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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO-SP EDUCAÇÃO CONTINUADA-COGEAE CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO EM TEORIA PSICANALÍTICA MARIA NEUZA DE FARIA FERREIRA LIMA PROFA. DRA. INÊS ROSA BIANCA LOUREIRO TERAPIA SISTÊMICA E PSICANÁLISE - INTERLOCUÇÕES CLÍNICAS – SÃO PAULO 2012

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO-SP

EDUCAÇÃO CONTINUADA-COGEAE

CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO EM TEORIA PSICANALÍTICA

MARIA NEUZA DE FARIA FERREIRA LIMA

PROFA. DRA. INÊS ROSA BIANCA LOUREIRO

TERAPIA SISTÊMICA E PSICANÁLISE

- INTERLOCUÇÕES CLÍNICAS –

SÃO PAULO

2012

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MARIA NEUZA DE FARIA FERREIRA LIMA

TERAPIA SISTÊMICA E PSICANÁLISE

- INTERLOCUÇÕES CLÍNICAS –

Monografia apresentada à Pontifícia

Universidade Católica de São Paulo-SP.

Como requisito parcial à obtenção do título

de especialista em Teoria Psicanalítica

Orientadora: Profa. Dra. Inês Rosa Bianca

Loureiro

SÃO PAULO

2012

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Agradecimentos

Ao Roberto, Pedro e André, cada um, a seu modo, contribuiu para a realização desse

projeto.

À minha terapeuta, Vânia Yazbek, por ter agüentado minhas inseguranças e ambigüidades.

À minha orientadora Inês Loureiro, pela sua disponibilidade, objetividade e competência.

À Neusa Nogueira, vizinha e parceira de caminhada, pelo empréstimo dos preciosos

volumes das Obras Completas.

Ao grupo de estudos CONECTAR www.grupoconectar.com.br, pela força afetiva, pela

leitura atenta e cuidadosa dos meus trabalhos e pela possibilidade de articulação teórico

clínica.

Aos meus pacientes, que me instigam a fazer perguntas.

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SUMÁRIO APRESENTAÇÃO ................................................................................................................ 5  I. TEORIA SISTÊMICA ....................................................................................................... 9  1. Contexto histórico-cultural ................................................................................................ 9  2. Conceitos sistêmicos Básicos .......................................................................................... 12  3. A Cibernética e a Mudança ............................................................................................. 14  

3.1. Cibernética de Primeira Ordem ................................................................................ 14  3.2. Cibernética de Segunda Ordem ................................................................................ 15  

II. A PRÁTICA CLÍNICA ................................................................................................. 16  1. As Práticas Sistêmicas ..................................................................................................... 16  2. O Construcionismo Social ............................................................................................... 20  

2.1. O Lugar do Terapeuta ............................................................................................... 23  2.1.1. A co-construção de narrativas ........................................................................... 23  2.1.2. A disponibilidade da escuta ............................................................................... 23  2.1.3. A mudança em processo .................................................................................... 24  

III. UMA VISÃO GERAL DO INCONSCIENTE EM FREUD ........................................ 26  IV. O INCONSCIENTE NA PRIMEIRA TÓPICA – UMA LEITURA DO ARTIGO O INCONSCIENTE (1915) .................................................................................................... 29  1. O caráter Topográfico, Dinâmico e Econômico .............................................................. 31  2. Idéias e Afetos ................................................................................................................. 33  3. Comunicação em Rede .................................................................................................... 35  V. O INCONSCIENTE NA SEGUNDA TÓPICA – UMA LEITURA DA CONFERÊNCIA XXXI (1932) ........................................................................................... 38  1. O Superego e o Consciente – O Reprimido e o Inconsciente: não são coincidentes ..... 41  2. Comunicação em Rede ................................................................................................... 42  VI. A NOÇÃO DE INCONSCIENTE COMO GOLPE NARCÍSICO ............................... 45  VII. O DESCENTRAMENTO E A CONTINGÊNCIA DO SUJEITO – UM PONTO DE VISTA PRAGMÁTICO ...................................................................................................... 48  VIII. CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................................... 53  BIBLIOGRAFIA ................................................................................................................. 57  

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APRESENTAÇÃO

Existem várias maneiras de abordar a psicanálise. Não há uma forma correta, neutra

ou fiel e é exatamente isso que a faz tão rica e fecunda.

Da minha parte, a pretensão nessa pesquisa é propor diálogos que enriqueçam a

minha formação teórica e clínica ao aproximá-la da terapia sistêmica no viés

construcionista social - linha teórica com a qual trabalho -, por acreditar na grande

contribuição da psicanálise freudiana para essa abordagem.

A teoria sistêmica, como veremos explicitada no capítulo inicial, me tem sido de

grande valia, pois lança luzes sobre o sistema em que emergem os conflitos e suas

relações. Para isso convido o leitor para revisitar alguns momentos importantes de sua

história e as interfaces com as múltiplas áreas do conhecimento. E ainda, como esse

conhecimento teórico se transformou em uma prática clínica.

No segundo capítulo, sobre a prática clínica, me detenho especificamente sobre a

terapia sistêmica que contempla casal, família e grupos e faço um breve passeio sobre as

abordagens que considero mais importantes para o entendimento de sua história, bem

como sua relação com o paradigma sistêmico e cibernético.

Considero importante o ítem que discorre sobre o construcionismo social, por ser o

viés escolhido para fazer a interlocução com a psicanálise, porque traz à cena o foco na

linguagem. ... “não a descritiva, representacional, mas a linguagem compreendida como

Jogos (Wittgenstein), ação entre pessoas, constitutiva, criadora de mundos” (Lima, 2008,

p. 69), que nos enlaça com o pragmatismo linguístico.

Enfim, o construcionismo social nos remete para o entendimento de como

construímos versões sobre nós, sobre os outros e sobre o mundo, ao participarmos dos

múltiplos contextos relacionais. No caso desse trabalho, a ênfase é no contexto terapêutico.

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Algumas inquietações e perguntas emergiram a partir da experiência clínica. Nesse

caminho nutri grande interesse pela psicanálise, notadamente para as questões que dizem

respeito à palavra que escapa, uma ação em suspenso.

Como no caso de Anna O, paciente de Breuer, quando ela vê uma cobra entrando

no quarto do pai doente, do qual ela cuidava. Ela arma um grito de horror, mas se contém

para não acordá-lo. Nesse momento a cena fica congelada produzindo efeitos e

implicações importantes para a sua vida. Ou ainda nos relatos que ouvimos no cotidiano:

“na hora eu fiquei paralisado, agora, revivendo a cena, eu consigo lembrar e dizer o que

aconteceu.”

Como diz Bezerra, (1994) “... a experiência daquilo que escapa ou resiste a essa

operação organizadora de sentidos – o inefável, o indizível, o extralingüístico, o real – só

pode ser reconhecida e de alguma maneira vivida por meio ou em função dessas

demarcações e descrições que só a linguagem possibilita”. (p. 148).

Enfim, afetos aflitivos vinculados a experiências traumáticas que permanecem

suspensos como se não coubessem na palavra. E de repente por algum motivo são

acionados, revive-se a cena, nomeia-se o afeto. Este tipo de evento nos remete à noção de

inconsciente.

O grande desafio desse trabalho é tentar acompanhar Freud em seu percurso para a

formulação desse conceito, o inconsciente, bem como seus mecanismos de funcionamento,

para levantar possibilidades de diálogos com a teoria sistêmica nesse viés específico do

construcionismo social, pela via da linguagem.

Dada a extensão e complexidade da obra de Freud, tive que fazer algumas escolhas,

recortes que mostrassem suas elaborações sobre essa noção em diferentes momentos de seu

percurso teórico.

Para uma visão geral sobre o conceito (capítulo III), recorri aos dicionários de

Lapanche e Pontalis (1979) e de Roudinesco e Plon (1997), que nos dão uma noção

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histórica e panorâmica sobre o inconsciente, de modo a traçar uma introdução sobre o

conceito.

