliografias específicas. É

neste sentido que esta pesquisa busca colaborar, apresentando e evidenciando

possíveis conexões entre autores que construíram pontes explícitas entre corpo

e música, e aqueles que estudam o corpo.

Um importante ponto de partida é a descoberta da existência de ações

motoras cognitivas envolvidas na percepção. Gallese et al. (1996) mostraram

pela primeira vez que um conjunto neuronal era ativado tanto quando um

macaco executava uma ação (por exemplo, agarrar uma banana), como quando

ele via a mesma ação sendo executada por uma pessoa.18 Interessante também

era o fato de que a visão isolada tanto do objeto quanto da pessoa não

despertavam nenhuma atividade, o que significava que o acionamento só

aconteceria através da ação, fosse realizada ou vista.

Os autores (p. 606-7) chamaram estes neurônios de neurônios-espelho e

indicaram que havia fortes evidências de que humanos, assim como os

macacos, também possuíam um sistema semelhante, responsável pela

associação entre a observação visual e a execução de ações.

É sabido que tanto adultos quanto crianças aprendem por imitação. Este processo poderia ser baseado num mecanismo de emparelhamento entre observação e execução similar ao representado pelos neurônios-espelho. Tal mecanismo pode, por um lado, extrair os elementos essenciais para descrever o agente da ação (mão, braço, face) e, por outro lado, codificá-los diretamente em conjuntos específicos de neurônios com propriedades motoras […] (GALLESE et al., 1996, p. 606, tradução minha).

Estudos posteriores mostraram que a mesma relação parece acontecer

entre percepção sonora e ação motora, tanto com sons cotidianos, tais como

                                                                                                               18 Ver também Gallese et al. (2003, 2005) e Kohler (2002) para desdobramentos desta pesquisa.

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portas batendo, quanto com materiais sonoros mais complexos, tais como

música. Experimentos realizados por Haueisen e Knösche (2001) mostraram

que estudantes de piano tiveram atividade motora involuntária no córtex motor

primário ao escutar uma melodia relativamente complexa, extraída de peças

pianísticas. A atividade no córtex motor primário, portanto, “poderia ser evocada

e sincronizada ao feedback perceptual associado”, o que dá grandes evidências

de que há um “forte emparelhamento entre sistemas de percepção e ação no

cérebro”. (p. 789, tradução minha).

Posteriormente, Lahav et al. (2007) mostraram que o mesmo ocorre com

não-músicos. Estes demonstraram atividade motora cerebral involuntária ao

ouvirem uma melodia que haviam aprendido de ouvido e praticado durante

algumas semanas. Assim como em Haueisen e Knösche (2001), a atividade

também ocorrera nos mesmos circuitos neurais associados à observação de

ações apontados por Gallese et al. (1996), e que poderiam vir a ser o sistema

humano de neurônios-espelho.

Estes experimentos evidenciaram que, ao perceber um som, buscamos e

reproduzimos no corpo sua origem físico-corpórea, que pode ser imediata ou

remota, inferida ou suposta. Segundo Johnson (2007), ao ouvir música, mesmo

ouvintes aparentemente imóveis (a plateia ideal das salas de concerto) movem-

se emocionalmente, fisicamente, fisiologicamente, ativando mapas neurais tanto

associados com o movimento dos músicos, regentes ou dançarinos, quanto

subentendidos nos movimentos intrínsecos à linguagem musical, tais como o

ritmo, o movimento harmônico-melódico, etc.

A escuta, de Beethoven ao Candomblé, necessariamente acontece no

corpo. E é esse engajamento do corpo na escuta que faz com que a música nos

seja significativa, pois toda a nossa produção e experiência de significado têm

origem num lugar mais profundo que o das proposições e sentenças da

linguagem verbal: são modeladas “pela natureza dos nossos corpos” (p. 9), em

especial nos processos sensório-motores, onde são operados os sentimentos e

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  29  

as emoções. São precisamente estes processos corpóreos que fazem a

significação possível.

Johnson também argumenta contra uma vertente do pensamento

ocidental que considera o pensamento proposicional como a base de toda a

significação. Neste ambiente filosófico, houve um gradativo processo de

“subjetivização da estética” que, segundo ele, teve seu momento mais decisivo

na filosofia da beleza em Kant. (p. 214). A partir de então, a Estética seria uma

disciplina de menor importância, limitada à subjetividade e aos sentimentos e

restrita ao estudo da arte. Johnson, ao contrário, defende a ideia de que

aspectos tradicionalmente limitados à Estética são a base de todo significado e

que a arte, por sua vez, fornece exemplos de intensa condensação de

significado, utilizando as mesmas fontes básicas de significação que dão sentido

ao nosso mundo e às nossas vidas. (p. 125).

[...] a Estética torna-se o estudo de tudo que constitui a capacidade humana de fazer e experienciar significado. [...] A estética do entendimento humano deveria tornar-se a base de toda filosofia, incluindo metafísica, teoria do conhecimento, lógica, filosofias da mente e da linguagem e teoria do valor. (JOHNSON, 2007, p. 73, tradução minha).

Neste viés, todos os nossos conceitos fundamentais são embasados no

corpo, inclusive os que compõem a ética, a política, a filosofia e a matemática,

atravessando tanto as dimensões estruturais, formais e conceituais, quanto as

dimensões pré-conceituais, não-formais e sensitivas.

Estes processos corpóreos que originam o significado acontecem,

necessariamente, nas interações entre organismo e ambiente, nas quais

“padrões significantes são marcados em meio ao decorrer da experiência” (p.

273). Tais “estruturas sensório-motoras” de interação organismo-ambiente dão

origem ao sistema conceitual que embasa nosso funcionamento e nosso

processo de significação do mundo e da vida. (p. 119). É nesta contínua

negociação do significado que corpo e ambiente se constroem mutuamente.

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Os conceitos que chamamos de “mais elevados” ou abstratos podem não parecer embasados em aspectos da nossa experiência sensório-motora, mas isto é uma ilusão. Conceitos que pensamos como completamente divorciados das coisas físicas e das experiências sensório-motoras (conceitos como justiça, mente, conhecimento, verdade e democracia) não são nunca realmente independentes de nossa corporificação (embodiment), porque a estrutura semântica e inferencial desses conceitos abstratos é feita a partir das nossas interações sensório-motoras. […] (p. 5247, grifo do autor, tradução minha).

Este sistema de significação, segundo Johnson e Lakoff (1980), é

formado em sua maior parte pelas metáforas conceituais, que têm origem no

corpo, emergindo a partir das nossas primeiras experiências e aprendizados

sensório-motores, anteriores e possibilitadores da aquisição da linguagem. Aqui,

a metáfora (do grego μεταφορά, que significa “transferência, transporte para

outro lugar”; essencialmente, o entendimento de uma coisa nos termos de outra)

não é apenas uma figura de linguagem, ou seja, mais um instrumento da poética

e da retórica. É, também, e principalmente, a articulação de distintos domínios

conceituais que embasam nosso pensamento, ação e comunicação.

Assim, por exemplo, o domínio conceitual DINHEIRO projeta suas

características estruturais sobre o domínio conceitual TEMPO, formando a

metáfora TEMPO É DINHEIRO (podemos “gastar”, “investir”, “desperdiçar”,

“economizar” tempo/dinheiro). Esta é uma metáfora-base que sustenta, por

exemplo, a metáfora TEMPO É UM RECURSO LIMITADO (“esgotar”, “ter muito”,

“ficar sem” tempo/dinheiro), que, por sua vez, contém TEMPO É UMA

MERCADORIA VALIOSA (“ter”, “dar”, “perder” tempo/dinheiro).

As diferentes metáforas do TEMPO se articulam sistematicamente,

criando uma rede de significados correspondente ao ambiente cultural no qual

estamos inseridos. Ou seja: nosso sistema conceitual não é estático, mas

dinâmico, pois depende da época, da sociedade, da cultura e dos indivíduos.

(JOHNSON; LAKOFF, 1980, p. 7-9). Entretanto, algumas metáforas (tais como

TEMPO É DINHEIRO) podem tornar-se tão estáveis numa determinada cultura

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  31  

que acabam passando por verdade, modelando (e limitando) nossa experiência

e ideia de mundo.19

As metáforas conceituais não estão circunscritas à linguagem; são

baseadas em diversos padrões e lógicas advindos da nossa experiência

corporal, tais como a percepção do movimento de objetos, da sensação

cinestética do nosso próprio movimento e da nossa sensação proprioceptiva da

posição e do movimento do corpo. (p. 137) Estes padrões são chamados por

Johnson (2007) e por Johnson e Lakoff (1980, 1999) de esquemas de imagem:

“conceitos espacial-relacionais” que “constituem os contornos básicos do nosso

mundo vivido”, ou “as estruturas básicas da experiência sensório-motora através

da qual nós encontramos um mundo que podemos entender e sobre o qual

podemos atuar.” (JOHNSON, 2007, p. 135-6).

Os esquemas de imagem “existem como aspectos topológicos dos

nossos mapas neurais, [que são] os elementos estruturais do nosso contínuo

engajamento com o mundo”. (p. 135, tradução minha) Só existem, portanto, por

sermos os seres que somos no ambiente em que estamos. Johnson afirma que,

se o nosso corpo fosse esférico, por exemplo, não existiriam os conceitos de

frente, trás e lado, tampouco os significados que estes conceitos geram. Nossa

experiência e nossa significação são moldadas pelo corpo que temos.

É importante frisar que os esquemas de imagem não são imagens em si,

mas padrões “imagéticos” (image-like); não são representações estáticas de um

momento no mapa neural, mas padrões de ativação deste mapa, operando

“dinamicamente e através do tempo.” (JOHNSON, 2007, p. 144, tradução

minha). Nas palavras do autor (p. 143-6, grifo meu, tradução minha): “são os

próprios contornos da experiência em si, ou estruturas de experiência.”

                                                                                                               19 É de se supor que TEMPO É DINHEIRO faça sentido principalmente no contexto capitalista

das sociedades industriais modernas, em que o valor do trabalho é medido pela quantidade de horas empreendidas pelo empregado numa função específica. “Nós entendemos e experienciamos o TEMPO como algo que pode ser gasto, desperdiçado, economizado, investido de maneira sábia ou tola […]” (JOHNSON; LAKOFF, 1980, p. 8, tradução minha).

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  32  

Três desses esquemas de imagem são particularmente importantes para

este trabalho, e serão abordados mais detalhadamente em diversos momentos

nas páginas subsequentes. Todos eles possuem uma “‘lógica’ espacial interna e

inferências intrínsecas.” (JOHNSON; LAKOFF, 1999, p. 33, tradução minha).

O primeiro é o esquema do recipiente, que possui sempre a mesma

estrutura composta por três partes: um interior, um exterior e uma fronteira.

“Uma fronteira física pode impor limitações visuais: pode proteger o conteúdo do

recipiente, restringir sua locomoção […]” (p. 32, tradução minha).

O segundo é o esquema origem-percurso-destino, que é composto pelos

seguintes elementos: um percursor que se move; um ponto de partida; um ponto

de chegada; uma rota; a trajetória de fato; a posição do percursor num dado

momento; a direção do percursor naquele momento; a posição final do

percursor, que pode ou não ser no ponto de chegada. Este esquema pode ser

expandido, adicionando elementos conceituais como obstáculos, percursores

adicionais, forças motrizes externas, variações de velocidade de locomoção, etc.

(p. 33, tradução minha). O esquema origem-percurso-destino é o que forma o

nosso conhecimento mais fundamental a respeito de movimento.

O terceiro são as projeções corporais, como os conceitos de frente e

costas, por exemplo.20 “Nós vemos pela frente, normalmente nos movemos na

direção de faces frontais, e interagimos com objetos e pessoas com as nossas

frentes.” (p. 34, tradução minha). Nas costas, por outro lado, está o que não

vemos. Quando percebemos um objeto escondido atrás de outro (como um gato

atrás de uma árvore), estamos projetando no mundo a nossa noção de frente e

costas, baseada na nossa experiência com o corpo que temos. Sem essa

experiência e sem esse corpo, tal noção não seria possível. (p. 34-5).

                                                                                                               20 Johnson e Lakoff (1999, p. 35) também citam os esquemas parte-todo; centro-periferia;

ligação; ciclo; iteração; contato; adjacência; movimento induzido; suporte; balanço; reto-curvo; perto-longe. Nota-se que todos eles são evidentemente corporais e espaciais. São criados a partir da nossa experiência concreta no ambiente em que estamos, com seres viventes ou objetos à nossa volta.

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  33  

Não é difícil enxergar a importância fundamental que esses poucos

esquemas de imagem têm na construção de significado, e como um esquema

como o do recipiente, por exemplo, atravessa diferentes línguas e culturas.

Segundo Johnson e Lakoff (1999, p. 35, tradução minha), todas as línguas

utilizam “um número relativamente pequeno de esquemas de imagem básicos”,

que, por sua vez, derivam um número bem maior de relações espaciais diversas.

Isso acontece pois grande parte desses esquemas de imagem são transmodais

(cross-modal) – atravessam diferentes modos da nossa experiência do nosso

corpo e do corpo no mundo. Por exemplo,

[…] podemos impor um esquema conceitual de recipiente numa cena visual […] [ou] em algo que ouvimos, como quando separamos conceitualmente uma parte de uma peça musical de outra. Também podemos impor esquemas de recipiente nos nossos movimentos motores […] (JOHNSON; LAKOFF, 1999, p. 32, tradução minha).

Ao pensar nestes esquemas de imagem dentro de contextos artísticos,

surgem algumas considerações importantes. De acordo com Johnson (2007, p.

141, tradução minha), os esquemas de imagem podem explicar como “conceitos

abstratos emergem de experiências corpóreas sem precisar de uma mente

incorpórea, módulos autônomos de linguagem ou razão pura”. A partir desta

proposta, pode-se considerar que tais esquemas são estratégicos para

entendermos fazeres artísticos como a dança e a música. Em outras palavras,

eles parecem constituir a matéria-prima destes fazeres artísticos, partindo de

uma para outra experiência sem passar, necessariamente, pela conceituação da

linguagem proposicional.

Além disso, os esquemas de imagem e o processo metafórico que deles

emerge podem ser compreendidos como o fundamento dos conceitos

constituídos pela experiência corporal compartilhada entre dança e música. Isso

porque, a partir destas teorias, manifestações artísticas tais como a dança e a

música também podem criar conceitos, já que estes não são entidades mentais

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internas que representam realidades externas, e sim padrões de ativação neural,

modelos recorrentes de estrutura de pareamento entre organismo e ambiente,

que podem ser acionados através de estímulos perceptuais ou motores. (p. 157-

9).

Um poderoso acionador nesses padrões é o movimento e a percepção

cinestésica corporal. Johnson e Larson (2003) explicam o papel do movimento e

do esquema de imagem origem-percurso-destino na nossa percepção do tempo

musical, partindo da correlação entre tempo e movimento.

Esta correlação entre o movimento de um objeto com a passagem do tempo é presente em crianças assim como adultos. A principal diferença entre adultos e crianças em relação a esta experiência [...] [é] o fato de que adultos adquiriram a habilidade de utilizar esta correlação experiencial como uma base para o pensamento abstrato. Nós (adultos) conceitualizamos o tempo através de profundas e sistemáticas metáforas cinético-espaciais (spacial-movement) nas quais a passagem do tempo é entendida como um relativo movimento no espaço. (JOHNSON, 2008, p. 27, grifo do autor, tradução minha).

