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1 Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Faculdade de Direito Princípios jurídicos e regulação Othon de Azevedo Lopes São Paulo 2011

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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Faculdade de Direito

Princípios jurídicos e regulação

Othon de Azevedo Lopes São Paulo

2011

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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Pós-Graduação Stricto Sensu Doutorado em Filosofia do Direito

Princípios jurídicos e regulação

Tese a ser apresentada em banca no Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP, na área de concentração de filosofia do direito, como requisito parcial, para a obtenção do título de Doutor em Direito.

Autor: Othon de Azevedo Lopes Orientador: Prof. Dr. Antônio Carlos Mendes

São Paulo-SP 2011

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Othon de Azevedo Lopes

Princípios jurídicos e regulação Tese a ser apresentada em banca no Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP, na área de concentração de filosofia do direito, como requisito parcial, para a obtenção do título de Doutor em Direito.

BANCA

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São Paulo 2011

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À memória do meu irmão. À memória do meu pai.

À minha mãe.

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Agradecimentos

Ao amigo de longa data Márcio Iório Aranha

Ao amigo Francisco Ribeiro Todorov

À Ana Frazão

Ao Professor Paulo de Barros Carvalho

Ao Professor Antônio Carlos Mendes

Ao Professor Ademir Araújo Filho

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Ora, onde mora o perigo é lá que também cresce

o que salva (Hölderlin)

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Resumo: 1) Justificativa: o produtivismo contemporâneo valorizou o saber exato e determinado em lugar de um conhecimento fluido e aproximativo. No âmbito do direito, isso fez com que regras normalizadoras e entes autônomos para atender necessidades técnicas de produção de utilidades públicas aflorassem no âmbito do Estado Regulador. A configuração técnica e burocrática das agências reguladoras não é garantia de legitimidade de suas decisões. Sua independência e sua neutralidade vinculam-se principalmente à dinâmica do sistema econômico que objetiva, como prestação, a certeza e a segurança referentes aos contratos e à propriedade alocados no setor. São garantias de que a economia demanda ao sistema político-burocrático para se engajar no dispensamento eficiente de utilidades de interesse público. O influxo de imperativos do sistema econômico exigiu como prestação indispensável, por parte do direito, uma capacidade normativa de conjuntura que não pode ser fornecida pelos instrumentos clássicos do processo legislativo, dado o tempo de sua maturação e não especialização. O que se tem nesse caso são demandas sistêmicas cognitivamente absorvidas pelo direito, resultando em nova estruturação, que acabou criando novos locais de produção normativa com sentido inovador para atender às necessidades de uma sociedade crescentemente especializada e de um Estado com fortes missões compensatórias. Todavia, em razão dos riscos e potenciais de coerção envolvidos na regulação, não há sentido para se atribuir ao Executivo um poder amorfo e de difícil controle. 2) Objetivos: há necessidade de delimitação da competência regulatória, abrangendo: limites, conformações e diretrizes, assim como sua legitimação. 3) Aspecto teórico metodológico: a regulação, pela especificidade dos bens e serviços demandados e pela tecnicidade de sua produção, sob o ponto de vista hermenêutico-filosófico, vale-se de uma linguagem especializada que pretende univocidade dos signos e de sua sequência. Os princípios têm raízes na linguagem natural, descortinando um mundo de vivências não encerráveis no mero cálculo e propiciadores de um entendimento pelos indivíduos que os coloque além dos papéis sociais restritos de clientes e consumidores. É marca da regulação a exacerbação do tecnicismo e do economicismo. 4) Hipótese: O direito, visto sob uma feição principiológica, suplanta a rigidez dos sistemas de conhecimentos de inspiração matemática e conquista a unidade da razão no campo da formação de canais que discursivamente em linguagem natural buscam estruturar o consenso social e conquista legitimidade. 5) Síntese conclusiva: o direito é capaz de converter a razão calculadora vinculada a conceitos precisos e determinados numa razão reflexiva efetuada por meio de juízos. A possibilidade de transformar o saber da ciência e da técnica num conhecimento prudencial e filosófico contido nos princípios fundamenta e legitima o direito. De outro lado, é o sistema lógico-operativo de regras que possibilita ao direito acoplar-se à economia e ao poder político-administrativo, produzindo comunicações por eles assimiláveis com influência nos códigos específicos de uma Administração regulada pelo poder e de um mercado regulado pelo dinheiro. Daí a possibilidade de o direito traduzir expectativas do mundo da vida para esferas sociais sistemicamente constituídas.

Palavras-chaves: princípios, regras, regulação, Estado de Direito, técnica, ciência, economia, burocracia, legitimação

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Abstract: 1) Reasons: The roots of independent authorities and regulation in the regulatory state lie within the influence of the contemporary productivism on law, as it brought forth a precise knowledge that displaced a more fluid and approximate one. The techno-bureaucratic structure of the regulatory authorities does not guarantee, though, the legitimacy of their decisions. Their independence and neutrality pay tribute mainly to the economic system dynamics, which aims at assuring property and contract rights in a given sector. Those rights are necessary for the political bureaucratic system to render public interest utilities in a more effective way. The new set of demands from the economic system led to crescent rule-making power in the Executive branch due to the inability of the classical deliberative legislative process to deal with issues that depends upon rapid and specialized decisions. Systemic demands have been absorbed by the law, resulting in a new framework that created new structures of rule-making process to face the needs of a society increasingly specialized and a state that carries on a strong compensatory mission. In spite of that, the risks and potential coercion involved in regulation point out to the danger of attributing to the Executive branch an amorphous and curbless power. 2) Aims: it is imperative to limit the regulatory institutional endowments that encompass three dimensions: limits, conformations, guidelines and legitimation. 3) Theoretical aspect: due to the specific services and goods demanded, and the technical characteristics of the issues involved, from the point of the filosophical hermeneutics, the regulation makes use of a specialized and unambiguous language. Principles have their roots in the natural language, which opens up a world of experiences not possible to be translated into formulas and able to create a more complex social relation that surpasses a consumer-oriented social role. It is a distinctive sign of the regulation to overestimate the economic and technical aspects. 4) Hipothesis: legal principles go beyond the rigidity of the mathematical-based systems of knowledge, and bring unity to the rationale of social consensus through the use of natural language. From the perspective of principles, it is possible to curb the technicism and bureaucratic excesses of the plethora of rules in each sector regulated by agencies, opening up a space of legitimacy and allowing for a unified perception of the regulatory phenomenon. 5) Conclusive synthesis: principles turn the mathematical rationale dependent on precise concepts into a reflexive rationale fulfilled through adjudications. Principles underpin and legitimate the law by transforming a technical-scientific knowledge into a prudential and philosophical knowledge. On the other hand, a legal logical system makes the structural coupling between law, economics and political power possible, as it conveys recognizable messages that influence specific codes of an agency regulated by political power, and a market regulated by money. The relation between principles and regulation thus conceived makes the translation of mundane expectations into specialized and systemic social spheres possible. Keywords: principles, rules, regulation, rule of law, technology, science, economics, bureaucracy, legitimacy.

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Sumário Introdução.................................................................................................................................12

1.º Capítulo – A questão da regulação, da legalidade e dos princípios e de seus fundamentos teóricos .....................................................................................................................................16

1.1 A crise das ciências e da técnica.....................................................................................18

1.2 Os pressupostos teóricos................................................................................................21

1.2.1 O horizonte linguístico como condição de possibilidade do conhecimento...........24

I.2.2 A linguagem e os sistemas de conhecimento..........................................................27

1.3 A questão do legalismo e do normativismo ...................................................................32

1.4 O dever para além do positivismo e a crise do legalismo e emergência da regulação...37

1.5 O direito como mediador/tradutor entre o mundo da vida e os sistemas do poder administrativo-burocrático e da economia ...........................................................................46

1.6 O saber e a teoria no direito: para além da técnica e da ciência .....................................51

2.º Capítulo – A crítica da regulação........................................................................................57

2.1 A irrupção da regulação..................................................................................................57

2.2 Noções sobre a regulação ...............................................................................................59

2.3 A gênese do legalismo e da regulação............................................................................63

2.3.1 O Estado Burguês Absolutista.................................................................................64

2.3.2 O Estado Burguês de Direito ...................................................................................68

2.3.3 O Estado Democrático de Direito............................................................................70

2.3.4 O Estado Social .......................................................................................................73

2.3.5 O Estado Social e Democrático de Direito..............................................................78

2.4 A perplexidade da regulação nos marcos do Estado Democrático de Direito................81

2.4.1 Os limites do texto constitucional para a regulação ................................................81

2.4.2 O embate entre o Estado Democrático de Direito e a regulação.............................83

2.4.3 O conflito entre o princípio da legalidade e a atividade regulatória........................85

2.5 O deslocamento do poder de produção normativa .........................................................87

2.5.1 A gênese da regulação .............................................................................................88

2.5.2 Soberania e poder disciplinar ..................................................................................90

2.6 Regulação e economia..................................................................................................100

2.6.1 Teorias da regulação sob o ponto de vista econômico ..........................................100

2.6.1.1 Teoria do interesse público.............................................................................101

2.6.1.2 Teoria da captura ............................................................................................102

2.6.1.3 Teoria econômica da regulação ......................................................................103

2.6.2 Instrumentos de regulação.....................................................................................105

2.6.3 Concentração econômica e decisão democrática...................................................107

2.7 Regulação e técnica ......................................................................................................111

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2.8 As agências reguladoras e a sua legitimação................................................................120

2.9 A regulação autorizada e seus riscos ............................................................................123

3.º Capítulo – A distinção entre princípios e regras ...............................................................133

3.1 Os princípios jurídicos e seus direitos ..........................................................................135

3.1.1 Os direitos, os deveres e a dignidade da pessoa humana.......................................135

3.1.2 A crítica ao modelo de deveres e direitos do positivismo .....................................136

3.1.3 Os princípios, as diretrizes políticas e as regras ....................................................137

3.1.4 A discrição.............................................................................................................140

3.1.5 A vinculatividade dos princípios ...........................................................................140

3.2 Os casos difíceis ...........................................................................................................143

3.2.1 Os princípios e as diretrizes políticas ....................................................................145

3.2.2 A tese dos direitos .................................................................................................146

3.2.3 Os direitos constitucionais.....................................................................................148

3.2.4 Os direitos levados a sério .....................................................................................149

3.2.4.1 O direito de desobedecer a leis e a normas administrativas? .........................151

3.2.4.2 Os direitos controversos .................................................................................155

3.3 Os princípios e a integridade ........................................................................................158

3.3.1 A legitimidade .......................................................................................................161

3.3.2 A fraternidade e a comunidade política.................................................................162

3.3.3 A integridade no direito.........................................................................................164

3.3.3.1 A cadeia do direito..........................................................................................165

3.3.4 A integridade e as leis............................................................................................168

3.3.5 A integridade e a Constituição ..............................................................................170

3.3.6 A integridade e a regulação autorizada..................................................................173

3.3.7 Ainda sobre o direito como integridade ................................................................176

3.4 A moral e a indeterminação dos princípios jurídicos ...................................................177

3.5 Os critérios distintivos entre princípios e regras ..........................................................179

3.5.1 O conteúdo.............................................................................................................180

3.5.1.1 As teorias distintivas fortes e as débeis ..........................................................180

3.5.1.2 A matéria ........................................................................................................182

3.5.1.3 A capacidade de explicação e a de justificação..............................................182

3.5.1.4 O compromisso histórico................................................................................183

3.5.1.5 O caráter constitutivo e o constitucional ........................................................184

3. 5.1.6 A interação.....................................................................................................184

3.5.1.8 A linguagem ...................................................................................................185

3.5.2 A identificação.......................................................................................................185

3.5.2.1 A origem.........................................................................................................185

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3.5.2.2 A validade.......................................................................................................186

3.5.2.3 A especificação...............................................................................................187

3.5.2.4 A derrogação...................................................................................................187

3.1.2.5 A localização ..................................................................................................187

3.5.2.6 A demonstração ..............................................................................................188

3.5.2.7 A fundamentação............................................................................................188

3.5.3 A sintaxe................................................................................................................189

3.5.3.1 A estrutura lógica............................................................................................189

3.5.3.2 A colisão.........................................................................................................189

3.5.3.3 A sanção .........................................................................................................190

3.5.3.4 A completude do ordenamento.......................................................................190

3.5.4 A aplicação ............................................................................................................191

3.5.4.1 A determinação...............................................................................................191

3.5.4.2 Os tipos de razões...........................................................................................191

3.5.4.3 A carga argumentativa....................................................................................192

3.5.4.4 O cumprimento...............................................................................................192

3.5.4.5 As funções ......................................................................................................192

3.6 A regulação entre princípios, diretrizes políticas e regras............................................193

4.º Capítulo – Os princípios e a crítica da regulação aplicados a casos .................................200

4.1 O diploma de jornalismo e a proibição da regulação da profissão...............................203

4.1.2 O caso conforme os princípios, os direitos e a crítica à regulação........................208

4.2.1 O caso ....................................................................................................................211

4.2.2 O caso conforme os princípios, os direitos e a crítica à regulação........................213

4.3 A qualificação do poder normativo dos entes reguladores como poder de polícia ......215

4.3.1 O caso ....................................................................................................................215

4.3.2 A regulação e o poder polícia ................................................................................216

4.3.2.1 O poder de polícia...........................................................................................216

4.3.3 A economia, a moral política e o direito na regulação ..........................................218

4.4 A ortotanásia.................................................................................................................220

4.4.1 O caso ....................................................................................................................221

4.4.1.1 A exposição de motivos, os consideranda e a Resolução CFM n.º 1.805/2006....................................................................................................................................221

4.4.1.2 A decisão de tutela liminar e a sentença na ação civil pública n.º 2007.34.014809-3.......................................................................................................223

4.4.2 O caso conforme os princípios, os direitos e a crítica à regulação........................226

Conclusão ...............................................................................................................................228

Bibliografia.............................................................................................................................243

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Introdução

A emergência da regulação como fenômeno de destaque nas instituições

jurídicas, políticas e na burocracia lança inequivocamente desafios para o Estado

Democrático de Direito. O volume de produção normativa estatal e seu crescente

deslocamento para âmbitos da Administração assinalam a necessidade da revisão e da

ressignificação não só do aparato jurídico-administrativo, mas principalmente do saber

jurídico.

A legalidade, na sua configuração clássica oriunda do Estado de Direito,

mostra como garantia constitucional seu esgarçamento, principalmente quando

defrontada com a regulação. A soberania popular que se manifesta precipuamente

pelos parlamentos, formando um eixo de conexão entre a vontade dos cidadãos e a

vontade estatal – vazada em leis formais, abstratas, genéricas, impessoais e oriundas

do processo legislativo – revela-se acanhada para o controle da atividade regulatória.

Em outras palavras, o controle procedimental e formal ínsito à legalidade e

à proeminência da lei não são adequados para frear, moldar e justificar a volúpia

regulatória oriunda de uma sociedade complexa que clama às instituições jurídico-

políticas por constantes prestações de normalização. A tarefa empreendida a partir

desses pressupostos é semelhante a verter o conteúdo de um oceano numa piscina.

Se há uma movimentação do poder normativo, e com ele das forças de

coerção e dominação estatais, sem dúvida surgem questões que exigem novo

instrumental e nova ótica de enfrentamento. Uma teoria jurídica apoiada em discursos

hierarquizantes e verificações de validade, preocupada com definições de pertinência

formal ao ordenamento jurídico, está com a sua capacidade de rendimento esgotada

em face dos difíceis problemas de validação e posicionamento normativo dos atos

editados pelos entes reguladores, que não raro se situam numa zona cinzenta de

conformação material aos limites legais.

Noutra frente, a regulação significa uma inundação de discursos

normalizadores, resultantes da pressão dos sistemas econômico, político-burocrático e

de seus instrumentos técnico-científicos. O resultado é que esferas sociais de vivência

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indiferenciadas acabem comprimidas e afogadas por regramentos que lhes são

completamente estranhos e ininteligíveis por sua origem em discursos especializados.

É a instauração de um claro conflito entre a linguagem natural, de um lado, e de outro

as linguagens técnicas e especializadas.

Disso resulta que outros horizontes do saber jurídico e da análise social

devem ser explorados. A regulação é a irrupção de poderes oriundos de discursos

técnico-científicos para a satisfação de imperativos burocráticos e econômicos. Então,

para o seu enfrentamento, o discurso jurídico deve ser impulsionado para além da

técnica e das ciências modernas, reposicionado como estruturante de um sistema de

conhecimento e ação que se articula a partir de outras virtudes intelectuais, como a

prudência e a filosofia.

Até porque ao direito lança-se um intrincado desafio, que é o de manter

discursos normativos que construam sentidos para indivíduos não detentores de saber

especializado. Isso resulta da ideia de dever que exige a possibilidade de compreensão

dos conteúdos conformadores de conduta. O sobrecarregado discurso especializado

das regras com estrutura hipotético-condicional não é intelectível para o indivíduo, que

em verdade vira objeto desse direito tecnicizado. Assim, se o direito deseja transcender

a mera força e a coerção, não pode simplesmente naturalizar uma contínua e volumosa

produção de regras sem prestar contas aos papéis sociais universalizantes de pessoa,

indivíduo e cidadão. Não há dúvida de que se trata de tarefa difícil e complicada.

Todavia, é possível recolher material armazenado nos vários âmbitos das

instituições jurídicas, para construir uma rede condutora de sentido que permita a

tradução dos discursos especializados para os discursos sociais indiferenciados. Isso

exige um reposicionamento na teoria jurídica da linguagem natural e dos princípios

jurídicos como eixos de formação dessa malha social de comunicação.

Como se vê, o cenário aqui exposto é de crise, com um difícil diálogo entre

as instituições legadas pelo “Estado de Direito” e pelo “Estado Democrático de

Direito” opondo-se ao “Estado Social” e ao “Estado Regulador”. A necessidade de

produção de prestações compensatórias para a amenização das debilidades sociais por

esses dois últimos paradigmas confronta-se com as garantias formais dos primeiros,

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resultando num déficit de legitimação proveniente do hermetismo da crescente

produção regulatória.

O caminho para entender a tensão inerente a essa crise foi o de primeiro

explicitar os seus pressupostos sociais e teóricos, colocando-se em destaque a forte

crítica empreendida contra os legados da modernidade por filósofos como Husserl,

Heidegger e Habermas, entre outros. O saber, com o fracionamento das ciências, ter-

se-ia degradado num mero cálculo e previsão produtivistas, retirando o sentido da

autonomia e da liberdade no mundo tecnológico, com a objetivação dos indivíduos e

das relações sociais.

A regulação é o reflexo culminante desse processo no âmbito do direito. Ela

é, de certo modo, o resultado da constituição de sistemas sociais como a economia e o

poder administrativo-burocrático, que se reproduzem de forma autônoma a partir do

dinheiro e do poder. O direito é instrumentalizado por esses sistemas para produzir

regras especializadas de normalização. A questão que se põe aí é uma

descaracterização das vivências sociais indiferenciadas baseadas em linguagem

natural, com a redução do papel de cidadão ao de um mero cliente ou consumidor de

bens fornecidos pelo Estado ou pelo mercado. É esse o tema do primeiro capítulo.

Seguindo a linha condutora da primeira parte do trabalho, o segundo

capítulo faz uma crítica da regulação. A opção não foi por uma abordagem descritiva

ou neutra do fenômeno. A regulação é uma fissura nas estruturas e instituições

jurídicas clássicas que submete a sociedade a uma sobrecarga de normatização sem

contar com a legitimação por meio do sufrágio. Ela revela uma movimentação dos

focos de coerção dentro das instituições jurídicas e políticas para acompanhar

imperativos dos sistemas econômico e político-burocrático. Embora constitua um

fenômeno inerente à sociedade complexa com seus âmbitos especializados e a seus

modos sistêmicos de integração, o poder regulatório é um desafio para o Estado

Democrático de Direito em termos de limitação e legitimação.

O terceiro capítulo procura densificar vias para o controle e a

fundamentação das competências regulatórias em termos de Estado Democrático de

Direito. A proposta aí assumida é a de que a distinção entre regras, princípios e

diretrizes políticas, bem como a explanação de sua inter-relação fornece elementos

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para constituir um canal que permita reposicionar a atividade de produção de regras na

Administração, ao referi-la a uma constelação principiológica com alta capacidade

integradora e legitimatória.

Por último, o quarto capítulo preocupa-se com a regulação como questão de

razão prática, em que é imprescindível discutir espaços de liberdade e emancipação,

levando em consideração casos, especialmente os submetidos ao Judiciário. Assim, os

precedentes selecionados buscaram dar significação concreta ao excurso teórico,

focados a partir dos seus pressupostos, da crítica à regulação e da distinção entre

princípios e regras.

Em verdade, esse desenvolvimento do trabalho procurou situar o tema

numa dimensão reflexiva mais do que dar respostas fechadas sobre a relação entre

princípios e regulação. Não há no trabalho a ingenuidade da constituição de uma

sociedade que possa prescindir da técnica, da ciência, da burocracia ou mesmo da

regulação. As soluções inerentes à sociedade complexa estão nesses âmbitos que lhes

são constitutivos. Todavia, por sua natureza redutora e instrumentalizadora, todas

essas realidades implicam riscos.

É nesse ponto que se inicia a grande questão de como transcender esses

perigos inevitáveis. A resposta não é pronta e acabada, mas uma busca em que se está

disposto a pôr entre parênteses supostas verdades e certezas oriundas da ciência que

apoiam a racionalidade tecnológica. Não se trata de uma procura desorientada, pois

seu eixo está numa comunidade de princípios em que não existem respostas prontas, e

sim uma abertura institucional constante para decisões jurídicas que possam articular

com juízos de moral política um futuro melhor a partir do discurso dos direitos.

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1.º Capítulo – A questão da regulação, da legalidade e dos princípios e de seus

fundamentos teóricos

O ideal de saber que se afirmou na Modernidade substitui um mundo

consideravelmente aproximativo, fluido, incompleto, por um que busca ser exato,

inteiramente determinado1. Foi a partir desse contexto que o direito da sociedade

contemporânea organizou-se, assumindo o paradigma instrumental teórico das ciências

modernas, que têm caminhado passo a passo com sua aplicação tecnológica.

No entanto, essa conformação epistêmica em que se valoriza o

conhecimento preciso sobre um objeto delimitado artificializa e controla âmbitos de

vivência social, dando lugar a um fenômeno denominado por pensadores como

geometrização do mundo da vida (Edmund Husserl2) ou colonização/tecnicização do

mundo da vida3 (Jürgen Habermas4). Isso aliado à crescente demanda das atividades

técnicas por produção normativa de padrões pelo direito na criação de marcos

regulatórios assinala que o direito e a política defrontam-se com uma necessidade de

produção formal de decisão e normalização que não raramente fortalece o sequestro

que os sistemas especializados exercem sobre âmbitos de vivência regidos pela

linguagem natural, como por exemplo relações de família ou de cidadania.

Ao lado da produção de regras, normas dotadas de estrutura com hipóteses

e consequências, dentre outras características, o direito formou-se e se reproduz a

partir de princípios jurídicos marcados pela abertura, pela plasticidade, pela

comunicabilidade e pela indução de consenso em razão de sua pretensão de

universalização.

1 GANDT, François. Husserl et Galilée – sur la crise des ciences européenens. Paris: Vrin, 2004, p. 13. 2 HUSSERL, Edmund. La crise des sciences européennes et la phénoménologie transcendantale. Paris: Gallimard, 2004. 3 Uma noção do que é o mundo da vida para Habermas pode ser extraída do seguinte trecho (HABERMAS, Jürgen. Teoría de la acción comunicativa, II. Madri: Taurus, 2001, p. 194): No meu entender, a análise da forma dos enunciados narrativos, um dos quais pioneiros foi A. C. Danto, e a análise da forma dos textos narrativos, constituem um ponto de partida metodologicamente fecundo para a clarificação desse conceito “profano” de mundo da vida que se refere à totalidade dos fatos socioculturais e que oferece, portanto, um ponto de abordagem para a teoria da sociedade. Tradução livre, como em todas as citações na presente tese. 4 HABERMAS, Jürgen. Teoría de la acción comunicativa, II. Madri: Taurus, 2001, p. 395 e seg.

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Se a linguagem especializada da ciência e da técnica jurídica distancia os

cidadãos do direito, principalmente vinculada a um sistema de regras, os princípios

jurídicos, pela sua proximidade da linguagem natural e do mundo da vida, possibilitam

estabelecer uma conexão entre o saber técnico-científico e cada um dos indivíduos,

bem como protegê-los contra abusos oriundos da técnica e da ciência. Na regulação, os

princípios criam acessos que suavizam o tecnicismo e os excessos burocráticos da

pletória normativa de cada setor fiscalizado e controlado por entes estatais. Embora

ainda seja precoce uma definição de regulação no presente trabalho, é possível

compará-la a um nó em que se identificam ao menos quatro cordões:

1) padrões de comportamentos que deveriam ser adotados por atividades

especializadas. Em inglês, esse sentido já era observado desde a Idade

Média para os profissionais liberais5;

2) atividade estatal que visa a suprir falhas de mercado6, sentido forte desde

o séc. XIX;

3) conjunto de medidas legislativas, administrativas e convencionais de que

se vale o Estado para delimitar a livre iniciativa e garantir a concorrência

para consecução de direitos sociais7;

4) oferta de um bem ou serviço de interesse público (public utilities) que,

em geral, exige capital e tecnologia intensivos.

O vocábulo regulação traz dentro de si uma tensão entre esses sentidos que

remetem a uma relação entre sistema político-burocrático, economia, direito, ciência e

técnica. A atividade regulatória é, portanto, um ponto sensível na relação do direito

com essas outras esferas. Dado isso, o objeto do trabalho será a exposição de uma

proposta de solidificação de um canal de princípios jurídicos como forma de evitar o

excessivo fechamento da regulação em torno de regras que favorecem a

tecnização/colonização do mundo da vida.

5 MOTTA, Paulo Roberto Ferreira. A regulação como instituto jurídico. In: Revista de Direito Público da Economia. Belo Horizonte: Fórum, n.º 4, pp. 183 e seg., out/dez, 2003. 6 JUSTEN FILHO, Marçal. O direito das agências reguladoras independentes. São Paulo: Dialética, 2002, p. 31. 7 ARAGÃO, Alexandre. As concessões e autorizações e o poder normativo da ANP. Revista de Direito Administrativo, n..º 282. Rio de Janeiro: Renovar, p.262.

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18

O cenário de reflexão do presente trabalho, porém, é de crise e de conflito

entre paradigmas. Por isso, a abordagem do tema terá como foco inicial, após a

exposição de pressupostos teóricos, a exposição das raízes dessa crise e também a

formulação de uma crítica aos elementos e acontecimentos subjacentes à regulação

como problema da sociedade complexa e do Estado Democrático de Direito.

1.1 A crise das ciências e da técnica

No começo do século XX, especialmente nas décadas de 20 e 30, ganhou

força na Alemanha um movimento de forte crítica à modernidade, especialmente ao

industrialismo, ao cientifismo, ao positivismo e ao tecnicismo8. Dois de seus principais

filósofos, Husserl e Heidegger, dedicaram várias obras ao tema9.

Husserl criticou a ciência moderna pela sua autonomização e, por

conseguinte, seu desligamento da unidade do saber. As sucessivas reduções que

acompanharam tais ciências as degradaram num saber-fazer de mero cálculo e

previsão desvinculados de sentido para o homem. É no mundo da vida, no qual o

conhecimento desconhece fronteiras e respeita o vago e o movimento contínuo do

experienciar, que se situa o verdadeiro saber10.

Heidegger, por sua vez, chamou a atenção para o pouco sentido que a

autonomia e a liberdade individuais têm no mundo tecnológico, em que indivíduos

tornam-se algarismos indistintos11, totalmente entregues à disposição12 de uma vontade

de poder. Nesse mundo, a produção seria inautêntica, transformando-se o trabalho em

mera reprodução.

8 É esse o contexto exposto por Michael E. ZIMMERMAN. Confronto de Heidegger com a modernidade. Lisboa: Instituto Piaget, 1990. 9 Entre as obras de Husserl pode-se citar Meditações cartesianas (HUSERL, Edmund. Meditações cartesianas. Trad. Frank de Oliveira. São Paulo: Madras, 2001) e A Crise das ciências européias e a fenomenologia transcendental (HUSSERL, Edmund. La crise des sciences européenes et la phenomenology transcendantale. Paris: Gallimard, 2004). De Heidegger: A questão da técnica (In HEIDEGGER, Martin. Ensaios e conferências. Petrópolis: Vozes, 2002). 10 GANDT, François. Husserl et Galilée. Sur la crise des sciences européenes. Paris: Lirairie Philosophique J. Vrin, 2004. 11 ZIMMERMAN, Michael. Confronto de Heidegger com a modernidade. Lisboa: Instituo Piaget, 2001, p. 35. 12 HEIDEGGER, Martin. Ensaios e conferências. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 28.

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De igual modo, a ciência moderna ter-se-ia enclausurado numa teoria do

real13, que situa objetos operantes e operados para um processo produtivista e numa

atitude terrivelmente intervencionista. O objetivismo, o determinismo e o

produtivismo distanciaram a ciência do que é digno de ser perguntado, assim como de

um modo de produção que buscava ideais transcendentais como a justiça, a verdade e

a beleza, a tekné (técnica) da Antiguidade.

Ao contrário da Antiguidade, em que a produção técnica pressupunha além

da habilidade artesanal, o fazer das grandes artes e das belas artes14 como algo

poético15, a técnica moderna é uma produção que visa à exploração e ao

armazenamento de possibilidades, processando utilidades ao abrir e expor bens para

promover o máximo rendimento possível com o mínimo de gasto.16 Nessa ordem de

ideias, homem e instrumentos compõem-se, reduzindo o conhecer, a busca de verdade

e liberdade à disponibilidade e ao desafio da exploração utilitária. É aí que reside o

perigo.

Perigos e exacerbações do pensamento moderno expostos por esses autores

forneceram temas para reflexões de filósofos como Gadamer, Hannah Arendt17 e

Habermas. Habermas, em especial, produziu vasta bibliografia relacionada com tal

reposicionamento da ciência na sociedade contemporânea e também uma obra sobre o

direito denominada “Faticidade e Validade”18.

13 Idem. Ibidem. p.42. 14 Idem. Ibidem, p. 17. 15 É interessante destacar que a poesis da Antiguidade era algo mais amplo do que se concebe atualmente, abrangendo mais do que juízos estéticos. Nesse sentido, Aristóteles (ARISTÓTELES. A poética clássica. Trad. Jaime Bruna. 12ª Ed. São Paulo: Cutrix, 2005, pp. 21 e 22): Parece de modo geral, darem origem à poesia duas causas, ambas naturais. Imitar é natural ao homem desde a infância e nisso se difere dos outros animais, em ser o mais capaz de imitar e de adquirir os primeiros conhecimentos pela imitação – e todos têm o prazer em imitar... Outra razão é que aprender é sumamente agradável não só aos filósofos, mas igualmente aos demais homens, com a diferença de que a estes em parte pequenina... Desses trechos, extrai-se que é ínsito à poesia da antiguidade uma representação (imitação) que gera aprendizado e esse aprendizado prazer. 16 HEIDEGGER, Martin. Ensaios e conferências. Petrópolis: Vozes, 2002, p.19. 17 Dentre outros: A condição humana. Lisboa: Relógio d’Água, 2001 e La crise de La culture. Trad. Patrick Lévy. Paris: Gallimar, 1972. 18 HABERMAS, Jürgen. Factidad y Validez. Trad. Manuel Jiménez Redondo. Madri: Editorial Trotta, 3ª ed., 2001.

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Já no direito, especificamente, a via mais larga para a crítica ao

cientificismo e ao positivismo foi aberta por Dworkin em 196719 com o texto “É o

direito um sistema de regras” que fornece alguns rudimentos teóricos para situar as

questões aqui abordadas. O eixo central de seu ataque foi a exposição da distinção

entre princípios e regras. Para Dworkin, os princípios não podiam ser encaixados nos

sistemas positivistas de regras. Os princípios operavam de forma completamente

diferente das regras, não podendo, por sua dimensão de peso, submeterem-se às regras

de reconhecimento como teste para analisar sua integração ao sistema jurídico.

Os princípios eram, então, standards a serem observados como

requerimento de justiça e equidade ou outra dimensão moral. De um lado, as regras

são aplicadas no tudo ou nada, de forma que ou são inválidas ou se constrói uma

exceção. De outro, os princípios não determinam isoladamente a decisão, tendo uma

dimensão de peso, o que se demonstra com a colisão de princípios em que o de peso

maior se sobrepõe ao outro sem perder sua validade.

Essa distinção de Dworkin remete a duas concepções distintas de direito.

Uma primeira na qual o direito é um sistema de regras em que a objetividade, o

cálculo e a certeza dominam. Uma segunda em que o direito é um conjunto de

princípios marcado pela fluidez, pela abertura, pela imprecisão e por juízos também de

ordem moral, filtrados pelas instituições jurídicas.

O pensamento de Dworkin é fortemente influenciado pela hermenêutica

filosófica, especialmente por Gadamer, o que assinala uma conexão entre as críticas

entabuladas por Heidegger e Husserl à ciência e à técnica modernas e à teoria pós-

positivista de Dworkin no direito. Enquanto aquelas duas conformam um saber

distante do indivíduo por sua especialização, a abertura e a imprecisão inerentes aos

princípios atuam no direito aproximando-o do homem situado no mundo da vida como

esfera indiferenciada de vivência, em que o conhecimento ultrapassa os limites

ingênuos da objetividade. A superação de tais fronteiras não traz apenas incerteza ao

saber, mas sim possibilita a concepção de uma razão que não admite nenhuma

19 DWORKIN, R. M. Is Law a system of rules? In: DWORKIN, R. M. The Philosophy of Law. Oxford/Nova Iorque: Oxford University Press, 1977.

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separação em prática, teórica, estética20 dando-lhe um sentido pleno e global num

horizonte aberto ao perguntar.

Os princípios jurídicos conformam um modo de raciocinar que permite à

técnica e à ciência, inclusive a jurídica, assumir significado perante os indivíduos. O

direito, ao mesmo tempo em que se organiza como sistema sincrônico objetivo de

regras, de inspiração lógico-matemática, também apresenta a feição diacrônica de uma

comunidade de princípios em que se privilegia uma dimensão reflexiva do saber.

No universo da regulação há uma sobrecarga de dados e informações e uma

pretensão de organizá-los num marco regulatório, que nada mais é que um sistema de

regras dispostas a partir de saberes técnico-científicos com clara finalidade de garantir

os mercados e seus pressupostos de segurança nos contratos e na propriedade como

modo de produzir e disponibilizar utilidades públicas. Os princípios são um claro

contraste com toda essa disposição produtiva, formando um canal de comunicação

universalizável, mais próximo do cidadão e em que necessariamente, por sua

vaguidade, inserem-se debates de moral política.

1.2 Os pressupostos teóricos

A concepção teórica e metodológica da presente tese apoiar-se-á

basicamente na hermenêutica filosófica, sem dispensar abordagens que tenham

potencial crítico em relação ao tema. Em consequência, a atitude básica a ser assumida

será a de compreensão de fenômenos sociais linguisticamente mediados e resultantes

de uma construção histórica.

Noutro aspecto, a sociedade complexa é o cenário da investigação. Então,

levar-se-á em consideração que atualmente existem esferas colonizadas da linguagem

natural e do mundo da vida em que se reproduzem sistemicamente interesses21. Assim,

a perspectiva hermenêutica do trabalho será complementada por uma abordagem

20 HUSSERL, Edmund. La crise des sciences européenes et la phenomenology transcendantale. Paris: Gallimard, 2004, p. 305 21 HABERMAS . Factidad y Validez. Trad. Manuel Jiménez Redondo. Madri: Editorial Trotta, 3ª ed., 2001, p. 120.

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sistêmica da sociedade, fundamentalmente com base na obra de Habermas e com

alguns aportes de Luhmann, que embora sejam marcos teóricos diferentes, podem ser

trabalhados de forma sinérgica.

Em função dos conflitos e tensões estruturais da mobilidade da distribuição

do poder normativo e de normalização nas estruturas estatais, será valiosa a

abordagem externa da linguagem como discurso que estrutura um jogo dinâmico de

dominação social. Com isso, na parte crítica do trabalho lançar-se-á mão da

abordagem genealógica de Foucault.22 Isso, no entanto, não significa uma adoção

definitiva dessa teoria, mas simplesmente sua incorporação como método de exposição

e como um degrau a ser superado, um obstáculo a ser removido, já que o compromisso

fundamental e final adotado como marco teórico é o da hermenêutica filosófica.

De igual modo, a perspectiva teórica adotada na tese não implica abandono

do aparato metodológico construído a partir da ideia moderna de ciências. De maneira

alguma se pretende transformar a tensão assinalada por Gadamer no título de sua

principal obra “Verdade e Método” em uma oposição absoluta e excludente em que a

busca da verdade opõe-se à concepção de método da Modernidade23. O próprio

Gadamer esclarece que jamais pretendeu refutar a concepção moderna de ciência, mas

sobretudo indicar os limites insuperáveis que essa encontra na sua pretensão de

certeza e objetividade24.

A partir dessa abordagem não se ignora, neste trabalho, a preocupação

metodológica imposta por um discurso científico que é fruto da modernidade. Por isso,

constitui parte do enfrentamento teórico de pesquisa o tratamento da ciência e da

técnica a partir do instrumental analítico constituído para o estudo dos sistemas na

sociedade contemporânea.

22 A bibliografia e a exposição dos pressupostos teóricos da genealogia serão abordados especificamente no capítulo 2. 23 GADAMER, em Metafísica e Filosofia Pratica in Aristotele. Milão: Guerini e Associati, 2000, p. 64, explica que a tensão entre verdade e método refere-se a outra polaridade que remete às diferentes concepções de ciência pré-moderna e moderna, ou seja, de verdade e certeza. Enquanto que a concepção moderna de ciência busca a certeza, a filosofia, em uma perspectiva hermenêutica, procura a verdade, como uma forma de liberdade (errância) que se caracteriza como uma abertura para a coisa (HEIDEGGER. Sobre a essência da verdade. Trad. Carlos Morujão. Porto: Porto Editora, 1995, p.55), o que leva a um incessante diálogo. 24 GADAMER (Op. cit. p. 64).

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Todavia, a aproximação hermenêutica adotada na pesquisa impede a

redução de sua racionalidade às formas e aos procedimentos da modernidade25. A

postura de compreensão não se compadece com a pretensão de domínio e segurança

ingênuos derivados da adoção de um método como garantia de cientificidade.

Na visão hermenêutica, método não é algo abstrato em relação à

experiência concreta e tem o significado de regra que se precisa seguir em qualquer

indagação: não é mais do que o abrir-se à experiência viva26. Em outras palavras,

método é abertura de um caminho na floresta da experiência27.

A compreensão e o situar-se como atitudes hermenêuticas não se esgotam

no atingimento de um equilíbrio cosmológico por meio da teoria. São passos para a

aquisição de um saber-fazer como suporte de um projetar-se para o futuro, mas não os

únicos.

Não se pode esquecer que a compreensão (verstehen da tradição

hermenêutica alemã) convive com a explicação (erklären), de modo que o caminho

para busca de sentido e unidade na experiência passa necessariamente por

procedimentos, formas e análises construídos pelas ciências modernas e

contemporâneas.

De tal maneira, a abordagem metodológica e teórica da pesquisa a ser

desenvolvida pode ser bem compreendida a partir da dialética apontada por Ricoeur

entre explicação e compreensão e de sua máxima explicar mais para compreender

melhor28. Dentro de tal dialética, o método explicativo, típico das ciências oriundas da

modernidade, abre novos horizontes comuns de fatos, leis, hipóteses e verificações

para a compreensão de experiências intersubjetivamente construídas em sociedade.

Entretanto, esses novos horizontes tendem a distanciar-se dos indivíduos,

carecendo das lentes do compreender hermenêutico para serem visualizados pelos

indivíduos. No direito, são os princípios que abrem espaço para essa atitude

hermenêutica de compreensão. A pesquisa será, portanto, desenvolvida na exploração

25 A ênfase do pensamento contemporâneo em métodos e procedimentos pode ser bem compreendida a partir de HABERMAS, Jürgen. Pensamento Pós-metafísico — Estudos Filosóficos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002, p. 44 e seg.. 26 GADAMER (Op. cit. p. 99). 27 Idem. Ibidem. 28 RICOEUR. Teoria da interpretação. Lisboa: Edições 70, 2000, p. 83 e seg.

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de tal tensão entre o explicar e o compreender, em que a normatização da regulação

equilibrar-se-á com a abertura de sentido dada pelos princípios.

1.2.1 O horizonte linguístico como condição de possibilidade do conhecimento

Uma reflexão que coloca, de um lado, princípios marcados por sua abertura

e plasticidade, e de outro regras que têm uma pretensão de aplicação por meio de fatos

tipos, deve partir de uma reflexão sobre a própria linguagem. Nesse sentido, o mundo é

mundo apenas na medida em que vem à linguagem – a linguagem só tem sua

verdadeira existência no fato de que nela se representa o mundo29. Mundo e

linguagem são indissociáveis, de modo que na linguagem se representa o próprio

mundo de forma absoluta e abrangente, sem que esse primeiro possa ser transformado

em objeto da linguagem por não estar completamente dado. Não se pode olhar de fora

o próprio mundo constituído linguisticamente. O ser que pode ser compreendido é

linguagem30.

A linguagem natural fixa conceitos prévios que não estão como um todo

disponíveis a nenhum ser humano, à ciência ou mesmo ao poder. Habermas, com

precisão, traz a seguinte observação sobre esse horizonte prévio de sentido que

constitui o mundo da vida, no qual todos estamos inseridos: efetivamente, na medida

em que se refere a estruturas do mundo da vida, [a linguagem] tem que fazer explícito

um saber de fundo em que ninguém pode dispor pela sua vontade. Ao teórico, assim

como ao leigo, o mundo da vida lhe está dado como obra acabada em seu próprio

mundo da vida...31

Esse mundo da vida, consistente em um horizonte de sentidos que nos é

transmitido pela linguagem natural, constitui uma fonte de certeza, de pré-

compreensões e de dados autoevidentes. O saber que serve de horizonte, que sustenta

29 GADAMER Verdade e Método.Trad. Flávio Paulo Meuler. Petrópolis: Editora Vozes, 3ª ed., 1999. p. 643. 30 Idem. Ibidem. p. 687. 31 HABERMAS, Jürgen. Teoría de la Acción Comunicativa II. Madri: Taurus, 2ª ed., 2001, p. 568.

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tacitamente a prática comunicativa cotidiana, é paradigmático da certeza com que

nos é presente o transfundo que é o mundo da vida32.

No entanto, esse horizonte de sentidos não se mostra apenas como a origem

de certezas e evidências, já que, no cenário desse próprio mundo da vida surgem as

necessidades, os problemas e as insuficiências do presente. Ao mesmo tempo em que

essa linguagem natural nos transmite um mundo de segurança vindo do passado,

constitui um pano de fundo no qual se revelam as aporias e os problemas do aqui e do

agora. Esse horizonte torna possível, assim, uma fusão entre o passado e o presente. O

mundo do sentido transmitido abre-se ao intérprete só na medida em que ao mesmo

tempo aí se elucida o seu próprio mundo. O sujeito da compreensão estabelece uma

comunicação entre dois mundos; apreende o conteúdo objetivo do que é legado pela

tradição, ao aplicar esta última à sua própria situação33.

É a linguagem que permite o encontro entre a tradição e os homens do

presente como seus intérpretes vivenciais. São interpretações e apropriações de textos

ou fragmentos de textos do passado que tornam compreensíveis as experiências

humanas da própria vida. A linguagem não constitui o verdadeiro acontecer

hermenêutico como linguagem, como gramática nem como léxico, mas no vir à fala do

que foi dito na tradição, que é ao mesmo tempo apropriação e interpretação.34

Esse encontro entre passado e presente no horizonte de sentidos da

linguagem mostra-se como uma abertura de possibilidades para o futuro. Assim como

a linguagem nos fornece certezas ou problemas, é ela mesma que torna factível a

resposta de perguntas como formação de um projeto para o futuro. Mais uma vez

Habermas expõe essa outra característica da linguagem como meio para a afirmação

da própria liberdade: o que nos arranca à natureza é o único estado de coisas que

podemos conhecer segundo a sua natureza: a linguagem. Com a estrutura da

linguagem é posta para nós a emancipação35. A linguagem é, pois, uma possibilidade

de se elevar acima das coerções do mundo circundante, transformando-o em condição

de liberdade na articulação de novos sentidos.

32 Idem. Ibidem. 33 HABERMAS. Técnica e Ciência como “Ideología”. Lisboa: Edições 70, 2001, p. 139. 34 GADAMER (Op. cit., p. 672). 35 HABERMAS, Jürgen. Técnica e Ciência como “Ideología”. Lisboa: Edições 70, 2001, p. 145.

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Outra característica a ser ressaltada é que, na linguagem, além de se

possibilitar a formação desse horizonte de sentidos como um acordo entre passado e

presente como condição de possibilidade e liberdade para o futuro, sua própria

utilização pela humanidade pressupõe um acordo de seus integrantes. A linguagem

como mundo é o solo comum, não palmilhado por ninguém e reconhecido por todos,

que une a todos os que falam entre si36. Apel bem sintetiza tal ideia37:

Um caminho possível para a determinação conceitual ora postulada parece-me residir na comprovação de que se trata, na linguagem, de uma grandeza transcendental em sentido kantiano; e mais exatamente de uma condição de possibilidade e de validade do acordo mútuo e do acordo consigo mesmo, e portanto também de possibilidade e de validade do pensamento conceitual, da cognição objetual e do agir com sentido. Nessa perspectiva, pretendemos falar de um conceito transcendental-hermenêutico de linguagem.

Para o aqui e o agora, a linguagem não é mera tradição, não é apenas um

dado, mas se mostra sobretudo como condição de possibilidade a um só tempo ideal e

real, como médium para afirmação de acordos no aqui agora e idealização de um

projeto para o futuro.

O próprio mundo e as dimensões que ele assume a partir de sua constituição

lingüística podem ser melhor entendidos a partir de três modelos de compreensão da

linguagem e sua conexão com a ação, expostos por Habermas38, para mostrar as

possibilidades oferecidas pela linguagem e sintetizá-las na teoria da ação

comunicativa. O modelo teleológico de ação concebe a linguagem como um meio pelo

qual os falantes se orientam ao seu próprio êxito, podendo influir uns sobre os outros

para levar o oponente a formar suas opiniões conforme seus interesses. O modelo

normativo concebe a linguagem como um meio que transmite valores culturais e é

portador de um consenso ratificado por um novo ato de entendimento. O modelo de

ação dramatúrgica pressupõe a linguagem como meio em que se dá a

autoescenificação, ou seja, a própria expressão do ser humano. Por último, como

superação da unilateralidade de todos esses outros modelos, Habermas concebe o

modelo comunicativo em que a linguagem se afirma como um meio de entendimento,

36 GADAMER (Op. cit. p. 647). 37 APEL, Karl-Otto. Transformação da Filosofia. Vol. II. Trad. Paulo Astor Soethe. São Paulo: Loyola, 2000, p. 379. 38 HABERMAS, Jürgen. Veritá e giustificazione. Trad. Mario Carpitella. Roma: Laterza: 2001, p. 137.

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em que falantes e ouvintes se referem, a partir de um horizonte, para negociar

definições de situações que possam ser compartilhadas por todos.

Valer-se da linguagem, em seu cotidiano, coloca para o homem todas essas

dimensões. Em outras palavras, numa primeira dimensão passa a ser possível

influenciar, em uma visão egoístico-instrumental, o comportamento de terceiros.

Numa segunda, a linguagem, com suas tradições, já traz consigo valores e orientações

éticas. Numa terceira, a linguagem mostra-se como forma de expressão pessoal. Numa

última, a linguagem propicia o entendimento, dentro de um horizonte preconcebido,

como forma da sua própria superação.

Princípios e regulação confrontam-se numa tensão no que concerne à

linguagem. É que a regulação, pela especificidade dos bens e serviços demandados e a

tecnicidade de sua produção, vale-se de uma linguagem especializada que pretende

univocidade dos signos e de sua sequência39, numa redução da linguagem a mera

sinalização, comunicação e informação. Já os princípios deitam raízes na linguagem

natural, que é a de uso corrente e transmitida por tradições, descortinando um mundo

de vivências não encerráveis no mero cálculo e propiciadores de um entendimento

compartilhável pelos afetados pelo fenômeno regulatório.

I.2.2 A linguagem e os sistemas de conhecimento

Nas ciências sociais, todas as implicações expostas sobre a linguagem

mostram-se presentes. A impossibilidade de uso pelas ciências sociais de uma

linguagem que se desprenda totalmente da natural, como o fazem as ciências naturais

com a matemática, implica uma necessária aproximação com o mundo da vida e com

suas tradições.

Enquanto as ciências naturais podem reduzir parte da realidade a uma

linguagem totalmente artificial com alto grau de coerência e abstração, as ciências

sociais, ainda que formem conceitos específicos, não podem criar esse mundo artificial

e autorreferente, pois a utilização da linguagem natural as remete a toda vivência não

39 HEIDEGGER, Martin. Il linguaggio tramandato e linguaggio tecnico. Florença: Edizioni ETS, 1997, p. 52.

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diferenciada da própria sociedade. Com isso, o saber social contido numa aplicação de

princípios jurídicos não pode ser reduzido a um sistema fechado.

Por isso, embora seja possível a objetividade nas ciências sociais, ela não

tem as mesmas características das ciências da natureza. Há, nesse sentido, uma grande

diferença entre a objetividade das ciências naturais e a objetividade da linguagem. Na

primeira, em que se pressupõe a existência de um observador neutro e imparcial, quer-

se eliminar os aspectos subjetivos do saber, tornando todas as experiências calculáveis,

domináveis e disponíveis.

Na segunda, porém, tal tarefa é impossível. Quando se apreende uma

experiência em linguagem, afasta-se da imediaticidade ameaçadora da própria

vivência, reduzindo sua complexidade em proporção, para torná-la comunicável.

Ocorre que esse distanciamento que se conquista com a linguagem não significa

desprendimento da própria vida, tornando-a objeto de completo controle. Muito ao

contrário, já que falar e escrever são expressões de compreensão do próprio ser

humanizado com todas as suas incertezas e imprecisões.

Embora a objetividade da linguagem e a pretendida pelas ciências naturais

afastem-se por essa tensão revelada por compreensão e dominação, tem seu ponto de

aproximação num elemento comum a esse mesmo binômio: a teoria. Na teoria há a

superação do interesse prático e pragmático, reduzindo tudo o que se encontra a

interesses concretos. Gadamer40 expõe com nitidez essa tensão por meio do conceito

antigo e moderno de teoria.

Na Antiguidade, a teoria era a forma mais elevada de ser homem, era

aproximar-se do cosmos. Na Modernidade, a ciência dividiu o saber em unidades de

experiência, objetos, como forma de tornar possível o seu domínio, apesar de não estar

imediatamente preocupada com a prática. A teoria da Antiguidade procurava a unidade

como forma de compreensão cosmológica. A da Modernidade constituiu diversas

ordens e ciências fracionadas como meio para o domínio.

Na Antiguidade, a teoria procurava a unidade a partir da própria linguagem

natural41, ao passo que a Modernidade fracionou o saber em várias linguagens

40 GADAMER (Op. cit. p. 688). 41 Aliás, a teoria grega concebia a coisa e a própria palavra em uma unidade.

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científicas, inspiradas em modelos matemáticos. Enquanto a teoria grega se

preocupava com coisas dentro de uma cosmologia, a ciência moderna se preocupa com

objetos de conhecimento de um saber específico.

A compreensão pela linguagem natural não objetiva o mundo no sentido

das ciências modernas. Tal linguagem, ainda que formulada em termos abstratos,

significa uma abertura para o próprio mundo, e não uma redução de mundo como

ocorre na objetivação das ciências naturais. Somente o médium da linguagem, por sua

referência ao todo dos entes, pode mediar a essência histórico-finita do homem

consigo mesmo e com o mundo42.

A linguagem natural, que não pode ser completamente afastada pelas

ciências sociais, obriga-as a uma aproximação com o mundo da vida. Por isso, a

objetividade possível no conhecimento da sociedade não pode, de maneira alguma, ser

a de um observador neutro e imparcial, mas de um participante linguístico que, por

meio da reflexão, constrói uma teoria coerente para a compreensão do mundo.

Nas ciências sociais, a objetividade possível é a da própria linguagem, em

que a diversidade das experiências humanas é reduzida a unidades em palavras e

orações, que por sua vez só tem sentido se referidas à própria vida. O conhecimento

das ciências sociais conquista a coerência e a unidade por meio da linguagem como

razão, mas isso jamais significa a criação de um sistema idealizado e artificial pela sua

necessária ligação com o próprio mundo que a linguagem natural constitui e

representa.

Não há dúvidas de que continua sendo indescartável a necessidade de

unidade de razão, como ressalta Gadamer43. No entanto, nas ciências sociais, a razão e

a própria unidade só são possíveis dentro da linguagem natural e do mundo da vida. É

por isso que Apel considera que a filosofia da linguagem substitui a tradicional teoria

do conhecimento44. A linguagem como condição de possibilidade e validade do

conhecimento é uma das grandes descobertas da filosofia contemporânea.

42 Idem. Ibidem. p. 663. 43 GADAMER, Hans Georg. A razão na época da ciência. Trad. Ângela Dias. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1993, p. 24. 44 COSTA , Reginaldo. Ética do discurso e verdade em Apel. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 92.

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Dentro desse contexto, principalmente para ciências sociais, não há mais

espaço para formulações de teorias construídas em sistemas fechados. Antes mesmo de

a filosofia ter centrado suas preocupações sobre a linguagem, Hartmann, expressando

um dos desdobramentos da fenomenologia, já defendia que:

o pensamento sistemático de hoje passa por outro caminho. Já não é pensamento sistemático; muito melhor, deve designar-se como pensar problemático. Pensar problemático não é assistemático. Também esse pretende chegar a uma visão de conjunto. Sua meta deverá ser apresentar-se sempre como sistema. Só que não se antecipa o sistema. Pretende-se deixar conduzir até lá. Sabe-se que há uma conexão total com o mundo.45

A teoria, dentro de tal visão da linguagem e dos próprios sistemas, não só é

possível como desejável para a coerência e a unidade no pensamento e na razão. No

entanto, o que não mais se justifica são as teorias criadas como sistemas fechados e

autorreferentes, já que a linguagem é abertura para o mundo. As teorias, dentro das

ciências sociais, devem ser formuladas numa perspectiva de compreensão

hermenêutica que se entende não como uma posição absoluta, mas como um caminho

da experiência46.

Uma validade absoluta, objetiva e atemporal revela-se impossível e

ingênua. Toda teoria surge a partir da reconstrução do caminho de uma linguagem que

não se reduz ao juízo enunciativo nem a sua presumida validez objetiva, mas que

aponta sempre para a totalidade do ser. A totalidade não é um objeto; é o horizonte de

um mundo que nos rodeia e no qual vivemos47.

Diante de tal abertura da linguagem para o próprio mundo, o método como

garantia de certeza e objetividade revela seu esgotamento. O rigorismo procedimental

por si só não implica verdade ou mesmo aproximação desta, porque o saber não está

mais em sistemas fechados e completamente dominados, nos quais o apuro

metodológico pode possibilitar a reprodução de experiências.

As experiências vivenciais inerentes às ciências sociais são irrepetíveis em

sua singularidade, o que já revela a ingenuidade de seu completo domínio. O uso da

linguagem assinala que é possível unificar a compreensão da diversidade de tais

45 HARTMANN Nicolai. Autoexposición sistemática. Trad. Barnabé Navarro. Madrid: Tecnos, 1989, p. 7. 46 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método II. Trad. Enio Paulo Giachini. Petrópolis, Ed. Vozes, 2002, p. 576. 47 Idem. Ibidem. p. 577.

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experiências dentro de uma perspectiva teórico hermenêutica, como bem expressa

Gadamer48:

Mas a hermenêutica filosófica estende sua pretensão mais além. Reivindica universalidade. Fundamenta-a dizendo que a compreensão e o entendimento não significam primária e originalmente um procedimento ensinado metodologicamente, mas uma forma de realização da vida social humana, que em última formalização representa uma comunidade de diálogo.

Por se desenvolver com o próprio uso da linguagem, o conhecimento

teórico assume todas as dimensões desta, ou seja, a instrumental, a ética, a expressiva e

a pragmático-consensual. Nenhuma teoria pode assim ser compreendida isoladamente

ou formar um sistema fechado, pois a própria linguagem, como seu médium, põe-na

em contato com um mundo no qual ela mesma está inserida.

Não é possível deixar de marcar que o cenário sobre o qual se constroem as

teorias atualmente é a sociedade supercomplexa, em que se desenvolvem diversas

linguagens e saberes, o que pode tornar uma teoria excessivamente abrangente pouco

convincente. Todavia, a pretensão de unicidade da razão subsiste pelo

compartilhamento de linguagens naturais, que formam com o mundo da vida uma

arena para a estruturação de consensos e dissensos.

Por último, não se pode deixar de demarcar que há na linguagem uma

tensão entre coerção e emancipação.49 Pela linguagem podem-se construir discursos de

dominação e autonomia. Com isso, embora não de forma definitiva e sobretudo como

suporte crítico, é válido abordar os jogos discursivos sociais que estruturam relações

de dominação, colocando em suspenso busca de consensos baseados na verdade e

abdicando da unidade da razão.

Isso, no entanto, de modo algum significa reconhecer que ideais

transcendentais como verdade, beleza e justiça não possam ser linguisticamente

construídos e que não seja possível buscar consensos sociais. Muito ao contrário, o

objetivo de se seguirem as diretrizes de Foucault50, na presente tese, valorizando as

relações de dominação e colocando entre parênteses a vontade de verdade e unidade

nos discursos, é buscar caminhos para ultrapassar tais limitações.

48 Idem. Ibidem. p. 297. 49 HABERMAS, Jürgen. Factidad y Validez. Trad. Manuel Jiménez Redondo. Madri: Editorial Trotta, 3ª ed., 2001, pp. 71 e seguintes. 50 Como ressaltado, esses pressupostos metodológicos estão expostos no Capítulo 2.

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Conclusivamente sobre a regulação e a linguagem, é sua marca a da

exacerbação do tecnicismo e do economicismo, com a utilização instrumental do

direito, que acaba por colonizar esferas de vivências indiferenciadas vazadas em

linguagem natural. O direito visto sob uma feição principiológica suplanta a rigidez

dos sistemas de conhecimentos de inspiração matemática e conquista a unidade da

razão no campo da formação de canais que discursivamente, em linguagem natural,

buscam estruturar o consenso.

1.3 A questão do legalismo e do normativismo

No início da Modernidade, as guerras religiosas do século XVI mostraram

aos pensadores da Idade Moderna que não havia uma organização natural da

sociedade51. A reforma afastara o Deus católico do Deus protestante. O pensamento

teológico não era mais capaz de estruturar a ordem como o fizera na Baixa Idade

Média. Era tarefa dos pensadores modernos, a partir de uma razão da consciência

individual abstrata, construir um direito ideal, como dever ser52.

Para tal projeto não eram suficientes apenas princípios. Mostrava-se

necessário um extenso programa de regras e leis sistematizadas e coerentes para

possibilitar uma ordem social efetiva, que se devia apresentar como uma

decomposição natural de uma sociedade constituída por homens iguais em dignidade,

que teriam de se respeitar mutuamente.

O direito devia ser eficaz e útil para assegurar a liberdade, a igualdade ou

mesmo a segurança e a propriedade dos indivíduos. Era o direito do jusnaturalismo

moderno, em que os únicos princípios evidentes estavam ligados ao homem como

portador de direitos naturais53.

O próprio Estado encontrava sua justificativa na vontade de todos os

indivíduos, sintetizada em leis gerais e abstratas nas quais se representava a vontade

51 LOPES, José Reinaldo de Lima. O Direito na História — Lições Introdutórias. São Paulo: Max Limonad, 2002, p. 179. 52 VILLEY, Michel. Des delites et peines dans la philosophie du droit naturel classique. In: Archives de Philosophie du Droit. Tomo 28, Paris: Editions Sirey, 1983, pp. 182-203, p. 181. 53 GARCIA DE ENTERRÍA, Eduardo. La Lengua de los derechos. La formación del derecho público europeo tras la revolución francesa. Madrid: Alianza Ediotorial, 2001, p. 55.

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geral da nação54. Com isso, a lei mostrou-se, para os jusnaturalistas, como a garantia

formal da compatibilização de liberdades de indivíduos iguais por natureza.

Na Idade Contemporânea, o projeto moderno de ordem idealizada como

dever ser, após o primeiro iluminismo e as revoluções industrial e francesa, foi

concretizado por meio do movimento constitucionalista e codificador. A ordem social

não estava mais em costumes, em estudos doutrinários ou em leis esparsas, mas num

sistema organizado por Constituições e Códigos reunidos num mesmo ordenamento

jurídico para cada Estado Nacional. O direito como dever ser transformou-se em

realidade social por meio de leis positivadas55.

No campo do conhecimento, a valorização, pelo iluminismo, da razão

ligada à experiência, ao concreto e ao verificável foi exacerbada pelo positivismo, que

passou a conhecer tudo a partir de fatos, pretendendo desvincular-se de qualquer

concepção metafísica ou tradicional. O saber só era possível com base em verdades

verificáveis e demonstráveis, o que, aliado à Revolução Industrial, impulsionou a

sociedade do século XIX para crescentes funcionalização e especialização.

No ambiente do positivismo, a ordem jurídica não podia ser apenas dever

ser, mas afirmar-se como fato social, econômico, histórico ou como lei posta pelo

Estado, como uma vontade concreta da soberania. O direito só se afirmaria como

ciência social se fosse uma realidade e um conhecimento positivo baseado em fatos

sociais ou em leis positivas56.

O direito moderno, que se afirmara como um projeto de sistema de ação e

saber coerente, era impelido pelo positivismo a um domínio científico dos fatos,

fracionando-se em saberes e ramos autônomos. No século XIX, essa especialização de

conhecimento construiu abismos entre os diferentes ramos do direito. Embora ainda

estruturados sobre uma base comum, o conhecimento jurídico caminhou numa

progressiva diferenciação que obscureceu o conjunto e focou as diferenças entre cada

uma das novas áreas que se criavam no direito.

As escolas positivistas geraram uma tensão advinda de que, enquanto a

humanidade, a sociedade e o mundo moral do direito moderno haviam sido

54 ROUSSEAU, Jean Jacques. Do Contrato Social. São Paulo: Martin Claret, 2002, p. 48. 55 VILLEY, Michel. Leçons d’histoire de la Philosophie du Droit. Paris: Dalloz, 2002, p. 69 e seg.. 56 Idem. Ibidem.

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construídos a partir da ideia de liberdade e indeterminação, o ideal da ciência positiva

impunha reduções de tais realidades a leis causais, deterministas e logicistas.

A dinâmica do positivismo levou a que o direito e a ciência jurídica

progressivamente fossem se apoiando em conceitos e construções cada vez mais

abstratas e estruturadas segundo o modelo de uma lógica matematizada. Foi assim que

o positivismo-cientificista da escola das Pandectas afirmou-se no direito civil e

iniciou-se a dogmática do delito no direito penal, um gérmen que redundou no

neopositivismo e em seus sistemas estruturados em pura lógica.

O direito e a ciência jurídica pouco a pouco iriam perdendo o compromisso

com o seu conteúdo e transformando-se em pura forma. Os valores e a substância das

leis foram completamente relativizados e entregues ao poder político. No direito, o

poder político podia preencher esses modelos positivistas e neopositivistas com o

conteúdo que lhe aprouvesse, porque a objetividade típica das ciências naturais era

neutra e desconhecia valores. O limite da teoria era apenas o seu objeto; no caso do

direito, as normas, as leis positivas e os fatos, conforme a escola.

A teoria geral do direito direcionava-se a dar coerência e aplicabilidade à

vontade do poder político por meio de um sistema jurídico que tinha seus valores

determinados pela autoridade, qualquer que ela fosse. A teoria do direito transformara-

se em mera lógica e em conceitos vazios à espera de um poder para lhes dar sentido.

Era a teoria pura do direito, apartada de preocupações éticas, morais ou quaisquer

outras estranhas ao seu objeto.

Essa teoria pura do direito revelou-se emblemática do pensamento

neopositivista no direito. Especialmente, na América do Sul, Kelsen teve marcante

influência, levando Brimo a afirmar que nos países de tal continente Kelsen conta com

discípulos mais kelsenianos que ele mesmo57.