Achei importante seguir esse caminho pontuando os dois grandes marcos que

considero importantes na elaboração da teoria do aparelho psíquico - a primeira e a

segunda tópicas.

Escolhi um texto específico representativo de cada tópica buscando identificar

como Freud então entendia a noção de inconsciente e que perguntas o mobilizavam nesse

momento.

Para a primeira tópica (capítulo IV), o texto escolhido foi “O Inconsciente” (1915).

Sabemos que Freud vinha se ocupando do tema desde os anos 1890 e que em 1900, com a

Interpretação dos sonhos, concebera o sonho como via real para o inconsciente,

formulando publicamente a primeira tópica no célebre sétimo capítulo desta obra. Mas

somente em 1915 vai tentar sistematizar suas reflexões sobre esse conceito.

Para uma apresentação do conceito tal como entendido no âmbito da segunda tópica

(capítulo V), escolhi a Conferência XXXI. “A dissecção da personalidade psíquica”

(1932). Em um momento de grande sistematização, Freud escolhe uma maneira mais direta

e clara, uma conferência, para apresentar sua concepção do aparelho psíquico proposta

quase dez anos antes, em O ego e o id (1923). Usando uma linguagem coloquial, ao longo

da exposição levanta perguntas que o inquietam e convida o ouvinte a se posicionar.

No capítulo VI, abordo brevemente o significado do conceito de inconsciente,

considerado por Freud como um dos golpes narcísicos na humanidade. Tomei como base o

texto “Uma dificuldade no caminho da psicanálise” (1917), no qual se identifica aquilo

que autores pragmáticos consideram ser importante na concepção de sujeito em Freud e

que possibilita a articulação entre o pragmatismo e psicanálise, - a contingência e o

descentramento.

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Esse é o elo que vai me conduzir, no capítulo final, a uma breve tentativa de

articulação com algumas idéias de neo pragmatistas, como Donald Davidson e Richard

Rorty.

A partir desse viés freudiano da contingência e do descentramento, tais autores

descrevem o sujeito como “uma rede de crenças e desejos”, destacando que quando

dizemos que o sujeito se comporta irracionalmente, significa dizer que “às vezes exibe um

comportamento que não pode ser explicado por referência a um único conjunto de crenças

e desejos.” (Rorty, 1999, p.197).

Recorro também a psicanalistas como Benilton Bezerra, Jurandir Freire Costa e

Lúcio Marzagão que fizeram uma leitura da psicanálise nessa visão pragmática, incluindo

a clinica nessa discussão.

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I. TEORIA SISTÊMICA

1. Contexto histórico-cultural

A teoria sistêmica nasce da conjugação de pensamentos plurais e interdisciplinares

que vão configurando um corpo teórico e construindo uma história rica em mudanças e

transformações.

Para entender um pouco desse processo, vamos traçar algumas pinceladas de

história tentando acompanhar teóricos que, a meu ver, lançaram luzes para a compreensão

desse pensamento.

A partir do século XVI e XVII, a noção do universo orgânico, vivo e espiritual, foi

substituída pela noção do mundo como máquina, provocando mudanças e realizações na

física e na astronomia.

Copérnico descobriu que a terra não era o centro do mundo, era apenas um pequeno

planeta que circundava uma secundária estrela da galáxia, tirando o homem da centralidade

do universo.

Galileu Galilei descreveu matematicamente a natureza, dentro de uma abordagem

empírica, dando ênfase às formas, quantidades e movimento, ou seja, ao que podia ser

medido e quantificado, em detrimento dos sentimentos e da subjetividade, o que

caracterizou a chamada idade da revolução científica.

Francis Bacon, na Inglaterra, desenvolvia também o método empírico,

acrescentando a questão do controle e do domínio da natureza. Essa deveria ser “acossada

em seus descaminhos, obrigada a servir e escravizada.” (Capra, 1996, p.51).

Descartes, por sua vez, acreditava em um método que lhe permitisse construir uma

ciência que lhe desse a certeza absoluta, baseada na matemática e em princípios que

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dispensassem a demonstração. Para ele, o universo era uma máquina regida por leis

mecânicas e tudo podia ser explicado em função da organização e do movimento de suas

partes.

Esse seu método dedutivo que consiste em decompor o todo em partes e dispô-las

em ordem lógica, levou à fragmentação do pensamento científico, acreditando que

fenômenos possam ser compreendidos se reduzidos às partes que o compõem.

O método cartesiano provocou muitas discussões e críticas nas ciências humanas e

posteriormente na física quântica, em relação à divisão do sujeito (mente/corpo), e na

valorização de uma sobre a outra. Essa divisão acompanhou a humanidade durante mais de

três séculos e ainda hoje sofremos sua influência.

Newton continuou a obra de Descartes, ao criar um método novo para descrever o

movimento dos corpos sólidos – força da gravidade – a mesma força que atraía a maçã

para o chão, atraía os planetas para o sol. Essa visão mecanicista está associada ao

mecanicismo causal e é submetida a um criador supremo. Um dos seus grandes feitos foi

fazer uma combinação apropriada do método empírico, indutivo de Bacon e do método

racional, dedutivo de Descartes, concluindo que tanto um, como o outro, não conduziam a

uma teoria confiável.

Uma das grandes descobertas do século XIX foi referente aos fenômenos elétricos e

magnéticos, ou seja, a substituição do conceito de força pelo conceito de campo de força,

mostrando que os campos têm sua própria realidade, independente dos corpos materiais.

Essa teoria culminou com a descoberta de que a luz é um campo magnético alternante e

viaja através do espaço em forma de ondas.

Essa nova tendência do pensamento teve a grande contribuição de Einstein que

introduziu a idéia de mudança, crescimento e desenvolvimento, fazendo um contraponto à

imagem de máquina newtoniana ao conceber o universo como sistema em evolução.

Já no final do século XIX, Maxwell com a eletrodinâmica e Darwin com a teoria da

evolução, comprovaram que o mecanicismo causal de sistemas fechados, submetidos a um

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criador supremo havia sido superado. Outras descobertas no campo da física - teoria da

relatividade e teoria quântica mostraram que o universo era bem mais complexo do que se

imaginava.

Resolvi fazer esse recuo histórico, porque não só a teoria sistêmica teve aí sua

influência, mas também Freud, que esteve imerso no contexto do final do século XIX até

as três décadas seguintes do século XX.

A partir dessa perspectiva histórica, podemos levantar alguns indícios a respeito do

entendimento de alguns teóricos, sobre a opção de Freud pelo mecanicismo e não pela

metafísica; sua concepção de energia psíquica e seu desejo de que a psicanálise se

transformasse numa ciência natural, como veremos nesse trabalho.

Nos anos 30 do século XX, o biólogo austríaco Ludwig Von Bertalanff introduz a

Teoria Geral dos Sistemas, cuja concepção é o funcionamento correspondente a todos os

sistemas (isoformismo). Propõe também a idéia de “sistemas abertos” os quais se

alimentam do fluxo da matéria e energia extraído do seu meio, renovando-se. Assim, o

universo caminha não para o caos (da ordem para a desordem), mas para uma constante

mudança e transformação.

Nos anos 40, as idéias de Norbert Wiener, um dos fundadores da teoria quântica,

vieram ampliar esse panorama com o pensamento Cibernético. Sua contribuição ao campo

das ciências sociais é inegável.

A Cibernética ocupa-se dos processos de comunicação e controle de ambos os

sistemas: organismos, sistemas sociais, ecossistemas e tece uma trama heurística de

saberes e fazeres. “O mundo aparece assim como um complicado tecido de eventos, no

qual conexões de diferentes tipos se alternam se sobrepõem ou se combinam e, por meio

disso, determinam a textura do todo”. (Capra, 1996, p. 41/42.)