A partir de duas metáforas espaciais e três maneiras básicas de

experienciar o tempo como um movimento no espaço, Johnson e Larson (2003)

levantam três metáforas para o movimento musical. A primeira é TEMPO EM

MOVIMENTO (MOVING TIMES), manifestada em expressões como “o tempo

está voando/se arrastando/correndo”, bem como em “o Natal está chegando”, ou

“o Carnaval já passou”. No primeiro exemplo, o tempo é um objeto em

movimento visto pelo observador; no posterior, um objeto em movimento

passando pelo observador. É transposta para a metáfora MÚSICA EM

MOVIMENTO, em que os diferentes elementos ou seções musicais são objetos

que passam pelo ouvinte.

Na segunda metáfora, o observador está em movimento e o tempo é

conceitualizado como objetos em seu caminho ou regiões que ele percorre.

Exemplos da metáfora OBSERVADOR EM MOVIMENTO são: “tempos melhores

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  35  

virão”, “passamos por dias ruins”, “vejo sucesso à frente”, etc. “Como a música,

assim como o movimento, acontece no tempo, estas duas conceitualizações de

tempo […] são incorporadas nas metáforas básicas do movimento musical […]”

e transpostas para a metáfora PAISAGEM MUSICAL, em que a música é um

espaço passível de ser percorrido. (JOHNSON; LARSON, 2003, p. 7, tradução

minha).

Na terceira metáfora, associada à causalidade, o observador é movido por

forças externas (como o vento, o mar ou outra pessoa – geralmente algo mais

forte que o próprio) que o deslocam de um lugar a outro. De acordo com a

metáfora MÚSICA COMO FORÇA MOTRIZ, a música o carrega, embala,

empurra, derruba ou o puxa para cima, colocando o observador/ouvinte num

novo lugar.

Segundo Johnson (2008), estes três sistemas metafóricos estruturam a

nossa experiência temporal em termos espaciais, sendo essenciais para

pensarmos em movimento musical. “Nós entendemos a música como algo se

movendo, e entendemos a nós mesmos como sendo movidos pela música” (p.

247, tradução minha), sempre a partir das nossas experiências concretas, em

sua grande parte pré-reflexivas, com o movimento físico.

Além disso, estas três metáforas também se ramificam qualitativamente,

pois todo movimento envolve distintas qualidades como tensão, linearidade,

amplitude e projeção. Estas qualidades nos permitem identificar e qualificar as

várias experiências da passagem do tempo e, portanto, diferentes qualidades da

peça musical. O andamento talvez seja o exemplo mais óbvio, pois se refere

diretamente à velocidade do passo.

Estas são apenas três das inúmeras metáforas que surgem ao projetar

nossa experiência com movimento e causalidade na experiência musical. É

evidente, também, que a nossa experiência musical não se esgota nestas três

metáforas. Pelo contrário: existem, obviamente, outras inúmeras relações

metafóricas, que podem ou não se desdobrar a partir destas elencadas por

Johnson e Larson (2003). E, ao contrário do que os autores afirmam, é de se

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pensar se elas, de fato, são as principais metaforizações a respeito de

movimento em música. Os autores se atêm ao movimento melódico e rítmico,

mas passam ao largo, por exemplo, do fato de que todo e qualquer som só pode

existir num espaço material e através do movimento. Não estaria a percepção do

movimento em música, antes de tudo, associada à percepção do fenômeno

sonoro enquanto tal?

Uma segunda observação a respeito da análise de Johnson e Larson é

que em nenhuma das três metáforas-base supracitadas o movimento musical é

visto como um movimento corporal. Ele aparece sempre dentro de uma relação

entre sujeito e objeto, na qual o ouvinte é externo à música.

Apesar de desenvolver uma visão do espaço musical baseada na teoria

do significado embasado no corpo, Johnson e Larson passam longe do estudo

da relação entre corpo e espaço sonoros. Por sua vez, a música eletroacústica e

a pesquisa sobre gesto musical, conduzem este debate, tal como veremos a

seguir.

1.2 A emergência da corporalidade na música do século XX

O século XX foi marcado por mudanças radicais no que chamamos de

música. Houve o surgimento de um fértil campo de discussão a respeito da

referencialidade, da corporalidade e da espacialidade sonoras, possibilitado por

diversas mudanças no campo da música e da acústica: a possibilidade de

gravação e reprodução do som, tornando desnecessária a presença da fonte

sonora; a incorporação, na composição, de sons estranhos à prática

instrumental tradicional; a manipulação plástica do som através das edições em

fita; e o surgimento dos sintetizadores, que poderiam criar novos sons a partir da

senóide, que seria o “átomo” do som. Estas mudanças fizeram possível o

surgimento de um novo tipo de música: a música eletroacústica21.

                                                                                                               21A gênese da música eletroacústica está na música concreta de Pierre Schaeffer e seus

experimentos realizados no GRM de Paris, a partir de 1948. Em 1949 a vertente da música

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  37  

É importante frisar, logo de início, que a música eletroacústica é tomada

como herdeira direta da tradição musical calcada na ideia de obra de arte

autônoma. A écoute réduite22, de Pierre Schaeffer, por exemplo, era a ideia de

uma escuta ideal enquanto reduzida à fenomenologia do som, e, portanto, livre

de qualquer referencialidade – a escuta do som pelo som. Mas o idealismo de

Schaeffer em isolar o som do corpo sonoro mostrou-se justamente uma

confirmação da extensa rede referencial que todo e qualquer som

inevitavelmente aciona. Tanto é que herdeiros do pensamento de Schaeffer, tais

como Michel Chion (1982, 1983, 2005), François Bayle (1993, 2003) e Denis

Smalley (1986, 1996), levam em consideração a referencialidade e fisicalidade

do som também como um elemento composicional.

Até a chegada da mídia eletroacústica, toda música era criada através de formas de elocução vocal ou através de gestos instrumentais. Gestos produtores de som são relacionados a atividades humanas e físicas que possuem conseqüências espectromorfológicas23: uma cadeia de atividade liga uma causa a uma fonte. Um agente humano produz espectromorfologias via o movimento do gesto, usando o sentido do tato ou um acessório para aplicar energia a um corpo sonoro. Um gesto é, portanto, uma trajetória enérgico-cinética [energy-motion trajectory] que excita o corpo sonoro, criando vida espectromorfológica. Do ponto de vista tanto do agente quanto do espectador ouvinte, o processo gestural musical é táctil e visual bem como aural. Além disso, é proprioceptivo: isto é, está relacionado à tensão e relaxamento dos músculos, ao esforço e à resistência. […]

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                         eletrônica começa a se desenvolver no Estúdio de Música Eletrônica de Colônia, que tinha Stockhausen dentre os seus residentes. Criam-se, portanto, duas frentes opostas de música experimental, a concreta (francesa) e a eletrônica (alemã). Stockhausen faria a ponte entre o concreto e o eletrônico com a peça Gesang der Jünglinge (1955-56), que utilizava tanto sons eletrônicos quanto sons concretos de vozes de cantores adolescentes. Pouco depois, em 1958, Schaeffer cunha o termo eletroacústico para denominar a junção de ambas as vertentes. (MENEZES, 2006, p. 347-8).

22 Cf. SCHAEFFER, P. Traité des objets musicaux. Editions du Seuil. Paris. France, 1966. 23 Smalley (1986, 1996) baseia-se em Schaeffer (1966) para propor uma outra terminologia, mais

processual, ao que conhecemos como som: “As duas partes do termo referem-se à interação entre espectros sonoros (espectro-) e a maneira como eles mudam e são formados através do tempo (-morfologia). O espectro- não pode existir sem a -morfologia e vice-versa: algo deve ser formado, e uma forma deve ter conteúdo sônico.” (SMALLEY, 1997, p. 107, tradução minha).

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Nós não deveríamos pensar no processo gestual somente em uma direção causa-fonte-espectromorfologia, mas também no inverso espectromorfologia-fonte-causa. Quando ouvimos espectromorfologias nós detectamos a humanidade atrás delas, deduzindo atividade gestual, referindo de volta, através do gesto, à experiência proprioceptiva e psicológica em geral. (SMALLEY, 1997, p. 111, grifo do autor, tradução minha).

Para sua definição de gesto musical, Smalley menciona inúmeros

conceitos inegavelmente corpóreos, tais como: tato, visão, audição, tensão,

relaxamento, propriocepção, músculos, esforço e resistência. Parece óbvio que

tenhamos que falar de corpo para falar de gesto; mas, como vimos

anteriormente, desde o romantismo a maior parte da literatura sobre significado

e expressão musicais passou ao largo do fato de que todo som necessita e

subentende um corpo. Ironicamente, foi preciso superar a necessidade da

presença do corpo sonoro para que o corpo estivesse, finalmente, no centro da

discussão musical.

A abordagem de Smalley associa o gesto a uma trajetória enérgico-

cinética que subentende um agente e um corpo, estando, portanto, em intrínseca

relação com a significação. Além disso, Smalley identifica o gesto como um

processo ao mesmo tempo sonoro, táctil, visual e proprioceptivo, fazendo

fronteira com a espacialidade, a fisicalidade e a corporeidade. Ou seja: o gesto

está também em intrínseca relação com o campo da materialidade, como

também afirma Zampronha (2005). Isso vale tanto para a música acusmática, na

qual o agente sonoro não está presente, quanto para a música instrumental ou

vocal, em que se tem presente fisicamente o corpo sonoro e o agente.

Se todo som subentende um corpo, a referencialidade do som é algo

inevitável e essencial à escuta, e, portanto, deve também ter importância na

experiência musical. A ligação intrínseca-extrínseca do texto musical com o

contexto, ou “[...] a tendência natural em relacionar sons a supostas fontes e

causas, e relacionar sons entre si por parecerem ter origens compartilhadas ou

associadas” (SMALLEY, 1997, p. 110, grifo do autor, tradução minha), faz parte

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  39  

do nosso processo dinâmico de significação e é, assim, material de trabalho do

compositor.

A princípio, esta abordagem é característica da música eletroacústica,

mas, de fato, diz respeito a toda e qualquer experiência musical. A música

eletroacústica não inaugura a corporalidade na música, mas, sim, ajuda a

entender e investigar o papel essencial do corpo em toda e qualquer experiência

musical.

A música eletroacústica também colocou o espaço no centro da discussão

estética e da composição, por conta tanto das possibilidades de manipulação

espacial na própria composição, através das inúmeras possibilidades de

simulação de reverberações, delays e planos, quanto da difusão da peça no

momento da apresentação, em que se pode manipular ao vivo o espaço sonoro.

O uso do espaço na composição eletroacústica corresponde diretamente

à nossa experiência corporal comum: a do nosso corpo com outros corpos à

nossa volta, inserido e movimentando-se num determinado espaço. Na

terminologia elaborada por Smalley (2007, p. 55) para lidar com o elemento

espacial na composição, podemos identificar ligações evidentes com os

esquemas de imagem de Lakoff e Johnson (1980) e Johnson (1987, 2007).

“Espaço imersivo”, “espaço aninhado”, “contenção/transcendência” e

“abertura/fechamento”, por exemplo, estão claramente associados ao esquema

do recipiente; “aproximação/recessão”, “forças diagonais” e “espaços laterais”,

por outro lado, estão associados ao esquema origem-percurso-destino.

Em suma, ao dar importância central à corporalidade do som, tanto

através da referencialidade dos processos gestuais quanto através do uso

estético e narrativo do espaço, a música acusmática faz jus ao papel do corpo

na percepção sonora e na significação musical. Os radicais avanços

tecnológicos ocorridos ao longo do século XX nos trouxe um uso absolutamente

inovador do espaço, além de inventar novos corpos sonoros. Entretanto, o que

para Smalley (2007, p. 36) é considerado uma novidade na cultura musical, na

verdade sempre esteve ali presente.

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  40  

Defendo, neste trabalho, que a música eletroacústica continua criando e

articulando significado a partir daqueles mesmos esquemas de imagem básicos

que compõem a maior parte do nosso sistema conceitual e também da nossa

experiência musical. Afinal, as complexas relações metafóricas entre espaço e

movimento sempre fizeram parte da música; e é bem provável que isto ocorra,

em primeiro lugar, pela própria necessidade de espaço e movimento para que

um som exista.

Como é sabido, todo e qualquer som só pode existir num espaço e

através do movimento, e todo e qualquer som terá suas características

determinadas pelo espaço em que se projeta e pelo movimento que o origina.

Além disso, estes dois planos estão intrinsecamente conectados: movimento

não existe sem espaço, e vice-versa. Segundo Lefebvre (1974, p. 21), “se

alguém diz ‘energia’, deve imediatamente acrescentar que ela se desenvolve

num espaço. Se alguém diz ‘espaço’, imediatamente deve dizer o que o ocupa e

como: o desenvolvimento da energia em torno de ‘pontos’ e num tempo.”

O som, através do movimento, produz e altera o espaço; o espaço, por

sua vez, produz e altera o som (SMALLEY, 2007, p. 38). Apesar disso, espaço e

movimento estavam até há pouco tempo condenados à periferia da literatura

musical especializada, que passou pelo menos dois séculos preocupada com a

estrutura interna das obras e com a preservação desta estrutura da

contaminação do contexto.

1.3. O problema do conceito de gesto musical

O termo gesto musical é uma expressão metafórica. Subentende a

transferência de atributos entre diferentes planos, do corporal ao sonoro, através

da metáfora MÚSICA É MOVIMENTO CORPORAL. As características

estruturais do conceito MOVIMENTO trazem ao conceito MÚSICA a

corporeidade fundante de qualquer significado; corporeidade e significação que

lhe foram negadas na bibliografia musical histórica subsequente a Hanslick.

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MÚSICA É MOVIMENTO também contém implícita a importância fundamental

do ambiente (ou contexto) para que o significado musical aconteça, pois

o movimento [...] necessariamente envolve constante, íntima conexão e interação com aspecto de um particular ambiente. [...] Estamos em contato com nosso mundo num nível visceral, e é a qualidade do nosso “estar em contato” que define, de maneira fundamental, como nosso mundo é e quem nós somos. O que filósofos chamam de “sujeitos” e “objetos” (pessoas e coisas) são abstrações do processo interativo da nossa experiência de um significativo ser-no-mundo (self-in-a-world). (JOHNSON, 2008, p. 20, tradução minha).

Entretanto, ao observar a origem do termo gesto musical, podemos notar

como, em realidade, ele não é tão adequado para lidar com o papel do

movimento na significação, pois “gesto” remonta aos movimentos corporais, em

particular os das mãos, de qualidade significante simbólica ou indexical que

acompanham a linguagem verbal. Nessa acepção, o gesto distinguir-se-ia dos

demais movimentos pela sua função sublinhadora do significado. Ou seja: seria

movimento dotado de significação na medida em que é subjugado à linguagem

verbal. Da mesma forma, ao ser transportado para o campo da música, o gesto

primeiro apareceu como reforçador do significado do texto – primeiro nas

canções medievais (a chanson de geste) e, depois, com a ascensão da música

instrumental ao longo dos séculos XVIII e XIX, do próprio texto musical.

(SCHNEIDER, 2010).