O objetivo da teoria pura do direito foi desenvolver uma ciência jurídica

livre de elementos estranhos advindos da ética, da política ou mesmo das ciências

naturais58. O conteúdo dessa teoria poderia ser qualquer um, já que a teoria pura do

57 BRIMO, Albert. Les Grands Courants de la Philosophie du Droit et de l´état. Paris: A. Pedone, 1978, p. 319. 58 WARAT (WARAT, Luis Alberto. O direito e sua linguagem. 2ª ed. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1995, p. 249) fala em 5 níveis de purificação: 1) política e ideológica; 2) antijusnaturalista; 3) antinaturalista ou anticausalista; 4) intranormativa; 5) monista ou antidualista.

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direito é uma teoria do direito positivo – do direito positivo em geral, não de uma

ordem jurídica especial. É teoria geral do direito, não interpretação de normas

jurídicas particulares, nacionais ou internacionais. Contudo, fornece uma teoria da

interpretação59. Kelsen procurou métodos próprios para diferenciar a ciência do

direito das outras áreas do conhecimento, centrando-se apenas em seu objeto.

Para a teoria pura, revelou-se fundamental a oposição entre ser e dever ser.

Os conceitos jurídicos advêm do dever ser — sollen — e não no ser — sein. Assim,

um ato ou procedimento jurídico relevante não pode ser entendido apenas a partir do

espaço e do tempo, mas sim a partir de um sistema jurídico de normas como dever ser.

A ciência do direito consiste, para Kelsen, num sistema de normas a partir do qual os

atos são qualificados e se estabelece o seu sentido como lícito ou ilícito.

Normas jurídicas são descrições típicas de conduta que se apresentam como

pressupostos lógicos para a aplicação de uma sanção como penas ou atos de execução.

Em outras palavras, concebem-se as normas como mandamentos hipotéticos de

coação.

Para as normas jurídicas, não vale o princípio da causalidade, e sim o da

imputabilidade. Logo, o direito não se rege por regras do tipo se é A, é B, mas se é A,

deve ser B. A norma jurídica imputa, para Kelsen, uma sanção em decorrência de uma

conduta ou de um fato. A norma apenas indiretamente indica qual a conduta a ser

seguida, de modo a se evitar uma sanção a ser imposta pela autoridade.

O ilícito, por sua vez, nada mais é do que o pressuposto ou a condição para

a aplicação de uma sanção determinada pela ordem jurídica. Somente pelo fato de uma

ação ou omissão determinada pela ordem jurídica ser feita pressuposto de um ato de

coação estatuído pela mesma ordem jurídica é ela qualificada como ilícito ou delito60.

Um ato seria ilícito por se tratar de algo proibido e sancionável, mas não por se

caracterizar como algo reprovável socialmente61.

Para Kelsen, intimamente relacionado com o ilícito estava o conceito de

dever jurídico; eis que esse último pressupõe a existência de uma norma válida

59 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. João Batista Machado. 3ª ed. Coimbra: Armênio Amado — Editor, sucessor, 1974, p. 17. 60 Idem. Ibidem. p. 166. 61 KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. Trad. Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes; Brasília: Editora Universidade de Brasília, p. 56.

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ordenando uma conduta. No que concerne às normas jurídicas, referem-se à conduta

de dois indivíduos, pelo menos: o indivíduo que comete ou pode cometer o delito e o

indivíduo que deve executar a sanção62.

Existe, assim, um dever de aplicar a sanção por um órgão do Estado e um

epifenômeno do dever ser da sanção63, consistente na conduta por meio da qual o

delito e a consequente sanção são evitados. A norma jurídica divide-se, assim, em duas

outras separadas por dois enunciados de dever ser: um no sentido de que o sujeito deve

observar certa conduta, e outra no de que um órgão do Estado deve executar uma

sanção no caso de a primeira ser descumprida. Por ser a norma que obriga a uma

conduta mera decorrência da que estabelece a sanção a ser aplicada por uma

autoridade, essa última seria uma norma primária, e a outra, uma norma secundária.

O dever jurídico assumiu em Kelsen um caráter instrumental, seja como

forma de evitar a sanção – norma secundária – seja como determinação da imposição

da sanção – norma primária. O dever não guardava qualquer relação com um impulso

para uma conduta prescrita:

Assim sucede com a suposição de que o dever jurídico é um impulso ínsito ao homem, uma impulsão para uma conduta que ele sente como prescrita, a vinculação por uma norma natural ou divina que lhe é inata e cuja observância a ordem jurídica positiva se limita a garantir, estatuindo uma sanção. Ele não é, porém, senão a norma jurídica positiva que prescreve a conduta deste indivíduo pelo fato de ligar à conduta oposta uma sanção64.

Na concepção cientificista de Kelsen, a norma como objeto do estudo dos

juristas sobre textos editados pela vontade soberana é sobretudo uma ordem para a

imposição de uma sanção. A norma para Kelsen era, assim, assunto para especialistas

que a partir delas formulam proposições científicas de dever ser. Também não se

dirige diretamente para os cidadãos, sujeitos (subordinados) na terminologia

kelseniana, mas à autoridade que tem o dever de impor a sanção.

Essa concepção de direito fornecia instrumental para a organização e a

hierarquização de um sistema de normas a ser imposto pelas autoridades, ficando os

cidadãos em segundo plano. Todavia, o problema se potencializa quando se verifica

que a produção de normas pelo Estado segue um padrão de conveniência imediata dos

62 Idem. Ibidem. p. 63. 63 Idem. Ibidem. p. 65. 64 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. João Batista Machado. 3ª ed. Coimbra: Armênio Amado — Editor, sucessor, 1974, p. 172.

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interesses burocráticos. Sobre o tema, García de Enterría65 apresenta uma reflexão

claramente procedente:

Fica assim confessado de forma paladina que a Administração, com sua omnipresente potestade regulamentária e como formuladora de projetos de lei, introduz com normalidade novas normas de cuja necessidade e ainda de cujo alcance real, por referência à regulação existente, não é sequer consciente, e pode concluir-se agora que nem interessa ser. Parece como se a Administração vivesse mais comodamente num mundo de incerteza normativa. O poder normativo atua assim não correspondendo a uma necessidade objetiva e geral cuidadosamente sopesada, mas por impulsos imediatos e apenas meditados, ou seja, para resolver problemas concretos, sentidos normalmente mais que como uma necessidade pública surgida na sociedade abstratamente considerada, pelo impulso imediato e nada meditado, como vemos, dos serviços burocráticos.

O que se tem é o somatório de um sistema sintático que objetiva

operacionalizar o direito, deixando-o aberto a qualquer conteúdo, com um

descompromisso na elaboração de normas (regras) que atendem sobretudo a interesses

imediatos e irrefletidos da Administração. É evidente o distanciamento dessas normas

jurídicas dos indivíduos que são incapazes de conhecê-las diretamente, seja pela sua

inaptidão técnico-científica, seja por serem meros objetos de uma ordem de imposição

de sanções. Com o advento da regulação, o problema se agrava, porque o volume de

produção normativa oferece obstáculo cognitivo até mesmo para os especialistas. Que

dizer, então, do cidadão?

1.4 O dever para além do positivismo e a crise do legalismo e emergência da

regulação

O tema do presente trabalho diz respeito também à tecitura de um

ordenamento jurídico. Conforme a escola, os elementos que o constituem podem ser

leis, normas, regras, princípios etc. Todos eles têm em comum a composição de uma

ordem de sentido conformadora de condutas, ou seja, a ideia de dever. Por isso, para

delinear uma crise do normativismo, do legalismo e a crítica da emergente regulação,

uma linha mestra é a ideia dever.

Nesse sentido, a própria concepção de dignidade da pessoa humana, peça

central do Estado Democrático de Direito, impõe a valorização de uma adesão

65 GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo. Justicia y seguridad jurídica em um mundo de leyes desbocadas. Madri: Civitas, 2000, p. 97.

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voluntária a uma ordem obrigatória de sentidos ínsita ao dever. O dever não se reduz à

integração automática no todo, muito menos a uma completa sujeição ao poder da

autoridade que deve seguir um mandamento de coação (Kelsen). O dever revela-se

como adesão autônoma a uma ordenação. O dever não se pode articular apenas com a

mera coerção e muito menos pela brutalidade da força.

O direito não é idêntico a uma ordem de um poder dado. As relações

humanas não são apenas reguladas pela força, por um poder real e de fato. Existe algo

que obriga, no íntimo de cada indivíduo a uma ação. Se há algo da essência de uma

ordem de sentido conformadora de condutas, é a noção de dever. É a ideia de estar

obrigado. Como exposto por Kant, a ideia de dever é o núcleo da moral e constitui

algo que se pode conceber como intrinsecamente bom66. De igual modo, para esse

filósofo, os deveres jurídicos são em essência deveres morais 67.

Essa retomada de concepções iluministas não pode, todavia, ser ingênua

com a mera reedição de uma teoria do contrato social e seus desdobramentos. A

autonomia, no mundo contemporâneo, tem como cenário a sociedade complexa,

sendo, por isso, sobretudo jurídica, como ressaltou Habermas68.

O dever assume, desse modo, outras feições. Não pode ser apenas uma

adesão autônoma, incondionada e incoercível. Ele é uma internalização, uma aceitação

que claramente ocorre a partir do simbolismo da força domesticada pelo direito. Situa-

se em um dos pólos da tensão entre faticidade e validade do direito, só podendo ser

compreendido nesse equilíbrio dinâmico.

66 Nesse sentido, estão os seguintes trechos da Fundamentação da Metafísica dos Costumes (KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes.São Paulo: Martin Claret, 2002, p. 21): Nem neste mundo nem fora dele, nada é possível pensar que possa ser considerado como bom sem limitação, a não ser uma só coisa; uma boa vontade. Mais à frente (p. 24): mas para desenvolver o conceito de uma vontade digna de ser estimada em si mesma e sem qualquer intenção ulterior, conceito este que já se encontra no bom senso natural e que mais precisa ser esclarecido do que ensinado, que está sempre no cume de toda a apreciação de valor de nossas ações e que constitui a condição de tudo o mais. Encarecemos o conceito de dever, que contém em si o de boa vontade; muito longe de ocultá-lo e torná-lo incognoscível, antes fazem ressaltá-lo e aparecer com mais clareza. (negrito nosso) 67 É o que se percebe do seguinte trecho (Kant, Immanuel. Doutrina do direito. Trad. Edson Bini. São Paulo: Ícone, 1993, p. 31): Na legislação jurídica os deveres não podem ser mais que externos porque essa legislação não exige que a ideia desses deveres, que é interna, seja por si mesmo o princípio determinante do arbítrio do agente; e como, todavia, necessita motivos apropriados a uma lei, tem de buscar externos. A legislação moral, ao contrário, exigindo em deveres atos internos, não exclui os externos, e sim, ao contrário, reivindica tudo o que é dever em geral... 68 HABERMAS, Jürgen. Factidad y validez. Trad. Manuel Jiménez Redondo. Madri: Editorial Trotta, 3ª ed., 2001, p. 192.

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O dever, na sociedade complexa, assume compromissos com o resultado,

com uma ética que se refere a uma história, a um acontecer concreto69. O seu caráter

ideal só tem sentido se referido às exigências pragmáticas. O seu cenário não é a

comunidade ideal, representada no reino dos fins kantiano, mas o próprio mundo da

vida no qual estamos todos inseridos.

Essa nova realidade impõe o exercício da autonomia pública, assim

como confere a autonomia privada em uma sociedade complexa e pós-metafísica. Os

deveres assumem, então, uma feição mais ativa, exigindo que o cidadão decida a

própria democracia. Até mesmo os próprios direitos subjetivos, como liberdades,

passam a pressupor a ideia do dever para o seu próprio titular, como assinala o

espraiamento da concepção de função social. A autonomia é responsabilidade.

Em síntese, o dever na sociedade contemporânea apresenta-se coercível,

referido a resultados e em uma postura ativa. Isso não impede que o seu cerne esteja

numa internalização, numa compreensão, numa aceitação de uma ordem pelo

indivíduo, o que poderá ser melhor a partir da compreensão hermenêutica de Gadamer

e Heidegger.

Na hermenêutica filosófica, a compreensão é a atitude existencial básica.

A compreensão ocorre de maneira circular em que o ser apreendido lingüisticamente

pelo sujeito torna-se parte de sua subjetividade. A compreensão tem uma estrutura

circular em que pessoa e coisa, intérprete e texto, devem encontrar-se.

Esse círculo pressupõe um entendimento com a alteridade, com o

estranho. Compreender significa, de princípio, entender-se com os outros70. O

entendimento e o encontro não são estáticos, mas se desenvolvem em uma estrutura

dinâmica circular, em que os diferentes projetos de sentido devem corrigir-se para se

aproximar da verdade da coisa e do texto em sucessivo reencontro e reafirmação de

acordo. Trata-se, assim, de uma estrutura circular numa construção de sentido positiva,

como observa Heidegger:

Nele [no círculo] se esconde a possibilidade positiva do conhecimento mais originário que, decerto, só pode ser apreendida de modo autêntico se a interpretação tiver compreendido que sua primeira, única e última tarefa é de não

69 É dessa forma que Apel formula sua ética da responsabilidade (APEL, Karl-Otto. Teoria de la Verdad y Ética del Discurso. Trad. Norberto Smilg. Barcelona: Paidós Ibérica, 1998, p. 147). 70 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método.Trad. Flávio Paulo Meuler. Petrópolis: Editora Vozes, 3ª ed., 1999, p. 282.

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se deixar guiar, na posição prévia, visão prévia e concepção prévia, por conceitos ingênuos ‘chutes’. Ela deve, na elaboração da posição prévia, da visão prévia e concepção prévia assegurar o tema científico a partir das coisas mesmas. [...] O círculo da compreensão pertence à estrutura de sentido, cujo fenômeno tem suas raízes na constituição existencial da pre-sença enquanto compreensão que interpreta71.

A ideia de dever pressupõe a apreensão de um texto de lei como

objetividade pelo sujeito, pelo intérprete. Essa estrutura bipolar entre objetividade e

subjetividade mostra a proximidade da ideia de dever com o círculo hermenêutico da

compreensão, revelado em Heidegger e urbanizado em Gadamer. Sem dúvida, o dever

é uma forma de compreensão entendida como o ser existencial do próprio poder-ser

da pre-sença [dasein] de tal maneira que, em si mesmo, esse ser abre e mostra a

quantas anda seu próprio ser72. Compreender não é apenas entender ou saber algum

significado, mas também um saber fazer, um poder ser ou, em uma síntese das duas

acepções, um ser entendido ou um saber como se situar73.

Aquele que compreende um texto, ou mais especificamente uma lei,

norma, regra ou mesmo um princípio, não apenas entende um novo significado como

adquire nova dimensão de projeto e liberdade. Compreender um texto ou alguma coisa

é estar situado diante de suas possibilidades como uma forma de apropriação. A

compreensão permite ao homem projetar-se para um destino, para uma meta.

A compreensão de um texto normativo, embora tenha a mesma estrutura

circular, não é apenas projeto, poder ser e possibilidades para a interpretação de uma

coisa ou um texto como expressões da verdade. O poder ser quando extraído de uma

norma – υόµος – transforma-se em dever ser, em projetos limitados e possibilidades

vinculantes. Heidegger observa que υόµος não é apenas lei, mas mais originariamente

a adjudicação oculta na destinação do ser74. Só esta é capaz de dispor o homem no

seio do ser. Só tal disposição é capaz de sustentar e vincular.

A norma é um texto que pressupõe um acordo vinculativo para sua

compreensão. Entender uma lei é apropriar-se dela como um limite para seu projeto e

71 HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Parte I. Trad. de Márcia Sá Cavalcanti. Petrópolis: Editora Vozes, 2001, p. 210. 72 Idem. Ibidem, p. 200. 73 GADAMER, Hans-Georg. O problema da consciência histórica. Trad. Paulo Cesar Duque Estrada. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, p. 41. 74 HEIDEGGER, Martin. Carta Sobre o Humanismo. Trad. Rubens Eduardo Frias. São Paulo: Moraes, 1991, p. 42.

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sua existência com os outros. A lei revela as barreiras que não podem ser transpostas

no relacionamento com a alteridade. O dever, em uma perspectiva hermenêutica, nada

mais é do que a compreensão vinculante de um mandamento como expressão da

verdade e da justiça.

Assim, a ordem legítima interiorizada pelo indivíduo na sua

personalidade possibilita a integração social75 a partir da ideia de dever como meio

para comunhão e entendimento com a própria sociedade. Embora o dever, na

sociedade contemporânea, apresente-se em clara tensão com a força, é um motivo de

ação que não resulta produzível a partir da mera violência, como acentua Habermas:

Mas como ingredientes de uma ordem jurídica legítima em conjunto se apresentam com uma pretensão de validade normativa que se endereça a um reconhecimento racionalmente motivado e que de algum modo insta ao destinatário que preste obediência ao direito por dever, é dizer, por um motivo que não resulta produzível por força76.

O dever, na sociedade contemporânea, apresenta-se fundamentalmente

como compreensão e adesão voluntária a uma ordem legítima. Essa concepção de

dever pressupõe a lei como algo totalmente diverso da norma kelseniana. A lei não

pode ser reduzida a um mandamento para imposição de sanção pela autoridade nem se

confundir com o objeto do estudo de uma classe especializada. A norma para

possibilitar uma adesão voluntária deve destinar-se à compreensão de todos os seus

destinatários.

Dentro de tal perspectiva hermenêutica, a norma não pode ficar disponível a

qualquer vontade. É que a compreensão pressupõe necessariamente coerência.

Gadamer77 concebe a coerência da seguinte forma:

Dando mais um passo. Acabei de dizer que toda compreensão pode ser caracterizada como um conjunto de relações circulares entre o todo e suas partes. A caracterização pela relação circular deve ser, no entanto, complementada por uma determinação suplementar que eu expressarei de bom grado como a antecipação de uma ‘coerência perfeita’. Essa coerência perfeita pode ser entendida, de início, no sentido de uma antecipação de natureza formal; ela é uma ‘ideia’. No entanto, ela se encontra sempre já operante quando se trata de realizar uma compreensão. Ela significa que nada é de fato compreensível se não se mostrar efetivamente sob a forma de um significado coerente [...]

75 PARSONS, Talcott. O Sistema das Sociedades Modernas. Trad. Dante de Moreira Leite. São Paulo: Pioneira, 1974, p. 17. 76 HABERMAS, Jürgen. Factidad y validez. Trad. Manuel Jiménez Redondo. Madri: Editorial Trotta, 3ª ed., 2001, p. 93. 77 GADAMER, Hans-Georg. O problema da consciência histórica. Trad. Paulo Cesar Duque Estrada. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1998, p. 65.

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A compreensão exige um telos, uma finalidade. O discurso, inclusive

filosófico, mostra-se vazio se falta essa orientação a um fim78. Por isso, compreender é

buscar uma relação interior entre a intenção do texto e a verdade79. No caso do direito

e das normas, a compreensão pressupõe que ambos se dirijam à realização da justiça

para pessoas iguais em dignidade80.

Dessa verificação surge outro ponto a ser ressaltado: a compreensão da lei

orientada pelo telos da justiça. Como expressão da verdade é um diálogo, porque a

verdade é coisa que diz respeito diretamente a um discurso, diretamente a um diálogo,

não a uma proposição isolada. Isso explica a necessidade de uma concepção

procedimental e discursiva e sobre o direito, em que o questionamento seja articulado

estruturalmente.

Outra característica da norma é sua abertura textual. Mesmo a enunciação

com pretensões exaustivas inerentes à tipicidade penal, com a indicação das diversas

características da conduta infracional, objetivando linguisticamente a precisão possível

por meio da gramática, não deixa de ser uma forma jurídica estruturada sobre a

linguagem natural. Suas possibilidades de certeza são as mesmas da linguagem

humana. Por meio da enunciação típica se obtém a segurança possível em mundo

mediado pela linguagem. Efetivamente, embora o seu uso ofereça limites e garantias,

nada assegura de forma absoluta, pois sua interpretação está aberta dentro de um

horizonte de possibilidades e reconstruções.

Não há como superestimar a capacidade de fornecimento de certezas por

intermédio da linguagem como o fez o cientificismo no direito civil – escola das

pandectas – e no direito penal – teoria clássica do delito. Até a linguagem jurídica com

pretensões científicas e técnicas está dentro do horizonte de abertura textual da

78 GADAMER, Hans-Georg. Elogio de la Teoría. Trad. Anna Poca. Barcelona: Península, 2000, p. 65. 79 GADAMER, O problema da consciência histórica. Trad. Paulo Cesar Duque Estrada. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1998, p. 66. 80 O direito como integridade de Dworkin (DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. Trad. Jefefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1999) fornece uma concepção semelhante à do presente trabalho sobre o direito. Na visão de Dworkin, a integridade é uma espécie de coerência (p. 263) em que o direito deve expressar por um sistema único e harmonioso que objetive a atingir a justiça, a equidade e o devido processo legal na proporção adequada (p. 483) numa comunidade em que a isonomia é a virtude soberana. Nas palavras de Dowrkin (p. 483), a justiça diz respeito ao resultado correto do sistema político: a distribuição correta dos bens, oportunidades e outros recursos. A equidade é uma questão da estrutura correta para esse sistema, a estrutura que distribui a influência sobre as decisões políticas de maneira adequada. O devido processo legal adjetivo é questão dos procedimentos corretos para a aplicação de regras e regulamentos que o sistema produziu.

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linguagem natural. O exagero na busca de uma certeza científica distancia a linguagem

das leis da inteligibilidade, assim como a multiplicidade de atos com caráter

normativo, não facilmente hierarquizáveis, fraciona o ordenamento jurídico de tal

modo que é duvidosa a possibilidade de sua reconstrução como um sistema de regras

coerentes.

O problema é que um requisito mínimo de qualquer ordem jurídica

racionalmente constituída está na sua comunicabilidade a seus obrigados81. O direito,

no Estado Democrático de Direito, destina-se a conformar e a orientar condutas, o que

só se faz possível caso os cidadãos possam compreender seus comandos textuais para

então internalizá-los mediante uma adesão voluntária. Aplicar castigos aos cidadãos a

partir de uma ordem jurídica ininteligível, pelo seu tecnicismo, sua multiplicidade e

sua dispersão, revela-se mera agressão e coisificação da pessoa humana.

É preciso ultrapassar o significado formal da lei apenas como enunciação

abstrata dotada de generalidade e imperatividade. A compreensão hermenêutica de lei

e de qualquer outra norma ou regra exige outras características. É necessário ir além da

mera forma. Assim, qualquer norma deve atender a exigências de conteúdo como

coerência, orientação à realização da justiça entre pessoas iguais em dignidade e ainda

preocupar-se com sua intelegibilidade em um discurso dirigido idealmente a todos os

sujeitos jurídicos.

É evidente que as leis e especialmente a regulação na sociedade

contemporânea marcadas por tecnicalização, especialização e pela preocupação de

legitimar o sistema político-burocrático criam sérias dificuldades para atender a tais

requisitos de compreensibilidade em um discurso universalista82. Um desafio que se

coloca para o direito contemporâneo é como tornar o ordenamento jurídico inteligível

81 Gilmar Ferreira MENDES (Questões fundamentais de técnica legislativa. Revista trimestral de direito público, n.º 1993, p. 255) chama a atenção para a importância dessa comunicabilidade: A moderna doutrina constitucional ressalta que a utilização de fórmulas obscuras ou criptográficas, motivadas por razões políticas ou de outra ordem contraria princípios básicos do próprio Estado de Direito, como os da segurança jurídica e os postulados de clareza e precisão da norma jurídica. 82 Aliás, a constituição e a formação social dos discursos, como assinalam os estudos de Foucault, contrasta nitidamente com a idealização de um discurso universalizante voltado para o entendimento (Habermas). Foucault (FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Trad. Laura Fraga de Almeida Sampaio.São Paulo: Loyola, 1996. p. 9) ressalta que a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo numero de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar sua acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade.

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e compreensível para possibilitar encará-lo como uma ordem de sentido conformadora

de condutas e definidora de deveres abertos a uma adesão autônoma.

A tecnicalização do direito e sua utilização instrumental e

descompromissada pela burocracia, sem dúvida construiu barreiras e limites

procedimentais para a institucionalização do discurso jurídico na sociedade complexa.

Foucault, com precisão, assinala que os discursos apresentam-se, na sociedade

contemporânea, com a formalização de procedimentos de interdição e exclusão. A

análise do discurso de Foucault, com a suspensão da sede de “verdade” ou mesmo de

“entendimento”83, permite encarar o discurso juridicamente constituído como uma

rede de exclusões, o que em última instância impede a busca da “verdade” e do

“entendimento”.

Em contraste com tal realidade da sociedade complexa e a apresentação

efetiva do discurso jurídico, a Constituição do Estado Democrático de Direito coloca-

se como um projeto unitário de sociedade e Estado em que se procura preservar a

autonomia e a dignidade dos cidadãos. O papel básico da Constituição é o de

estabelecer as condições necessárias para que os cidadãos possam entender-se sobre

quais são os seus problemas e como devem ser resolvidos84.

O espaço em que os sujeitos jurídicos se encontram institucionalmente para

o entendimento por legado da Modernidade encontra-se tripartido. O Estado ainda está

especializado funcionalmente em Executivo, Legislativo e Judiciário. Esses três

poderes constituem discursos com limites e dinâmicas próprias e, sem dúvida alguma,

os princípios têm um papel central na articulação e estruturação de tais discursos. A lei

e os atos normativos vazados como regra não podem ser o principal e exclusivo

veículo de comunicação entre os poderes do Estado e com a cidadania.

Como já ressaltado pelas teorias pós-positivistas, a Constituição é sobretudo

um arcabouço principiológico, de modo que o sentido completo das regras só se revela

quando referidas a princípios. Daí que a regulação como fenômeno inerente à

83 Foucault (Op. cit., p. 20) explica, no seguinte trecho, a nuvem de fumaça que o discurso que busca a verdade cria sobre si mesmo embaçando a própria verdade por ele buscada: O discurso verdadeiro, que a necessidade de sua forma liberta do desejo e livre do poder, não pode reconhecer a vontade de verdade que o atravessa; e a vontade de verdade que se impõe a nós há bastante tempo é tal que a verdade que ela quer não pode deixar de mascará-la. 84 HABERMAS, Jürgen. Teoría de la Acción Comunicativa II. Madri: Taurus, 2ª ed., 2001, p. 530.

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sociedade complexa tenha que ser confrontada com os princípios, que têm potencial de

tradução para transformar o hermetismo tecnicista da regulação em uma ordem de

sentido para o cidadão inserido no mundo da vida, como esfera de vivência

indiferenciada, permitindo uma adesão autônoma aos deveres insertos na plêiade

normativa da sociedade complexa. É na fluidez dos discursos sobre princípios que se

concertam os direitos dos indivíduos e deveres das autoridades no Estado Democrático

de Direito.

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1.5 O direito como mediador/tradutor entre o mundo da vida e os sistemas do

poder administrativo-burocrático85 e da economia

Como afirmado, o eixo teórico central da presente tese é a hermenêutica

filosófica. Embora não se excluam outros aportes, um ponto de apoio central será, por

sua amplitude, a obra de Habermas. O direito e sua formulação teórica na sociedade

contemporânea podem ser compreendidos a partir de duas obras de Habermas: “Teoria

da Ação Comunicativa”86 e “Faticidade e Validade”87.

A partir de tal concepção, as sociedades modernas não se integram apenas

por meio de valores, normas e processos de entendimento, mas também

sistemicamente, como ocorre com o mercado e o poder administrativo-burocrático

numa coordenação objetivante e instrumental intimamente relacionada com o saber da

ciência e da técnica. Acontece que ambos têm sua forma institucional conferida pelo

direito que os integra ao mundo da vida e ao resto da sociedade. Então, para

Habermas, o direito moderno:

está associado com os três recursos de integração social. Por meio de uma prática de autodeterminação, que exige dos cidadãos o exercício comum de liberdades comunicativas, o direito nutre em última instância sua capacidade de integração social das fontes de solidariedade social. As instituições de direito público e privado possibilitam, por outro lado, o estabelecimento de mercados e a organização do poder estatal, pois as operações do sistema econômico e do sistema administrativo, diferenciadas dos componentes sociais do mundo da vida, efetuam-se nas formas que lhes empresta o direito88.

O direito permite mediação entre os dois principais sistemas sociais

estruturados tecnologicamente – o poder administrativo-burocrático e a economia – e

entre indivíduos autônomos inseridos na esfera indiferenciada do mundo da vida.

Nesse ponto, as sociedades capitalistas desenvolvidas ou em franco

desenvolvimento apresentam uma tendência à coisificação dos indivíduos. A economia

85 Embora Habermas utilize a expressão poder administrativo (Factidad y Validez. Trad. Manuel Jiménez Redondo. Madri: Editorial Trotta, 3ª ed., 2001), optou-se pela expressão poder administrativo-burocrático, por expressar melhor as tensões funcionais e operativas existentes nesse sistema. 86 HABERMAS, Jürgen .Teoría de la acción comunicativa, II – crítica de la razón funcionalista. Trad. Manuel Jiménez Redondo. Madri; Taurus, 2001. 87 HABERMAS, Jürgen. Factidad y Validez. Trad. Manuel Jiménez Redondo. Madri: Editorial Trotta, 3ª ed., 2001. 88 Idem. Ibidem, p. 102.

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e o Estado adentram com o dinheiro e a burocracia criando patologias no mundo da

vida. Essa colonização do mundo da vida ocorre a partir de quatro pressupostos:

- quando as formas tradicionais de vida estão já tão desarticuladas que pode produzir-se uma profunda diferenciação dos componentes estruturais do mundo da vida (cultura, sociedade e personalidade); - quando as relações de intercâmbio entre subsistemas e mundo da vida acabam reguladas por meio de papéis diferenciados (relativos ao trabalho em postos laborativos organizados, à demanda das economias domésticas, às relações de clientela com as burocracias públicas e à participação formal nos processos de legitimação); - quando as abstrações reais mediante as quais a força de trabalho dos empregados se torna disponível e o voto dos eleitores mobilizados são aceitos pelos afetados em troca de compensações conforme os sistemas; - sendo financiadas tais compensações, em conformidade com as pautas próprias do Estado Social, e canalizadas por meio daqueles papéis em que primariamente ficam depositadas as esperanças privadas de autorrealização e autodeterminação retiradas do mundo do trabalho e dos espaços público-políticos, ou seja, pelos papéis de consumidor e cliente 89.

Nessa ordem de ideias, o Estado Social, quando bem sucedido com a

implantação das condições listadas, reforça a integração sistêmica, especialmente com

base no dinheiro e na burocracia, comunicando-se com os indivíduos em papéis

reduzidos de consumidores e clientes. O direito, no entanto, esteia-se na produção de

normas jurídicas vazadas em linguagem e no papel universalizante de cidadão.

Decorre que os sistemas existentes na sociedade, com códigos próprios

como o caso da economia, sejam mediados pelo direito com o mundo da vida, atuando

o primeiro como transformador e garantindo uma comunicação social global e

sociointegradora, uma vez que só na linguagem do direito podem circular no âmbito

de toda a sociedade mensagens de conteúdo normativo90.

Isso pode ser melhor compreendido quando se tem em mente que o direito

funciona como um meio conectado com o dinheiro e o poder, abrangendo áreas de

ação organizadas em termos de Direito Liberal91. As instituições jurídicas estão

inseridas num contexto social mais amplo, mantendo continuidade com normas éticas

e com sua estruturação coercitiva, podendo veicular mensagens captáveis pelos meios

sistêmicos referidos, isto é, pelo dinheiro e pelo poder.

89 HABERMAS, Jürgen. Teoría de la acción comunicativa, II – crítica de la razón funcionalista. Trad. Manuel Jiménez Redondo. Madri; Taurus, 2001, p. 503. 90HABERMAS, Jürgen. Factidad y Validez. Trad. Manuel Jiménez Redondo. Madri: Editorial Trotta, 3ª ed., 2001, p. 120. 91 HABERMAS, Jürgen. Teoría de la acción comunicativa, II – crítica de la razón funcionalista. Trad. Manuel Jiménez Redondo. Madri; Taurus, 2001, p. 517.

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Para Habermas, somente o conceito moderno de direito, na forma de leis

abstratas e gerais que concedem a todos os mesmos direitos, mostra-se adequado para

a integração social de sociedades nas quais o sistema econômico ocupa uma posição

proeminente e em que os indivíduos agem guiados pelos próprios interesses.

A pluralidade de perspectivas que o direito da sociedade contemporânea

enfrenta, todavia, carrega o risco de que ele abarque interesses não filtrados do

mercado e do poder administrativo-burocrático que acabem recebendo a força

legitimadora do direito, a fim de dissimular ou encobrir que a capacidade de se

imporem é puramente fática, sem qualquer legitimidade. O direito empresta ao poder

ilegítimo uma aparência de legitimidade92.

Outro problema que os sistemas põem para o direito e para os indivíduos é

de inseri-los sempre em seus próprios interesses instrumentalizantes e tecnicizantes. O

cidadão, para o poder administrativo-burocrático e para a economia, torna-se apenas

um cliente ou um consumidor, deslocado dentro da lógica sistêmica a um papel

periférico de simples componentes da organização. Os sistemas, que são a economia e

a Administração, têm a tendência de cerrar-se em seus próprios entornos e só

obedecer aos seus próprios imperativos emergentes do dinheiro e do poder

administrativo93.

Para diminuir tal risco, as operações de integração sistêmica do mercado e

do poder administrativo-burocrático devem estar conectadas ao processo de integração

social que representa a praxe de autodeterminação dos cidadãos, nos termos da

compreensão que a comunidade jurídica tem de si mesmo em seu direito

constitucional.

As autonomias pública e privada assumem, desse modo, papel central

dentro do direito e da definição de cidadania. A primeira consiste basicamente em

direitos políticos para garantir a participação em todos os processos de deliberação e

decisão relevantes para a produção de normas94. A segunda é a concessão de

liberdades para se realizar um projeto individual. Em estrutura, ambas se assemelham,

92 HABERMAS, Jürgen. Factidad y Validez. Trad. Manuel Jiménez Redondo. Madri: Editorial Trotta, 3ª ed., 2001, p. 103. 93 Idem. Ibidem. p. 144. 94 Idem. Ibidem. p. 193.

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pois os direitos relativos ao exercício da autonomia política possuem a mesma

estrutura dos direitos que concedem aos indivíduos a liberdade de arbítrio. Os direitos

políticos são também liberdades subjetivas de ação. Em suma, no direito

contemporâneo e nas sociedades democráticas, ambas são cooriginárias e devem ser

compreendidas como equivalentes e reciprocamente pressupostas.

Em razão de os cidadãos afirmarem-se como sujeitos jurídicos, já não está

em suas mãos dispor acerca de que linguagem querem servir-se. Antes o código que

representa o direito vem dado aos sujeitos como a única linguagem que pode

expressar sua autonomia. A ideia de autolegislação deve-se fazer no próprio direito95.

O campo do exercício da autonomia é o do direito.

O direito moderno entendido positivamente apresenta-se como uma

pretensão de organização sistemática, bem como de interpretação vinculante e de

imposição coercitiva por órgãos competentes96. Esse direito não se mostra apenas

como uma forma de saber cultural, mas constitui um sistema de ação que estabelece e

operacionaliza instituições sociais.

O direito apresenta-se simultaneamente como um sistema de saber e de

ação. Pode ser entendido como um extenso texto de proposições e interpretações

normativas ou, como instituição, como um complexo de regras da própria ação na

sociedade. E, como no direito como sistema de ação se entrelaçam entre si motivos e

orientações valorativas, as proposições jurídicas têm uma eficácia prática, da qual

carecem os juízos morais97. O direito também é dotado de alta racionalidade por se

constituir em um saber teórico e dogmaticamente elaborado, elevado em nível

científico e entrelaçado como uma moral regida por princípios.

Muito embora o direito organize-se como um sistema de ação e

conhecimento, sua linguagem aproxima-se da natural, principalmente pelo seu

entrelaçamento com a moral. Foi uma herança do primeiro iluminismo o fato de as leis

se dirigirem a toda a comunidade de cidadãos, devendo ser-lhes compreensível e

95 Idem. Ibidem. p. 192. 96 Idem. Ibidem. p. 145. 97 Idem. Ibidem. p. 145.

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inteligível. Por isso, as instituições, as tradições e os sujeitos jurídicos são

componentes do mundo da vida. Nas palavras de Habermas98:

O sistema de ação ‘direito’, assim podemos chamá-lo, pertence como uma ordem legítima que se tornou reflexiva, a um componente do mundo da vida [sociedade]. E assim como esta, também com a cultura e com as estruturas da personalidade, só se reproduz por meio da corrente da ação comunicativa, assim também as ações jurídicas constituem o meio no qual se reproduzem as instituições jurídicas simultaneamente com as tradições jurídicas intersubjetivamente compartilhadas e as capacidades de interpretação e observância das regras jurídicas.

O direito desdobra-se em três componentes dentro do mundo da vida99: 1)

regras que constituem uma ordem jurídica de nível superior, correspondente à

sociedade; 2) simbolismo jurídico, representado em instituições, correspondente à

cultura; 3) capacidades e competências subjetivas adquiridas no processo de

socialização dentro do próprio direito, correspondentes à personalidade.

Esses três componentes articulam-se na produção e na reprodução do

direito, de modo que lhe pertencem todas as manifestações reflexivas orientadas a ele

próprio. O direito, entretanto, não mantém apenas conexão com o mundo da vida e

com a linguagem natural, mas também dá às mensagens procedentes do mundo da

vida uma forma que resulta inteligível para os códigos específicos com que opera uma

Administração regulada pelo poder e uma economia regida, controlada e governada

pelo dinheiro. Por essa linguagem do direito pode-se mediar a relação entre os

sistemas e o mundo da vida, que abrange a sociedade global na qual estão inseridos os

indivíduos e sua cultura.

O direito legatário da modernidade atua, portanto, como um transformador

entre o mundo da vida, como esfera indiferenciada da sociedade em que a

comunicação se dá pela linguagem natural, e os sistemas, com partes diferenciadas da

sociedade que operam a partir dos meios dinheiro e poder administrativo-burocrático,

com apoio nas linguagens artificiais construídas pelas ciências e instrumentalizadas

pela técnica. Dessa forma, o direito deve produzir comunicações que sejam relevantes

para os sistemas e para os indivíduos.

98 Idem. Ibidem. p. 146. 99 Os componentes do mundo da vida são, para HABERMAS (Pensamento Pós-metafísico – Estudos Filosóficos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002, pp. 95 e seg.), cultura, sociedade e personalidade, que se pressupõem reciprocamente.

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Por isso, o saber teórico no direito precisa de uma teoria desenvolvida sob a

linguagem natural, o que se dá por meio da prudência e da filosofia, como também de

um saber que se constitua em sistemas artificiais de conhecimento, o que só é possível

por meio da ciência e da técnica que a operacionaliza.

A feição bifronte é uma característica do direito da sociedade

contemporânea. Para mediar a comunicação entre o mundo da vida, em que estão os

indivíduos autônomos, e os sistemas, o direito opera tanto com a linguagem natural

como com uma linguagem técnico-científica típica da dogmática jurídica. São os

princípios jurídicos que inserem o direito na linguagem natural, marcada por

vaguidade e equivocidade. Em contraste, para operar como um sistema de regras e

conceitos, o direito assume uma linguagem específica: a da dogmática jurídica que tem

alto poder operativo e conformador de outras áreas do saber técnico-científico.

Então, o direito ganha sentido na esfera das vivências indiferenciadas do

mundo da vida por meio dos princípios. O sistema de regras e conceitos no direito

pode ser traduzido num conjunto de princípios. O direito é capaz de verter a razão

calculadora vinculada a conceitos precisos e determinados numa razão reflexiva

efetuada por meio de juízos. A possibilidade de transformar o saber da ciência e da

técnica do direito num conhecimento prudencial e filosófico contido nos princípios

fundamenta e legitima o direito. Essa é a síntese da crítica principiológica do direito

que lhe dá um lugar e um valor no mundo das vivências dos indivíduos. Por outro

lado, é o sistema lógico-operativo de regras dotadas de sanção que possibilita ao

direito acoplar-se com a economia e o poder político-administrativo, produzindo

comunicações por eles inteligíveis e assimiláveis. Daí que seja evidente a possibilidade

de o direito traduzir expectativas do mundo da vida para esferas sociais

sistemicamente constituídas.

1.6 O saber e a teoria no direito: para além da técnica e da ciência

É evidente, pelos pressupostos teóricos até aqui estabelecidos, que a

concepção de direito adotada para o desenvolvimento do tema está para além da

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técnica e da ciência. É que no direito circulam saberes vazados tanto em linguagem

especializada como em linguagem natural. Não há como esquecer, o ponto fulcral

fomentador da problemática do presente trabalho deita raízes na degradação dos

saberes tecnológico e científico num saber-fazer do cálculo e da previsão

desvinculados de sentido para o homem numa esfera de vivências indiferenciadas.

Também é uma preocupação no desenvolvimento do tema a ideia de dever

que remete à conformação a uma ordem normativa de sentidos que precisa ser

intelectível e compreensível para o papel social indiferenciado de cidadão. Igualmente,

o direito, no seu relacionamento com outros sistemas sociais, como o poder

administrativo-burocrático e a economia, deve estar aberto a conteúdos éticos e morais

para resgatar os indivíduos da coisificação pelos meios do dinheiro e do poder.

Seguindo essa linha, o saber jurídico não pode transitar apenas nos estreitos

moldes da técnica, da dogmática e da ciência. Outras virtudes intelectuais devem ser

colocadas em jogo para tecer o conhecimento jurídico.

Para Aristóteles100, as virtudes intelectuais eram: arte – tekne, ciência –

episteme, a prudência – phronesis, a filosofia – sophia e a inteligência – logos. A arte

(tekne) tratava de um saber-fazer estruturado teoricamente que visava a uma atividade.

A ciência dizia respeito ao saber demonstrável sobre o permanente. A prudência

cuidaria de um saber-agir do homem em sociedade, que compreende e aplica suas

regras buscando manter o equilíbrio da sociedade. A inteligência – logos – trata do

permanente não demonstrável. Por último, a filosofia seria uma forma de acesso ao

logos em que se utilizariam os conhecimentos teóricos da ciência.

A concepção contemporânea de ciência remonta ao surgimento da

modernidade, em que o conhecimento, inclusive no direito, desligou-se da reta ratio

medieval101 e passou a fundar-se numa razão individual moderna. Foi essa a origem do

pensamento cartesiano em que se privilegiava a intuição individual com base em

verificações claras e evidentes, valendo-se, ainda, da analítica, de dedução, da indução

100 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. Trad. Mario da Gama Kury. 4ª ed. Brasília: Universidade de Brasília, 2001; 1139b 101 Razão prudencial medieval em que o conhecimento estava fundado na tradição, especialmente em fontes de autoridades gregas e romanas.

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e da síntese102, com clara inspiração na matemática e na geometria. Se, na

Antiguidade, a matemática era um modelo de ciência, na Modernidade passou a ser o

modelo.

Paolo Rossi, em obra que faz uma perspicaz análise do surgimento da

concepção moderna de ciência, dá a seguinte definição:

a ciência aparece para nós como um terreno dentro do qual a verdade sempre se configura como algo que é submetido à prova da experiência, ao confronto com o mundo real, à discussão e à competição contínua com teorias alternativas. A transmissão, a ilustração, a exibição de provas (ou supostas provas) de cada afirmação são elementos constitutivos daquele saber que chamamos de científico. Este, por definição, é uma forma de conhecimento não privado que toma corpo em comunidades mais ou menos amplas,... A ciência apresenta-se, na sua essência, como pensamento que tende à sistematização, à colocação de afirmações particulares em contextos teóricos muito amplos. Mas da nossa imagem de ciência também faz parte integrante a ideia de especialização: vale dizer, a ideia de que a própria existência dos objetos de uma ciência específica pressupõe definições e teorias103.

Essa definição permite o destaque das características da ciência: a

demonstrabilidade, a comunicabilidade, a transmissibilidade, a refutabilidade, a

publicidade, a abstração, a sistematização e a especialização.

A filosofia, embora também se preocupe com a sua coerência e com a

verdade, não é exatamente ciência. Como Aristóteles já ressaltava, a filosofia

aproxima-se do indemonstrável, podendo utilizar o instrumental teórico da ciência

para compreendê-lo, mas jamais o transformando em demonstrável. Outro ponto que

distancia a filosofia da ciência legada pela modernidade é a ênfase objetivante desta. O

discurso universal da filosofia transcende a qualquer objeto. Uma de suas principais

preocupações é com a unidade do saber, no que se opõe fundamentalmente à

especialização das ciências. Não há como confundir filosofia com ciência, nem mesmo

como reduzi-la à teoria das ciências ou à epistemologia, como fizeram os

neopositivistas.

Para se afirmar como um saber válido, o direito, após o século XIX,

assumiu as vestes de ciência. O universo jurídico foi em tal período fortemente

influenciado por pautas e modelos oriundos das pesquisas das ciências naturais.104 A

concepção dos estudos sobre direito como ciência embaçou durante o século XX

102 São esses os elementos fundamentais do pensamento cartesiano – DESCARTES. Discurso do Método — Regras para a Direção de Espírito. Trad. Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2002, p. 31. 103 ROSSI, Paolo. A ciência e a filosofia dos modernos. São Paulo: Editora Unesp, 1992, p.53. 104 VILLEY, Michel. Leçons d’histoire de La philosophie du droit. Paris; Dalloz, 2002, p. 69.

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outras formas de concebê-lo como virtude intelectual, especialmente como prudência e

filosofia105.

A ciência e seus desdobramentos tecnológicos espraiaram-se como meio

para o domínio do mundo. Afloraram os modelos positivistas e neopositivistas para

servir a qualquer vontade, seja de domínio tecnológico ou político do mundo. Com

propriedade, Gadamer expõe as consequências do surgimento de comunidades de

saber especializado voltadas apenas para o domínio da experiência e do verificável,

segundo critérios metodológicos de objetividade:

Depois que a base religiosa e moral do pensamento kantiano da liberdade desaparece cada vez mais da consciência de nosso tempo presente, funda-se a autoconsciência do homem em uma exclusividade cada vez mais forte de seu fazer e de seu poder.106 A fé científica da idade técnica mudou todas as relações naturais a partir da base. A ciência domina por meio da sociedade de especialistas. É o que está por trás da economia mundial, por trás da electronic war, e também em cada queda no niilismo, cuja emergência Nietzsche profetizou de forma clarividente e que nas formas secularizadas de Cristianismo está já acabado. A fé científica dessa terceira ilustração está acompanhada, sem embargo, por uma amarga dúvida no futuro da humanidade [...]107

Ora, diante das aporias do positivismo e do neopositivismo na teoria do

direito, a opção clara que se impõe é retomar o caminho de uma teoria com

consciência histórica e social. É resgatar a preocupação moderna de fazer uma teoria

do direito como forma de assegurar a liberdade, a igualdade, a dignidade da pessoa

humana e princípios instrumentais como o devido processo legal. A unidade e a

coerência que se busca por meio de uma teoria no direito só tem sentido para a

concretização social dos ideais contidos em tais princípios. Preocupações semelhantes

a essa são as de Dworkin na formulação do direito como integridade e na formulação

de uma teoria de direitos públicos subjetivos a partir da igualdade:

O direito como integridade, portanto, não apenas permite, como também promove formas de conflito ou tensão substantivos dentro da melhor interpretação geral do direito. Agora estamos em posição de explicar o porquê. Aceitamos a integridade como ideal político distinto e aceitamos o princípio da integridade na prestação jurisdicional como soberano em todo o direito. Pois queremos tratar a nós mesmos como associação de princípios, como uma comunidade governada por visão

105 Para ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. Trad. Mario da Gama Kury. 4ª ed. Brasília: Universidade de Brasília, 2001. p. 115; 1139b, as virtudes intelectuais seriam as seguintes: arte – tekne, ciência – episteme, a prudência – phronesis, a filosofia – sophia e a inteligência – logos. Para os romanos, o direito estava vinculado principalmente à arte e à prudência, mas não ao saber teórico, matemático ou dos princípios imutáveis que caracterizavam as outras virtudes. 106 GADAMER. Elogio de la Teoría. Trad. Anna Poca. Barcelona: Península, 2000, p. 85. 107 Idem. Ibidem. p. 81.

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simples e coerente de justiça, equidade e devido processo legal adjetivo na proporção adequada108. Proponho também que os direitos individuais a diferentes liberdades só devem ser reconhecidos quando se pode demonstrar que o direito fundamental a ser tratado como igual o exige. Se isso é correto, então o direito a diferentes liberdades não entra em conflito com nenhum suposto direito concorrente à igualdade, mas, pelo contrário, se segue uma concepção de igualdade reconhecidamente mais fundamental 109.

Na visão de Dworkin, entender o direito a partir de uma teoria significa

conferir-lhe coerência e integridade como garantia do ideal de igualdade e de outros

princípios que lhe conferem densificação. Claramente, para superar os problemas

postos pelo positivismo, Dworkin também retomou alguns dos sentidos dados ao

direito pelo jusnaturalismo, em que o conhecimento jurídico e a organização social

foram derivados de um sistema de direitos.

Na medida em que a dignidade da pessoa humana, a liberdade e a igualdade

são extremamente abstratas, é impossível compreendê-las sem o instrumental de

coerência e unidade conferidos por uma teoria. Por isso, abdicar do pensamento

teórico em uma aproximação sistemática conscientemente aberta significa abandonar

esses princípios. De tal modo, a teoria justifica-se no direito como meio de unidade,

coerência e sistematicidade para garantia de ideais abstratos como liberdade, igualdade

e dignidade da pessoa humana.

Entretanto, a consistência teórica do direito não pode ser o resultado de uma

conformação exclusivamente científica ou técnica110. A teoria jurídica deve também

ser concebida como prudência e filosofia, eis que tais ideais abstratos só têm sentido

como uma conquista de autonomia de cada indivíduo.

A visão objetivante da ciência e da técnica moderna não é capaz

isoladamente de possibilitar a realização de tais princípios que dizem respeito à

construção de um âmbito de afirmação do indivíduo como sujeito autônomo. A visão

reflexiva, crítica e universalizante da filosofia é, sem dúvida alguma, etapa

fundamental para tal desiderato. De igual modo, a prudência, como razão prática, que

permite ao ser humano estabelecer um padrão do bom e correto, é uma face

108 DWORKIN. O Império do Direito. Trad. Jefefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 483. 109 DWORKIN. Los Derechos en Serio. Trad. Marta Gustavino. Madri: Ariel, 1999, p. 390. 110 A estreiteza dos parâmetros das ciências legatárias da modernidade para o direito podem ser apreendidas com a leitura da obra do Prof. Tércio Sampaio (FERRAZ JR., Tércio Sampaio. A ciência do direito. São Paulo: Editora Atlas, 1977, pp. 12-16).

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fundamental do direito, eis que a isonomia, a liberdade e a afirmação da dignidade

dizem respeito ao desenvolvimento concreto da vida do cidadão.

A regulação vincula-se a uma visão técnico-objetivante do direito em que

este se apresenta como um instrumento para conformação setorial econômica e política

da sociedade com vistas à obtenção de utilidades sociais a partir de uma normatização

especial. É por isso que é necessário enxergar o direito além de suas vestes técnico-

científicas, para que ele possa exercer sua função de mediar discursivamente as

relações entre o mundo da vida e a economia e o poder administrativo-burocrático. Só

assim, por meio de um discurso que congregue reflexivamente comunidades de

especialistas e cidadãos de vivências indiferenciadas num processo político

juridicamente estruturado, em que os princípios sejam os canais de acesso que podem

dar sentido à técnica/ciência contida na regulação, é possível realizar os princípios do

Estado Democrático de Direito.

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2.º Capítulo – A crítica da regulação

2.1 A irrupção da regulação

É interessante situar a irrupção da regulação no Brasil. Obviamente, não se

tem a pretensão de estabelecer um momento canônico de seu surgimento, mas apenas

de possibilitar uma contextualização. A regulação é um conceito existente há bastante

tempo, mas não era objeto de apropriação por parte da doutrina brasileira de direito

administrativo111.

Nos Estados Unidos, a palavra regulação e seus cognatos (regulate,

regulatory, regulation) estão relacionados à gênese do Estado, aludindo à generalidade

de poderes que ele tem em relação aos indivíduos. Dentro da experiência norte-

americana, com marcas mais profundas do liberalismo do que a brasileira, a regulação

significa uma maior intervenção do Estado nas atividades privadas112.

O espraiamento da regulação no Brasil foi marcado por peculiaridades. Na

doutrina brasileira, já na década de 1960, Themístocles Cavalcanti concluía pela

caracterização da regulação como a retirada do Estado da interferência operacional na

economia, remetendo à legislação a definição de standards a serem regulamentados

por órgão técnico especializado113. Todavia, a regulação adquiriu, com as privatizações

da década de 1990, maior espaço na reflexão jurídica brasileira, marcadas pela saída

parcial do Estado, que deixou de ser um ator direto na economia com monopólios e

empresas estatais.

Na Europa, a política de Margaret Thatcher de interferência do Estado na

criação da empresa Mercury para competir com a British Telecom na década de 1980,

e no setor de energia elétrica, com o desmembramento vertical entre geração,

111 ALMEIDA, Fernando Dias Menezes. Teoria da regulação. In: CARDOZO, José Eduardo Martins et alii. Curso de direito administrativo econômico. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 120. 112 Idem. Ibidem, p. 126. 113 CAVALCANTI, Themistocles Brandão. Tratado de direito administrativo. Vol. II, 5ªed. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1964, p. 496-499.

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transmissão e distribuição de energia, impulsionou o tema. O Banco Mundial enfatizou

a privatização dos setores antes considerados monopólios naturais estatais como meta,

sob o fundamento de que a dissociação das diversas etapas da infraestrutura associada

à competição gerava um ambiente de maior inovação. A condição para isso estava no

controle de tais setores pela atividade regulatória do Estado. Nesse sentido, a regulação

restringia-se à função do Estado de facilitar o funcionamento das forças do mercado

livre114 em áreas como saúde, assistência social e várias outras atividades

governamentais115.

Essa implantação das políticas da era Thatcher, no entanto, foi objeto de

análises críticas a essa abordagem restritiva do papel estatal. Sob tal perspectiva, além

de coordenar a atuação privada nos setores regulados, cabia ao Estado induzir a

satisfação de outras exigências sociais e ambientais que não poderiam ser atingidas

pela dinâmica do mercado116. Foi por essa ótica que o fenômeno regulatório se deu nos

Estados Unidos.

Parece haver uma indicação de sentidos contrários nos movimentos

ocorridos nos Estados Unidos e, de outro lado no Brasil e na Europa. Na primeira

experiência, a regulação significa um avanço do Estado, e na segunda, uma suposta

retirada. Em verdade, a diferença é fruto de uma análise superficial. É ingenuidade

considerar que a mudança da forma de atuação117 e interferência na economia, com a

passagem da atuação direta para a ênfase regulatória, signifique uma diminuição do

Estado. É marcante que os Estados Unidos tenham passado no final da década de 1970

por um processo de desregulação como forma de diminuir a presença do Estado nas

atividades econômicas por uma generalizada desilusão com a eficácia da intervenção

estatal118.

114 LAWSON, N. Energy Policy. In: HELM, D; KAY, J; THOMPSON, D. The Market for Energy. Oxford: Clarendon Press, 2002, p. 23-29 115 PROSSER, Tony. The limits of competition Law. Oxford/Nova Iorque: Oxford University Press, 2005, p. 44. 116 ROBERTS, Jane; ELLIOTT, David; HOUGHTON, Trevor. Privatising Electricity: The Politics of Power. London: Belhaven Press, 1991 117 Aqui a palavra atuação está utilizada como ação do no campo da atividade econômica em sentido amplo, ou seja, serviços públicos somados à atividade econômica em sentido estrito (GRAU, Eros. A ordem econômica na Constituição de 1988. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994, p. 137). 118 PELTZMAN, S. A teoria econômica da regulação depois de uma década de desregulação. In: MATTOS, Paulo et alii. Regulação econômica e democracia. São Paulo: Editora 34, 2004, p. 82.

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Se analisado com acuro o fenômeno, tem-se uma mudança de paradigma.

No modelo da interferência direta, o Estado, fundamentalmente uma organização

política, torna-se um ator econômico, sofrendo todos os influxos e limitações inerentes

à sua natureza. Na regulação se forma um aparato burocrático não para atuar ou

competir, mas para supervisionar, direcionar e coordenar as forças de um mercado

substancialmente privado. Nas duas hipóteses, há uma forte presença do Estado, seja

empresarialmente ou burocraticamente, mas, na hipótese da regulação, tem-se uma

potencialização do impacto das políticas governamentais pelo seu somatório com as

forças de mercado. Em suma, a ênfase regulatória é o reconhecimento de que o Estado

não pode substituir nem organizar de forma absoluta os mercados, cabendo-lhe

respeitar a dinâmica própria do sistema econômico para daí gerar, com mais eficiência,

bens e serviços de interesse público119.

2.2 Noções sobre a regulação

O termo regulação tem uma multiplicidade de sentidos. Isso não afasta um

eixo de percepção que é um constante e focalizado controle exercido por um

órgão/agência público(a) sobre atividades relevantes para a sociedade120,

acumulando para isso funções normativas, administrativas e judicantes. Outra

característica da regulação é tratar fundamentalmente de uma realidade que tem raízes

nos sistemas econômicos e político-burocráticos, sendo operacionalizada por formas

119 LUHMANN, Niklas. Law as social system. Oxford/Nova Iorque: Oxford University Press, 2009, p. 480: Politicamente, a economia não pode se submeter a nenhum controle Em nota de n.º 38: Isso não se demonstra apenas com o fracasso da realização política de uma “economia socialista”, mas também o fracasso do isolamento econômico nacional por razões de autopreferência política (por exemplo Brasil e México) com a perda de crédito por parte de quase todos os Estados do sistema financeiro internacional (com conseqüências consideráveis para esse sistema); ou, também, a grotesca subestimação das consequências econômicas da politicamente desejável reunificação alemã. A política pode gerar decisões por motivos politicamente relevantes, mas as suas consequências são decididas na economia. 120 OGUS, Antony I.. Regulation: legal form and economic theory. Oxford/Portland: Hart Publishing, 2004, p. 1.

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jurídicas e técnico-científicas. A regulação abrange, ainda, três aspectos básicos: a)

fixação de padrões; b) coleta de informações; c) transformação comportamental121.

Nos países industrializados há uma tensão entre dois sistemas de

organização econômica. No sistema de mercado, indivíduos e grupos desfrutam de

liberdade para atingir seus objetivos, estando submetidos a regras do direito privado.

No sistema coletivista, o Estado direciona comportamentos que não ocorreriam sem

sua intervenção122. Nesse último, procura-se corrigir deficiências do mercado em vista

do interesse público. Regulação significa, assim, implementação pelo direito de um

sistema com enfoque coletivista. Esse posicionamento da regulação permite identificá-

la com finalidades públicas que não poderiam ser atingidas em mercados não

regulados123.

A regulação pode, nesse sentido, ser abordada como um fenômeno

normativo amplo que abrange uma delimitação legal do setor regulado, sua

regulamentação por Decreto do Presidente da República e a edição de normas

regulamentadoras por entes públicos com vistas a implementar diretrizes políticas de

índole coletivistas com vistas à configuração de um serviço ou a obtenção de uma

utilidade. A noção de regulação é, portanto, englobante e dinâmica, com demarcação

de competência pelo legislador para edição de novas regras sobre o setor regulado.124

Nela encontra-se essa tensão entre a autonomia dos agentes no mercado e

diretrizes coletivistas/públicas de ordenação da economia. Por isso, a regulação da

atividade diretiva exercida por uma autoridade superior configura um serviço público

ou uma atividade de interesse público exercida por particulares em regime de

121 Essa ideia está desdobrada no seguinte trecho (HOOD. C. et alli. The Government of Risk. Oxford: Oxford University Press, 2001, p. 23): [...] qualquer sistema de controle na arte ou na natureza precisa, por definição, conter pelo menos três componentes [...]. É preciso que haja alguma capacidade de fixação de padrões, para possibilitar a distinção entre um estado mais perfeito e um estado menos perfeito do sistema. É preciso também que haja alguma capacidade de coleta de informações ou monitoramento, para que se produza conhecimento sobre os estados atual e cambiante do sistema. Acima disso tudo deve haver alguma capacidade de transformação comportamental para mudar o estado do sistema. 122 OGUS (Op. cit., p. 1) 123 É o que defende SUSTEIN no seguinte trecho (SUSTEIN , Cass R. After the rights revolutions – reconceiving the Regulatory State. Cambridge: Harvard University Press,1993, p. 228): Nós vimos que a regulação econômica e social foi desenhada para promover eficiência econômica, para redistribuir recurso de acordo com o espírito público, para reduzir ou eliminar subordinação social, para refletir aspirações coletivas, para proteger futuras gerações de perdas irreversíveis e para alterar preferências que são produzidas por vários defeitos motivacionais ou cognitivos. 124 LINOTTE, Didier & ROMI, Raphaël. Droit public économique. Paris: Litec, 2006, p. 133.

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concorrência125. Numa perspectiva jurídico-econômica, a regulação pode ser entendida

como uma forma de integração equilibrada de atividades produtivas. A regulação é

mais efetiva naqueles setores em que as estruturas de mercados impedem a existência

de concorrência.

É a partir desse ponto que se pode distinguir o direito antitruste da

regulação. No primeiro há uma atuação passiva com o controle de formação de

estruturas e punição de condutas infracionais. Há sobretudo atos de controle e de

fiscalização, sem interferência do Estado na produção da utilidade pública, Na

segunda há uma intervenção ativa que vai além do controle, atingindo a criação do

próprio serviço ou da utilidade pública. Essa utilidade vincula-se diretamente a um

sistema de concorrência, que é o valor mínimo a ser garantido no âmbito da

regulação126. O próprio papel redistributivo e garantidor de igualdade de oportunidades

do Estado, no âmbito da regulação, realiza-se em geral por meio da concorrência entre

os agentes do mercado.

Sob o ponto de vista jurídico, há diversas abordagens para a regulação.

Algumas focam-na sob a ótica do direito administrativo, estudando suas estruturas

autárquicas reguladoras, suas competências e suas funções127. Há ainda a perspectiva

constitucional em que se procura verificar direitos e liberdades como espaço de

125 Essa configura da regulação configura a passagem e o amadurecimento de paradigmas de Estado, como bem se percebe no seguinte trecho (FARIA, José Eduardo. Regulação, direito e democracia. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2002, p. 8): É justamente esse o pano de fundo do debate travado neste livro, ou seja, o contexto da substituição do tradicional Estado keynesiano do pós-guerra, capaz de articular os componentes de acumulação com bases nacionais, institucionalizar os conflitos e assegurar a coesão social, por um Estado de feições schumpeterianas – basicamente comprometido com a inovação tecnológica e a adequação de suas estruturas à nova ordem econômica internacional. À medida que seu tamanho e seu alcance refluem, ao final da década de 1990, suas funções e seus papéis mudam. Ele deixa de ser o controlador, diretor, planejador e indutor do desenvolvimento e passa a atuar como regulador das atividades privatizadas, como balizador da concorrência, como estimulador da oferta de serviços essenciais num ambiente competitivo, como garantidor dos direitos do consumidor e como criador de oportunidades de negócios para a iniciativa privada e de investimento para o desenvolvimento tecnológico. 126 SALOMÃO FILHO, Calixto. A regulação da atividade econômica. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 37. 127 É esse o sentido de regulação acolhido pelo Prof. Marcelo Figueiredo no seguinte trecho: Regulação é conceito mais amplo. Juan Miguel de La Cuétara Martínez relacionou exemplificativamente técnicas de regulação como sendo: técnicas de polícia, autorizações, licenças, alvarás, proibições, inspeções etc.; além dessas, defesa da concorrência, controle de preços, ordenação setorial para garantir equilíbrio e harmonia, disciplina de setores específicos (bolsa, bancos etc., obrigações de serviços públicos, relações pontuais de sujeição especial, contratos com o Estado, concessões, contratos-programa, incentivos econômicos ou jurídicos etc.) (FIGUEIREDO, Marcelo. Os controles políticos e legais nas agências no ordenamento jurídico norte-americano e o princípio da separação de poderes. In: FIGUEIREDO, Marcelo. Direito e regulação no Brasil e nos EUA. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 83).