Essa revolução conceitual influenciou a escola de Psicologia Gestalt, representada

pelos psicólogos Max Wertheimer e Wolgang Köhler, que “reconheceram a existência de

totalidades irredutíveis como o aspecto chave da percepção. Os organismos vivos,

afirmaram eles, percebem coisas não em termos de elementos isolados, mas como padrões

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perceptuais integrados - totalidades significativamente organizadas que exibem qualidades

que estão ausentes em suas partes.” (Capra, 1996 p. 42).

Essa multiplicidade de trocas interdisciplinares entre as várias áreas do

conhecimento no decorrer da história deram origem às raízes teóricas que orientaram a

prática sistêmica, da qual trataremos no próximo capítulo.

2. Conceitos Sistêmicos Básicos

- Globalidade

O sistema comporta-se como um todo coeso. Uma mudança em uma das suas partes,

provoca mudanças em todas as outras, e assim, no sistema como um todo.

- Não somatividade

Um sistema deve ser considerado como um todo na sua complexidade e organização. Ou

seja, o todo é mais que a soma de suas partes.

- Homeostase

É o processo de auto-regulação para manter a estabilidade do sistema. Protege-o das

mudanças que ameaçam sua organização.

- Morfogênese

É uma característica dos sistemas abertos de absorverem inputs do meio e possibilitar a

mudança na sua organização. Opõe-se à homeostase.

- Circularidade

Os componentes do sistema interagem de uma forma circular, diferentemente da lógica da

causalidade linear.

- Retroalimentação ou feedback

É uma característica do funcionamento circular. Os mecanismos de feedback garantem a

circulação de informação entre os componentes do sistema. Os feedbacks negativos

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funcionam para manter a homeostase e os feedbacks positivos, para possibilitar a mudança

sistêmica ou morfogênese.

Gregory Bateson (antropólogo) considera o pensamento sistêmico-cibernético um

acontecimento de grande importância no século XX, sendo a porta de entrada para a

aplicação da teoria da comunicação nas relações interpessoais em conexões, em redes.

A contribuição desse autor foi fundamental para a consolidação da teoria sistêmica

na prática clínica. Para entender melhor, vamos acompanhar um pouco sua trajetória.

Em 1942, nos Estados Unidos, ele se junta a um grupo de Harvard (físicos, matemáticos,

engenheiros, neurólogos, psicólogos e antropólogos) e se debruça sobre o tema da

comunicação e dos mecanismos de causalidade circular, assentando as bases do enfoque

interacional nos anos 50. Esse movimento foi organizado pela Fundação Macy.

Essa fundação organizou uma série de conferências, num total de 10 edições,

começando em 1942, sendo a última em 1953. Durante todo o período o tema da

Cibernética mobilizou o grupo, que acreditava participar de um momento histórico,

contribuindo para um novo marco conceitual sobre as ciências da vida.

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3. A Cibernética e a mudança

A cibernética trouxe para o campo das ciências humanas uma mudança

significativa. Da matéria e da energia para a informação e a organização. Portanto, nos

sistemas humanos e naturais a comunicação e a inter-relação, são o foco dessa nova

perspectiva epistemológica.

Para efeito de estudo, a cibernética pode ser dividida em dois grandes momentos.

Cibernética de Primeira Ordem, que se dividiu em: primeira cibernética e segunda

cibernética e Cibernética de Segunda Ordem.

3.1. Cibernética de Primeira Ordem

O primeiro momento que se denominou Cibernética de Primeira Ordem, mais tarde

passou a chamar primeira cibernética.

Caracteriza-se pela ênfase nas noções de regulação e controle, através da

homeostase. As mudanças acontecem para a correção dos desvios visando à estabilidade e

a manutenção de uma meta. Atentos à informação de qualquer perigo à vista, o sistema

aciona a retroalimentação negativa para manter o padrão de organização do sistema,

evitando o caos.

Na segunda cibernética, (o segundo momento da Cibernética de Primeira Ordem),

ressalta-se que os sistemas necessitam não somente de manter a estabilidade, mas

desenvolver a capacidade de mudar sua estrutura básica para adaptar-se às mudanças do

meio. Nesse caso, a retroalimentação é positiva, a informação serve para a inclusão da

novidade e provoca uma mudança qualitativa possibilitando a evolução do sistema.

Em ambos os momentos da Primeira Cibernética, o sistema pode ser operado de

fora, ou seja, há uma independência entre o observador e o observado.

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3.2. Cibernética de Segunda Ordem

Surge com o envolvimento de várias áreas de conhecimento (tais como:

antropologia, neurofisiologia, sociologia, psiquiatria) que passam a se debruçar sobre essa

nova epistemologia e propõem a aplicabilidade destas teses nos sistemas humanos e

sociais.

Surgem, no entanto, algumas questões. Os sistemas humanos e sociais,

diferentemente de máquinas, são regidos pelas próprias leis, ou seja, são autônomos e tem

sua própria organização. Portanto, há que se considerar a imprevisibilidade, a incerteza, a

instabilidade.

A física quântica, nesse momento, deu uma grande contribuição ao introduzir o

tema da incerteza, afirmando a não possibilidade de falar de uma realidade objetiva, livre

da influência de quem observa. Ou seja, o observador faz parte do sistema observado e

imprime a sua singularidade, suas crenças; enfim, atua. Diz Zukav:

“De acordo com a mecânica quântica não existe objetividade. Não podemos

eliminar a nós mesmos da cena. Somos parte da natureza e quando a estudamos não se

trata de outra coisa que a natureza estudando a si mesma. A Física chegou a ser um ramo

da Psicologia, ou talvez o contrário” (apud Feixas & Villegas, 1993, p.36)

Outra contribuição para o campo da cibernética foi na área da neurobiologia com

Maturana & Varela (1987) ao definirem os sistemas vivos como autopoiéticos, o que quer

dizer que eles têm a característica de criarem a si mesmos. Afirmam que o seu operar é

autônomo e a mudança depende de sua constituição estrutural. O que eles chamam de

determinismo estrutural, ou seja, o ambiente apenas mobiliza, instiga, provoca. A resposta

depende de sua organização e estrutura.

Esses autores dão um grande destaque à linguagem na constituição do humano,

trazendo a dimensão da reflexão e da consciência; “a linguagem permite a quem opera nela

descrever-se a si mesmo e às suas circunstâncias” (A árvore do conhecimento, p. 233) a

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partir de redes de interações lingüísticas nas quais estamos mergulhados e que nos torna o

que somos.

Essa nova perspectiva da Cibernética de Segunda Ordem se define como

construtivista.

Segundo Grandesso (2000), diferentemente do Construcionismo Social que dá

ênfase às relações como locus da construção do mundo, o Construtivismo privilegia os

processos individuais como resultado da reflexão e da abstração a partir dos processos

sociais. (cf. Grandesso, 2000, p. 56-104).

Todo esse movimento influenciou as práticas sistêmicas, entre elas a Terapia Familiar,

que foi se constituindo em vários modelos. Alguns estudiosos, entre eles Esteves de

Vasconcelos (1995), consideram que as práticas da terapia familiar são sistêmicas e sua

epistemologia, cibernética.

II. A PRÁTICA CLÍNICA

1. As Práticas Sistêmicas

O trabalho clínico a partir dos anos 40 tinha como referência a teoria psicanalítica,

cuja prática definia-se numa relação entre o analista e o paciente. O que interessava era a

história individual, a busca de conteúdos reprimidos, localizados no inconsciente, portanto,

no seu aparato psíquico. A escuta era no sentido de resgatar a história passada em busca de

indícios que pudessem esclarecer os sintomas. O foco era o sujeito e seu psiquismo, num

jogo de forças que, como na física, era identificado como conservação e transformação de

energia.

O pensamento Sistêmico, portanto, surge como uma mudança paradigmática na

prática clínica, propondo uma mudança de foco: do indivíduo para o contexto, do intra-

psíquico para o inter-relacional.