O gesto musical, portanto, em seu uso mais comum na literatura musical,

não parece estar calcado na metáfora MÚSICA é MOVIMENTO, e, sim, na

metáfora MÚSICA é LINGUAGEM. Há, assim, uma relação original hierárquica

entre gesto e linguagem (verbal ou musical) que torna problemática a sua

utilização na análise da experiência musical. Se o gesto é um “realçador”, tanto

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do significado da linguagem verbal quanto do significado musical, isso significa

que o gesto não é, em si, um potencial produtor e negociador de significado.24

Segundo Johnson (2007, p. 235), a metáfora MÚSICA é LINGUAGEM

vem sendo predominante na maior parte do pensamento musical.25 De acordo

com o autor, o problema não reside tanto na metáfora MÚSICA é LINGUAGEM

em si, mas na visão equivocada que o pensamento autodenominado “erudito”

possui da linguagem verbal. Esta seria, segundo este pensamento, a única

forma humana de produzir significados, por sua vez exclusivamente

proposicionais e essencialmente descorporificados. “O que fica de fora são as

dimensões corporificadas e afetivas tanto do significado linguístico quanto do

musical” (p. 260, tradução minha). Ou seja: ao tentar fazer caber a MÚSICA

dentro desta versão descorporificada de LINGUAGEM, relegou-se o gesto à

condição de acessório. E este papel é por demais pequeno, tendo em vista a

importância que o movimento parece ter na maneira em que experienciamos a

música e o mundo.

Por exemplo: Jensenius et al. (2010, p. 23-8), baseando-se em Delalande

(1988), fazem uma distinção hierárquica entre o que chamam de gestos

acompanhantes – os movimentos como a dança, a mímica do tocar e

acompanhamentos espontâneos tais como o bater do pé seguindo o pulso – dos

gestos efetivos – os que, de fato, produzem som. Leman e Godøy (2010)

realizam discriminação semelhante, distinguindo o que eles chamam de “gesto

genuíno” do “movimento comum”. Alegam que, “para chamar um movimento de

gesto genuíno, ele deve de alguma maneira carregar uma expressão e um

significado”. (LEMAN; GODØY, 2010, p. 5, grifo meu, tradução minha).

                                                                                                               24Uma exceção, dentro dos estudos do gesto musical, parece ser Leman (2010, p. 130, tradução

minha), que afirma que “gestos não são puramente físicos ou puramente mentais, mas por natureza embasados no corpo, e fazem parte de um processo de mediação, superando a divisão cartesiana entre mente e matéria.” Além dele, autores que lidam com a referencialidade e espacialidade como algo central à composição, como Smalley (1997, 2007), Zampronha (2005), Wishart (1996), etc.

25 Esta metáfora fornece, por exemplo, boa parte dos termos técnicos usados na análise musical, como “frases”, “sentenças” ou “ideias” musicais.

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  43  

Se, de fato, existe um gesto genuíno, isso significa que todos os outros

movimentos são gestos “falsos”, vazios de significação, e, portanto, simples

ruído na comunicação musical. Em outras palavras, apenas determinados

movimentos implicados na prática musical seriam, realmente, gestos musicais;

outros movimentos, como o dos dançarinos, seriam considerados como

“acompanhantes” do som, e, por conseguinte, subjugados à música.

(JENSENIUS et al., 2010).

Além disso, o estudo do gesto musical porventura isola os diferentes

planos da experiência musical em prol da análise. Delalande26 (1988 apud

JENSENIUS, 2010, p. 18, tradução minha) define o gesto como “a intersecção

de ações observáveis e imagens mentais, indo do puramente funcional ao

puramente simbólico”. O puramente funcional seria o gesto efetivo, que, de fato,

produz o som; e o puramente simbólico o gesto figurativo, uma imagem mental

não necessariamente ligada ao movimento físico, mas passível de ser acessada

através do som. Esta definição se aproxima do que Hatten (2004 apud

JENSENIUS et al., 2010, p. 18, tradução minha) define como “a interação (e

intermodalidade) de uma gama de sistemas motores e perceptuais [que

sintetiza] a formação energética do movimento através do tempo em eventos

significantes com força expressiva única”.

O continuum entre funcional e simbólico presente em Delalande (1988) é

interessante na medida em que revela que o gesto necessariamente transpassa

os diferentes níveis da experiência musical. Mas sua noção de “pureza” é

inapropriada, pois subentende que possamos, de fato, isolar o funcional do

simbólico, ou o corporal do mental. Além disso, seu “gesto funcional” diz respeito

exclusivamente aos movimentos corporais engajados na produção de som e de

som considerado “musical” em determinado contexto estético-musical.

Em suma, o estudo do gesto, via de regra, subjuga o movimento à

linguagem, seja ela verbal ou musical. Além disso, isola o movimento da

                                                                                                               26 Delalande, F. La gestique de glenn gould. Glenn Gould Pluriel, p. 84-111, 1988.

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  44  

estrutura musical, o movimento físico e o movimento como padrão cognitivo

entre si. Ao fazê-lo, termina por reforçar a separação entre o movimento dos

instrumentistas e regentes (“especialistas”) e o dos dançarinos e ouvintes

(“amadores”). Mas não estaria a característica comunicativa e expressiva do

gesto justamente na articulação entre esses diferentes níveis em que ele

acontece? Qual a contribuição de uma simulação de pureza, numa relação que

só existe enquanto impura?

Obviamente, não pretendo afirmar aqui que o gesto dos dançarinos

produz som da mesma maneira que o gesto dos músicos (ainda que possam

produzir), ou que o headbanging do guitarrista produz som como movimento de

seus dedos27 (ainda que possam ajudar a produzir). Mas, se estamos falando de

expressão e significação do ponto de vista da teoria do significado embasado no

corpo, todos esses gestos são expressivos e produzem significado, pois todos

eles estão presentes na experiência musical. Neste sentido, esses gestos

podem não produzir sons passíveis de ser considerados como “sons musicais”,

afinal, o que chamamos de “musical” depende dos códigos dentro do nosso

ambiente cultural – porém certamente produzem música. São textos dentro de

um mesmo contexto, e parte ativa da rede de interações significantes entre

organismo e ambiente.

Se pensarmos a partir de qualquer experiência que já tivemos com

música, vemos que esta hipótese é elementar; mas a mesma hipótese soa

subversiva dentro do contexto do pensamento musical autodenominado

“erudito”, pois quase todas as ferramentas atuais da musicologia foram criadas

com base na ideia de obra de arte autônoma. (COOK, 1998; WISHART, 1996).

Estas tomam como princípio a compartimentação da experiência musical,                                                                                                                27 Não podemos esquecer que o gesto dos dançarinos produz sons – “ruídos” do ponto de vista

de uma determinada tradição musical, mas, inegavelmente, sons – que são usados com frequência na dança contemporânea também como elemento musical. Além disso, também podemos nos perguntar se o headbanging dos guitarristas não é também um movimento que ajuda na mecânica da técnica referente à linguagem do rock. Em realidade, segundo Menezes (2003, p. 19), “a primeira constatação acerca do fenômeno acústico e da existência dos sons diz respeito a essa dupla lei inexorável: sem movimento não pode haver som, e todo movimento produz um som, sejam estes percebidos ou não por nosso mecanismo auditivo.”

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separando o som do corpo sonoro, a partitura da performance, o gênio do

público, a percepção da ação, o texto do contexto, a mente do corpo, o

organismo do ambiente. Criam, portanto, simetrias dicotômicas que, como diz

Boaventura de Souza Santos (2007, p. 27), sempre escondem uma hierarquia.

Acredito que já é tempo de desfazer essas dicotomias, tendo em vista

entender que a música, bem como todo significado, emerge do processo

contínuo de significação mútua entre organismo e ambiente, entre texto e

contexto. Talvez só assim consigamos fazer com que “as experiências que já

existem mas são invisíveis e não críveis estejam disponíveis; ou seja,

transformar os objetos ausentes em objetos presentes”. (SANTOS, 2007, p. 32).

1.4 Em busca de um método de análise baseado no corpo

Analisar uma obra artística partindo do pressuposto de que o significado é

embasado no corpo e se dá nas transações organismo-ambiente é bastante

desafiador. Isso porque, como já dissemos, as ferramentas de análise que temos

disponíveis têm seus pilares fincados na ideia de obra de arte autônoma. São

calcadas na suposição de que as linguagens artísticas são (ou buscam ser)

todos coerentes que, colocadas num mesmo contexto, interagem numa espécie

de “troca desinteressada” de informações, que não as modifica estruturalmente

em nada.

Apesar [da análise musical] considerar composições individualmente como todos completos, e relacionar as partes da composição a paradigmas abstratos, nos falta qualquer vocabulário, metodologia ou conceitos que poderiam lidar com relações concretas entre composições. […] Uma resposta a esta situação seria repensar tanto a atividade quanto os objetos da análise, em analisando um campo relacional ao invés de uma obra discreta […] (KORSYN, 1999, p. 59, tradução minha).

Baseando-nos em Korsyn, vemos que a análise musical tradicional tem

seus pés fincados no esquema do recipiente. Um recipiente tem limites

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geralmente bem definidos e contêm elementos dentro de si, podendo

compartilhar elementos com outro recipiente sem, no entanto, alterar sua forma.

“Se algo ‘fora’ do texto torna-se ‘parte’ do texto numa unidade singular em

análise, então estas metáforas de ‘dentro’ e ‘fora’ tornam-se profundamente

problemáticas.” (p. 59, tradução minha). Korsyn aponta que a análise musical

sempre se dividiu entre a análise sincrônica da estrutura interna da obra e as

narrativas diacrônicas da história (que, por sua vez, observam a composição

como um ponto numa linha temporal separando passado, presente e futuro),

criando uma sensação de dentro e fora. “Ou se está dentro da peça,

assegurando suas fronteiras através de análises ‘internas’, ou se está ‘fora’,

mapeando a posição da peça em relação a outras unidades fechadas.”

(KORSYN, 1999, p. 55, tradução minha).

Apesar de estar se referindo mais especificamente à analise musical

formal versus o contexto histórico, é possível utilizar as ideias de Korsyn (1999)

pensando no contexto também como o tempo e o espaço em que a performance

se dá. Tomando, por exemplo, música e dança – que seriam, do ponto de vista

da análise tradicional, unidades fechadas –, uma necessariamente torna-se o

contexto da outra, numa invasão mútua. Segundo Greiner e Katz (2006, p. 130,

grifo meu), “já há alguns anos o ‘onde’ deixou de ser apenas o lugar em que o

artista se apresenta, transformando-se em um parceiro ativo dos produtos

cênicos. Ao invés de lugar, o onde se tornou uma espécie de ambiente

contextual.”

Em realidade, o onde sempre foi um ambiente contextual, mas só agora

se tem aparatos conceituais para dar conta dessa dimensão da experiência

artística e da comunicação em geral. E, mesmo assim, como diz Korsyn (1999,

p. 56, tradução minha), a pesquisa musical continua presa na ideia de autonomia

e vem relutando em “encarar as consequências de tal pensamento em

reconstituir não apenas nossos métodos, mas mesmo os objetos em

investigação”.

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  47  

Ao questionar a fronteira entre texto e contexto, estou questionando

também a fronteira entre diferentes linguagens, pois, segundo a teoria do

corpomídia de Greiner e Katz (2006),

[…] o corpo não é um recipiente, mas sim aquilo que se apronta nesse processo co-evolutivo de trocas com o ambiente. E como o fluxo não estanca, o corpo vive no estado do sempre-presente, o que impede a noção do corpo recipiente. O corpo não é um lugar onde as informações que vêm do mundo são processadas para serem depois devolvidas ao mundo. […] O corpo é o resultado desses cruzamentos, e não um lugar onde as informações são apenas abrigadas. […] (GREINER; KATZ, 2006, p. 130-1).

Assim como o corpo, o que chamamos de música e dança também é

resultado deste cruzamento, produzindo significado através do jogo de

similaridade e diferença realizado nos processos metafóricos cognitivos.

Similaridade e diferença estão no cerne do processo de criação de significado

metafórico.

Como explicam Johnson e Lakoff (1980), a metáfora sempre traz um

entendimento parcial do conceito, pois revela algumas partes enquanto esconde

outras. Se a metáfora TEMPO É DINHEIRO (que citei anteriormente) revelasse

tudo sobre TEMPO, o conceito DINHEIRO seria idêntico ao conceito TEMPO. No

entanto, sabemos que DINHEIRO não esgota as definições de TEMPO.

Experienciamos o TEMPO de maneira complexa, múltipla e necessariamente

dependente do ambiente e das pessoas com quem nos relacionamos. Tal como

acontece com todos os conceitos metafóricos, partes do conceito DINHEIRO que

não são conformantes a TEMPO tornam-se disponíveis tambêm como atributo

(por exemplo: a materialidade do dinheiro; a falta de controle que temos sobre a

passagem do tempo).

Segundo Cook (1998), é esta similaridade possibilitadora que faz com que

as metáforas façam sentido através de atributos em comum, e a pré-condição da

criação de significado entre mídias dentro de uma obra artística. Isto acontece,

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por exemplo, na relação da música com a dança e com o cinema, duas

linguagens se desenrolam no tempo e para as quais o movimento é

evidentemente fundamental. Para o autor, “qualquer alinhamento da música com

imagens em movimento que alcança um limiar de similaridade entre as duas

pode instantaneamente efetuar a transferência de qualidades cinestésicas entre

uma e outra.” (p. 78, tradução minha). 28 A nossa percepção do tempo como um

movimento no espaço, tal como exemplificada em Johnson e Larson (2003), é

uma parte desses encadeamentos.

Não podemos esquecer que a similaridade é metaforicamente criada a

partir da nossa experiência num determinado ambiente cultural. A relação entre

música e movimento, portanto, é ao mesmo tempo baseada no corpo e

culturalmente construída. Assim, as similaridades entre, por exemplo, música e

dança, tanto dizem respeito a um vasto repertório dinâmico, culturalmente

determinado, quanto às nossas experiências corpóreas mais íntimas – que, por

sua vez, também determinam o ambiente cultural.

Como aponta Cook (1998), a similaridade é uma condição primeira para a

produção de significado, mas não é em si suficiente. O significado existe na

medida em que essa similaridade permite a transferência de atributos, a

princípio não similares, de um conceito a outro. Há que se ter uma espécie de

sobra de atributos entre as diferentes linguagens, um conjunto de características

inaptas à conformidade, para que o significado surja. É na diferença, inerente a

toda relação metafórica entre linguagens e contexto, a toda relação de

organismos num determinado ambiente, onde, de fato, emerge o significado.

Além disso, similaridade e diferença não são características fixas do

processo metafórico, mas sim produtos de um processo dinâmico. Assim, o que

é similaridade num contexto pode muito bem ser diferença em outro. Um

                                                                                                               28 O episódio da aula de natação observada por John Cage ao som da jukebox, desta maneira,

seria o momento em que o compositor perceberia esta disponibilidade imediata à metaforização entre música e movimento. Segundo Cage, esta percepção o levaria, junto a Merce Cunningham, a transferir das mãos do artista para os olhos e ouvidos do público a responsabilidade da negociação de significado entre as linguagens.

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  49  

exemplo: se entendermos AMOR estruturalmente como GUERRA, geralmente,

entenderemos nosso companheiro como um inimigo a ser vencido ou um

território a ser conquistado. O companheirismo, a princípio, estará fora da

metáfora, e, portanto, fora da realidade que ela ajuda a construir. Se

entendermos AMOR estruturalmente como TRABALHO COOPERATIVO, por

outro lado, o companheirismo estará totalmente absorvido na metáfora, que cria,

portanto, um novo significado para o amor. “O modelo metafórico invoca a

similaridade não como fim, mas como meio. O significado não é inerente aqui à

similaridade, mas na diferença que a similaridade articula por conta da

transferência de atributos.” (COOK, 1998, p. 81, grifo meu, tradução minha).