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postulação de interesses legítimos garantidos na Constituição128. Uma terceira vertente

está no direito econômico, que a enfoca a partir de comportamentos de mercado a

serem induzidos por regras jurídicas129 que visam a suprir as falhas de mercados. É

possível também conceber a regulação como o acompanhamento de um setor com

vistas ao seu equilíbrio interno, especialmente entre os interesses dos acionistas das

empresas e dos consumidores, como um substituto para a competição e com um

significado jurídico de acompanhamento de um setor regulado. Nessa perspectiva, é

preocupação da autoridade regulatória o aumento do bem-estar do consumidor e a

promoção de eficiência130. Sob o ponto de vista econômico, há teoria econômica da

regulação em que ela é analisada como um bem objeto de disputas entre grupos com

interesse na normatização setorial, especialmente o controle de preços131.

São possíveis, pois, três modelos de configuração jurídica de setores

regulados132:

– Atividade regulada – a Administração regula de fora o setor com

particular intensidade em vista do interesse público que cerca o exercício

daquela atividade privada.

– Serviço público – a assunção pelo Estado da titularidade da atividade que

é repassada aos particulares que são controlados internamente pela

Administração a partir de um contrato de concessão ou permissão.

– Nacionalização – a transformação de empresas privadas em empresas do

Estado ou a criação de empresas estatais para explorar o serviço, o que

implica uma atenuação na ênfase regulatória com deslocamento para a

atuação direta.

Nessas três modalidades a regulação já se fazia presente no Estado Social,

no exercício das tarefas redistributivas e compensatórias típicas de tal modelo. No

entanto, as tarefas dos Estados contemporâneos, como evolução do paradigma do

128 Essa é a perspectiva do GETEL no programa de pós-graduação da Faculdade de Direito da UnB: http://www.getel.org/sites/default/files/PROGRAMA_REGULACAOSETORIAL_2006.pdf 129 CARVALHO, Carlos Eduardo Vieira de. Regulação de Serviços Públicos na Perspectiva da Constituição Econômica Brasileira. Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2007, p. 172 130 PROSSER (Op. cit., p.18). 131 131 STIGLER, George. A teoria da regulação econômica. In: MATTOS, Paulo. Regulação econômica e democracia. O debate norte-americano. São Paulo: Ed. 34, 2004, pp. 49-80. 132 ARIÑO, Gaspar. Economia y Estado. Madri: Marcial Pons, 1993, p. 267.

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Estado Social, vêm-se deslocando para atividades de controle de riscos oriundos

principalmente da aplicação da ciência e da técnica e da estabilização de mercados. É

aí que a regulação se faz mais presente com a necessidade de crescente intervenção da

Administração na esfera econômica para a disponibilização de utilidades

compensatórias típicas do Estado Social. Como visto, o Brasil não ficou fora dessa

tendência, havendo um movimento de passagem de Estado empresário para Estado

regulador no fim do século XX, como modo de prover utilidades típicas do Estado

Social.

2.3 A gênese do legalismo e da regulação

A regulação como processo de produção artificial de normas por entidades

autônomas incrustadas no Estado deve sua existência a uma concepção moderna de

direito e instituições políticas. Esse fenômeno de deslocamento de poder normativo

ocorre a partir de alguns pressupostos: 1) a consolidação de um sistema político-

burocrático, 2) a constituição de um sistema econômico, 3) a positivação do direito

como sua produção artificial em regras formais com hipóteses de incidência e sanções

que visavam a regular comportamentos, 4) instituições jurídicas e políticas concebidas

funcionalmente para a consecução de utilidades sociais, como por exemplo o

estabelecimento da paz, do bem-estar social, da vida mais agradável possível e 5) o

estabelecimento de aplicações técnico-científicas como meio para consecução dessas

finalidades sociais.

No entanto, essa produção de regras por entes autônomos emergiu de

disputas sociais que levaram a diferentes configurações de Estado e de instituições

jurídicas. Não se pode esquecer que a ênfase regulatória é um grande problema para o

Estado Democrático de Direito e que seu cenário é o do conflito de classes amortecido

por diretrizes compensatórias típicas do Estado Social. Daí a importância de uma

reconstrução dos diferentes paradigmas do Estado a partir da Modernidade.

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2.3.1 O Estado Burguês Absolutista

O direito pré-oitocentista era essencialmente pluralista. Em primeiro lugar

porque a lei, dentro do direito “oficial”, era uma fonte minoritária. O direito aplicado

pelos tribunais centrais ou periféricos era esmagadoramente doutrinário, valendo-se os

juristas do antigo regime da máxima romana segundo a qual o direito [civil] consiste

somente na interpretação dos juristas (ius civile in sola prudentium interpretatione

consistit133). A lei era usada apenas como meio para suprir ou adaptar a doutrina.

Tanto era assim que as Ordenações portuguesas cobriam setores muito limitados da

regulação jurídica: de um certo modo, apenas a organização dos órgãos do poder

oficial, e não na sua totalidade, organização processual e direito penal. O grande

território do direito civil, do direito comercial, do que hoje conhecemos como direito

administrativo e constitucional, estava regulado principalmente pelos comentadores134.

O recurso à lei só se dava quando a coroa pretendia pôr em causa direitos

adquiridos (iura quaestia), já que a doutrina do direito comum os salvaguardava de

todas as intervenções que não se revestissem da forma legal, em invocação da potestas

extraordinária. De resto, mesmo em inovações, utilizavam-se outros meios

normativos, como os precedentes judiciais (“estilo” ou “assento”), a instrução a órgãos

administrativos (“decreto”, ‘provisão”, “portaria”) ou a regulamentação interna (Lex

rei suae dicta, como os regimentos da Administração “dominial” ou “doméstica” da

coroa, em que o rei regulava os serviços da “casa”).

Havia, ainda, a subordinação da lei à doutrina. Na interpretação, isso ficava

muito claro por uma série de regras que faziam com que a lei acabasse por ser

absorvida pelo sistema doutrinário. Nesse sentido, as leis deveriam ser interpretadas de

acordo com os princípios da doutrina (ratio iuris); as leis que fossem contra esses

princípios seriam excepcionais; e o próprio príncipe, ao editar a lei, estaria limitado

pelo direito natural (reta ratio).

133 Pomponius, D, I, 2, 2, 12 134 HESPANHA, A. M. Lei e justiça: história e prospectiva de um paradigma. In: HESPANHA, A. M. Justiça e litigiosidade: história e prospectiva. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993, p. 14.

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Não só no confronto com a doutrina a lei se achava limitada, mas também

no confronto com regramentos provenientes da auto-organização dos corpos sociais

particulares. O direito canônico regulava a comunidade dos crentes, assim como a

ordem doméstica era em boa parte normatizada pelos poderes disciplinares do pater.

Às outras comunidades (territoriais, profissionais, assistenciais, culturais) era

reconhecido um poder de autorregulamentação. Aí o estatuto e o privilégio, como

formas de regulamentação, impunham-se à lei.

De mais a mais, o próprio direito escrito e, portanto, erudito, no qual se

situa a lei, era minoritário. Era o direito rústico, que no caso de Portugal, por exemplo,

correspondia a 85% da população, regrada por padrões de comportamento fixados por

tradição e formas antigas de organização da comunidade135.

É certo que o despotismo ilustrado trouxe um projeto de redução do

pluralismo pelo reforço do poder real com a valorização da lei como ato de vontade do

monarca. O volume de produção legislativa aumentou e se afirmou a precedência da

lei sobre as outras fontes do direito. O próprio estilo legislativo refletiu isso com o uso

de fórmulas retóricas com o intuito de reforçar o poder central.

O antigo regime legou uma sociedade dualista do ponto de vista dos

controles jurídico-políticos. Uma parcela da sociedade, claramente minoritária, vivia à

sombra do direito escrito oficial, que foi aos poucos se deslocando do direito judicial-

doutrinário para a lei. Uma outra parte, francamente majoritária, mantinha com esse

direito um contato frouxo, regrando-se basicamente por práticas e tradições.

A esse dualismo jurídico correspondia também um dualismo político. O

universo político liberal situava-se nos estratos urbanos e alfabetizados que viviam sob

os ditames do direito oficial. A vontade geral da teoria política liberal estava

circunscrita a esse âmbito. Por isso, a lei escrita só produzia sentido nesse setor liberal,

até mesmo porque os analfabetos estavam excluídos pela disciplina do voto. O apoio

da sociedade liberal exclusivamente na lei criava um curto-circuito com os iletrados e

as comunidades tradicionais, mas ao mesmo tempo confirmava um modelo de

organização política burguesa. Abandonava-se a maioria que estava na periferia social,

135 Idem. Ibidem, p. 15.

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deixando o seu controle para o “caciquismo” político.136 Em que pesem os ideais

universalistas e democráticos, o Estado de configurações liberais e o primado da lei

diziam respeito apenas a uma minoria de “assimilados”.

Isso não impediu que se falasse num processo de juridicização

(Verrechtlichung) que se referia a uma tendência ao aumento do direito escrito a partir

da Modernidade. Assuntos que eram regulados informalmente pela tradição e pelos

costumes foram assimilados pelo direito escrito que se adensou, desmembrando

progressivamente matérias jurídicas globais em particulares. O Estado Absolutista que

se desenvolveu na Europa Ocidental foi uma primeira etapa desse fenômeno137.

O Estado Absolutista constituiu uma ordem dentro da qual se efetuou a

transição da sociedade estamental para a sociedade capitalista. O comércio e as

relações mercantis receberam um regramento de direito privado que permitia sua

organização em corporações e pessoas jurídicas que estabeleciam entre si contratos e

transmitiam livremente suas propriedades. Para isso, absorvia-se o conceito moderno

de lei, já com características de positividade, universalidade e formalidade.

No plano do direito público se estabeleceu uma única fonte de dominação

juridicamente legítima, reservando-se ao soberano o monopólio da violência. O poder

do monarca desvinculou-se de conteúdos concretos, passando a ser definido

instrumentalmente com os meios do exercício de uma organização da dominação

burocrática.

Emergiram visivelmente, nesse período, a sociedade civil e formas de atuar

sistêmicas como a da economia e a do Estado, restando ao indivíduo uma esfera de

autodeterminação definida informe e negativamente, no modelo hobbesiano, como a

não abrangida pelo Estado. O que ficou assegurado foi uma esfera privada,

caracterizada por um mínimo de paz que permitia a sobrevivência física e por uma

competição segundo leis de mercado pelos escassos recursos materiais para a

satisfação das necessidades, estando franqueado à economia extrair o trabalho dos

indivíduos e ao Estado garantida a obediência dos súditos.

136 Idem. Ibidem, p. 18. 137 HABERMAS, Jürgen. Teoría de La acción comunicativa, II – crítica de La razón funcionalista. Trad. Manuel Jiménez Redondo. Madri; Taurus, 2001, p. 505.

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No Estado Absolutista, tudo o que não estava regulado pelo Poder Político

com as formas jurídicas encontrava-se disforme138, entregue a um âmbito de

autodeterminação ou às coerções oriundas das comunidades tradicionais que

mantinham seus espaços de dominação.

A primeira jornada de juridicização, no Estado Absolutista, quando se

formou a sociedade civil, mostrou-se dominada pelas ambivalências expostas por

Marx sobre o trabalho livre. Ao mesmo tempo em que se emancipavam os

trabalhadores assalariados, conferindo-lhes liberdade de movimento e voluntariedade

para aderir ao emprego e às organizações, ocorria a proletarização dessa forma de

vida, que não foi objeto de regulação jurídica.

As jornadas seguintes construíram sobretudo discursos de emancipação,

com a constitucionalização e a democratização da dominação burocrática, inicialmente

absolutista. As instituições jurídicas que solidificaram a soberania passaram a ter

sentido inequivocamente139 garantidor de liberdades. Nesse cenário, sempre que o

direito formal burguês faz prevalecer as pretensões do mundo da vida em face da

dominação burocrática perde a ambivalência inerente a uma realização de liberdades

conseguida ao preço de efeitos laterais destrutivos140.

Nesse primeiro momento de organização do Estado, o conjunto dos seus

poderes tinha raízes na pessoa do rei, que centralizava as funções que posteriormente

seriam decompostas em judicial, executiva e legislativa141. No exercício dessa última

atividade, cabia ao soberano, pela edição de leis, limitar direitos em prol de um bem

maior, como por exemplo a paz, no caso da obra de Hobbes. Todavia, o aparecimento

da figura do soberano significa a centralização de poderes e a legitimação do poder

real que não estava na sua burocracia ou na técnica, mas apenas na proeminência de

uma vontade que se sobrepunha às demais, evitando conflitos142. O Estado Absolutista

consolidou seu poder com a expansão do direito escrito.

138 HABERMAS, Jürgen. Teoría de La acción comunicativa, II – crítica de La razón funcionalista. Trad. Manuel Jiménez Redondo. Madri; Taurus, 2001, p. 507. 139 Idem. Ibidem, p. 510. 140 Idem. Ibidem, p. 508. 141 MONCADA, Luís S. Cabral. Lei e regulamento. Coimbra: Coimbra Editora, 2002, p. 31. 142 HOBBES, Thomas. Leviatã. São Paulo: Martin Claret, 2002, p. 197.

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Entretanto, a regulação é a inversão do fenômeno da positivação legalista

como técnica de controle social. Ao contrário do que ocorria no Estado Absolutista,

em que os súditos renunciavam de sua liberdade para conquistar a segurança,

concentrando poderes no soberano, agora advém uma dispersão de poderes na

máquina burocrática para obter compensações e utilidades a partir da coordenação do

processo de produção pelo Estado. Enquanto no Estado Absolutista foi a centralização

do poder no rei que possibilitou a autonomização e o desencaixe do sistema

econômico e a criação de uma burocracia, a regulação contemporânea é fruto do

amadurecimento desse desencaixe em que a autonomização do sistema econômico e

da burocracia pode-se sobrepor à própria soberania. Em relação à autodeterminação, a

regulação também fornece um nítido contraste com o Estado Absolutista: enquanto a

autonomia e os direitos estavam informes no Estado Absolutista, a regulação redunda

numa sobrenormatização formalizadora que, em razão de sua excessiva rigidez,

embaça os direitos fundamentais.

2.3.2 O Estado Burguês de Direito

O Estado Burguês de Direito encontrou sua melhor expressão no

constitucionalismo alemão do século XIX, entendendo-se que o Estado deve assegurar

com exatidão, por via do direito, tanto as formas como os limites de sua atuação, assim

como a livre esfera dos cidadãos. O governo deve ater-se ao direito, não lhe cabendo,

sem recorrer às formas jurídicas, realizar ou impor conteúdos. Isso não significa que o

governo não tenha fins administrativos ou simplesmente defenda o interesse dos

particulares, mas que não se faça referência a fins e conteúdos do Estado, e sim ao

modo e à maneira de realizá-los por meio das formas jurídicas143.

Ocorreu um segundo impulso na juridicização da sociedade que foi além da

conformação e da limitação do poder pela lei e pela burocracia. Aos cidadãos, como

143 HABERMAS (Op. cit., p. 508).

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pessoas privadas, garantiam-se direitos público-subjetivos que valiam contra o

soberano. No entanto, isso não significava participação democrática.

Com a instauração do Estado de Direito, não só a esfera privada, mas

principalmente a Administração, ficou subordinadas à lei, instaurando-se um “império

da lei”. Na esfera de liberdade do cidadão, a Administração não podia intervir sem lei,

seja praeter ou ultra legem. A vida, a liberdade e a propriedade das pessoas privadas

assumiam papel central, conformando as instituições de direito público, justificando-as

e legitimando-as.

A ideia de liberdade burguesa estava no fundamento da Constituição. A

liberdade pessoal, a propriedade privada, a liberdade contratual e a liberdade de

comércio eram esferas da sociedade. Nesse âmbito, o Estado, como mero servidor da

sociedade, estritamente controlado, submetia-se a um sistema acabado de normas

jurídicas ou simplesmente identificado com esse sistema de normas, não sendo mais

que norma e processo. Isto, de resto, estava de acordo com ‘aquela contenção de

finalidades’ que corresponde ao ideário liberal144.

Enquanto o Estado Absolutista havia deixado a sociedade civil como uma

matéria informe, orientando legislativamente apenas a economia e o poder

administrativo-burocrático, o ordenamento do Estado de Direito se enriqueceu para

regular também a sociedade civil, e o mundo da vida passou a ser objeto de

reconhecimento e proteção145. Nas palavras de Habermas, nesse paradigma o Estado

Moderno adquire uma legitimidade por direito próprio, adquire legitimações

baseadas no mundo da vida146.

Em frontal contraste com o Estado de Direito, a regulação contemporânea

significa interferência na esfera privada com vistas a coordenar a atividade privada

para a consecução de finalidades públicas e coletivas sem estrita submissão às formas

e aos procedimentos da legalidade. O surgimento do fenômeno regulatório não se

adéqua aos ditames do Estado de Direito, já que a lei deixa de ser o único e exclusivo

veículo para normatização de atividades privadas e ainda os direitos público-subjetivos

144 VAZ, Manuel Afonso. Lei e reserva de lei. Porto, 1996, p. 124. 145 HABERMAS (Op. cit., p. 509). 146 Idem. Ibidem.

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acabam relegados a um segundo plano, assumindo papel predominante a produção de

utilidades.

2.3.3 O Estado Democrático de Direito

O Estado Democrático de Direito ganhou sua formatação pela primeira vez

com a Revolução Francesa e ocupou a teoria do Estado desde pensadores como

Rousseau e Kant até os dias de hoje. Além das garantias típicas do Estado de Direito,

com essa nova etapa de juridicização assegurou-se a participação política como

formatação da liberdade almejada pelos jusnaturalistas modernos.

As leis só se consideravam válidas quando por via da participação

democrática, especialmente por intermédio do Parlamento. Presumia-se que

expressava a vontade geral e, portanto, todos os afetados poderiam hipoteticamente

assentir aos seus comandos. A discussão pública era outra fonte de legitimação das

normas jurídicas. A atividade normativa de caráter inovador deslocou-se para o Poder

Legislativo. A democracia não era apenas o governo do povo, mas o seu governo por

canais predeterminados e segundo procedimentos predefinidos pelas formas do

direito147 com o surgimento de uma esfera pública de debates com forte influência

sobre os órgãos legislativos.

Os discursos jurídicos se implantaram na forma de voto universal e igual e

com liberdades de associação e criação de partidos políticos. Nesse cenário, ganhou

destaque a divisão de poderes com o estabelecimento da repartição funcional da

atividade legislativa, da executiva e da administração da justiça. Sob a perspectiva do

Estado de Direito, o problema só se colocava na repartição de poderes entre o

Executivo e a Justiça.148

147 HOLMES, Stephen. Vincoli constituzioli e paradosso della democrazia. In: ZAGREBELSKY, Gustavo et alli. Il future della costituzione. Turim: Einaudi, 1996, p. 201. 148 HABERMAS (Op. cit., p. 509)

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A tripartição clássica de poderes reservou precipuamente ao Legislativo a

discussão e o acordo sobre programas gerais149. Ao Judiciário, por meio de processos

específicos, civil e penal, foi conferida a função de decidir conflitos estabilizando

expectativas de comportamentos com a validação e a determinação do direito para o

caso concreto. Por último, ao Executivo coube a execução do conteúdo teleológico do

direito vigente por uma forma pragmática, estratégica e instrumental de realizar, de

forma eficaz, os fins coletivos expressos pela lei, o que lhe impôs uma forma

hierarquizada, burocratizada e inquisitorial de atuar150.

No entanto, mesmo no Estado de Direito, com a separação entre Executivo

e Judiciário, a divisão de poderes já apresentava um aspecto positivo além do mero

controle do arbítrio, que era a especialização funcional, potencializadora da efetividade

dos poderes, aumentando sua autoridade. Ao menos na origem, o Judiciário

independente não foi criado para limitar o poder, mas, ao contrário, para aumentar a

capacidade do governo de desenvolver suas funções151.

A democracia ganhou com a divisão de poderes, eis que cada um deles tem

uma forma distinta de recrutar seus integrantes, o que amplia a variedade e a

sensibilidade do Estado como um todo, ganhando outro significado o equilíbrio entre

eles. Não se tratava de um balanceamento estático, mas de mútua interferência

dinâmica como reflexo dos estímulos sociais e democráticos.

A distribuição dos poderes possibilitou ao cidadão ter a noção de que o

direito e suas leis eram válidos para todos. A dispersão do processo de decisão levou a

que nenhum dos poderes por si só pudesse determiná-las. A tripartição de poderes

significou deliberação e compartilhamento institucional de decisões.

Em termos da relação entre mundo da vida e sistemas, pode-se dizer que:

O mundo da vida moderno faz-se valer mais uma vez aos imperativos de uma estrutura de poder que se abstrai de todos os contextos concretos desse mundo. Com isso, alcança-se também uma certa conclusão do processo de ancoragem do meio poder no mundo da vida racionalizado, cuja diferenciação já não só vem representada pela burguesia.

Enquanto o Estado Absolutista havia deixado a sociedade civil como uma

matéria informe, orientando legislativamente apenas a economia e o poder

149 HABERMAS, Jürgen. Faticidad y validez. Trad. Manuel Jiménez Redondo. Madri: Trota, 2001, p. 255. 150 Idem. Ibidem. pp. 255-6. 151 HOLMES (Op. cit., p. 198).

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administrativo-burocrático, o ordenamento do Estado Democrático de Direito se

enriqueceu para regular também a sociedade civil e o mundo da vida, para ser objeto

de reconhecimento e proteção152. Por intermédio do direito criam-se instituições e

procedimentos para que a comunicação flua entre o cidadão e os sistemas político-

burocrático e econômico. Nas palavras de Habermas, nesse paradigma, o Estado

Moderno adquire uma legitimidade por direito próprio, adquire legitimações

baseadas no mundo da vida153.

Foi no âmbito do Estado Democrático de Direito e numa economia liberal

que a regulação tomou seu primeiro impulso. Nos Estados Unidos, na década de 1870,

dois eventos chaves se apresentaram. O primeiro deles foi uma decisão da Suprema

Corte. O segundo foi uma forte turbulência no mercado de transportes ferroviários.

No caso Munn v. Illinois (1877), a Suprema Corte estabeleceu que o estado

de Illinois poderia regular preços de silos e armazéns. Nessa decisão ficou assentado

que154:

A propriedade deve ser conjugada com o interesse público quando utilizada para produzir efeitos coletivos, afetando largamente a comunidade. Quando, portanto, alguém dedica a sua propriedade para um uso em que há interesse público, ele, na verdade, abre margem para que haja interesse público nesse uso e deve ser controlado pelo público para o bem comum.

Esse caso forneceu suporte para que a regulação firmasse suas bases,

abrindo margem para que o sistema econômico sofresse influxos do Estado,

impulsionado pela necessidade de prover bens materiais como uma nova forma de

legitimação não baseada apenas na participação e no voto universal. No período da

referida decisão da Suprema Corte, a exploração das estradas de ferro alternou

momentos de forte competição nos preços e relativa estabilidade. Surgiu espaço para

discriminação de consumidores e cobranças de elevadas tarifas. Tanto empresas do

setor, querendo a estabilização de preços, como consumidores, clamaram por

intervenção do Estado. O resultado de tais forças foi a edição do Interstate Commerce

Act (de 1887) e a criação da Interstate Commerce Comission (ICC) para regular preços

do transporte ferroviário.

152 HABERMAS, Jürgen. Teoría de la acción comunicativa, II – crítica de la razón funcionalista. Trad. Manuel Jiménez Redondo. Madri; Taurus, 2001, p. 509. 153 Idem. Ibidem. 154 Apud VISCUSI, W. Kip, HARRINGTON, Joseph E. Jr. & VERNON, John M. Economics of regulation and antitrust. 4ª ed. Boston: Massachusetts Institute of Technology, 2005, p. 362.

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A irrupção da regulação nesse período fez-se acompanhada de um grande

desafio para as instituições típicas do Estado Democrático de Direito. Num único ente

acumularam-se as funções legislativas, administrativas e judiciais e, ainda, a produção

normativa sem a legitimação de eleições para afirmar a representação popular. Não se

pode esquecer que a especialização de agências e assemelhados potencializa a

efetividade do poder, permitindo a interferência do Estado na oferta de utilidades caras

para a sua legitimação perante a população. Essa mesma verificação, entretanto,

reforça as preocupações que levam à conclusão de que é tarefa das instituições

jurídicas encontrar outra forma democrática de legitimar a regulação que não as

politicamente tradicionais e, principalmente, não focadas apenas na distribuição de

utilidades materiais à população. Mais uma vez, é justamente nesse hiato que devem

ser inseridos os princípios como outra via de legitimação além da mera produção de

utilidades, criando limites para a concentração de poderes nos agentes reguladores.

2.3.4 O Estado Social

O Estado Social desenvolveu-se no marco do Estado Democrático de

Direito, representando um novo movimento de juridicização garantidora da liberdade e

pondo freios ao sistema econômico155 para adequá-lo a demandas sociais formuladas

no âmbito do mundo da vida. Problemas que surgiram no âmbito das vivências

privadas, como nas relações de trabalho, deslocaram-se para a esfera pública,

atingindo a formação coletiva das vontades pelos partidos políticos, para formar

hipotecas de legitimação.

O discurso jurídico voltou-se para a fixação de salários e condições de

emprego, que estavam na base de uma política reformista que visava à pacificação do

conflito de classes. Com isso, o elemento nuclear foi uma legislação trabalhista e

social em que se cuidou de cobrir os riscos básicos da existência dos assalariados,

inclusive com compensações das desvantagens de posições hipossuficientes no

155 Ideia semelhante está em Vital Moreira (MOREIRA, Vital. A ordem jurídica do capitalismo. Coimbra: Centelho, 1978, p. 119): A ideia subjacente à concepção do estado social é, sem dúvida, a de que este se propõe fazer valer perante o econômico valores próprios do político e do jurídico (justiça, igualdade, paz social).

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mercado, como consumidores, inquilinos, segurados etc. As sequelas dos conflitos de

classe acabaram por se converter no tema das democracias de massas. A adesão da

população ao sistema político ficou sujeita a ofertas de legitimação sujeitas a

falsificação156 consistentes especialmente em intervenções e prestações

compensatórias.

Essa política social selecionou situações de debilidades extremas para

absorvê-las, deixando intactas as relações de propriedade, receitas e dependência. No

entanto, regulações e prestações estatais dirigiam-se para a consecução de um

equilíbrio social por meio de compensações157, mas também para a correção de

externalidades coletivamente sensíveis, como meio ambiente, cidades, políticas

sanitárias etc.

A extensão do Estado Social ocorreu sob incômodos limites em que os

tributos públicos destinados a tarefas de política social estavam restritos ao

funcionamento do mercado e ao seu crescimento. Os tipos de políticas redistributivas

deveriam, ainda, adequar-se à forma de uma economia baseada na acumulação de

capital. Além do estreitamento vinculado aos problemas sociais, ao Estado se impunha

a tarefa de absorver os efeitos disfuncionais do mercado. De outro modo, estaria

rompido o equilíbrio de classes ao se porem em risco os grupos sociais privilegiados.

Em suma, tributos, tipo de prestações e a organização da seguridade social

tinham de se adaptar ao funcionamento sistêmico da economia e mesmo da política. O

processo de acumulação de capital deveria ficar intocado pelas intervenções do Estado

que, além do mais, assumia a função de coordenar os riscos e as disfuncionalidades da

156 Idem. Ibidem, p. 491 157 É interessante assinalar que, para Luhmann, é no caminho da compensação para a sua reflexividade que se dá a passagem do Estado Social para o Estado de Bem-Estar Social (LUHMANN, Niklas. Teoria política em El Estado de Bienestar. Madri: Alianza Universidad, 1997, p. 31): Em certo modo parece então como se tudo o que afeta ao indivíduo estivesse condicionado socialmente e, em tanto que destino imerecido, devesse ser compensado, inclusive aquilo que se deve à sua própria ação. [...] Se é possível falar de uma ‘lógica do Estado de Bem-Estar’, esta pode ser compreendida mediante o princípio da compensação. Trata-se da compensação daquelas desvantagens que recaem sobre cada qual como consequência de um determinado sistema de vida. A experiência nos ensina, no entanto, que o conceito de compensação tende a se universalizar, já que, como se formulam os problemas, todas as diferenças podem ser compensadas e, ainda assim, sempre ficam diferenças ou aparecem novas carências que, por sua vez, exigem ser compensadas. Quando tudo deve ser compensado, haverá de ser também o mesmo compensar. O conceito e o processo de compensação tornam-se reflexivos.

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economia capitalista. Nos países ocidentais, isso constituiu o cerne do reformismo

keynesiano.

O ponto central do conflito de classes que se institucionalizou a partir da

capacidade de disposição privada dos meios de produção de riqueza social deslocou-se

exclusivamente para o sistema econômico, perdendo seu sentido nas relações de

vivência social do cotidiano, quando da solidificação das relações capitalistas. A

estrutura de classes desvinculou-se de seu sentido histórico, esmaecendo-se a tensão

entre capital e trabalho.

O desnivelamento na distribuição de compensações sociais remetia a uma

estrutura de privilégios que não mais derivava diretamente da estrutura de classes. De

forma alguma, as desigualdades sociais desapareceram no capitalismo avançado.

Ganharam outra conformação pela distribuição de compensações do Estado e pela

formação de novos grupos marginais, como imigrantes e jovens não inseridos no

sistema econômico que não provinham diretamente dos conflitos de classe, que se

encontravam amortizados e circunscritos de forma privada no sistema econômico.

Surgiu também uma outra coisificação não especificamente oriunda da

estrutura de classes. O Estado Social cristalizou papéis sociais como o de trabalhador,

consumidor, cliente das burocracias públicas e de cidadão. O marxismo se concentrara

na troca da força de trabalho por salário, esquadrinhando a coisificação apenas no

mundo do trabalho158 pela alienação das classes trabalhadoras. Esse tipo de alienação,

com o desenrolar do Estado Social, ficou em segundo plano.

Os efeitos mais incômodos da relação de trabalho desapareciam com sua

humanização ou mesmo com compensações, retirando-lhe o caráter explosivo e

colocando um novo equilíbrio entre o papel de trabalhador e consumidor. Na

configuração dos papéis de cidadão universalizado e neutralizado e no inflado papel

de cliente se situava um dos grandes problemas desse paradigma do Estado Social.

A dinâmica de contato com um poder administrativo-burocrático

hipertrofiado, com diversos âmbitos de atuação, acabou por fragmentar a cidadania,

retirando sua capacidade crítica. De igual modo, a neutralização da cidadania foi

158 HABERMAS (Op. cit., p. 493).

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comprada com o preço dos bens e serviços distribuídos pelo Estado Social, tornando

aceitável uma participação pouco efetiva.

A democracia de massas, com o Estado Social, freou o antagonismo de

classes circunscrito ao sistema econômico sob a condição de que o crescimento

capitalista garantido pelo Estado se mantivesse. Era só assim que se podia efetivar a

massa de compensações aos consumidores e, especialmente, aos clientes da

burocracia, amortecendo os efeitos perversos do trabalho alienado e da codecisão

pauperizada.

A sustentação política do sistema econômico tinha como efeito um contínuo

aumento de sua complexidade, que se acompanhara de uma expansão e densificação

interna dos campos de ação formalmente organizados. Isso explicou os processos de

concentração nos mercados de bens, capitais e trabalho, a centralização das

empresas e institutos, e também uma boa parte do crescente número de funções que

nascem para o Estado e a expansão da atividade estatal159. Era o alargamento de um

complexo burocrático-monetário.

No entanto, a demanda por eficácia na distribuição de direitos sociais

compeliu a que a Administração fosse obrigada a assumir funções dos outros dois

poderes, seja para legislar, seja para julgar casos em que se exigia pronta e eficiente

intervenção estatal. Esse foi o legado do Estado Social para o Estado Democrático de

Direito: a desfiguração do esquema clássico da divisão de poderes.

No Estado Social, não só a Administração assumia a função dos outros

poderes, como o âmbito de sua atuação se expandia de tal maneira que as próprias leis

que regulavam sua atuação tinham que condicionar a atividade administrativa, de

forma genérica e imprecisa, estabelecendo programas teleológicos e se valendo de

cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados, abrindo para o administrador

uma ampla margem de discricionariedade. O Executivo fora alçado para um âmbito de

ação muito além da mera aplicação da lei, no Estado Social, para o qual a sua

conformação clássica não estava preparada. É o que descreve Habermas:

Na medida em que, por exemplo, a implementação de programas finalistas ou teleológicos grava a Administração com a necessidade de prover organizativamente tarefas que, pelo menos implicitamente, têm o caráter de uma produção de direito ou de um desenvolvimento do direito e de uma aplicação judicial da lei, deixa de ser

159 Idem. Ibidem, p. 496

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suficiente a base legitimadora das estruturas tradicionais da Administração. A lógica da divisão de poderes deve-se realizar então com estruturas distintas, por exemplo, mediante o estabelecimento das correspondentes formas de participação ou comunicação ou mediante a introdução (no processo administrativo) de procedimentos de tipo judicial e parlamentar[...]160.

Com o advento do Estado Social, a distinção entre natureza das funções e

atribuições dos poderes do Estado ficou embaçada. Houve uma grande superposição

de tarefas e âmbitos de atuação. Então, procedimentos e processos revelaram-se cada

vez mais importantes como garantia e espaço para participação e compreensão da

atuação dos poderes.

A regulação se inseriu nesse contexto. Apesar de alguns antecedentes como

a Interstate Commerce Commission (1887), a Federal Trade Commission (1914), a

Commodities Exchange Autority (1930), a Federal Radio Commission (1927) e a

Federal Power Commission (1930), a emergência da regulação como fenômeno social

e econômico deu-se fundamentalmente como parte da reforma constitucional do New

Deal nos Estados Unidos. Também judicialmente se ampliou o âmbito da regulação,

que deixou de estar restrita às publics utilities, passando a abranger outros produtos de

interesse social. No caso Munn v. Illinois, a Suprema Corte aceitou a regulação do

preço de varejo do leite161. A configuração anterior era extremamente tímida, e com o

New Deal reconfiguram-se os princípios do laissez-faire que estavam assentes no

common law162, surgindo um segundo Bill of Rights orientado em proteger direitos de

habitação, emprego, bem-estar e alimentação163.

Como reguladoras da economia, as instituições estatais e os tribunais

federais dos Estados Unidos eram manifestamente inadequados. Era nítido o seu

descasamento e a insuficiência do seu instrumental para coordenar e atender às

necessidades públicas num ambiente democrático. Novas entidades foram

160 HABERMAS, Jürgen. Factidad y Validez. Trad. Manuel Jiménez Redondo. Madri: Editorial Trotta, 3ª ed., 2001, p. 262. 161 VISCUSI, W. Kip, HARRINGTON, Joseph E. Jr. & VERNON, John M. Economics of regulation and antitrust. 4ª ed. Boston: Massachusetts Institute of Technology, 2005, p. 363. 162 SUNSTEIN, Cass R. After the rights revolutions – reconceiving the Regulatory State. Cambridge: Harvard University Press,1993, p. 19. 163 Idem. Ibidem, p. 21.

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necessárias164. As agências criadas não raro combinavam as funções de legislar, julgar

e executar, com amplos poderes de fixação de políticas públicas165.

Após o New Deal, houve um outro período de expansão da atividade

regulatória nas décadas de 60 e 70 do século XX166. O Presidente e o Congresso,

respaldando-se no discurso dos Civil Rights, regularam temas como trabalho, pobreza,

consumo, discriminação e especialmente o gerenciamento de riscos sociais como meio

ambiente, águas, ar etc.

Em resumo, a missão compensatória do Estado Social iniciada a partir do

conflito de classes progressivamente adensou-se e se complexificou, exigindo um

atuar mais eficaz e mesmo inquisitorial, o que levou a uma concentração de atividades

na Administração. Isso fez com que o Estado, para dispensar bens e serviços, se

especializasse em torno das prestações a serem entregues à sociedade. Outra

circunstância muito importante é que o dispensamento desses bens devia adequar-se

aos pressupostos da economia de mercado, mantendo intocados a acumulação de

capital, a propriedade e os contratos. A resultante desse processo foi a formação de

entes como as agências reguladoras.

2.3.5 O Estado Social e Democrático de Direito

O Estado Social e Democrático de Direito pode ser compreendido a partir

da constitucionalização das relações de poder social vinculadas às estruturas de

classes, como a limitação dos horários de trabalho, a liberdade de organização sindical,

a previdência, a assistência social etc. Essas normas têm um caráter garantidor de

liberdade. Todavia, isso não vale para todas as regulações do Estado Social, que têm

164 Dentre elas (Idem. Ibidem, p. 25): Federal Communications Commission (1936), Soil Conservation Service (1935), Social Security Administration (1935), Federal Power Commission (1935), Securities and Exchange Commission (1934), National Labor Relations Board (1934), Federal Housing Administration (1934), Public Works Administration (1933), Tennesse Valley Authority (1933), Civil Works Administration (1933), Civilian Conservation (1933), Federal Deposit Insurance Corporation (1933), Federal Home Loan Board (1932). 165 Idem. Ibidem, p.23. 166 Pode-se citar (Idem. Ibidem): Department of Energy (1977), Office of Surface Mining (1977), Nuclear Regulatory Commission (1975), Materials Transportation Board (1975), Mine Safety and Health Administration (1973), Occupational Safety and Health Administratuion (1973), Consumer Product Safety Commission (1972), National Highway Traffic Safetty Administration (1970), Environmental Protection Agency (1970), Equal Employment Opportunity Commission (1964), United States Commission on Civil Rights (1957, 1960).

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um caráter ambivalente em relação à liberdade, constituindo sua garantia e também

sua privação.

Quanto mais densa apresentava-se a rede de garantias formada pelo Estado

Social para absorver os efeitos deletérios de um processo de produção baseado no

trabalho assalariado, mais dubiedades de outra ordem apareciam. Os próprios meios

garantidores de liberdade a colocavam também em risco. Esse fenômeno põe em

destaque os limites da juridicização e da burocratização como meios para implantar as

políticas do Estado Social167.

A assunção, por discursos jurídicos e burocráticos, dos riscos da existência,

teve como preço a intervenção na esfera de vivência dos indivíduos. Em casos como o

da percepção de benefícios de assistência e previdência social, o cotidiano dos

implicados passou a ter sua casuística violentada, levando a uma distribuição de bens

regulada pela estrutura se-então do direito condicional, a qual resulta ‘estranha’ às

relações cotidianas, às causas sociais do caso a ser protegido e às dependências e

necessidades que o caracterizam168.

O caso passou a ser tratado na perspectiva de tipificações que se amoldam

ao seu tratamento burocrático. O direito do afetado é analisado a partir de critérios de

mensuração administrativa que resultam em regras de caráter jurídico. A situação que

merece regulação e está inserida numa biografia e numa forma concreta de vida vê-se

submetida a uma violenta abstração, não só por imperativos jurídicos, mas também

burocráticos, para poder ser administrativamente tratada.

As burocracias encarregadas de atuar na distribuição de bens e serviços têm

de proceder a partir de procedimentos legais próprios de uma dominação burocrática,

valendo-se de discursos jurídicos de compensação/indenização de prejuízos e

desvantagens169. Assim, na medida em que o Estado vai além da pacificação do

conflito de classes e atua sobre âmbitos privados, estendendo uma rede de assistência

clientelista, mais fortemente apresentam-se os efeitos de uma juridicização que

simultaneamente burocratiza e monetariza. Essa é a essência da regulação.

167 HABERMAS, Jürgen. Teoría de la acción comunicativa, II – crítica de la razón funcionalista. Trad. Manuel Jiménez Redondo. Madri; Taurus, 2001, p. 496. 168 Idem. Ibidem, p. 512 169 Idem. Ibidem, p. 513.

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É um dilema que se apresenta. As garantias do Estado Social deveriam

dirigir-se à integração social, mas desintegram formas de vida pelo seu contato com o

dinheiro e o poder, como podem ser exemplo as relações de família e as educacionais.

Dentro desse contexto de prestação de direitos sociais pelo Estado, até

mesmo os direitos de participação política e democrática se veem esvaziados. A

organização das liberdades cidadãs acaba atingida por fenômenos como segmentação

do papel de eleitos, pelas lutas nas elites partidárias, pela estrutura vertical dos

processos de formação da opinião pública dentro de partidos providos de uma crosta

burocrática, pela autonomização das corporações partidárias, pelo poder incrustado

nos meios de comunicação170. A perda de liberdade que se experimenta não se deve

principalmente às formas jurídicas, porém ao modo burocrático pelos quais esses

direitos são fruídos. Nessa linha, ao direito de voto universal e às liberdades de

associação, imprensa e opinião, só se pode atribuir um caráter unívoco de garantia de

liberdade, em nada lhe obstaculizando as formas jurídicas.

Num Estado Social e Democrático de Direito, é preciso falar na questão de

legitimidade das normas produzidas. Para o positivismo jurídico, a única legitimação

de que se pode falar é formal/procedimental. Em vista da mutabilidade e do contínuo

aumento do direito positivado, os implicados tendem a se ver satisfeitos apenas com

essa forma de legitimação, principalmente em casos em que o direito se vê combinado

com o dinheiro e o poder, como nas matérias de direito econômico, empresarial,

administrativo etc.

Não se pode esquecer que, de forma institucional, o direito não pode ser

legitimado apenas pelos critérios positivistas, formais/procedimentais, como é o caso

em que está em contato muito próximo com a moral, envolvendo o direito

constitucional e o direito penal.

Essa dicotomia de legitimação do direito como meio, em que os critérios

procedimentais/formais parecem ser suficientes, e o direito como instituição, em que

há necessidade de justificação de caráter ético/moral, mostra-se duvidosa em face do

intervencionismo estatal171. Temas e necessidades do cotidiano passam a ser satisfeitos

170 Idem. Ibidem, p. 515. 171 Idem. Ibidem, 516.

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por intermédio de um direito formal, o que pode redundar em coisificação dos

possíveis beneficiários, que passam a desempenhar sobretudo o papel de clientes da

burocracia.

A economia e o Estado, utilizando o direito como meio, apresentam-se cada

vez mais complexos, e com seu crescimento penetram cada vez mais profundamente

em componentes do mundo da vida como a cultura, a personalidade e a sociedade,

afetando sua reprodução e colonizando-os.

Esse fenômeno se apresenta não só em temas como proteção ao meio

ambiente, ao controle do risco nuclear, na proteção da intimidade etc. Também quando

se impõem regulações ao tempo livre, à cultura, às férias, ao turismo, à família etc. Aí,

enxerga-se a interferência sistêmica e sua juridicização por um processo

potencialmente deletério em que simplesmente as formas jurídicas não podem

legitimar a regulação que se avoluma.

2.4 A perplexidade da regulação nos marcos do Estado Democrático de Direito

2.4.1 Os limites do texto constitucional para a regulação

É lugar-comum na doutrina produzida nos últimos anos qualificar o

paradigma atual como o do Estado Regulador. Não raramente as expressões “Estado

de Direito” e principalmente “Estado Democrático de Direito” ficam em segundo

plano172. Isso assinala um deslocamento das posições e atenções do discurso que cerca

a atribuição de poderes normativos. Sobrepõem-se a capacidade de produção de

normas pelo Estado com vistas à obtenção de utilidades compensatórias,

especialmente por meio de entes reguladores, às garantias formais, procedimentais e

de legitimação do direito e da democracia.

O tema da regulação é marcado por superposições como as referidas no

parágrafo anterior. O cenário do texto constitucional, no entanto, não é favorável à

172 Percebe-se principalmente na bibliografia de direito econômico, como em CYRINO, André Rodrigues. Direito Constitucional Regulatório. Rio de Janeiro: Renovar, 2010, p. 38 e seg.

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crescente e irrefreável produção normativa por órgãos e autarquias do Executivo173.

Num rápido passar de olhos pela Constituição Federal, a legalidade e a tripartição de

poderes estreitam os limites de tal fenômeno. O princípio da legalidade pode ser

considerado um sobreprincípio, deixando suas marcas em todo o texto constitucional,

que lhe reserva sítios de positivação inegáveis, como o art. 5º, II e o art. 37, o que dá

lugar à assertiva incessantemente repetida pelos publicistas de que a Administração

está adstrita à lei174.

Não só a legalidade põe perplexidades para o espraiamento da regulação no

Executivo. O art. 84, IV, da Constituição Federal parece conferir ao Presidente da

República competência privativa para a expedição de decretos e regulamentos para fiel

execução de lei. Como então outras entidades incrustadas no Poder Executivo

poderiam exercer atividade semelhante?

Não se pode esquecer do art. 25 do Ato das Disposições Constitucionais

Transitórias, que revogou expressamente os dispositivos legais que atribuíam a órgãos

do Executivo poderes normativos. Tudo isso levanta sérias objeções sobre a

competência normativa de agências ou outras entidades do Poder Executivo e torna

movediço o tema.

173 A alusão à criação de órgãos reguladores pelo art. 21, IX (telecomunicações) e art. 177, §2º, III (petróleo, gás e minerais nucleares) e algumas outras referências laterais no texto constitucional mostram-se como argumentos de retórica e de conforto para a admissão do poder normativo de tais entes, que deriva de imperativos dos sistemas econômico e político. O assunto está desenvolvido no item 2.9. 174 É o que se depreende do seguinte trecho elaborado pelo Prof. Tércio Sampaio Ferraz (FERRAZ, Tércio Sampaio. O poder normativo das agências reguladoras à luz do princípio da eficiência. In: ARAGÃO, Alexandre Santos. O Poder normativo das agências reguladoras. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 276): Se olharmos a questão do ponto de vista da doutrina mais tradicional, haveria de reconhecer-se que, na configuração de tipos legais para atos normativos, a Administração está adstrita à Lei. Tanto que o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (art. 25) revogou, no prazo que determina, todos os dispositivos legais que atribuíssem a órgão do Poder Executivo competência assinalada pela Constituição ao Congresso, especialmente no que tange à “ação normativa”. Assim, por exemplo, embora no passado, à luz da Constituição, fosse possível sustentar que a imposição de penas administrativas pudesse resultar de regulamentos, na Constituição vigente trata-se de expressa competência do Congresso (art. 48), caput, cc. art. 24, I). Afinal, como observa Celso Bastos (Comentários à Constituição do Brasil, Saraiva, vol. 2º p. 31): ‘Quanto aos regulamentos delegados, encontráveis em alguns países, também eles não se amoldam ao nosso direito, porque se trata de transferir competência legislativa, o que só se pode fazer pela única via constitucionalmente aceita, que é a da lei delegada.’ E para expedição de regulamentos o que resta é apenas a competência privativa do Presidente da República (regulamento para a fiel execução de leis, art. 84, IV da CF). Nestes termos, a eventual competência conferida a órgãos administrativos para elaborar e aprovar ser regimento interno diz antes respeito ao próprio funcionamento, portanto a regras que disciplinam sua atenção no que diz respeito a seus membros e funcionários, não quanto a direitos dos administrados.

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2.4.2 O embate entre o Estado Democrático de Direito e a regulação

Uma visão clássica dos legados do Estado de Direito para o Estado

Democrático de Direito baseia-se nos princípios da legalidade, da isonomia e da

intangibilidade das liberdades públicas, expandidos em clima no qual se assegura a

certeza e a segurança do direito, conforme lições de Geraldo Ataliba175, assim como a

submissão à jurisdição.

Nessa ordem de ideias, o povo titulariza a res publica, realizando o governo

apenas a vontade do povo. Quando o povo ou o governo obedecem à lei, aquele está

obedecendo a si próprio; e este, àquele. Nesse paradigma reconhecem-se à lei as

características necessárias de abstração, isonomia, impessoalidade, generalidade e

irretroatividade176. O caráter de abstração e o de generalidade177 estão de tal forma

insculpidos na formação do pensamento jurídico que se projetam, mesmo que

impropriamente, como característica da norma jurídica178.

A lei seria, dentro de tal concepção, ato inaugural e primário, com poder

único de inovação na ordem jurídica emanada do Poder Legislativo, órgão vertical do

Estado e titular da representação popular por excelência.179 Além disso, a lei não

poderia ser suprida por nenhuma outra manifestação estatal, judiciária e

administrativa, o que redundaria na absoluta indelegabilidade de suas funções

verticais.

Todos os demais atos normativos, para serem dotados de força inovadora,

deveriam ser imediatamente infraconstitucionais como a lei, e essas normas seriam 175 ATALIBA, Geraldo. República e Constituição.São Paulo: Revista dos Tribunais, 1985, p. 93. 176 Idem. Ibidem, p. 97. 177 É o que se percebe do seguinte trecho (ROUSSEAU, Jean Jacques. Do contrato social. São Paulo: Martin Claret, 2002, p. 41): A matéria que se estatui é geral, como a vontade que estatui; eis o ato que eu chamo de lei. Quando digo que o objeto das leis é sempre geral, entendo que a lei considera os vassalos como corpo e as ações como abstratas, e nunca um homem como indivíduo nem uma ação particular. 178 Pode-se compreender melhor a observação com as seguintes lições do Prof. Tércio Ferraz (FERRAZ Jr., Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. São Paulo: Atlas, 4ª Ed., 2003, p. 121 e seg.): A nota de generalidade é um preconceito derivado da concepção de direito do século XIX, que identificou a norma jurídica com a lei. Ora, a lei contém um tipo de norma. É preciso reconhecer, porém, que é norma também a sentença do tribunal. [ ...] A nota da abstração também resulta de um preconceito do liberalismo do século XIX. Seria impossível, porém, deixar de considerar, por exemplo, como jurídica, uma norma que prescrevesse a revogação de determinada outra apenas porque seu conteúdo é concreto. O século XIX, com a noção de abstração, tentava contornar também o mencionado risco de arbítrio. 179 ATALIBA (Op. cit., p. 97).

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excepcionais e estariam listadas em numerus clausus do art. 59 da Constituição

Federal. As demais normas retirariam sua obrigatoriedade do fato de estarem contidas

nos preceitos legais, devendo-lhe manter absoluta fidelidade, mesmo no caso dos

regulamentos editados pelo Presidente da República para fiel execução das leis (art.

84, IV da CF). As normas administrativas obrigariam apenas aos servidores públicos,

só tendo efeito em relação aos cidadãos se apoiadas em lei180.

Sem dúvida, essa configuração de Estado de Direito se assenta em nobres

pressupostos, embora não se possa deixar de reconhecer que, após o advento do Estado

Social e com a complexificação da sociedade, o Congresso deixou de ser o ator

proeminente na edição de normas com poder de inovação na ordem jurídica, passando

a conviver com uma crescente produção de regras por entes situados no Executivo, que

quase sempre avançam no poder primário de vinculação dos administrados, que

deveria ser exclusivo da lei em função da fixação de parâmetros abertos181.

Embora constantemente se fale em observância dos limites legais182, não há

como considerar que se trata de uma situação confortável de validação normativa.

Como Tércio Sampaio Ferraz reconhece, trata-se de um caso de validação finalística

do ato administrativo, que será legítimo desde que alcance os objetivos estabelecidos

em lei de forma proporcional.183 A lei, nesse caso, comporta-se como lei-quadro,

fixando apenas limites que, em geral, são amplos e fluidos.

É precisamente pela dimensão da tarefa de demarcar o âmbito do exercício

do poder normativo dos entes reguladores e principalmente sua legitimidade e

justificação que se precisa de um instrumental que vá além da mera pertinência

procedimental/formal do princípio da legalidade.

180 Idem. Ibidem, p. 99. 181 Sobre a necessidade de competências regulamentares amplas, assim se manifesta Egon Moreira (MOREIRA, Egon Bockman. Os limites à competência normativa. In: ARAGÃO, Alexandre Santos. O poder normativo das agências reguladoras. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 187): O que há de inaugural em nosso ordenamento são competências regulamentares amplas e dinâmicas, criadas por lei e por ela limitadas, dirigidas à disciplina jurídica de setores econômicos onde há o forte exercício de poder econômico por parte dos respectivos agentes, adicionado de características dinâmicas (tecnológicas, econômicas, sociais etc.). Logo, tais competências devem ser simultaneamente mais largas e mais rápidas do que aquela de simples execução dos comandos legais, alcançando a origem de novas hipóteses e mandamentos normativos [...]. 182 É exemplo LOSS, Giovani. Os limites à competência normativa. In: ARAGÃO, Alexandre Santos. O poder normativo das agências reguladoras. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 167. 183 FERRAZ, Tércio Sampaio. O poder normativo das agências reguladoras à luz do princípio da eficiência. In: ARAGÃO, Alexandre Santos. O Poder normativo das agências reguladoras. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 283.

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2.4.3 O conflito entre o princípio da legalidade e a atividade regulatória

O garantismo esboçado no item anterior com os princípios típicos de Estado

de Direito e Estado Liberal está esgarçado e tem duvidosa capacidade de rendimento

nos seus objetivos, porque a sociedade complexa constrói âmbitos especializados que

demandam normalização e regulação constante e permanente, que não pode ser

atendida pelo Poder Legislativo.

Em verdade, o apego ao princípio da legalidade vale como denúncia dos

riscos e perigos de uma desenfreada atividade regradora. A legalidade é um princípio

que densifica a preocupação com isonomia e liberdade. As incessantemente referidas

características da lei se vinculam a isso.

A generalidade e a impessoalidade se justificam como formas de garantia

de isonomia pela abrangência ampla da incidência da lei e sua destinação inespecífica,

possibilitando que a lei se transforme em parâmetro de igualdade entre os cidadãos. De

igual modo, a abstração encontra seu fundamento na liberdade, já que comandos

vazados numa linguagem distante da concreção permitiriam a manutenção de um

âmbito de escolhas para os cidadãos.

Por isso, não é apenas a legalidade que está sob ataque. Junto com ela

padecem vários princípios republicanos, dado que a atividade regulatória subverte toda

essa preocupação garantista. As normas editadas por entidades reguladoras põem em

cena novas categorias e características. Não se pode mais falar em generalidade, e a

impessoalidade e a abstração ganham outro significado.

As normas oriundas da regulação não são de modo algum genéricas, pois os

seus destinatários são pessoas que atuam num mercado específico. Aliás, a

especialidade da regulação lê os seus destinatários como papéis sociais, tais como o de

fornecedor de produtos e serviços e consumidor de um mercado delimitado.

Tampouco a impessoalidade e a abstração mantêm seu sentido originário. A

impessoalidade significa não mais garantia de isonomia, mas uma relação do cliente

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com a burocracia. A abstração não se vincula à liberdade. Muito ao contrário, remete a

uma submissão a uma linguagem especializada de conteúdo técnico-científico. Aliás, a

necessidade de tipificação, com base em linguagem técnica de vivências que

pertencem a uma biografia e a uma forma concreta de vida constitui uma coisificação

do indivíduo. À concretude das necessidades do cidadão sobrepõe-se a necessidade

que tem a Administração de agrupar os casos que lhe são submetidos para apreciá-los

e, então, manifestar-se sobre o fornecimento de serviços e utilidades.

É uma completa subversão. O problema é que a legalidade, nesse cenário,

está sobrecarregada. Não há como estabelecer filtros de validade das normas

regulatórias apenas nos moldes da legalidade clássica. Metaforicamente seria uma

tarefa semelhante a verter um oceano numa piscina.

Um estudo sobre regulação não pode ignorar essa conflituosidade. Por isso,

não faz sentido abordar a regulação e a produção de normas pelo Estado apenas a

partir de sua validade jurídica formal. Pouco contribuiria para o entendimento do tema

abordá-lo sob a perspectiva de pertinência das normas a um sistema jurídico. Ao lado

da distribuição constitucional e juridicamente legítima de poderes está uma alocação

de fato de poderes que inegavelmente tem sérias consequências jurídicas e não pode

ser incorporada ao ordenamento jurídico apenas a partir de critérios formais e

procedimentais, sob pena de evidente déficit de legitimidade e principalmente de

esvaziamento de vários princípios jurídicos basilares do Estado Democrático de

Direito.

A efetiva alocação da produção de normas com sentido autônomo e

primário não se mostra clara, já que a fixação de amplos limites para a validação do

poder normativo dos entes reguladores não garante por si só legitimar a produção

administrativa de regras. Inegavelmente, há um amplo campo de penumbra em que

pode ocorrer uma efetiva usurpação desse poder por diversos níveis de autoridades e

uma dispersão dessa função. Cabe até mesmo falar, no presente caso, de uma

microfísica do poder, que principalmente em razão de seus efeitos deletérios deve ser

enfrentada a partir de seu potencial efetivo de coerção184.

184 Esse é um tema trabalhado por Foucault, como se pode perceber de sua obra Microfísica do poder. Org. e trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2004.

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A abordagem crítica a ser empreendida tem inequivocamente caráter

sociológico e histórico, tendo como vantagens teóricas, nas palavras de Antônio

Hespanha, a produção de um conhecimento crítico, distanciado e controlado dos

mecanismos legislativos, reduzindo este efeito ideológico que consiste em crer tanto

na sua [da lei] predominância como na inevitabilidade desta [da lei].185

A irrupção de forças que remetem ao dito Estado Regulador evidentemente

implica deslocamento do eixo de produção normativa por parte do Poder Público,

passando a atividade legislativa a concorrer com uma massa de atos administrativos

normativos. Acompanha essa mudança de ênfase um incremento de risco de exercício

ilegítimo do poder de coerção organizado do Estado. Isso, sem dúvida, remete a uma

análise da regulação como um fenômeno de instrumentalização do direito, com

potencial efeito deletério, em razão de seus pressupostos políticos, econômicos e

técnicos.

2.5 O deslocamento do poder de produção normativa

A abordagem conjuntamente política e jurídica pode oferecer uma

perspectiva com elevado potencial de rendimento para a crítica de fenômenos

jurídicos, especialmente a regulação. É um legado da Modernidade a simbiose entre os

fenômenos sociais de natureza jurídica e política186. Daí que o enfrentamento crítico do

tema, buscando enfatizar esses dois aspectos, não procure apartá-los.

Ademais, ante os conflitos, perplexidades, complexidade e

multidimensionalidade que cercam a regulação, abordá-la criticamente como etapa

para sua reconfiguração em termos jurídicos exige acuro teórico. A questão que se

coloca neste momento do trabalho é qual abordagem adotar. Enfrentar a regulação só a

partir de cada uma de suas facetas traz o risco da superficialidade e de um possível

185 HESPANHA, A. M. Lei e justiça: história e prospectiva de um paradigma. In: HESPANHA, A. M. Justiça e litigiosidade: história e prospectiva. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993, p. 29. 186 Ver LUHMANN, Niklas. La costituzione come acquisizione evolutiva. In: ZAGREBELSKY, Gustavo et alli. Il futuro della costituzione. Turim: Giulio Einaudi, 1996, pp. 85 e 86.

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excessivo fracionamento do tema. Desta feita, explica-se a opção por adentrar na

regulação a partir da configuração de diferentes paradigmas de Estado, encarando-a

como um jogo discursivo que deita raízes na definição conflituosa do local

socialmente privilegiado para a produção normativa. É uma perspectiva genealógica,

de formação do discurso sobre a regulação, que não exclui algumas preocupações

funcionalísticas/sistêmicas. Muito ao contrário, pressupõe-nas.

2.5.1 A gênese da regulação

Nesse sentido, a regulação é fruto de um deslocamento discursivo. É

preciso, de antemão, fugir de uma ingenuidade. Não há sentido algum em procurar a

origem exata da regulação, o momento fundante do seu aparecimento. Nas palavras de

Foucault, a genealogia é cinza; ela é meticulosa e pacientemente documentária. Ela

trabalha com pergaminhos embaralhados, riscados, várias vezes reescritos187.

Com base em Nietzche, Foucault fala na recusa da pesquisa de origem

(Ursprung). Procurar a essência exata da coisa, sua apresentação na mais pura

possibilidade, sua identidade imutável e anterior a tudo que é acidente e externo é

acreditar na metafísica, e não na história. A essência188 é construída peça por peça com

elementos originariamente estranhos. Na raiz das coisas não está a identidade, mas a

discórdia e o disparate. Por isso, a história ensina também a rir das solenidades da

origem189.

A alta origem reside no conforto de acreditar que as coisas na sua aurora se

encontravam em estado de perfeição. O drama é que o começo histórico é irônico, ao

se desfazerem todas as cadeias factuais. Não está aí uma sede de verdade, que remete a

um não poder ser refutada pela longa maturação da história com a sua inalterabilidade.

Daí que o genealogista necessite da história para conjurar a quimera da origem,...190

187 FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Org. e trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979, p. 15. 188 Heidegger ressalta que a essência é duração (HEIDEGGER, Martin. Ensaios e conferências. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 33). 189 FOUCAULT (Op. Cit., p. 18). 190 Idem. Ibibem,p 19.

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A genealogia se entende melhor a partir de termos como proveniência

(Herkunft) e emergência (Entestehung). Proveniência (Herkunft) remete ao tronco de

uma raça. Não se trata, no entanto, de encontrar um indivíduo que expresse esse

pertencimento. Ao contrário, cuida-se de desvelar sutilezas e singularidades que

formam uma rede de difícil desembaraçamento. Assim, lá onde se pretende a

unificação, a construção de uma identidade ou coerência, o que aparece é uma miríade

de acontecimentos entrelaçados.

Caracteriza-se uma inversão do sentido tradicional de história, e esta não é a

única. É o que assinala Foucault:

Em certo sentido a genealogia retorna às três modalidades da história que Nietzsche reconhecia em 1874. Retorna a elas superando objeções que ele lhes fazia em nome da vida, de seu poder de afirmar e criar. Mas retorna a elas, metamorfoseando-as: a veneração dos monumentos torna-se paródia; o respeito às antigas continuidades torna-se dissociação sistemática; a crítica das injustiças do passado pela verdade que o homem detém hoje torna-se destruição do sujeito de conhecimento pela injustiça própria da vontade de saber.

Recusa-se uma evolução da espécie ou de um povo. Na genealogia, não se

pode deixar de demarcar os acidentes, os desvios, as inversões, os erros e as falhas que

casualmente deram nascimento ao que existe e tem importância para nós. É preciso pôr

em suspenso a vontade de verdade do conhecimento e encarar a exterioridade do

acidente. Trata-se de enxergar na história as fissuras e as camadas heterogêneas.

Recusa-se um ato fundacional, optando-se por mobilidade e fragmentação.

O acontecimento na história não é uma simples batalha, um tratado, uma

decisão etc. É, de fato, uma relação de forças que se inverte, um poder confiscado,

uma dominação que se enfraquece e outra que se apresenta. A marca do acontecimento

não está numa unidade teleológica, racional ou num destino. Está no acaso do jogo, na

sua unicidade e na sua agudeza.

De outro lado, a emergência (Entestehung) não pode ser tomada por um

termo final. Ela é a entrada em cena das forças, sua irrupção, o salto pelo qual elas

passam dos bastidores para o teatro, cada uma com seu vigor e sua própria

juventude191. Vinculado a ela está um lugar, ou melhor, um “não lugar”, já que o

enfrentamento dos adversários não ocorre no mesmo espaço. A emergência ocorre no

interstício.

191 Idem. Ibidem, p. 24.

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Para o filósofo francês, a peça que se representa nesse teatro, que é um não

lugar, é sempre a mesma. Nas suas palavras:

Em certo sentido, a peça representada nesse teatro sem lugar é sempre a mesma: é aquela que repetem indefinidamente os dominadores e os dominados. Homens dominam outros homens e é assim que nasce a diferença de valores; classes dominam classes e é assim que nasce a ideia de liberdade; homens se apoderam de coisas das quais eles têm necessidade para viver, eles lhes impõem uma duração que elas não têm, ou eles as assimilam pela força – e é o nascimento da lógica. Nem a relação de dominação é mais uma ‘relação’, nem o lugar onde ela se exerce é um lugar. E é por isso precisamente que em cada momento da história a dominação se fixa em um ritual; ela impõe obrigações e direitos; ela constitui cuidadosos procedimentos192.

Nem mesmo as regras inibem esse jogo. As regras se estabelecem num

cenário de poder e violência potencial. Há uma disputa pelo apoderamento das regras,

em que aquele que se introduzir nos aparelhos complexos da sociedade possa fazê-los

funcionar, de modo que os dominadores encontrar-se-ão dominados por suas próprias

regras193. É o que se percebe claramente no poder de produção normativa, em que a

função de legislar, produzindo normas autônomas e com sentido primário, desloca-se

na distribuição estatal dos poderes para os entes reguladores.

O direito não pode abordar a sociedade a partir de uma perspectiva de mera

dominação. A coerção jurídica não pode operar como mera força, objeto de disputas.

A análise aqui empreendida denuncia uma relevante preocupação. O deslocamento de

um poder de produção normativa levanta questões. Não pode um ente estatal deter

competências com indagações que deixam sua legitimidade numa zona cinzenta. Por

isso, uma preocupação central em relação à regulação é a busca de canais de

justificação e limitação efetiva de seus amplos poderes.