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Também alguns desdobramentos da própria psicanálise, representados pela escola

inglesa e americana, se voltam para as relações de objeto e participam desse movimento

em direção à intersubjetividade.

Na estrutura desse pensamento, as forças e mecanismos do sistema (família, grupo,

empresa, etc.) interagem, de forma circular, através da informação, dando origem a

processos dinâmicos e contínuos que se retro-alimentam, para garantir a homeostase. O

mecanismo regulador que permite manter o equilíbrio é acionado quando o grupo sente-se

ameaçado. Nessa perspectiva o sintoma é uma forma de não mudança, a serviço do

sistema, mantendo-o de forma integrada e interdependente. O problema de um dos

membros, o paciente identificado, o porta voz da disfunção, é visto dentro do contexto.

Quando este melhora, o sintoma muda e outro membro assume o lugar.

O terapeuta dedica-se a entender os padrões relacionais da família, para que está

servindo o sintoma, e propõe estratégias de ação para que a família possa refletir sobre sua

história, libertando-se da necessidade dessa estratégia.

Esses pressupostos da cibernética de primeira Ordem se situam dentro do modelo

da modernidade. E as bases epistemológicas das várias escolas transitam em diferentes

abordagens, às vezes complementares, outras vezes discordantes, mas com a característica

da pluralidade e interdisciplinaridade.

Cada escola de terapia sistêmica faz o seu próprio percurso, privilegia o arcabouço

teórico que julga importante, dentro do universo sistêmico, produzindo um repertório

teórico-clínico com o objetivo de responder às demandas do contexto social, político e

cultural do seu tempo.

Nos anos 50, Bateson (antropólogo), Haley (comunicação), Virgínia Satir

(assistente social) e Jackson (psiquiatra) nomeiam sua prática clínica de Comunicacional.

O MRI (Mental Research Institute) de Palo Alto desenvolve a abordagem Interacional ou

da Terapia estratégia breve. Minuchin, o modelo estrutural, Whitaker, o estratégico e,

Selvini-Palazzoli, (psicanalista infantil) Prata, Cecchin e Boscolo (psiquiatras), o sistêmico

de Milão.

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No pós-guerra (anos 50 e 60) os problemas econômicos e sociais eclodiam nos

Estados Unidos. O grupo de Bateson e MRI propõe aplicar a teoria sistêmica no tratamento

com esquizofrênicos e suas famílias. Essa experiência foi importante para a formulação da

teoria do duplo vínculo.

Em 1956 publicam o artigo “Toward a Theory of Schizophenia”, explicitando as

bases teóricas do duplo vínculo: que acontece na relação entre duas pessoas afetivamente

ligadas; que um paradoxo é infringido por uma (geralmente a que tem mais poder) sobre a

outra (vítima); que a experiência é repetida com frequência; e que a vítima encontra-se

impossibilitada de dizer “não”, ou seja, escapar do paradoxo.

O resultado dos trabalhos do grupo foi reconhecido pela comunidade, dando grande

visibilidade à teoria sistêmica, o que contribuiu para sua chegada ao continente europeu.

Em 1967, na Itália, profissionais da área da psiquiatria, entre eles Luigi Boscolo e

Gianfranco Cecchin, juntam-se à psicanalista infantil de Milão, Mara Selvini Palazzoli,

para desenvolverem um projeto de atendimento com orientação psicanalítica, às crianças

com severos transtornos, juntamente com suas famílias. Porém, depararam com

dificuldades de como incluir as famílias no tratamento.

Em 1972, o grupo toma conhecimento das pesquisas e dos estudos sobre a terapia

familiar nos Estados Unidos, bem como do projeto sobre comunicação no MRI (Mental

Reserch Institute) em Palo Alto, Califórnia, coordenados por Gregory Bateson com a

participação de Margaret Mead.

O grupo de Milão se interessou muito pela possibilidade de sair da visão do

indivíduo como depositário da patologia (chamada abordagem psicodinâmica) e considerar

o contexto relacional, no caso a família, investigando os padrões de interação familiar que

pudessem interferir nos problemas apresentados pelas crianças.

O debate entre o modelo Familiar Sistêmico e o Psicanalítico produziu nesse

momento uma divisão do grupo.

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Em 1971, alguns seguiram trabalhando com a “estrutura sistêmica”, (como eles

nomearam), e fundam o Centro per il Studio della Famiglia, em Milão e continuaram

trabalhando como equipe durante a década de 70, promovendo encontros e intercâmbios

com a equipe de Bateson e o MRI.

Com o passar do tempo, surgiram diferenças teóricas e o grupo de Milão seguiu

formulando suas próprias experiências, introduzindo, por exemplo, a prática de um

terapeuta atrás do espelho unidirecional como elemento de terapia e o MRI para fins de

pesquisa.

Utilizava a metáfora do jogo para descobrir o padrão relacional adotado pela

família na relação com o terapeuta. A partir dos escritos de Bateson essa perspectiva se

amplia, e a equipe muda a visão da descoberta para a da construção. Ou seja, o que

acontece no espaço terapêutico é algo construído no processo, o que deu lugar a outras

narrativas trazidas pelo questionamento circular. Não existe algo a ser descoberto, mas

algo co-construído pelo sistema, evidenciando as mudanças advindas na Cibernética de

Segunda Ordem.

Outro modelo, o Estrutural, cujo principal representante é Minuchin, dá grande

importância ao sistema hierárquico familiar e o funcionamento dos subsistemas. Para um

bom funcionamento as fronteiras deverão ser claras e bem definidas. O tratamento

terapêutico propõe identificar disfunções e ajudar a família a se reestruturar.

No modelo Estratégico, o que caracteriza o sistema familiar é a luta pelo poder. Os

problemas, as patologias são vistas como disfunções. O terapeuta propõe intervenções

para a mudança nos padrões relacionais, e utiliza a instrução paradoxal, ou seja, encoraja o

comportamento sintomático, acreditando que o paradoxo levará a substituição do duplo

vínculo para um vínculo terapêutico.

Transitando na Cibernética de Primeira Ordem, com alguns clarões de mudanças,

como no caso da equipe de Milão, o papel do terapeuta ainda continua sendo o de observar,

analisar, instruir, propor estratégias para que a mudança aconteça. Nesse sentido, o

observador está fora, não faz parte do sistema.

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Esse panorama adquire uma consistência maior de mudança quando Bateson,

baseando-se em suas pesquisas conclui que o observador faz parte do próprio sistema

observado. Daí, o reconhecimento do terapeuta como integrante do sistema e a inclusão de

si mesmo nas observações e nas intervenções que faz.

O foco agora não é o sintoma, mas as relações. A homeostase é positiva, a

retroalimentação é evolutiva (Prigogine 1979). Quer dizer, a cada situação surgem novos

pontos de instabilidade que geram novas configurações e assim sucessivamente, num

movimento complexo e contínuo. A crise não representa um perigo, mas parte do processo

de mudança.

O terapeuta sai do lugar de quem promove a cura, para o lugar de quem coordena e

constrói juntamente com o sistema novas narrativas, tornando possíveis as mudanças

desejadas. O olhar do terapeuta para a disfunção ou a instrução diretiva não tem mais

lugar, uma vez que o conceito de problema passa pelos significados que o sistema constrói

da sua realidade. Ou seja, os sistemas humanos compreendidos como sistemas lingüísticos,

“geradores de linguagem e, simultaneamente, geradores de sentido.” (Anderson &

Goolishian, 1998, p. 36).

Essa é a grande novidade da Cibernética de Segunda Ordem, cujas práticas já

acontecem no contexto da pós-modernidade, definindo as epistemologias construtivistas e

construcionistas sociais.

2. O Construcionismo Social

A minha proposta neste trabalho ao abordar o Construcionismo Social, é trazer o

foco para a questão da linguagem.