O significado surge neste processo de esconder e revelar. Através da

criação e da flexibilização de similaridades e diferenças, podemos ver novo

significado em antigas metáforas. Na metáfora TEMPO é DINHEIRO, pensamos

na expressão “eu estou gastando meu tempo inutilmente” como literal. A parte

do conceito DINHEIRO como um recurso limitado é uma parte sublinhada, nesse

caso, a tal ponto que não entendemos mais como uma relação metafórica, e sim

como verdade. Por outro lado, entendemos a expressão “eu guardo as horas no

bolso” como uma expressão figurativa (dir-se-ia: “metafórica”), pois a parte do

conceito DINHEIRO como um objeto que pode ser carregado no bolso não é

uma parte comumente sublinhada na metáfora TEMPO é DINHEIRO. Entretanto,

a expressão “eu guardo as horas no bolso” faz sentido. O que até então era

diferença – um aspecto do conceito que, a princípio, não pode ser transferido

para outro – torna-se nova similaridade. A exploração destes lugares obscuros

da metáfora expande nosso entendimento e proporciona outros desdobramentos

de significado do que já conhecemos como TEMPO.

Além disso, novo significado também pode surgir, é claro, através da

criação de novas metáforas.

Quando a rede [de implicações] (entailments) de fato comporta [nossas experiências sobre amor, estas] formam um todo coerente como instâncias da metáfora. O que experienciamos

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[…] é um tipo de reverberação por entre a rede de implicações que acordam e conectam memórias das nossas experiências amorosas passadas […] Porque a metáfora sublinha importantes experiências amorosas e as faz coerentes enquanto mascara outras experiências de amor, a metáfora dá ao amor um novo significado. Se as coisas implicadas pela metáfora são para nós os aspectos mais importantes das nossas experiências amorosas, então a metáfora pode adquirir o status de verdade. Para muitas pessoas, amor é uma obra de arte colaborativa. E porque o é, a metáfora pode ter um efeito feedback, guiando nossas futuras ações […] (JOHNSON; LAKOFF, 1980, p. 141-2, grifo meu, tradução minha).

É curioso que Johnson e Lakoff (1980, p. 140-2) utilizem a metáfora

METÁFORA como SOM, através dos termos “reverberação” e “feedback”, para

explicar o processo de criação de novo significado na combinação das nossas

experiências passadas. Pois, segundo Menezes (2003, p. 184), a reverberação

é a mistura que se dá entre “a emissão direta de um som e a reflexão que o

objeto sonoro sofre nas paredes, objetos e obstáculos que nos circundam.” Para

o autor, esta defasagem entre o som direto e sua reflexão faz com que o som

“confronte-se consigo mesmo” – sua versão do presente confronta-se e mescla-

se a uma versão do passado.

Mais interessante ainda é o uso da ideia de feedback: uma realimentação

de um som causada pelo loop de uma entrada (por exemplo, um microfone) e

uma saída de áudio (por exemplo, um autofalante). Matematicamente, o

feedback (positivo, neste caso) é definido como um ganho, geralmente em

crescimento exponencial, que ocorre por conta de um loop fechado de causa e

efeito. Assim como na reverberação, o sinal entra em fase com o input –

entretanto, o próprio sinal do output alimenta o input novamente, o que faz com

que esse sinal fique cada vez maior. Isto tende a tornar o sistema instável, com

oscilações e desequilíbrios crescentes que chegam a um nível extremo. A partir

daí, ou o sistema é danificado (ou mesmo destruído), ou ele encontra,

novamente, outro estado de equilíbrio.

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  51  

É mais ou menos isso o que acontece quando nos confrontamos com um

novo significado a respeito de conceitos centrais à nossa vida. Como exemplo,

Johnson e Lakoff (1980, p. 139-46) utilizam a metáfora AMOR é uma OBRA DE

ARTE COLABORATIVA. Segundo os autores, essa metáfora é recente na nossa

cultura – surgiu, provavelmente, graças às mudanças comportamentais que

ocorreram no século XX – e, de fato, desestrutura e reestrutura nossa maneira

de ver e agir num relacionamento amoroso. AMOR é uma OBRA DE ARTE

COLABORATIVA desestabiliza metáforas até então definidoras da nossa

realidade, tais como AMOR é GUERRA, pois grande parte das características da

nossa experiência de amor que uma revela são as mesmas que a outra

esconde.

Novas metáforas criam novos significados, que criam novos

comportamentos. Mas comportamentos só podem ser modificados se há uma

instabilidade no sistema. Para se ter novo significado há que, pelo menos por um

período de tempo, perder o sentido e estar à mercê do desequilíbrio, antes que o

sistema se estabilize novamente numa nova organização em que o novo

significado seja entendido como verdadeiro. A criação de novo significado

necessariamente implica em risco.

Não por acaso o risco é, também, condição sine qua non de qualquer

experiência artística transformadora. Portanto, acredito que a criação de novo

significado (por princípio embasado no corpo), tanto através da revelação de

aspectos até então obscuros de metáforas bem estabilizadas, quanto da criação

de novas metáforas, é a principal matéria-prima da arte. Partindo deste princípio,

creio que as metáforas cognitivas possam servir como ponto de partida para a

análise de obras artísticas. Podemos olhar uma obra de arte a partir da rede de

metáforas que ela ativa – como essa ativação se dá, se há e quais são as novas

metáforas, como elas se constroem, bem como analisar as relações

estabelecidas de similaridade e diferença e o novo significado que emerge a

partir delas.

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  52  

coerente  

consistente  

contraditório contrário

Cook (1998) faz um primeiro e importante passo nesse sentido,

baseando-se nas metáforas conceituais de Johnson e Lakoff (1980) e num

experimento realizado por Marshall e Cohen (1988)29, para propor um modelo

geral de interação entre mídias, enumerando três modos de interação:

conformidade, contestação e complementação. Esses modos são encontrados

através de um teste de similaridade e diferença, cujo esquema é reproduzido

abaixo, na figura 1.

Figura 1 – Teste de similaridade e diferença entre mídias, proposto por Cook. 30

                                                                                                               29 O experimento de Marshall e Cohen indica que há uma propriedade emergente da interação

entre diferentes mídias, “uma atribuição que é negociada, por assim dizer, entre as duas mídias interagindo à luz de um contexto individual”. (COOK, 1998, p. 69, tradução minha). Marshall e Cohen chegam à conclusão de que, uma vez estabelecida a analogia entre as mídias – se respectivos atributos (e não todos) das duas mídias interseccionam – então “alguns ou todos os atributos remanescentes da primeira tornam-se disponíveis como atributos da segunda mídia.” (p 69, tradução minha).

30 COOK, N. Analysing Musical Multimedia. Oxford: Oxford University Press, 1998. p. 99  

teste da similaridade

conformidade

teste da diferença

complementação contestação

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  53  

O teste da similaridade é baseado diretamente na distinção feita por

Johnson e Lakoff (1980, p. 45) entre metáforas coerentes e consistentes. Por

exemplo: a metáfora-base AMOR É VIAGEM gera tanto uma expressão

metafórica como “nosso relacionamento está naufragando” (viagem de navio),

quanto “nosso casamento está no fim da linha” ou “nosso casamento está

saindo dos trilhos” (viagem de trem). As duas últimas são metáforas

consistentes, pois ambas as expressões se referem à experiência específica de

uma viagem de trem. Já a relação entre “nosso relacionamento está

naufragando” (viagem de navio) e “nosso casamento está saindo dos trilhos”

(viagem de trem) é coerente, mas não consistente, pois as metáforas se

relacionam indiretamente, “através da sua derivação comum de AMOR É

VIAGEM”. (COOK, 1998, p. 99, tradução minha).

Segundo Cook (1998), caso a metáfora seja consistente, o modelo da

relação é de conformidade. Mas na maior parte das vezes, tal como Cook

aponta, a conformidade acaba sendo algo mais da teoria (como, por exemplo, no

Gesamtkunstwerk, ou nas experiências artísticas supostamente sinestésicas dos

simbolistas do fim do século XIX) que da prática artística, pois, como já

dissemos, a metáfora nunca esgota um conceito em outro conceito.

O teste da diferença é baseado em duas relações de diferenciação:

contrariedade e contradição. Em ambas há elaborações diferenciadas;

entretanto, na contrariedade, as mídias se entrelaçam, ao invés de confrontar-

se, “compartilhando a mesma estrutura narrativa e geralmente alinhadas, mas

elaborando a estrutura base de maneiras diferentes” (COOK, 1998, p. 102,

tradução minha). Já na contradição, diferentes mídias estão “disputando o

mesmo terreno, cada uma querendo impor suas características sobre as outras”.

(p. 103, tradução minha). Como diz Cook, qualquer obra artística em que suas

mídias constituintes tendem à autonomia, a fechar-se em si mesmas, é passível

de ser caracterizada pela contestação.

Conformidade e contestação estão, nesse sentido, em campos opostos. A

conformidade tende ao estático e ao essencial; levada às últimas

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  54  

conseqüências, significa a anulação das mídias. A contestação tende ao

dinâmico e ao contextual; levada às últimas consequências, significa a

destruição das mídias. O significado surge no atrito gerado por essa dinâmica,

pela recusa das mídias tanto à destruição quanto à anulação.

Segundo Cook, portanto, a interação entre as mídias é possibilitada pela

similaridade, mas predicada pela diferença. Isto está em plena concordância

com as metáforas cognitivas de Johnson e Lakoff (1980), pois similaridade e

diferença, na verdade, se dão através do jogo de revelar e esconder aspectos

dos conceitos implicados numa metáfora.

Korsyn (1999) utiliza a relação dialógica de Bakhtin (1984) para tentar dar

conta dessa coabitação da diferença e da similaridade na produção de

significado numa obra de arte. Ele chama a atenção para a “heterogeneidade

irredutível” identificada por Bakhtin no discurso novelístico – que, para Korsyn

(1999, p. 62), também estaria presente em qualquer obra musical. Mas esta não

é uma heterogeneidade de discursos como todos completos entre si, como na

ideia de obra de arte autônoma. Pelo contrário: é a heterogeneidade que o

próprio diálogo possibilita e engendra, e que está presente na estrutura de

qualquer discurso. Nesse sentido, ela está próxima do modelo das metáforas

cognitivas de Johnson e Lakoff, e em posição oposta à autonomia.31

Cook (1998) parece estar de acordo com esta visão quando diz que “ao

invés de falar sobre significado como algo que a música tem, deveríamos falar

sobre significado como algo que a música faz (e algo que se faz com ela) num

determinado contexto” 32 (p. 9, tradução minha), ou então que a música possui

“um potencial para a construção ou negociação de significado em contextos

                                                                                                               31 Até que ponto podemos aplicar conceitos da filosofia da linguagem e da análise literária, para

tentar explicar música, dança e outras manifestações artísticas? Até que ponto estes conceitos não se tornariam um impedimento para que agarremos a significação baseada no corpo? Essas perguntas se fazem presentes ao longo deste trabalho. Entretanto, respondê-las foge das raias desta monografia.

32 Aqui temos mais uma tradução complicada. O original de Cook é: “[…] we should be talking about [meaning] as something that the music does (and has done to it) within a given context”. Ou seja, significado é algo que ao mesmo tempo é agente transformador e matéria transformada da música. Devo esta tradução a Shannon Garland.

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  55  

específicos […]”. (p. 23, tradução minha). Ou, ainda, que “a música pode ser

descrita como um espaço semântico estruturado, um lugar privilegiado para a

negociação de significado” (p. 23, tradução minha), “associando-se

promiscuamente a qualquer mídia que estiver ali disponível” (p. 92, tradução

minha).

A questão [“o que a música significa?”] trata significado como se fosse um atributo intrínseco da estrutura sonora, ao invés de um produto da interação entre estrutura sonora e as circunstâncias da recepção. Ela pergunta sobre um conteúdo discursivo num plano abstrato, quando tal conteúdo é negociado em específicos contextos interpretativos. (COOK, 1998, p. 23, tradução minha).

Cook (1998) está, portanto, argumentando contra a ideia de obra de arte

autônoma, tentando afirmar que o significado musical só pode existir numa

relação dinâmica e processual do texto com o contexto. O calcanhar de Aquiles

de seu modelo de análise parece ser precisamente a escolha do termo

multimídia – provavelmente, feita pela falta de outro termo melhor. O conceito de

multimídia parece defasado demais em relação às metáforas conceituais de

Johnson e Lakoff (1980), que são, de fato, a base de seu método de análise. Ao

rotular a cultura musical como “irredutivelmente multimídia por natureza” (COOK,

1998, p. 23, tradução minha), ele está, na escolha do rótulo, reforçando a própria

noção de obra de arte autônoma que deseja combater. Afinal, está se referindo,

aqui, ao “papel constitutivo da interpretação, mais especificamente a

interpretação verbal, no jogo de representações ao qual chamamos de cultura

musical.” (p. 23, tradução minha). Ele em nenhum momento cita o papel do

corpo na constituição dessa cultura, que vai muito além de um jogo de

representações. E, durante todo seu livro, passa ao largo do fato de que a base

das metáforas conceituais está em processos necessariamente baseados no

corpo.

Além disso, o próprio termo multimídia que compõe o título de seu livro e

é tido como seu objeto de estudo, está calcado na metáfora do recipiente.

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Pressupõe que as mídias possuem fronteiras definidas com seu entorno; que

são entidades completas em si mesmas, as quais, colocadas lado a lado,

interagem, criando novos e outros significados. Cook (1998), aqui, incorpora a

corrida da musicologia atrás de seu próprio rabo, pois, ao calcar-se na metáfora

MÍDIA é um RECIPIENTE, parece deixar escapar o fato de que as mídias não

são mais as mesmas depois da interação. Elas nasceram justamente da

promiscuidade desta interação e são formadas e constantemente modificadas

por ela.

Além da ideia obsoleta de multimídia, o modelo de interação entre mídias

de Cook parte de outro princípio problemático: em prol da análise, trata da

diferença e da similaridade como campos distintos e adjacentes, enquanto o

próprio autor assume que são partes de um mesmo processo de significação.

Ou seja: toda e qualquer emergência de significado, necessariamente, calcar-se-

á tanto na diferença quanto na similaridade.

Entretanto, bem sabemos que similaridade e diferença fazem parte do

vocabulário da composição artística; são ferramentas criativas processuais na

busca da arte por novos significados. Não é difícil encontrar, inclusive, diversas

matizes entre similaridade e diferença dentro de uma única obra. Talvez seja

mais profícuo para a análise tratar similaridade e diferença desta maneira, e não

como rótulos para serem colados nas obras depois de prontas. Afinal, o que

pode parecer uma relação de total similaridade para uns, pode também parecer

diferença para outros; e similaridade transforma-se em diferença (e vice-versa)

de acordo com o tempo e o lugar em que estamos.33

No capítulo seguinte, apresentarei algumas das minhas experiências mais

significativas fazendo música para e com dança. Nelas, questionamentos a

                                                                                                               33 Na composição da Sagração da Primavera (1913), Stravinski e Nijinski não pouparam

esforços para que a dança estivesse o máximo possível em plena similaridade com a música – entretanto, a opinião de muitos críticos da época foi que dança e música não “combinavam”. Para uns, a dança parecia mais grotesca que a música; para outros era o oposto. Hoje, depois de todo o processo de emancipação entre música e dança, ao assistir reconstituições da coreografia original de Nijinski temos a sensação de uma similaridade gritante.