2.5.2 Soberania e poder disciplinar

É possível entender a regulação a partir de duas categorias dentro das quais

se reúnem séries de acontecimentos que permitem vislumbrar um iter na distribuição

de poderes pretensamente legítimos na sociedade. Na visão de Foucault, opõem-se

dois grandes sistemas de estudos do poder. Um primeiro tem raízes nos sistemas dos

192 Idem. Ibidem, p. 25. 193 Idem. Ibidem. p. 26.

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filósofos do século XVIII. O contrato seria a matriz do poder político, em que os

indivíduos o cederiam para constituir uma soberania194. A opressão estava no

rompimento de um acordo, na ultrapassagem de seus limites. Uma segunda forma de

exercício de poder baseava-se na repressão não mais como desrespeito a um contrato,

mas, ao contrário, como simples continuação de dominação195 pelo poder disciplinar.

No entanto, nas sociedades ocidentais o poder não se apresenta

isoladamente. Ele encontra dois pontos de referência e dois limites: as regras de

direito, que o delimitam formalmente; e os discursos de verdade, que o poder produz e

que se reconduzem a ele mesmo. Poder, direito e verdade formam um triângulo.

O poder questiona, inquire, registra incessantemente para institucionalizar e

profissionalizar a busca da verdade. É por meio da produção da verdade que se geram

riquezas. As formas jurídicas e suas regras, conjugadas a discursos de verdade,

determinam julgamentos, condenações, classificações, tarefas, modos de vida etc.

Portanto, regras de direito, mecanismos de poder, efeitos de verdade. Ou ainda:

regras de poder e poder dos discursos verdadeiros.196

Na visão de Foucault, há um princípio geral que estruturou esse jogo entre

direito, política e verdade: o de que, desde a Idade Média, a elaboração do pensamento

jurídico fez-se essencialmente sobre o poder do rei. Inicialmente, a seu pedido e em

seu proveito, como instrumento ou justificação. O direito romano e o direito canônico

permitiram construir instrumentos técnicos para constituir o poder monárquico, sua

autoridade e sua Administração.

Foi esse mesmo edifício jurídico que, nos séculos seguintes, escapou ao

controle do poder régio e se voltou contra ele, mas o tema continuou a ser os limites e

as prerrogativas desse poder. Sejam os juristas servidores do rei ou seus adversários, o

tema é sempre o poder régio, ou mais amplamente, a soberania197. Desde a Idade

Média, uma das principais preocupações da teoria do direito é explicar sua

194 Nas palavras de Jellinek: no mundo antigo faltava, com efeito, a única coisa que poderia levar a conceber essa noção de soberania: a oposição entre o poder político e outros poderes [Igreja, Império e grandes corporações no Estado] (JELLINEK, Georges. L’État moderne et son droit. Trad. Georges Fardis. Paris: M. Giard & É. Brière, 1913, p. 79). 195 FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Trad. Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 24 e seg. 196 Idem. Ibidem, p. 29. 197 Idem. Ibidem, p. 30

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legitimidade, dissolvendo, no cerne do poder, sua dominação, fazendo aparecer as

prerrogativas justas da soberania e o dever de obediência. Centrar-se na soberania quer

dizer afastar e encobrir a dominação.

Em que pese o caráter de unicidade propalado em torno da soberania, a

dominação não se exerce de uma posição central, mas entre os súditos, entre as

autoridades. Não se trata de um edifício jurídico uno, mas de múltiplas sujeições que

se apresentam no corpo social. Não há como negar que subjacente a todas as questões

de legitimidade do direito e de suas instituições está a coerção. Não basta analisar as

formas regulares e legítimas do poder a partir de seu centro. É preciso captar o poder

em suas ramificações e em sua capilaridade.

Uma segunda advertência deve ser seguida: não há sentido em analisar o

direito e o poder a partir de um plano ideal de intenção, de decisão ou de

racionalidade, mas sim de ver como as coisas funcionam no nível do processo de

sujeição. É preciso inverter a ótica sobre o Leviatã. Não se pode cuidar apenas das

forças centrífugas do medo e centrípetas da ânsia pelo poder que resultam no soberano.

A atenção deve-se dirigir para os corpos periféricos.

Uma terceira precaução deve ser tomada: não se pode vislumbrar o poder

como dominação maciça e homogênea entre indivíduos ou mesmo grupos. O poder é

algo que circula, funciona em cadeia, em rede. O poder passa pelos indivíduos que

podem ser considerados centros de transmissão. Nessa linha, o indivíduo é um efeito

do poder e é, ao mesmo tempo, na medida em que é um efeito seu, seu intermediário: o

poder transita pelo indivíduo que ele constituiu 198.

Uma quarta advertência é a de que o poder não deve ser objeto de uma

análise dedutiva, do centro para a periferia. O caminho é inverso. Cuida-se de uma

análise ascendente, de analisá-lo de suas ramificações mais baixas até as de cima,

mostrando como o poder pode ser anexado por fenômenos globais, como por exemplo

o lucro da economia.

Uma quinta precaução é enxergar que as grandes máquinas de poder

possivelmente se fizeram acompanhar de ideologias. Entretanto, na base o que se

forma são métodos de observação, técnicas de registro, procedimentos de inquérito, de

198 Idem. Ibidem, p. 35.

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pesquisa etc. O poder se exerce também em mecanismos sutis que são aparelhos de

saber.

Com essas precauções, pode-se dizer que a teoria política da soberania

desempenhou quatro papéis. Antes de mais nada, referiu-se a um poder efetivo, o do

monarca feudal. Em segundo lugar, foi instrumento e justificativa para a constituição

de grandes monarquias administrativas, absolutistas. Em terceiro lugar, a partir dos

séculos XVI e XVII, na época das guerras religiosas, a teoria da soberania circulou

entre monarquistas e antimonarquistas, para reforçar ou limitar o poder real. Por

último, já em Rousseau e seus contemporâneos, construiu-se um modelo alternativo

contra essas monarquias, o das democracias parlamentares. A partir desses quatro

papéis, pode-se dizer que, no período feudal, a relação de soberania recobria a

totalidade do corpo social, podendo, ao menos no essencial, o poder ser explicado em

termos de relação soberano-súdito.

Nos séculos XVII e XVIII surgiu uma nova mecânica de poder,

incompatível com o foco exclusivo nas relações de soberania. Essa nova mecânica

incide primeiro sobre os corpos e sobre o que eles fazem, mais do que sobre a terra e

sobre seu produto199. Esse mecanismo permite extrair mais tempo e trabalho do que

bens e riqueza. O poder se exerce continuamente por vigilância e não

descontinuamente por impostos. Seu pressuposto é uma trama cerrada de coerções

materiais que vai muito além da existência física de um soberano. Define-se uma nova

economia, baseada no crescimento das forças sujeitadas e na eficácia do que as sujeita.

Dito de outro modo, a teoria da soberania está muito mais vinculada a um

poder que se exerce sobre a terra e seus produtos do que sobre corpos e condutas. Ela

se refere à extração e à apropriação de bens e da riqueza, e não do trabalho e de sua

organização. O poder político funda-se na existência física de um soberano, e não em

sistemas permanentes de vigilância. O poder dito absoluto pode encontrar respaldo no

gasto irrestrito, mas é incapaz de calcular o poder com um gasto mínimo e uma

eficiência máxima, como ocorre no poder disciplinar200.

199 Idem. Ibidem, p. 42. 200 Idem. Ibidem, p. 43.

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O novo tipo de poder que é indescritível em termos de soberania por sua

heterogeneidade é o poder disciplinar, uma das grandes inovações da sociedade

burguesa. Ao contrário do poder feudal, que se baseava fundamentalmente na

apropriação e na retirada de bens, o poder disciplinar tem como função precípua

“adestrar”, mas justamente para se apropriar mais e melhor201.

Ele não contém as forças. Procura conectá-las para multiplicá-las num todo

utilizável. Trabalha as massas e as multidões separando-as, analisando-as,

diferenciando-as, para submetê-las em singularidades necessárias e suficientes para a

produção. Na disciplina fabricam-se indivíduos e individualidades, objetivando-os e

transformando-os em instrumentos.

Ao contrário da soberania que se exerce triunfante e evidente, o poder

disciplinar não precisa de excessos. Exerce-se permanentemente, de forma calculada,

em procedimentos menores e se funda em práticas de vigilância, hierarquia e de

constante controle, exame. Para se tornar visível, essa modalidade de poder depende

de meios de coerção claramente identificáveis para quem se lhes aplica.

Essa vigilância permanente, contínua e funcional não é uma grande

inovação técnica do século XVIII, mas sua extensão social, que acompanhou a

industrialização ligando-se à economia e a seus dispositivos de inspiração mecânica. A

ordem passou a ser, de tal modo, a de um poder múltiplo, automático e anônimo,

tecendo uma rede de relações em diversas direções (de alto a baixo, de baixo para cima

e lateralmente), podendo-se falar em fiscais permanentemente fiscalizados202. Se é fato

a existência de um chefe, é o aparelho inteiro que produz o poder e o distribui entre os

indivíduos203, as individualidades e seus papéis de forma contínua.

201 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Trad. Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 1987, p. 143. 202 Idem. Ibidem, p. 148. 203 A abordagem funciona e destaca a distribuição de poder, dando ênfase às organizações (LUHMANN, Niklas. Political Theory in the Welfare State. Trad. John Bednarz Jr.. Berlim/Nova Iorque, Walter de Gruyter, 1990, p. 161): Hoje qualquer aumento, diversificação e refinamento de poder depende de organizações formais. Isso é notavelmente verdade no caso do desenvolvimento de longas e mais permanentes cadeias de poder, para indiretas formas do seu uso na direção do exercício de poder por outros e pelo incremento de sua efetividade no sentido de que com uma decisão uma pessoa pode engatilhar várias decisões resultantes que, individualmente, não podem ser antecipadas, mas que são, no entanto, essencialmente conectadas à primeira. Claro, para estabelecer interconecções dentro de organizações e ao longo de suas linhas de comando, ainda se podem encontrar mecanismos de dominação pessoal. Isso não pode ser negado nem subestimado. Entretanto, eles são guiados pela lógica da organização e permanecem dependentes na ocupação de posição dentro delas.

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De algum modo se pode dizer que o poder disciplinar está em toda a parte e

sempre alerta, embora discreto por funcionar permanentemente e em silêncio. As

técnicas de controle e vigilância, a física do poder204, lhes permitem pelo cálculo e

pelas regras (normatização ou normalização) não recorrer, em princípio, ao excesso da

força e da violência.

Por meio das disciplinas, reforça-se o poder da norma, da normalização

social. O normal se estabelece mesmo como princípio de ensino205. Assim como a

vigilância, a regulamentação passa a ser contemporaneamente um grande instrumento.

Os status, os privilégios e o parentesco vão-se substituindo por filiação a uma

homogeneidade social, de acordo com classificações, hierarquizações, situações etc. O

regramento, ao tempo em que uniformiza, permite medir desvios, níveis,

especialidades, utilidades e seus ajustes. A normalização pode, inclusive, funcionar

dentro de um sistema de igualdade formal com a distribuição de graduação de

diferenças individuais.

Com isso, as disciplinas podem controlar multiplicidades humanas com

base em três critérios: desonerar o exercício do poder, diminuindo suas despesas; por

sua fraca exteriorização, suscitar pouca resistência; e estender o poder social ao

máximo de intensidade e tão distante quanto possível, sem lacunas evidentes.

Isso possibilita uma economia completamente diversa com base em

mecanismos de poder que, no lugar de retirar ou deduzir, integram-se à eficácia

produtiva dos aparelhos e ao seu crescimento. As disciplinas permitem substituir o

antigo princípio de “retirada-violência” pelo “suavidade produção-lucro”206. São

técnicas que permitem agregar indivíduos e individualidades e multiplicar os aparelhos

de produção.

Historicamente, a burguesia tornou-se, no século XVIII, a classe dominante,

instalando um quadro jurídico explícito, codificado, baseado na igualdade formal e

organizado com base num regime parlamentar e representativo. Como ressaltado, a

generalização dos dispositivos disciplinares constituíram uma outra vertente obscura

de tal processo. Ao mesmo passo que o regime representativo possibilita a formação

204 FOUCAULT (Op. cit., p. 148). 205 Idem. Ibidem, p. 153. 206 Idem. Ibidem, p. 180.

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idealizada de uma vontade geral, as disciplinas na base garantem a submissão das

forças e o seu disciplinamento utilitário.

As disciplinas formam sistemas de saberes e práticas que distribuem

assimetricamente o poder na sociedade. Enquanto os sistemas jurídicos procuram a

universalidade e a isonomia, as disciplinas caracterizam, classificam, especializam;

distribuem ao longo de uma escala, repartem em torno de uma norma, hierarquizam e

situam indivíduos e individualidades207.

À extensão universal dos direitos de uma soberania popular fracionada

corresponde, nas disciplinas, um panoptismo208 difundido em toda a parte que faz

funcionar, ao arrepio do direito, uma maquinaria ao mesmo tempo imensa e

minúscula que sustenta, reforça, multiplica a assimetria dos poderes209. Ainda nas

palavras de Foucault:

A extensão dos métodos disciplinares se inscreve num amplo processo histórico: o desenvolvimento mais ou menos na mesma época de várias outras tecnologias – agronômicas, industriais, econômicas. Mas temos que reconhecer, ao lado da indústria mineira, da química que nascia, dos métodos de contabilidade nacional, ao lado dos altos-fornos ou da máquina a vapor, o panoptismo foi pouco celebrado210.

De fato, a soberania continuou a existir na teoria jurídica como fundamento

basilar das constituições. Isso se explica porque a teoria da soberania foi adotada como

instrumento de crítica e proteção contra o monarca e o poder absoluto e todos aqueles

que se opuseram ao poder disciplinar. Em segundo plano, a adoção da teoria da

soberania em termos democráticos e populares encobria os sistemas de dominação e

disciplina com a dispersão de direitos.

Assim, como legado, temos nas sociedades contemporâneas, a partir do

século XIX, o discurso jurídico, cujo direito público articula-se em torno do princípio

da soberania do povo, enquanto uma trama cerrada de coerções disciplinares garante a

207 Idem. Ibidem, p. 183. 208 O panoptismo pode ser entendido a partir de uma extensão metafórica do panóptico de Bentham que é descrito por Foucault (Idem. Ibidem, p. 165): “O Panóptico de Bentham é a figura arquitetural dessa composição. O princípio é conhecido: na periferia uma construção em anel; no centro, uma torre; esta vazada de largas janelas que se abrem sobre a face interna do anel; a construção periférica é dividida em celas, cada uma atravessando toda a espessura da construção; elas têm duas janelas, uma para o interior, correspondendo às janelas da torre; outra que dá para o exterior, permite que a luz atravesse a cela de lado a lado. Basta então colocar um vigia na torre central, e em cada cela trancar um louco, um doente, um condenado, um operário ou um escolar...” 209 Idem. Ibidem, p. 184. 210 Idem. Ibidem, p. 185.

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coesão desse mesmo corpo social. O exercício do poder acontece entre esses dois

limites heterogêneos.

As disciplinas têm um caminho próprio. Criam aparelho de saber e

conhecimento. Seu discurso não é o do direito baseado na soberania popular. É o da

regra, o da norma, que se apoia na natureza, na ciência. Em Foucault:

[...] Que, atualmente, o poder se exerça ao mesmo tempo através desse direito e dessas técnicas, que essas técnicas das disciplinas, que esses discursos nascidos da disciplina invadam o direito, que os procedimentos da normalização colonizem cada vez mais os procedimentos da lei, é isso, acho eu, que pode explicar o funcionamento global daquilo que eu chamaria uma ‘sociedade de normalização’. Quero dizer, mais precisamente, isto: eu creio que a normalização, as normalizações disciplinares, vêm cada vez mais esbarrar contra o sistema jurídico da soberania; cada vez mais nitidamente aparece a incompatibilidade de umas com o outro; cada vez mais é necessária uma espécie de discurso árbitro, uma espécie de poder e de saber que sua sacralização científica tornaria neutros. [...]

Esse excurso teórico permite vislumbrar a rota da distribuição de poderes

normativos a partir da irrupção das forças burguesas. Ao mesmo tempo em que se

ressignificava a soberania, deslocando-a da figura do monarca, na base social

espalhava-se um poder disciplinar que classificava, criava novas individualidades e as

normalizava.

A regulação é apenas a emergência de uma forma de poder disciplinar que

invade o discurso jurídico para suprir suas necessidades de normalização da atividade

econômica com o intuito de incrementar a produção e a alocação social de bens e

serviços, legitimando o poder político por meio de prestações materiais com

equivalentes em dinheiro e se apoiando em discursos técnico-científicos de verdade.

Com o fenômeno regulatório surge nova configuração social e jurídica. Ao

modelo liberal que se centrava num mercado e na soberania opõe-se, com a regulação,

a emergência de mercados e de entes autônomos e independentes para regulá-los. A

demanda por bens e serviços, típica do Estado Social, levou o Estado a delimitar

mercados para controlá-los num panoptismo baseado na impessoalidade e na

independência dos agentes reguladores. Nesse sentido, o Estado Regulador impõe que

se fale em mercados211 e se reconheça sua ubiquidade212. Para propiciar um

211 É o que se depreende do título da obra de PINHEIRO, Armando Castelar & SADDI, Jairo. Direito, economia e mercados. São Paulo: Campus, 2005. Na página 362 expõe-se o critério usual no direito da concorrência para delimitação dos mercados: A definição do mercado relevante tem duas dimensões, uma de produto e outra geográfica. A primeira consiste em definir quais são os bens ou serviços que são substitutos próximos do produto comercializado pelas empresas envolvidas. A identificação de produtos substitutos usualmente se centra

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acompanhamento da economia, houve de antemão um loteamento da economia a partir

de produtos e serviços considerados essenciais para a manutenção das compensações e

redistribuições típicas do Estado Social, e há um permanente e potencial critério de

fracionamento de mercados, o de mercado relevante, funcionando como base para o

exercício de um poder disciplinar na economia pelas autoridades de defesa da

concorrência e regulatórias.

À soberania que se apresentava num poder uno, tripartido em funções

equilibradas por freios e contrapesos, contrapõe-se um novo discurso, que enfatiza a

autonomia e a independência213 de entes reguladores que acumulam as diversas

funções de normatizar, julgar e administrar214. No âmbito das agências reguladoras, a

soberania não mais pode ser abordada a partir das categorias do constitucionalismo

clássico. O conteúdo das normas regulatórias não mais advém de uma vontade geral da

no lado da demanda, procurando medir a elasticidade de substituição entre eles, para avaliarem em que medida os consumidores trocariam um produto pelo outro no caso de ‘um pequeno mas significante aumento transitório’ do preço do produto em questão, mantidas constantes as condições de venda de todos os demais produtos. Se dois produtos têm um elevado grau de substituição entre si, devem ser considerados como pertencentes a um mesmo mercado. A segunda dimensão relevante para a definição do mercado relevante é a geográfica. Esta busca avaliar o grau em que existem concorrentes próximos em tamanho e condições capazes de coibir o exercício de poder de mercado pela nova empresa, tornando pouco interessante para esta promover um aumento pequeno mas significante e não transitório de preço. [..] Dessa forma, ela considera o grau de substituição pelo lado da oferta. 212 Isso fica muito claro no seguinte trecho (BRUNA, Sérgio Varella. Agências reguladoras: poder normativo, consulta pública, revisão judicial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 27): Por tal motivo, pode-se afirmar que todos os mercados são regulados, variando somente a intensidade dessa regulação. [...] Em todos os campos da atividade econômica, as relações de mercado desenvolvem-se de acordo com um arcabouço institucional de maior ou menor abrangência, do qual participam, dentre outras, as normas relativas à propriedade, aos contratos, aos impostos etc. 213 Essa ideia está desenvolvida em MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Direito Regulatório. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 159: Quanto à autonomia, embora se deva reconhecer que se trata de um conceito polissêmico, como tantos outros no Direito, parece suficiente lembrar que, no caso das agências reguladoras, além das tradicionais características autonômicas de que gozam as autarquias, em geral, há essa outra e com nova dimensão de autodeterminação que resulta da abertura, pela lei, de um espaço decisório deslegalizado em seus respectivos setores de atuação. Fenômeno semelhante ocorre na França (LINOTTE, Didier & ROMI, Raphaël. Droit Publique Économique. Paris: Litec, 2006, p. 138): A atribuição de personalidade jurídica às últimas autoridades de regulação é o sinal da emergência de um novo modelo que poderia ser coexistente com o modelo “antigo” das AAI ou substituí-las paulatinamente. Trata-se de uma escolha explicita intermediária entre a solução precedente e a da juridicionalização. A concessão da personalidade jurídica é constitutiva de uma independência mais afirmada, e dá certamente uma maior legitimidade às instâncias que dela são dotadas, mesmo se essa independência pudesse ser ainda mais construída. 214 Essa ideia está presente nesta citação (BALDWIN, Robert & CAVE, Martin. Understanding regulation – theory, strategy and practice . Nova Iorque: Oxford, 1999, p.69): Agências reguladoras são corpos que agem em nome do governo central, mas não são Departamentos do Estado Central. Um de seus pontos fortes, como instituições, é a capacidade de combinar funções governamentais. Eles geralmente decidem disputas entre partes, promulgam regras e aplicam essas regras.

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nação, presumida a partir da representação parlamentar, mas de grandes fissuras aí

abertas.

Algo semelhante ocorre com a teoria da tripartição de poderes. Para

sustentar a ideia de que a soberania estava no povo, e não no Estado, seus poderes

foram fracionados como forma de proteger os cidadãos do arbítrio. Diante de um

discurso fortemente apoiado na busca de eficiência, a divisão de poderes do

constitucionalismo clássico215 cede espaço a um exercício legiferante e inquisitorial do

poder das entidades administrativas, como forma de fazê-las mais presentes no

controle da economia e no seu direcionamento para fins fixados pelo Estado.

O dito “Estado Regulador” revela o escanteamento da soberania popular.

Sua emergência é a irrupção de uma dominação burocrática autônoma e independente,

à qual se reservam expressivos âmbitos de atividade normativa e de sua aplicação com

medidas coercitivas. Com as agências reguladoras formam-se novos corpos sociais

como locais privilegiados para o exercício do poder disciplinar por meio da

conjugação das três funções típicas do Estado, sob as vestes do direito e da verdade

dos saberes técnico-científicos.

Há um distanciamento da preocupação com a legitimação política por

normas de conteúdo morais e valores, deslocando-se para uma preocupação com a

manutenção de atividades de produção e distribuição de bens e serviços, dentro das

quais o regramento e a normatização constituem etapas essenciais, não só para a

estabilização da eficiência nas relações econômicas, mas principalmente para a

designação de oportunidades econômicas para os agentes regulados. A confluência de

poderes oriundos da soberania estatal, esmaecida, e de um poder disciplinar sobre os

mercados, resulta na regulação com um elevado poder de normatização, apoiado na

sólida base de um plano formado por poder, direito e discursos de verdade com

elevado potencial de coerção e déficit de legitimação.

215 O constitucionalismo teve sua marcha marcada pela divisão de poderes e a soberania como se vê no seguinte excerto: FIORAVANTI, Maurizio. Costituzione. Bolonha: Il Mulino, 1999, p. 101: A situação no último quarto do século XVIII poderia ser representada nos seguintes termos: de uma parte a tradição constitucionalista do poder limitado, de outra a nascente afirmação de recolocar em discussão a forma política, e aquela mesma tradição, a partir do povo, que no caso de Rousseau era sem meio termo definido como soberano.

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2.6 Regulação e economia

A essência do capitalismo de mercado é que os agentes individuais possam

tomar as próprias decisões. Em todas as economias de mercado, o governo apresenta-

se como ator relevante, definindo, entre outras coisas, tributos, investimentos públicos

e a disponibilidade monetária. Nesses casos, as decisões governamentais têm

influência sobre o comportamento dos agentes de mercado, mas não são uma limitação

direta que impõe limitações precisas de escolha.

No papel de regulador, a marca da atuação estatal é procurar atuar

diretamente sobre a tomada de decisão dos agentes de mercado, valendo-se de seu

poder coercitivo. A regulação econômica dirá respeito à formação de preços e à

entrada e à saída de mercados216. Num mercado regulado, a performance de eficiência

alocativa e produtiva não é determinada apenas por forças de mercado, mas também

por pautas governamentais. Em outras palavras, há uma inevitável dinâmica

econômica privada, que não pode ser objeto de controle absoluto, ao lado de

parâmetros estatais.

2.6.1 Teorias da regulação sob o ponto de vista econômico

Uma reflexão a ser empreendida tem como vetor as motivações da

regulação numa economia capitalista, verificando seus benefícios e quais setores são

mais predispostos à regulação. Isso ajuda a entender os efeitos da regulação na

economia. No âmbito dos estudos econômicos há uma evolução do pensamento sobre

tal questão217. Houve três estágios nessa evolução.

A primeira hipótese considera que a regulação deve ocorrer diante de falhas

de mercado. Originalmente, essa teoria foi denominada teoria do interesse público,

216 VISCUSI, W. Kip, HARRINGTON, Joseph E. Jr. & VERNON, John M. Economics of regulation and antitrust. 4ª ed. Boston: Massachusetts Institute of Technology, 2005, p. 357. 217 Idem. Ibidem, p. 375.

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mais recentemente conhecida como análise normativa como teoria positiva218. Em

razão de suas inconsistências, economistas e cientistas políticos desenvolveram a

teoria da captura. Buscando superar a insuficiência empírica e teórica das primeiras

hipóteses, chegou-se a um terceiro estágio a partir de hipóteses testadas que se

convencionou denominar teoria da regulação econômica.

2.6.1.1 Teoria do interesse público

Duas circunstâncias justificariam a intervenção do Estado, constituindo

falhas de mercado: o monopólio natural e desequilíbrios causados por externalidades.

Segundo a teoria do interesse público, diante da verificação de tais casos a regulação

encontraria justificação.

Um mercado é um monopólio natural se, na quantidade social ótima, o

custo de produção é minimizado com a existência de apenas uma firma produtora219.

Monopólios naturais têm lugar quando há um grande custo fixo de investimento

envolvido, como no caso de distribuição de energia elétrica e de redes telefônicas, pois

o custo médio é decrescente quando há uma ampla rede de consumo.

O problema que surge é um conflito entre eficiência alocativa e produtiva.

A eficiência produtiva indica que apenas uma firma deve produzir, pois somente assim

se pode explorar ao máximo o custo médio decrescente. Contudo, uma única produtora

acabaria tentada a maximar lucros, aumentando preços bem acima dos custos. Isso

comprometeria a eficiência alocativa. Para gerar eficiência alocativa, com o aumento

do bem-estar dos consumidores, seria necessário um número suficiente de empresas

que levassem a fixação de preços para próximo do custo. Só que nesse caso haveria

ineficiência produtiva, em razão do excesso de concorrentes a enfrentarem elevados

custos fixos de investimento. Para equilibrar tal situação surgiria a necessidade de

intervenção do Estado.

218 Idem. Ibidem, p. 375. 219 Idem. Ibidem, p. 376.

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De outro lado, uma externalidade tem lugar quando a ação de um agente

econômico afeta o bem-estar de outro, e o primeiro agente não se importa com o

segundo por não ter o seu bem-estar afetado. Na presença de externalidades, a

concorrência perfeita não levaria a uma alocação ótima de recursos. Exemplo típico de

externalidade negativa é a poluição. Geralmente, nos casos de externalidades

negativas, acaba havendo excesso da respectiva atividade, o que exige a intervenção

do Estado para reduzi-la a um nível que garanta o bem-estar ótimo social e de todos os

agentes envolvidos.

Por considerar o controle de falhas de mercado como um objetivo a ser

alcançado pela regulação, a teoria do interesse público tem um caráter normativo,

tratando dos casos em que ela deve ocorrer. Sem a regulação há excesso de

concorrentes ou preços excessivamente altos.

Fortes objeções têm sido colocadas contra a teoria do interesse público. A

primeira delas é que essa teoria não explica como o legislador e o agente regulador

deveriam agir para gerar um ganho social no controle de determinado mercado. A

segunda é que vários mercados são regulados sem qualquer eficiência racional, como

transportes terrestres, táxis e seguros, por exemplo220.

2.6.1.2 Teoria da captura

Uma retrospectiva da regulação a partir do séc. XIX, especialmente nos

EUA, mostra que ela não está necessariamente vinculada às falhas de mercado.

Análise empreendida a partir da década de 1960 verificou que a regulação, com boa

frequência, se dava em favor dos produtores com o aumento de seus lucros221. Era o

caso dos táxis, nos mercados competitivos, e da energia elétrica, nos monopólios

naturais. Com isso, houve a formulação da teoria da captura, que defendia que ou a

regulação era erigida legislativamente para atender uma demanda dos produtores, ou

com o tempo a agência reguladora acabaria sob o controle dos regulados.

220 Idem. Ibidem, p. 378. 221 Idem. Ibidem, p. 379.

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Essa teoria, no entanto, se apresenta muito mais como hipótese, pois não

explica como a regulação acaba controlada pelos produtores. Há inclusive modos de

regulação contrários a essa teoria, como o caso dos subsídios cruzados, em que os

baixos preços de um produto são financiados por outro com preço mais elevado, e há

ainda a regulação a favor de pequenos produtores. Isso sem contar vários mercados,

nos EUA, como os de petróleo e gás natural222.

2.6.1.3 Teoria econômica da regulação

Diante das evidências de que a regulação não está necessariamente

associada a falhas de mercado e que não se alinha sempre aos produtores, procurou-se

formular uma teoria em que se explica o aumento de bem-estar para determinados

grupos, assim como o surgimento da regulação em determinados setores e sua

posterior desregulação. A teoria econômica da regulação buscou tal resposta.

Um grande impulso para a teoria ocorreu em 1971 com um artigo de

George Stigler223. Embora chegasse a conclusões semelhantes às da teoria da captura,

sua grande contribuição foi a maneira de chegar a elas. A premissa de Stigler é que o

recurso básico de um Estado é o poder de coagir. Assim, um grupo de interesse que

possa convencer o Estado a usar tal poder pode incrementar seu próprio bem-estar. A

segunda premissa é a de que os agentes em determinado mercado seriam racionais e

tenderiam a maximizar utilidades em benefício próprio. A partir de tais premissas, a

regulação seria fornecida como resposta a demandas de grupos de interesse para

maximizar seu bem-estar.

O Estado pode ser, para a economia, potencial fonte de recursos (ou de

ameaças) com a distribuição de poder. Os poderes de interditar, facultar ou compelir,

assim como o de tomar ou dar dinheiro ao Estado, ajudam ou criam embaraços de

forma seletiva para várias atividades. Nesse sentido, as tarefas centrais da teoria da

222 Idem. Ibidem, p. 380. 223 STIGLER, George. A teoria da regulação econômica. In: MATTOS, Paulo. Regulação econômica e democracia. O debate norte-americano. São Paulo: Ed. 34, 2004, pp. 49-80.

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regulação econômica são justificar quem receberá os benefícios ou quem arcará com

os ônus da regulação; qual forma a regulação tomará e quais os efeitos desta sobre a

alocação de recursos224.

Essa teoria foi complementada por Sam Pelztman225, que destacou: a) a

legislação regulatória redistribui bem-estar; b) o comportamento dos legisladores é

dirigido pelo seu desejo de permanecer na função pública, empregando a regulação

para aumentar sua sustentação política; c) grupos de interesse competem oferecendo

sustentação política em troca de legislação favorável. A partir disso, a normatização

regulatória é direcionada para atender aos grupos políticos mais organizados que

obtenham mais ganhos com um marco legislatório favorável.

Assim, grupos compactos e com interesses bem definidos teriam maior

benefício com a regulação do que grupos maiores com interesses difusos226. Para

investir grandes recursos e obter regulação, o ganho per capita de cada regulado

precisa ser grande, com obtenção de legislação favorável, e gerar grande contribuição

no âmbito de um grupo de interesse pequeno, causando forte impacto para definir o

interesse a ser protegido com a regulação. Isso explica o fato de a regulação beneficiar

pequenos grupos de produtores, em detrimento de grandes grupos de consumidores227.

No entanto, não se pode ignorar que os consumidores ainda assim formam um grupo

de interesse. Os resultados da teoria econômica da regulação podem ser assim

resumidos228:

Nós derivamos quatro maiores resultados usando a abordagem de Stigler para a teoria da regulação. Esses resultados caracterizam a forma da regulação e estabelecem quais mercados serão regulados. Em primeiro lugar, há a tendência de a regulação beneficiar grupos com fortes preferências pela regulação em detrimento de relativamente grandes grupos com fracas preferências pela regulação. Em vários casos, a consequência disso é que a regulação será a favor

224 STIGLER, George J. A teoria da regulação econômica. In: Mattos. Regulação econômica e democracia. O debate norte-americano. São Paulo, Ed. 34, 2004, p. 23. 225 PELTZMAN, Sam. Toward a more general theory of regulation. In: Journal of Law and Economics 19 (August 1976), pp. 211/40. 226 PELTZMAN, Sam. A teoria econômica da regulação depois de uma década de desregulação. In: MATTOS, Paulo. Regulação Econômica e Democracia. O debate norte-americano. São Paulo: Editora 34, 2004, p. 50. 227 Um exemplo de benefício da regulação para um pequeno grupo em detrimento de um maior é o caso do programa de amendoim nos EUA, que está no seguinte trecho de VISCUSI, W. Kip et alii. Op. cit., p. 383: Desde 1949, o governo federal tem mantido um programa que limita o número de fazendeiros que podem vender amendoins nos Estados Unidos. Importações também são severamente restritas. No auge dessas restrições, a sustentação de preços visa a garantir que os fazendeiros com quotas de amendoim possam cobrir os seus custos de produção em cada ano. Esse sistema geralmente resulta num preço mínimo de venda 50% acima da média mundial. 228 VISCUSI, W. Kip et alii. Op. cit., p. 390.

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dos produtores. Em segundo lugar, ainda que a regulação seja a favor do produtor, a normatização regulatória, especialmente a de preço, não será estabelecida apenas para maximizar lucros da indústria. Em virtude da influência dos grupos de consumidores, os preços serão estabelecidos abaixo do nível superior de maximização dos lucros. Um terceiro resultado é mais atrativo para mercados relativamente competitivos ou relativamente monopolísticos, porque aí a regulação terá maiores impactos no bem-estar de determinados grupos. Finalmente, a presença de falhas de mercado faz a regulação mais atrativa, já que os ganhos de alguns grupos de interesse será maior do que as perdas de outros grupos de interesse. Como resultado, o ator terá mais influência no processo legislativo, ceteris paribus.

É interessante notar que a literatura sobre o tema tem considerado a teoria

econômica da regulação mais consistente do que a teoria do interesse público e a teoria

da captura, considerando até mesmo essas duas últimas como meras hipóteses229. É

dizer, há uma preferência generalizada por uma teoria que concebe a própria regulação

estatal como um produto em disputa por diversos grupos de interesse dispostos a

investir em benesses governamentais.

Isso evidencia algo muito interessante na teoria econômica da regulação,

posto que a atividade regulatória vai além da intervenção e do controle na produção de

bens. Ela mesma é um bem colocado à disposição de vários grupos. A

instrumentalização presente na regulação por imperativos sistêmicos da economia não

está apenas na preocupação com a eficiência na produção e na distribuição de

utilidades, mas também no apossamento da própria atividade de produção normativa

como modo de atingir bem-estar para determinados grupos. O cenário da regulação

não implica somente disputa por bens materiais, abrangendo de igual modo o

enfrentamento com vistas à obtenção de poder coercitivo contido em normatizações

estatais. Sob o ponto de vista do Estado Democrático de Direito, está evidenciado mais

um risco de apropriação ilegítima do poder administrativo-burocrático e do direito, em

razão de imperativos resultantes do sistema econômico controlado pelo dinheiro.

2.6.2 Instrumentos de regulação

229 POSNER, Richard A. Teorias da regulação econômica. In: MATTOS, Paulo. Regulação Econômica e Democracia. O debate norte-americano. São Paulo: Editora 34, 2004, p. 49.

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Sob o ponto de vista econômico, a regulação compreende todos os tipos de

impostos e subsídios, bem como aos controles legislativos e administrativos explícitos

sobre taxas, ingresso no mercado e outras facetas da atividade econômica230. Nessa

ordem de ideias, a primeira contribuição que um grupo pode demandar do Estado é

uma subvenção em dinheiro. O segundo maior recurso é o controle sobre o ingresso de

novos concorrentes, que geralmente vem acompanhado de políticas de preço. A

terceira, e não menos importante, é a de produção de critérios de normalização das

atividades que não seriam obtidas sem a intervenção de uma autoridade que fixasse

padrões comuns e homogêneos de comportamento.

Dentre os padrões de comportamento, um instrumento de regulação que se

destaca é o controle de preços. O mais comum é a fixação de um teto ou de uma

margem de variação. A fixação do teto aplica-se aos casos em que se considera que um

mercado monopolista ou oligopolista possa elevar excessivamente os preços. Já a faixa

de variação de preços, como estipulação de teto e piso, justifica-se quando há também

a preocupação com a possibilidade de estipulação de preços predatórios pelos agentes,

para forçar a saída de competidores do mercado.

A regulação de preços também serve ao objetivo de limitar lucros dos

agentes de mercado. O órgão regulador fixa, nesse caso, um preço de acordo com

taxas de retorno que avalia como normais. A padronização de preços pode gerar um

descompasso em que as empresas reguladas apresentem elevada margem de lucro ou

baixa taxa de retorno. As agências reguladoras podem mostrar-se lentas para ajustar

preços em face de inflação que aumente os custos ou diante de avanços tecnológicos

que aumentem a eficiência, potencializando os lucros.

No que diz respeito ao comportamento dos agentes no mercado, também a

quantidade produzida pode ser objeto de regulação, o que tem direta influência sobre

os preços. É interessante notar nessa relação entre quantidade e preço que uma

remuneração por produto aquém do que seria estipulado por um mercado livre pode

gerar desabastecimento.

Um dos pontos cruciais na regulação é o controle do número de

competidores por meio de restrições para entrada e saída de agentes econômicos. Os

230 Idem. Ibidem, p. 50.

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critérios para tanto podem ser um número fixo de competidores para explorar

determinada linha ou faixa de mercado, capital mínimo a ser investido, expertise para

a exploração da atividade ou taxas administrativas e complexidade de procedimentos

para a obtenção de licenças ou autorizações.

Um outro objeto de regulação é a qualidade dos produtos e serviços. Isso

tem lugar com a fixação de padrões de confiabilidade. A fixação de critérios nesse

âmbito exige a avaliação de uma gama de variáveis, como na regulação do transporte

aéreo com a avaliação de pontualidade, segurança, serviços de bordo, entrega de

bagagens etc.

2.6.3 Concentração econômica e decisão democrática

O capitalismo regulado pelo Estado refere-se aos processos de concentração

econômica e à intervenção do Estado quando surge um hiato funcional. O

espraiamento de estruturas oligopolistas significa a derrocada do capitalismo

competitivo. Em igual sentido, ocorre o fim dessa espécie de capitalismo com a

suplementação e a parcial substituição do livre mercado pela intervenção estatal, em

determinados setores econômicos, pela regulação. Duas características marcam as

economias dos países de capitalismo regulado pelo Estado: a) processos de

concentração econômica que redundam no surgimento de empresas nacionais e

transnacionais com a organização de mercados para bens, capitais e trabalho e b)

intervenção do Estado no mercado quando se verifica falha ou fator de

desestabilização.

Assim como o alargamento das estruturas oligopolistas significa o fim do

capitalismo competitivo231, a intervenção do Estado marca o fim do capitalismo

liberal. Todavia, o planejamento estatal não é capaz de alterar diretamente o objetivo

precípuo das empresas, que é auferir lucros. Por isso, só secundariamente as empresas

podem perfilar-se aos programas públicos de regulação.

231 HABERMAS, Jürgen. A crise de legitimação no capitalismo tardio. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, p. 48.

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Descrevendo o capitalismo avançado, na década de 60 vários autores,

tomando os Estados Unidos como exemplo, desenvolveram um modelo trissetorial. O

primeiro era um subsetor privado, em que a produção privada se orientava por um

mercado competitivo, em geral formado por indústrias de trabalho intensivo. O

segundo era um subsetor privado dominado por estratégias mercadológicas de

oligopólios predominantemente de capital intensivo. O último setor derivava de

investimentos públicos, como nas indústrias de armamentos e espacial e, no caso do

Brasil, também se considera a exploração de petróleo capital intensivo. Nesses dois

últimos setores, a regulação se mostra mais presente.

Com efeito, o aparelho do Estado exerce várias funções dentro do sistema

econômico. A partir de duas perspectivas, podem ser ordenadas: a) pelo planejamento

global com regulação do ciclo econômico como um todo e b) por criar condições para

uma melhor utilização do capital acumulado.

Os controles fiscal, financeiro, de conjuntura e as medidas pontuais

destinadas a regular investimentos e demandas em geral (créditos, garantias de preço,

subsídios, empréstimos, redistribuição secundária de renda, contratos governamentais

guiados pelas políticas conjuntural, política indireta de mercado de trabalho etc.)232

são reações e estratégias num conjunto de metas que deve visar globalmente à

competição, ao crescimento permanente, à estabilidade da moeda e ao equilíbrio do

balanço de pagamentos.

Procurando tornar eficiente a utilização de capital, o Estado age desta

forma233:

Enquanto o planejamento global manipula as condições de limite das decisões feitas pela empresa privada, a fim de corrigir o mecanismo de mercado e em relação aos efeitos disfuncionais secundários do mercado, o Estado de fato substitui o mecanismo de mercado, sempre quando crie e melhore as condições para realização do capital: através do fortalecimento da capacidade competitiva da nação, ao organizar blocos econômicos supranacionais, assegurando-lhes estratificação internacional, por meios imperialistas etc.; através da condução de acordo com a política estrutural, do fluxo de capital rumo a setores negligenciados por um mercado autônomo; através da melhoria da infraestrutura material (transporte, educação, saúde, recreação, planejamento urbano e regional, construção imobiliária etc.); através da melhoria da infraestrutura imaterial (promoção geral das ciências, investimentos e pesquisa e desenvolvimento, estabelecimento de patentes etc.); através da elevação da produtividade do trabalho humano (sistema geral de educação, escolas vocacionais, programas para

232 Idem. Ibidem, p. 49. 233 Idem. Ibidem, p.. 50.

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treinamento e reeducação etc.); através do alívio de custos sociais e materiais resultantes da produção privada (compensação de desemprego, previdência social, reparação de danos ecológicos).

Com isso, para criar condições de uma melhor utilização do capital, o

Estado complementa mecanismos de mercado, tomando medidas como organização de

blocos econômicos supranacionais, condução de fluxo de capital para mercados

negligenciados, melhora de infraestrutura material e imaterial, elevação da

produtividade do trabalho humano (sistema geral educacional), alívio de custos sociais

da produção privada (previdência, seguridade, assistência social etc.).

O Estado não mais se restringe à manutenção da ordem, mas se encontra

engajado na tarefa de regulação da economia com vistas a melhorar a utilização do

capital e o planejamento global da economia. Isso exige legitimação. Além dos

processos democráticos, há a formação de divisões administrativas a serem feitas

largamente, independentemente de motivações específicas dos cidadãos234.

Essa forma de atuação do Estado permite-lhe coordenar um processo de

produção e distribuição de bens e serviços com alto potencial agregador pela recepção

pelos cidadãos, reduzidos principalmente ao papel de clientes da burocracia estatal e

consumidores de prestações e serviços. Não só o Estado os fornece, mas

principalmente os agentes regulados, a partir de critérios fixados dentro da máquina

burocrática235 com vistas à manutenção da prestação de utilidades e à estabilização do

mercado num equilíbrio econômico de alto nível, ou seja, com constante crescimento.

O resultado é um sistema econômico cada vez mais complexo e concentrado.

É um processo que difunde lealdade, mas minora a participação. Criam-se

instituições e processos que são democráticos na sua forma, porém, às decisões

privadas de investimento corresponde um privatismo cívico, um absenteísmo político

acompanhado de uma orientação para o lazer, a carreira e o consumo. O acoplamento

234 POSNER (Op. cit., p. 51). 235 Neste trecho de SUSTEIN confirma-se essa ideia (SUSTEIN, Cass R. After the rights revolutions – reconceiving the Regulatory State. Cambridge: Harvard University Press, 1993, p. 29): Além disso, na década de 60 e 70, o Congresso abandonou a fé do New Deal na autonomia administrativa. A burocracia era o problema, não a solução. O Congresso muitas vezes se recusou, por exemplo, em fornecer cheques em branco do New Deal para as agências reguladoras, permitindo-lhes para evitar "o comportamento, ou agir" razoável no “interesse público". A experiência tinha mostrado que a autonomia administrativa suscitava riscos de representação de autointeresse e facciosismo que a moldura original originalmente buscava prevenir. Como veremos, o resultado das delegações abertas têm sido frequentemente mal direcionados regulamentos, bem como falta ou excesso de regulamentação.

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do sistema político-burocrático à capacidade de produção dos entes regulados

estabelece recompensas no âmbito do lazer, do dinheiro e da segurança, o que deixa

muito clara a colonização e o sequestro dos laços de cidadania por relações

precipuamente econômicas orientadas especialmente para a produção e o consumo,

com o consequente esmaecimento dos outros âmbitos de vivência social. A tomada de

decisões se desloca para estruturas burocráticas e empresariais.

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2.7 Regulação e técnica

O conceito de racionalidade foi introduzido por Max Weber para explicar o

capitalismo, o direito privado burguês e a dominação burocrática236. Trata-se da ação

racional dirigida a fins, com a seleção dos meios e a escolha de alternativas. A

racionalização progressiva da sociedade, marcada pela ampliação das esferas sociais

submetidas à decisão racional e pela industrialização do trabalho, depende da

institucionalização do progresso científico e técnico237.

Subjacente a essa concepção de razão tecnológica está a de dominação

metódica, científica e calculadora, dado que a racionalização das relações sociais,

segundo critérios de seleção correta de estratégias, de adequação tecnológica e de

pertinente instauração de sistemas sociais equivale à institucionalização política da

dominação. Tanto é assim que determinados fins e interesses não são outorgados

posteriormente à técnica, inserindo-se na construção do aparato técnico e projetando os

interesses dominantes da própria sociedade.

Aliás, no capitalismo avançado, a dominação desloca seu caráter explorador

e opressor, tornando-se racional. A legitimação dessa dominação assume um novo

caráter com a crescente produtividade e o controle da natureza, que proporcionam aos

indivíduos uma vida mais confortável.

A sociedade racionalizada se apresenta como uma organização

tecnicamente necessária. A racionalidade não é apenas uma crítica à legitimação

vigente, mas sim a própria legitimação. O poder político busca legitimidade pela

adoção racional da tecnologia, ancorando-se em soluções técnicas e na própria

burocracia.

Nessa ordem de ideias, a ciência moderna e seu desdobramento em

tecnologia trazem consigo a dominação pela redução da esfera de escolha dos

indivíduos e pela ampliação das possibilidades do poder político. É a natureza,

236 WEBER, Max. Economia e sociedade. Trad. Regis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa. V. 2. Brasília: Editora UnB, 1999, p. 187 e seg. 237 HABERMAS, Jürgen. Técnica e ciência como ‘ideologia’. Lisboa, Edições 70, 2001, p. 45.

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entendida e controlada pela ciência, que possibilita produtivistamente a melhoria das

condições de vida dos indivíduos, submetendo-os aos imperativos do sistema.

O capitalismo, que se baseia num crescimento contínuo e de longo prazo,

institucionaliza a inovação, garantindo uma extensão permanente dos subsistemas da

ação racional teleológica238, colocando em xeque a legitimação tradicional. No

capitalismo, a legitimação surge da base do trabalho social, inserindo-se a força de

trabalho como mercadoria, com a promessa de equivalência nas relações de troca. A

dominação se justifica não mais com mito ou religiões, mas com relações legítimas de

produção. O marco institucional da sociedade é só mediatamente político e

imediatamente econômico239.

A racionalização da sociedade ocorre a partir de baixo, com a formação de

mercados de bens e de trabalho, de um lado, e de outro com a empresa capitalista,

promovendo em conjunto uma expansão horizontal dos subsistemas de ação racional

teleológica. Como acentua Habermas:

Por este meio, as formas tradicionais sujeitam-se cada vez mais às condições de racionalidade instrumental ou estratégica: a organização do trabalho e do tráfico econômico, a rede de transportes, de notícias e da comunicação, as instituições do direito privado e, partindo da Administração das finanças, a burocracia estatal. Ele apodera-se, pouco a pouco, de todas as esferas vitais: da defesa, do sistema escolar, da saúde e até da família; impõe tanto na cidade como no campo uma urbanização da forma de vida [...]

A par dessa pressão por racionalização, que vem a partir de baixo, há uma

coação que vem a partir de cima, com a substituição das legitimações tradicionais de

dominação pela pretensão de veracidade das ciências modernas.

O último quarto do século XIX viu surgirem duas novas tendências

evolutivas240: 1ª) um incremento na atividade intervencionista do Estado e 2ª) uma

crescente interdependência da investigação técnica, colocando as ciências como

primeira força produtiva. Essas tendências solapam o marco institucional típico de

Estado Liberal.

O capitalismo não poderia estar abandonado a si mesmo, cabendo ao Estado

intervir e regular a longo prazo o processo econômico e seu simbiótico vínculo com a

produção tecnológico-científica. A atividade estatal visa ao crescimento econômico,

238 HABERMAS, Jürgen. Técnica e ciência como ‘ideologia’. Lisboa, Edições 70, 2001, p. 64. 239Idem. Ibidem, p. 65. 240 Idem. Ibidem, p. 68.

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assumindo a política um caráter negativo, já que as instituições públicas são regidas

crescentemente por uma orientação tecnológica e burocrática, que visa principalmente

a prevenir riscos que possam ameaçar os sistemas sociais, especialmente o econômico.

A política não mais trata de problemas práticos da moral e da ética, mas de

questões técnicas que excluem a participação da grande massa da população. A

discussão é deslocada para aparatos burocráticos, tais como as agências reguladoras.

Outra marca do capitalismo é a cientificação da técnica. Em tal modo de

produção sempre houve pressão para intensificar a produtividade do trabalho com

novas técnicas. Com a pesquisa industrial de ponta, a ciência, a técnica e a

revalorização do capital confluem para um único sistema. A própria evolução do

sistema social parece ditada pelo progresso técnico-científico.

A formação da vontade democrática não mais se refere a questões práticas

de moral e ética, mas instrumentais e estratégicas, tornando as eleições em decisões

plebiscitárias sobre diferentes equipes de administradores. Em igual medida, a

autocompreensão culturalmente determinada de um mundo social da vida é

substituída pela autocoisificação dos homens sob categorias da ação racional dirigida

e do comportamento adaptativo241. É nesse cenário que se justificam as agências

reguladoras compostas, em suas instâncias superiores, por técnicos com mandatos.

Nessa linha, o homem não se concebe apenas como homo faber, mas

igualmente como homo fabricatus, integrando-se tal qual uma peça nos sistemas

sociais e nos dispositivos técnicos. Isso faz com que a ordem moral e a ação

comunicativa linguisticamente articuladas, que pressupõem a interiorização de normas

morais, éticas e jurídicas, dissolvidas por modos cada vez mais amplos de

comportamento condicionados por tecnologias de disciplina social com vistas à

produção e à repartição compensatória de bens. É o controle por estímulos externos

sobrepondo-se socialmente às normas vinculantes. A liberdade subjetiva também se vê

cada vez mais restrita pelo avanço de estímulos condicionados que atingem áreas

como comportamento eleitoral, consumo e tempo livre.

Como já visto no paradigma Estado Social, até mesmo o conceito de luta de

classes sociais perde, nesse cenário, o seu sentido. No capitalismo estatalmente

241 Idem. Ibidem, p. 74.

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regulado, o antagonismo aberto de classes acha-se pacificado. Há uma política de

compensações que assegura a lealdade das massas dependentes do trabalho. A

oposição de classes não é anulada, mas fica latente com um interesse comum na

manutenção da fachada distributivo-compensadora, passando os conflitos para áreas

subprivilegiadas que afetam parcelas da população que não podem ser classificadas

como classes sociais.

O progresso técnico-científico, como primeira força produtiva, torna-se o

fundamento de legitimação. Nas palavras de Habermas242:

A consciência tecnocrática é, por um lado, ‘menos ideológica’ do que todas as ideologias precedentes, pois não tem o poder opaco de uma ofuscação que sugere falsamente a realização de interesses. Por outro lado, a ideologia de fundo, um tanto vítrea, hoje dominante, que faz da ciência um feitiço, é mais irresistível e de maior alcance do que as ideologias de tipo antigo, já que com a dissimulação das questões não só justifica o interesse parcial de dominação de uma determinada classe e reprime a necessidade parcial de emancipação por parte de outra classe, mas também afeta o interesse emancipador como tal do gênero humano.

Na consciência tecnocrática sedimentam-se o ideal de neutralidade e os

modelos coisificados das ciências, que afastam discussões éticas e políticas vazadas

em linguagem comum, o que redunda num marco institucional de sistemas

autonomizados regidos por uma ação instrumental. É a técnica tomando o lugar da

práxis. O cidadão acaba sendo tratado como mero cliente/consumidor, por ser incapaz

de debater tecnicamente temas de regulação.

É preciso distinguir tipos de racionalização243: a dos sistemas de ação

racional dirigida a fins, em que o progresso científico e o tecnológico já impeliram a

um rearranjo em crescente escala das instituições e de setores da sociedade; e a das

interações linguisticamente mediadas pela desconstituição das restrições de

comunicação em nível institucional. Justamente nessa última apresenta-se a

possibilidade de uma mais ampla emancipação em discussões públicas, sem restrições

e sem coações, sobre a adequação e a desiderabilidade dos princípios e normas

orientadoras da ação244.

Informações científico-naturais só podem entrar no mundo da vida como

saber tecnológico, estratégico e instrumental, revelando-se principalmente por

242 Idem. Ibidem, p. 80. 243 Idem. Ibidem, p.88. 244 Idem. Ibidem.

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produtos e prestações, e não por uma linguagem natural de intelecção universalizável.

Isso põe a questão de como se pode dar essa tradução, controlando-a numa discussão

racional em termos de ação comunicativa e discursos sociais emancipadores

partilháveis por cidadãos.

Noutro giro, não se pode deixar de perceber que o sistema de trabalho das

sociedades industriais e os processos de investigação científica levam em conta sua

transformação técnica e sua utilidade econômica. Os métodos científicos

revolucionaram os processos de produção. A ciência vincula-se com a produção e a

Administração245. Até mesmo a sociedade acabou por ser abarcada pela cientifização.

As ciências, com o poder de disposição que lhes é inerente, transformam-se em poder

técnico. A técnica, por sua vez, também pode ser entendida como referência à ciência

e à sua capacidade de rendimento econômico, isto é, como disposição cientificamente

racionalizada sobre processos objetivados246.

Já a democracia consiste precipuamente em formas institucionalmente

garantidas de uma comunicação geral e pública que se ocupa das questões práticas:

de como os homens querem e podem conviver sob as condições objetivas de uma

capacidade de disposição ampliada247.

Sobre a relação entre técnica e democracia, um primeiro ponto a ser

ressaltado é o de que a burocracia deve ter como referencial de atuação e

funcionamento, até mesmo técnico, a construção de uma sociedade livre e emancipada.

Em outras palavras, não necessariamente técnica e democracia convergem. Tampouco

é verdadeiro que ambas divergem. Formam, em realidade, uma tensão.

Por isso, o cerne da relação entre técnica e democracia está numa tensão

entre o saber e o poder técnicos e o saber e o querer práticos sobre questões éticas e

morais. Dito de outro modo, entre poder e vontade. Habermas explica essa dialética248:

Essa dialética de poder e vontade realiza-se hoje de modo irrefletido, ao serviço de interesses para os quais não se exige nem se faculta uma justificação pública. Só quando conseguíssemos levar a cabo esta dialética com consciência política, poderíamos controlar a mediação do progresso técnico com a prática da vida social, mediação essa que, até agora, se impõe, em termos de história natural. Mas,

245 Idem. Ibidem, p. 99. 246 Idem. Ibidem, p. 101. 247 Idem. Ibidem, p.102. 248 Idem. Ibidem, p. 105.

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porque isso é um assunto de reflexão, não incumbe apenas à competência dos especialistas [...]

Como ressaltado, nos Estados contemporâneos a cientifização da política é

uma tendência. A composição da burocracia por funcionários com formação técnico-

científica e o volume de pesquisas geradas pelas tarefas do Estado são provas disso.

Desde o começo do Estado Moderno, oriundo do tráfico mercantil das

economias territoriais e nacionais em formação e da necessidade de uma

Administração Central, houve necessidade de recrutamento de funcionários com

formação jurídica. Eles tinham, assim como os militares, um saber técnico mais

próximo da arte do que da ciência. Foi só na segunda metade do século XX que se

atingiu uma nova fase da racionalização, em que os burocratas, os militares e os

políticos orientaram-se, no exercício de suas funções públicas, segundo

recomendações estritamente científicas249.

Max Weber 250 definiu claramente a relação entre saber especializado e

prática política. Os peritos serviam-se do saber técnico, dependendo, para a afirmação

de uma dominação, da imposição interessada de um querer decidido251. O agir

político, a partir desse ponto de vista, não se fundamenta racionalmente, sendo a

decisão decorrente de uma ordem de valores e convicções de fé.

Esse modelo decisionista pode ser colocado em questão. Num segundo

nível de racionalização da dominação, estudos sistemáticos e a teoria da decisão

proporcionam novas técnicas para a prática política com o uso de estratégias

calculadas e automatismo na decisão, parecendo prevalecer sobre as decisões dos

líderes a coação dos especialistas. É a construção de um modelo tecnocrático.

Há uma inversão de papéis entre políticos e especialistas, tornando-se os

primeiros órgãos executores de técnicas, estratégias de otimização e imperativos de

controle, oriundas de desdobramentos de conhecimentos científicos. Eles seriam como

que o tapa-buracos de uma racionalização ainda imperfeita da dominação, em que a

iniciativa transitaria sempre para a análise científica e a planificação técnica252.

249 Idem. Ibidem, p. 108. 250 WEBER, Max. Economia e sociedade. Trad. Regis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa. V. 2. Brasília: Editora UnB, 1999, p. 529 e seg. 251 HABERMAS (Op. cit., p. 108). 252 Idem. Ibidem, p. 109.

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O Estado move-se da simples dominação política para uma inserção

eficiente das técnicas disponíveis, transformando-se numa Administração

integralmente racional. Ocorre que as debilidades desse modelo tecnocrático são

evidentes. Em primeiro lugar, esquece-se que sob as vestes do conhecimento técnico-

cientifico estão interesses sociais que nele atuam. Em segundo, esse modelo supõe um

contínuo entre questões teóricas e práticas de moral e ética, porque nenhum poder de

disposição técnico-científico pode fazer desaparecer questionamentos que tratam sobre

os sistemas de valores, isto é, sobre necessidades sociais, situações objetivas da

consciência, emancipação etc.

Em verdade, com uma distinção entre o controle das recomendações

técnicas por meio de resultados, e no contexto das situações concretas, uma verificação

moral e ética das técnicas poder-se-ia constituir num exame pragmático e numa

explicação racional da relação entre técnica e decisões práticas.

Nesse modelo, no lugar de uma estrita separação entre as funções do

especialista e do político surge uma correlação crítica. Há uma comunicação recíproca

em que especialistas científicos aconselham as instâncias decisórias, e as autoridades

encarregam os cientistas conforme necessidades práticas. Surge, então, um controle

sobre o desenvolvimento de novas estratégias, a partir de necessidades e sobre os

interesses sociais refletidos num sistema de valores pela comprovação das

possibilidades técnicas e dos meios estratégicos para sua satisfação.

Delineando três modelos da relação entre saber especializado e político, só

um deles se refere necessariamente à democracia253. O modelo decisionista reduz em

última instância o processo de formação da vontade democrática a um procedimento

regulado por aclamação a favor das elites. Nesse processo, o aspecto irracional da

decisão permanece intocado, de modo que a dominação pode legitimar-se, mas não se

racionalizar.

O modelo tecnocrático, que defende uma política cientificizada, traz o

preço da democracia, tornando-a supérflua e desnecessariamente onerosa. No lugar da

vontade popular aparece uma normalização supostamente inerente às coisas, que é o

resultado da produção científica e do trabalho.

253 Idem. Ibidem, p. 113.

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118

No modelo pragmatista, a tradução bem-sucedida das recomendações

técnicas para a prática dá-se mediante a opinião pública254. A comunicação entre

especialistas e as instâncias de decisão política para satisfação das necessidades

práticas com as possibilidades advindas da técnica ocorre no mundo da vida, em que

se dão as experiências indiferenciadas. A comunicação especializada deve ganhar

sentido num horizonte de tradições e valores pré-científicos.

Essa comunicação, porém, oferece problemas. Uma tradução adequada

entre elas é uma dificuldade para as próprias ciências particulares. Que dizer, então, da

comunicação com a opinião pública. Fica aí a possibilidade do mau uso ideológico de

discussões científicas que pretendem se apoiar numa base popular. Tem-se o risco de

uma conexão em curto-circuito entre perícia técnica e público influenciável por

manipulações.

Um dos caminhos possíveis para a comunicação entre as instâncias de

autoridade e os cientistas são os institutos de pesquisa, caracterizados como zona

crítica da tradução das questões práticas para problemas que se põem em termos

científicos e a retroversão as informações científicas para respostas às questões

práticas”255. Isso pode ser melhor compreendido a partir deste exemplo:

[...] O grupo de investigação de Heidelberg informa sobre um exemplo muito instrutivo. O quartel general da aviação americana apresenta, através de pessoas preparadas, à seção de programas de um grande instituto de investigação, um problema de técnica militar ou organizativo delineado só em grandes traços; o ponto de partida é uma necessidade vagamente formulada; uma formulação mais rigorosa do problema só surge no decurso de uma aborrecida comunicação entre os oficiais de formação científica e o diretor do projeto. Com a identificação e a definição conseguida da posição do problema não se esgota, entretanto, o contato; quando muito chegam para a conclusão de um acordo pormenorizado. Durante os trabalhos de investigação existe, em todos os níveis, desde o presidente até os técnicos, um intercâmbio de informação com os correspondentes cargos da instituição que fornece as instruções. A comunicação não deve interromper-se até se ter, em princípio, encontrado a solução do problema, pois só com a solução em princípio previsível é que o objetivo do projeto fica definitivamente circunscrito.

Está demonstrado como se dá a comunicação entre a práxis e a ciência.

Forma-se uma rede, a partir do interesse externado pelas autoridades, que não se pode

romper até que a intenção esteja fixada em modelos científicos formalizados. A

compreensão situacional está de tal forma vinculada a técnicas, que frequentemente os

projetos de pesquisa são sugeridos aos políticos.

254 Idem. Ibidem, p. 114. 255 Idem. Ibidem, p. 117.

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119

Num giro de perspectiva, a tradução completa consiste numa solução

tecnicamente adequada da situação problema, sendo levada à consciência e se

retraduzindo para a situação histórica global num contexto concreto de ação como

questão prática de moral e ética.

Não se pode deixar de destacar que essa tradução está institucionalizada.

No nível dos governos, constituem-se burocracias para controlar o desenvolvimento da

pesquisa científica. Têm-se aí locais privilegiados para o desenvolvimento de uma

dialética entre o querer esclarecido e o poder autoconsciente. Então, só na medida em

que, apoiados no conhecimento do poder técnico, orientamos nossa vontade

historicamente determinada segundo a situação dada, também podemos saber,

inversamente, que ampliação queremos, no futuro, do nosso saber técnico e em que

direção.

O processo de tradução entre a ciência e a política deveria acontecer em

última instância na opinião pública. É no horizonte dos cidadãos que falam entre si que

surge a vontade política ilustrada pela razão. Há dois passos seguintes: uma análise

sociológica desta autocompreensão, a partir da conexão dos interesses sociais, por

um lado, e da certificação das técnicas e estratégias disponíveis, por outro256. Essas

etapas vão além da esfera dialogal dos cidadãos. Todavia, o resultado da vontade

política ilustrada só pode ganhar sentido na esfera pública de consciência dos próprios

atores políticos.

Um fator que dificulta essa tomada de consciência na esfera pública é que

as informações científicas não mais se dirigem para um público em que se possibilita

uma discussão aberta, mas sim a um cliente que tem interesse específico na pesquisa e

em seu desdobramento técnico.