Recorro a alguns teóricos da hermenêutica e do pragmatismo lingüístico, base

teórica na qual se fundamenta o construcionismo social, para ajudar na tarefa de articular

linguagem e psicanálise, pontuando questões convergentes, divergentes, complementares e

ampliadoras.

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O Construcionismo Social não se coloca como um modelo teórico, com métodos e

técnicas, mas como uma postura que privilegia a linguagem como ação constitutiva dos

sujeitos em contextos relacionais.

Postula que os significados são construídos nos processos que acontecem entre as

pessoas, e não dentro delas; não existe uma essência no interior das coisas que as

determina e as explica pronta para ser desvelada pela mente humana.

Questiona, portanto, conceitos da língua como veículo para comunicar conteúdos,

da mente como centro de conhecimento e da linguagem como mero transporte de

conhecimento.

“As pessoas vivem e compreendem seu viver por meio de realidades narrativas

construídas socialmente que conferem sentido e organização à experiência” (Anderson e

Goolishian, 1998, p. 36), diferentemente do paradigma cibernético que define as práticas

sociais por meio do processamento e da troca de informações.

As realidades são criadas pela linguagem, ou seja, a forma como descrevemos faz

emergir realidades distintas. A partir de determinado noticiário, de determinado discurso

político ou peça publicitária sobre um produto, construímos mundos distintos.

Os signos de uma cultura compartilhados pela comunidade lingüística é que nos

permitem compreender quem somos. O significado das palavras decorre dos

relacionamentos, dos acordos, das negociações, implicados na construção das práticas

sociais e das formas de vida.

Segundo Wittgenstein (1961) as palavras adquirem significados por meio de jogos

de linguagem que criamos e organizamos na relação com os outros. Daí o aforismo: “Não

pergunte pelo significado, pergunte pelo uso”. Ou ainda nas palavras de Austin: “fazemos

coisas com palavras”. (apud Ferreira e et all, 2008, p. 16 e 17).

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Para David Levy (s/d) citando Ricouer, (p. 51), somos jogados constantemente no

meio das coisas – e a primeira dessas coisas é sem dúvida a linguagem, na qual

construímos quem somos.

O ego cartesiano desencarnado e a-histórico não se sustenta. Como separar o sujeito

do objeto, se o “eu que pensa” é o mesmo “eu que existe”? Somos obrigados a incluir o

“eu que pensa” no fluxo da história em que vive, a via é pelo outro, pela alteridade.

Se somos linguagem, “conhecer significa aqui compreender e, para compreender, é

preciso interpretar. É por essa razão que Ricouer define o âmbito das questões levantadas

pela identidade narrativa como uma hermenêutica do si-mesmo”. (ibid, p. 53). Ou seja,

compreender é compreender-se diante do texto.

Gadamer segue a linha hermenêutica de Ricouer, propondo que não existe um

acesso ideal ao sentido do texto, ou seja, a interpretação é sempre uma possibilidade de

apreensão, entre muitas, pois depende do que este provoca no leitor.

A compreensão se dá no encontro entre nossas crenças historicamente construídas e

o que nos é apresentado pela obra. Abrir-se para esse encontro é deixar-se transformar

deixando o texto ganhar voz ao nos reconhecermos nele.

A fala e a voz são o cerne do nosso tema, pois é na linguagem que nos constituimos

como sujeitos, uma vez que é preciso trazer o que precisa ser compreendido e interpretado

à fala, à linguagem.

É nessa perspectiva hermenêutica que se colocam as terapias construcionistas

sociais ou narrativas. “Dentro dessa nova concepção, o sistema terapêutico passa a ser

definido por aqueles que estão envolvidos em conversação em torno de um problema.

Esses sistemas não são determinados por uma estrutura ou papel social, mas por uma

dinâmica relacional organizada em torno de significados compartilhados, nos quais

residem os problemas pelos quais as pessoas buscam a terapia.” (Grandesso, p. 134). Nesse

sentido, amplia-se a visão de sistema, para além das fronteiras da família, inserindo-a no

contexto social onde a trama de significados se constrói.

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2.1. O Lugar do Terapeuta

2.1.1. A co-construção de narrativas

Fazer parte do sistema significa que o terapeuta seja co construtor das narrativas

construídas no contexto terapêutico, participando ativamente do processo dialógico. Com

isso queremos dizer que ele se inclui com todas as suas crenças teóricas, suas histórias de

vida. “Reconhecer que faz parte do discurso do cliente e que esse discurso o afeta de

alguma forma são ingredientes importantes que ajudarão o terapeuta a identificar de quem

fala, de que fala, como fala e para que fala.” (Lima, 2008, p. 69). Ou seja, nos enlaces

narrativos o terapeuta se inclui, ao falar do cliente. Identificar qual conteúdo foi

mobilizado torna-se um recurso importante para a ação terapêutica.

O encontro das histórias do cliente e do terapeuta pode ser ampliador, desde que o

terapeuta cuide com ética e responsabilidade do lugar que lhe foi atribuído. Isso implica

numa responsabilidade compartilhada, onde o terapeuta legitime o cliente como autor, e

este aceite a autoria do seu processo; e engajados neste objetivo, construam relatos que

validem a alteridade e a autonomia.

2.1.2. A disponibilidade da escuta

Não sabemos nada a respeito do cliente, a não ser que ele nos diga. Isso nos coloca

numa posição genuinamente curiosa e interessada pela história que ele tem a nos contar,

abrindo possibilidades para a escuta do novo, do inesperado, do ainda não dito, validando

as diversas versões das pessoas em conversação.

Muito diferente de quando ouvimos alguém com uma hipótese diagnóstica pronta

para que o relato trazido caiba dentro dela, o que a meu ver, compromete a escuta.

Nosso pretenso saber não nos dá acesso “às verdades” do cliente. Nas palavras de

Anderson (1997) “um terapeuta precisa arriscar a ser um aprendiz a cada novo cliente” (p.

135). (apud Rasera e Japur, 2007, p. 74).

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Segundo Grandesso (2000) o cliente é o especialista no conteúdo se suas histórias -

ele é quem sabe de sua vida, suas dores, seus desejos, seus amores. O terapeuta é o

especialista no processo, comprometendo-se em criar um contexto dialógico, engajando-se

na conversação, facilitando o fluir das histórias do cliente na primeira pessoa. Ao ser

convidado para ouvir o relato do paciente, o terapeuta participa do processo da

compreensão e construção de sentido, tornando possível a reedição do mesmo, bem como a

edição de outras histórias.

2.1.3. A mudança em processo

Entendemos nossas vidas a partir das histórias que ouvimos e que contamos sobre

nós. “Na melhor das hipóteses, não somos mais que co autores de uma narração em

permanente mudança que se transforma em nosso si mesmo. E como co autores dessas

narrações de identidade estivemos imersos desde sempre na história de nosso passado

narrado e nos múltiplos contextos de nossas construções narrativas.” (Goolishian e

Anderson, 1996, p. 193).

Nossas histórias de problemas, insucessos, fracassos e perdas não moram em nossas

mentes como marcas indeléveis e definitivas. São narrativas passíveis de serem re editadas

e re criadas na busca de novas alternativas, de diferentes significados para situações

vividas e imaginadas que possam ser geradoras de competências e agenciamentos.

“O papel, a especialidade e a ênfase do terapeuta são desenvolver um espaço

conversacional livre e facilitar um processo dialógico emergente no qual esta ‘novidade’

possa ocorrer. A ênfase não está em produzir mudança, mas em abrir espaços para a

conversação. Nessa visão hermenêutica, a mudança em terapia é representada pela criação

dialógica de novas narrativas. À medida que o diálogo evolui, a nova narrativa, as

‘histórias ainda não contadas’ são criadas mutuamente” (Anderson e Goolishian, 1998, p.

39).

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Portanto, a mudança se dá no próprio momento interativo das pessoas em

conversação. O êxito da terapia está na nova capacidade de ação narrativa que se

desenvolve ao lidar com os impasses trazidos como problemas geradores de sofrimento.