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respeito da significação como um processo metafórico, embasado no corpo,

foram aparecendo de maneira empírica. Foram estes questionamentos que

sugeriram as direções deste trabalho de pesquisa.                                                                              

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CAPÍTULO 2 - Experimentos

(...) a música começa a se atrofiar quando se afasta muito da dança; (...) a poesia começa a se atrofiar quanto se afasta muito da música;

(...) Bach e Mozart nunca se distanciaram muito do movimento corporal.

(Ezra Pound, 2006, p. 22)

Minhas indagações a respeito do papel do corpo na criação de significado

musical (bem como de significado em geral) surgiram a partir de um contexto

artístico bem específico: a composição de música para e com dança, atividade

que venho realizando continuamente há quinze anos – situação que chamarei, a

partir de agora, de dançamúsica.

Além do benefício da concisão, vejo uma diferença de abordagem se

pensarmos em dançamúsica ao invés de “trilha sonora para dança” ou “música

feita para dança”. Trilha sonora é um termo recente, advindo do cinema (do

inglês soundtrack). Refere-se, diretamente, à materialidade do filme, pois é como

se chama a faixa da película adjacente à faixa das imagens (e nisso o termo

francês bande sonore é ainda mais explícito, já que bande significa faixa, tripa,

pedaço longo de tecido ou outro material). Entretanto, tanto no inglês quanto em

português, trilha sonora pode dar a interpretação de uma música sobre a qual a

obra em questão é construída, servindo, portanto, de base e fornecendo os

alicerces para a(s) outra(s) linguagem(ns) envolvida(s). O termo acaba

sugerindo, assim – erroneamente, do ponto de vista de sua origem –, uma

relação bem específica entre música e outras linguagens (que de fato ocorre, por

exemplo, nas coreografias de Nijinski ou Pina Bausch para a Sagração da

Primavera, ou na cena da barbearia de O Grande Ditador (1940), de Chaplin, em

cima da Dança Húngara nº. 5 (1869), de Brahms. Música para dança sugere, por

outro lado, a relação oposta: a de uma música encomendada para uma

coreografia já pronta. Nenhuma dessas duas alternativas dá conta de pensar a

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complexidade de música e dança, criando-se e ressignificando-se num processo

contínuo de interação entre si e com o ambiente. E, diga-se de passagem,

tampouco dão conta dos exemplos supracitados: é evidente que, após

assistirmos à cena de Chaplin, nós nunca ouviremos a Dança Húngara nº. 5, de

Brahms, da mesma maneira. O mesmo ocorre em Nijinski ou Bausch: a

Sagração da Primavera é transformada em outra a cada coreografia dedicada a

ela.

Não por acaso, tais inquietações foram despertadas justamente em

contextos em que o corpo era o mote – a dança –, e não em análises de

partituras. Nenhuma das abordagens com as quais tive contato durante todo

meu aprendizado musical mais formal apontou para esse caminho34. Foi fazendo

dançamúsica, atividade considerada de segunda ou mesmo última ordem nos

meios musicais autointitulados “eruditos”, que formulei a hipótese de que música

é e só pode ser algo criado e recriado no corpo, em sua contínua interação com

outros corpos num ambiente. Portanto, precisamos começar a ver a música

dessa maneira se quisermos, de fato, investigar a emergência de significado

musical. E, para consegui-lo, precisamos parar de ver a música como uma arte

autônoma, cerrada e encerrada em sua estrutura.

Todos os processos de criação em dançamúsica dos quais participei

(música composta ou improvisada; música original ou não; feita antes ou depois

da composição coreográfica; gravada em estúdio ou executada ao vivo; bem

como diferentes mesclas das anteriores) tinham em comum a utilização de

alguns esquemas formais predefinidos, aplicados tanto sonora quanto

corporalmente, quer de maneira consciente ou espontânea. Parâmetros como

intensidade, densidade e duração, por exemplo, eram facilmente incorporados

tanto à composição coreográfica quanto à musical. Já parâmetros corporais

como plano, por exemplo, podiam ser associados tanto à intensidade quanto à

altura.

                                                                                                               34 Que eu me lembre, a única exceção foram as aulas de canto que tive com Izabel Padovani,

que também possui formação em Técnica Alexander.

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Um salto e uma escala ascendente; um movimento rápido e preciso com

o braço e um som de ataque e ressonância; uma ação espasmódica no corpo e

uma figura rítmica acelerada e assimétrica; pausa na dança e silêncio na

música: estes são alguns dos muitos exemplos de relação que sugerem, tanto à

plateia quanto aos performers, uma suposta literalidade entre som e movimento.

Ou seja: esta relação poderia ser percebida como natural, universal, a priori –

uma relação de similaridade, portanto. 35 Além disso, também poderia ser

contestada, criando uma situação de oposição dança/música, ou uma relação de

diferença. Seja operando na similaridade ou na diferença, essa reciprocidade

entre som e movimento se mostrava como um rico material de criação.

Entretanto, apesar da relação supostamente intrínseca entre alguns

parâmetros corporais e sonoros (como, por exemplo, a relação entre altura dos

sons e plano espacial, entre pausa e silêncio), diferentes corpos, ambientes e

sons criavam outras similaridades e diferenças, que aparentariam ser igualmente

verdadeiras. Era evidente, portanto, a importância da cena e do contexto para

que estas relações se estabelecessem. Como afirma Cook (1998, p. 83,

tradução minha), “a significação é função do contexto; é, em uma palavra,

performativa.” A relação dançamúsica, portanto, mostrava-se mais metafórica

que inerente, mais dinâmica que estática. Além disso, mesmo que estas

relações não fossem predeterminadas, estes diferentes corpos – incluindo aqui o

público – construiriam estas relações independentemente da vontade do

performer.

Em suma: dança e música, via de regra, eram construídas a partir dos

mesmos procedimentos formais, relacionando-se a partir da similaridade e da

diferença entre seus parâmetros internos (p. e. altura sonora-plano corporal,

intensidade sonora-velocidade do movimento, densidade de elementos sonoros-

densidade de movimento). Estas relações de similaridade e diferença                                                                                                                35 A radicalização desta suposta literalidade – e um cliché da composição de trilha sonora – é o

conceito de mickey-mousing, advindo do cinema mudo e, mais especificamente, do desenho animado, em que a trilha recebe a função de ilustrar, “literalmente”, o movimento dos personagens e todas as ações físicas que acontecem no filme.

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aconteceriam de acordo com a especificidade do ambientecontexto36, incluindo,

aí, outros performers em cena e público. Este ambientecontexto também

estabeleceria relações independentes por sua própria conta, por vezes

contraditórias às pensadas pelo performer.

Estas correspondências entre música e dança não eram, portanto,

estáticas, mas necessariamente dinâmicas, processuais e relacionais,

construídas entre performers e público, entre organismo e ambiente, entre texto

e contexto. A dançamúsica proporcionaria à música e à dança a oportunidade de

desestruturar seus apriorismos, numa “destruição criativa” de sua identidade e

de seus valores internos. A consciência do corpo, num fluxo constante de troca

com o ambiente, estabelecia uma necessidade urgente de troca, e essa troca

significava um risco para sua ilusão de autossuficiência. A partir dessa

desestabilização, corpo, som e ambiente se ressignificariam a cada instante.

Se isto está presente, conscientemente ou não, em qualquer contexto de

dançamúsica, nos trabalhos que possuíam algum grau de improvisação estas

relações estariam mais explícitas. Segundo Martins (1999, p. 60-1), na

improvisação,

[...] cada ignição combinatória possibilita que todo o sistema dialogue e se posicione face a essa nova combinação. Essa nova combinação irriga e desestabiliza todo o sistema. Ou seja, a improvisação é desestabilizadora do sistema e dialoga com as determinações lá existentes.

Entretanto, como diz Martins (1999), a improvisação é comumente vista

como um território de liberdades totais e a garantia, por si só, de produção de

novo significado. Esta é uma visão errônea, o que é facilmente percebido ao

olharmos trabalhos de improvisação em dança e/ou música. Pode-se encontrar

informação nova através do que é absolutamente determinado; e pode-se

permanecer na diluição e reafirmação do velho através da improvisação livre.

                                                                                                               36 Ver nota de rodapé no. 3, p. 11

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  62  

Uma ideia comum, que circula tanto entre músicos quanto entre dançarinos, é a

de que nada requer mais ensaio e treino do que a improvisação.

Parafraseando Ezra Pound (2006), vejo a improvisação como a

condensação da experiência artística no presente. Quando falo de experiência

artística aqui, estou me referindo ao continuum que há entre composição,

performance e recepção.

De acordo com a bibliografia apresentada no capítulo 1, podemos dizer

que os processos de composição, performance e recepção estão não só

sobrepostos, mas também implicados uns nos outros. Do ponto de vista

cognitivo, ouvir implica em compor, compor implica em performar e performar

implica em ouvir. Se na composição feita a priori há uma separação, ou melhor,

uma impressão de separação entre esses três campos – o que gera uma

sensação de controle –, na improvisação esta sobreposição acontece de

maneira explícita, e no momento da cena – o que gera uma sensação de

descontrole. O intervalo de tempo praticamente ausente entre composição,

performance e recepção obriga o performer a perceber-se no fluxo contínuo de

informação trocada entre seu corpo, os outros corpos presentes e o ambiente.

Neste fluxo contínuo, texto e contexto se reescrevem mutuamente, numa

incessante negociação entre o determinado e o imprevisível. A improvisação,

portanto, gera novo significado não tanto pela perda total de controle, mas mais

pela fricção entre a tentativa de controle e a percepção do caos.

O sistema luta para não ser desestabilizado; os sistemas querem permanecer (como aprendemos evolutivamente). Para tanto, precisam usar os mecanismos de sobrevivência, ou seja, impor os seus hábitos a esse “estrangeiro” que chega e que quer combinar hábitos, repropor jogos de montagem nas restrições evolutivas. Um sistema que é capaz de improvisar está mais apto a enfrentar uma situação nova, mas o sistema anterior à improvisação não quer a improvisação. (MARTINS, 1999, p. 61).

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A improvisação só pode acontecer, portanto, se há um conflito entre o

determinado, o previsível, o estático – em suma, tudo o que é similaridade – e o

indeterminado, o imprevisível, o dinâmico – em suma, tudo o que é diferença.

Por sua ênfase na troca do organismo com o ambiente, num processo

dinâmico que acontece entre a similaridade e a diferença, arrisco a hipótese de

que a improvisação é uma metáfora do próprio processo metafórico de

emergência de significado, seguindo Johnson (2007) e Lakoff e Johnson (1980,

1999), tal como vimos no capítulo 1. Assim, a improvisação parece ser um

campo fértil de pesquisa a respeito deste processo; e a improvisação em

dançamúsica, um campo fértil de pesquisa a respeito do processo de

significação entre e em ambas as linguagens.

Não por acaso, todos os trabalhos que suscitaram indagações a este

respeito possuíam algum grau de improvisação, fosse no processo criativo,

fosse também em cena. A seguir, falarei um pouco sobre a experiência em

alguns deles, e de que maneira eles foram, cada vez mais, incitando o

surgimento de perguntas e indicando caminhos para o entendimento do

processo de significação como embasado num corpo em constante interação

com o ambiente.

2.1 Deste meu todo teu ser (2002)

Esse espetáculo, com concepção e direção de Patrícia Noronha, foi o

único trabalho de dançamúsica em que participei como dançarina, além de

instrumentista. Aqui, já apareceriam questões a respeito da similaridade entre

corpo sonoro e corpo dançante, entre movimento implicado na música e

movimento implicado na dança, a partir de uma pesquisa de como trazer o

instrumento musical para dentro da dança.

Em algumas das minhas poucas cenas dançando, eu realizava uma

trajetória no palco com uma alfaia pendurada em um dos ombros (DVD – vídeo

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  64  

1).37 A alfaia é um tambor grande e pesado de madeira (tipicamente feita de

carnaúba), com vinte polegadas de diâmetro (podendo ser maior), com

membrana de pele de animal e afinado com cordas. É um instrumento

característico do cortejo de maracatu de baque virado, sendo também

encontrado em outras manifestações em Pernambuco e no Nordeste do Brasil.

Sua origem é incerta: não se sabe se é um instrumento africano, europeu ou

árabe. Entretanto, sua semelhança com o tambor militar europeu é inegável, e,

assim como ele, a alfaia é feita para ser tocada andando, num desfile. A maneira

particular de segurar as baquetas e de pendurá-la no ombro foi desenvolvida

levando em conta essa mobilidade (DVD – vídeo 2).38

Entretanto, a alfaia está longe de ser confortável de tocar. Instrumento de

cortejo, deve cantar alto; seu corpo grande e sua afinação grave exigem um

emprego de certa quantidade de força para que isso aconteça (força que é

minimizada, obviamente, com a técnica e a prática). O movimento do tocar deve

ser realizado com grande participação do antebraço, do braço e dos ombros,

pouco movimento dos pulsos e nada dos dedos. Estes são responsáveis por

agarrar as baquetas grossas e pesadas, travando-as nas mãos; diferente da

técnica de caixa clara, por exemplo, em que as baquetas são presas

precisamente pela pinça entre polegar e indicador, demandando movimentos

finos de todos os outros dedos, e ficando relativamente soltas na mão. De

acordo com Albernaz (2011), a alfaia está diretamente associada à

masculinidade. Há indícios de que a presença de mulheres tocando alfaia nos

cortejos seja algo bem recente, e, mesmo assim, ainda são poucas as nações

de maracatu que aceitam essa mudança paradigmática.

Há uma enorme particularidade na maneira tradicional de tocar alfaia. Não

tenho notícia de nenhum outro instrumento que seja tocado dessa maneira. Há

                                                                                                               37 DESTE meu todo teu ser. Registro de apresentação. Direção: Patrícia Noronha. Theatro São

Pedro, São Paulo (SP), 2002. Parte 6 de 9, 9’31’’. Disponível em: <https://youtu.be/UrtPiFMYyXA>. Acesso em: 24 ago. 2015.

38 MARACATU Nação Leão Coroado - "Oriô Oriô". Registro de performance. Olinda (PE), 8 fev. 2015. 2’02’’. Disponível em: <https://youtu.be/XphwksTZY2g>. Acesso em: 21 jul. 2015.

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  65  

um conjunto estabilizado de gestos que se tornam códigos específicos de um

contexto: o cortejo de maracatu. Uma vez tirada a alfaia deste contexto

particular, e inserida no novo contexto da dançamúsica, aparecia uma

necessidade de criar outros códigos, outras maneiras de tocar, outros cortejos

possíveis. Por conta de seu peso, a alfaia circundava meu corpo e saía do

controle dos meus quadris, que é onde o tambor se equilibra no andar do

cortejo. Esses movimentos desajeitados deveriam ser, de alguma maneira,

dança, ao mesmo tempo em que deviam produzir som. Ou, ainda, deveriam

produzir som, e disso nasceria a dança.

Como fazer do corpo dançante, do corpo sonoro (o instrumento) e do

corpo tocante um corpo só? Como fazer da dificuldade de mobilidade uma

ferramenta para a criação? Como criar um movimento que fosse interessante

tanto do ponto de vista visual e cinestésico quanto do ponto de vista sonoro – tal

como é o movimento do batuqueiro de maracatu?