Não se pode contar com instituições firmes para uma discussão pública

aberta a todos. Tampouco há um sistema de pesquisa em grande escala baseado na

divisão de trabalho e num aparelho burocrático. Embora esses pressupostos não sejam

favoráveis, isso não afasta o ideal de uma sociedade cientificada que só poderia

256 Idem. Ibidem, p. 122.

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constituir-se como sociedade emancipada na medida em que a ciência e a técnica

fossem mediadas pelas cabeças dos homens juntamente com a prática vital257.

É dentro desse cenário de mediação entre economia, ciência, técnica, ética,

moral e democracia que se situa a questão aqui abordada. Os princípios jurídicos,

vazados em linguagem natural e com conteúdos de moral política, fornecem um locus

privilegiado para o encontro entre saberes técnicos e científicos com saberes não

especializados, possibilitando por procedimentos jurídicos a instauração de

questionamentos e inquirições dirigidas aos especialistas para justificar de forma

universalizável, de acordo com valores democráticos, a normalização que propõem à

sociedade. Guiados pela espinha dorsal principiológica, tanto institutos de pesquisa

como instituições democráticas podem valer-se desse canal para discussões éticas e

morais, absorvendo os saberes técnico e científico como sugestões de possibilidades

traduzíveis para a opinião pública e, por isso, submetidas a um debate legitimador.

2.8 As agências reguladoras e a sua legitimação

O fenômeno regulatório, por sua vinculação com a economia e a técnica,

oferece significativos desafios à sua legitimação. Não se trata apenas de uma

desconexão com a formação da vontade popular, mas sobretudo da instrumentalização

dos interesses que estão sob sua competência. Como exposto, é inevitável que dentro

da dinâmica compensatória típica do Estado Social as ênfases desloquem-se para as

prestações econômicas e as tecnologias utilizadas para sua obtenção, havendo um

embaçamento de questões de natureza política e moral.

Nessa linha, a regulação se organiza em torno de utilidades – serviços

públicos ou bens de interesse público – a serem ofertados à população. Por isso, não é

surpreendente que boa parte das democracias ocidentais tenha constituído agências ou

autoridades independentes para o controle da oferta dessas prestações, como é o caso

257 Idem. Ibidem, p. 127

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dos Estados Unidos, da França, da Itália, da Alemanha, da Suécia, de Portugal e

outros258.

É uma reorganização do poder dentro do Estado, que se desvincula da

tradicional preocupação com a tripartição de poderes para se ordenar com

preocupações de eficiência na produção de bens e serviços regulados. Tanto a vontade

popular manifestada pela via democrática das eleições como os limites necessários à

manutenção do equilíbrio entre os poderes são colocados entre parênteses para que a

atuação do poder administrativo-burocrático possa corresponder e se coadunar com a

dinâmica própria do sistema econômico, que exige contínuo crescimento de longo

prazo.

As principais características, válidas também para o caso brasileiro, com

vistas a ampliar legitimidade das agências são: a) decisão por órgãos colegiados

deliberativos formados por integrantes com mandato fixo e não coincidentes; b)

independência do órgão regulador, inclusive com autonomia financeira e com

delegação de funções da Administração direta; c) ampliação do poder regulador, com

o acúmulo de funções administrativas e de índole jurisdicional; d) criação de deveres

especiais de prestação de contas e responsabilização que se apresentam na publicidade

das decisões da agência, na prestação de contas aos poderes Executivo e Legislativo e

na participação de usuários, consumidores e investidores na elaboração de normas do

setor259; e) possibilidade de revisão de suas decisões pelo Judiciário; f) pluralidade de

sua composição e dos seus órgãos deliberativos; g) indicação de seus ocupantes por

um ato político complexo pelo Executivo e com a aprovação do Parlamento; h)

requisitos de formação técnica para investidura em órgãos deliberativos; e) garantia

contra demissibilidade ad nutum dos ocupantes de cargos nos órgãos colegiados

deliberativos.

Há um objetivo muito claro nessa configuração geral das agências

reguladoras: fracionar competências antes atribuídas ao Executivo e ao Legislativo e

criar um âmbito de neutralização em relação ao processo político-democrático com

258 JUSTEN FILHO, Marçal. Agências reguladores e democracia. In: ARAGÃO, Alexandre Santos de. O poder normativo das agências reguladores. Forense: Rio de Janeiro, 2006, p. 310. 259 MATTOS, Paulo Todescan Lessa. Agências reguladoras e democracia. In: SALOMÃO FILHO, Calixto. Regulação e desenvolvimento. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 183.

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base no sufrágio. É, de certa forma, um insulamento burocrático pautado por uma

racionalidade instrumental. Há, assim, uma regulação imparcial e técnica dos

mercados260, com a estabilização dos marcos regulatórios que garantem os contratos e

a distribuição de propriedade, vinculados aos investimentos efetivados no setor por

entidades privadas, funcionando tais órgãos até mesmo como mecanismo

contramajoritários de defesa dos mercados.

Os critérios de legitimidade dizem respeito sobretudo ao gerenciamento das

políticas que possibilitam a distribuição de bens e utilidades, abrangendo a

consistência das políticas setoriais, a expertise na resolução de problemas e a proteção

dos interesses difusos no setor, o profissionalismo e uma definição clara dos objetivos

da agência. O controle pode ser ainda indireto, por meio da avaliação da performance

da burocracia.

Como ressaltado, mesmo sob o ponto de vista econômico, os resultados da

independência das agências reguladoras podem ser postos em dúvida. Foi o que

defendeu Stigler no seu clássico A teoria da regulação econômica261: os agentes

regulados – indústrias – podem tornar-se demandadores do serviço de regulação para

interesses de grupos particulares, interferindo no processo político para obterem

decisões favoráveis. Assim, sob as vestes do interesse público, as agências poderiam

estar favorecendo interesses privados. Essa verificação levou a um amplo debate sobre

a independência e o desempenho institucional dos órgãos reguladores.

Dessa forma, a configuração das agências reguladoras não é garantia de

legitimidade de suas decisões. Sua independência e sua neutralidade vinculam-se

principalmente à dinâmica do sistema econômico que objetiva, como prestação, a

certeza e a segurança referentes aos contratos e à propriedade alocados no setor. São

garantias que a economia demanda ao sistema político-burocrático para se engajar no

dispensamento de utilidades de interesse público.

A própria regulação pode tornar-se um serviço demandado pelos agentes

regulados a favor de grupos específicos. Daí a importância da construção de canais de

legitimação da atuação dos entes reguladores, especialmente com os princípios

260 Idem. Ibidem, p. 191. 261 STIGLER, George. A teoria da regulação econômica. In: MATTOS, Paulo. Regulação econômica e democracia. O debate norte-americano. São Paulo: Ed. 34, 2004, pp. 23 e seg.

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jurídicos que permitem a tematização de questões de moral política, deslocando o

debate para o mundo da vida e da esfera pública.

2.9 A regulação autorizada e seus riscos

Se há algo certo na temática da regulação são dúvidas, incertezas e temores

que ela levanta. Nada mais natural, já que sua irrupção resultou da criação de fissuras

no princípio da legalidade e outras concepções inerentes ao Estado de Direito e

também ao Estado Democrático de Direito.

Isso se explica pelas fortes pressões geradas em torno e dentro do sistema

econômico. Com o advento do Estado Social, o Estado se viu obrigado a efetivar

prestações compensatórias para estabilizar os conflitos de classe. Ao Estado como um

gerenciador de riscos262 também se imputou a tarefa de absorver os efeitos

disfuncionais do mercado. Tudo isso somado ao cuidado de realizar as políticas

redistributivas de Estado Social num regime de mercado em que suas bases de relações

de propriedade, de receitas e de dependência deveriam preservar-se.

É esse o contexto que leva à regulação e à sua linha mais avançada – as

entidades administrativas autônomas com o acúmulo das funções normativas,

executivas e judicantes. Ela é o resultado de uma confluência de imperativos

sistêmicos do poder administrativo-burocrático e econômico numa interação

extremamente conflituosa e tensa.

Diante desse movimento, o direito e suas estruturas, em virtude de sua

instrumentalização pelos sistemas referidos, viram-se obrigados a uma reacomodação.

Isso explica as inúmeras perplexidades que se constroem em torno da regulação e a

262 Sobre a simbiose da prestação de utilidades pelo Estado Social e o incremento de riscos e potenciais de autoameaça: Essa mudança da lógica de repartição de riqueza na sociedade da carência à lógica da repartição dos riscos na modernidade desenvolvida está vinculado historicamente a (ao menos) duas condições. Em primeiro lugar, essa mudança se consuma (como sabemos hoje) ali onde e na medida em que mediante o nível alcançado pelas forças produtivas humanas e tecnológicas e pelas seguridades e regulações do Estado Social se possa reduzir objetivamente e excluir socialmente a miséria material autêntica. Em segundo lugar, essa mudança categorial depende ao mesmo tempo de que ao fio de crescimento exponencial das forças produtivas no processo de modernização liberem-se os riscos e os potenciais de autoameaça numa mediada desconhecida até o momento. (BECK, Ulrich. La sociedad del riesgo. Barcelona: Paidós, 2002, p. 25)

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fluidez da teoria que a cerca, marcada por elementos diretamente incorporados da

economia e da própria política. Em suma, o direito viu-se e se vê continuamente

obrigado a absorver os impactos das funcionalidades e disfuncionalidades desses

sistemas, fornecendo-lhes como prestação uma contínua fonte de normatização e

normalização.

Tudo isso para marcar que têm razão os que se perfilam em reconhecer a

existência de uma regulação autorizada produzida por entes da Administração. Está

certo Eros Grau ao dizer que a tripartição dos poderes está sob o influxo da realidade e

que há uma interpenetração entre o mundo do dever ser e o mundo do ser263 que

impele a reconhecer a regulação (ou regulamentação). De igual modo, mostra-se

correto Tércio Sampaio Ferraz264 ao considerar que, no plano dos fatos, a

complexidade social e econômica justifica as chamadas delegações legislativas a partir

de imperativos técnicos e especializados, para daí justificá-las por uma mutação

constitucional introduzida pelo princípio da eficiência. São de todo pertinentes ao caso

brasileiro as observações de García de Enterría e Tomás-Ramón Fernández de que a

complexidade técnica de muitos desses produtos normativos tampouco faria possível

atribuir sua aprovação a um Parlamento de composição política, sem hábitos, sem

conhecimentos, experiências, arquivos ou capacidade técnica265. O Estado

Democrático de Direito cedeu a tais forças, havendo uma reconfiguração do equilíbrio

entre os poderes para permitir constitucionalmente a atribuição de poder normativo de

caráter inovador e primário a entes administrativos.

Forças e pressões externas ao direito oriundas dos referidos sistemas

resultaram em inarredáveis e inevitáveis modificações. O grande problema é não se

poder naturalizá-las. Elas decorreram de construções sociais, e não de fenômenos

naturais. O que se vê são profundas imposições dos sistemas que atravessam o direito

e colonizam o mundo da vida, das vivências cotidianas indiferenciadas. Não há como

ser ingênuo e acreditar que o caráter contrafático do direito possa resistir a tais

263 GRAU, Eros. Direito posto e o direito pressuposto. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 183. 264 FERRAZ Jr., Tércio Sampaio. O poder normativo das agências reguladoras à luz do princípio da eficiência. In: ARAGÃO, Alexandre Santos. O poder normativo das agências reguladoras. Rio de Janeiro: Forense, 2006, pp. 281 e seg. 265 GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo & FERNÁNDEZ, Tomás-Ramón. Curso de direito administrativo. Trad. Arnaldo Setti. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 201.

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modificações e negar por completo o poder normativo que acabou sendo atribuído a

tais entes, reconheça-se, ao arrepio do texto constitucional e das instituições jurídicas

do Estado Democrático de Direito.

Há algo, no entanto, que precisa ser encarado: o potencial de coerção que

cerca esse deslocamento de poder normativo. Poder e dinheiro se potencializam, ainda

mais quando legitimados por discursos de verdade oriundos da ciência e da técnica,

que formam um exponencial poder disciplinar no âmbito da normatização regulatória.

A regulação traz potenciais de rendimento e riscos extraordinários.

A coerção da regulação não resulta apenas do potencial uso da força física,

mas também do dinheiro e dos discursos de verdade. Algo marcante – tanto em relação

aos riscos como à coercibilidade inerente aos entes reguladores – é seus efeitos se

espalharem por toda a cadeia de produção e consumo que envolve o agente regulado.

Assim, se multada uma prestadora de serviços, o encargo da multa não será absorvido

integralmente pelo infrator que, valendo-se dos instrumentos de mercado, tentará

repassar os ônus financeiros da penalidade para seus fornecedores e seus

consumidores. De igual modo, é lugar-comum, em relação ao sistema financeiro,

referir-se ao risco sistêmico para aludir a esse efeito de contaminação que se dá por

intermédio das relações de mercado. No extremo, pode acabar espalhando-se por todo

o mercado regulado.

Se o Estado Democrático de Direito é obrigado a conviver com esses

exércitos de Leviatãs contemporâneos, dotados de consideráveis poderes normativos e

de coerção, deve-se preocupar com a legitimação e a justificação dos seus poderes e,

portanto, com os direitos dos cidadãos266. E mais: à dimensão da coercibilidade é

necessário contrapor questões de princípios ainda mais acuradas267.

266 Sem dúvida, uma das questões fundamentais do direito é a justificativa do uso da coerção, como assinala Dworkin: Uma teoria política do direito completa, portanto, inclui pelo menos duas partes principais: reporta-se tanto aos fundamentos do direito – circunstâncias nas quais proposições jurídicas devem ser aceitas como bem fundadas ou verdadeiras – quanto à força do direito – o relativo poder que tem toda e qualquer verdadeira proposição jurídica de justificar a coerção em vários tipos de circunstâncias excepcionais. Essas duas partes devem apoiar-se mutuamente. A atitude assumida por uma teoria integral sobre a questão de até que ponto o direito é dominante, e quando pode ou deve ser posto de lado, deve estar à altura da justificativa geral que o direito oferece para o uso da coerção, que por sua vez provém de seus pontos de vista sobre os polêmicos fundamentos do direito. Uma teoria geral do direito, assim, propõe uma solução a um complexo conjunto de equações simultâneas [...] (DWORKIN, Ronald. Law´s Empire. Cambridge: The Belknap Press, 1986, p. 110) 267 Isso significa entrar numa dimensão mais reflexiva e questionadora sobre o direito com juízos de moral política que constituem o cerne dos princípios e dos direitos. A questão da regulação é em boa medida uma

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Palmilhados os riscos da regulação autônoma, algo sobre a função

normativa reguladora autorizada pode ser aduzido. Em específico, as funções

administrativas e judicantes dos entes reguladores não serão enfrentadas neste

trabalho. Não há grande perplexidade no exercício dessas funções no âmbito do

Executivo, que ordinariamente pratica atos administrativos e exerce com habitualidade

funções quase-contenciosas. No entanto, o exercício de função normativa por entes da

Administração é profundamente inquietante.

Não que a divisão de poderes, mesmo nas suas fontes clássicas, como em

Montesquieu268, seja incompatível com uma distribuição de funções com

interpenetração entre os poderes. É possível realizar uma leitura, como o faz Eros

Grau269, de que Montesquieu não defendia uma separação radical de poderes, mas uma

delimitação de funções e o equilíbrio entre elas.

Há uma dissociação entre poder e função. O primeiro se refere aos centros

ativos típicos das funções estatais, formando corpos a partir de critérios subjetivos.

Constituem-se como decorrência da tripartição de poderes: o Poder Legislativo, o

Poder Executivo e o Poder Judiciário. As funções se referem a um critério material de

atuação, que não necessariamente corresponde ao subjetivo, podendo estar presente em

quaisquer dos três poderes. Elas podem ser a normativa, a administrativa e a

judicante270.

De forma sintética, é possível conceber materialmente cada uma das

funções segundo os seguintes critérios:

a) normativa – fixação de programas gerais e abstratos, formalizados em

normas jurídicas, especialmente em regras;

questão técnica, o que permite propor, como abertura de horizontes hermenêuticos para a próxima parte do trabalho, o trecho final do ensaio A questão da técnica, de Heidegger: Questionando assim, damos testemunho da indigência de, com toda técnica, ainda não sabermos a vigência da técnica; de, com tanta estética, já não preservarmos a vigência da arte. Todavia, quanto mais pensarmos a questão da essência da técnica, tanto mais misteriosa se torna a essência da arte. Quanto mais nos avizinharmos do perigo, com maior clareza começarão a brilhar os caminhos para o que salva, tanto mais questões haveremos de questionar. Pois questionar é a piedade do pensamento. (HEIDEGGER, Martin. Ensaios e conferências. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 38.) 268 MONTESQUIEU. Do espírito das leis. Trad. Jean Melville. São Paulo: Martin Claret, 2002, p. 164 e seg. 269 GRAU, Eros (Op. cit., p. 173). 270 Eros Grau constrói raciocínio semelhante (Idem. Ibidem, p. 176/7).

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b) judicante – decisão de conflitos com a validação e a determinação do

direito para o caso concreto, resultando na estabilização de expectativas de

comportamentos;

c) administrativa – execução do conteúdo teleológico do direito vigente por

uma forma pragmática, estratégica, instrumental e eficaz para atingir fins

coletivos.

O ponto de inflexão do tema do poder normativo no âmbito da

Administração, especialmente dos entes reguladores, não está na mera edição de

programas gerais e abstratos, mas na possibilidade que eles podem vir a ter de

primariamente inovar, construindo sentido autônomo dentro do sistema formal de

regras jurídicas (ordenamento). Numa concepção típica de Estado Democrático de

Direito, os programas gerais com força vinculativa inovadora são frutos de discussões

e acordos dentro de um processo político legitimado pelo sufrágio, o que não se dá no

âmbito da Administração.

No entanto, o influxo de imperativos especialmente do sistema econômico

exige como prestação necessária e indispensável por parte do direito uma capacidade

normativa de conjuntura271 que não pode ser fornecida pelos instrumentos clássicos do

processo legislativo, dado o tempo de sua maturação272 e sua não especialização. O

que se tem nesse caso são demandas sistêmicas cognitivamente absorvidas pelo

direito, resultando numa nova estruturação do direito.

Algo semelhante ocorre com o poder regulador conferido às autarquias de

regulamentação profissional. A especificidade, a tecnicalidade e os discursos de

verdade que marcam as profissões liberais geraram a necessidade de uma burocracia

271 Idem. Ibidem, p. 173. 272 Em Luhmann, o tempo é definido com base na diferença de passado e futuro, não como pontos de partida, mas como horizontes (PINTO, Cristiano Paixão Araújo. Modernidade, tempo e direito. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 240). O dinheiro, por sua vez, como código da economia, não se relaciona ao tempo (ou, mais precisamente ao tempo-espaço) como um fluxo, mas exatamente como um meio de vincular tempo-espaço associando instantaneidade e adiamento, presença e ausência. (GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. São Paulo: Unesp, 1991, p. 32). Ainda de acordo com Giddens, o dinheiro é um mecanismo de desencaixe (Idem. Ibidem). Se referido ao tempo, a capacidade de deslocamento (desencaixe) da instantaneidade do presente para os horizontes do passado e do futuro pelo dinheiro é capaz de alongá-los indefinidamente de forma mensurada, o que faz com que a economia se reproduza numa intensidade muito maior que a do sistema político-burocrático e a do direito. Daí a demanda sobrecarregada por normatização e decisões por parte do direito e do sistema político-burocrático, que resulta nessa normatização de conjuntura.

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autônoma para regrá-las mediante o exercício de uma capacidade normativa de

conjuntura.

Por isso, ao contrário do que defende Eros Grau, com base em Alessi273,

não há sentido em apartar a função legislativa da normativa apenas com base num

critério subjetivo, ou seja, pertinência ou não ao Poder Legislativo. Há uma grande

diferença material entre a função normativa com força primária exercida no âmbito da

Administração e aquela exercida no Poder Legislativo.

É nessa diferença material que reside a explicação para a impropriedade de

se falar em delegação legislativa para o caso da função normativa dos entes

reguladores. Como visto, o Poder Legislativo é inepto materialmente para deter uma

capacidade normativa de conjuntura, o que lhe impossibilita a transmissão dessa

ordem de competências. Disso resulta que, por forças de pressões sistêmicas, a

capacidade normativa dos entes reguladores torna-se uma função a eles inerente.

Nessa ordem de ideias, há efetivamente uma reconfiguração do princípio da

legalidade que assume três formatos: a) garantia de vinculação do Estado às definições

exaustivas da lei (exigência de lex scripta, lex stricta, lex certa e lex praevia no direito

penal) no âmbito da reserva legal absoluta; b) garantia geral de que somente a lei terá

poder normativo primário e inovador para gerar direitos e obrigações; c) exceção à

garantia anterior para os casos em que seja necessária a capacidade normativa de

conjuntura.

Eros Grau expõe corretamente sobre uma cisão no âmbito da legalidade274.

Entretanto, sua vinculação à letra da Constituição e o fato de não atentar para a

distinção material entre a função legislativa (função normativa exercida no âmbito do

Poder Legislativo) e a função normativa, leva-o a fazer uma distinção entre reserva da

lei e reserva da norma, que esvazia drasticamente o princípio da legalidade.

A reserva da lei (reserva legal absoluta) está positivada na Constituição em

seu art. 5º, XXXIX, no art. 150, I, e no parágrafo único do art. 170, parágrafo único.

Não há crime, tributo ou exigência de autorização para atividade econômica sem lei, aí

entendida como um ato legislativo específico. Em face de tais dispositivos específicos,

273 GRAU, Eros (Op. cit., p. 179). 274 Idem. Ibidem, p 183.

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Eros Grau considera que o art. 5º, II, mais geral, tem outra configuração, que permite

falar em reserva da norma (reserva legal relativa), pois esse dispositivo enuncia que

ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de

lei. A obrigação nessa última hipótese não deriva da lei como ocorre na reserva legal

absoluta, mas em virtude dela, o que é compatível com a atribuição, explícita ou

implícita, ao Executivo para, no exercício da função normativa, definir obrigação de

fazer e não fazer que se imponha aos particulares – e os vincule275. Para tal raciocínio,

se existem dispositivos constitucionais que falam da reserva da lei, isto é, matérias que

só podem ser tratadas pela lei, as outras podem ser tratadas pela função normativa da

Administração, constituindo reserva de norma.

O raciocínio é uma inversão radical, de 180º. A proteção do art. 5º, II, da

Constituição Federal praticamente perde todo o seu sentido. Se aceito o raciocínio de

Eros Grau, qualquer assunto, excluídos os temas tributários, penais e de livre

iniciativa, pode ser objeto da função normativa com sentido primário da

Administração. Certamente, não é esse o sentido que a Constituição dá a tal

dispositivo, assim como a reinscrição do princípio da legalidade no art. 5º, XXXIX, no

art. 150, I, e o parágrafo único do art. 170 nada mais são do que reiterações e

estabelecimentos de regimes mais rígidos de legalidade. Aqui a lei não contém

palavras desnecessárias. Simplesmente reforça o sentido garantista do princípio da

legalidade, concebendo-o de forma mais rígida.

Como já aduzido, são três os formatos da legalidade, e a hipótese discutida

da função normativa de entes administrativos é uma exceção vinculada aos

imperativos sistêmicos que a originaram e requerem como prestação uma

normatização de conjuntura. Não é demais reafirmar, a regulação encerra grande

potencial de coerção e riscos, não havendo sentido em deixá-la aberta para toda e

qualquer hipótese.

O primeiro passo para o fechamento dessa competência se dá com a

exigência de autorização legislativa para o seu exercício. É o que impropriamente se

chama de delegação, mas em verdade é uma delimitação, uma configuração e um

direcionamento para o exercício da função, que por sua própria natureza conjuntural só

275 Idem. Ibidem, p. 184.

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130

pode ser exercida pela Administração. Esse é um poder que precisa ser moldado para

ser exercido, o que gera um delineamento de competências com âmbitos distintos para

o Legislativo e para a Administração. O Legislativo deve estabelecer sua conformação,

e a Administração desdobrá-lo276 conforme as exigências conjunturais.

Os Estados Unidos têm longa experiência na utilização de tais instrumentos,

denominando-os tradicionalmente de regulamentos delegados. No seu debate judicial,

teve decisão sobre sua admissão no primeiro quarto do século XIX277. Para tanto, já se

exigia que a lei autorizadora da competência regulamentar estabelecesse standards a

serem observados e objetivos a serem alcançados. Foi pela ampliação de entes

regulatórios a partir do New Deal que o tema ganhou impulso.

Os contornos atuais da delegation doctrine remontam aos ainda hoje

aplicáveis casos Panama Refining Co. v. Ryan278 e A. L.A. Schecheter Poultry Corp. v.

United States279. Nos dois discutiu-se a constitucionalidade do National Insdustrial

Recovery Act (NIRA), editado dentre as medidas do New Deal. No caso Panama

Refining, a discussão travava-se em torno da seção 9, “c”, do NIRA, que conferia ao

Presidente a competência de proibir o transporte de petróleo entre os Estados-membros

para estancar a crise de superprodução de petróleo. Tendo como guia a regra da

Constituição norte-americana de que todos os poderes legislativos são atribuídos ao

Congresso280, em face de vários objetivos vagos a serem atingidos pelo Chefe do

Executivo, a Suprema Corte considerou as diretrizes por demais amplas e inidôneas

para guiar a autoridade pública no exercício dos poderes aí conferidos, o que levou à

declaração de inconstitucionalidade do dispositivo em questão. No caso, Schechter

Poultry, que cuidava de proibição de venda de carne avícola por preço abaixo do

estabelecido, o NIRA foi afastado por completo por razões análogas às do caso

anterior.

276 A alusão metafórica de Eros Grau é plenamente aplicável: a atribuição conferida ao Executivo para aludido exercício poderia ser comparada ao tiro de partida que é dado para que se desenrole uma corrida de 100 metros; a faculdade de correr velozmente é própria a quem participa da prova, como é própria ao Executivo, repito, a função normativa regulamentar (Idem. Ibidem, p. 186). 277 BRUNA, Sérgio Varella. Agências reguladoras - poder normativo, consulta pública, revisão judicial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 100. 278 293 US 388, de 1935. 279 295 US 495, de 1935. 280 Artigo I, seção 1; artigo I, seção 1, § 18.

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131

Nos dois casos, a Suprema Corte considerou que a inconstitucionalidade

advinha não só da insuficiência de critérios para o exercício da competência pelo

Executivo, mas também do não atendimento de requisitos de due process antecedentes

às tomadas de decisões administrativas. É que as leis não estabeleciam que os

interessados deveriam ser comunicados dos projetos normativos para lhes dar a

oportunidade de serem ouvidos e de contribuírem para a instrução do processo

decisório.

Após esses dois primeiros casos, algumas decisões apontaram um

afrouxamento da Suprema Corte. É exemplo o caso National Broadcasting Company

v. United States281, em que se aceitou a amplitude do Communications Act, de 1934,

com base em argumentos de interesse público, no sentido de que os poderes atribuídos

à Federal Communications Commission de atuar em campo técnico e de engenharia

deveriam ser entendidos amplamente, abrangendo a regulação das relações contratuais

das redes de radiodifusão com seus afiliados locais, o que implicou a admissão de

padrões legais elásticos para controle da delegação.

O caso Yakus v. United States282 apresentou outras peculiaridades. Aceitou-

se uma certa amplitude nas diretrizes estabelecidas pela lei para a delegação

legislativa, considerando-se que só ocorreria inconstitucionalidade nos casos em que a

fluidez das disposições fosse de tal ordem que impedisse verificar o atendimento (ou

não) dos comandos legais pelo órgão executor. Cuidava-se, pelos fundamentos da

decisão, em se preocupar se os condicionamentos legais eram suficientes e aptos para

permitir o controle pelo Judiciário.

Embora com nuances, já que se considerava que as delegações deviam ser

julgadas com bom senso e com vistas às necessidades do governo283, permaneceu

como princípio assumido pela Suprema Corte o de ser indispensável a existência de

standards como critérios de aferição de validade das delegações legislativas. É o que

se vê do National Cable Television Association Inc. v. United States284, Skinner v.

Mild-America Pipeline Co.285 e Mistretta v. United States. 286

281 319 US 190, de 1943. 282 321 US 414, de 1944. 283 BRUNA (Op. cit., p. 106). 284 415 US 336, de 1974 285 490 US 212, de 1989.

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A experiência norte-americana dos regulamentos delegados reafirma a

viabilidade do exercício de função normativa no âmbito do Poder Executivo, desde

que se preocupe em circunscrever o seu âmbito com fixação de limites, conformações

e objetivos. Autorizações implícitas ou simples autorizações para o exercício de tais

poderes implicam formações de fendas descaracterizadoras por completo do princípio

da legalidade e de garantias mínimas do Estado Democrático de Direito.

É certo que demandas oriundas dos sistemas econômico e político-

burocrático geram a necessidade de uma normatização de conjuntura no âmbito da

Administração, mas de modo algum em razão dos riscos e potenciais de coerção

envolvidos há sentido para se atribuir ao Executivo um poder amorfo e, por isso, de

difícil controle. Há a necessidade de delimitação de competência, abrangendo pelo

menos três dimensões: limites, conformações e diretrizes287.

Essa delimitação legal da função reguladora é apenas uma etapa inicial288.

Não se pode esquecer que a regulação opera numa dimensão marcada pelo

economicismo, pelo cientificismo e pelo tecnicismo, que têm alto potencial deletério

para a constituição de vivências sociais com base na moral e em valores. A

normatização produzida nesse âmbito mostra-se impregnada de demandas sistêmicas.

Constata-se a necessidade de um deslocamento completo de perspectiva

que pode ser, sofisticada e cuidadosamente, obtido pela referência a um conjunto

coerente de princípios e diretrizes políticas que insiram a produção de regras pela

Administração num plano reflexivo que procure legitimá-las e justificá-las a partir de

considerações de moral políticas, assunto que se encadeará no próximo capítulo.

286 488 US 361, de 1989. 287 Os limites são basicamente interdições de competência. As conformações, por sua vez, amoldamentos e obrigatoriedades de exercício de competências. Já as diretrizes são objetivos de interesse público e da coletividade a serem atingidos com a normatização de conjuntura. 288 Marcelo Figueiredo salienta que o condicionamento não é mais apenas legal, mas também global, pelo ordenamento: Não obstante, portanto, condicionada pelo direito, a Administração Pública, em seu agir, como sabemos, não se revela simplesmente como mera executora das leis. Podemos compreendê-la no mundo contemporâneo, cada vez mais complexo, como protagonista de um papel mais amplo, mais dilatado, tendo já agora o ordenamento jurídico como limite, e não apenas a lei em sentido estrito (FIGUEIREDO, Marcelo. As agências reguladoras. O Estado Democrático de Direito no Brasil e sua atividade normativa. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 292).

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3.º Capítulo – A distinção entre princípios e regras

A vasta literatura que se produziu nos últimos anos sobre a distinção entre

princípios e regras é demonstração eloquente da relevância da problemática que cerca

este antigo tema. Já no Código Austríaco de 1811 se falava em princípios gerais de

direito e, em muitos outros textos legais, eles se fizeram presentes, assim como em

trabalhos de dogmática jurídica e na jurisprudência289.

Como assinalado no 1.º capítulo, o tema ganhou grande impulso com a

publicação, em 1967, do texto Is a law a system of rules?, de Ronald Dworkin. Um

amplo debate iniciou-se a partir daí. A discussão empreendida foi e vai muito além da

mera distinção entre princípios e regras, significando, em verdade, uma outra

abordagem sobre o direito.

Vários lugares-comuns formaram-se no seu desenvolvimento. O de que as

regras se aplicam no tudo ou nada, enquanto os princípios têm dimensão de peso. A de

que regras têm estrutura de hipótese de incidência e consequência, ao passo que

princípios são valorativos ou teleológicos, e assim por diante. É muito frequente nesses

estudos uma catalogação de critérios distintivos, o que tem algum valor didático pela

simplificação e pelo caráter sintético das abordagens.

Compete, no entanto, tomar cuidado com a superficialidade desse tipo de

enfrentamento. A forte preocupação com os princípios no direito não trata apenas da

inserção ou da revalorização de mais um elemento na teoria no direito. O mero

confronto dos princípios com as regras acaba deslocando o foco e excluindo boa parte

das consequências do estudo da temática. Para exemplificar, talvez mais relevante do

que a distinção em questão seja refletir sobre as implicações que o reconhecimento dos

princípios como parte fundamental do direito trazem para o relacionamento entre o

direito, a moral e a política.

289 ATIENZA, Manuel & MANERO, Juan Ruiz. Sobre princípio y reglas. p. 101. In: Doxa. Disponível em http://www.cervantesvirtual.com/servlet/SirveObras/public/12482196462352624198846/cuaderno10/doxa10_04.pdf?portal=4. Acesso em 10.10.2010.

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Uma tensão está como pano de fundo da distinção entre princípios e regras.

O direito concebido como sistema de regras, objeto de um estudo descritivo e

científico, procura valorizar a certeza e o cálculo no direito, que de algum modo pode

ser entendido como produto acabado290. Os princípios, por sua vez, remetem a uma

atitude reflexiva, típica de outras virtudes intelectuais, como a filosofia e a prudência,

abrindo na unidade uma dimensão de indeterminação, abertura e possibilidades291.

Assim, a presente parte do trabalho se assenta em dois eixos: um apanhado

vertical das implicações dessa distinção para a teoria do direito e para as instituições

de direito público e uma exposição horizontal da distinção, procurando retomar e

marcar as várias possibilidades de critérios distintivos entre princípios e regras.

Para a elaboração da abordagem vertical, com preocupação de

aprofundamento, houve uma escolha, sob pena de entrar no labirinto do ecletismo. O

aprofundamento sobre os princípios, as regras e vários outros temas adjacentes,

embora não menos importantes, buscou concentrar-se apenas numa abordagem teórica.

Como não poderia deixar de ser, a opção foi pela teoria que melhor se

adequou aos pressupostos do trabalho. Por isso, a escolha de Dworkin, que fornece

uma concepção hermenêutica e interpretativa do direito como substrato de seu

tratamento sobre os princípios. Houve uma seleção, nas principais obras sobre o tema

– Levando os direitos a sério e O Império do Direito – das ideias que poderiam

guindar a crítica da regulação que se pretende empreender a partir da referência aos

princípios.

A abordagem horizontal a ser realizada não pretende ser exaustiva ou

mesmo pode ser considerada fonte canônica das teorias que possibilitaram a

identificação dos critérios de distinção a serem expostos. A preocupação foi a de

possibilitar uma noção geral e resumida do tema como um dos pontos de apoio para a

reflexão sobre a relação entre os princípios, as regras e, consequentemente, a própria

regulação, colocando em destaque características dos princípios que têm implicações

na concepção de direito e, portanto, na regulação.

290 CASALMIGLIA, Albert. El concepto de integridad en Dworkin. In: Doxa, p.155. Disponível em http://www.cervantesvirtual.com/FichaObra.html?Ref=15638&portal=4. Acesso em 10.10.2010. 291 GADAMER, Hans-Georg. L’inizio della filosofia occidentale. Milão: Edizioni Angelo Guerini e Associati, 2001, p. 23.

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135

3.1 Os princípios jurídicos e seus direitos

3.1.1 Os direitos, os deveres e a dignidade da pessoa humana

Um bom ponto de apoio para entender a discussão inerente aos princípios

está numa verificação de H. L. A. Hart em capítulo de livro intitulado Punishment and

the elimination of responsability:

A sociedade humana é uma sociedade de pessoas; e as pessoas não se consideram, nem consideram as outras pessoas como simples corpos que se movem de maneiras que às vezes são lesivas e que devem ser prevenidas. Em verdade, as pessoas interpretam reciprocamente seus movimentos como manifestação de intenção e escolhas, e esses fatores subjetivos são geralmente mais importantes para as suas relações sociais do que o movimento pelos quais elas se manifestaram ou seus efeitos292.

Como observa Dworkin, esse enunciado resgata tradições morais nas

doutrinas jurídicas. Expressa-se o princípio da dignidade da pessoa humana, como

regente das relações entre cidadãos e entre estes e o governo. Os homens devem ser

julgados por intenções, motivos e capacidades, que constituem seus comportamentos,

e não por meros movimentos, o que levaria a coisificá-los293.

Nessa ordem de ideias, as palavras direito e dever ocupam posição central

na doutrina jurídica. Buscar o significado de ambas é algo incômodo, tão desagradável

quanto suas consequências. Diariamente, pessoas são presas, têm seus bens retirados,

são submetidas a medidas coercitivas etc. com base na alegação de que infringiram a

lei, descumpriram um dever ou desrespeitaram um direito alheio. A justificativa para

coagir ou castigar alguém está nesses conceitos jurídico-fundamentais. É a partir das

concepções do que são direitos e deveres que é possível reconstruir uma teoria sobre

princípios que respeite a dignidade da pessoa humana.

292 HART, H. L. A. Punhishment and responsibility. Oxford: Oxford University Press, 1968, p. 182. 293 DWORKIN, Ronald. Los derechos em serio. Barcelona: Ariel, 1999, p. 56.

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3.1.2 A crítica ao modelo de deveres e direitos do positivismo

Na visão de Dworkin, o esqueleto do positivismo, representado pela

doutrina de H. L. A. Hart, em geral apresenta as seguintes características294:

a) O direito de uma comunidade é um conjunto de regras usadas com o

propósito de determinar quais condutas podem ser objetos de

sancionamento. Essas normas são identificadas não por seu conteúdo, mas

por um critério formal de origem ou pela maneira como são adotadas ou

progridem. Tem-se aí um teste de validade que determina as regras que

compõem o ordenamento afastando espúrias normas sociais ou jurídicas

viciadas.

b) Esse conjunto de regras válidas cobre todo o direito. Se não se tem

claramente uma aplicável a um caso, seja por não se ter uma apropriada ou

pela apropriada ser vaga, o caso não pode ser resolvido por subsunção.

Surge, então, poder para um funcionário buscar outros padrões

extrajurídicos para construir uma nova regra, como exercício de um poder

de discrição.

c) O dever jurídico resulta da verificação de que um caso se inclua dentro

de uma regra jurídica válida que exige ou proíbe algo. A ideia de que

alguém tem direito é uma forma de dizer que um outro tem o dever

correspondente à sua realização. Importa que na ausência de regra jurídica

válida não há dever jurídico. Disso resulta que o juiz ou quem aprecie um

conflito, ao exercer sua discrição, não está impondo um direito referente ao

caso.

Esse é um esquema geral. Decerto há inúmeras variações entre as diversas

formas de positivismo, mas a de Hart é sofisticada, pois distingue regras primárias de

secundárias. As primárias são as que preveem direitos ou impõem obrigações aos

294 DWORKIN, Ronald. Los derechos em serio. Barcelona: Ariel, 1999, p. 66 e DWORKIN, Ronald. Is Law a system of rules? In.: DWORKIN, R. M. The philosophy of Law. Oxford: Oxford University Press, 1977, p. 38.

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membros. As secundárias são regras que formam, reconhecem, modificam ou

extinguem as normas primárias.

Nessa linha, uma regra pode ser obrigatória por dois motivos: 1) um grupo

a aceita como norma para sua conduta ou 2) porque foi promulgada de acordo com

uma norma secundária que estabelece os procedimentos para uma lei ser obrigatória.

Assim, uma regra é obrigatória em face de sua aceitação ou de sua validade.

Nas comunidades primitivas, em que não há distinção entre direito e outras

normas sociais, não se pode falar em normas secundárias. Quando uma comunidade

desenvolve uma regra secundária fundamental, nasce um conjunto distinto de normas

jurídicas. Essa regra secundária fundamental é o que Hart chama de norma de

reconhecimento295.

O ataque ao positivismo tem como base a verificação de que, quando

juristas tratam de direitos e deveres, especialmente nos casos difíceis, em que os

problemas conceituais se agravam, eles usam standards que não funcionam como

regras, mas que operam como princípios, diretrizes políticas e outros tipos de pautas.

3.1.3 Os princípios, as diretrizes políticas e as regras

Dworkin, em geral, utiliza a palavra princípio em oposição a regra, embora

reconheça existir uma diferença entre princípios e diretrizes políticas. Diretriz política

é o tipo de standard que propõe um objetivo que deve ser alcançado, em geral uma

melhora em algum aspecto econômico, político ou social da comunidade296,

destacando-se na sua estrutura o caráter teleológico. Já o princípio, em sentido estrito,

é a um standard que deve ser observado, não porque favoreça ou assegure uma

situação econômica, política ou social que se considera desejável, mas porque é uma

exigência da justiça, da equidade, ou alguma outra dimensão da moralidade297,

constituindo diretivas de caráter jurídico que necessitam de atividade interpretativa na

sua aplicação. 295 HART, H. L. A. O conceito de direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1986, p.111 e seg. 296 DWORKIN, Ronald. Los derechos em serio. Barcelona: Ariel, 1999, p. 72. 297 Idem. Ibidem.

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Sobre a relação entre princípios, regras e diretrizes políticas, pode-se dizer

que toda regra apoia-se e justifica-se em razão de um conjunto de diretrizes políticas a

que supostamente favorece e de princípios a que supostamente respeita298.

Um dos exemplos de Dworkin para explicar os princípios é o caso Riggs v.

Palmer, em que o Tribunal teve de decidir se um herdeiro designado no testamento de

seu avô poderia herdar, tendo cometido assassinato contra o instituidor da herança. Ao

lado da segurança da letra do testamento foi colado o princípio de que ninguém pode

se beneficiar de sua própria torpeza.

Esse tipo de enunciação é muito diferente de uma regra que estabeleça que

a velocidade máxima é de 80 km por hora ou de que um contrato para ser título

executivo deve ser assinado por 2 testemunhas. Habermas299, falando sobre tal

diferenciação em Dworkin, esclarece que as regras são normas concretas, com

especificação direcionada a sua aplicação.

De início, tem-se uma distinção lógica entre princípios e regras. Ambos se

referem a padrões de conduta que apontam decisões atinentes a deveres jurídicos. As

regras são aplicadas de maneira disjuntiva (tudo ou nada)300. Uma vez configurados os

fatos por ela estipulados, então a regra é válida, devendo ser aceita como resposta, ou

bem é invalida e, por isso, não importa em absoluto para a decisão. É ainda possível

que as regras tenham exceções que possam ser enumeradas.

Nem mesmo os princípios que mais se assemelham a regras operam desse

modo em que, dadas as condições previstas, operam-se as consequências. Embora seja

possível afigurar casos em que o princípio de que ninguém pode tirar proveito da

própria torpeza não se aplique, como no caso do usucapião, não se trata de uma

exceção. É que não é possível enumerar todos os casos de sua possível não aplicação,

que podem, no máximo por uma enunciação exemplificativa, aguçar nossa percepção

de peso do princípio301.

Os princípios assinalam direções unívocas, mas não determinam por si só

uma decisão em particular, já que outros princípios podem apontar em direções

298 HABERMAS, Jürgen. Faticidad y validez. Trad. Manuel Jiménez Redondo. Madri: Trota, 2001, p. 319. 299 Idem. Ibidem, p. 278. 300 DWORKI8N (Op. cit., p. 75). 301 Idem. Ibidem, p. 76.

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contrárias, de forma que se influenciem reciprocamente. Se num caso o princípio não

foi determinante para uma decisão, não quer dizer que não possa ser decisivo em

outro. Adotar um princípio jurídico significa que ele, se adequado, deve ser

considerado como critério para se inclinar em determinado sentido por sua dimensão

de peso. Essa dimensão de peso falta às regras. Os conflitos entre regras são questões

de validade, sendo resolvidas por critérios como a regra superior, a posterior, a mais

específica etc.

Há algo em comum entre as regras e os princípios jurídicos, que é o caráter

de serem mandados (proibições, permissões e obrigações) que expressam, por sua

validade deôntica, deveres. Ao contrário das diretrizes políticas, ambos não têm caráter

teleológico302, não se conformando com abordagens utilitaristas de ponderação de bens

ou de consecução de interesse público ou coletivo, que são cabíveis somente para as

diretrizes políticas.

Tanto os princípios como as regras têm valor de argumento nas

fundamentações de decisões. Só que as regras apresentam, em sua estrutura

condicional, os pressupostos de sua aplicação, enquanto os princípios são

inespecíficos.

Identificados os princípios, é fácil ver que estamos rodeados por eles. Em

casos como o Riggs, desempenham um papel de argumentos para fundamentar juízos

referentes a determinados direitos e deveres. O tribunal cita princípios que justificam

a adoção de uma norma nova303. Com a decisão do caso, surge uma regra jurídica,

como a de que o assassino do instituidor da herança não pode ser seu herdeiro.

Isso leva à conclusão inevitável de que os princípios desempenham um

papel importante sobre os deveres jurídicos, ao conduzirem a determinadas decisões.

Surgem, então, duas possibilidades: 1) tratar os princípios como as regras para dizer

que são obrigatórios como direito e que devem ser observados por aplicadores do

direito; 2) negar a obrigatoriedade dos princípios, reconhecendo que o juiz vai além

das regras a que está obrigado em busca de princípios extrajurídicos, estando liberado

para seguir a sua vontade.

302 HAMERMAS (Op. cit., p. 278). 303 DWORKIN (Op. cit., p. 80).

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3.1.4 A discrição

Para entender melhor a segunda posição exposta no item anterior, Dworkin

desenvolve o conceito de discrição304. Ela surge quando alguém se vê encarregado de

tomar decisões sujeitas a normas estabelecidas por uma autoridade. É, por isso, um

conceito relativo. É possível identificar, para o vocábulo discrição, dois sentidos

débeis e um sentido forte.

Um primeiro sentido débil do conceito vincula-se à aplicação por um

funcionário de normas que exigem discernimento, não se podendo aplicá-las

mecanicamente, como, exemplificativamente, no caso de um sargento que recebeu

ordens de um tenente para formar uma patrulha com os cinco homens mais

experientes. Os padrões gerais estão dados, mas é necessária reflexão para aplicá-los.

Outro sentido débil é o de que alguém tem a autoridade para tomar uma decisão final

sobre determinado assunto sem possibilidade de revisão ou modificação, como no caso

do árbitro de futebol quando marca uma falta.

Existe um sentido forte que não se vincula ao uso de discernimento para

aplicação de padrões previamente estabelecidos nem mesmo à autoridade final, mas ao

fato de que simplesmente não se está vinculado de modo algum a padrões impostos

por uma autoridade. Nesse sentido, discrição não significa liberdade absoluta nem

ausência de crítica, porque não se exime o aplicador de utilizar regras de sensatez e

justiça, mas simplesmente sua decisão não está controlada por uma norma de

autoridade superior.

3.1.5 A vinculatividade dos princípios

Com essas observações sobre discrição é possível voltar ao positivismo, em

que a doutrina considera que, se não há norma clara para o caso, o juiz tem discrição.

304 Idem. Ibidem, p. 83.

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Nesse caso, não haverá limitação por normas, mas somente utilização de princípios

que estão além do direito.

Um positivista pode, nessa direção, considerar que os princípios não são

vinculantes, o que é um equívoco. O cidadão tem o direito de que eles sejam levados

em consideração. A obrigatoriedade de uma norma para um juiz ou autoridade

significa que ele deve segui-la, senão estará cometendo um erro305. A parte tem o

direito de que o seu caso seja decidido segundo normas jurídicas vinculativas, aí

incluídos os princípios, e o juiz tem o dever de aplicá-las.

De igual modo, um positivista poderá dizer que, ainda que os princípios

sejam obrigatórios, não podem por si sós determinar uma decisão. Isso, no entanto,

significa apenas que princípios não são regras. Só estas impõem um resultado de forma

peremptória. Os princípios orientam uma decisão num sentido, mesmo que não em

forma conclusiva, e sobrevivem intactos mesmo quando não prevalecem306. A

característica de peso dos princípios não significa que eles não sejam obrigatórios e

que haja espaço para a discrição.

Uma terceira observação de um positivista poderia ser a de que os

princípios são discutíveis por natureza, em seu peso e sua autoridade. É certo que os

princípios não são demonstráveis, mas se pode defendê-los, nesses aspectos, apelando

para práticas, tradições e até mesmo para outros princípios.

A par dessas considerações sobre possíveis argumentos positivistas, há uma

observação decisiva sobre a obrigatoriedade dos princípios. A não ser que se

reconheça alguns princípios como vinculativos para os juízes, tampouco se pode dizer

que as normas são obrigatórias. É o caso da supremacia legislativa e da segurança

jurídica.

Retornando à norma de reconhecimento, Hart considera que as regras

jurídicas são válidas pela promulgação de uma autoridade competente ou, em último

305 Essa observância dos princípios afasta-os da arbitrariedade, como bem ressalta Klaus Günther (GÜNTHER, Klaus. Teoria da Argumentação no direito e na moral: justificação e aplicação. São Paulo: Landy Editora, 2004, p. 411): O descobrimento ou a busca por normas implícitas não ocorre de modo arbitrário, nem com uma intenção legislativa usurpadora. Dworkin insiste para que os juízes não criem novos direitos, mas descubram os direitos que sempre existiram, ainda que frequentemente de modo implícito. Esta argumentação de Dworkin é consequente, porque, no âmago, direitos são de natureza moral, portanto inacessíveis à alteração positivadora... 306 DWORKIN (Op. cit., p. 89).

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caso, na sua aceitação. O problema é que esse tipo de certificação não serve para os

princípios que atuam sobre casos difíceis como o Riggs. A origem dos princípios não

está em qualquer decisão particular ou num ato legislativo, mas num sentido de

conveniência e oportunidade que, tanto no fórum como na sociedade, desenvolve-se

com o tempo307. É por isso que os princípios não são revogáveis ou rechaçáveis, mas

simplesmente se desgastam.

Referências institucionais são necessárias para se assentir sobre a existência

de um princípio, como exemplos identificados em precedentes, em artigos de lei etc.

Entretanto, não há fórmula para dizer a partir de quando e em que medida um princípio

se converte em jurídico. Para advogar por um princípio é necessário lidar com

inumeráveis padrões cambiantes – que são também princípios – sobre interpretação,

responsabilidade institucional, práticas morais e assim por diante. Isso não pode ser

reunido para formar uma única norma (regra), a de reconhecimento. É que a lista de

princípios é inumerável e exige que o aplicador vá além dos limites do direito,

entrando na moral e na política. Dworkin esclarece:

Se uma teoria do direito tem de proporcionar uma base para o dever judicial, então os princípios que enuncia devem tratar de justificar as normas estabelecidas, identificando as preocupações e tradições morais da comunidade que, na opinião do jurista que elaborou a teoria, fundamentam realmente as normas. Esse processo de justificação conduz o jurista a aprofundar na teoria política e moral além do que seria necessário dizer que algum “critério” de “justificação” serve para decidir, entre duas teorias diferentes de nossas instituições políticas, qual é a melhor.

As técnicas de que se pode valer para defender um princípio não estão, de

modo algum, num nível diferente dos próprios princípios que os fundamenta. É

estranho falar-se em validade de princípios, sendo mais pertinente falar em integração

e integridade no conjunto de princípios.

Outra verificação que coloca em xeque uma regra mestra de

reconhecimento é a de que na solução de casos como o Riggs enuncia-se uma regra

(especificamente a de que o herdeiro que matou o instituidor da herança não pode

herdar). É dizer, normas buscam fundamento e validação em princípios e diretrizes

políticas308.

307 Idem. Ibidem, p. 95. 308 Idem. Ibidem, p. 99.

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O positivismo, a partir da norma de reconhecimento, considera que um

dever só advém a partir de uma regra integrante do ordenamento jurídico. Disso se

retira a ideia de que num caso difícil, em que não haja norma clara, o dever só surge

quando a autoridade cria uma nova norma, que passará a regrar a situação ex post fato.

É o que se tem com a aplicação da doutrina positivista da discrição.

Desse modo, se em alguma hipótese não está clara a regra a ser aplicada,

qual é o direito que o juiz ou outra autoridade têm o dever de aplicar. Pode-se dizer, o

juiz não tem dever algum, só se podendo falar do que seria melhor ele fazer. O

problema é que isso não casa com uma concepção moral nem jurídica de dever. Não é

concebível que juízes, como autoridades, tenham poderes não limitados, ao exercerem

discrição. É certo que, nos casos difíceis, os juízes sentem-se inseguros, mas sua

dúvida é quanto à solução do caso, mas não sobre terem deveres.

Se o juiz tem a um só tempo dever moral e jurídico na resolução de uma

controvérsia conforme o direito, a nítida divisão que se forma com a regra de

reconhecimento deixa de ter sentido. É falsa a ideia tradicional de que as normas

jurídicas podem se distinguir, em princípio e como grupo, das normas morais ou

políticas309.

Deixando tal teoria de lado e passando a tratar os princípios como direito,

uma constelação de princípios poderá ser a fonte de deveres. O positivismo é

insuficiente, ficando às margens dos casos difíceis com uma doutrina que não diz

nada. Foi sua simplicidade que tanto papel atrativo desempenhou no direito, mas o

abandono desse modelo de um sistema de regras pode abrir espaço para um outro que

se ajuste mais a complexidades e sutilezas de nossas próprias práticas310.

3.2 Os casos difíceis

Nos casos fáceis (por exemplo, quando se acusa um homem de violar uma

disposição que proíbe exceder o limite de velocidade), parece correto dizer que o juiz

309 Idem. Ibidem, p. 120. 310 Idem. Ibidem, p. 100.

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se limita a aplicar uma regra anterior a um caso novo311. O juiz ou um administrador

aplicam padrões já estabelecidos e específicos e, por isso, justifica-se seu poder

político. No entanto, que dizer dos casos difíceis em que as cortes apelam a princípios

com conteúdo político-moral? Requer-se justificação suplementar?

A questão da justificação é importante por dois motivos: o primeiro por

afetar a extensão da autoridade; e o segundo, a extensão moral e jurídica que tem o

indivíduo de obedecer à regra produzida pela autoridade. Os problemas linguísticos de

indeterminação e vaguidade têm aí subjacentes questões morais312. As questões de

jurisprudência [estudos jurídicos] são, no mais profundo, problemas de princípios

morais, não de fatos legais ou de estratégias313. Isso ficou encoberto pela teoria

jurídica tradicional, mas as pesquisas atuais devem encarar os casos difíceis em sua

conexão com a moral, para terem êxito.

O positivismo tem uma teoria para os casos difíceis. Na ausência de uma

regra clara para um conflito, o juiz ou a autoridade administrativa passam a ter

discrição, para decidi-lo. De acordo com esse entendimento, introduzem um novo

direito depois de apreciar o caso, aplicando-o retroativamente.

Uma teoria assentada em princípios defende o contrário. Ainda que

nenhuma regra resolva o caso, é possível, e mais, é obrigatório, que uma das partes

tenha o direito de ganhá-lo. É dever da autoridade, mesmo em casos difíceis,

reconstruir quais são os direitos das partes, em vez de inventar retroativamente direitos

novos314.

Uma teoria dos casos difíceis não significa que exista um procedimento

mecânico para encontrar soluções para eles. Muito ao contrário, haverá divergências e

questionamentos, mas isso não impede que se busque uma resposta até mesmo correta,

que o juiz ou a autoridade administrativa têm o dever de encontrar para satisfazer a

justa pretensão das partes.

311 Idem. Ibidem, p. 47. 312 Idem. Ibidem, p. 48. 313 Idem. Ibidem, p. 51. 314 Idem. Ibidem, p. 146.

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3.2.1 Os princípios e as diretrizes políticas

Idealmente, os juízes devem aplicar o direito promulgado por outras

instituições, não devendo lançar mão de regras novas. O problema é que nem sempre

as leis são claras e, ainda, surgem casos tão novos que estão além da interpretação das

regras existentes. Alguns considerariam que os juízes devem legislar, de forma

encoberta ou explícita, atuando como representantes do Legislativo. Em verdade,

juízes e quaisquer aplicadores do direito não podem atuar como legisladores. Para

entender essa conclusão, basta remontar à distinção entre princípios e diretrizes

políticas.

Em ambos os casos, trata-se de argumentos. Nas diretrizes políticas, têm-se

justificativas para uma decisão que favorece ou protege alguma meta coletiva da

comunidade como um todo, como o caso de subsídio para fabricantes de aviões com o

objetivo de fortalecer a defesa nacional. Os princípios fundamentam uma decisão de

moral política, demonstrando que se está respeitando ou assegurando algum direito

individual ou do grupo, como, no caso, de uma lei contra discriminação que defende

que uma minoria tem direito a igual consideração e respeito. Em suma, os princípios

estabelecem um direito subjetivo e as diretrizes políticas tratam de objetivos

coletivos315.

Um programa legislativo de complexidade pode operar com os dois tipos de

argumentos. É evidente que o Poder Legislativo tem competência para se valer de

diretrizes políticas. No entanto, as decisões judiciais devem necessariamente pautar-se

por argumentos de princípios concernentes a direitos.316 Dworkin tematiza

principalmente a atividade jurisdicional, o que deixa um campo aberto para a reflexão

sobre os lindes do direito para a função administrativa.

No caso de normas e decisões administrativas, o assunto tem maior

complexidade, mas não se discute que a Administração tem de se pautar por

315 Idem. Ibidem, p. 158. 316 Idem.Ibidem, p. 152

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princípios, direitos e pelos limites legais (regras). O problema é que em temas como a

regulação abre-se ao administrador uma esfera de apreciação que diz respeito à

definição de fins coletivos e, portanto, de diretrizes políticas. Em suma, na

Administração, as decisões dizem respeito tanto a princípios, direitos, limites legais

(regras) e diretrizes políticas. É nessa confluência que reside o problema da

justificação, legitimação e controle dos atos administrativos, especialmente os de

regulação.

3.2.2 A tese dos direitos

A tese de que o juiz tem o dever de decidir, de acordo com princípios, os

casos difíceis, significa que ele aplica direitos preexistentes. O mesmo pode ser dito do

administrador, que também tem o dever de entregar a prestação que lhe cabe dentro

dos limites do direito, que advém não só da legalidade, mas também dos princípios e

dos direitos dos cidadãos.

Princípios e direitos encontram-se espelhados na história institucional, que

não é uma limitação da decisão, mas parte integrante desta, como sua condição de

possibilidade. É pela reflexão sobre o passado concernente à sua atividade que

emergem as soluções que configurarão a entrega da prestação a que o cidadão tem

direito, seja a decisão jurisdicional, seja um serviço público.

Uma decisão judicial não deixa de ser uma decisão política, mas essa

verificação não significa que ela se ampare em diretrizes políticas. Seu substrato é uma

constelação de princípios que exige coerência na sua aplicação. Mesmo as inovações

jurisprudenciais devem obedecer a um fio condutor de sentido que as vincule aos

precedentes anteriores e aos hipotéticos futuros317.

A tese dos direitos como solução para os casos difíceis se assenta em

algumas considerações: 1) na firme distinção entre direitos individuais e objetivos

317 Idem. Ibidem, p. 156. Essa ideia foi desenvolvida de forma mais completa em outra obra de Dworkin – O Império do Direito – sob a denominação de integridade, que será tematizada mais à frente.

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sociais; 2) no papel dos precedentes; 3) na de que os juízes devem formular juízos de

moralidade política sobre os direitos em jogo.

Um direito é uma finalidade política individualizada318, em que o indivíduo

tem direito a uma liberdade ou recurso que leva a uma decisão que lhe permite

desfrutar desse bem, mesmo que isso não sirva a qualquer outro objetivo político ou

mesmo quando o prejudique.

Por sua vez, um objetivo é uma finalidade política não individualizada, isto

é, um estado de coisas em que a especificação não implica nenhum recurso ou

liberdade para indivíduos. Os objetivos coletivos estimulam intercâmbios de

benefícios e ônus na sociedade, visando a produzir algum benefício global. A

eficiência econômica é um exemplo de objetivo coletivo.

Cabe distinguir direitos concretos de abstratos e, por isso, princípios

concretos de abstratos. O direito abstrato é uma finalidade política geral que não

determina sua comparação com outras finalidades políticas. Os grandes direitos da

retórica política são exemplo, como é o caso da liberdade de expressão, da dignidade,

da igualdade etc. Os direitos concretos, por sua vez, são finalidades com maior

precisão, expressando claramente o peso que têm com outras finalidades em

determinadas ocasiões. É o caso de um princípio que estabeleça que um jornal tem

direito de publicar planos de defesa secretos, desde que isso não implique danos físicos

para a tropa envolvida na notícia319.

A tese dos direitos considera que um juiz deve decidir os casos difíceis

concedendo ou negando um direito concreto. E mais: esses direitos têm principalmente

características institucionais e são muito mais jurídicos do que de qualquer outra

ordem.

A história jurídica constrói-se principalmente em torno dos direitos dos

cidadãos que, obviamente, são deveres para as autoridades, inclusive para as

administrativas. Isso configura padrões de política e moral institucionais que afastam a

autoridade de considerações de política geral320 ou, no mínimo, impedem-na de

enxergar apenas objetivos ou interesses coletivos.

318 Idem. Ibidem, p. 159 319 Idem. Ibidem, p. 162. 320 Idem. Ibidem, p. 172.

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3.2.3 Os direitos constitucionais

A Constituição e especialmente a declaração de direitos321 se destina a

proteger os cidadãos, isoladamente ou em grupo, contra determinadas decisões que a

maioria tome, mesmo na perspectiva de ser de interesse geral ou para o bem

comum322. Nesse cenário, é uma questão que merece atenção especial a dos direitos e

dos princípios que sejam vazados em linguagem que se considere vaga.

Há uma distinção que pode esclarecer a reflexão em torno desses direitos e

princípios. É a que se dá entre conceito e concepção. O apelo ao conceito se coloca

acima das opiniões individuais acerca do que se debate. A concepção, por sua vez,

exige especificação do que se entende do tema debatido. O conceito é algo posto para

o debate, e a concepção é uma proposta de sua resolução.

Cláusulas constitucionais como igualdade, liberdade, devido processo legal,

obviamente dizem respeito a conceitos e não a concepções principalmente prontas e

acabadas, mesmo as dos constituintes e dos legisladores. Pode-se bem entender o

assunto a partir da assertiva de que princípios como esses visam a solucionar casos que

são de todo imprevisíveis e que não comportam ex ante a determinação de uma

solução correta.

Com essa diferenciação, pode-se considerar um erro chamar esses

princípios de vagos. Não são concepções incompletas, esquemáticas ou mal-acabadas.

Talvez fosse melhor ser impreciso, falando em delegação para o aplicador, algo mais

próximo do adequado. Se tomarmos esses princípios como conceitos com origem

moral, não poderemos detalhar muito mais323. A abertura é indispensável324.

321 Na visão de Dworkin, há forte aproximação entre direitos e princípios. Todavia, com a utilização do vocábulo direitos, põe-se em relevo seu caráter contramajoritário. 322 Essa ideia também está presente no trecho (DWORKIN, Ronald. Liberalismo, Constituición y Democracia. Trad. Julio Montero e Alfredo Stolarz. Buenos Aires: Isla de La Luna, 2003, p. 44): Todo funcionário jura lealdade à Constituição e é assim que tem a responsabilidade de desafiar a vontade popular quando as garantias constitucionais estão em jogo. 323 DWORKIN, Ronald. Los derechos em serio. Barcelona: Ariel, 1999, p. 210. 324 A ideia está muito bem expressa por Allard (ALLARD, Julie. Dworkin et Kant. Reflexion sur le jugement. Bruxelas: Editions de l’Universite de Bruxeles, 2001, p. 122/3): Em verdade, o texto da lei utiliza palavras

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Em verdade, se os tribunais e as autoridades desejam ser fiéis a tais direitos

e princípios, têm necessariamente de estar dispostos a discutir os conceitos a eles

inerentes e decidir por uma das concepções políticas que se apresentem e que melhor

se amoldem a uma constelação de princípios como justificadora de uma solução para

satisfazer o direito em questão.

É possível que os aplicadores prefiram dar deferência às concepções de

outras instituições, como o Parlamento ou mesmo por manter entendimentos já

assentados, mas é decisivo reconhecer que a Constituição é a fonte fundamental e

imperativa do direito constitucional325, o que sempre exigirá os enfrentamentos

institucional e jurídico de questões de moral política. Isso leva a um certo ativismo

judicial, no sentido de que os indivíduos têm direitos também com conteúdo de moral

política contra o Estado, o que os obriga a um juízo referente ao que está bem ou está

mal que façam os governos326 a seus cidadãos.

Isso também vale para a Administração, especialmente quando o que ela

aplica são regras derivadas de seu próprio poder normativo, de seu poder regulador.