Na esteira desta corrente hermenêutica, juntaram-se os teóricos neopragmatistas¹

como Donald Davidson e Richard Rorty que realizaram uma leitura inovadora de Freud

tendo como referência a linguagem, apresentando o sujeito como “uma rede de crenças e

desejos”.

Nessa perspectiva, o inconsciente aparece como um conjunto alternativo do qual o

eu consciente não toma conhecimento, caracterizando um conflito psíquico. Davidson

recuperou do inconsciente freudiano as noções do psiquismo dividido e causa mental.

____________________ 1 “é crucial a compreensão do que se chamou ‘virada lingüística’, ou seja, a proposição de um pragmatismo assentado não mais na noção de experiência, (como procediam os autores clássicos), mas na linguagem”. (Bezerra, 2008, p. 15).

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III. UMA VISÃO GERAL DO INCONSCIENTE EM FREUD

Esse conceito, segundo Roudinesco, foi empregado na língua inglesa pela primeira

vez em 1751 significando inconsciência. No final do séc. XVII e início do séc. XVIII foi

introduzido na Alemanha como “um reservatório de imagens mentais e uma fonte de

paixões cujo conteúdo escapa à consciência” (p 375). Aparece na língua francesa em 1860

significando vida inconsciente.

Na psicanálise, o inconsciente, como Freud teorizou, teve dois momentos

importantes: a primeira tópica e a segunda tópica.

Neste capítulo, minhas principais referências são os verbetes do dicionário de

psicanálise de Elisabeth Roudinesco & Michel Plon (1998) e do vocabulário de Laplanche

& Pontalis (1979), pois pretendo esboçar um breve panorama geral sobre o conceito.

Segundo Roudinesco, o Inconsciente é definido por um lugar desconhecido pela

consciência: “uma outra cena”. A idéia da “dissociação da consciência” aparece nos textos

freudianos “Comunicação preliminar” (1893) e nos “Estudos sobre a histeria” (1895).

Essa dissociação ou dupla consciência era de grande importância para o tratamento das

histéricas, pois se entendia que elas atingiam a subconsciência ou automatismo mental

através do hipnotismo ou da sugestão.

Somente em 1896, numa carta a Fliess, Freud fala pela primeira vez sobre o

aparelho psíquico, formulando as instâncias constitutivas da primeira tópica.

Na primeira tópica o aparelho psíquico é constituído por três instâncias ou sistemas:

o inconsciente, o pré-consciente e o consciente.

Segundo Laplanche e Pontalis, Freud supôs a existência de grupos psíquicos

separados e acreditava que era pela ação do recalcamento infantil que se operava a

primeira clivagem entre o Inconsciente e o sistema Pré-consciente-Consciente. Chegou “a

admitir o inconsciente como “um lugar psíquico” especial que deve ser concebido não

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como uma segunda consciência, mas como um sistema que possui conteúdos, mecanismos

e talvez uma energia específica”. (p. 307).

Esses conteúdos inconscientes são os “representantes das pulsões” (as histórias, os

roteiros, as fantasias em que a pulsão se fixa). Eles tentam voltar à consciência (retorno do

recalcado) como realização de desejo. Buscam descarregar-se de seus investimentos

pulsionais, mas são impedidos de chegar ao sistema pré-consciente-consciente, pois

encontram pelo caminho a censura.

Mecanismos do processo primário, como a condensação, o deslocamento e a

figuração, são mobilizados nas formações de compromisso para apresentar esses conteúdos

de forma distorcida/deformada através dos sonhos, lapsos e atos falhos.

A energia psíquica é apresentada como investimento ou desinvestimento sobre as

representações (inscrições da pulsão). Essa explicação freudiana a partir da perspectiva

econômica procurou mostrar a coesão do sistema inconsciente enfatizando sua distinção

em relação ao sistema pré-consciente. “A energia inconsciente aplicar-se-ia a

representações por ela investidas ou desinvestidas, e a passagem de um elemento de um

sistema para outro produzir-se-ia por desinvestimento por parte do primeiro e

reinvestimento por parte do segundo.” (p. 308).

O processo secundário é articulado pelo pré-consciente e caracteriza-se por ser mais

estável e mais organizado. O riso, o humor, a comicidade por vezes faz irromper elementos

do processo primário no processo secundário.

A partir de 1920 a teoria do aparelho psíquico passa por uma nova reformulação

teórica que se denominou de segunda tópica. As instâncias agora são: o id, o ego e o

superego. (nomeação de Laplanche & Pontalis) ou: o isso, o eu e o supereu. (nomeação de

Roudinesco & Plon).²

____________________ 2 Adotarei a terminologia de Laplanche & Pontalis.

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Os limites entre as instâncias são menos rígidos. O inconsciente na sua forma

substantiva (como sistema) perde a exclusividade. Nesse momento o termo inconsciente é

usado na sua forma adjetiva, pois qualifica também as outras instâncias. Freud conclui que,

além do id, inteiramente inconsciente, partes importantes do ego e do superego são

também inconscientes, sendo impossível afirmar uma identidade entre ego e consciente de

um lado, e de outro, recalcado e inconsciente.

Segundo Laplanche e Pontalis, de um modo geral, as características do inconsciente

na primeira tópica são atribuídas ao id na segunda. E ainda, os conceitos de pré-consciente

e inconsciente agora não estão inter, mas intra sistemicamente colocados, visto que o ego e

o superego são em parte pré-conscientes e em parte inconscientes.

A teoria das pulsões também passa por mudanças significativas. O conflito

neurótico, que na primeira tópica se dava pela oposição entre pulsões sexuais e pulsões do

ego, na segunda tópica, as pulsões do ego são absorvidas na grande oposição pulsões de

vida e pulsões de morte.

O id torna-se a sede das pulsões de vida e pulsões de morte, constituindo-se em um

conjunto de conteúdos inconscientes, reservatório primitivo e desorganizado, sede de

paixões indomadas, enfim, um verdadeiro caos. “(...) somos vividos por forças

desconhecidas e indomáveis.”³

Cabe ao ego a difícil tarefa de intervir nesse caos, dominar e transformar essa

energia de forma sublimada encaminhando-a para os ideais da cultura. Essa nova fase de

reformulação teórica caracteriza-se pelo caráter dinâmico e dialético entre as instâncias,

pela importância e pela força das pulsões, lançando luzes sobre a complexidade do

aparelho psíquico e das relações humanas.

Ainda que de uma maneira muito geral, penso que esse primeiro panorama sobre o

conceito, já mostra como Freud concebe um sujeito cindido e contingente, tendo que lidar

com a pluralidade e diversidade de seus desejos muitas vezes conflituosos e incoerentes.

___________________________ 3 Citação de Laplanche e Pontalis da idéia desenvolvida por Groddeck. p.285

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IV. O INCONSCIENTE NA PRIMEIRA TÓPICA – UMA LEITURA DO ARTIGO O INCONSCIENTE (1915)

“Como devemos chegar a um conhecimento do inconsciente?”, pergunta Freud

logo no início do texto “O inconsciente” (1915). Ele mesmo responde que só podemos

conhecê-lo depois de sua tradução para algo consciente. E aponta o caminho... “A cada dia,

o trabalho psicanalítico nos mostra que esse tipo de tradução é possível. A fim de que isso

aconteça, a pessoa sob análise deve superar certas resistências – resistências como aquelas

que, anteriormente, transformaram o material em questão em algo reprimido rejeitando-o

do consciente.” E continua, “... tudo que é reprimido deve permanecer inconsciente; mas

logo de início, declaremos que o reprimido não abrange tudo que é inconsciente. O alcance

do inconsciente é mais amplo: o reprimido é apenas uma parte do inconsciente.” (p. 191)

Esta observação é importante, na medida em que, como vimos no capítulo anterior, em

1923 Freud formula a noção de id, que abrange o reprimido mas não se reduz a ele.

Prossegue afirmando que o processo de repressão/recalcamento tem a clara

finalidade de evitar que se torne consciente a idéia que representa o instinto/pulsão e não

sua destruição. Ela pode continuar produzindo efeitos e até mesmo chegar à consciência.