De maneira nenhuma respondi a essas perguntas na coreografia com a

alfaia em Deste meu todo teu ser, talvez pela falta de tempo, talvez pela falta de

ferramentas corporais, talvez, também, porque essas questões não têm uma

resposta definida. Mas, pela primeira vez, entendi que o movimento da dança e

o movimento do tocar poderiam ser considerados como uma mesma coisa – o

que vemos, de fato, em muitos percussionistas e bateristas chamados de

performáticos, como Gene Kupra (DVD – vídeo 3)39, Gigante Brazil (DVD – vídeo

4)40, ou em composições da chamada música de cena, como as peças Musique

de Tables (1987)41 e Silence Must Be! (2002)42, de Thierry de Mey (DVD –

                                                                                                               39 GENE Krupa in a 1945 movie. Trecho do filme "George White's Scandals" (1945), de Felix E.

Feist. 4’05’’. Disponível em: <https://youtu.be/EOPQswhWPi4>. Acesso em: 15 set. 2015. 40 CEUMAR & Gigante Brazil - Meu Olhar. Registro de apresentação. Teatro Álvaro de

Carvalho, Florianópolis (SC), Jul. 2004. 4’41’’. Disponível em: <https://youtu.be/IqDNVvSahCw>. Acesso em: 12 out. 2015.

41 DE MEY, Musique de tables, Ensemble Intercontemporain. 1987. Registro de performance. Compositor: Thierry de Mey. Realização: Ensemble Intercontemporain na Cité de la Musique, Paris (França). Performers: Frédérique Cambreling, Jérôme Comte e Samuel Favre. 2012. 7’42’’. Disponível em: <https://youtu.be/GlrDqde05FA>. Acesso em: 26 out. 2015.

42 THIERRY De Mey, Silence Must Be! 2002. Performance da peça "Silence Must Be!" (2002), de Thierry De Mey. Interpretação: Nath Calan. Auditório do Instituto de Artes da Unicamp (SP),

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  66  

vídeos 5 e 6). Esses artistas, na verdade, têm como diferencial o fato de que

sabem, conscientemente ou não, que todos os movimentos de um instrumentista

possuem significado e contribuem para a significação musical. Para eles, a

separação entre dança e música não existe; eles brincam, justamente, nessa

zona de fronteira.

Tudo isso nos leva, mais uma vez, à lei fundamental da acústica: todos os

movimentos produzem som – mesmo que este som não seja perceptível pelo

nosso aparelho auditivo – e todo som precisa de movimento para existir. Saber

desta ligação indissociável entre som e movimento torna a pesquisa em

dançamúsica muito mais rica e complexa, e os limites entre dança e música

muito mais tênues, tal como sempre foram.

2.2 Improvisos (2009 - 2012) e Pessoal e Instransferível (2013-)

Apesar de já ter improvisado em diversos trabalhos com Patrícia Noronha

e Cia. Nova Dança 4, de Cristiane Paoli Quito, foi no grupo Silenciosas +

GTaime que comecei a fazer da improvisação uma pesquisa de fato. Essa

pesquisa implicou numa série de riscos, desestabilizando minha experiência já

relativamente longeva como instrumentista de música pop. O pop, mais que

qualquer outro estilo musical, é filho pródigo da era da reprodutibilidade técnica,

tendo a padronização (na forma de precisão metronômica, de invariabilidade

dinâmica, de eficiência e concisão da forma) como um ideal a ser buscado.

Como baterista de música pop, criei uma obsessão pelo fechamento da forma e

pela repetição. O trabalho com o grupo Silenciosas + Gtaime me obrigou a ir na

direção oposta a qual havia me acostumado a tocar e na qual havia me feito

artista.

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                         recital de mestrado. Concepção de áudio: Fernando Chaib, Bruno Santos e Saulo Giovanini. 10 ago. 2015. 5’03’’. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=h8DJATVFwzo>. Acesso em: 27 out. 2015.

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  67  

A pesquisa em improvisação de dançamúsica realizado no Silenciosas +

Gtaime também confirmou minhas suspeitas de que dança e música são

linguagens embasadas no corpo, e, por isso, podem criar significado a partir do

corpo e de suas experiências com outros corpos e o ambiente.

Improvisos (2009-2012) e Pessoal e Intransferível (2013) são dois

espetáculos em sequência, com ligações entre si. Ambos são calcados numa

pesquisa de improvisação, a partir de estratégias propostas pelo Diogo Granato,

em grande parte advindas dos jogos improvisacionais de Cristiane Paoli Quito.43

Em Improvisos44 a temática era absolutamente livre (DVD – vídeo 7). A

princípio não havia o uso de texto, e a música era calcada principalmente na

improvisação em cima de canções, em geral conhecidas pelo público – o que, de

saída, já estabelecia uma empatia imediata. Entretanto, estas improvisações

foram se mostrando, no campo da música, como um exercício de colagem. As

canções, executadas com bateria, baixo (Lelena Anhaia), guitarra (Claudia

Dorei) e três vozes, formavam, na verdade, blocos que poderiam se intercalar

em pedaços grandes ou pequenos, ou mesmo se justapor. Da mesma maneira,

guitarra, bateria, baixo e voz também formavam blocos em si, que se somariam

numa mesma canção, ou penetrariam outras canções às quais não pertenciam,

formando uma colagem também no eixo vertical. Portanto, tínhamos dois eixos

em que a colagem acontecia.

Passamos a tratar a música pop – referência principal para todas as três

musicistas do trabalho – como algo a ser manipulado livremente, em forma de

blocos a serem dispostos, justapostos, sobrepostos, intercalados da maneira

que melhor conviesse à improvisação. O exercício era que a canção não se

estabelecesse como um todo unitário; que tivesse entradas e saídas de                                                                                                                43 Infelizmente não pude adentrar, nesta dissertação, no rico universo dos jogos de improvisação

de Quito e Granato. Estes jogos são ótimo exemplo de estratégias composicionais que servem da mesma maneira a diferentes linguagens artísticas – e que funcionam. Acredito que a associação destes jogos com os esquemas de imagem de Johnson e Lakoff (1980, 1999) é evidente, e pretendo elaborá-la na continuidade desta pesquisa.

44 IMPROVISOS - Silenciosas + GTAime + Mariá Portugal. Registro de apresentação. Direção de Diogo Granato. Filmagem e edição: Osmar Zampieri. Teatro Poeira, Rio de Janeiro (RJ), nov. 2011. 3’44’’. Disponível em: <https://youtu.be/zYLKy_UfjvA>. Acesso em: 07 jul. 2015.

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Figura 2 – Apresentação de Improvisos no Teatro Poeira (RJ), em 2012. Foto: Haroldo Saboia

Figura 3 – Apresentação de Pessoal e Intransferível no Teatro Sérgio Cardoso (SP), em 2013.

Foto: Haroldo Saboia

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Figura 4 – anotação de ensaio: possível esquema de disposição dos diferentes elementos de duas canções (vermelho e azul) a serem desconstruídas no processo de colagem.45

elementos, e que fosse logo desestruturada pelo silêncio ou pela interrupção tão

logo se estabelecesse. Via de regra, sua típica estrutura A-B-refrão nem

chegava a se solidificar: a canção fragmentava-se em loops de uma parte

apenas, ou algumas frases, ou às vezes uma só palavra.

O descompromisso com a narrativa da letra, a constante frustração da

expectativa do público e dos próprios performers, o abandono da comunicação

imediata colocavam aquelas canções conhecidas e já gastas pelo uso – em um

só termo: kitsch – num outro lugar, num processo que lembrava as assemblages

de artistas plásticos como Kurt Schwitters (fig. 5).

Afinal, estávamos tratando os sucessos da música pop não como de

costume – recipientes fechados em si, repletos de memórias afetivas – mas

como objetos a serem manipulados sem nenhum tipo de reverência, tais como a

série Bichos (1961), de Lygia Clark (fig. 6). Este processo acabava por

ressignificar as próprias canções, que compunham um todo que mostrava, no

                                                                                                               45 PORTUGAL, M. Notas pessoais sobre o espetáculo Improvisos (2012). 2012. (não

publicado).

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Figura 5 – Mz 13 Call, Kurt Schwitters (1919)46

Figura 6 – Bicho: Caranguejo duplo, Lygia Clark (1961)47

                                                                                                               46 SCHWITTERS, Kurt. Mz 13 Call (1919). The Art Institute of Chicago Gift of Mr. and Mrs.

Maurice E. Culberg. 2014. Artists Rights Society (ARS), New York / VG Bild-Kunst, Bonn. Disponível em: <http://artblart.com/2015/03/19/exhibition-shatter-rupture-break-at-the-art-institute-of-chicago/>. Acesso em: 20 out. 2015.

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  71  

fim das contas, um alto grau de inventividade e surpresa.48

As interrupções, intercalações, cortes secos, mudanças abruptas ou

gradativas, justaposições etc., eram tanto sugestões da música à dança quanto

sugestões da dança à música, num encadeamento incessante. Estas mudanças

significavam um estímulo, tanto a mover-se quanto a não ser movido.

O que interessa aqui, principalmente, é que esta não era uma

improvisação musical comum, nos moldes do jazz, por exemplo, que, a princípio,

trabalha a partir de elementos internos a sua própria gramática. Aqui – e era a

presença da dança que mostraria isso – os parâmetros utilizados na

improvisação eram outros: densidade, textura, direcionalidade, tensão,

relaxamento, velocidade, intensidade, continuidade, descontinuidade, opacidade,

translucidez, etc. 49 Todos os parâmetros que utilizávamos para a criação em

música poderiam ser utilizados da mesma maneira para a dança (e vice-versa),

sem necessidade de qualquer tradução ou explicação verbal.

Estes eram parâmetros intimamente ligados à materialidade do corpo e à

presença do corpo relacionando-se com outros corpos num determinado

ambiente. Assemelham-se muito aos parâmetros identificados por Denis Smalley

(1997, 2007) na música eletroacústica, em sua abordagem espectromorfológica.

A correspondência com os esquemas de imagem de Lakoff e Johnson (1980,

1999) também é evidente.

Através das mesmas bases experienciais, música e dança poderiam

trabalhar metaforicamente – sublinhando e escondendo características uma da

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                         47 CLARK, Lygia. Bicho: caranguejo duplo. Pinacoteca do Estado de São Paulo. Disponível em:

<http://www.pinacoteca.org.br/pinacoteca-pt/default.aspx?mn=545&c=acervo&letra=L&cd=2425>. Acesso em: 26 out. 2015;

48 Fiz esses primeiros experimentos de manipulação plástica das canções pop junto à minha banda Trash Pour 4 (2004-2009), especialmente nas apresentações ao vivo – que, aliás, foram se tornando cada vez mais improvisadas, num processo bem parecido com a pesquisa no Silenciosas + Gtaime, embora não tão radical.

49 Entretanto, se o significado musical, tal como todo significado, é embasado no corpo, logo, a gramática do jazz deve articular significados também embasados no corpo. Dessa forma, parâmetros como densidade, textura, direcionalidade, tensão, etc. também podem ser utilizados na improvisação no jazz – e de fato o são, mesmo que os improvisadores não estejam articulando estes conceitos no discurso.

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outra num jogo de similaridade e diferença. E isto significava abandonar “os

mecanismos de defesa do sistema”, entre eles, a própria ideia de que o sistema

é fechado em si e possui suas regras próprias. Era uma contínua

desestabilização de apriorismos, numa consequente desorganização e

reorganização do material corporal e musical.

No espetáculo Pessoal e Intransferível (2013-), esta pesquisa em

improvisação foi ainda mais radicalizada (DVD – vídeo 8).50 Os instrumentos

seriam objetos de cena, não teriam nenhuma amplificação (com exceção da

guitarra, que usaria um pequeno amplificador) e poderiam ser deslocados no

palco de um lugar para o outro. Assim, conseguia-se, para a música improvisada

com os dançarinos, uma característica diegética. Desta maneira, evitava-se o

efeito de trilha sonora típico do cinema, de uma música disfarça seus

significados em efeitos (COOK, 1998, p. 21) e, com isso, traz o espectador “para

dentro” da cena ou do filme.

A qualidade diegética da música feita em cena era ainda mais ressaltada

pelo contraste com as inserções musicais que serviam como prólogo, interlúdio e

epílogo. Essas inserções eram reproduções de trechos da trilha do filme Sangue

Negro (2007), composta por Jonny Greenwood inteiramente para quarteto ou

orquestra de cordas. A instrumentação, a construção musical e o volume da

música incidental eram completamente diferentes do que se via no palco; as

fontes sonoras estavam ausentes; o som da cena deslocava-se do palco para os

alto-falantes. Tudo isso criava dois espaços sonoros completamente diferentes.

A música incidental reafirmava a posição de fragilidade e risco em que a música,

juntamente com a dança, encontrava-se ao fazer-se em cena.

Essa música feita no palco teria como ponto de partida a independência e

o paralelismo, tanto na relação entre as musicistas como na relação destas com

os dançarinos. As linguagens envolvidas deveriam estar, na medida do possível,

                                                                                                               50 PESSOAL e Intransferível, Silenciosas + GTaime. Registro de apresentação. Direção:

Diogo Granato. Filmagem e edição: Osmar Zampieri. Galeria Olido, São Paulo (SP), maio 2013. 3’26’’. Disponível em: <https://youtu.be/ofuX7ZZBGRY>. Acesso em: 03 mai. 2015.

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numa relação horizontal.51 Estabeleceu-se, também, que em nenhum momento

tocaríamos as três musicistas ao mesmo tempo, tal como podíamos fazer em

Improvisos. Isso rompia, já de saída, com a maneira com que estávamos

acostumadas a fazer música. Eis um trecho de anotações que fiz em sala de

ensaio:

As musicistas podem fazer como os bailarinos, e imitar o som que a outra faz no seu próprio instrumento. Esse é um jeito nada lugar-comum de tocar junto. O tocar junto me parece cada vez mais uma carta na manga pra soltar em momentos-chave, ou para criar um clímax, ou para salvar uma cena, pois é de uma força incrível. Acho que é muito mais rico buscar outras maneiras de tocar junto. Aliás, o que é tocar junto e o que é tocar separado? Será possível tocar separado, de fato, se ouvindo, estando na mesma sala? Não seria a contraposição, ou mesmo a negação, na verdade uma afirmação da existência do outro? (PORTUGAL, 2013).52

Tocar junto, aqui, refere-se à organização padrão dos instrumentos dentro

da música pop: a bateria mantém o pulso, variando ritmicamente através de

síncopes e subdivisões; o baixo exerce sua função harmônica tradicional, além

de dialogar ritmicamente com as subdivisões da bateria, reafirmando os tempos

fortes e sincopando em relação a eles; a guitarra fornece a base harmônica para

a melodia, relacionando-se ritmicamente, também, com os dois instrumentos

anteriores. Por conta de uma tradição já bem arraigada de instrumentação da

canção popular, é muito difícil, para a maior parte dos músicos com esta

formação, imaginar algo fora dessa estrutura. Esse era o nosso caso. E o tocar

                                                                                                               51 Apesar dessa tentativa, a persuasão é uma característica do som de ataque e ressonância, tal

como o produzido por um surdo ou uma caixa. Além disso, o volume conseguido por tais instrumentos sobrepujam em muito o volume normal da voz. Mais poder de influência e interferência nas outras linguagens envolvidas, portanto, deveria significar mais economia e sabedoria nas escolhas em cena. As linguagens e suas especificidades contam no processo e vão influenciar a maneira com que o jogo de improvisação se dá.