Tem-se uma lei autorizadora, com limites, condições e finalidades do exercício do

poder em termos abertos, obviamente exigindo a complementação coadunada com

princípios e diretrizes políticas pertinentes. Isso, aliado ao fato de que a capacidade

normativa de conjuntura tem raízes constitucionais, existindo apenas autorização legal

para o seu exercício, deixa muito claro que o administrador, nesse caso, está

diretamente vinculado ao texto constitucional, devendo justificar o seu ato em

referência aos direitos, aos princípios e às diretrizes políticas.

3.2.4 Os direitos levados a sério

ambíguas, vagas e abstratas. São as obscuridades linguísticas. Essas obscuridades e confusões são necessárias ao direito, de modo que se pode aí encontrar a vontade do legislador de deixar aberto o direito (aberto para a razão prática). É que ‘não podemos localizar na ambiguidade, no vago ou na abstração, numa expressão ou numas palavras, as dúvidas que nós temos’. Dworkin conclui que “o epíteto ‘obscuro’ é o resultado, mais que a ocasião, do método que pratica o juiz para interpretar os textos de direito.” O objetivo é deixar o direito aberto à interpretação, ou seja, às interpretações sucessivas. Em termos kantianos, trata-se de apelar à faculdade de julgar de todos os membros da comunidade de princípios”. 325 DWORKIN (Op. cit., p. 216). 326 Idem. Ibidem, p. 219.

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É inevitável que o Estado tenha a última palavra sobre os direitos dos

indivíduos, porque seus funcionários farão o que for decido pelos tribunais ou mesmo

por outras autoridades. Não pode significar, entretanto, que as suas decisões sejam

necessariamente corretas. O cerne dos direitos individuais, chamados por Dworkin

também de direitos morais327, em razão de sua inequívoca universalização de juízos

práticos e políticos (moral política), é serem oponíveis ao Estado, incluído o próprio

Judiciário. Se esses direitos são efetivamente reconhecidos, é preciso aceitar que a

interpretação de qualquer autoridade, ou dos tribunais, não põe definitivamente uma

pedra sobre o assunto. Pensar de outro modo é negar tais direitos, retirando-lhes seu

caráter de argumentação e reflexão.

A Constituição brasileira, como a norte-americana, traz um rol de direitos

jurídicos individuais328. Com base em seu texto, leis podem ser consideradas nulas.

Por outro lado, o caráter aberto de tais direitos faz com que a Constituição reúna

questões jurídicas e morais, como na discussão de se uma lei respeita o direito a igual

respeito e consideração329. Esse mesmo caráter conceitual e aberto dos direitos

individuais ou morais impede que se possa considerar que o texto da Constituição

abarque todos os direitos que têm os cidadãos.

Outro ponto a ser discutido é se os cidadãos têm o dever de obediência à lei

mesmo quando ela ofende seus direitos. Uma decisão da Suprema Corte ou do

Supremo Tribunal Federal continua sendo uma decisão jurídica, devendo levar em

conta textos positivados, precedentes e demais condições institucionais. Embora sejam

necessárias decisões para evitar a anarquia, nada garante que sejam sempre corretas.

327 Idem. Ibidem, p. 277. 328 A declaração de direitos forma um esqueleto principiológico (DWORKIN, Ronald. Freedom’s Law. The moral reading of the american constitution. Cambridge: Harvard, 2003, p. 73): Em sua leitura mais clara, o Bill of Rights estabelece uma rede de princípios, alguns extremamente concretos, outros mais abstratos e alguns de abstração quase ilimitada. Em conjunto, estes princípios definem um ideal político: eles constroem o esqueleto constitucional de uma sociedade de cidadãos iguais e livres. 329 De iguais respeito e consideração decorre a igualdade de recursos que pode ser entendida a partir do trecho (DWORKIN, Ronald. A virtude soberana. A teoria e a prática da igualdade. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 209): Mas a forma igualmente fácil da neutralidade não tem papel nenhum na igualdade de recursos; pertence a uma versão da concepção diferente que chamei de igualdade de bem-estar. A igualdade de recursos almeja a neutralidade em outro sentido: pretende que os recursos que as pessoas têm à disposição, com os quais realizarão planos, projetos ou modos de vida, sejam definidos pelos custos de terem esses e não outros, e não por qualquer juízo coletivo sobre a importância comparativa das pessoas ou o valor comparativo dos projetos ou das moralidades pessoais.

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Isso se explica, pois questões controvertidas levantam intrincados problemas, inclusive

de ordem moral.

As decisões das autoridades, apesar de definitivas para os casos ali

decididos, são apenas um começo para o seu debate, e não um fim. Não se pode exigir

que o Estado dê sempre respostas corretas e adequadas para os direitos dos cidadãos,

mas o mínimo que se pode esperar é que tente, levando esses direitos a sério, seguindo

uma teoria coerente sobre eles e atuando de forma congruente com seus compromissos

institucionais330.

Mesmo no caso de uma Suprema Corte, não se pode afirmar de modo

peremptório que sua decisão sobre determinado tema seja a correta, embora

inequivocamente seja seu dever proferir uma decisão acertada, dado que direitos

constitucionais têm abertura interpretativa por sua própria natureza, inserindo no

debate jurídico temas de moral política. É inevitável que todas as autoridades tenham,

numa democracia, de se confrontar com intrincadas questões em torno dos direitos.

Isso, todavia, não as exime da obrigação de respeitar tais direitos,

procurando entregar a prestação que melhor os satisfaça e resguardando ao cidadão,

pela dimensão reflexiva desses direitos, a faculdade de pôr em questão suas decisões.

Se a autoridade leva os direitos a serio, como é seu dever, tem de atuar de maneira a

explicitar uma teoria coerente e concretizar uma prática institucional congruente como

forma de densificar os direitos, em que pese a sobrecarga que o caráter aberto dos

direitos constitucionais lhe imponha, para cumprir sua missão.

3.2.4.1 O direito de desobedecer a leis e a normas administrativas?

Numa democracia que respeite os direitos individuais há o dever, de

conteúdo moral, de que os cidadãos respeitem todas as leis, mesmo que algumas os

desagradem e portanto gostariam de que mudassem. Só que esse não é um dever

absoluto.

330 DWORKIN, Ronald. Los derechos em serio. Barcelona: Ariel, 1999, p. 278.

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Além dos deveres para com o Estado, o indivíduo tem outros deveres como,

por exemplo, os com a sua consciência331. Em última instância, conduz o indivíduo a

ter o direito de fazer o que julga correto, assumindo os riscos de julgamento e de

punição pelo Estado, em reconhecimento também da existência de um dever para seus

concidadãos.

Uma reflexão sobre o que significa direito, em sentido subjetivo, pode

esclarecer a questão. Quando se diz que alguém tem direito a algo, considera-se que

está errado interferir na sua ação ou, no mínimo, que para justificar tal interferência se

precisa de uma razão especial. Se os direitos individuais, com base moral, são direitos

contra o Estado, o cidadão tem o direito de desobedecer a uma lei ou norma sempre

que firam injustamente seu direito, inclusive valendo-se do acesso à Justiça, mas os

princípios não podem ser amesquinhados com a restrição de seu debate apenas no

Judiciário. O campo dos princípios é amplo, abrangendo a sociedade civil, o

Legislativo, o Executivo e transitando entre as linguagens técnicas, institucionais e

natural. Enfim, os instrumentos judiciais de controle de constitucionalidade não podem

encerrar o debate e a concretização dos direitos.

Se toda vez que uma lei fosse de duvidosa inconstitucionalidade frente a

direitos do indivíduo, fosse ele obrigado a agir como se ela fosse válida, perder-se-ia o

principal meio que uma democracia dispõe de controlar o conteúdo de suas leis. Com

o tempo o direito seria cada vez menos justo e certamente os cidadãos menos livres332.

Os direitos individuais são trunfos333 políticos nas mãos dos indivíduos334.

Os cidadãos têm direitos quando um fim coletivo não é justificação para lhes negar o

que querem ou quando, por questão de princípios, não se lhes justifica a imposição de

uma perda. Essa é uma definição formal de direito, não remetendo a nenhum caráter

metafísico nem mesmo garantindo que se tenham direitos.

331 Idem. Ibidem, p. 279. 332 Idem. Ibidem, p. 312. 333 É interessante observar que a teoria sistêmica também considera os direitos fundamentais como uma aquisição evolutiva, essencial não só para o indivíduo como para a sociedade (LUHMANN, Niklas. I diritti fondamentali como istituzione. Bari: Edizioni Dedalo, 2002, p. 294): Essa interdependência torna necessária a institucionalização de uma pluralidade de direitos fundamentais, que preservam contemporaneamente a individualidade pessoal, a civilização das expectativas de comportamento, a orientação ao dinheiro da economia e o fundamento do poder da sua inclusão na esfera de competência do sistema político. 334 DWORKIN (Op. cit., p. 37).

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Com o fim de proteger os direitos, só se podem reconhecer como

concorrentes, para efeito de justificação de decisões estatais restritivas de direitos, os

concernentes a outros indivíduos335. A utilidade ou o interesse público não podem

desempenhar essa função, pois com isso os direitos individuais perdem seu sentido de

proteção de minorias contra decisões que convêm à maioria.

É certo que a obediência à lei é algo de interesse público, mas isso não pode

ser um argumento definitivo. O que respalda a inobservância de uma lei

inconstitucional pelos indivíduos são seus direitos em sentido forte. É o que defende

Dworkin336:

[...] Disse que qualquer sociedade que pretenda reconhecer os direitos deve abandonar a ideia de um dever geral de obedecer à lei que seja válido em todos os casos. Isso é importante, porque mostra que as reclamações de direitos de um cidadão não se podem encerrar sem reflexão. Se um cidadão sustenta que tem direito moral a não prestar serviços no exército, ou a protestar de uma maneira que ele considera efetiva, então o funcionário que queira dar-lhe a resposta, e não simplesmente obrigá-lo a obedecer por força, deve responder ao ponto que ele assinala, e não pode valer-se da lei de recrutamento nem a uma decisão da Suprema Corte como argumento de peso especial e muito menos decisivo. Às vezes, um funcionário que considere de boa-fé os argumentos morais do cidadão, convencer-se-á de que a reclamação deste é plausível, e inclusive justa. Disso não se segue, no entanto, que sempre se deixará persuadir ou que sempre deva fazê-lo.

Os direitos em sentido forte sempre deixarão uma abertura e terão um grau

de indeterminação. Várias questões ficarão sem respostas claras. Por isso, o

descumprimento de uma lei que viole direitos deve ser feito com prudência e boa-fé.

Qualquer indivíduo que esteja insatisfeito com as autoridades deve ter em mente que,

numa sociedade pluralista, há multiplicidade de entendimentos sobre os direitos e,

principalmente, que os direitos alheios devem ser respeitados. Se um funcionário

considera que um cidadão não tem o direito de descumprir determinada lei, deve-se

perguntar de boa-fé se faz bem em impor a lei ou uma norma. As proposições simples

e draconianas, segundo as quais o crime deve ser castigado e quem entende mal a lei

deve ater-se às consequências, tem extraordinário arraigo na imaginação tanto

335 O giro de perspectiva proposto por Dworkin, ao levar os direitos subjetivos a sério, inclusive os de moral política, faz com que o princípio de direito administrativo de que o interesse público prevalece sobre o particular (como exemplo veja-se FIGUEIREDO, Lucia Valle. Curso de direito administrativo. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 65) perca o seu sentido. Está muito claro pela sua teoria que o interesse público é a conjugação dos direitos particulares, que têm prevalência sobre objetivos coletivos, até mesmo como forma de proteger a minoria da maioria. 336 DWORKIN (Op. cit., p. 292).

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profissional como popular. No entanto, o direito é mais complexo e inteligente e é

importante que sobreviva337.

O conteúdo de moral política faz com que os indivíduos possam

compartilhar com as autoridades justificações e argumentos que permitam chegar a

uma concepção sobre o que são os direitos. No caso das leis e das normas

administrativas, esses direitos podem excluir o cumprimento de uma lei ou ato

normativo. Há margem para que o cidadão de boa-fé possa optar por seguir a sua

consciência e não seguir a lei ou norma em questão, obviamente assumindo as

consequências. Contudo, a dimensão reflexiva dos direitos colocará para a autoridade

a dúvida sobre se efetivamente a questão de impor o cumprimento da lei ou norma é

tão simples. Isso é consequência de reconhecer que juridicamente existem os casos

difíceis que implicam questões de moral política, exigindo dos agentes públicos que

levem os direitos a sério com maior reflexão no seu trato338.

A lei, atos normativos da Administração e decisões judiciais não são

argumentos definitivos que exaurem o debate sobre direitos e princípios. Eventuais

regras estampadas em tais atos não podem encerrar um caso na base do “tudo ou nada”

ou na mera subsunção, por ser um caso fácil.

É garantia do cidadão debater seus interesses perante as autoridades sob o

ponto de vista dos direitos e dos princípios, como um caso difícil. A Constituição não

afeta apenas o Judiciário. Por isso, quando colocado em jogo um direito fundamental,

é dever de um funcionário de boa-fé considerar argumentos de moral política do

cidadão que dizem respeito ao seu direito. É nesses termos que a decisão de uma

autoridade deve ser justificada, e não com o confortável simplismo da aplicação de

regras.

337 Idem. Ibidem, p. 326. 338 Essa concepção de Dworkin é incompatível com os tradicionais princípios de presunção de constitucionalidade da lei (como exemplo ver BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 391) e de legalidade dos atos administrativos (como exemplo ver FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso de direito administrativo. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 171). Explica-se pelo giro metodológico por ele empreendido ao reconstruir o Direito e suas instituições a partir dos direitos subjetivos e dos deveres das autoridades, e não de um sistema de regras ou leis.

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155

As definições do direito não se apoiam na mera força, na simples sanção e

apenas na coerção. Resultam da validade, da fundamentação e da legitimação339. A

mera positivação de normas contendo regras não exime a autoridade quando se depara

com direitos de buscar fundamentação na constelação de princípios. É necessário

justificar o ato, especialmente com juízos de moral política, mormente quando os

direitos em questão envolvem entes regulatórios que exercem competências abertas, o

que exige alta reflexividade e não meros juízos descompromissados de subsunção. O

alto poder de coerção encerrado nos atos dos entes reguladores deve ser

contrabalançado com o elevado potencial de legitimação de um debate guiado por

princípios. Esse tipo de justificação é dever de quaisquer autoridades, incluídas as

administrativas.

3.2.4.2 Os direitos controversos

Se há direitos fortes, algo que tem de ser aceito é que o direito do indivíduo

sobrevive mesmo contra leis e sentenças opostas, que valem como decisões, mas

jamais podem implicar a supressão da possibilidade de o cidadão questionar tais atos,

ainda que apenas no uso de seu direito de livre expressão. Um homem tem, sem

dúvida, o direito de expor suas opiniões de maneira não agressiva.

É parte da tarefa das autoridades definir os direitos por leis, normas e

decisões judiciais, aclarando oficialmente seus limites, inclusive no que se refere à

institucionalização jurídica de seu conteúdo moral. Todavia, há um caminho que deve

ser visto com reservas: o de que se deve buscar um equilíbrio entre os direitos dos

indivíduos e as exigências da sociedade. É algo estabelecido nas retóricas judicial e

política340. A instituição de direitos exigíveis contra o Estado é complexa e difícil e,

certamente, torna mais custoso assegurar o benefício geral.

339 Há uma tensão constitutiva no direito que pode ser apreendida nos títulos de livros como o Faticidade e Validade de Habermas (HABERMAS, Jürgen. Factidad y Validez. Trad. Manuel Jiménez Redondo. Madri: Editorial Trotta, 3ª ed., 2001) e Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil de Marcelo Neves (NEVES, Marcelo. Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil. São Paulo: Martins Fontes, 2006). 340 DWORKIN (Op. cit., p. 294).

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156

Há ideais que os tornam indispensáveis. O primeiro, tão importante quanto

aberto, é a ideia de dignidade da pessoa humana, que supõe que existem maneiras de

tratar um homem que são incompatíveis com sua pertinência à sociedade e, portanto,

devem ser prontamente afastadas. O segundo ideal é o da igualdade, que traz em si a

noção de que os membros de uma comunidade merecem igual respeito e

consideração341, o que implica que a liberdade de escolha sobre os destinos coletivos

deve ser a todos distribuída.

As violações a esses direitos são injustiças graves. Para preveni-las, sem

dúvida, vale o custo adicional para a política social e para a eficiência. Se há um

equilíbrio a ser buscado pelas instituições públicas, ele se dá entre os direitos e os

princípios que dizem respeito aos indivíduos, e não entre direitos e diretrizes políticas.

Se enfrentada a questão pelo prisma da maioria, corre-se o sério risco de esses direitos

perderem todo o seu sentido. Se os direitos são levados efetivamente a sério como

devem ser, ferir um direito é muito mais grave que estendê-lo342.

Conclui-se que a prática dos direitos individuais pode colocar em questão o

dever de obediência às leis. Supostas razões de bem comum merecem cuidado, pois

podem esfacelá-los. O direito não pode ser neutro em relação a políticas sociais e

econômicas, permeando-se da concepção que a maioria tem do que é o bem comum.

Aí mesmo é que os direitos individuais são cruciais. Refletem o compromisso que a

maioria tem com as minorias de que sua dignidade e sua igualdade serão respeitadas,

sobretudo nos momentos de maior divisão.

No que diz respeito à Administração, é certo que o bem comum, a

eficiência e o bem-estar geral são diretrizes norteadoras de sua atuação. O problema é

que a dignidade da pessoa humana e o direito ao igual respeito e consideração são

mais que meros objetivos, são questões de princípios e de direitos, que impõem

deveres para as autoridades. A par de se preocupar com objetivos que dizem respeito à

coletividade, algo que se impõe aos administradores enfaticamente é a realização e o

341 O mesmo ponto de vista pode ser colocado de outra forma (DWORKIN, Ronald. The roots of justice. In.: WESCHE, Steffen & ZANETTI, Véronique. Dworkin, Bruxelas/Paderborn: Ousia/Verlag, 1999, p.89): O princípio da igualdade subentende que as comunidades políticas devem tratar seus próprios membros com igual consideração: nenhuma decisão política é permitida que não possa ser justificada a partir do pressuposto de que cada cidadão é tão importante, no ponto de vista da comunidade, quanto qualquer outro. 342 DWORKIN (Op. cit., p. 296).

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respeito aos direitos, embora não vazados em textos legais. Em resumo, o interesse

público e a legalidade são nortes na atividade administrativa, mas os princípios e os

direitos constitucionais são obrigações perante os cidadãos, ainda mais quando se trata

de um exercício de uma competência normativa aberta.

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158

3.3 Os princípios e a integridade

Na busca de uma sociedade melhor, a política comum tem alguns ideais em

comunhão com a utópica. São as virtudes políticas da equidade, da justiça e do devido

processo legal adjetivo. A equidade diz respeito às instituições, aos métodos e aos

procedimentos políticos de adequada distribuição de poder. A justiça se refere a como

distribuir recursos, bens, oportunidades e liberdades civis de modo moralmente

aceitável. Por sua vez, o devido processo legal adjetivo cuida dos procedimentos

corretos para julgar os cidadãos343.

Há um lugar-comum que considera que casos semelhantes devem ser

tratados de maneira semelhante. Embora não de maneira exata, refere-se à virtude que

Dworkin chama de integridade, procurando ressaltar o vínculo com a virtude paralela

de moral pessoal. Tem-se aí um ideal político que impõe ao Estado e à comunidade,

como agentes morais, que ajam segundo um conjunto único e coerente de princípios,

mesmo quando os cidadãos não estão de acordo sobre a justiça e a equidade pertinente

aos temas discutidos344.

Na legislação e na produção de normas, a integridade coloca a tarefa para

os que criam o direito de se manterem coerentes quanto a um conjunto de princípios e

diretrizes. No julgamento, os responsáveis por decidir sobre a lei e as normas devem

vê-las como coerentes com os princípios e fazer com que elas também o sejam. O

passado tem um significado especial, já que o direito deve ser visto como um todo em

que cada decisão (legislativa, administrativa ou judicial) revela sinais institucionais da

existência de um conjunto unitário de princípios.

Até aqui se falou em constelação ou conjunto de princípios, mas a

concepção do direito como integridade desloca a perspectiva. O conjunto coerente de

princípios e sua significação moral é mais compatível com uma abordagem

343 DWORKIN, Ronald. O império do direito. Trad. Jefferson Luiz Camargo. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 201. 344 Idem. Ibidem, p. 202.

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159

personificadora. As práticas de pensamento e de linguagem podem levar-nos a falar de

uma comunidade de princípios, em que cada cidadão se considera inserido numa

vivência política, moral e jurídica, procurando corporificar um conjunto coletivo de

princípios que tem uma projeção distinta da concepção pessoal de cada um dos

participantes, isoladamente.

Nesse empreendimento, cada cidadão fornece o melhor de suas convicções

pessoais para integrá-los na comunidade de princípios, que é um agregado

institucionalizado oriundo de diferentes concepções. A comunidade de princípios se

assenta na autonomia moral de seus participantes e na imparcialidade das autoridades,

que como agentes morais dessa comunidade devem tratar cada integrante com igual

respeito e consideração.

A integridade como virtude da comunidade de princípios rejeita o que

Dworkin345 chama de soluções conciliatórias internas baseadas em concessões que

levam a um tratamento diferente para as pessoas sem boas razões de princípios para

fazê-lo. A ordem pública nesse tipo de decisão iníqua pode ser vista como uma

mercadoria a ser distribuída para cada grupo conforme sua participação numérica na

sociedade, como no caso de se estabelecer a responsabilidade por vício de produto

apenas para os fabricantes de automóvel, e não para os fabricantes de máquinas de

lavar roupa346. Ocorre uma incoerência de princípios, havendo somente a distribuição

equitativa de poder político entre os grupos que defendem posições morais diferentes e

injustificadas.

Uma solução de princípios, como exige a integridade, pode levar a uma

hierarquização entre eles ou mesmo a uma exclusão de alguns dos princípios em jogo,

mas durante todo o esquema de análise os princípios estarão presentes e serão

considerados. Exemplo é o direito à herança, em que estão em jogo a propriedade e a

igualdade como princípios. Uma solução para sua aplicação convergente pode ser a

defesa de uma tributação não confiscatória sobre a herança. Ambos os princípios

atuam na solução encontrada em que em nome da igualdade se tributa, mas se preserva

345 Idem. Ibidem, p. 216. 346 Idem. Ibidem.

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a propriedade. No caso da solução conciliatória, que agride a integridade, o que se tem

é apenas um princípio; que é afirmado para um grupo e negado para outro.347

As soluções conciliatórias revelam uma incoerência de princípio por

negarem tratamento igual sem boas razões para tanto. São rejeitadas pela integridade,

que é um tipo especial de coerência que diz respeito aos princípios e aos ideais de

justiça, de equidade e de devido processo legal. Também a igualdade formal, ou

isonomia perante a lei, em que se cuida de aplicar as regras previstas em lei, é

escarnecida com as conciliações internas, negando-se uma coerência isonômica e

ofendendo uma lógica elementar.

A integridade deita suas raízes num dos princípios de retórica da Revolução

Francesa: a fraternidade. Por ela as pessoas aceitam que não são governadas apenas

por regras explícitas, oriundas de decisões políticas do passado, mas principalmente

por princípios que são os pressupostos dessas decisões. Como conjunto coerente

desses princípios, a integridade afasta a parcialidade, a fraude ou qualquer outra forma

de corrupção oficial348, ao se vincular também com o princípio de que todos devem ser

tratados com igual respeito e consideração.

A integridade forma um tipo especial de comunidade, a dos princípios.

Reforça um sentimento de responsabilidade coletiva pelo qual se pode vislumbrar o

ideal de autolegislação. Um cidadão não se pode considerar autor de leis incoerentes e

anti-isonômicas. Sob o signo da integridade, ao reconhecer princípios de moral política

em comum, os cidadãos devem aceitar as exigências que lhe são feitas e fazer

exigências. Os cidadãos de boa-fé devem interpretar e construir uma organização

comum da justiça à qual estão comprometidos em virtude da cidadania349, mesmo sob

a base da divergência. Cada cidadão tem a responsabilidade de fidedignamente

procurar identificar um sistema de princípios e de direitos para reger a vida de sua

comunidade350.

347 Idem. Ibidem, p. 217. 348 Idem. Ibidem, p. 229. 349 Idem. Ibidem, p. 230. 350 A constituição de uma comunidade de princípios corresponde à última etapa de evolução da perspectiva social e da consciência moral, chamada por Habermas, com apoio em Kohlberg, de pós-convencional, demonstra que, dentre outras características: a busca de princípios de justiça e, em último termo, de procedimentos do discurso fundamentador de normas, deriva-se da moralização inevitável de um mundo social problemático. Essas são as ideias de justiça que substituem a conformidade com as funções e as normas na etapa pós-

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3.3.1 A legitimidade

A integridade transforma a sociedade política numa comunidade especial

que promove sua autoridade moral como forma de monopólio da força coercitiva.

Surge a questão de como legitimar o poder coercitivo do Estado. Um Estado pode ser

considerado legítimo quando se chega à conclusão de que os cidadãos têm a obrigação

de obedecer às decisões políticas que lhes impõem deveres.

É a partir da ideia de papéis sociais e da pertinência a um grupo social que

se pode dar um primeiro passo para justificar o monopólio da coerção e a imposição de

deveres. É interessante observar que estar em determinado grupo não necessariamente

resulta de uma escolha, como é o exemplo dos filhos numa família ou o de integrar o

povo de um Estado.

Nesse contexto, apresentam-se como decorrência dos grupos sociais as

responsabilidades associativas. Integrar um agrupamento social faz com que tenhamos

que honrar os deveres que se atribuem em tal esfera. No entanto, o dever natural de

observar os deveres só se sustenta mediante algumas condições. A reciprocidade tem

aí um grande destaque. Não é preciso concordar com cada detalhe das

responsabilidades estruturadas mutuamente em determinado agrupamento. É possível

manter obrigações associativas entre pessoas que têm uma ideia geral e difusa dos

direitos e das responsabilidades mutuamente estruturadas que cada um dos membros

do grupo tem de seguir351.

Para gerar um senso comunitário e fraternal, num sentido fidedigno e

verdadeiro, os integrantes do grupo devem ter relações que satisfaçam a determinadas

condições. Em primeiro lugar, as obrigações do grupo devem ser especiais352,

distinguindo quem o integra daqueles que não lhe pertencem. Depois, as

convencional (HABERMAS, Jürgen. Conciencia moral y acción comunicativa.Trad. Ramón García Cotarelo. Barcelona: Península, 2000, p 194/5) 351 DWORKIN, Ronald. O império do direito. Trad. Jefferson Luiz Camargo. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 241. 352 Idem. Ibidem, p. 241 e seg.

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responsabilidades marcam-se por serem pessoais, indo diretamente de um membro a

outro sem necessariamente percorrerem o grupo num sentido coletivo. Em terceiro

lugar, as responsabilidades devem decorrer de outras mais gerais, de modo que cada

um tenha interesse no bem-estar dos outros membros. Por último, as práticas do grupo

não devem mostrar apenas interesse por seus membros, mas um igual interesse. Isso

pode valer também para estruturas hierarquizadas como exércitos, com cada um tendo

seu papel no todo. A vida de todos tem igual importância, mas esse raciocínio não vale

para o sistema de castas, em que se considera que alguns são mais dignos que outros.

Tem-se, com esses pressupostos, a formação de uma comunidade cujas

responsabilidades são especiais e individualizadas e revelam um abrangente interesse

mútuo que se ajusta a uma concepção plausível de igual interesse353, distribuído em

função de papéis sociais. As obrigações políticas, especialmente a de obedecer ao

direito, podem resultar e se legitimar de associações formadas nesses padrões.

Todavia, uma última observação deve ser feita: as práticas desenvolvidas, nesse

âmbito, devem pautar-se por critérios de justiça mesmo com relação a terceiros, o que

vale especialmente para os excessos do nacionalismo e para agrupamentos como as

máfias.

3.3.2 A fraternidade e a comunidade política

Com o que foi desenvolvido no item anterior, existem condições para

responder como legitimamente se podem impor deveres resultantes de decisões de

uma comunidade política. É com base nos laços comunitários e fraternais que se pode

avançar em tal terreno.

Não só a família, a amizade e outras formas de associação mais íntimas têm

os deveres em seu cerne. As comunidades políticas também. Só que, nestas últimas, a

obrigação central é a de fidelidade ao direito354.

353 Idem. Ibidem, p. 243. 354 Idem. Ibidem, p. 251.

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Há três possibilidades de configurar uma associação política355. Concebê-la

como um acontecimento circunstancial de fato da história e da geografia, não fazendo

apelo à sinceridade na manutenção dos laços entre os cidadãos. Pelo modelo de regras,

em que os integrantes da associação aceitam o compromisso de obedecer a normas

específicas de sua comunidade. Existe adesão a tais regras por uma questão de dever,

mas o conteúdo delas esgota as obrigações dos envolvidos. As regras não são o

resultado de uma negociação em que se vislumbram princípios comuns subjacentes.

Ao contrário, representam um acordo entre interesses opostos. Os dois modelos

rejeitam a integridade. Sua oposição às soluções conciliatórias não considera que a

comunidade deve respeitar princípios necessários à justificativa de uma parte do

direito, bem como do todo356.

O terceiro modelo é o dos princípios. Em comum com o das regras tem a

concepção de que a comunidade política pressupõe uma compreensão compartilhada.

Esse substrato comum é mais abrangente e generoso que um sistema de regras. Os

destinos dos integrantes da comunidade estão vinculados a princípios e direitos

comuns, e não apenas por regras de um acordo político momentâneo. A política torna-

se uma arena de debate sobre quais princípios devem ser adotados e quais visões de

justiça, equidade e devido processo legal devem prevalecer. Não se trata apenas de

como cada pessoa faz valer suas convicções num amplo campo resultante de uma

ordem de poder ou de regras.

Direitos e deveres não se esgotam nas decisões tomadas por instituições

políticas. São oriundos de um conjunto de princípios que as decisões pressupõem e

endossam357. Em síntese, cada membro toma o modelo do direito como integridade

como algo caro para si e para a comunidade e procura dar-lhe a melhor configuração.

Nesse último modelo, os cidadãos respeitam e desenvolvem358 sentimentos

de justiça e equidade na interpretação e na construção de um conjunto de princípios,

considerando que, em termos políticos, seu destino se entrelaça com o da comunidade,

em que todos são dignos. Não há apenas um interesse imediato pelo cumprimento de

355 Idem. Ibidem, p. 252 e seg. 356 Idem. Ibidem, p. 254. 357 Idem. Ibidem, p. 255. 358 Idem. Ibidem, p. 257.

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regras, mas um sentimento mais verdadeiro, profundo e constante pela política em que

a legislação espelha o conjunto de princípios que adentra a aplicação do direito pela

Jurisdição e pela Administração.

É o modelo do direito como integridade, que não é apenas uma coerência

em que casos semelhantes devem ser tratados de maneira semelhante. A coerência359

que se busca é a da comunidade fraternal de princípios, cujas virtudes a serem

atingidas são a justiça, a equidade e o devido processo legal numa correta proporção. É

aqui que se tem a melhor apresentação da legitimidade de uma associação política.

3.3.3 A integridade no direito

A aplicação do direito como integridade (mais estritamente o princípio

judiciário da integridade) leva os juízes e demais aplicadores a partirem do pressuposto

de que direitos e deveres resultam de normas criadas por um único autor – a

comunidade personificada – como expressão coerente de justiça e equidade. A verdade

das proposições jurídicas deriva de uma interpretação construtiva que oferece correto

equilíbrio entre as duas referidas virtudes e o devido processo legal360, sendo, portanto,

o resultado de uma reflexão de conteúdo, e não de validação meramente formal.

O direito como integridade361 é uma concepção hermenêutica em que seu

conteúdo é tanto produto como fonte de interpretação da prática jurídica. O direito se

apresenta como tendo origem em interpretações e como sendo continuidade delas. E 359 A hermenêutica filosófica empresta relevante papel à coerência na atividade interpretativa (GADAMER., Hans-Georg. O problema da consciência histórica. Trad. Paulo César Duque Estrada. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1998, p.65: [...] nada é de fato compreensível se não se mostrar efetivamente sob a forma de um significado coerente. 360 DWORKIN, Ronald. O império do direito. Trad. Jefferson Luiz Camargo. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 272. 361 A integridade proposta por Dworkin nada mais é do que a especificação para o direito como fenômeno interpretativo do que é a coerência para a hermenêutica de Gadamer: De fato, não é apenas uma unidade de sentido imanente que pressupõe a operação concreta da compreensão: toda compreensão de um texto pressupõe que ela seja orientada por expectativas transcendentais, cuja origem deve ser buscada no interior da relação entre a intenção do texto e a verdade (O problema da consciência histórica. Trad. Paulo Cesar Duque Estrada. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1998, p. 66). Assim, tomando o direito como um texto construído coletivamente pela comunidade de princípios, deve ele formar uma unidade coerente orientada por ideais transcendentais além do limite do texto, que para Dworkin são a justiça, a equidade e o devido processo legal, ou seja, o desdobramento de uma justiça geral que preliminarmente pode ser qualificada como a verdade para as instituições.

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mais: o principal objeto das interpretações são os princípios. Nas palavras de Dworkin,

raciocinar em termos jurídicos significa aplicar a problemas jurídicos específicos [...]

uma ampla rede de princípios de natureza jurídica ou de moralidade política362.

A história tem grande importância para o direito como integridade. Não se

trata de um resgate de todas as etapas históricas, nem mesmo de um direito que esteja

entrando em desuso. Não se busca uma reconstrução de todas as regras vigentes na

comunidade. Cuida-se de uma retomada horizontal em que direitos e deveres resultam

de decisões coletivas oriundas do passado, que justificam a coerção; e seu conteúdo,

sobretudo, reflete um sistema de princípios.

O ponto de referência do direito como integridade é o presente da

comunidade de princípios. O retorno ao passado ocorre na medida em que a

reconstrução contemporânea dos princípios o exija como condição de possibilidade de

um futuro honrado. As decisões do passado e os princípios que as embasam se

apresentam e se reconstroem continuamente numa visão otimista de que representam

uma possibilidade atraente na prática da coerência de princípios que a integridade

requer. Isso de modo algum exclui o conflito e a divergência que podem constituir

terreno fértil para a elaboração de soluções conforme a integridade, a partir de uma

interpretação imaginativa363.

3.3.3.1 A cadeia do direito

Uma interpretação criativa busca sua estrutura formal na intenção. Não se

cuida de descobrir a intenção de determinada pessoa ou grupo histórico, mas de

reconstituir um propósito a um texto, a dados ou a tradições que se interpretam. Toda

interpretação pressupõe a existência de uma intenção e de uma coerência naquilo sobre

o que se trabalha.

Pode-se metaforicamente justapor a atividade de um juiz ou de um

aplicador do direito à de um crítico literário que destrincha as várias dimensões de 362 DWORKIN, Ronald. A justiça de toga. São Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 72. 363 DWORKIN, Ronald. O império do direito. Trad. Jefferson Luiz Camargo. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 275.

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valor em uma peça ou num poema complexo364. Juízes, ressalta Dworkin, são

igualmente autores e críticos de sua própria obra, o que promove uma comparação

mais fértil na relação literatura e direito com o gênero literário do romance em

cadeia365.

Nesse projeto, um grupo de autores redige um romance em que cada um

interpreta os capítulos anteriores que recebeu para escrever o seu e abre caminho para

o romancista seguinte. Cada um propõe o seu capítulo como o melhor possível para o

romance que está sendo elaborado.

Algo semelhante ocorre com os juízes ou outros aplicadores do direito

quando se dedicam a decidir um caso difícil. Tanto o romancista como os juízes se

dedicam a criar em conjunto apenas um romance unificado, com a melhor qualidade

possível. A obra não se pode apresentar como feita a várias mãos, como na verdade é,

mas deve ser atribuída com fidedignidade a um único autor, como já dito à

comunidade personificada.

A tarefa exigirá uma reflexão sobre elementos como trama, gênero, tema,

objetivos etc. Um bom crítico trabalhará com tais questões de forma sofisticada e

multifacetada, já que um bom romance não comporta apenas uma perspectiva.

Também identificará níveis e correntes de sentido diferentes, mas não apenas um

enfadonho tema.

Duas dimensões apresentam-se, nesse estilo literário, como eixos centrais: a

da adequação e a da justificação. Na da adequação ressalta-se a fluência do texto e um

poder de explicação geral, buscando uma interpretação que apreenda boa parte do

texto, ainda que reconhecendo que ele não pode ser plenamente bem-sucedido e que

algumas partes devem ser abandonadas. Na da justificação, o autor do romance em

cadeia pode encontrar mais de uma interpretação que se ajuste ao texto. Terá de julgar

364 Idem. Ibidem, p. 275. Em outra obra Dworkin é mais explícito sobre a vinculação entre direito e arte (DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. Trad. Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p.249): transmito apenas meu entendimento de que política, arte e direito estão unidos, de algum modo, na filosofia. 365 A metáfora do romance em cadeia não é casual. Ela reflete as preocupações estéticas da hermenêutica filosófica que reinsere o juízo e o gosto entre os conceitos guias humanísticos (GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método. Trad. Flávio Paulo Meurer. Petrópolis: Vozes, 1997, pp. 76 e seg. e GADAMER, Hans-Georg. Estética y hermenêutica. Trad. Antônio Gómez Ramos. Madri: Tecnos, 2001, pp. 55 e seg.)

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quais das duas melhor se adéqua, colocando em jogo seus juízos estéticos mais

profundos sobre as diferentes ideias que o romance poderia expressar.

Embora se fale nesses dois planos, não há como separá-los de maneira

absoluta. Os juízos pessoais do aplicador, que surgem na dimensão da justificação,

devem ser confrontados com a integridade do texto, na adequação, procurando, assim,

a proposta de interpretação que lhe mantenha a coerência. Há entre essas duas

dimensões um jogo circular que busca a coerência e ideais transcendentais como a

justiça e a equidade.

O direito como integridade impele o juiz, ou o aplicador do direito, para que

se considere como um autor na cadeia de sentidos que forma o direito. Outros colegas

decidiram casos afins, e o juiz deve considerá-los como parte de uma longa história a

ser interpretada de acordo com suas opiniões, que expressam a melhor proposta para a

continuidade dessa história.

Dworkin propõe um juiz hipotético chamado Hércules para dar cabo a

missões dessa ordem366. Contudo, ele apenas apresentará as respostas que julgar

melhores no momento da decisão, e sua abordagem sobre os temas que lhe são postos

será mais reflexiva e indagadora do que definitiva.

Hércules emite opiniões sobre adequação que se irradiam numa série de

círculos concêntricos que atravessam as diversas áreas do direito. Então, para tratar de

um caso de danos morais, ele inicialmente circunscreve-se à responsabilidade civil

aquiliana, depois passando à contratual para verificar princípios aproveitáveis e

comuns e assim por diante. Hércules tem uma visão construtiva dessa

compartimentalização, em que as divisões do direito são vistas sob a melhor luz para

solucionar os casos que se lhe apresentam367.

Isso é o reflexo de que os aplicadores do direito que aceitam o caráter

interpretativo do direito como integridade, na decisão de casos difíceis, buscam um

conjunto coerente de princípios que estruturem direitos e deveres a partir da melhor

interpretação da vivência política de sua comunidade e de sua doutrina jurídica. Na

dimensão de adequação, encontram-se limiares oriundos da história política da

366 DWORKIN, Ronald. O império do direito. Trad. Jefferson Luiz Camargo. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 287. 367 Idem. Ibidem, p. 300.

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comunidade que restringem as convicções políticas368. É o que se dá, por exemplo,

com a supremacia legislativa que se põe como um limite para a configuração da

decisão de um julgador e também do administrador.

Noutro giro, surgirão os casos difíceis, quando numa análise preliminar não

for possível prevalecer uma dentre duas ou várias interpretações. É a etapa da

justificação. Cabe escolher entre as interpretações aceitáveis, perquirindo-se qual, da

perspectiva de moral política, representa melhor as instituições e as decisões da

comunidade369. As próprias convicções morais e políticas do aplicador estarão em

questão, mas a serviço do direito como integridade, da comunidade de princípios na

busca de uma correta proporção entre justiça, equidade e o devido processo legal.

3.3.4 A integridade e as leis

Na leitura das leis, Hércules utiliza em linhas gerais as técnicas expostas em

relação à integridade e ao direito. O Congresso e todos os que participam do processo

legislativo são autores anteriores na cadeia em relação a ele. O Parlamento, no entanto,

é um autor com poderes e responsabilidades diferentes das de um juiz ou de outro

aplicador do direito.

Por isso, Hércules vai exercer seu papel criativo como um colaborador que

continua a desenvolver, da melhor forma, o trabalho iniciado pelo Congresso. Ele se

perguntará qual interpretação da lei mostra mais claramente seu desenvolvimento

político. Sua abordagem dará relevo aos debates legislativos em nome da equidade,

mas estes não serão definitivos. São registros de atos políticos a serem sopesados com

o texto da própria lei e a vivência política da própria comunidade de princípios que

exige uma reconstrução prospectiva e otimista do direito. Hércules respeitará a

integridade do texto legislativo sem sobrepor-lhe suas convicções pessoais e respeitará

as declarações que envolvem o histórico de uma lei como reflexo da opinião pública,

preservando a equidade política.

368 Idem. Ibidem, p. 305. 369 Idem. Ibidem, p. 306.

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169

O ponto de vista de Hércules, no entanto, não se vincula à intenção do

legislador. Não há criadores exclusivos de uma lei. A ideia de propósito ou intenção de

uma lei não é uma combinação dos desígnios de legisladores particulares, mas é o

resultado da integridade. As etapas do processo legislativo são eventos políticos em si

próprios, não remontando a um estado de espírito por detrás deles. De igual modo, não

há um momento canônico na pesquisa histórica do texto legislativo. A história política

do texto começa antes de sua aprovação e vai até o momento da decisão370, projetando-

se o tempo como possibilidade de extração dos melhores sentidos possíveis.

Sobre os legisladores, pode-se dizer que os membros da comunidade

esperam que atuem fundamentados em princípios e com a integridade. Esse objetivo é

satisfeito quando se deixa de invocar ambições pessoais e se enfocam convicções

predominantes na legislatura em seu conjunto e como parte da história institucional,

que expressa o comprometimento com um sistema coerente de convicções políticas371.

Hércules buscará a melhor explicação sobre a atividade da legislatura na

elaboração de um texto particular como exemplo de história social. Para situar a

legislação sob a melhor luz possível, proporá uma interpretação não só a partir de suas

convicções sobre justiça, mas também sobre os ideais de integridade, equidade e

devido processo legal.

A integridade fará com que Hércules elabore para cada lei a ser aplicada

uma justificativa que a ela se ajuste e a penetre. Em coerência com a legislação em

vigor, procurará uma combinação de princípios e políticas que, na sua ordem de

composição, podem proporcionar a melhor hipótese de fundamentação para a lei. O

mais importante não é a regra que resulta do texto legal, mas os princípios

justificadores372. A fidelidade à lei se traduz na vinculação ao conjunto de princípios

assumidos pela comunidade personificada que explicam a necessidade de deferência

ao legislador democrático e à segurança jurídica por fidedignidade a um texto editado

no passado como vinculativo.

370 Idem. Ibidem, p. 380 371 Idem. Ibidem, p. 396. 372 CASALMIGLIA, Albert. El concepto de integridad em Dworkin. In: Doxa, p.171. Disponível em http://www.cervantesvirtual.com/FichaObra.html?Ref=15638&portal=4, acesso em 10.10.2010

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170

Por não se tratar de mero precedente, mas de atividade legislativa, é

importante marcar que tanto princípios como diretrizes políticas devem ser levados em

consideração. Embora a integridade seja, por definição, uma questão de princípio373,

Hércules preocupa-se em reconstruir um alto nível de coerência entre as diretrizes

políticas apresentadas, sem ignorar as exigências dos pressupostos de uma comunidade

de princípios.

Um último ponto a ser considerado é o de uma lei obscura. Uma primeira

hipótese é a de ambiguidade, como na utilização do termo “banco”, que pode referir-se

a uma pessoa jurídica que recebe depósitos em dinheiro ou a um local para alguém

sentar-se. Uma segunda hipótese é a da utilização de um termo vago, como o de uma

lei que concede isenção do imposto de renda para idosos. Outra é a de utilização de um

termo abstrato como razoável. A obscuridade não está em nenhuma dessas hipóteses

ou em meras palavras do texto da lei, mas sim na verificação da existência de duas ou

mais interpretações com bons argumentos.

Os casos difíceis parecem amoldar-se a intrincadas controvérsias sobre leis

obscuras. Que seriam, então, casos fáceis? Exigiriam uma aproximação diferente? Para

Dworkin, não há sentido num método para casos difíceis e outro para casos fáceis374.

Nestes últimos, à primeira vista, as perguntas mereceriam reflexão singela e respostas

evidentes, como na inobservância de uma regra de excesso de velocidade. Isso não é

algo definitivo, já que alguém compartilhando de outras concepções de justiça e

equidade poderia achar que o caso não é tão simples assim.

3.3.5 A integridade e a Constituição

A Constituição é um tipo de lei, mas o seu caráter político exige uma

abordagem diferenciada que, de forma alguma, pode conferir os mesmos poderes que 373 DWORKIN, Ronald. O império do direito. Trad. Jefferson Luiz Camargo. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 406. 374 O raciocínio está claro no seguinte trecho (GUEST, Stephen. Ronald Dworkin. Trad. Luís Carlos Borges. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010, p. 205): Para concluir, então, Dworkin oferece-nos um novo foco no direito. À primeira vista, este foco recai sobre os casos difíceis, que agora devem ser caracterizados pelo exame de áreas do direito que são controvertidas de uma maneira mais fundamental do que a caracterização de tais áreas como periféricas, ou penumbrosas para leis mais importantes. À segunda vista, um entendimento mais profundo mostra-nos que, por causa da natureza consensual dos paradigmas jurídicos, é possível que todos os casos sejam casos difíceis, e que o foco real não esteja na diferença entre o que é claro ou não, mas na qualidade do argumento jurídico que justifica a invocação dos poderes coercivos da comunidade.

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tem o constituinte originário ao julgador ou ao administrador. Ela é o fundamento para

a criação de outras leis, o que exige um retorno às disposições mais básicas do

processo político com justificativa extraída dos aspectos mais filosóficos da teoria

política375.

As avaliações sobre justiça, na aplicação dos princípios constitucionais, são

especialmente limitadas por considerações de equidade e de integridade, isto é, a

correta distribuição de bens, recursos e oportunidades advém de considerações sobre

as instituições formadas sob a égide da Constituição e de uma aplicação coerente e

otimista dos princípios para consecução do direito que todos os cidadãos têm de igual

respeito e consideração. Para o direito como integridade, uma Constituição consiste na

melhor interpretação de sua prática e de seu texto, sensível à sofisticação das virtudes

políticas envolvidas.

A Constituição confere competências limitadas aos órgãos políticos dos três

poderes. Com Marbury vs. Madison, não só a Suprema Corte, mas os tribunais em

geral passaram a julgar os atos de autoridade sob a luz da Constituição, declarando

inválidos os que excedessem seus limites. Não há novidade nisso. O ponto crucial é

saber como a Suprema Corte e as outras instâncias devem exercer esse vasto poder.

O direito como integridade confere importância à certeza e à previsibilidade

das decisões, principalmente das constitucionais. A distribuição de poderes deve ser

estável e precisa, tanto no que se refere à Federação como às diferentes funções do

Estado. É importante saber a qual unidade política foi conferida uma responsabilidade

específica, como, por exemplo, a regulação de um comércio ou atividade privada de

interesse público.

No que se refere aos direitos individuais, a estabilidade de sua interpretação

tem alguma importância prática, porém, o mais relevante é a sua substância, que é

revelada pela integridade. O sistema de direitos e princípios deve ser interpretado a

partir de uma concepção coerente de justiça. Isso obviamente não pode ser obtido a

partir de um historicismo que busque, nos constituintes, a intenção por trás desses

375 DWORKIN, Ronald. O império do direito. Trad. Jefferson Luiz Camargo. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 454.

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direitos. Isso equivale a negar a Constituição, que certamente leva os direitos a sério,

não considerando que eles tenham um momento canônico que possa parar no tempo.

De igual modo, é preciso distinguir diretrizes políticas de direitos

individuais para preservar o caráter de trunfo que têm estes últimos em favor do

indivíduo em relação a estratégias coletivas. Embora, nas decisões, preferências e

considerações de bem-estar coletivo tenham de estar presentes, é preciso preservar os

direitos como uma questão de princípio.

Nas questões de princípio, a integridade exige das políticas estatais o

mesmo tom, reconhecendo direitos a todos, sem negá-los a ninguém. Nas questões

políticas isso é mais difuso. O Estado deve tratar as pessoas como iguais, mas isso é

uma diretriz para estratégias, estatísticas e metas. Há um tipo de incoerência que não

se aceita, que é a de conceder benefícios distintos sem critério de discrímen pertinente,

como no caso de subsídios para um agricultor católico.

A igualdade material deve levar o governo a adotar programas que tornam

segmentos e classes mais iguais em termos de riqueza material enquanto grupos, e

assim por diante. As decisões em busca dessas estratégias, julgadas uma por uma, são

questões de política e não de princípios376. É importante perceber que boa parte das

teorias políticas vigentes também reconhece direitos individuais distintos como

trunfos capazes de influenciar essas decisões políticas, direitos que o governo é

obrigado a respeitar caso por caso, decisão por decisão377.

O direito como integridade procura também um equilíbrio entre uma

postura passivista e outra ativista, no que diz respeito à decisão de outros poderes do

Estado sobre direitos e princípios, especialmente os constitucionais. No passivismo,

considera-se que as grandes cláusulas constitucionais são muito genéricas e abstratas.

Por isso, deve-se deixar aos outros poderes, que contam com maior legitimação

democrática, a decisão final sobre os direitos, cabendo ao Judiciário prestar deferência

aos demais poderes e se limitar à mais rigorosa interpretação do texto da lei. Segundo

essa postura, não é tarefa das cortes criar direitos. Na democracia é o povo, por meio

de seus representantes, que deve inovar sobre direitos.

376 Idem. Ibidem, p. 267. 377 Idem. Ibidem, p. 268.

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Já o ativismo propõe o oposto, ou seja, que os juízes façam os direitos,

colocando em primeiro plano o seu próprio ponto de vista sobre os direitos. É certo

que um dos papéis da Constituição é impedir que as maiorias oprimam as minorias,

fazendo prevalecer suas convicções. Nesse sentido, não se pode irrestritamente confiar

no ponto de vista de uma maioria passageira. A equidade exige atenção a

características estáveis da cultura política de uma nação, como o texto da Constituição,

sua história, os precedentes constitucionais. Não cabe a um aplicador do direito

emendar a Constituição, mas interpretá-la. Isso exclui os excessos do ativismo e sua

excessiva empolgação sobre o papel dos juízes, mas, no mesmo sentido, mostra a

pobreza de uma postura passivista, que confere muita relevância à maioria política378 e

ao texto da lei, esquecendo-se de vários outros aspectos de justiça na aplicação da

Constituição.

Um outro aspecto a ser considerado é o de que uma decisão sobre direitos

constitucionais não é um mero elenco de situações subjetivas. É preciso, antes de mais

nada, assegurá-los de forma imediata e eficaz, sem acatar ou acobertar os interesses de

subversão dos direitos.

3.3.6 A integridade e a regulação autorizada

Levando em conta que o direito como integridade é idealmente uma

construção interpretativa de um único autor, a Administração, inclusive no exercício

de sua competência normativa, insere-se no caminho que busca corporificar a

comunidade de princípios. As leis, os atos administrativos normativos, as decisões

administrativas, os precedentes judiciais são parte dessa trilha, formando um horizonte

de passado que se refere ao presente, com vistas a um futuro melhor numa

378 Uma opinião mais contundente está neste trecho (DWORKIN, Ronald. Is democracy possible here?. Principles for a new political debate. Princeton/Oxford: Princeton University Press, 2005 p. 143): Assim, devemos abandonar a ideia familiar de que a regra da maioria é um procedimento exclusivamente justo de tomada de decisão, mesmo na política. Em algumas cicunstâncias, como nos casos de salvamento e de projectos, parece profundamente injusta e, em outros, quando a questão que ela levanta é de se deve haver uma decisão coletiva sobre algum assunto no seu todo. A regra da maioria não é um método especial para perceber e alcançar a verdade, e ela não chega nem perto de garantir o equilíbrio do poder político de uma grande comunidade política com instituições políticas representativas.

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reconstrução e numa interpretação reflexiva e compartilhada. A legitimação da

coerção não se esgota nas regras positivadas, que pressupõem e endossam a

comunidade de princípios como fundamento de validade do direito, derivando os

deveres e direitos especialmente desta última.

Como uma construção interpretativa, o direito pressupõe intenção e

coerência para a formação dessa obra única em que o autor é a comunidade

personificada. Dois eixos centrais orientam essa atividade: o da adequação e o da

justificação. No plano da adequação, cuida-se de buscar uma linha de propósito

interpretativo de sentido que permita organizar com fluência e poder de explicação

geral os diversos atos anteriores positivados, como se fossem um texto uno que

expressa a história política da comunidade. No plano da justificação, diante de duas

interpretações diferentes e viáveis sobre a história política da comunidade, a

autoridade, para formular uma decisão, põe em cena os seus juízos de moral política

como proposta de melhor expressão do direito como integridade.

A supremacia legislativa é um princípio que condiciona a Administração,

embora não se possa excluir sua inserção conjugada na comunidade de princípios para

definir direitos e deveres. A lei é uma expressão da vivência política que revela, a

partir de um processo legitimado pela democracia participativa, de forma explícita ou

implícita, princípios e diretrizes coletivas. É parte fundamental da história institucional

para guiar principalmente os passos da Administração. A realização dos direitos e a

observância dos deveres inerentes às autoridades têm como guia o legislador. No

entanto, as regras não são o mais importante que resulta do texto da lei, mas sim

princípios inseridos numa constelação.

Na mesma linha, os entes reguladores na sua produção normativa de

conjuntura estão inseridos na comunidade de princípios e no direito como integridade.

A frenética produção de regras normalizadoras por essas entidades só tem seu sentido

completo como espelho e endosso dos princípios e como parte da história política e

moral da comunidade. É como expressão de um conjunto de princípios e de diretrizes

políticas que a regulação deve ser compreendida.

Em que pese ser a integridade uma questão de princípio, a legislação é uma

atividade marcada por escolhas que configuram diretrizes políticas, objetivos de

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melhora da comunidade. Numa democracia constitucional, a minoria deve estar

protegida por direitos, mas a legitimação pelo sufrágio respalda definições sobre

interesses que dizem respeito ao bem comum nos aspectos econômico, político ou

social. Logo, a partir da lei é possível vislumbrar tanto diretrizes políticas como

princípios.

O exercício de competência regulamentar autorizada ocorre a partir de uma

autorização legal. Obviamente não se trata de um cheque em branco para os entes

reguladores. A lei traz limites, conformações e diretrizes, expressando o direito como

integridade. As agências estão inseridas em idêntica comunidade de princípios

revelada pela lei, mas não contam com a legitimação pelo sufrágio. Dado isso, existe a

necessidade de um esforço mais fidedigno para revelar regras que correspondam

adequadamente e justificadamente a um conjunto coerente de princípios e acurado de

diretrizes políticas. Os entes reguladores são intérpretes da Constituição e das leis. Não

lhes cabe emendá-las. O campo de ação dos entes reguladores, sob o ponto de vista da

integridade, é o dos direitos e das diretrizes políticas definidas especialmente por lei e

também pela Constituição.

Por meio dos procedimentos inerentes ao devido processo legal e formando

as instituições ínsitas à equidade, os entes reguladores realizam programas a partir de

estratégias, estatísticas e metas coletivas, para uma correta distribuição de bens,

recursos e oportunidades em busca da edificação da igualdade de respeito e

consideração entre os cidadãos, uma questão sobretudo de diretrizes políticas. Isso não

exime as autoridades de agir com coerência e de observarem os direitos individuais

distintos que se formam como trunfos com influência nessas decisões de política,

como no caso de direitos sociais mínimos.

As agências reguladoras cuidam de oportunidades de acesso a mercados, da

normalização das condições de seu funcionamento e da distribuição de utilidades

(public utilities) com vistas à manutenção de eficiência que possibilite contínuo

crescimento da economia e justa distribuição de bens. Obviamente, isso não é apenas

uma questão de direitos e de princípios. Outros diversos fatores têm de ser

considerados por imperativos de ordem científica, técnica, econômica, política etc. Ao

se valerem do direito como meio para realizar esses imperativos, o respeito à

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integridade faz-se necessário na busca de uma coerência nas diretrizes políticas

relacionadas a esses diversos fatores e também com a devida fidedignidade à

comunidade de princípios, que exige sofisticação e reflexão de seus aplicadores.

3.3.7 Ainda sobre o direito como integridade

A integridade é um ideal e uma virtude política, soberana em todo o direito,

tendo lugar na construção de uma moral interpessoal, institucionalizada no direito379.

Surge num cenário de associação de princípios em que uma comunidade quer ser

governada por uma concepção simples e coerente de justiça, equidade e devido

processo legal, na proporção correta. A justiça se refere a uma distribuição adequada

de bens, oportunidades e recursos. A equidade trata da estrutura institucional de um

sistema que distribua as decisões políticas de maneira adequada. O devido processo

legal se vincula aos procedimentos para a aplicação das regras produzidas pelo

sistema380.

Dworkin, para dar destaque à justiça, concebe ainda a integridade pura, essa

virtude política abstraída das limitações contingentes da equidade e do devido

processo legal. Ela é composta de princípios de justiça que oferecem a melhor

justificativa do direito contemporâneo, desvinculados de qualquer limitação

institucional, não se dirigindo a juízes, legisladores ou aplicadores do direito, mas

diretamente à comunidade personificada, como possibilidade de reformulação de suas

práticas a partir de uma proposta coerente de princípios de justiça.

O direito como integridade é um conceito interpretativo381. Procura fornecer

melhor adequação e justificação das práticas e das vivências institucionais. A

379 POSTEMA, Gerald J. Integrity: justice in workclothes. In: BURLEY, Justine. Dworkin and his critics with replies by Dworkin. Malden: Blakwell Publising, p. 293. 380 DWORKIN, Ronald. O império do direito. Trad. Jefferson Luiz Camargo. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 484. 381 Interessa marcar o caráter aproximativo que tem a interpretação com a prudência, como se pode depreender do seguinte trecho (GRAU, Eros. Direito posto e o direito pressuposto. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 32): Como o direito reclama interpretação – na medida em que apenas desde que interpretado ele se realiza como jurisprudência prática (pois ele é a jurisprudência prática) – e a interpretação é uma prudência, devo necessariamente concluir que o direito é uma prudência.

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comunidade política como associação de princípios é um ideal a ser realizado. Essa

concepção de sociedade oferece uma base atraente para exigências de legitimação

política em uma comunidade de pessoas livres e independentes que divergem sobre

moral política e sabedoria382.

O império do direito define-se por atitudes. Não se trata de um catálogo de

regras ou princípios ou de uma lista de autoridades com atribuição de poderes. É a

autorreflexão e a interpretação da política em seu sentido mais amplo, em que todo

cidadão é responsável por compromissos dentro de uma comunidade de princípios e

pelo avanço do direito a partir de decisões privadas criativas. Embora se dê aos juízes

a última palavra, não é só este o melhor argumento. É a boa-fé em relação ao passado

e otimismo na construção de um futuro melhor que pode manter a comunidade unida,

aí incluídas as autoridades, a partir de uma atitude fraterna na vivência de princípios.

3.4 A moral e a indeterminação dos princípios jurídicos

A partir da concepção de comunidade de princípios e de direitos levados a

sério, fica claro que questões morais integram o discurso jurídico. O direito,

inevitavelmente pela aplicação principiológica, absorve conteúdos morais. De igual

modo, a moral desempenha um papel de aferição do direito correto na formação da

vontade política do legislador e na comunicação política que ocorre no espaço público.

Conteúdos morais, quando são traduzidos para o código jurídico, acabam por sofrer

uma radical mudança sistemática, imposta pelas formas jurídicas383. Assim, o sistema

de direitos e princípios que forma a estrutura do Estado de Direito deita raízes na

moral e na razão prática, confluindo para a composição da democracia, formando a

ordenação da linguagem jurídica filtros que impedem uma absorção direta e sem

maiores críticas dos conteúdos de moral política.

382 DWORKIN, Ronald. O império do direito. Trad. Jefferson Luiz Camargo. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 490. 383 HABERMAS, Jürgen. Factidad y Validez. Trad. Manuel Jiménez Redondo. Madri: Editorial Trotta, 3ª ed., 2001, p. 277.

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A teoria de Dworkin aqui exposta tem como pressuposto uma compreensão

deôntica da validade jurídica, em que não só regras, mas também princípios e direitos

morais geram deveres jurídicos, ao serem moldados institucionalmente. Ao lado da

mera legalidade e de sua infinidade de regras, os princípios promovem a circulação de

conteúdos morais e políticos, validando e legitimando a produção do direito. A própria

legitimidade da legalidade não mais pode ser fruto de uma racionalidade autônoma,

isenta de moralidade e inerente às formas jurídicas, pois as qualidades formais desse

tipo de direito só oferecem razões legitimantes à luz de princípios de conteúdo

moral384.

Princípios e diretrizes políticas incrementam a indeterminação do direito,

mas isso se compensa com um ganho de fundamentação no processo decisório. Assim,

o direito vigente pode mostrar-se como justificado a partir de um conjunto ordenado

de princípios e, portanto, pode mostrar-se como uma encarnação mais ou menos

exemplar do direito em geral385.

Essa indeterminação do direito não excluiu uma ordem de precedência. É

certo que diretrizes políticas condicionam diretamente a elaboração de leis e normas de

conteúdo abstrato, mas estão subordinadas na aplicação, especialmente na judiciária, a

argumentos de princípio que dizem respeito a direitos. É uma decorrência do caráter

contramajoritário e universalizante dos direitos.

Por outra ótica, o direito no Estado Social desfaz completamente a ficção de

um sistema jurídico bem ordenado, o que se reflete inclusive no esmaecimento da

distinção entre direito público e direito privado. A unidade das normas jurídicas, a

partir desse paradigma, passa a ser o resultado da aplicação dos princípios, que não

está positivada em textos normativos ou legais.

O problema é que o tipo de juridicização vinculada ao Estado Social

instrumentaliza o direito, como é muito claro no direito regulatório386. Um aparato

estatal cada vez mais complexo e imperativos sistêmicos de uma economia autônoma

que carece de estabilização forçam esse tipo de adaptação do direito. Mesmo na

administração da Justiça, os direitos e os pontos de vista normativos acabam

384 Idem. Ibidem, p. 545. 385 Idem. Ibidem, p. 281. 386 Idem. Ibidem, p. 547.

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subordinados a uma política da ordem e do bem comum, para a manutenção de

instituições estatais e os imperativos de regulação e controle dos mercados. Deixa-se

de integrar a sociedade por meio de normas e valores para que prevaleçam a economia

e o poder administrativo-burocrático, controlados pelo dinheiro e pelo poder.

No mesmo compasso, a divisão clássica dos poderes esmaece-se com a

introdução de dispositivos legais gerais com metas indeterminadas, por um lado, e com

delegação de competências de decisão, de outro, dissolvendo-se a vinculação da

Justiça e da Administração à lei de origem democrática387. A lei se apresenta apenas

como uma embalagem para legitimar os imperativos sistêmicos.

Uma característica inarredável do direito oriundo do Estado Social é o

incremento de sua indeterminação com o embaçamento das garantias típicas de Estado

de Direito, como por exemplo a legalidade. A via legitimadora do legislador

democrático mostra suas insuficiências. Por seu turno, pelo caminho da

indeterminação é possível aumentar a capacidade de fundamentação e justificação

legitimadora do direito com o recurso aos princípios jurídicos, que são capazes de

introduzir conteúdos morais no direito. O sistema jurídico de regras, especialmente as

oriundas da regulação, deve ser objeto de uma tradução, extraindo-se do sentido de seu

texto conceitos abertos para se integrarem à comunidade de princípios, permitindo-se o

estabelecimento de procedimentos argumentativos com capacidade de legitimação do

direito instrumentalizado pela regulação.

3.5 Os critérios distintivos entre princípios e regras

Assim como há vasta literatura sobre o tema princípios e regras, há uma

multiplicidade de critérios para distingui-los. A construção do tema implica uma

aproximação do direito com a moral, o que remete a uma preocupação com o conteúdo

das normas jurídicas. Daí a rediscussão dos critérios de validade das normas jurídicas,

387 Idem. Ibidem, p. 550.

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já que, no caso dos princípios, não há como se falar apenas numa validação formal

dada a sua fluidez, bem como à de seu conjunto.