Justifica o conceito inconsciente, apresentando provas de sua existência.

Primeiramente, as lacunas, ou seja, aqueles atos psíquicos que só podem ser explicados

pela pressuposição de outros atos sem qualquer prova da consciência, tanto em pessoas

saudáveis ou como os sintomas psíquicos obsessivos nos doentes. Enfim, coisas que nos

acontecem que não sabemos de onde, nem como, sem nenhuma explicação, numa clara

alusão de que nem tudo que acontece na mente é conhecido pela consciência. E ainda, que

a maior parte do conteúdo da consciência permanece em latência por grandes períodos, ou

seja, psiquicamente inconsciente.

Nós só temos consciência dos nossos próprios estados mentais. Inferimos que

nossos semelhantes também tenham, por identificação. Isso é condição para a compreensão

de nós mesmos, através dos outros, porém, continua sendo mera suposição e não uma

certeza da nossa própria consciência.

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Ao fazermos essa inferência a nós mesmos, e Freud nos alerta para esse

procedimento, dizemos: “todos os atos e manifestações que noto em mim mesmo e que não

sei como ligar ao resto de minha vida mental, devem ser julgados como se pertencessem a

outrem” (p. 195), encaixando na cadeia de eventos mentais de outras pessoas o que nós

recusamos em nós mesmos. Esse processo não leva à revelação do inconsciente, mas a

suposição de uma segunda consciência que, no próprio eu do indivíduo, está unida à

consciência que se conhece.

Somos levados a acreditar que os diferentes processos mentais latentes inferidos

são independentes mutuamente, sem nenhuma ligação. Como se houvesse um número

ilimitado de estados de consciência desconhecidos por nós e desconhecidos entre si.

O interessante é que esses processos latentes que se apresentam estranhos a nós,

“vão diretamente de encontro aos atributos da consciência que nos são familiares” (p. 196).

Isso nos leva a mudar a inferência a respeito de nós mesmos, constatando não a existência

de uma segunda consciência, mas de “...atos psíquicos que carecem de consciência”.(ibid)

A percepção dos processos mentais inconscientes por meio da consciência é

semelhante à percepção do mundo externo por meio dos órgãos sensoriais. Acontece que

carregamos resíduos e traços de nossos antepassados que se manifestam e se misturam e

muitas vezes nos causam estranhamento. Kant já nos advertira de que “as nossas

percepções estão subjetivamente condicionadas”. Freud se refere ao animismo primitivo

“que nos fez ver cópias de nossa própria consciência em tudo o que nos cerca”. E nos

alerta a “...não estabelecermos uma equivalência entre percepções adquiridas por meio da

consciência e os processos mentais inconscientes que constituem seu objeto. Assim como o

físico, o psíquico, na realidade, não é necessariamente o que nos parece ser”. (p. 197)

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1. O caráter Topográfico, Dinâmico Econômico

Freud relata as fases do ato psíquico como uma descoberta importante da

psicanálise. A primeira fase do ato psíquico é inconsciente e pertence ao sistema Ics(4). Se

conseguir passar pela censura, chega à segunda fase, ou seja, ao sistema Cs. Se não, fica

reprimido e continua inconsciente.

Ao transitar do sistema Ics para o sistema Cs supõe-se um registro novo da idéia,

podendo também ser localizada numa nova localidade psíquica. Mas a qual registro

inconsciente continua a existir?

Freud introduz a hipótese de que uma idéia possa existir simultaneamente em dois

lugares no psiquismo, transitando livremente sem perder o primeiro registro, se não estiver

inibida pela censura. E exemplifica: não provoca nenhuma mudança, não remove a

repressão e nem seus efeitos o fato de comunicar ao paciente uma idéia reprimida por ele.

O que acontece agora é que o paciente tem a mesma idéia sob duas formas: a lembrança

consciente pela fala do analista e a lembrança inconsciente na sua forma primitiva.

Espera-se, pelo trabalho analítico, que a idéia consciente supere as resistências e

faça a ligação com a lembrança inconsciente. Freud conclui que “Ouvir algo e

experimentar algo são, em sua natureza psicológica, duas coisas bem diferentes, ainda que

o conteúdo de ambas seja o mesmo” (p. 202).

Fica claro, nesse sentido, o caráter topográfico e dinâmico ao conceber “dentro” de

qual sistema ou “entre” que sistemas o ato psíquico acontece. Freud esclarece também que

essa localização nada tem a ver com a posição anatômica da atividade mental, “embora

essa atividade esteja vinculada ao cérebro como a nenhum outro órgão”.

________________ 4. Essas abreviaturas foram introduzidas por Freud em A interpretação dos sonhos (1900), Edição Standard Brasileira, Imago editora, 1972.

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Ressalta que “todas as tentativas para, a partir disso, descobrir uma localização dos

processos mentais, todos os esforços para conceber idéias armazenadas em células

nervosas e excitações que percorrem as fibras nervosas, tem fracassado redondamente”. E

continua, “Nossa topografia psíquica, no momento, nada tem a ver com anatomia; refere-se

não a localidades anatômicas, mas a regiões do mecanismo mental, onde quer que estejam

situadas no corpo”. (p. 200/201).

Ou ainda, que nessa transição não se efetive um novo registro, mas uma

modificação de seu estado, ou seja, uma alteração de seu investimento. “Quando um

processo passa de uma idéia para outra, a primeira idéia conserva uma parte de sua catexia

e apenas uma pequena parcela é submetida a deslocamento. Os deslocamentos e as

condensações, tais como ocorrem no processo primário, são excluídos ou bastante

restringidos. Essa circunstância levou Breuer a presumir a existência de dois estados

diferentes de energia catexial na vida mental: um em que a energia se acha tonicamente

‘vinculada’ e outro no qual é livremente móvel e pressiona no sentido da descarga.” (p.

215/216).

Esse constante dispêndio de energia entre os sistemas para manter a idéia reprimida

e o acionamento dos mecanismos de fuga, proteção, descarga e formação de sintoma,

caracteriza o caráter econômico dos fenômenos psíquicos. Ou seja, paga-se um preço alto

para se mover razoavelmente nessa trama constitutiva.

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2. Idéias e Afetos

Podemos dizer que há Idéias conscientes e inconscientes, assim como, impulsos

instintuais, emoções e sentimentos inconscientes?

Um instinto nunca pode tornar-se objeto da consciência, somente a idéia que o

representa, mesmo no inconsciente. Só podemos saber algo sobre ele, se ele se fixar a uma

idéia ou se manifestar como um estado afetivo. “Não obstante, quando falamos de um

impulso instintual inconsciente ou de um impulso instintual reprimido, a imprecisão da

fraseologia é inofensiva. Podemos apenas referir-nos a um impulso instintual cuja

representação ideacional é inconsciente, pois nada mais entra em consideração”. (p. 203). 5

O que acontece, às vezes, é a repressão do seu representante ideacional e a ligação a

outra idéia mais suportável. Nesse caso o afeto nunca foi inconsciente, a idéia é que foi

reprimida.

Como conseqüência da repressão, Freud coloca três vicissitudes em relação ao

afeto: “ou o afeto permanece, no todo ou em parte, como é; ou é transformado numa quota

de afeto quantitativamente diferente, sobretudo em angústia; ou é suprimido, isto é,

impedido de desenvolver”. (p. 204). O afeto que “sobra” de um recalque e que não se liga a

outra idéia torna-se angústia. Esta é a primeira concepção freudiana da angustia.6

A finalidade da repressão é suprimir o desenvolvimento do afeto. Os afetos

somente inibidos e restaurados são chamados inconscientes, e potencialmente impedidos

de se desenvolver; é possível, no entanto, haver estruturas afetivas no sistema Ics. Que,

como outras, se tornam conscientes. Diferentemente de idéias inconscientes que, após a

repressão, continuam a existir como estruturas reais no sistema Ics. Isso porque “Idéias são

___________________________ 5 “Freud distingue bem dois elementos no representante psíquico da pulsão, a representação e o afecto, e indica que cada um deles conhece destino diferente: só o primeiro elemento (o representante ideativo) passa intacto para o sistema inconsciente. (“Dicionário Laplanche e Pontalis, Martins Fontes, 1988, p. 589). 6 Uma questão de tradução: a edição da Imago usa “ansiedade” ao invés de angústia; e “catexia” ao invés de investimento.