52 PORTUGAL, M. Notas pessoais sobre o espetáculo Pessoal e Intransferível. 2013. (não publicado).

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junto é considerado como uma qualidade, um objetivo a ser buscado por um

grupo através de uma rotina de ensaios e estudos.

Entretanto, existem diversas maneiras de tocar junto, mesmo dentro do

universo da música pop. Apesar da soberania do metrônomo neste tipo de

música, existem microvariações, pequenas acelerações ou desacelerações

dentro das células rítmicas que fazem uma diferença enorme na percepção. E,

se olharmos para estilos musicais como o samba ou o jazz, vemos que há, em

cada um deles, uma maneira muito singular de tocar junto que confere maior

liberdade em relação ao termo metronômico. Um exemplo disso é o que

chamamos de suingue (swing, no jazz), balanço ou molejo (no samba).

Assim, se Improvisos foi uma oportunidade de desconstruir esse tocar

junto da música pop; em Pessoal e Intransferível ele foi deliberadamente

eliminado. Aqui exercitaríamos a oscilação entre a coexistência independente

(tal como em Cage e Cunningham) e a total contestação. Era, de maneira geral,

uma recusa à criação de similaridade – pelo menos do ponto de vista dos

improvisadores. Esta oscilação perpassaria todos os elementos em cena –

dança, música, luz e, no caso deste espetáculo, também o texto, em forma de

depoimentos.

Tais experiências com o grupo Silenciosas + Gtaime mudaram

radicalmente minha maneira de tocar, cantar e, logicamente, de trabalhar com

dança. A improvisação exigia uma maior consciência dos meus limites, uma

maior destreza técnica e disponibilidade em cena. E, principalmente, construir

significado juntamente com a dança, a partir de parâmetros advindos da

experiência corporal, significou uma desconstrução da minha maneira habitual

de fazer, ver e ouvir a música.

2.3 Ori Jam – uma rapsódia para antes da meia-noite (2013)

Ori Jam foi um trabalho desenvolvido por Morena Nascimento e Letieres

Leite em cima da dança e música africanas. O trabalho possuía algum grau de

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improvisação, mas do ponto de vista musical trabalhava, basicamente, com as

técnicas de improvisação tradicionais do jazz. Entretanto, houve um momento

que me marcou particularmente: num determinado momento em que se

configurou um solo de bateria, Morena veio por trás de mim e começou a

manipular meu corpo de maneira vigorosa, dançando com meus braços e

jogando-os em direção ao instrumento. Seus gestos eram gestos de dança, mas

eram indubitavelmente musicais. Eu percebi que, se eu deixasse meu corpo

totalmente passivo, não sairia nada de interessante do ponto de vista sonoro;

entretanto, eu poderia deixar meu corpo parcialmente ativo, aberto ao estímulo

de seus movimentos, com certo controle em relação às suas consequências. Por

um momento eu não sabia mais distinguir o que era o movimento dela e o que

era o meu movimento. Da mesma forma, também não sabia distinguir entre o

que era o seu som ou o meu som, ou o que era ou não dança. O resultado foi

absolutamente novo para mim: eu nunca tinha feito música (e dança) como

aquela.

Aquela situação pontual me fez perceber que o que separava o corpo

tocante do corpo dançante era, em grande parte, uma série de códigos e

convenções com os quais definimos o que é ser músico ou dançarino, pois, pelo

resto do trabalho, todos os músicos – inclusive eu – contentavam-se em

improvisar de acordo com as diretrizes internas à estrutura musical, numa

experiência oposta à que eu estava tendo, na época, no processo criativo de

Pessoal e Intransferível. Quanto mais coesa parecia a música, quanto mais

confortáveis estávamos em tocar o que estávamos tocando, mais difícil era a

interpenetração da música com a dança – o que demonstrava sua

autossuficiência ilusória em sua estrutura interna.

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2.4 Ladies – da inocência à crueldade (2014-2015)

Ladies é um espetáculo de dança-teatro baseado em Hamlet e Macbeth,

de Shakespeare (DVD – vídeo 9).53 Foi dirigido e concebido por Cristiane Paoli

Quito, com as dançarinas Gisele Calazans e Ana Noronha, dramaturgia de Marat

Descartes e leitura do texto da peça em cena de Otávio Dantas. Eu e Ramiro

Murillo éramos responsáveis pela composição da música.

A ideia geral de Cristiane Paoli Quito era criar dramaturgias

independentes do corpo e do som – dois solos de dança que acontecem

simultaneamente em cena, e não um duo. Dessa maneira, o solo de Lady

Macbeth poderia funcionar sem o solo de Ofelia, e vice-versa.

                                                                                                               53 LADIES - da inocência à crueldade. Registro de apresentação. Direção: Cristiane Paoli Quito.

Filmagem e edição: Osmar Zampieri. SESC Pompeia, São Paulo (SP), dez. 2014. 47’39’’. Disponível em: <https://vimeo.com/126292579>. Acesso em: 01 ago. 2015.

Figura 7 – Apresentação de Ladies – da inocência à crueldade, no SESC Pompeia (SP), em 2014. Foto: Otávio Dantas

 

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Essa abordagem lembra um pouco a coexistência com independência dos

trabalhos de Cage e Cunningham, mas, no fim das contas, podemos dizer que o

espetáculo procurou ser uma espécie de Gesamtkunstwerk, tentando unir as

linguagens da dança, teatro, vídeo, música e palavra sob a batuta do drama.

A princípio, Ofelia e Lady Macbeth são bem diferentes: Ofelia é pura e

doce e possui uma característica de passividade durante todo o enredo de

Hamlet, enquanto Lady Macbeth é má e tem participação ativa na sucessão

trágica de acontecimentos em Macbeth. Entretanto, as personagens possuem,

também, semelhanças: ambas enlouquecem no final da peça, terminando por se

suicidarem. Duas personagens diferentes, duas pesquisas corporais também

diferentes: Gisele Calazans com sua pesquisa em contato-improvisação,

trabalhando o deslize e a explosão, e Ana Noronha com seu repertório calcado

no balé clássico, com influências também de danças tradicionais brasileiras,

trabalhando outras maneiras de dançar com a sapatilha de ponta, pesquisando

giros e estados de equilíbrio e desequilíbrio. As duas dramaturgias do corpo se

costurariam, aproximando-se e distanciando-se uma da outra, de acordo com as

semelhanças e diferenças das duas personagens.

A trilha era, a princípio, concebida da mesma maneira. Eu seria a

musicista responsável pela criação da dramaturgia sonora de Lady Macbeth,

com bateria e sons concretos e eletrônicos processados no computador e no

MPC 54 , por conta de uma evidente relação entre ruído e aspereza, entre

percussão e violência. Meu parceiro Ramiro Murillo faria, por sua vez, a

dramaturgia sonora de Ofelia, utilizando sons tônicos (de altura definida)

produzidos pelo alaúde, pela guitarra e violão.

O ponto de partida para a composição musical seriam os fragmentos de

canções que Ofelia canta ao longo de Hamlet, além de canções presentes em

outras peças de Shakespeare e demais canções populares que, na época, eram

                                                                                                               54 MPC é a sigla para Music Production Center, da Akai; é uma espécie de bateria eletrônica,

mas com recursos de produção musical, tais como tratamento e edição, por exemplo.

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cantadas pela plateia durante determinadas cenas das peças.55 Todas essas

canções formariam um compêndio a partir do qual se trabalharia, também

servindo de ponto de partida para a composição de novas canções. A ideia,

entretanto, não era executar as canções de maneira tradicional, mas utilizá-las

como camadas – tal como eu já havia experimentado em Improvisos –

sobrepostas ou subjacentes à textura sonora dos instrumentos. Canção e texto

formariam uma unidade narrativa; corpo e demais sons musicais, outra unidade.

Tive a ideia, então, de explorar, tal como as duas bailarinas faziam, não

apenas as diferenças evidentes entre os meus sons e os do Ramiro, mas

também as possíveis similaridades. Afinal, instrumentos de cordas e de

percussão têm estruturas evidentemente diferentes, mas podem produzir sons

com qualidades espectromorfológicas semelhantes. Em outras palavras,

instrumentos de percussão também podem produzir sons tônicos, e cordas,

ruídos e sons percussivos, da mesma maneira em que as dançarinas podiam

contaminar-se das especificidades da pesquisa corporal uma da outra. Assim,

criaríamos um espaço sonoro-corporal com estes quatro vértices: Lady

Macbeth–ruído–Ofelia–sons tônicos, no qual corpo e som transitariam num

continuum de possibilidades.

Figura 8 – Esboço do espaço corporal-sonoro em Ladies56

                                                                                                               55 Para isso contamos com a ajuda de Andrea Kaiser, que realiza uma pesquisa a respeito das

canções contidas nos textos de Shakespeare, além da devida tradução em português. 56 PORTUGAL, M. Notas pessoais sobre o espetáculo Ladies. 2014. (não publicado).

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Essa ideia foi inspirada por Kontakte (1958-1960), peça de Stockhausen

para percussão e eletrônica. O nome Kontakte refere-se, justamente, às zonas

de contato entre sons eletrônicos e sons acústicos. Mas refere-se, também, à

continuidade entre as diferentes dimensões da experiência musical: altura, ritmo,

forma, timbre. Esse continuum é abordado na Teoria da Unidade do Tempo

Musical, de Stockhausen, que foi desenvolvida pelo compositor na mesma

época.57 Kontakte foi uma das primeiras peças eletroacústicas mistas da história

– a primeira, segundo contam, foi Musica su due dimensioni (1958), de Bruno

Maderna. A versão principal é, como o nome aponta, a versão para instrumentos

e eletrônica; entretanto, a parte eletrônica também foi pensada para funcionar

independentemente da instrumental. Tinha-se, portanto, duas dimensões

musicais – a acústica e a eletrônica – que possuíam zonas de contato entre si,

mas eram independentes.58

Inspirando-me em Kontakte, portanto, sugeri que não trabalhássemos

apenas em cima das relações de oposição entre as duas personagens (e os dois

corpos, e os dois tipos de instrumentos), mas que explorássemos esse espaço

sonoro, tal como as bailarinas já estavam pesquisando no corpo. Seriam, assim,

dois duos dançamúsica independentes, mas com zonas de contato entre si, e

esse espaço seria um campo de criação de similaridade e diferença entre as

diferentes qualidades de corpo e som, que se relacionariam num processo

metafórico. Quatro corpostextos se relacionando num ambientecontexto,

construindo e reconstruindo significado metaforicamente.

                                                                                                               57 Sobre a Teoria da Unidade do Tempo Musical, vide Stockhausen, A Unidade do Tempo

Musical, em Menezes (2003, 2006). 58 Entretanto, do ponto de vista da execução, a parte instrumental é completamente dependente

da eletrônica. Os performers têm de sabê-la de cor, pois as entradas e saídas dos instrumentos são determinadas pelos eventos no tape. A invariabilidade do suporte do tape exige uma subordinação, temporal ao menos, da parte instrumental. Não por acaso, a parte instrumental não costuma ser executada sozinha.

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Figura 9 – Excerto da partitura de Kontakte (1958-1960), de Stockhausen.59 A faixa superior corresponde aos eventos musicais eletrônicos no tape, e a parte inferior à partitura instrumental

A cena que chamamos de Invocação, por exemplo, foi talvez o único

momento do trabalho em que essa ideia foi aproveitada de fato. Consiste num

solo de Gisele Calazans, correspondente ao começo da cena V, em que Lady

Macbeth elabora o plano de assassinato do rei Duncan. A movimentação de

Gisele é densa, centrada na imagem do “sangue grosso passando nas veias”

que consta no texto. Essa imagem sugere uma textura bem específica – a

textura do atrito, da não-fluidez. Na música, tentamos encontrar esse tipo de

textura em sons de qualidade granular, ou sons chamados estriados. Para isso,

utilizamos tanto sons concretos tratados no computador, que tomam todo o

espaço cênico através do sistema quadrifônico, quanto sons de qualidade

granular e estriada na guitarra, que reproduzem a melodia da canção com rulos

distorcidos, sons tônicos com qualidade altamente ruidística. Há, portanto, uma

relação metafórica aqui, estabelecida pela similaridade entre os atributos dos

                                                                                                               59 STOCKHAUSEN, Karlheinz. Kontakte. Partitura de realização, segunda edição, versão em

inglês. Percussão, piano e eletrônica. Kürten: Stockhausen-Verlag, 2008. Disponível em: <https://trambusto.wordpress.com/2014/12/05/sentirsi-stockhausen-kontakte-2/> Acesso em: 21 dez. 2014.

 

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sons eletrônicos, da guitarra, do corpo e da imagem (o atrito do sangue grosso a

correr pelas veias) fornecida pelo texto. Esta similaridade ocorre por conta de

uma base experiencial em comum: a sensação, táctil e cinestésica, do atrito,

bem como tudo o que está relacionado a ele: o contato, a aderência, a não-

fluidez, a consequente perda de energia, etc.

A parte do trabalho que chegou mais perto da nossa proposta inicial – a

de independência entre os dois universos sonoros presentes no palco – talvez

seja a cena que intitulamos de Loucura/Sonambulismo/Quedas. Nela, Lady

Macbeth e Ofelia estão loucas; Ofelia após perder o pai para a morte,60 e Lady

Macbeth pela sua cumplicidade com a série de assassinatos que seu marido

cometeu. Na cena da Loucura, Gisele Calazans (Lady Macbeth) e Ana Noronha

(Ofelia) vagam sem rumo por um espaço etéreo. Ana tenta, sem sucesso, fazer

seus giros característicos, presentes na primeira cena do espetáculo, que

caracterizam sua leveza e inocência. Gisele faz gestos que ilustram diretamente

a cena em que Lady Macbeth vaga sonâmbula pelos corredores, tentando limpar

manchas de sangue imaginárias das mãos.

Do ponto de vista musical, a cena é perpassada por um acorde textural de

notas agudas feito por um sintetizador, que serve como um fio de condução ao

qual elementos musicais vão somar-se e descolar-se. Esses elementos são

divididos em três:

1) tambores da bateria, tocados com a mão, com baqueta de feltro e com

baqueta de madeira, somados a sons percussivos soltados no MPC

que eram espacializados quadrifonicamente;

2) a canção O meu passarinho me faz feliz, cantada à capela e fora do

microfone por mim;

                                                                                                               60 Na peça, os personagens do rei e da mãe de Hamlet concluem que Ofelia perdeu a razão pela

morte do pai. Entretanto, as canções que a personagem canta em meio à sua loucura sugerem também outros motivos: a partida de Hamlet; a possível consciência de Ofelia a respeito de que ele é o assassino de seu pai; e também a possível perda da virgindade, precedida do abandono de Hamlet. As canções sugerem, de maneira sutil, que todas essas possibilidades assombram Ofelia em sua loucura.

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3) a canção E ele não voltará, cantada por Ramiro junto ao alaúde.61

Esses três elementos musicais possuem coesão em si mesmos, mas não

são coerentes uns com os outros. São absolutamente independentes, só

possuindo uma ligação na medida em que se somam ao fio textural que

perpassa a cena. Eles entram e saem da cena como lembranças desconexas,

típicas da loucura. Nessa parte do espetáculo, não há conformidade entre

nenhum dos elementos musicais (com exceção da voz de Ramiro e o alaúde que

o acompanha); todos estão coabitando o mesmo espaço musical sem serem

interdependentes. Isso gera uma música com inúmeros planos, narrativas

sobrepostas que reforçam a própria ideia de loucura das duas personagens.