O debate sobre o tema também tem como um dos seus pontos de apoio a

distinta estrutura lógica e a sintaxe de princípios e regras, pois é a composição

sintática interna dessas últimas, com hipótese de incidência e sanção, e sua articulação

sistemática a partir de uma norma fundamental ou norma de reconhecimento que

possibilitam a certeza e o cálculo no direito.

Como não poderia deixar de ser, a diferenciação em questão tem

implicações na aplicação de regras e princípios. Os critérios de apartamento entre

princípios e regras serão agregados por suas relações com o conteúdo, a validade, a

sintaxe e a aplicação. Não se pode deixar de notar que as inter-relações entre os

critérios inevitavelmente levarão a redundâncias na sua abordagem, o que não impede

que se enfatizem as nuances diferenciadoras.

Outro ponto muito importante é que a feição bifronte expressada pela

distinção entre princípios e regras no direito é fundamental para que ele possa

funcionar como transformador no contato entre o mundo da vida e os sistemas – poder

administrativo-burocrático e economia. Essa dupla apresentação do direito vai muito

além de uma mera categorização em estudos jurídicos.

3.5.1 O conteúdo 3.5.1.1 As teorias distintivas fortes e as débeis

Robert Alexy propõe o agrupamento da distinção entre princípios e regras

em teorias fortes e débeis388. Nas primeiras, os critérios de distinção seriam

substanciais ou qualitativos; já nas segundas, os critérios seriam meramente formais ou

quantitativos.

388 ALEXY, Robert. Sistema jurídico, princípios jurídicos y razón prática. pp. 140 e seg. In: Doxa. Disponível em http://www.cervantesvirtual.com/servlet/SirveObras/public/12471730982570739687891/ cuaderno5/Doxa5_07.pdf?portal=4. Acesso em 10.10.2010.

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181

Nos lindes do positivismo jurídico proliferam as teorias débeis. Identificam-

se os princípios como normas importantes e gerais do ordenamento, admitindo alguns

que eles resultam de um processo de indução ou generalização a partir de

determinadas normas jurídicas. Sob essa ótica, o direito estaria fundamentalmente nas

regras reconhecidas como jurídicas numa sociedade, constituindo os princípios um

modo de expressar implicitamente o que já estaria dito nas regras389.

Nas teorias fortes existem características materiais que assinalam critérios

distintivos que impedem a integração de princípios e regras numa categoria uniforme.

A distinção funda-se em critérios qualitativos, e não quantitativos. Na teoria de

Dworkin, os princípios integram o direito por seu próprio vigore, e não por terem sido

estabelecidos por uma autoridade, uma prática social ou por pertinência lógica a um

sistema. É pouco relevante sua positivação.

O status de direito dos princípios não vem de nenhuma forma de decisão ou

de incorporação, nem mesmo da prática judicial ou do consenso, de modo que são

direito embora não estejam referidos a nenhuma fonte. Isso advém da verificação de

que os princípios jurídicos têm raízes morais, o que leva a que seu sancionamento por

procedimentos não seja importante para sua validade390.

Por seu conteúdo, os princípios são intrinsecamente jurídicos, ainda que não

tenham sido incorporados ao direito explicitamente pela Constituição, por legislação,

jurisprudência ou qualquer outra fonte formal, inclusive quando anteriormente

ninguém os tenha utilizado ou pensado como direito. A validade dos princípios não

advém de uma regra de reconhecimento391, de critérios conclusivos para a

identificação de uma norma como pertencente (ou não) ao ordenamento jurídico. Os

princípios não só permitem a justificação moral do direito como fornecem material

para crítica das práticas sociais no caminho para o atingimento de justiça e outras

virtudes afins como a equidade e o devido processo legal.

389 VIGO, Rodolfo L. Os princípios jurídicos – perspectiva jurisprudencial. Buenos Aires: Depalma, 2000, p.5. 390 Idem. Ibidem, p. 20. 391 HART, H. L. A. O conceito de direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1986, p.111 e seg.

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182

3.5.1.2 A matéria

O princípio jurídico materializa conteúdos de moral política. Dworkin o

define como standard que deve ser observado, não porque favoreça ou assegure uma

situação econômica, política ou social que se considera desejável, mas porque é uma

exigência de justiça, equidade ou outra dimensão da moralidade392. As regras, por sua

vez, podem até mesmo ter conteúdos morais393, mas são sobretudo orientações

jurídicas positivadas para o comportamento.

A abertura e a fluidez inerentes aos princípios fazem com que, como

instrumentos de argumentação, eles sejam permeáveis a conteúdos de caráter político e

moral, estabelecendo deveres a partir de tais elementos. Por não terem a mesma

plasticidade dos princípios, as regras têm seu conteúdo delimitado pelo sentido dos

termos que compõem sua hipótese de incidência.

3.5.1.3 A capacidade de explicação e a de justificação

Karl Larenz394 considera que o decisivo [nos princípios] é a sua aptidão

como causa de justificação e sua cunhagem numa regulação ou em várias, ao

estabelecer que os princípios são fundamentos para a interpretação e a aplicação do

direito, deles decorrendo não só princípios como também regras. É a partir deles que

se pode dar sentido ao ordenamento jurídico e elucidar até mesmo o sentido das regras.

Os princípios têm por decorrência uma função também explicativa em relação às

regras. A partir de seu teor sintético é possível ordenar e conferir sentido ao sistema

jurídico, inclusive apontando razões de caráter moral e de justiça para o conjunto de

regras e para o direito.

Por sua vez, as regras, como proposições com hipótese de incidência e

consequência, têm sua finalidade limitada por sua forma, que se destina precipuamente

a reger comportamentos, e não a justificar o ordenamento. Enquanto os princípios têm

392 DWORKIN, Ronald. Los derechos en serio. Barcelona: Ariel, 1999, p. 72. 393 HABERMAS, Jürgen. Faticidad y validez. Trad. Manuel Jiménez Redondo. Madri: Trota, 2001, p. 278. 394 LARENZ, Karl. Derecho justo. Madri: Civitas, 1985, p. 36.

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caráter reflexivo, as regras têm uma característica imediatamente conformadora de

condutas.

As regras têm seu sentido explicativo contido nos limites da interpretação

de seu texto, não se podendo extrapolá-las diretamente para norteá-las senão a elas

mesmas. Mesmo na interpretação sistemática, não se pode perder a perspectiva de que

a regra é uma unidade isolada do ordenamento, fazendo sentido por si só, apesar de

poder ser esclarecida pelo seu posicionamento ou pela similitude de sentido com

outras normas.

3.5.1.4 O compromisso histórico

Os princípios jurídicos remetem a um compromisso histórico que almeja

perenidade395. É o que se dá com as constituições que albergaram entre seus princípios

a dignidade da pessoa humana, a liberdade, a igualdade, a democracia, o Estado de

Direito, o Estado Social, o Estado Democrático de Direito396. A incorporação desses

princípios a uma constituição significa a assunção dos conteúdos principais do direito

racional da Modernidade e sua evolução concreta como experiência, como padrões e

como pautas de moral política que extravasam os lindes da mera formalização para

atingir uma pretensão de permanência.

Por se integrarem a um sistema dinâmico397, as regras têm conteúdos e

duração contingentes, vinculados à positivação, ao seu tempo, ao seu lugar. A vigência

das regras é o que delimita sua duração e a de sua matéria. Então, nas regras, é por

intermédio de sua formalização que o seu conteúdo ingressa no direito e dele pode ser

retirado.

395 VIGO (Op. cit., p. 15). 396 ALEXY (Op. cit., p. 144). 397 Kelsen dá a seguinte noção de sistema dinâmico (KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Coimbra: Armênio Amado, 1974, p. 271): O tipo dinâmico é caracterizado pelo fato de a norma fundamental pressuposta não ter por conteúdo senão a instituição de um fato produtor de normas, a atribuição de poder a uma autoridade legisladora ou – o que significa o mesmo – uma regra que determina como devem ser criadas as normas gerais e as individuais do ordenamento fundado sobre esta norma fundamental.

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3.5.1.5 O caráter constitutivo e o constitucional

As normas legislativas e as administrativas são predominantemente regras,

enquanto as normas constitucionais sobre o direito e a justiça são prevalentemente

princípios398, que têm caráter constitutivo de ordenamento. O conteúdo dos princípios

necessariamente remete e conforma não apenas ao seu próprio sentido, mas também de

outros princípios e regras que nele buscam embasamento. Os princípios são

referenciais e fundamentos do ordenamento.

Já as regras exaurem-se no seu conteúdo, em si próprias, não tendo força

constitutiva além de si mesmas. Se alguma força constitutiva se pode reconhecer às

regras, é apenas de validade formal com a construção de uma cadeia hierárquica de

validação. Essa força constitutiva formal é limitada, esgotando-se numa norma

fundamental399 ou numa norma de reconhecimento400, que são limites claramente

identificáveis da cadeia de validação de um ordenamento jurídico.

3. 5.1.6 A interação

Os princípios recebem seu conteúdo num processo dialético de

complementação e limitação, estabelecendo deveres prima facie num processo de

argumentação vinculado a um discurso de razão prática401. Há, nesse caso, uma

interação dos princípios para que formem sentido a partir de uma aplicação integrada

em que haverá mútuas conjugação e interferência.

As regras, por sua vez, têm seu conteúdo oriundo de um ato formal de

positivação, não lhes sendo imprescindível a mútua referência para a construção de

sentido na aplicação a um caso concreto. O caráter relacional não é uma marca

distintiva do conteúdo das regras.

398 ZAGREBELSKY, Gustavo. Il diritto mite. Turim: Einaudi, 2005, p. 148. 399 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Trad. João Baptista Machado. Coimbra: Armênio Amado, 1974, p. 263. 400 HART. H. L. A. O conceito de direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1986, p. 111; 401 ALEXY, Robert. El concepto y la validez del derecho. Barcelona: Gediz, 1997, p. 170.

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3.5.1.8 A linguagem

Os princípios são vazados em linguagem diretiva/prescritiva, próxima da

linguagem natural, geralmente com conteúdo indeterminado e vago402. A abertura e a

indeterminação textual são-lhes inerentes para que possam formar uma dimensão

reflexiva. A referência dos princípios a outros princípios e às regras às quais dão

fundamentação lhes confere também um caráter metalinguístico.

Já as regras jurídicas se valem de linguagem descritiva/prescritiva na qual

se apresentam ordinariamente termos técnicos e que está próxima de uma linguagem

artificial, constituída pela dogmática jurídica e pelo saber tecnológico-científico. A

expressão do direito em regras visa a um fechamento linguístico com uma pretensa

simplificação do processo de aplicação do direito que, na subsunção, careceria

somente da presença de uma identidade semântica do fato com a hipótese de

incidência legal.

3.5.2 A identificação

3.5.2.1 A origem

As regras podem ser submetidas ao que Dworkin chama de teste de origem

ou de pedigree403, com especificação da maneira como passaram a integrar o

ordenamento jurídico. As regras ingressam no sistema jurídico por meio de uma cadeia

de validação em que as normas superiores garantem a pertinência ao ordenamento das

402 FIGUEROA, Alfonso García. Principios y positivismo jurídico. Madri: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 1998, p. 137. 403 DWORKIN, Ronald M. Los derechos en serio. Barcelona: Ariel, 1999, 95.

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inferiores, que encontra seu ápice na norma fundamental404 ou na norma de

reconhecimento405.

Os princípios, por estarem difusos na sua própria constelação, não podem

ser especificamente determinados e identificados num único ato e em vários atos

delimitados. Resultam de um intrincado conjunto de considerações jurídicas, políticas

e morais, em que a validade de um princípio deita raízes no próprio conjunto de

princípios. A validade destes não pode ser deduzida formalmente, estando sobretudo

no próprio conteúdo do conjunto de princípios que remetem a considerações de moral

política. Os princípios, por integrarem o direito necessariamente por seu conteúdo, e

não por um ato de autoridade, tornam desnecessária uma busca de fundamento de

validade formal406.

3.5.2.2 A validade

A validade das regras advém de outras regras, como a de reconhecimento

ou mesmo dos princípios. Pode-se dizer que as regras derivam sua validade formal de

outras regras e a sua validade material dos princípios jurídicos.

Em relação aos princípios, é até mesmo inadequado falar-se em validade

formal, eis que resultam do seu próprio conjunto e de seu conteúdo, o que é mais

consentâneo com a noção de integração e validade material. Não é casual que o eixo

central da teoria de Dworkin refira-se à integridade407 como pertinência e coerência do

conjunto de princípios.

404 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. João Batista Machado. 3ª ed. Coimbra: Armênio Amado — Editor, sucessor, 1974, p. 267 e seg. 405 HART, H. L. A.. O conceito de direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1986, p. 111 e seg. 406 Uma noção sobre a validade formal pode ser extraída deste trecho (KELSEN, op. cit., p. 267): O fundamento de validade de uma norma apenas pode ser a validade de uma outra norma. Uma norma que representa o fundamento de validade de uma outra norma é figurativamente designada como norma superior, por confronto com uma norma que é, em relação a ela, a norma inferior. 407 DWORKIN, Ronald. O império do direito. Trad. Jefferson Luiz Camargo. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 275.

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3.5.2.3 A especificação

Com relação às regras é possível estabelecer a enumeração de todas elas

com a representação formular de cada uma. Elaborar o conjunto de regras como finito

é viável, ao menos em teoria. Contudo, como os princípios são razões e argumentos

com conteúdos morais e políticos, não há como esgotá-los, até mesmo porque não há

um ato de instituição ou validação que permita delimitar a extensão do seu conjunto. A

referência a outros contextos, que não apenas o jurídico, torna o sistema de princípios

não só aberto em sua dinamicidade, mas também na variabilidade de seu conteúdo.

3.5.2.4 A derrogação

As regras podem ser revogadas por outras, seja pelo critério da superior, da

posterior ou mesmo da específica. Num sistema de regras é possível estabelecer

critérios de pertinência ao sistema, o que permite verificar a inclusão ou a exclusão de

uma regra.

Os princípios, no máximo, desgastam-se. Eles são sobretudo razões e

argumentos que retiram a sua validação do seu potencial de convencimento e da sua

força de gravidade. De mais a mais, um princípio que, em determinado contexto

acabou por excluído, pode ressurgir como decisivo em outro.

3.1.2.5 A localização

Enquanto as regras podem ser classificadas hierarquicamente, em razão da

autoridade que as editou ou de sua validação, os princípios formam uma constelação

em que, no máximo, pode-se identificar o peso, como por exemplo o da igualdade, o

da liberdade e o da democracia, mas é impossível estabelecer entre eles uma relação

hierárquica definitiva, já que coexistem num mesmo plano. Não se pode deixar de

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marcar que, em razão de sua capacidade de justificação e explicação, os princípios

estão num plano mais elevado que o das normas.

Ainda em relação aos princípios é possível caracterizá-los como concretos e

abstratos, conforme sua maior proximidade à solução de uma controvérsia. O direito à

livre expressão é um princípio abstrato. Já o princípio de que ninguém pode ser

privado da sua livre expressão, desde que não comprometa a vida e a integridade física

de outras pessoas, é um princípio concreto408.

3.5.2.6 A demonstração

As regras têm como origem um texto promulgado e positivado, podendo a

partir daí terem uma origem verificável e demonstrável. Os princípios, no entanto, nem

sempre podem ser objetos de demonstração determinada, sendo necessário, para aferir

sua existência, referência a outros princípios e a diversos pontos de apoio

institucionais tais como os precedentes ou mesmo textos de doutrina. Isso advém da

sua natureza de razões e argumentos.

3.5.2.7 A fundamentação

Os princípios fundamentam materialmente as regras, conferindo-lhes

sentido não só jurídico, mas também político e moral. O conjunto de princípios é a

referência de fundamentação para o sistema de regras.

De outro lado, ao se referirem ao conjunto de princípios e a princípios em

particular, as regras aumentam a dimensão de peso destes últimos, por lhes conferirem

alicerces institucionais com referências de positivação409.

408 DWORKIN. Los Derechos en Serio. Trad. Marta Gustavino. Madri: Ariel, 1999, p. 162. 409 ESSER, Josef. Principio y norma en la elaboración jurisprudencial del derecho privado. Barcelona: Bosch, 1961, p. 169.

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3.5.3 A sintaxe

3.5.3.1 A estrutura lógica

As regras são dotadas de hipótese de incidência e consequência jurídica,

isto é, têm caráter hipotético-condicional, constituindo proposições jurídicas formais.

A formalização não é só das regras, mas também do sistema que as organiza.

Por sua vez, os princípios são pensamentos supostamente teleológico-

diretivos, ou mais corretamente critérios deôntico-diretivos410 411 com dimensão de

peso. Nos princípios, o que sobressai é sua dimensão material, em que o seu conteúdo

é que lhes confere densidade argumentativa e fundamentadora. A fluidez e a abertura

dos princípios colocam em segundo plano sua dimensão formal, possibilitando, pela

plasticidade de substância, a integração com outros princípios não só de caráter

jurídico, mas de moral política.

3.5.3.2 A colisão

Havendo colisão entre regras, uma delas deve ser considerada inválida ou

se deve criar uma exceção. É uma dimensão formal que decorre do caráter de tudo ou

nada típico da aplicação das regras.

No caso dos princípios, ainda que apontem em direções opostas, coexistem

e devem ser considerados na sua dimensão de peso na compatibilização com outros

princípios.

410 LARENZ, Karl. Derecho justo. Madri: Civitas, 1985, p. 32 e seg. e Idem. Metodología de la ciencia del derecho. Barcelona: Ariel, 1980, pp. 418 e 465. 411 Diante da introdução de uma terceira categoria por Dworkin, ao lado dos princípios e das regras, a de diretrizes políticas, o caráter teleológico não tem sentido para os princípios. A distinção está explicitada no item 3.2.2.

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3.5.3.3 A sanção

Em geral, as regras são dotadas de dois elementos: hipótese de incidência e

sanção. Por sua vez, os princípios, ainda que tenham caráter deontológico, não

dispõem, como elemento de sua composição, uma consequência coativa. Só por meio

da densificação dos princípios em regras é que estes assumem caráter coativo. A

coercitividade dos princípios é, portanto, indireta, pelo seu caráter precípuo de

argumentos e razões.

3.5.3.4 A completude do ordenamento

O reconhecimento de uma constelação de princípios para reger uma

comunidade muito incrementa a capacidade de resposta do ordenamento jurídico, não

cabendo falar em lacunas aparentes ou efetivas. Pela aplicação coordenada do conjunto

de princípios é possível dar uma resposta correta para qualquer caso, mediante a

derivação de conteúdos. De igual modo, intrincados problemas de conflito aparente de

normas podem ser solucionados de maneira singela com referência ao conjunto de

princípios.

Já no que diz respeito ao sistema de regras, sua completude só pode resultar

de seu caráter dinâmico, em que se admite continuamente a mutabilidade das regras e

a integração de novas regras, o que possibilita a edição de uma norma concreta para

reger uma nova hipótese não originalmente prevista, mediante a positivação de uma

decisão em área em que se confere discrição à autoridade para escolher uma solução

por critérios extrajurídicos. Nesse caso, cuidar-se-á apenas de validação formal da

nova regra, e não de determinação de conteúdo.

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3.5.4 A aplicação

3.5.4.1 A determinação

As regras utilizam uma linguagem determinada, cerrada412 ou unívoca413

que permite uma aplicação no tudo ou nada (all-or-nothing)414 ou disjuntiva. Uma vez

configurados os pressupostos previstos pela hipótese de incidência ela se aplica; ou, se

não presentes, não se aplica. As regras são, assim, preliminarmente decisivas e

abarcantes415.

Os princípios, por sua inerente abertura, limitam-se a apontar razões numa

certa direção, carecendo da conjugação de outros princípios e da descrição completa

da situação fática a ser decidida para resultar numa solução. Eles são, portanto,

primariamente complementares e parciais416. Daí ser mais comum identificar

princípios na solução dos casos difíceis417.

3.5.4.2 Os tipos de razões

Alexy considera que princípios são argumentos prima facie, e regras são, se

não houver o estabelecimento de alguma exceção, razões definitivas418. Os princípios

devem ser colocados lado a lado para então surgir a possibilidade de edição de uma

solução para a controvérsia. A regra determina peremptoriamente a solução do caso

quando aplicável sua hipótese de incidência.

412 ATIENZA, Manuel & MANERO, Juan Ruiz. Sobre principio y reglas. p. 108. In: Doxa. Disponível em http://www.cervantesvirtual.com/servlet/SirveObras/public/12482196462352624198846/cuaderno10/ doxa10_04.pdf?portal=4. Acesso em 10.10.2010. 413 RICOEUR, Paul. O justo ou a essência da justiça. Lisboa: Instituto Piaget, 1997, p. 149. 414 DWORKIN, Ronald M. Los derechos en serio. Barcelona: Ariel, 1999, p. 77. 415 ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios. São Paulo Malheiros, 2004, p.68. 416 Idem. Ibidem. 417 RICOEUR (Op. cit., p. 149). 418ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 106.

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3.5.4.3 A carga argumentativa

A utilização dos princípios impõe uma grande carga argumentativa,

exigindo elaboração de justificação e fundamentação complexa com a exposição de

uma convergência principiológica e uma descrição completa do caso a ser

solucionado. Daí a expressão casos difíceis.

Já as regras possibilitam uma descarga argumentativa com a delimitação de

sentidos proposta pela hipótese de incidência que permite uma aplicação por

subsunção, o que desonera tanto a discussão sobre o direito aplicável como a sobre os

fatos pertinentes.

3.5.4.4 O cumprimento

Os princípios podem ser considerados mandados de otimização, eis que

devem ser aplicados na maior medida possível, de acordo com as contingências fáticas

e jurídicas. Eles comportam graus de cumprimento. As regras, por sua vez, são

mandados definitivos, cabendo o seu cumprimento pleno com a identificação e pela

realização do que está exigido na sua hipótese de incidência419.

3.5.4.5 As funções

Bobbio420 expõe quatro funções para os princípios: a) interpretativa, ao

aportar o esclarecimento do sentido das regras; b) diretiva ou programática, orientando

a elaboração de outros princípios e regras; c) integradora, ao permitir soluções de

casos para os quais não se tem regra aplicável; d) limitativa, colocando limites para o

exercício de competência.

As regras podem ter como função: a) normar condutas (regras primárias); b)

superar o caráter estático do direito, concedendo poderes e estabelecendo

419 ALEXY, Robert. El concepto y la validez del derecho. Barcelona: Gediz, 1997, p. 162. 420 BOBBIO, Norberto. Principi generali di diritto. In: Novissimo digesto italiano, v. XIII, 1966, p. 865.

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procedimentos para adaptação a situações novas (regras secundárias de câmbio); c)

superar o problema da ineficiência, ao determinar competências de julgamento para a

aplicação das normas primárias (regras secundárias de adjudicação); d) superar a

incerteza ao estabelecer critérios para identificar a pertinência de uma regra ou não ao

sistema (regras de reconhecimento)421.

3.6 A regulação entre princípios, diretrizes políticas e regras

Com o Estado Social e a democracia de massas, os conflitos sociais, para o

seu amortecimento, exigiram intervenções e prestações materiais compensatórias do

Estado, que acumulou tarefas de correção de externalidades sensíveis, como meio

ambiente, políticas sanitárias e a absorção dos efeitos disfuncionais do mercado. Isso

se fez acompanhado de um contínuo aumento da complexidade dos sistemas que

impuseram ao direito a absorção de uma vasta tarefa de normalização que, por um

lado, conferia à Administração amplos poderes para a persecução de finalidades de

interesse público e, por outro, levava ao enquadramento de uma ampla casuística de

políticas públicas, como a assistência e a previdência social, numa estrutura de se-

então, hipotético-condicional, descaracterizadora de relações cotidianas

individualizadas.

Era o direito instrumentalizado e hipertrofiado com programas finalísticos e

condicionais. O resultado foi a ampliação de competências indeterminadas para a

Administração e também, nesse mesmo âmbito, a produção infindável de regras que

submetiam os administrados a uma violenta abstração e a imperativos burocráticos. O

resultado foi o esfacelamento da possibilidade efetiva de se constituir um bem

ordenado sistema jurídico de regras. Esse objetivo de unidade, bem como o resgate de

legitimação da atividade burocrática, remete à aplicação principiológica.

Não se pode assumir a ingenuidade de que o direito prescindirá das regras e

se constituirá somente de princípios. As regras desempenham uma função

421 Funções de acordo com a classificação proposta por Hart (HART, H. L. A. O conceito de direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1986, p. 103).

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extremamente relevante para o direito. Permitem fácil comunicação de mensagens

com os sistemas econômico e político-burocrático. O fato de as regras serem dotadas

de sanção afeta diretamente os meios que regem esses sistemas. A coercibilidade do

direito pode ser lida imediatamente por eles como menos dinheiro e menos poder.

Não só a coatividade inerente a regras é algo que lhes torna mais

perceptíveis aos sistemas. Faz parte dos rudimentos da dogmática jurídica a aplicação

de leis, ou regras, por subsunção, com clara inspiração no silogismo lógico. O

movimento neopositivista do início do século XX buscou revisar os pressupostos

anteriores do conhecimento jurídico para alcançar o máximo de exatidão nos métodos

científicos422, a fim de conhecer e dominar os fatos complexos de seu tempo. Para isso,

as preocupações empíricas foram inseridas em sistemas lógicos e linguísticos de

inspiração matemática. O resultado na doutrina jurídica foi a construção de grandes

teorias que geraram sistemas formais de regras, como os de Kelsen e Hart. Em suma, a

estrutura hipotético-condicional das regras, sua formalização e a do ordenamento

inseriram o direito num contexto sintático e de cálculo lógico que o tornava altamente

operativo e o fazia comungar dos pressupostos científicos que embasavam a

constituição tecnológica dos sistemas.

Nessa mesma linha, formou-se no direito uma concepção de sistema

dinâmico423 como produtor e organizador de normas de conteúdo variável que

deixavam o direito altamente contingente para absorver as demandas sistêmicas. Era

um ordenamento com forma, tendo a sua matéria determinada externamente e com

plasticidade – inclusive temporal – para aceitar novos e mutáveis significados

normativos positivados. A crescente complexidade da sociedade passou a ser

absorvida pelo direito com um ordenamento formal e aberto.

Com a abertura dos sistemas dinâmicos, ao lado da lapidada linguagem

técnico-conceitual construída no século XIX pela jurisprudência dos conceitos424 e

422 COING, Helmut. Elementos fundamentais de filosofia do direito. Trad. Elisete Antoniuk. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2002, p.90. 423 Kelsen dá a seguinte noção de sistema dinâmico (KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Coimbra: Armênio Amado, 1974, p. 271): O tipo dinâmico é caracterizado pelo fato de a norma fundamental pressuposta não ter por conteúdo senão a instituição de um fato produtor de normas, a atribuição de poder a uma autoridade legisladora ou – o que significa o mesmo – uma regra que determina como devem ser criadas as normas gerais e as individuais do ordenamento fundado sobre esta norma fundamental. 424 LARENZ, Karl. Metodología de la ciencia del derecho. Barcelona: Ariel, 1980, pp. 39 e seg.

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outros movimentos semelhantes na ciência do direito, que já adentrava nos códigos,

como é exemplo o B.G.B. (Código Civil Alemão), estava aberta a porta para que

ingressasse no direito, especialmente por atos administrativos normativos, a linguagem

técnico-científica dos sistemas. As regras jurídicas absorveram linguagens técnicas,

aumentando o seu grau de operatividade e comunicabilidade com os sistemas.

Outro aspecto relevante é que as regras jurídicas passaram a ser organizadas

sistematicamente de forma escalonada425, em clara correspondência à ordenação

hierárquica do sistema político-burocrático. Estavam, assim, banidos os resquícios da

dispersão e do pluricentralismo de fontes oriundos da tradição medieval. De igual

modo, atendia-se plenamente às necessidades funcionais e operativas do sistema

político-burocrático.

Nessa ordem de ideias, a coercibilidade, o cálculo, a dinamicidade, a

absorção de linguagens artificiais, a hierarquização das regras e de seus sistemas

tornam-nas facilmente perceptíveis e inteligíveis pelos sistemas econômico e político-

burocrático, conferindo funcionalidade e operatividade ao direito como meio de

estruturação da sociedade. O drama é que são essas mesmas características das regras

que levam à hipertrofia do direito, que permitem sua instrumentalização, que

violentam modos de vida cotidianos e indiferenciados dos indivíduos e geram um

ordenamento jurídico esfacelado, em razão da própria dispersão do poder

administrativo-burocrático, como são exemplos claros as agências reguladoras. Vê-se

comprometida a própria pretensão de certeza, segurança, estabilidade e unidade que o

direito deveria conferir aos sistemas econômico e administrativo-burocrático.

Há um processo deletério que acompanha o direito como sistema de regras

instrumentalizado pelos sistemas econômico e político-burocrático. Algumas

características dos princípios podem permitir frear e equilibrar esse processo de

degeneração que afeta profundamente as instituições do Estado Democrático de

Direito.

O primeiro aspecto dos princípios, que é tão caro para os sistemas como

para o Estado Democrático de Direito, está na unidade do direito. Um legado do

Estado Social e de sua dinâmica com os sistemas econômico e político-burocrático foi

425 Idem. Ibidem, p. 309 e seg.

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o fracionamento do direito em diversas unidades burocráticas, que exercem

continuamente seu poder normativo, muitas vezes alheias às demandas do restante da

sociedade, visando apenas à resolução de imperativos próprios. É uma incessante

produção de regras que gera tal grau de desorientação que os próprios sistemas

demandam outras para solucionar inconsistências da própria atividade normativa.

A reflexão, a argumentação e a universalização inerentes à comunidade de

princípios são uma via alternativa para a perda de sentido decorrente desse

insulamento e dessa hipertrofia regulamentar. As decisões oriundas de um debate

sobre princípios e direitos exigem fundamentação e legitimação com apoio em

discussões de moral política que remetem a uma sociedade em que os indivíduos

consideram-se merecedores de igual respeito e consideração. A solução dos problemas

não se articula a partir de papéis reduzidos de clientes e consumidores de um

setor/mercado. O papel é o de cidadão: universalizante. Esse deslocamento de ótica é

uma barreira à autorreferência da burocracia e permite também uma unificação do

discurso jurídico, tendo como espinha dorsal a preocupação com direitos e princípios.

A exigência de maturação de um debate sobre uma solução pautada em parâmetros

abertos e universais e a interrupção do processo circular de produção normativa para a

resolução das próprias inconsistências do insulamento tem potencial de rendimento

para inibir os excessos da atividade normatizadora.

De outro lado, uma comunidade aberta de princípios válidos por próprio

vigore viabiliza outra dimensão temporal para a sociedade complexa. Os sistemas e

seu apoio científico-tecnológico apresentam contínuas demandas de normatização para

o direito. Foi esse fenômeno que gerou a própria regulação e sua inerente capacidade

normativa de conjuntura para solucionar problemas de uma sociedade de especialistas.

A indeterminação principiológica, em que uma constelação de princípios é concebida

plasticamente com possibilidades de derivações e desgastes, é capaz de conduzir

soluções altamente sofisticadas e coerentes. Karl Larenz426 fornece dois exemplos

lapidares dessa capacidade de resolução dos princípios diante de uma nova

conformação social:

[...] As primeiras regulações, em que estava subjacente o princípio da responsabilidade pelo risco, criaram-se antes que o princípio fora reconhecido,

426 LARENZ, Karl. Derecho justo. Madri: Civitas, 1985, p. 36.

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quando se falava de uma presunção de culpa ou se renunciava a encontrar uma fundamentação. Em contraste, o princípio da divisão dos poderes foi um postulado político antes que se positivasse no direito constitucional, ainda que Montesquieu pensasse, erroneamente, que estivesse realizado na Constituição inglesa. (g.n.)

Os exemplos falam por si sós. A divisão de poderes, de algum modo, ainda

é uma das bases do Estado Democrático de Direito. O princípio da responsabilidade

por risco, por sua vez, foi o resultado de uma evolução jurisprudencial que buscava

intuitivamente novos critérios para a distribuição dos danos na responsabilidade civil,

em razão da complexificação da atividade econômica que dispersava

responsabilidades ao longo da cadeia de produção e consumo, tornando impossível a

individualização da culpa. O mais interessante, nesses casos, é que esses princípios

basilares do direito contemporâneo não foram frutos de decisões de gabinetes

burocráticos. Ambos foram resultados, por processos distintos, de maturação e

evolução de discussões de moral política. A conclusão é muito simples: o conteúdo de

moral política dos princípios confere uma dinamicidade ao direito que permite a

derivação de novas decisões adaptadas à sociedade complexa e com um maior grau de

legitimidade pelo processo de argumentação que lhes é inerente.

Isso permite vislumbrar outras características dos princípios: o seu caráter

reflexivo e metalinguístico. O plano constituído pela comunidade de princípios por sua

complementaridade, sua autolimitação e sua multirreferência com uma crítica do

direito produzido e vivido pela sociedade (em relação a princípios ou a regras)

possibilita reordenações sociais em busca da sedimentação de padrões de justiça. Eles

são, dessa forma, uma metalinguagem sobre o direito com alta capacidade

legitimatória, principalmente pela sua forte aproximação com a linguagem natural, em

que também circulam discursos de moral política.

Essa dimensão reflexiva e metalinguística da comunidade de princípios

amplia a dimensão temporal dos princípios a um tal ponto, que ao seu sentido de

dinamicidade agrega-se o de perenidade. A abertura crítica de sentido dos princípios

permite a recuperação de um passado indeterminado da sociedade para o resgate de

tradições caras de moral política, numa visão otimista de presente em que se busca um

futuro melhor. Os princípios são uma janela permanente em que se podem vislumbrar

tanto padrões de eticidade arraigados como a infinita capacidade calculadora da

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economia com alto poder de planejamento temporal da produção, selecionando

argumentativamente, por seu caráter deôntico, quais cenários devem permanecer e

quais devem ser excluídos.

Esse mesmo caráter metalinguístico e reflexivo impede que escolhas e

mudanças sejam arbitrárias. Elas se acompanham de explicação e fundamentação

sobre as decisões a serem tomadas em sociedade. A alteração do direito a partir dos

princípios busca gerar convencimento e, por isso, agregação.

Por último, a par da tensão entre princípios e regras no direito, existem as

diretrizes políticas. É um legado do Estado Social a ampliação de programas

teleológicos a serem executados pelo Estado com vistas à implementação de políticas

de interesse público e utilitaristas que dizem respeito a aspectos econômicos, políticos

e sociais. Assim, ao lado dos princípios com o seu conteúdo de moral política atinentes

a direitos de indivíduos e grupos, o direito absorveu discursos finalístico-instrumentais

altamente imprecisos e com alta variabilidade, tendo em vista que sua determinação se

faz, em boa parte, por decisões de preferências427 da comunidade política, ou mesmo

das várias autoridades que a representam no Executivo e no Legislativo, como na

opção entre investir recursos nas forças armadas ou no controle externo de contas.

Os princípios jurídicos, por sua intrínseca conexão com os direitos, seu

inerente caráter deôntico e sua complementaridade, seguem uma linha condutora de

sentido. Em contraste, a permeabilidade por escolhas das diretrizes políticas as torna

elevadamente instáveis. Entretanto, a aproximação entre os dois numa mesma cadeia

procedimental de argumentação pode induzir nas diretrizes políticas uma estabilização

oriunda do sentido de justiça da comunidade de princípios e de sua inerente coerência.

427 É o que se depreende da distinção entre questões sensíveis à escolha e questões insensíveis à escolha de Dworkin (A virtude soberana. A teoria e a prática da igualdade. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 281): No entanto é essencial notar uma distinção importante entre dois tipos de classes de decisões políticas: as que envolvem principalmente o que chamarei de questões sensíveis à escolha e as que envolvem principalmente as questões insensíveis à escolha. As questões sensíveis à escolha são aquelas cuja solução correta, por questão de justiça, depende essencialmente do caráter e da distribuição de preferências dentro da comunidade política. A decisão de usar fundos disponíveis para construir um novo centro esportivo ou um sistema rodoviário é, tipicamente, sensível à escolha. Embora possam surgir diversas questões nessa decisão, das questões de justiça distributiva às de políticas adequadas para o meio ambiente, as informações sobre quantos cidadãos querem ou estão dispostos a usar ou serão direta ou indiretamente beneficiados com cada uma dessas obras rivais são nitidamente relevantes e podem muito bem ser decisivas. A decisão de matar assassinos condenados ou proibir a discriminação racial no trabalho, por outro lado, é insensível à escolha. Creio que a decisão correta nessas questões não depende, de maneira substancial, de quantas pessoas querem ou aprovam a pena capital ou acham injusta a discriminação racial. Acredito que o argumento contra a pena capital é tão forte na comunidade em que a maioria dos membros é a favor dela quanto na comunidade em que o povo se revolte contra ela.

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O direito tem uma feição bifronte, em que se apresenta como instrumento

conectado aos sistemas econômico e político-burocrático e como instituição vinculada

ao mundo da vida, no qual circulam discursos ético-morais. Para realizar a tradução e a

articulação dessas esferas, o direito se vale de um tripé constituído por um sistema de

regras que favorecem um conjunto de diretrizes políticas e respeitam uma comunidade

de princípios. A atividade regulatória tem-se desenvolvido sobretudo no eixo das

regras para satisfação de demandas sistêmicas oriundas de uma sociedade de

especialistas.

Ainda no que diz respeito ao eixo das regras, a comunicação promovida

pelo direito torna-se audível pelos sistemas em razão de sua coercibilidade, de sua

calculabilidade, de sua dinamicidade, da artificialidade de sua linguagem e de sua

hierarquização. Essas características têm elevado poder deletério em relação ao mundo

da vida, por sua instrumentalização. Daí a importância dos princípios dotados de

conteúdo de moral política e indutores de agregação, de reflexividade, de

universalidade, de argumentação, de coerência, de perenidade, de complementaridade,

constituindo uma metalinguagem com elevado poder de legitimação. Por último, no

eixo das diretrizes políticas de caráter teleológico e utilitário, formam-se ordens de

preferências para o atingimento de finalidades coletivas por decisões da comunidade

ou, mais especificamente, de suas autoridades, o que leva a uma grande instabilidade e

variabilidade na seleção desses objetivos, que pode ser amenizada com a vinculação

aos princípios num processo argumentativo em que se procure justiça e coerência.

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4.º Capítulo – Os princípios e a crítica da regulação aplicados a casos

Até que ponto, hoje, pode-se falar em liberdade? Está aí uma pergunta

inquietante para um mundo crescentemente mais regulado428 numa sociedade

fracionada e inflada com discursos de especialistas. A conformação industrial da

sociedade inibe possibilidades emancipatórias num mundo progressivamente

burocratizado429. A regulação não traz apenas problemas teóricos, mas questões

práticas, de conteúdo moral, profundamente importantes para o compreender na

sociedade contemporânea. Esse tema é talvez um dos eixos centrais pelos quais se

estrutura a tensão entre teoria e prática. Nas palavras de Gadamer430:

Estou convencido de que a tensão entre teoria e prática tampouco vai desaparecer num mundo de regulações, planificações e burocratização progressiva, de modo que creio que vale a pena refletir sobre como a vida vai buscando suas próprias vias entre a regulação e os espaços de liberdades que escapam a ela.

A questão aqui debatida em torno da regulação remete à ciência e sua

apropriação por aparatos técnico-burocráticos para formar discursos de verdade que

colonizam o mundo da vida com a inserção de proposições que, pela sua origem

teórica, pretendem formar verificações com validade de verdade quase-naturais, ou

seja, de difícil contestação, por se tratar de supostas evidências de caráter científico.

As ciências, especialmente as sociais, são construções humanas, assim como a técnica,

estando aí presentes interesses que vão além de uma mera contemplação teórica.

Nos pressupostos teóricos do presente trabalho, houve grande preocupação

em evidenciar os perigos e os riscos da cientificização das vivências sociais e, por isso,

recusou-se uma visão de ciência, especialmente de ciência pura com objeto e métodos

próprios, para guiar a reflexão jurídica. Afirmou-se com apoio na hermenêutica

filosófica que o pensar é necessariamente aberto a um mundo configurado

linguisticamente, e que método nada mais representa que uma abertura de um

428 GADAMER, Hans-Georg. Acotaciones hermeneuticas. Madri: Editorial Trotta, 2002, p. 18. 429 Idem. Ibidem, pp. 63/4. 430 Idem. Ibidem, p. 13.

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caminho na floresta da experiência431, uma trilha na vivência construída com vistas a

um norte.

Nessa linha, assumiu-se que o direito como saber está muito além dos

estreitos limites da ciência e da técnica. Suas reflexões apoiam-se também em virtudes

intelectuais como a prudência e a filosofia, que remetem a reflexões sobre ética, moral,

política e à relação do direito com outras disciplinas afins.

Só que não se trata de um mero excurso teórico nesses âmbitos. Cuida-se

especialmente da práxis, das coisas práticas, dos comportamentos humanos e das

organizações às quais pertencem a política e a legislação em que o homem não se

conduz apenas pelos instintos, mas pela razão prudencial (phronesis) que equilibra a

tarefa interminável do querer saber com a finitude inerente ao ser humano432.

Não haveria, assim, como abordar o tema apenas a partir de uma exposição

conceitual e sistemática. Não foi esse o objetivo a se atingir aqui. Toda a exposição

teórica empreendida visou a expor uma questão de razão prática central para a

sociedade contemporânea, em que o volume e o potencial de coerção da regulação

oferecem graves riscos à liberdade e à autodeterminação. Os imperativos sistêmicos da

economia e político-burocráticos, com ofertas a uma cidadania clientelizada e

reduzida, comprimem os espaços de autonomia433 em que os cidadãos podem exercer

mutuamente juízos de universalização dada a sua integração à mesma comunidade de

princípios.

Só com a abordagem de casos concretos, em que se evidenciassem questões

e problemas atinentes a comportamentos e organizações que se formam a partir deles,

haveria sentido completo para o trabalho. O estreitamento da vivência da liberdade e

seus riscos a partir da regulação é algo que pode ser verificado em precedentes

judiciais e na positivação de regras por entes reguladores. Por isso, o fechamento da

reflexão se ordena a partir de casos.

Em que pese a volumosa produção normativa pelos entes reguladores e

também no âmbito do Executivo, não são muitos os precedentes que discutem

431 Idem. Ibidem. 432 Idem. Elogio de la teoria. Barcelona: Península, 2000, p. 63. 433 Autonomia que pode ser compreendida positivamente a partir da lei fundamental da razão pura prática, em Kant: age de tal modo que a máxima da tua vontade possa valer sempre ao mesmo tempo como princípio de uma legislação universal (KANT, Immanuel. Crítica da razão prática. Lisboa: Edições 70, 2001, p. 42)

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diretamente a atividade de produção de regras nesses âmbitos. O universo de seleção

dos casos e decisões é muito reduzido, levando em conta a expressão e a importância

de tal fenômeno na sociedade complexa.

O primeiro caso escolhido analisou liberdades constitucionais, como a de

expressão e a de exercício profissional em face do controle de acesso ao jornalismo e

da regulamentação da profissão. A grande relevância do caso está em ter obstado

peremptoriamente a possibilidade de regramento dessa atividade, estabelecendo-a

como um espaço de emancipação.

O segundo trata de tarifas interurbanas no mesmo município. Nesse

precedente, com alusões a imperativos técnicos, econômicos e à autonomia das

agências, o Superior Tribunal de Justiça, impressionado pelos discursos coercivos de

verdade que tocam esses temas, recusou ao Judiciário qualquer possibilidade de

análise do tema. O caso é um bom exemplo dos inconvenientes do enfrentamento do

tema sem um instrumental que insere no direito como debate norteador a comunidade

de princípios e um feixe coerente de diretrizes políticas.

O terceiro diz respeito à qualificação jurídica do poder normativo dos entes

reguladores como poder de polícia. Sua seleção justifica-se para evidenciar a

dificuldade de tratamento, pelo direito, de problemas da sociedade complexa nos

marcos do Estado Democrático de Direito, em que temas específicos, como os da

economia, têm de ser confrontados com direitos.

O último tem como objeto a regulação de um tema específico da medicina:

a ortotanásia, ou seja, a normatização dos cuidados médicos para respeitar a morte em

seu tempo sem métodos extraordinários e desproporcionais. O caso traz à luz o

enfrentamento pelo direito de questões técnicas e especializadas que podem ser

resolvidas a contento, no âmbito da própria regulação, sob a ótica de fundamentação

dos princípios.

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4.1 O diploma de jornalismo e a proibição da regulação da profissão

O Ministério Público Federal propôs ação civil pública para arguir a

inconstitucionalidade do Decreto-Lei n.º 972/69, especialmente de seu art. 4º, V,

diante da Carta de 1988. O intuito era questionar a constitucionalidade da exigência de

diploma de curso superior de jornalismo registrado no Ministério da Educação para o

exercício da profissão de jornalista.

O Ministro Gilmar Mendes, relator do caso, seguiu duas vias de análise:

uma em face da Constituição de 1988, especificamente em relação à liberdade de

profissão, de expressão e de informação e outra atinente ao art. 13 da Convenção

Americana de Direitos Humanos – Pacto de San José da Costa Rica. A primeira seria

uma continuidade de jurisprudência da Representação n.º 930/DF, cujo relator para o

acórdão foi o Ministro Rodrigues Alckmin, e a segunda teria entendimento

consolidado no âmbito do sistema interamericano de direitos humanos.

Algo a ser observado é que, se entendida como constitucional a exigência

em questão e o decreto-lei referido, vários profissionais estariam sujeitos a uma multa

prevista por tal instrumento normativo e poderiam ainda estar cometendo a

contravenção penal prevista no art. 47 do Decreto-Lei n.º 3.688/41. O Ministério do

Trabalho considerou que o Decreto-Lei n.º 972/69 seria constitucional, por não ser a

liberdade profissional absoluta, estando remetida à legislação a definição das

qualificações indispensáveis ao exercício de qualquer ofício.

Retomando a primeira linha a ser desenvolvida, o caso leva à análise do

âmbito de proteção da liberdade de profissão, art. 5º, XIII, da Constituição Federal,

bem como das restrições e conformações legais permitidas. Segundo o relator,

Ministro Gilmar Mendes, o âmbito de proteção configura pressuposto primário para o

desenvolvimento de qualquer direito fundamental434, com identificação do objeto da

434 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Acórdão no Recurso Extraordinário n.º 511.961. DJ n.º 213 de 13.11.2009. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28RE%24 %2ESCLA%2E+E+511961%2ENUME%2E%29+OU+%28RE%2EACMS%2E+ADJ2+511961%2EACMS%2E%29&base=baseAcordaos. Acesso em fevereiro de 2011. Voto do Ministro Gilmar Mendes, p.24.

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proteção e contra quais tipos de agressão se outorga a proteção, não se coadunando

com tal âmbito qualquer limitação ou restrição.

O âmbito de proteção seria o núcleo do direito fundamental, cuja definição

poderia ser obtida a partir da análise da norma constitucional garantidora de direitos,

levando em conta: a) a identificação dos bens jurídicos protegidos e a amplitude dessa

proteção (âmbito de proteção da norma); b) a verificação das possíveis restrições

contempladas, expressamente, na Constituição (expressa restrição constitucional) e a

identificação das reservas legais de índole restritiva435.

Sobre a liberdade de profissão, a Constituição, no art. 5º, XIII, dispõe que

“é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as

qualificações profissionais que a lei estabelecer”. Ao remeter à lei a definição das

qualificações profissionais, tal inciso estipulou uma reserva legal qualificada.

Nessa linha, uma norma que abre espaço para reserva legal conteria a um só

tempo: a) uma garantia com determinado âmbito de proteção e b) uma autorização de

restrição, conferindo competências ao legislador para determinar limites ao âmbito de

proteção constitucionalmente estabelecido. A autorização de restrição teria de se

submeter à análise de razoabilidade e proporcionalidade, respeitando o núcleo

essencial do direito fundamental.

Assim, as restrições legais são sempre limitadas436, cabendo-se falar em

limite dos limites, ou, em outras palavras, das balizas das restrições legais que

decorreriam da própria Constituição, referindo-se à proteção de um núcleo essencial

do direito fundamental e, ainda, à clareza, determinação, generalidade e

proporcionalidade das restrições legais437. É postulado imanente do texto

constitucional que haja a proteção do núcleo essencial do direito fundamental diante de

restrições inapropriadas e desproporcionais.

Dessa forma, o correto seria falar em reserva legal proporcional, cabendo

analisar a legitimidade dos meios e dos fins estabelecidos pelo legislador, assim como

da adequação de tais para a consecução dos objetivos a alcançar e da necessidade de

utilização dos meios. Na verificação de adequação, nota-se a aptidão das medidas para

435 Idem. Ibidem, p. 27. 436 Idem. Ibidem, p. 30. 437 Idem. Ibidem, p.30.

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atingir as finalidades. Já na de necessidade analisa-se se não há outro meio menos

gravoso para a consecução das finalidades pretendidas. Por último, a

proporcionalidade em sentido estrito diria respeito a uma ponderação entre o

significado da intervenção para os afetados e os objetivos a que o legislador visa. É

sob essa perspectiva de análise que o acórdão em questão encara o decreto-lei

restritivo de liberdade de profissão para os jornalistas.

O Supremo Tribunal Federal já se debruçou sobre o tema no julgamento do

Recurso Extraordinário 70.563, em que o Ministro Thompson Flores observou que as

condições de capacidade para o exercício de uma profissão deveriam visar à proteção

social, não se limitando a requisitos técnicos, mas abrangendo também pressupostos de

condição moral, física e outras.

Em outro precedente, o da Representação n.º 930, o relator, Ministro

Rodrigues Alckmin, enfatizou a importância de se preservar o núcleo da liberdade de

profissão, ressaltando que o legislador, ao estabelecer as condições de capacidade

previstas no art. 153, § 23, da Constituição de 1967/69, deveria atender ao critério de

razoabilidade438.

Na linha dos precedentes, o relator, Ministro Gilmar Mendes, observou ser

necessário verificar se o exercício profissional exigiria qualificações profissionais e

capacidades técnicas específicas e especiais439, o que legitimaria o Estado a

regulamentar o tema em defesa da coletividade. Nessa linha, a qualificação

profissional prevista no art. 5º, XIII, da Constituição Federal, só pode ser exigida das

profissões que possam colocar em perigo a coletividade ou direitos de terceiros, tais

como a medicina, as profissões da área de saúde, a engenharia, a advocacia etc.

Os riscos do exercício do jornalismo não seriam afastados com um diploma

de graduação, já que o correto exercício da profissão dependeria do correto caráter de

cada um e do acesso a fontes qualificadas. O jornalismo não exigiria técnicas

específicas, assim como o seu mau exercício levaria apenas à ausência de leitores, sem

colocar em risco a vida ou a saúde de terceiros. A violação da honra, da intimidade, da

imagem e de outros direitos da personalidade não são riscos do exercício do

438 Idem. Ibidem, p. 36. 439 Idem. Ibidem, p. 41.

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jornalismo, mas o resultado do seu exercício abusivo e antiético. A exigência de

diploma de jornalismo não passaria, de tal modo, sequer pelo exame de adequação

como meio de proteção social.

O ponto crucial da análise da condição restritiva para exercício do

jornalismo é sua estreita vinculação à liberdade de expressão, de informação e de

comunicação. O jornalismo é a atividade remunerada que possibilita o exercício desses

direitos. A liberdade de profissão, no caso do jornalismo, exige interpretação conjunta

com os preceitos do art. 5º, IV, IX, XIX, e do art. 220 da Constituição.

Como ressaltado na Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental

n.º 130, somente em hipóteses excepcionalíssimas essas liberdades poderiam ser

restringidas. Por isso, o jornalismo, como atividade umbilicalmente vinculada a tais

direitos, não poderia ser objeto de condições quanto ao acesso à profissão e ao

respectivo exercício profissional. Mais claramente, não há espaço para a regulação

estatal quanto à profissão de jornalista nem para a criação de uma autarquia de

regulamentação profissional. Um controle dessa ordem caracterizaria censura prévia.

Até mesmo porque só diante de condições de capacidade ou qualificações

profissionais especiais haveria regulamentação legítima da profissão por uma

autarquia.

Não que o exercício do jornalismo não ofereça grandes riscos à sociedade.

Muito ao contrário, a imprensa na sociedade contemporânea tem um poder que pode

sitiar até mesmo o Estado. Todavia, o controle da imprensa deve ser feito a posteriori

pela responsabilidade penal e civil ou pela autorregulação. De acordo com o relator, os

danos causados pela atividade jornalística não podem ser evitados ou controlados por

qualquer tipo de medida estatal de índole preventiva.

Tem-se o dado de que, em 13 de novembro de 1985, a Corte Interamericana

de Direitos Humanos declarou que a obrigatoriedade do diploma universitário e a

inscrição em ordem ou conselho profissional violam o art. 13 da Convenção

Interamericana de Direitos Humanos, que trata da liberdade de expressão em sentido

amplo.

Nessa decisão da Corte Interamericana rechaçaram-se as razões de ordem

pública que justificam a inscrição obrigatória em conselho profissional, no caso do

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jornalismo. Deduziu-se que isso seria uma limitação aos não inscritos, de exercerem

em toda sua amplitude um direito garantido a todo ser humano da referida Convenção

– a livre expressão – gerando uma infração da ordem pública democrática sobre a qual

se fundamenta a própria Convenção. Até mesmo porque o bem comum, dentro de tal

contexto, refere-se a condições da vida social que permitiriam aos indivíduos alcançar

o maior grau de desenvolvimento pessoal e de positivação dos princípios

democráticos.

Dentro de uma sociedade democrática devem garantir-se as maiores

possibilidades de divulgação de notícias, ideias e opiniões. Essa é uma base primária

da democracia, que não é viável sem o debate livre e sem a franca manifestação dos

insatisfeitos e dos oposicionistas. O jornalismo não pode ser atividade exclusiva de um

grupo da sociedade, sob pena de violar o direito do indivíduo de buscar e difundir

informações por qualquer meio e ainda o direito da comunidade de receber a

informação sem travas. Não se trata, como noutras profissões, de aplicação de

conhecimentos específicos aprendidos em universidades, mas de exercício da

liberdade de expressão.

O relator conclui que, a exemplo do Decreto-Lei n.º 911/69, o Decreto-Lei

n.º 972/69 foi editado sob a égide do Ato Institucional n.º 5, de 1968. Ficou claro,

então, que a exigência de diploma de curso superior para exercício da profissão tinha

como objetivo afastar dos meios de comunicação artistas, políticos e intelectuais que

compusessem a oposição ao regime. Isso reforça a inadequação das restrições previstas

no decreto-lei em questão a um Estado Democrático de Direito. Daí concluir-se por

sua inconstitucionalidade.

Das declarações de votos que aderiram ao relator, vale a pena ressaltar,

como ponto relevante para análise do tema, trecho do voto do Ministro Ricardo

Lewandowski: a faculdade de restringir tais liberdades [trabalho, ofício e profissão],

que o constituinte delegou ao legislador ordinário, dirige-se às atividades cujo

exercício exija conhecimentos técnicos específicos, o que não é o caso do

jornalismo440. Em sentido semelhante manifestou-se o Ministro Cezar Peluso, ao

defender que as qualificações especiais e a regulação da profissão têm sobretudo sua

440Idem. Ibidem. Voto do Ministro Ricardo Lewandoski, p. 1.

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explicação na necessidade de conhecimento suficiente de verdades científicas exigidas

pela natureza mesma do trabalho, ofício ou profissão441 ou ainda para evitar riscos

derivados do desconhecimento de alguma verdade técnica ou científica que devesse

governar o exercício da profissão442.

Um último trecho que merece destaque nas declarações de voto é a

observação do Ministro Eros Grau443 de que no tema do exercício da profissão de

jornalista a salvaguarda das salvaguardas da sociedade, o anteparo dos anteparos

sociais, é não restringir nada.

4.1.2 O caso conforme os princípios, os direitos e a crítica à regulação

No caso em questão, o Supremo Tribunal Federal decidiu pela

inconstitucionalidade do diploma de jornalismo para o acesso à profissão e declarou a

invalidade de qualquer regulação sobre o seu exercício. Em outras palavras, a Corte

estabeleceu um âmbito de imunidade em relação à competência regulamentadora face

a direitos e princípios constitucionais.

Houve, assim, uma larga exposição de como os direitos fundamentais

podem interferir na regulação. Na hipótese colocada à apreciação, o mais interessante

é que os princípios respectivos foram de tal importância e peso que excluíram por

completo qualquer espaço possível de regulação.

O ponto inicial do acordo foi o de um âmbito de proteção contido no art. 5º,

XIII, da Constituição Federal, e também das restrições possíveis previstas na própria

Constituição. Logo, destacou haver no texto uma reserva legal qualificada, ressaltando

que a reserva legal, como restrição, é sempre limitada pelo princípio da

proporcionalidade face ao núcleo da liberdade de profissões.

Deslocado o ponto de vista para o marco teórico do presente trabalho, o

âmbito de proteção ou o núcleo do direito fundamental significa que o Supremo

Tribunal Federal deriva dessas liberdades constitucionais deveres para as autoridades 441 Idem Ibidem. Voto do Ministro Cezar Peluso, p. 2. 442 Idem. Ibidem, p. 3. 443 Idem. Ibidem. Voto do Ministro Eros Grau, p. 4.

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constituídas, que limitam até mesmo o legislador. Mesmo no caso de reserva legal

qualificada haveria um dever implícito para o legislador, que seria o de estabelecer

limites razoáveis e proporcionais em face do núcleo do direito em questão. Noutros

termos, o princípio da supremacia da legislação exige conjugação e aplicação

complementar com outros princípios, não sendo a reserva legal uma autorização em

aberto para o legislador.

Esse raciocínio é interessante, pois coloca limites até mesmo para a

regulação autorizada em sede constitucional para o legislador. Ora, a conclusão para os

casos de exercício da regulação no âmbito da Administração é muito clara. Se mesmo

para o legislador os direitos constitucionais constituem um limite imediato para o

exercício da atividade normativa, com mais razão constituem também restrições

imediatas para o Executivo. Em resumo, qualquer atividade reguladora é exercida

imediatamente frente à Constituição, estando o sentido das regras administrativas

subordinado à comunidade de princípio à qual devem respeitar.

Outra decorrência dessa verificação é a de que âmbitos de liberdades e de

emancipação, inerentes aos direitos, interpõem-se em qualquer atividade reguladora do

Legislativo ou do Executivo. A regulação deve respeitar espaços gerados a partir das

argumentações de moral política inerentes aos princípios, o que tem como decorrência

um debate não centralizado apenas nos papéis sociais de consumidor e clientes, mas no

de cidadão e de seus correspondentes direitos. Os direitos levados a sério são trunfos

principalmente na regulação.

Essa ideia é reforçada quando se diz que o jornalismo não pode ser objeto

de regulação quanto ao acesso à profissão e ao respectivo exercício e que não se

poderia criar uma autarquia de regulamentação profissional como decorrência dos

direitos de expressão, de informação e de comunicação. Essas liberdades constituiriam

fronteiras que inibiriam totalmente qualquer atividade de produção de regras prévias

nesse âmbito.

Outro ponto a ser destacado é o de que vários ministros insistiram que a

regulação da profissão de jornalista só se justificaria diante de qualificações e

conhecimentos técnicos específicos e de verdades científicas. Nesse precedente, está

muito claro que um marco regulador, com regras de origem legal e administrativa,

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210

vincula-se a saberes e atividades especializadas constituídos com base na técnica e na

ciência. Daí pode derivar-se que a capacidade normativa de conjuntura decorra da

necessidade de adaptação das regras de normalização às mutações técnico-científicas.

De alguma forma reconheceu-se que o jornalismo é uma atividade mais

ampla e, por isso, incompatível com uma regulação técnica. É uma profissão

intrinsecamente vinculada ao direito de livre expressão, que não pode ser encerrado

num mero produtivismo. Nesse âmbito, circulam saberes oriundos das artes, da moral,

do direito, da política etc., que também devem ser objeto de livre expressão,

informação e comunicação num Estado Democrático de Direito e numa sociedade

pluralista.

Há, ainda, um aspecto muito interessante no acórdão, ao estabelecer que o

controle da imprensa deve ser feito a posteriori. Nisso está implícito que a constituição

de um sistema de regras com estrutura hipotético-condicional para um controle prévio

significa violência em relação à singularidade de cada caso de exercício do direito à

livre expressão. É mais adequado enfocá-los a partir da comunidade de princípios,

procurando derivar uma decisão justificada e adequada com uma argumentação aberta

com juízos de moral política. Não se pode moldar antecipadamente o exercício dessa

liberdade fundamental.

Dessa forma, no Recurso Extraordinário n.º 511.961, o Supremo Tribunal

Federal estabeleceu um núcleo para o direito de livre exercício profissional, que

implica limitações até mesmo para o exercício de uma reserva qualificada pelo

legislador, o que permite concluir que qualquer atividade regulatória está

imediatamente vinculada e referida aos direitos e seus princípios, que reservam ao

cidadão espaços de liberdade oriundos de argumentações de moral política. Também

foi estabelecida pelo julgado uma vinculação entre a atividade regulatória e saberes

especializados oriundos da técnica e da ciência. Por último, com a defesa de um

controle a posteriori da atividade, mostrou-se a excessiva rigidez de um sistema de

regras prévias para a livre expressão, que seria avaliada mais adequadamente por uma

comunidade de princípios.

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211

4.2 As tarifas interurbanas dentro do mesmo município

4.2.1 O caso

O primeiro caso de uma série de precedentes do Superior Tribunal de

Justiça sobre a cobrança de tarifas interurbanas dentro de um mesmo município foi o

do Recurso Especial de n.º 572.070444, interposto pela Brasil Telecom S/A e tendo

como recorrida a Coordenadoria de Proteção e Defesa do Consumidor de Cornélio

Procópio – Procon.

Havia sido concedida, em ação civil pública, liminar para suspender a

cobrança de tarifa interurbana dentro dos distritos integrados ao município de Cornélio

Procópio (PR). O juiz de primeiro grau considerou que o Distrito de Congonhas não

detinha autonomia político-financeira e que deveriam ficar ao encargo das prestadoras

de serviços telefônicos os procedimentos para a configuração de uma área local. De

outro lado, fundamentou-se na Lei n.º 9.472/97 que, em seu art. 2º, garante a toda a

população acesso às telecomunicações a tarifas e preços razoáveis, em condições

adequadas e, em seu art. 5º, estabelece a defesa do consumidor e a redução das

desigualdades regionais e sociais.

O Superior Tribunal de Justiça fez abordagem completamente diversa do

caso. Seu primeiro fundamento foi o Decreto n.º 2.534/98, que trata do plano geral de

outorgas de serviços de telecomunicações prestados no regime de direito público, que

distinguiria o serviço local como o prestado entre pontos fixos determinados situados

em uma mesma Área Local (art, 1º, § 2º, I), e o de longa distância nacional como o

prestado entre pontos fixos determinados situados em Áreas Locais distintas no

território nacional. Com base no art. 103 da Lei n.º 9.472/97, que conferia à Anatel

competência para estabelecer a estrutura tarifária para cada modalidade de serviço, a 444 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Acórdão no Recurso Especial n.º 572.070. DJ de 14.06.2004. Disponível em: https://ww2.stj.jus.br/revistaeletronica/ita.asp?registro=200301280351&dt_publicacao=14/06 /2004. Acesso em: fevereiro de 2011.

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212

agência teria editado a Resolução n.º 85/98 para definir o que seria área local, isto é,

uma área geográfica contínua delimitada segundo critérios técnicos e econômicos,

devendo ainda serem levados em consideração: a) o interesse econômico, b) a

continuidade urbana, c) a engenharia das Redes de Telecomunicações; d) as

localidades envolvidas. Com base em toda essa normatização regulatória e em outras

considerações, o STJ considerou que a cobrança do serviço local de telefonia não

levaria em conta apenas critérios político-geográficos, mas também análises de custo-

benefício com base no contrato de concessão.

O tribunal superior julgou, ainda, tratar-se de matéria técnica, alheia ao

Judiciário, que apenas criaria embaraços à qualidade dos serviços prestados pelas

concessionárias se interviesse nesse âmbito. De forma ainda mais incisiva o relator,

Ministro João Otávio de Noronha, recusou o controle do tema:

Além disso, não concebo como se possa interferir de forma tão radical em um setor de tamanha complexidade e sensibilidade como é o das comunicações com base em mera presunção de que a prestadora de serviços dispõe, na área questionada, de uma adequada engenharia de rede de telecomunicações.