A tudo isso, somam-se as inserções das canções acompanhadas do

alaúde, que entram também como acessos de euforia ou tristeza, entrecortando

a paisagem monótona da loucura. A canção O meu passarinho me faz feliz, que

remete à alegria inicial de Ofelia com o amor de Hamlet, vem logo antes da

canção E ele não voltará, que remete à morte do pai. A mudança brusca do

timbre de voz – da feminina para a masculina – e da tonalidade, e a confusão da

figura de Hamlet com a do pai, sugerem uma descontinuidade no tempo

passado, um embaralhamento de memórias desconexas.

Durante as pequenas inserções das canções-memórias, quase nada da

paisagem sonora anterior se altera: a bateria permanece fazendo as frases de

antes, embora numa dinâmica menor, e a textura eletrônica do acorde na região

aguda também continua. Criam-se camadas independentes na trilha,

concomitantes mas não correspondentes. A canção que Ramiro canta chega ao

fim, mas o alaúde permanece sendo tocado, criando uma disjunção também

entre voz e alaúde. Embora desarticulados, esses elementos musicais não são

contraditórios entre si, nem em relação à cena. Pelo contrário: refletem

justamente o conflito das personagens com suas memórias, uma fragmentação

da continuidade entre passado e presente.                                                                                                                61 Ambas as canções são extraídas do texto de Hamlet, e foram traduzidas por Carin Zwilling e

Andrea Kaiser para o português.

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Depois das duas canções, o ator Otávio Dantas diz a seguinte fala,

atribuída a Hamlet: o corpo do seu pai, eu misturei ao pó do qual ele é parente.62

A partir disso, as duas bailarinas começam a performar uma série de quedas. A

atmosfera da textura etérea, sempre presente, é entrecortada por frases cada

vez mais crescentes e variadas nos tambores da bateria – frases relativamente

simples, variadas num jogo com a acentuação, que vão tornando-se, aos

poucos, mais intensas e complexas. A cama harmônica é o tempo fora do tempo

da loucura; as frases da bateria são o peso da memória e da culpa.

Podemos dizer que peso, na verdade, é a similaridade que une música e

dança metaforicamente aqui. Peso, afinal, é uma metáfora já bem estabilizada

para definir sons graves de alta intensidade – como o são os sons dos tambores

utilizados nesta improvisação. Contrapondo-se a eles está, sempre, a leveza da

textura harmônica eletrônica. No caso da dança, Ofelia e Lady Macbeth parecem

lutar contra a gravidade indefectível que as puxa para o chão. O chão, vermelho,

é um símbolo evidente do sangue derramado que marca ambas as tragédias. A

loucura é o tempo fora do tempo, e podemos encontrar nela algo de lírico; mas o

peso da culpa, do remorso e da tristeza joga as personagens de volta à

lembrança do sangue, à inexorabilidade do tempo dramático. A desgraça de

ambas as personagens é consequência da concatenação sucessiva de eventos

desastrosos, num tempo que não volta.

Essa contraposição entre peso e leveza gera nos corpos uma espécie de

movimento pendular invertido, em que os pontos mais extremos de sua trajetória

são os pontos de repouso (em que a gravidade incide com maior força), e não o

meio da trajetória, como seria num pêndulo comum. A bateria também sugere

metaforicamente este movimento pendular através da curva dinâmica crescente

e decrescente. O movimento vai tornando-se menor, e dança e música vão

buscando o repouso total. Em meio a isso, há a volta gradual do alaúde,

surgindo em meio às frases da bateria e do MPC que vão se desfazendo no

                                                                                                               62 Essa frase não é idêntica à do texto de Shakespeare. Hamlet não diz isso a Ofelia, mas a

Rosencrantz e Guildenstern.

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espaço, diminuindo de volume. Logo depois, a camada harmônica também é

retirada gradualmente, restando o alaúde, que realiza a introdução da próxima

música: uma musicalização do famoso trecho de Hamlet, Ser ou não ser.

Apesar da minha vontade em explorar essa zona metafórica de contato

entre corpos e sons, a canção acabou norteando a composição da música em

Ladies. Talvez pelo compromisso com uma linearidade da narrativa das duas

personagens, as canções passaram a ter função central na dramaturgia; as

letras precisavam contar a história. Assim, as canções assumiram importância

preponderante dentro da música, relegando a pesquisa sonora em si – uma

abordagem que seria mais sutil, detalhista, trabalhosa e, sem dúvida, arriscada –

a um segundo plano.

Entretanto, pretendo voltar a essa proposta na continuidade do projeto,

que visa a radicalização das ideias iniciais, incluindo a separação dos solos que

estava pressuposta desde o começo do trabalho.

Figura 9 – Apresentação de Experiência 3, no SESC Pinheiros (SP), 2015. Foto: Julia Monteiro

 

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2.5 Experiência 3 (2015)

Experiência 3 é a terceira edição de uma série de experiências em

improvisação da bailarina Key Sawao (DVD – vídeo 10). 63 Nos meus trabalhos

anteriores em dançamúsica em que improvisava ao vivo, estava sempre na

presença de outros músicos no palco, o que gerava uma necessidade de

calibragem constante das expectativas de cada um em relação à cena. A música

se fazia nessa troca com os músicos e com os bailarinos. Mas em Experiência 3,

música e dança seriam, mais que nunca, fruto das singularidades das duas

performers em cena.

Além disso, a música seria, do começo ao fim, feita na bateria, o que me

exigia uma prontidão diferente no instrumento, com uma abordagem bem mais

abrangente do que eu estava acostumada. Do ponto de vista da minha

performance em particular, Experiência 3 me fez experimentar melodias,

procurar maneiras diferentes de percutir a pele (com os dedos, outros

instrumentos e objetos) e aceitar o silêncio.

Em Experiência 3, assim como em Improvisos, não havia um tema.

Entretanto, eu e Key partimos de algumas ideias ou imagens em comum. O

intuito era criar uma “peça do dia”, uma síntese do percurso que cada uma havia

tido. O que nos norteava era uma ideia de caminho sem volta – algo que, uma

vez iniciado, só pode avançar, tal como uma corrida de cavalos que disparam ao

ouvir o tiro de largada. Como tivemos a oportunidade de realizar esse trabalho

algumas vezes, foi possível observar recorrências tanto no movimento quanto na

música, correspondentes ao vocabulário de cada uma das performers. Estas

recorrências apareciam não como marcações, mas como ecos da experiência

passada no presente. A partir delas, poderíamos escolher (ou não) novos

caminhos.

                                                                                                               63 EXPERIÊNCIA 3. Registro de performance. Performer: Key Sawao. Filmagem e edição:

Henrique Cartaxo. SESC Pinheiros, São Paulo, abr. 2015. 5’50’’. Disponível em: <https://youtu.be/WLHMHfhQF-w>. Acesso em: 15 out. 2015.

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Com Key, a questão da similaridade e da diferença ficou bem nítida. Key

dificilmente se deixa levar pelo pulso ou mesmo por grandes impactos

percussivos. Apesar da influência da música ser nítida em seu corpo 64 ,

permanece em seu próprio percurso, agarrada a sua trajetória de tecer sua peça

do dia. Com isso, senti que havia, de fato, uma enorme liberdade para ambas;

música e dança se alimentavam uma da outra, cruzando e descruzando seus

caminhos, sem que suas trajetórias se alterassem radicalmente.

Experiência 3 é, de certa maneira, o fim de uma trajetória e o começo de

outra. As experiências antes relatadas neste capítulo (e várias outras que não

estão citadas aqui) muniram-me de ferramentas para que eu estivesse,

finalmente, frente ao desafio de improvisar a partir do meu corpo, do corpo

sonoro do instrumento e do corpo que dança, sem nenhum outro artifício,

temática ou roteiro. Em Experiência 3 só nos restava buscar a significação na

materialidade do corpo, na rede de significados que estes corpos acionavam

incessantemente em meio a um ambiente.

                                                                                                               64 Key sempre me dizia, a cada apresentação ou ensaio, de como o som da bateria parecia

atravessar o corpo. Provavelmente, essa sensação se dá em muito pela própria característica dos sons de ataque e ressonância, característicos de instrumentos de membrana como a bateria. Estes sons têm a energia mais localizada no ataque, e, portanto, são prontamente percebidos e identificados, pois é o ataque quem fornece as propriedades nas quais o som vai se desenvolver no tempo durante sua ressonância. Além disso, instrumentos de membrana percutidos com baquetas, como a bateria, possuem uma articulação rápida de sons e uma curva dinâmica gigantesca, indo do pianíssimo ao fortíssimo num curto período de tempo.

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CONSIDERAÇÕES (provisoriamente) FINAIS

Este trabalho deve ser considerado um ponto de partida, um mapeamento

inicial, constituído por práticas artísticas e pesquisa bibliográfica que sinalizaram

o papel fundamental do corpo e do ambiente na criação dos significados

artístico-musicais. Ou seja, esta pesquisa não se encerra aqui e, por isso, não

pede por conclusões categóricas nem definitivas.

O contato com a bibliografia citada no capítulo 1 e a reflexão sobre os

processos artísticos analisados no capítulo 2 evidenciaram a necessidade de

trazer o corpo para dentro da discussão artística e musical. Tal aproximação,

inevitavelmente, muda os paradigmas do que chamamos de música, dança,

improvisação, arte e significado. Apesar do fato de que o corpo nunca esteve

fora de nada disso – o que evidencia certa tautologia nesta proposta – como

vimos anteriormente, o corpo foi, não raras vezes, excluído das práticas

discursivas relacionadas a estes campos.

Já de saída, incluir o corpo no discurso a respeito da experiência musical

esclarece como as características espectromorfológicas do som que produzimos

estão diretamente associadas ao corpo que somos e ao corpo dos instrumentos

que tocamos. Portanto, a maneira como organizamos estas redes de corpos –

instrumento, instrumentista e público – muda completamente o som. Um tema

frutífero para pesquisas futuras seria a desestabilização da própria noção de

instrumento, bem como dos pronomes possessivos que costumam acompanhá-

lo (meu instrumento, meu corpo).

É evidente que há uma enorme sabedoria, por parte dos instrumentistas,

a respeito da associação do movimento de seus corpos com o som que

produzem. Mas esta sabedoria costuma ficar restrita ao plano da interpretação

musical e banida de boa parte da musicologia tradicional. Por outro lado, como

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diz Achille Picchi (2009)65 , “não há interpretação sem análise”. Esta visão

integrada da interpretação com a análise é muito útil para eliminarmos a

distinção comum entre músicos e teóricos, unindo a sabedoria do instrumentista

à do compositor e do musicólogo. E tenho fortes convicções de que esta ponte

pouco explorada entre interpretação, composição e análise esteja relacionada

aos processos metafóricos embasados no corpo que engendram o significado.

Sem dúvida, isto significa uma mudança paradigmática, afinada com a tendência

da teoria musical chamada de Nova Musicologia.66

Em um próximo estágio da pesquisa, a se desenvolver nas experiências

práticas em um possível doutorado, faz-se necessário um aprofundamento das

bibliografias encontradas, especialmente no que se refere ao extenso trabalho

de Johnson e Lakoff. Acredito que seja possível realizar uma sistematização do

uso das metáforas cognitivas de Johnson e Lakoff (1980) na análise de obras

artísticas. Os esquemas de imagem mostraram-se especialmente importantes

para começar este trabalho e podem ser a chave para entender como nossa

percepção do som, da imagem e do movimento constitui-se a partir de suas

interligações.

Também gostaria de explorar futuramente outras bibliografias que

orbitaram este trabalho, mas não puderam estar presentes na dissertação por

uma necessidade de concisão. O neurocientista António Damásio (1995, 2000,

2003), por exemplo, tem apontado a impertinência da dicotomia mente/corpo e

destacado o papel das emoções na criação de significado. Fauconnier e Turner

(2003) também partem da teoria das metáforas conceituais (LAKOFF; TURNER,

1989) para explicar a emergência de novo significado, através de um processo

                                                                                                               65 Frase de Achille Picchi proferida em sua disciplina de Composição, do curso de Composição e

Regência da UNESP. 66 A Nova Musicologia é um conjunto de tendências da musicologia que questiona os

procedimentos, enfoques e valores da musicologia tradicional (em especial a ideia de autonomia), comumente trazendo estudos de gênero, estudos pós-coloniais e teoria feminista para perto da análise musical. Os trabalhos de Kerman (1985, 1994), Kramer (1990, 1995, 1997), Szendy (2007), Agawu (2003) e Subotnik (1991, 1996), entre outros, se alinham com essas tendências.

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que chamam de mistura (blending). Tal como vimos em Johnson (2007), a arte é

um importante campo de criação de novos significados e, neste sentido, a

abordagem de Fauconnier e Turner com certeza contribuirá com novos

elementos a esta pesquisa.

Dentro do campo da musicologia, gostaria de aprofundar no doutorado

algumas hipóteses presentes em publicações de Nicholas Cook e Mark Everist

(1999); o conceito de escuta ecológica de Eric Clarke (2005); a postura radical

de Trevor Wishart (1996) frente à tradição formalista de composição; e a visão

de Kofi Agawu (2003) de análise musical, fundamentada na semiótica. Neste

primeiro momento da pesquisa, acabei por despender mais tempo identificando

a ideia de autonomia e a dicotomia mente/corpo em trabalhos que, no fim das

contas, não foram utilizados na reflexão teórica que estava construindo, que me

aprofundando nos autores os quais, de fato, possuíam uma abordagem baseada

no corpo. Creio que esta dificuldade em encontrar o corpo na musicologia

tradicional é, em parte, mais uma confirmação de suas raízes no formalismo e

na ideia de autonomia da obra de arte.

Teria sido mais profícuo pesquisar, logo de início, os autores que

fundamentaram a teoria do significado embasado no corpo, e a partir deles

buscar correspondências diretas na musicologia – e não o contrário. Mas estes

são meandros que fazem parte do processo de pesquisa. Citando Augusto de

Campos em seu prefácio para Pound (2006, p. 10), a “separação drástica do

melhor” é um dos grandes aprendizados da vida do pesquisador-artista, e a

dissertação de mestrado um bom momento para iniciá-la.

Como artista, percebo ao final desta primeira fase de estudos uma

enorme contaminação em meus processos criativos e em minha prática como

musicista. É inevitável a mudança na maneira de pensar, ouvir, fazer música

depois do contato com tais abordagens do significado embasado no corpo. E

acredito que essa mudança se tornará ainda mais estrutural e profunda, na

medida em que a pesquisa for aprofundada.

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A improvisação foi um porto para esta pesquisa: ponto de partida e

chegada, abastecendo e recebendo experiências, perguntas e reflexões. Se na

improvisação foi onde surgiram as questões elaboradas neste trabalho, a partir

dele passei a pensar a improvisação não mais apenas como um estilo, técnica

ou ferramenta de criação, mas como experiência artística condensada no

presente, podendo, portanto, nos dizer muita coisa a respeito do papel do corpo

na significação artística. Esta via de mão dupla se mostrou rica em aprendizados

e a razão verdadeira deste trabalho: aproximar, cada vez mais, a teoria do

significado embasado no corpo da prática artística, para que uma seja

contaminada pela outra.

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Figura 10 – Apresentação da Quartabê no Festival Jazz na Fábrica, agosto de 2015. Foto: José de Holanda

 

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