Após sedimentar a imunidade técnica das agências, o precedente adentrou

em juízos de utilidade coletiva. Defendeu que os princípios norteadores da atividade

econômica e social estariam sendo atendidos, já que a Lei n.º 9.472/97 teria como

objetivo favorecer o aprimoramento dos serviços de telefonia para o conjunto da

população brasileira, o que só seria possível pela atuação da agência. O respeito ao

equilíbrio da regulação seria imprescindível, pois o Estado não poderia arcar com os

custos inerentes à disponibilização do serviço para toda a população. Por último, num

contexto de economia de mercado, os custos das atividades econômicas dos agentes

regulados deveriam ser ressarcidos para a manutenção de seu padrão de qualidade.

Em suma, o julgado analisado considerou válida a cobrança de tarifa

interurbana dentro do mesmo município. Para isso, aduziu fundamentos de ordem

técnica, de autonomia da agência, de utilidade pública e de ordem econômica.

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4.2.2 O caso conforme os princípios, os direitos e a crítica à regulação

É marcante que o precedente em questão tenha, apesar de sua concisão,

passado por praticamente todas as questões debatidas no presente trabalho. A decisão

apresentou-se como um exemplo claro e passivista da naturalização das intrincadas

questões de instrumentalização e legitimação que cercam a regulação.

Num primeiro plano, após referir-se a diversas regras superficiais

decorrentes do poder normativo da agência, houve o apelo à complexidade das

questões técnicas para validar o ato da agência. Houve a confirmação da força do

discurso de verdade técnico-científico, que pela sua simples referência cria um âmbito

de imunidade ao poder regulamentar. Uma segunda trincheira construída pela decisão

foi a do insulamento burocrático da agência e de sua importância para a manutenção

da utilidade pública regulada. Por último, os imperativos do sistema econômico foram

aduzidos como uma nova trincheira para proteger o ato da agência sob pena de

desorganização do serviço e da ordem própria ao mercado com o respeito aos

contratos. O regramento expedido pela agência foi tomado como um extrato de

imperativos de ordem técnico-científica, de ordem econômica e de consistência

burocrática.

Com tal tecitura, que colocou, em primeiro plano, imperativos sistêmicos da

economia e político-burocráticos, nenhuma consideração sobre os princípios e os

direitos envolvidos foi aduzida. As eventuais questões de moral política que poderiam

legitimar e justificar a decisão sob o ponto de vista de uma consistência do Estado

Democrático de Direito foram atropeladas por preocupações técnicas e

mercadológicas.

Não houve sequer debate sobre os direitos de ordem social referidos pela

sentença com base nos arts. 2º e 5º da Lei n.º 9.472/97, que trata de preços adequados

e da defesa do consumidor. Além do mais, estava claramente em questão um princípio

de moral política que diz respeito à configuração e à formação de identidades por uma

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comunidade circunscrita a um município. A comunicação facilitada entre os cidadãos

do município é pressuposto essencial para a constituição de laços.

A decisão passou longe de qualquer ponto de contato com uma proposta de

aplicação do direito como integridade. Além de silenciar sobre direitos e princípios,

ignorou questões de equidade e justiça. Se a equidade é um ideal, a consolidação de

instituições também o é, o que exigiria a preocupação em se manter a ênfase na

unidade política, o município, para configurar a área local de prestação do serviço de

telefonia. Noutro giro, o preço do serviço de telefonia é um limitador de acesso a esse

recurso. Ao se aceitar uma cobrança mais elevada no município, estabeleceu-se um

critério não isonômico na distribuição do acesso ao serviço de telefonia para cidadãos

desse mesmo município.

De mais a mais, não é possível sequer falar que a decisão em comento

baseou-se em diretrizes políticas. Objetivos políticos legítimos de uma comunidade

não são meros apelos a abstratos e vagos imperativos sistêmicos. É necessário precisar

de forma coerente e clara qual melhora política e econômica tem a sociedade com a

solução adotada.

Em síntese, o acórdão aqui debatido é um claro exemplo dos riscos de

colonização/tecnicização do mundo da vida, em que o poder e o dinheiro como meio

dos sistemas político-burocráticos e da economia inibem o debate de questões de

moral política que os cercam. Qualquer regra oriunda de uma agência reguladora

necessariamente abrangerá questões técnicas, econômicas e será resultado de uma

atuação autônoma do ente regulador. Por isso, não há qualquer sentido em validar uma

regra editada por uma agência apenas pelo fato de envolver questões dessa ordem.

É preciso atingir outro nível de fundamentação, explicação, justificação,

historicidade e constitutividade, que é o inerente aos princípios. As regras editadas no

uso do poder normativo das agências têm de ser referidas a um conjunto de princípios.

Não é demais lembrar que toda a regra se apoia e se justifica em razão de um conjunto

de diretrizes políticas que supostamente favorece e de princípios que supostamente

respeita445. Especialmente no caso das agências reguladoras – em que deve haver

445 HABERMAS, Jürgen. Faticidad y validez. Trad. Manuel Jiménez Redondo. Madri: Trota, 2001, p. 319.

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preocupação com a limitação e a legitimação do seu poder – isso é uma verdade

necessária.

Em termos de Estado Democrático de Direito, seria indispensável enfocar

o caso a partir da comunidade de princípios que se rege por uma concepção coerente

de direito, o que exigiria debate sobre direitos concretos. Mesmo as diretrizes políticas

concernentes ao caso deveriam ser especificamente e claramente expostas para daí

poder-se extrair uma fundamentação material da regra debatida, em vista apenas não

só do caso em questão, mas principalmente para pautar decisões futuras como

expressão de uma integridade institucional.

Nesse contexto, as agências reguladoras têm efetivamente autonomia, mas

obviamente não se lhes pode conceder soberania, o que leva à conclusão de que elas

estão necessariamente inseridas numa comunidade republicana que busca unidade e

identidade. Justamente por sua frouxa submissão à soberania popular representada no

Parlamento, a integração desses entes num discurso fortemente constituído por direitos

fundamentais e por princípios é um outro canal para articulá-los dentro dos parâmetros

republicanos do Estado Democrático de Direito. Em outras palavras, reconhecer pura e

simplesmente a autonomia das agências é fortalecer seus vínculos com o sistema

político-burocrático, ao passo que inseri-las numa comunidade de princípios significa

aproximá-las de uma unidade moral e política.

4.3 A qualificação do poder normativo dos entes reguladores como poder de

polícia

4.3.1 O caso

No Recurso Extraordinário n.º 349.686-7446 em que se discutiu a

regulamentação da atividade de transportador-revendedor-retalhista (TRR) de

446 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Acórdão no Recurso Extraordinário n.º 349.686. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginador/paginador.jsp?docTP=AC&docID=261185DJ de 07.08.2005. Acesso em: fevereiro de 2011.

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combustíveis pela Portaria 62/95 do Ministério de Minas e Energia. Nesse caso, o

Tribunal Regional Federal da 5ª Região deferiu às recorridas, Dislub Combustíveis

Ltda. e outra, autorizações para venda de álcool combustível, gasolina e gás liquefeito

de petróleo pela não recepção do Decreto-Lei n.º 395/98 pela Constituição Federal de

1988 e, consequentemente, da portaria em questão, que trazia a interdição para quem

exerce a atividade de TRR de comercializar os referidos produtos.

Embora tenha a Corte de origem sustentado que houve limitação indevida

do princípio da livre-iniciativa, que só poderia ser limitado por lei nos termos do art.

170, parágrafo único, a relatora, Ministra Ellen Gracie, observou que qualquer

atividade econômica pressupõe o cumprimento dos requisitos legais e das limitações

impostas pela Administração no regular exercício de seu poder de polícia. Não havia,

assim, como se afastar a regulamentação do mercado e de defesa do consumidor, que

tem como base o art. 87, parágrafo único, I da Constituição Federal e o Decreto-Lei n.º

395/38, que fora recepcionado pela Constituição de 1988 como diploma válido para o

setor de combustíveis, nos termos do art. 238 da Constituição Federal.

4.3.2 A regulação e o poder polícia

4.3.2.1 O poder de polícia

Os vocábulos utilizados em poder de polícia remetem à Administração da

comunidade, da cidade (pólis). Historicamente, correspondeu à noção de soberania dos

monarcas, servindo de embasamento para o absolutismo. Com a implantação do

liberalismo e a subordinação do Estado à lei, passou a estar reservado um papel

negativo, desempenhado pela autoridade, de evitar perturbações da ordem e assegurar

o livre exercício de direitos447. No entanto, a expressão poder de polícia tem um

447 TÁCITO, Caio. Temas de direito público (estudos e pareceres). Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 521/2.

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timbre autoritário, o que leva a que alguns autores se refiram, em seu lugar, à polícia

administrativa448.

Marcello Caetano449 o considera como um modo de atividade

administrativa, ao lado dos serviços de utilidade pública. Há um contraste entre eles.

Os serviços de utilidade pública abrangeriam prestações, enquanto poder de polícia

seria um sistema de restrições que imporiam uma série de deveres de abstenção. Esse

sistema de interdições não tem caráter apenas de negatividade, já que condiciona450 a

liberdade e a propriedade, com base na lei, permitindo a definição dos contornos dos

direitos respectivos451. Nesse âmbito, a atividade desenvolvida é fiscalizadora,

preventiva e repressiva, podendo se expressar em atos administrativos normativos e

em atos materiais.

Tradicionalmente fala-se que o poder de polícia visa a assegurar a ordem

pública452ou a evitar danos sociais453. Ocorre que, num Estado Democrático de

Direito, é mais adequado, em respeito ao princípio da legalidade, falar-se em

satisfação de interesses sociais previstos em lei. Áreas clássicas de sua incidência

seriam a ordem, a segurança e a saúde pública, mas, em razão da importância do

sistema econômico, também a economia passou a ser objeto do poder de polícia454.

Com o advento do Estado Social, essa noção de poder de polícia,

consistente sobretudo em deveres de abstenção e interdições condicionadoras da

liberdade e da propriedade em prol de finalidades sociais previstas, ficou por demais

estreita. A regulação significa um passo além do poder de polícia, com a inserção de

prestações e deveres ativos aos agentes regulados, para produzir e distribuir utilidades

448 SUNDFELD, Carlos Ari. Direito administrativo ordenador. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 11. 449 CAETANO, Marcello. Princípios fundamentais do direito administrativo. Coimbra: Livraria Almedina, 1996, p. 268. 450 Celso Antônio Bandeira de Mello define a Polícia Administrativa como a atividade da Administração Pública, expressa em atos normativos ou concretos, de condicionar, com fundamento em sua supremacia geral e na forma da lei, a liberdade e a propriedade dos indivíduos, mediante ação, ora fiscalizadora, ora preventiva, ora repressiva, impondo coercivamente aos particulares um dever de abstenção (non facere) a fim de conformar-lhes os comportamentos aos interesses sociais consagrados no sistema normativo. (MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 221) 451 É interessante marcar que os limites definidos pelo poder de polícia à liberdade e à propriedade são condições de possibilidade para o estabelecimento dos direitos respectivos, como desenvolve Alessi (ALESSI, Renato. Sistema instituzionale del diritto amministrativo italiano. Milão: Dott. A. Guiffrè, 1960, p. 526). 452 LAUBADÈRE, André de. Traité de droit administratif. Paris: Librairie Générale de Dorit et de Jurisprudence, 1976, p.589. 453 CAETANO (Op. cit., p. 269). 454 TÁCITO (Op. cit., p. 526).

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sociais, bem como para atingir um equilíbrio econômico de alto nível, com redução do

desemprego e crescimento. O campo próprio da regulação é o da atuação do Estado na

economia e o da gestão e distribuição de bens e serviços pela Administração. Daí,

falar-se em poder de polícia em relação ao controle de atividades econômicas, como o

fez o precedente em questão, embaça a inserção de agentes privados nas políticas

prestacionais típicas do Estado Social.

4.3.3 A economia, a moral política e o direito na regulação

A regulação se faz presente especialmente em setores de capital e

tecnologia intensivos. Esse é um ponto de preocupação e tensão com o sistema

político-burocrático e com o direito. A democracia, como questão cara para estes dois

últimos, tem uma relação conflituosa com a economia de mercado455, que pode

incrementar desigualdades ou alienação na participação no processo político.

De modo algum, a economia e o mercado não são um mal em si456. A

preocupação deve ser como ela se relaciona com o sistema político-burocrático, com o

direito e com discussões de conteúdo moral, ético e valorativo. Cabe ao Estado,

condicionado pelo direito, dar limites à economia e inseri-la em finalidades sociais

reveladas especialmente por direitos e princípios do Estado Democrático de Direito.

Nesse cenário, a justiça na repartição bens, oportunidades e recursos é um

tema inafastável. A dignidade da pessoa humana e o direito a igual respeito e

consideração impõem que as distribuições de mercado devem ser corrigidas para que

algumas pessoas se aproximem mais da parcela de recursos que teriam tido, não

fossem essas diferenças iniciais de vantagem, sorte e capacidade inerente457. O

mercado pode levar ao oposto do pretendido pela mão invisível smithiana, porque

ainda que as pessoas ajam corretamente, os resultados de suas ações podem não

455 DAHL, Robert. Sobre a democracia. Trad. Beatriz Sidou. Brasília: Universidade de Brasília, 2001, p. 175. 456 LOPES, Ana Frazão de Azevedo. Empresa e propriedade: função social e abuso de poder econômico. São Paulo: Quartier Latin, 2006, p. 270. 457 DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. Trad. Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 271.

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conduzir à justiça, levando-se em conta a enorme desigualdade de pontos de partida

dos agentes econômicos458. As concentrações de capital, que são inerentes a um

capitalismo avançado, são um grande risco para a equidade e para a igualdade de

oportunidades.

A economia como ciência e atividade tem como grandes preocupações a

escassez e a necessidade. O tratamento dessas questões é intrinsecamente social e, por

isso, inevitavelmente envolve considerações de ordem moral, ética e valorativa459.

Porém, há uma dificuldade para que dentro do debate econômico estes últimos temas

sejam diretamente inseridos460.

O enfrentamento dessa intrincada relação entre economia e moral política,

sob a luz do conceito de poder de polícia, não permite uma abordagem do assunto com

a sofisticação que o tema exige. A economia de mercado tem uma dinâmica própria

que estrutura a produção com vistas à satisfação de necessidades de forma eficiente e

regida pelo dinheiro, conectando-se estruturalmente ao direito pela propriedade e pelos

contratos461. O direito normatiza esses dois últimos com vistas a atribuir, controlar a

circulação e distribuir bens, recursos e oportunidades na sociedade. Acontece que a

intervenção do direito e do poder administrativo-burocrático não é capaz de determinar

a produção de bens, que é o resultado principalmente do jogo de forças econômicas.

Além disso, o poder de polícia constitui uma zona amorfa no direito, com

diretrizes ditadas principalmente numa burocracia que se pauta na suposta prevalência

do interesse público sobre o particular, o que conflita com a concepção dos direitos

como trunfos e seu caráter contramajoritário. Por isso, a regulação demanda uma outra

visão em que, ao lado de uma funcionalização dos direitos inerentes à propriedade e

aos contratos com vistas a uma redistribuição compensatória de bens, busque-se

constituir marcos que respeitem a autonomia do sistema econômico e se adéquem a

uma comunidade de princípios. Trata-se de um fenômeno multidimensional que

implica interferências recíprocas entre direito, economia e poder administrativo-

458 RAWLS, John. O liberalismo político. Trad. Dinah de Abreu Azevedo. São Paulo: Ática, 2000, p. 319/320. 459 Hunt, acertadamente, considera que todos os problemas caros aos economistas envolviam compromissos com questões morais, políticas, sociais e práticas, mesmo que encobertas. (HUNT, E. K. História do pensamento econômico. Trad. José Ricardo Brandão Azevedo. 7ª Ed. Rio de Janeiro: Campus, 1989, p. 22) 460 LOPES (Op. cit., p. 275). 461 LUHMANN, Niklas. Law as social system. Oxford/Nova Iorque: Oxford University Press, 2009, p. 383.

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burocrático, que muito ultrapassa a unidimensionalidade do poder de polícia. A

utilização desse conceito na abordagem judicial dos casos de regulação reduzem

sobremaneira o debate necessário para a construção de um direito como integridade.

4.4 A ortotanásia

Um dos primeiros sentidos da regulação foi estabelecer padrões de

comportamento a serem adotados em atividades especializadas, como são exemplos as

dos profissionais liberais462. Antes de ser um fenômeno econômico com a

autonomização do sistema correspondente, que teve início no Estado Absolutista e

amadureceu no Estado Liberal, a regulação foi algo vinculado às corporações de ofício

e a seu regramento específico. A diversidade da atuação profissional exigia um

regramento diferenciado e autônomo em relação ao restante da sociedade. Não é

casual que mesmo após o Décret D’Allarde, que suprimiu as corporações de ofício na

França em 1791, dando impulso à livre-iniciativa, tenham sobrevivido vários entes

reguladores de profissões liberais em razão de tecnicalização e especialização.

A medicina é um bom exemplo. O tratamento técnico da vida (em vários

aspectos) realizado por ela implica até mesmo um condicionamento comportamental

oriundo das prescrições médicas. Os conselhos médicos são apoiados em discursos de

verdade produzidos cientificamente que implicam uma espécie de exercício de poder

disciplinar que molda corpos e condutas. Na medicina tem-se, de fato, um encontro

entre poder, direito e verdade com consequências no cotidiano dos indivíduos.

Foucault expressa essa ideia:

Quero dizer, mais precisamente, isto; eu creio que a normalização, as normalizações disciplinares vêm cada vez mais esbarrar contra o sistema jurídico da soberania; cada vez mais nitidamente aparece a incompatibilidade de umas com o outro; cada vez mais é necessária uma espécie de discurso árbitro, uma espécie de poder e de saber neutro graças a sua sacralização científica. E é justamente pelo lado da ampliação da medicina onde, de certo modo, vemos não combinar-se, e sim reduzir-se, intercambiar-se ou enfrentar-se perpetuamente a mecânica da disciplina e o princípio do direito. O desenvolvimento da medicina, da medicalização geral dos comportamentos, das condutas, dos discursos, dos desejos etc. são levados a

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cabo na frente em que se encontram estratos heterogêneos da disciplina e a soberania.

O exercício do poder regulamentar da medicina ocorre, como se vê, num

terreno crítico em que se debatem discursos de verdade que formam uma disciplina de

saber e o direito. Daí a relevância de um caso em que se discutam regramentos que

afetam não só o comportamento dos médicos, dos especialistas, mas principalmente

direitos como a autonomia e como o de uma vida digna.

4.4.1 O caso

4.4.1.1 A exposição de motivos, os consideranda e a Resolução CFM n.º 1.805/2006

É muito interessante a leitura da exposição de motivos que justifica a edição

da Resolução do Conselho Federal de Medicina n.º 1.815/2006463. É um exemplo da

reflexividade do uso metalinguístico dos princípios não para a crítica do direito, mas

principalmente para a reordenação ética e moral do saber técnico e científico. Vale à

pena transcrever os três primeiros parágrafos:

A medicina atual vive um momento de busca de sensato equilíbrio na relação médico-enfermo. A ética médica tradicional, concebida no modelo hipocrático, tem forte acento paternalista. Ao enfermo cabe, simplesmente, obediência às decisões médicas, tal qual uma criança deve cumprir sem questionar as ordens paternas. Assim, até a primeira metade do século XX, qualquer ato médico era julgado levando-se em conta apenas a moralidade do agente, desconsiderando-se os valores e crenças dos enfermos. Somente a partir da década de 60 os códigos de ética profissional passaram a reconhecer o doente como agente autônomo. À mesma época, a medicina passou a incorporar, com muita rapidez, um impressionante avanço tecnológico. Unidades de Terapia Intensiva (UTIs) e novas metodologias criadas para aferir e controlar as variáveis vitais ofereceram aos profissionais a possibilidade de adiar o momento da morte. Se no início do século XX o tempo estimado para o desenlace após a instalação de enfermidade grave era de cinco dias, ao seu final era dez vezes maior. Tamanho é o arsenal tecnológico hoje disponível que não é descabido dizer que se torna quase impossível morrer sem a anuência do médico. Bernard Lown, em seu livro “A arte perdida de curar” afirma: “As escolas de medicina e o estágio nos hospitais os preparam (os futuros médicos) para tornarem-se oficiais-maiores da ciência e gerentes de biotecnologias complexas. Muito pouco se ensina sobre a arte de ser médico. Os médicos aprendem pouquíssimo a lidar

463 BRASIL. Conselho Federal de Medicina. Resolução 1.805/2006. D.O.U. de 28.11.2006, Seção I, p. 169.

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com a morte. A realidade mais fundamental é que houve uma revolução biotecnológica que possibilita o prolongamento interminável do morrer.”

Está aí uma crítica sobre a relação pessoal entre os papéis de médico e

paciente, refletindo uma reordenação ética para valorizar a autonomia do paciente e

deslocando os padrões profissionais para aproximá-los desse último. É marcante que,

no parágrafo seguinte, enfrentem-se os riscos e inconvenientes do avanço tecnológico

da medicina, expondo a consciência de que a evolução do saber e do agir especializado

não necessariamente atende aos pacientes envolvidos. Em trecho posterior expõe-se a

insuficiência da ótica biotecnológica na medicina, ressaltando-se a relevância de

encará-la além de uma visão instrumental, isto é, como uma arte.

Seguindo a linha dos trechos transcritos, a exposição critica o crescimento

do poder de intervenção da medicina e o descompasso com a reflexão sobre o paciente

não como objeto, mas como ser humano dotado de dignidade. Reconhece que isso

pode implicar uma suspensão à obstinação diagnóstica e terapêutica ínsita à medicina,

para dar lugar a reflexões morais, inclusive de índole religiosa. Nessa exposição

reconhece-se a necessidade da continuidade de debates sobre a finitude da vida e a sua

transcendência em relação à medicina, o que leva à conclusão de que a morte do

paciente tem de ser aceita, assim como as suas preferências, cabendo ao médico

cuidados para aliviar a dor desse desfecho.

Nos consideranda, princípios são colocados em primeiro plano. Há

referência à dignidade da pessoa humana, art. 1º, III, da Constituição Federal, e ao

princípio de que ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou

degradante”, art. 5º, III da Constituição Federal. Há, ainda, referência a deveres éticos

como o de o médico zelar pelo bem-estar do paciente e o de diagnosticar o doente

como portador de doença terminal.

Com base nessa fundamentação foram editadas as seguintes regras sobre o

tema:

Art. 1º É permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente em fase terminal, de enfermidade grave e incurável, respeitada a vontade da pessoa ou de seu representante legal. § 1º O médico tem a obrigação de esclarecer ao doente ou a seu representante legal as modalidades terapêuticas adequadas para cada situação. § 2º A decisão referida no caput deve ser fundamentada e registrada no prontuário. § 3º É assegurado ao doente ou a seu representante legal o direito de solicitar uma segunda opinião médica.

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223

Art. 2º O doente continuará a receber todos os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento, assegurada a assistência integral, o conforto físico, psíquico, social e espiritual, inclusive assegurando-lhe o direito da alta hospitalar. Art. 3º Esta resolução entra em vigor na data de sua publicação, revogando-se as disposições em contrário.

4.4.1.2 A decisão de tutela liminar e a sentença na ação civil pública n.º

2007.34.014809-3

Foi proposta pelo Ministério Público Federal ação civil pública contra o

Conselho Federal de Medicina, com pedido de tutela antecipada, questionando a

resolução em questão. O fundamento foi o de que a autarquia ré não poderia regular

como conduta ética permitida algo que é tipificado como crime. Em sede liminar, a

antecipação de tutela foi deferida464 com base nos fundamentos aduzidos pelo Parquet.

Contestada e instruída a ação, o próprio Ministério Público, ao lado do

Conselho Federal de Medicina, pugnou pela improcedência do pedido. Na sentença, o

mesmo juiz que prolatara a decisão liminar suspendendo os efeitos da resolução em

comento acolheu integralmente a manifestação final do Ministério Público, julgando-a

lícita.

Após algumas considerações, a sentença, transcrevendo a petição da

Procuradoria da República, apresentou os seguintes conceitos465:

Considera-se eutanásia a provocação da morte de paciente terminal ou portador de doença incurável, através de ato de terceiro, praticado por sentimento de piedade. Na hipótese, existe doença, porém sem estado de degeneração que possa resultar em morte iminente, servindo a eutanásia para, justamente, abreviar a morte por sentimento de compaixão. [...] Já a distanásia é o prolongamento artificial do estado de degenerescência. Ocorre quando o médico, frente a uma doença incurável e/ou mesmo à morte iminente e inevitável do paciente, prossegue valendo-se de meios extraordinários para prolongar o estado de mortificação ou o caminho natural da morte. A distanásia é, frequentemente, resultado da aplicação de meios não ortodoxos ou usuais no protocolo médico, que apenas retardarão o momento do desenlace do paciente, sem

464 BRASIL. 14ª Vara Federal da Seção Judiciária do Distrito Federal. Decisão no processo n.º 2007.34.00.014809-3. Disponível em: http://www.jfdf.jus.br/inteiro_teor/doc_inteiro_teor/14vara/2007.34.00. 014809-3_decisao_23-10-2007.doc. Acesso em fevereiro de 2011. 465 BRASIL. 14ª Vara Federal da Seção Judiciária do Distrito Federal. Sentença no processo n.º 2007.34.00.014809-3. Disponível em: http://www.jfdf.jus.br/inteiro_teor/doc_inteiro_teor/14vara/ 2007.34.00.014809-3_sentenca_03-12-2010.doc. Acesso em fevereiro de 2011. pp. 3/5.

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224

trazer-lhe chances de cura ou sobrevida plena, e, às vezes, provocando-lhe maior sofrimento. No meio das duas espécies figura a ortotanásia, que significa a morte “no tempo certo”, conceito derivado do grego “orthos” (regular, ordinário). Em termos práticos, considera-se ortotanásia a conduta omissiva do médico frente a paciente com doença incurável, com prognóstico de morte iminente e inevitável ou em estado clínico irreversível. Nesse caso, em vez de utilizar-se de meios extraordinários para prolongar o estado de morte já instalado no paciente (que seria a distanásia), o médico deixa de intervir no desenvolvimento natural e inevitável da morte. Tal conduta é considerada ética, sempre que a decisão do médico for precedida do consentimento informado do próprio paciente ou de sua família, quando impossível for a manifestação do doente. Tal decisão deve levar em conta não apenas a segurança no prognóstico da morte iminente e inevitável, mas também o custo-benefício da adoção de procedimentos extraordinários que redundem em intenso sofrimento, em face da impossibilidade de cura ou vida plena. [...] Por sua vez, a mistanásia, também chamada de “eutanásia social”, é a morte provocada por problemas de infraestrutura da saúde pública, que atinge direta e conscientemente a parcela mais pobre da população, que menos tem acesso a adequados recursos.

Após tais conceituações, com base nos professores Luiz Flávio Gomes e

Luís Roberto Barroso466 e nos princípios da dignidade da pessoa humana e da

liberdade, que garantiriam também uma morte digna, considerou-se não haver

resultado penal desvalioso na ortotanásia, o que excluiria eventual crime de homicídio.

Também a omissão de socorro estaria descartada já que nesta modalidade de

acompanhamento médico há assistência para o bem-estar físico, social, mental e

espiritual do paciente. A sentença ressaltou, ainda, a existência de leis que positivam a

autonomia do paciente, como o art. 15 do Código Civil, o art. 7º, III, da Lei n.º

8.080/90 e também da Portaria n.º675/GM, de 20 de março de 2006 – Carta dos

Direitos dos Usuários da Saúde.

Ultrapassando o ponto de vista penal, a sentença observou que a resolução

em comento tratava de regulação do ato médico quanto a princípios regentes da

profissão (autonomia, beneficência, não maleficência etc.). Ressaltando que esse

regramento insere-se no ramo de medicina paliativa, expôs o significado de tais

princípios na medicina:

O princípio da autonomia reclama o envolvimento consciente do paciente no processo terapêutico e propugna o respeito a suas decisões. [...] Quanto ao princípio da beneficência, é intuitivo concluir que compete ao médico fazer tudo quanto estiver ao seu alcance para melhorar as condições de vida do paciente. Mesmo que determinado tratamento possa lhe causar sofrimento, se

466 Idem. Ibidem. pp. 5/6

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225

houver chance de cura e possibilidade de êxito deverá o médico procurar beneficiar o paciente. Já o princípio da não maleficência propugna que as atividades médicas, tanto quanto possível, não devem causar mal ao paciente ou devem causar-lhes apenas o mal necessário para que se restabeleça a sua saúde.

No caso das doenças terminais, o princípio da não maleficência sobrepõe-se

ao da beneficência, de modo que, se verificado que a vida não pode ser salva, deve-se

dar ao paciente maior conforto.

Em face dos depoimentos de médicos e de estudiosos do tema, inclusive um

padre, a manifestação do Ministério Público acolhida pela sentença registrou que do

ponto de vista prático, nada mudou com a resolução do CFM467. De acordo com as

testemunhas, o procedimento de ortotanásia já era realizado, com a peculiaridade de

que os registros nos prontuários eram preenchidos de modo a resguardar os médicos de

qualquer punição. Nesse sentido, a resolução em questão promove um registro mais

fidedigno dos atos médicos ao regular a ortotanásia.

Valendo-se também dos depoimentos dos médicos, foi consignado na

sentença que a medicina permite prever, com critérios científicos, a morte iminente

com boa precisão, estando afastado o receio de interrupção de procedimentos com

critérios duvidosos. De mais a mais, as dificuldades envolvidas no diagnóstico do fim

da vida não seriam muito diferentes do diagnóstico de doenças raras e, por outro lado,

haveria pela resolução a possibilidade de consulta a outro médico.

Como um dos seus últimos fundamentos, a sentença, na sua fundamentação

com base no Parquet, fez referência à Encíclica Evangelium vitae (O Evangelho da

Vida, 1995), que considerou válida a renúncia ao excesso terapêutico quando

esgotadas as possibilidade de benefícios.

Com base nesses argumentos, após a citação da conclusão do Ministério

Público de que a ortotanásia é uma avaliação científica balizada por critérios técnicos

amplamente aceitos, que é conduta ínsita à atividade médica, ...468, a sentença

considerou legítima a Resolução n.º 1.805/2006, do Conselho Federal de Medicina.

467 Idem. Ibidem. p. 11. 468 p. 15 Idem. Ibidem.

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226

4.4.2 O caso conforme os princípios, os direitos e a crítica à regulação

A citada exposição de motivos da resolução do Conselho Federal de

Medicina faz em seu início uma crítica à ética médica tradicional com base no

princípio da autonomia. É dizer, um ramo de saber especializado toma como referência

para a edição de regra administrativa um princípio de moral política.

Em seguida, expõe que o avanço tecnológico da medicina trouxe meios

amplos para adiar a morte. Isso ocorreu num contexto em que os médicos aprimoram-

se em conhecimentos científicos e em biotecnologias, mas se esquecem do sentido da

arte médica. Há uma reflexão sobre a degradação da medicina num saber-fazer do

mero cálculo e da previsão, em que o ser humano torna-se mais um objeto à disposição

de uma produção inautêntica. Mesmo diante de questões existenciais como a morte, o

atuar tecnológico deixa de se orientar por ideais transcendentais que poderiam ter

sentido para preservar a liberdade, a dignidade e a autonomia dos indivíduos.

Preocupando-se com esses três últimos princípios, a exposição de motivos

demonstrou a importância de reflexões morais que devem ser tomadas como limites

aos excessos de diagnósticos e de terapias médicas. A finitude da vida transcende à

medicina, cabendo ao médico, diante de sua inevitabilidade, respeitar a vontade do

paciente e aliviar sua dor.

Amparadas nessas considerações e, em referências expressas a princípios

correlacionados e a deveres éticos, o Conselho Federal de Medicina autorizou a

ortotanásia. É de se destacar que não havia sobre o tema regra clara, tendo derivado a

normatização em questão da aplicação de um conjunto de princípios jurídicos, morais,

éticos e de considerações sobre o saber médico.

O debate prosseguiu no Judiciário com a submissão da questão à apreciação

da 14ª Vara Federal da Seção Judiciária do Distrito Federal. Em sentença, a

abordagem do tema partiu de conceitos técnicos relacionados à medicina e à ética

médica como os de eutanásia, distanásia, ortotanásia, mistanásia, beneficência e não

maleficência.

Ao lado da absorção de tais conceitos para justificar a ortotanásia e a

comentada resolução, a sentença fez referência aos princípios da dignidade da pessoa

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227

humana e da liberdade, bem como a leis que positivam a autonomia do paciente.

Foram ouvidos, ainda, especialistas e estudiosos do tema para, dentre outras coisas,

aferir-se a certeza do diagnóstico de uma doença incurável e das práticas e usos dos

médicos sobre o tema. Houve, por último, referência à perspectiva religiosa do debate.

Em síntese, esse caso da ortotanásia é um bom exemplo da capacidade de

fundamentação e reflexão dos princípios. Para regular a morte de pacientes terminais

foram aduzidas considerações morais, éticas, religiosas e técnicas – jurídicas e

médicas – na exposição de motivos da resolução e na sentença. Com isso, os princípios

jurídicos desempenharam seu papel de tradução entre conhecimentos especializados e

juízos de moral política, legitimando o exercício de competência reguladora pelo

Conselho Federal de Medicina, ao deixar claro o caráter de resgate de autonomia do

paciente. Mesmo em tema delicado, diante de bons argumentos de ordem

principiológica, é possível atestar a validade de regras por critérios sobretudo de

conteúdo, e não de mera forma.

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228

Conclusão

O produtivismo da civilização contemporânea e o ideal de saber que se

erigiu após a modernidade colocou, no lugar de um mundo aproximativo, fluido,

incompleto, um mundo que se procura certo, exato e determinado. Enquanto na

Antiguidade a produção técnica pressupunha, além da habilidade artesanal, o fazer das

grandes artes e das belas artes como algo poético, a técnica moderna é uma produção

que visa à exploração e ao armazenamento de possibilidades, processando utilidades

para promover eficiência. É nesse contexto que se inserem a regulação e seu vínculo

com a burocracia, a técnica e a ciência. Com o fenômeno regulatório, o direito

confronta-se com uma crescente necessidade de produção de decisões e normalização

vazadas em regras, para atender necessidades técnicas contingentes que fragilizam os

âmbitos de vivência regidos pela linguagem natural e de relações baseadas em papéis

sociais indiferenciados e emancipadores.

O direito contemporâneo estrutura-se a partir da concepção de um sistema

de regras e da linguagem especializada da ciência e da técnica jurídica, que pela sua

artificialidade são uma barreira para a comunicabilidade do direito a um mundo de

vivências indiferenciadas. Já os princípios jurídicos, pela sua proximidade da

linguagem natural e do mundo da vida, possibilitam estabelecer uma conexão entre o

saber técnico-científico e cada um dos indivíduos.

Por sua vez, a regulação traz dentro de si uma tensão que remete a uma

relação entre sistema político-burocrático, economia, direito, ciência e técnica. Daí que

se possam destacar alguns sentidos mais gerais para a regulação como: a) padrões de

comportamentos que devem ser adotados por atividades especializadas; b) conjunto de

medidas legislativas, administrativas e convencionais de que se vale o Estado para

delimitar a livre concorrência para consecução de direitos sociais; c) oferta de um bem

ou serviço de interesse público (public utilities), que em geral exige capital e

tecnologia intensivos.

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229

Nesse universo da regulação há sobrecarga de dados e informações e a

pretensão de organizá-los operativamente e instrumentalmente num marco regulatório,

que nada mais é que um sistema de regras disposto a partir de saberes técnico-

científicos com clara finalidade de garantir os mercados e seus pressupostos de

segurança nos contratos e na propriedade como modo de produzir e disponibilizar

eficientemente utilidades públicas.

Os princípios são um claro contraste com toda essa disposição produtivista,

por serem um canal de comunicação universalizável mais próximo, portanto, do

cidadão, e em que necessariamente por sua abertura inserem-se debates de moral

política. Há, na abordagem principiológica, a conformação de um modo de saber que

permite à ciência e à técnica, inclusive à jurídica, construir sentido para papéis sociais

universalizáveis como o de indivíduo, afastando a regulação de uma mera aplicação

instrumental, dispositiva e produtivista.

Nessa linha, princípios e regulação confrontam-se em polos no que

concerne à linguagem, tensionando-se entre o específico e o universal. É que a

regulação, pela especificidade de bens e serviços demandados e a tecnicidade de sua

produção, vale-se de uma linguagem especializada que pretende univocidade dos

signos e de sua sequência, numa redução da linguagem à mera sinalização e à

informação. Por sua vez, os princípios deitam raízes na linguagem natural, que é a de

uso corrente e transmitida por tradições, descortinando um mundo de vivências não

encerráveis num simples cálculo e propiciadores de um entendimento pelos indivíduos

que os coloque além dos papéis sociais restritos de clientes e consumidores. É marca

da regulação a exacerbação do tecnicismo e do economicismo, principalmente em sua

constituição linguística, com a utilização instrumental do direito, que acaba por

colonizar esferas de vivências indiferenciadas vazadas em linguagem natural.

Entretanto, o direito visto sob uma feição principiológica suplanta a rigidez dos

sistemas de conhecimentos de inspiração matemática e conquista a unidade da razão

no campo da formação de canais que discursivamente, em linguagem natural, buscam

estruturar o consenso social.

Como ressaltado pelas teorias pós-positivistas, a Constituição é sobretudo

um arcabouço principiológico, de modo que o sentido completo das regras só se revela

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quando referido a princípios. Assim, a regulação como fenômeno inerente à sociedade

complexa deve ser confrontada e conformada de acordo com os princípios, que têm

potencial de tradução para transformar o hermetismo tecnicista da regulação em uma

ordem de sentido para o cidadão inserido no mundo da vida como esfera de vivência

indiferenciada, permitindo uma adesão autônoma aos deveres insertos na plêiade

normativa da sociedade complexa, em respeito e resgate da dignidade dos indivíduos.

É na fluidez dos discursos sobre princípios que se concertam os direitos dos indivíduos

e os deveres das autoridades no Estado Democrático de Direito, constituindo uma

ordem jurídica e institucional de sentidos vinculante e intelectível pelos cidadãos.

Nos Estados Unidos, porém, a palavra regulação e seus cognatos

relacionam-se à gênese do Estado, significando uma intervenção maior nas atividades

privadas para satisfazer necessidades sociais. No Brasil, a regulação marcou a saída do

Estado empresarial da economia, havendo remissão à legislação de padrões a serem

regulamentados por órgão técnico especializado. Na Europa, por sua vez, a regulação

tomou impulso com as privatizações, na década de 1980, em que o Estado assumiu a

função de facilitar o funcionamento das forças de mercado livre em áreas como saúde,

assistência social e em várias outras atividades governamentais.

A regulação, especialmente no caso brasileiro, constitui mudança de

paradigma. No modelo da interferência direta, o Estado, fundamentalmente uma

organização política, torna-se um ator econômico, mas sofrendo todos os influxos e

limitações inerentes à sua natureza. Na regulação, forma-se um aparato burocrático

não para atuar ou competir, sim para supervisionar, direcionar e coordenar as forças de

um mercado substancialmente privado. Nas duas hipóteses, há uma forte presença do

Estado, seja empresarialmente ou burocraticamente, mas, na hipótese da regulação,

tem-se uma potencialização do impacto das políticas governamentais por seu

somatório com as forças de mercado. Em síntese, a ênfase regulatória é o

reconhecimento de que o Estado não pode substituir nem organizar de forma absoluta

os mercados, cabendo-lhe respeitar a dinâmica própria do sistema econômico para daí

gerar com mais eficiência bens e serviços de interesse público.

A regulação já se fazia presente no Estado Social, no exercício das tarefas

redistributivas e compensatórias típicas de tal modelo. Todavia, as tarefas dos Estados

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231

contemporâneos, como evolução do paradigma do Estado Social, vêm-se deslocando

para atividades de controle de riscos oriundos principalmente da aplicação da ciência e

da técnica e da estabilização de mercados. É aí que a regulação se faz mais presente

com a necessidade de crescente intervenção da Administração na esfera econômica

para a disponibilização de utilidades compensatórias típicas do Estado Social. Como

visto, o Brasil não ficou fora dessa tendência, havendo um movimento de passagem de

Estado empresário para Estado regulador no final do século XX.

Historicamente, a regulação como processo de produção artificial de

normas por entidades autônomas incrustadas no Estado deve sua existência a uma

concepção moderna de direito e instituições políticas que ocorreu a partir de alguns

pressupostos: 1) a consolidação de um sistema político-burocrático, 2) a constituição

autônoma de um sistema econômico, 3) a positivação do direito como a sua produção

artificial em regras formais com hipóteses de incidência e sanções que visavam regular

comportamentos, 4) instituições jurídicas e políticas concebidas funcionalmente para a

consecução de utilidades sociais como o estabelecimento da paz, do bem-estar social,

da vida mais agradável possível, contemporaneamente evoluídas para utilidades

sociais específicas como energia elétrica, telecomunicações, aviação civil etc. e 5) o

estabelecimento de aplicações técnico-científicas como meio para consecução dessas

finalidades sociais.

A partir de uma exposição histórica do Estado Absolutista, verifica-se que a

regulação é a inversão do fenômeno da positivação legalista como técnica de controle

social. Ao contrário do que ocorria no Estado Absolutista, em que os súditos

renunciavam de sua liberdade para conquistar a segurança, concentrando poderes no

Soberano, agora se trata de uma dispersão de poderes na máquina burocrática para

obter compensações e utilidades a partir da coordenação do processo de produção pelo

Estado. Enquanto no Estado Absolutista foi a centralização do poder no rei que

possibilitou a autonomização e o desencaixe do sistema econômico e a criação de uma

burocracia, a regulação contemporânea é fruto do amadurecimento desse desencaixe

em que a autonomia do sistema econômico e da burocracia opõe-se à própria

soberania. Em relação à autodeterminação dos indivíduos, a regulação também fornece

um nítido contraste com o Estado Absolutista: enquanto a autonomia e os direitos

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estavam informes no Estado Absolutista, a regulação redundava numa

sobrenormatização formalizadora que, em razão de sua excessiva rigidez, embaçava os

direitos fundamentais.

Numa comparação com os pressupostos do Estado de Direito, a regulação

contemporânea significa interferência na esfera privada com vistas a coordenar a

atividade econômica para a consecução de finalidades públicas e coletivas sem a

estrita submissão às formas e aos procedimentos da legalidade. O surgimento do

fenômeno regulatório desestabiliza as bases do Estado de Direito, já que a lei deixa de

ser o único e exclusivo veículo para normatização de atividades privadas e os direitos

público-subjetivos individuais acabam relegados a segundo plano, assumindo a

produção de utilidades um papel predominante.

A irrupção da regulação, no final do século XIX, nos Estados Unidos,

representou um grande desafio para o Estado Democrático de Direito. Num único ente,

acumularam-se as funções legislativas, administrativas e judiciais e, ainda, a produção

normativa sem a legitimação pelo sufrágio. De outro lado, não se pode esquecer que a

especialização de agências e assemelhados potencializou a efetividade do poder,

permitindo a interferência do Estado na oferta de utilidades caras para a sua

legitimação perante a população com redistribuição material de bens. No entanto, essa

mesma verificação reforça as preocupações que levam à conclusão de que é tarefa das

instituições jurídicas encontrar outra forma democrática de legitimar a regulação que

não as politicamente tradicionais e, sobretudo, não focada apenas na disponibilização

de utilidades materiais à população.

Foi, contudo, com o advento do Estado Social, especialmente na sua forma

de Estado de Bem-Estar Social, que a regulação teve forte impulso nos Estados

Unidos. Nesse paradigma, sua missão compensatória iniciada a partir do conflito de

classes progressivamente se adensou e se complexificou. Isso fez com que o Estado,

para distribuir bens e serviços, se especializasse em torno das prestações a serem

entregues à sociedade, como comunicações, seguridade social, energia elétrica,

seguros etc. Outra circunstância muito importante é que a distribuição compensatória

desses bens dever-se-ia adequar aos pressupostos da economia de mercado, mantendo

a acumulação de capital, a propriedade e os contratos em seu cerne intocados. A

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233

resultante foi uma criação progressivamente crescente de entes como as agências

reguladoras.

Encarado o tema a partir dos desafios do paradigma de um Estado Social e

Democrático de Direito, é preciso falar na questão de legitimidade das normas

produzidas. Para o positivismo jurídico, a única legitimação de que se pode falar é

formal/procedimental. No entanto, não se pode esquecer que, de forma institucional, o

direito não pode ser legitimado apenas pelos critérios positivistas

(formais/procedimentais) especialmente no caso da atividade regulatória que se

encontra desconectada da legitimação formal pelo sufrágio.

Ao passo em que temas e necessidades do cotidiano passam a ser satisfeitos

por intermédio de um direito formal, há o risco de coisificação dos possíveis

beneficiários, que passam a desempenhar sobretudo o papel de clientes da burocracia.

A economia e o Estado, utilizando o direito como meio, apresentam-se cada vez mais

complexos e com seu crescimento penetram cada vez mais profundamente em

componentes do mundo da vida como a cultura, a personalidade e a sociedade,

afetando a sua reprodução e colonizando-os. Aí se enxerga a interferência sistêmica e

sua juridicização por um processo potencialmente deletério. É justamente nesse hiato

que devem ser inseridos os princípios como outra via de legitimação que vá além da

mera forma, da simples produção de utilidades e crie limites para a concentração de

poderes nos agentes reguladores.

No cenário de expansão da atividade regulatória, é lugar-comum na

doutrina produzida nos últimos anos qualificar o paradigma atual como o do “Estado

Regulador”. Não raro as expressões “Estado de Direito” e principalmente “Estado

Democrático de Direito” ficam em segundo plano. Isso assinala um risco para os

instrumentos clássicos de legitimação do Estado.

Em que pese a estreiteza do texto constitucional para abrigar a produção

normativa inovadora pelos órgãos e autarquias do Executivo, não se pode deixar de

reconhecer que, após o advento do Estado Social e com a crescente complexificação

da sociedade, o Congresso deixou de ser o ator proeminente na edição de normas com

poder de primário na ordem jurídica. Ao princípio da legalidade, o Estado Social e a

sociedade complexa contrapuseram âmbitos especializados que demandam

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normalização constante e permanente. Nessa linha, o que se apresenta são leis quadros,

que fixam objetivos a serem atingidos de forma ampla e fluida.

Essa abertura oferece risco a vários princípios republicanos, como a

isonomia, a liberdade e a sua densificação em leis genéricas, abstratas, impessoais. É

uma completa transformação. À generalidade da incidência da Lei, a regulação

contrapõe papéis sociais delimitados como destinatários, tais como fornecedores,

clientes e consumidores de um mercado específico. A impessoalidade, por sua vez,

passa a significar a relação de um cliente com a burocracia. A abstração vincula-se a

uma linguagem especializada de conteúdo técnico-científico que coisifica o cidadão ao

agrupá-los em categorias vinculadas à burocracia.

Essa irrupção de forças que remete ao dito “Estado Regulador”

evidentemente implica deslocamento do eixo de produção normativa por parte do

Poder Público, passando a atividade legislativa a concorrer com uma massa de atos

administrativos normativos numa microfísica do poder. Todavia, acompanha essa

mudança de ênfase um incremento de risco de exercício ilegítimo do poder de coerção

organizado do Estado. Isso, sem dúvida, remete a uma análise da regulação como

fenômeno de instrumentalização do direito, com potencial efeito degenerador.

Nessa linha, a regulação pode ser entendida a partir de duas categorias de

distribuição de poderes pretensamente legítimos na sociedade. Dois grandes sistemas

de estudos do poder opõem-se. Um primeiro deita raízes nos sistemas dos filósofos do

século XVIII. O contrato é a matriz do poder político, em que os indivíduos cedem

parte de suas liberdades para constituir uma soberania. A opressão está no

rompimento de um acordo, na ultrapassagem de seus limites. Uma segunda forma de

exercício de poder baseia-se na repressão não mais como desrespeito a um contrato,

mas, ao contrário, como simples continuação de dominação pelo poder disciplinar.

Nos séculos XVII e XVIII emerge uma nova mecânica de poder, incompatível com o

foco exclusivo nas relações de soberania. Era uma outra forma que incidia antes sobre

os corpos dos indivíduos que sobre a terra e seu produto, buscando extrair mais tempo

e trabalho pelo exercício da vigilância com vistas a uma produção lucrativa. Define-se

aí uma nova economia, baseada no crescimento das forças sujeitadas e na eficácia do

que as sujeita.

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O poder, em tal mecânica, não contém as forças. Procura, em verdade,

conectá-las para multiplicá-las num todo utilizável. Ele trabalha as massas e as

multidões separando-as, analisando-as, diferenciando-as, para submetê-las em

singularidades necessárias e suficientes à produção, fabricando-se indivíduos e

individualidades objetivadas pela instrumentalização. Por meio das disciplinas reforça-

se o poder da normalização e da regra, que se apoiam na natureza, na ciência, com

vistas a calculá-lo em um gasto mínimo para o máximo de eficiência. A regulação,

como fenômeno que se contrapõe à soberania, pode ser encarada como a emergência

de uma forma de poder disciplinar que invade o discurso jurídico para suprir suas

necessidades de normalização da atividade econômica e dos âmbitos especializados.

Sob o ponto de vista econômico, a regulação procura influenciar

diretamente a tomada de decisão dos agentes de mercado, dizendo respeito

especialmente sobre a formação de preços e a entrada e saída de agentes do mercado.

Merecem ser destacadas três hipóteses como vetores da regulação na economia. A

primeira considera que a regulação deve ocorrer diante de falhas de mercado,

constituindo a teoria do interesse público. Em razão de inconsistências em tais teorias,

economistas e cientistas políticos desenvolveram a teoria da captura, em que pela

proximidade setorial a agência reguladora acaba sequestrada pelos interesses dos

agentes regulados. Buscando superar as insuficiências empírica e teórica dessas

hipóteses, chegou-se a um terceiro estágio a partir do que se convencionou denominar

teoria da regulação econômica, em que a regulação constitui um recurso objeto de

disputas sociais por grupos de interesse que visam ao incremento de seu próprio bem-

estar. Essa última teoria evidencia algo muito interessante. A atividade regulatória vai

além da intervenção e do controle na produção de bens. Ela mesma é um bem

colocado em disputa por vários grupos.

Assim, o cenário da regulação não implica somente disputa por bens

materiais, abrangendo de igual modo o enfrentamento com vistas à obtenção de poder

coercitivo contido em normatizações estatais. Sob o ponto de vista do Estado

Democrático de Direito, está aí evidenciado mais um risco de apropriação ilegítima do

poder administrativo-burocrático e do direito, em razão de imperativos resultantes do

sistema econômico controlados pelo dinheiro.

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Essa forma de atuação do Estado permite que ele seja um coordenador de

um processo de produção e distribuição de bens e serviços com alto potencial

agregador pela recepção pelos cidadãos, reduzidos principalmente ao papel de clientes

da burocracia estatal e consumidores de prestações e serviços. Esse é um processo que

difunde a lealdade, mas minora a participação. Criam-se instituições e processos que

são democráticos na sua forma. No entanto, às decisões privadas de investimento

corresponde um privatismo cívico, ou seja, um absenteísmo político acompanhado de

uma orientação para o lazer, a carreira e o consumo.

Nessa linha, no capitalismo avançado, a dominação desloca o seu caráter

explorador e opressor, tornando-se racional. A legitimação dessa dominação assume

um novo caráter com a crescente produtividade e controle da natureza que

proporcionam aos indivíduos uma vida mais confortável. A sociedade racionalizada se

apresenta como uma organização tecnicamente necessária. A racionalidade não é

apenas uma crítica da legitimação vigente, mas sim a própria legitimação. O próprio

poder político busca legitimidade pela adoção racional da tecnologia e da ciência,

ancorando-se em soluções técnicas e na própria burocracia.

A configuração técnica e burocrática das agências reguladoras, visando a

um incremento de racionalidade com eficiência, não é garantia de legitimidade de suas

decisões. Sua independência e sua neutralidade vinculam-se principalmente à dinâmica

do sistema econômico que objetiva, como prestação, a certeza e a segurança referentes

aos contratos e à propriedade alocados no setor. São garantias que a economia

demanda ao sistema político-burocrático para se engajar na dispensa eficiente de

utilidades de interesse público. Apoiada à legitimação do Estado principalmente pela

técnica e pela burocracia, esmaece-se o conteúdo moral e ético do exercício do poder

político.

Por sua vez, o influxo já descrito de imperativos, especialmente do sistema

econômico, exigiu como prestação necessária e indispensável por parte do direito uma

capacidade normativa de conjuntura, que não pode ser fornecida pelos instrumentos

clássicos do processo legislativo, dado o tempo de sua maturação e a sua não

especialização. O que se tem nesse caso são demandas sistêmicas cognitivamente

absorvidas pelo direito, resultando numa nova estruturação do direito que cria novos

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locais de produção normativa com sentido inovador para atender às necessidades de

uma sociedade crescentemente especializada e de um Estado com fortes missões

compensatórias.

É certo que essas demandas oriundas dos sistemas econômico e político-

burocrático geram a necessidade de uma normatização de conjuntura no âmbito da

Administração, que por sua especialização e dinâmica própria não pode ter como sede

o Legislativo. No entanto, em razão dos riscos e potenciais de coerção envolvidos na

regulação, há sentido para se atribuir ao Executivo um poder amorfo e, por isso, de

difícil controle. Por isso, há necessidade de delimitação da competência regulatória

abrangendo pelo menos três dimensões: limites, conformações e diretrizes.

No que diz respeito aos princípios, a concepção de Dworkin sobre tal tema

origina-se na crítica que ele empreendeu ao positivismo. O ponto inicial desse ataque é

a verificação de que as palavras direito e dever ocupam posição central na doutrina

jurídica, colocando-se de lado a preocupação com uma norma de reconhecimento ou

fundamental como origem do sistema normativo.

Assim, em casos difíceis, com problemas conceituais agravados, os juristas

operam com base em standards para definição de seus deveres como princípios ou

diretrizes políticas. Desse modo, os princípios são critérios a serem observados por

uma exigência de justiça e moral política, dizendo respeito a direitos dos indivíduos ou

de grupos delimitados. Já as diretrizes políticas são objetivos a serem alcançados para

melhora da comunidade em algum aspecto econômico, político ou social. Por sua vez,

as regras apresentam na sua estrutura os pressupostos de sua aplicação em contraste

com princípios e diretrizes políticas não específicos. Sobre a relação entre essas três

espécies de normas, a conclusão é a de que as regras se apoiam num conjunto de

diretrizes políticas a que se adéquam e de princípios que respeitam.

Os princípios devem ser concebidos como obrigatórios, embora não

determinem isoladamente, de forma peremptória, a solução do caso. Contudo, a

origem dos princípios não está numa decisão positivada, mas num sentido de

adequação e oportunidade que se desenvolve com o tempo e encontra fundamento na

própria esfera dos princípios que remetem a normas morais e políticas.

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As autoridades, por sua vez, não podem praticar atos arbitrários com

poderes ilimitados, o que leva a concluir que os princípios são normas jurídicas

vinculativas e que elas têm o dever de aplicá-los para respeitar os direitos envolvidos.

É certo que a Administração tenha de se pautar pelas regras oriundas da Lei, mas não

menos correto é que deve observar princípios jurídicos e realizar diretrizes políticas.

Mais claramente, ao lado da aplicação da lei de ofício e da salvaguarda de interesses

públicos, as autoridades têm compromissos também com o respeito aos princípios e

seus decorrentes direitos.

A Constituição contém uma declaração de direitos e princípios, inclusive

com caráter contramajoritários, para tanto utilizando uma linguagem supostamente

vaga. Melhor que considerar os conceitos subjacentes como vagos é reconhecer sua

abertura para questões de moral política que colocam em jogo diversas concepções

para decidir a que melhor se amolda à constelação de princípios.

Não só o Judiciário tem de se submeter a tais discussões de moral política

inerentes à Constituição. Também a Administração deve deparar-se com tais questões,

principalmente no caso do exercício do poder regulador e da capacidade normativa de

conjuntura, em que se põe a lei autorizadora em termos abertos, estando por isso

necessariamente conectada ao eixo norteador formado pela constelação de direitos,

princípios e diretrizes políticas.

O caráter de argumentação dos direitos e princípios faz com que, mesmo no

caso de uma Suprema Corte, não se possa afirmar de modo peremptório que sua

decisão sobre determinado tema seja a correta, impedindo a evolução da discussão

para os casos subsequentes. Os direitos têm abertura interpretativa por sua própria

natureza, inserindo temas de moral política no debate jurídico. Dado isso, é inevitável

que todas as autoridades tenham, numa democracia, de se confrontar com intrincadas

questões em torno dos direitos. Isso, no entanto, não as exime da obrigação de

respeitá-los, procurando levá-los a sério, como é seu dever, atuando de maneira a

explicitar uma teoria coerente e concretizando uma prática institucional congruente

como forma de densificá-los, em que pese a sobrecarga que o caráter aberto dos

direitos constitucionais lhe imponha para cumprir a sua missão.

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A mera positivação de normas contendo regras não exime a autoridade

diante de direitos de buscar sua fundamentação na constelação de princípios. É

necessário justificar o ato, especialmente com juízos de moral política, mormente

quando os direitos em questão envolvem entes regulatórios que exercem competências

abertas, o que obviamente exige alta reflexividade e não meros juízos

descompromissados de subsunção. No que diz respeito à Administração, é certo que o

bem comum, a eficiência e o bem-estar geral são diretrizes norteadoras de sua atuação.

O problema é que a dignidade da pessoa humana e o direito a igual respeito e

consideração são mais que meros objetivos, são questões de princípios e de direitos

que impõem, em primeiro plano, deveres para as autoridades. Assim, a par de se

preocupar com objetivos que dizem respeito à coletividade, algo que enfaticamente se

impõe aos administradores é a realização e o respeito aos direitos, ainda que não

vazados em textos legais. Em suma, o interesse público e a legalidade são nortes na

atividade administrativa, mas os princípios e os direitos constitucionais são obrigações

perante os cidadãos, ainda mais quando se trata de um exercício de uma competência

aberta, como a da regulação.

Dworkin apresenta na sua obra o Império do Direito, uma concepção

coerente dos princípios que ele denomina de direito como integridade. A integridade

forma um tipo especial de comunidade: a dos princípios. Sob o signo da integridade,

ao reconhecer princípios de moral política em comum, os cidadãos devem aceitar as

exigências que lhes são feitas e fazer exigências. Os cidadãos de boa-fé devem

interpretar e construir uma organização comum e coerente, embora sob a base da

divergência. Cada cidadão tem a responsabilidade de fidedignamente procurar

identificar um sistema de princípios e de direitos para reger a vida da sua comunidade,

em que sejam virtudes políticas a equidade, a justiça e o devido processo legal adjetivo

com distribuição de papéis sociais de igual interesse e consideração na construção e

obediência ao direito. Nessa comunidade, direitos e deveres vão além das decisões e

das regras, tendo sua origem no conjunto de princípios que ambas pressupõem e

endossam.

No que diz respeito à competência reguladora, ocorre a partir de uma

autorização legal, em face da necessidade de um poder normativo de conjuntura.

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Obviamente não se trata de um cheque em branco para os entes reguladores. A Lei traz

limites, conformações e diretrizes, expressando o direito como integridade. As

agências estão inseridas em idêntica comunidade de princípios revelada pela Lei, mas

não contam com a legitimação pelo sufrágio. Por isso, a necessidade de um esforço

mais fidedigno para revelar regras que correspondam adequadamente e

justificadamente a um conjunto coerente de princípios e acurado de diretrizes políticas.

Os entes reguladores são intérpretes da Constituição e das Leis. Não lhes cabe

emendá-las. O campo de ação dos entes reguladores, sob o ponto de vista da

integridade, é o dos direitos e das diretrizes políticas definidas por Lei e pela

Constituição.

É dizer, as agências reguladoras cuidam de oportunidades de acesso a

mercados, da normalização das condições de seu funcionamento e da distribuição de

utilidades (public utilities) com vistas à manutenção de eficiência que possibilite

contínuo crescimento da economia e justa distribuição de bens. Obviamente, não é

apenas uma questão de direitos e de princípios. Outros diversos fatores têm de ser

considerados por imperativos de ordem científica, técnica, econômica, política etc.

Contudo, ao se valerem do direito como meio para realizá-los, o respeito à integridade

faz-se necessário com a busca de uma coerência nas diretrizes políticas relacionadas a

esses diversos fatores e também com a devida fidedignidade à comunidade de

princípios, que exige sofisticação e reflexão de seus aplicadores.

O direito tem uma feição bifronte, em que se apresenta como instrumento

conectado aos sistemas econômico e político-burocrático e como instituição vinculada

ao mundo da vida, em que circulam discursos ético-morais. Para realizar a tradução e a

articulação dessas esferas, o direito se vale de um tríplice sistema de regras que

favorece um conjunto de diretrizes políticas e respeita uma comunidade de princípios.

A atividade regulatória tem-se desenvolvido sobretudo no eixo das regras para

satisfação de demandas sistêmicas oriundas de uma sociedade de especialistas.

Ainda no que diz respeito ao eixo das regras, a comunicação promovida

pelo direito torna-se audível pelos sistemas em razão de sua coercibilidade, de sua

calculabilidade, de sua dinamicidade, de sua artificialidade, de sua linguagem e de sua

hierarquização. Todavia, essas mesmas características têm elevado poder deletério em

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relação ao mundo da vida por sua instrumentalização. Daí a importância dos princípios

dotados de conteúdo de moral política e indutores de agregação, de reflexividade, de

universalidade, de argumentação, de coerência, de perenidade, de complementaridade,

constituindo uma metalinguagem com elevado poder de legitimação. Por último, no

eixo das diretrizes políticas de caráter teleológico e utilitário se formam ordens de

preferências para o atingimento de finalidades coletivas por decisões da comunidade

ou, mais especificamente, de suas autoridades, o que leva a uma grande instabilidade e

variabilidade na seleção desses objetivos, que pode ser amenizada com a vinculação

aos princípios num processo argumentativo em que se procure justiça e coerência.

A abordagem da regulação a partir de casos concretos visou a um

fechamento do trabalho com reflexões de razão prática que pudessem evidenciar os

espaços de liberdade e emancipação que cercam o tema. No Recurso Extraordinário n.º

511.961 merece destaque o estabelecimento de um núcleo para o direito de livre

exercício profissional, que implica limitações até mesmo para o exercício de uma

reserva qualificada pelo legislador, o que permite concluir que qualquer atividade

regulatória está imediatamente vinculada e referida aos direitos e seus princípios, que

reservam ao cidadão espaços de liberdade oriundos de argumentações de moral

política. Em contraste, o Recurso Especial n.º 572.070 evidenciou os riscos da

assunção instrumental dos discursos de verdade técnica das agências reguladoras para

a realização do Estado Democrático de Direito, já que, por imperativos de ordem

econômica e burocrática, deixou-se de debater o caso a partir de regras e princípios

jurídicos. O Recurso Extraordinário n.º 349.686 permitiu ressaltar que inerente à

análise jurídica da regulação está a abordagem de uma comunidade de princípios e de

diretrizes políticas coerentes de caráter econômico e social que não se compatibilizam

com uma concepção amorfa e definidora de deveres negativos pelo poder de polícia. O

último caso sobre a regulação da ortotanásia pelo Conselho Federal de Medicina

mostrou a capacidade crítica e reflexiva dos princípios que, com sua abertura,

permitem extrair regras legítima e fundamentadamente a partir da conjugação de

saberes morais, éticos, religiosos, técnicos, científicos e jurídicos.

Uma abordagem principiológica do direito pode abrir acessos para suavizar

o tecnicismo e os excessos burocráticos da pletória normativa de cada setor fiscalizado

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e controlado por entes estatais, legitimando-os e conferindo-lhes unidade. O direito é

capaz de verter a razão calculadora vinculada a conceitos precisos e determinados

numa razão reflexiva efetuada por meio de juízos. A possibilidade de transformar o

saber da ciência e da técnica do direito num conhecimento prudencial e filosófico

contido nos princípios fundamenta e legitima o direito. Essa é a síntese da crítica

principiológica do direito, que lhe dá um lugar e um valor no mundo das vivências dos

indivíduos. De outro lado, é o sistema lógico-operativo de regras que possibilita ao

direito acoplar-se com a economia e com o poder administrativo-burocrático,

produzindo comunicações por eles assimiláveis, com influência nos códigos

específicos de uma Administração regulada pelo poder e de um mercado regulado pelo

dinheiro. Daí a possibilidade de o direito traduzir expectativas do mundo da vida para

esferas sociais sistemicamente constituídas.

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