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catexias – basicamente de traços de memória -, enquanto que os afetos e as emoções

correspondem a processos de descarga, cujas manifestações finais são percebidas como

sentimentos” (p. 204/205)

É importante ressaltar também que a repressão pode inibir um impulso instintual

impedindo sua transformação numa manifestação de afeto. Ela não só retém conteúdos da

consciência, mas também cerceia a manifestação do afeto (como descarga motora). Freud

afirma “que na repressão ocorre uma ruptura entre o afeto e a idéia à qual ele pertence” (p.

206).

A mobilização do sistema Cs é importante na liberação do afeto à ação. Quando

isso não ocorre e o afeto procede diretamente do sistema Ics, manifesta-se na forma de

angústia, como correspondente dos afetos reprimidos. E o impulso instintual vai buscar

uma idéia substitutiva no sistema Cs. Esse é o caso da fobia: a angústia se liga a uma

representação consciente e “secundária”, como o cavalo no caso do pequeno Hans.

Na histeria de angustia, numa primeira fase, podemos constatar que o sujeito não

sabe o que teme. Ou seja, um impulso afetivo se encontra no inconsciente e exige acessar o

sistema Pcs. Mas a catexia do sistema pretendido inibe o impulso e a idéia rejeitada é

descarregada sob a forma de ansiedade. Numa eventual repetição há a tentativa de dominar

a ansiedade, buscando uma idéia substitutiva que se liga à idéia rejeitada, escapando à

censura. Esse mecanismo permite que a ansiedade seja racionalizada, passando a

desempenhar uma anticatexia para o sistema Cs., protegendo-o contra a irrupção da idéia

reprimida.

O pequeno Hans, por exemplo, que apresenta uma fobia de animal. Em primeiro

lugar, há a intensificação do impulso amoroso reprimido em relação ao pai (passagem do

sistema Ics para o sistema Cs). E em segundo, quando percebe o animal que teme, o cavalo

(uma fonte para a liberação da ansiedade, na medida em que fornece um objeto para a

angústia).

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No entanto, a repressão continua sua ação com a tarefa de inibir o desenvolvimento

da ansiedade proveniente da representação (ou objeto) substituta. O contato com a

realidade externa e sua ligação com a idéia substitutiva dá o sinal de alerta traduzida numa

sensação de desprazer, causando a retirada do investimento. A finalidade é resguardar a

idéia substitutiva, porém não consegue protegê-la da excitação instintual cujo elo é a idéia

reprimida. Um desvio de rota é então armado e a idéia substitutiva assume a representação

do reprimido cujas manifestações nas neuroses, encontram-se sob a forma de fobias. Ou

seja, “A fuga de uma catexia consciente da idéia substitutiva se manifesta nas evitações,

nas renúncias e nas proibições, por meio das quais reconhecemos a histeria de ansiedade.”

(p. 211).

Nas outras neuroses, pode-se destacar o papel desempenhado pelo contra-

investimento. Na histeria de conversão a inervação do sintoma irrompe quando a idéia

reprimida é catexizada e deixa de exercer ou diminui a pressão sobre o sistema Cs., ao ser

esvaziada por essa descarga. A descarga do sistema inconsciente passa à inervação

somática que leva ao desenvolvimento do afeto. “A porção assim escolhida para ser um

sintoma atende à condição de expressar a finalidade impregnada de desejo do impulso

instintual” (p. 212)

Quanto à neurose obsessiva, a anticatexia procedente do sistema Cs. se organiza

como uma forma de reação, provocando uma primeira repressão, o que favorece a irrupção

da idéia reprimida. A predominância da anticatexia e a ausência de descarga impedem o

sucesso do trabalho de repressão na histeria de angústia e na neurose obsessiva,

diferentemente da histeria de conversão.

3. Comunicação em rede

No núcleo do sistema Ics. estão os representantes instintuais carregados de desejo7.

Eles se comunicam entre si, não se contradizem, não havendo lugar para dúvidas, nem

certezas, muito menos negação; pois essa incumbência cabe ao trabalho de uma primeira

___________________________ 7 O inconsciente é também constituído por formações mentais herdadas – algo análogo ao instinto,

segundo Freud. (O.C. Vol XIV. Imago 1969 p. 223.)

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censura que permeia o transitar entre o Ics. e o Pcs 8. No entanto, o Ics. e o Cs. Mantêm

uma relação de cooperação, um influenciando e sendo influenciado pelo outro. No caso de

uma aparente incompatibilidade entre eles, catexias são mobilizadas para que uma

descarga aconteça.

A mobilidade e a intensidade das catexias se fazem presentes nas ações do

denominado processo primário que se dá pelo deslocamento, quando “uma idéia cede à

outra sua quota de catexia” e na condensação, quando “apropria-se da catexia de outras

idéias”. (p. 213)

Uma segunda censura entre o Pcs. e o Cs. é reconhecida quando conteúdos

inconscientes são rechaçados nessa fronteira ao tentarem ultrapassar a barreira da

consciência. Isto leva Freud a admitir que tornar-se consciente não implica só no ato da

percepção, sugerindo ser um avanço na organização psíquica, uma hipercatexia.

“Nas raízes da atividade instintual, os sistemas se comunicam entre si mais

extensivamente. Uma parcela dos processos que lá são excitados passa através do Ics.,

como que por uma etapa preparatória e atinge o desenvolvimento psíquico mais elevado no

Cs.; outra parcela é retida como Ics. Mas o Ics. é também afetado por experiências

oriundas da percepção externa. Normalmente todos os caminhos desde a percepção até o

Ics. permanecem abertos e só os que partem do Ics. estão sujeitos ao bloqueio pela

repressão.” (p. 222)

Um fato incontestável, segundo Freud, e que ele reconhece não ter sido mais

profundamente analisado, é que inconscientes de indivíduos podem se comunicar entre si

sem passar pelo Cs.

O conteúdo do Pcs. é constituído da vida instintual (via Ics.) e da percepção de

eventos externos. Como isso influencia o Ics., é uma questão. Sabemos, no entanto, que

___________________________ 8 Freud se refere ao sistema mais elevado (provável referência a um artigo extraviado sobre

consciência) às vezes como sistema Pcs., outras vezes como sistema Cs. (ibid p. 216)

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casos patológicos revelam divergências e cisão - isto é, conflito - entre os sistemas Pcs. e

Ics.

Ao sistema Pcs. cabe a tarefa de promover a comunicação entre os diferentes

conteúdos ideacionais para que se organizem e estabeleçam as possíveis censuras, bem

como para que se situem no tempo e no contexto de realidade.

As diferentes situações dos indivíduos ao longo de suas vidas, normais ou

patológicas, determinarão os conteúdos, as ligações, as permutas e as negociações

possíveis engendradas entre os sistemas.

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V. O INCONSCIENTE NA SEGUNDA TÓPICA – UMA LEITURA DA CONFERÊNCIA XXXI (1932)

Alguns anos se passaram, e Freud, na sua inquietante busca para entender os

fenômenos humanos, elabora uma nova teoria a partir dos anos 1920, por considerar que a

teoria existente não respondia a alguns dilemas e questões. Nesse momento ele passa a

analisar os processos psíquicos normais e patológicos, incluindo novas hipóteses para o

funcionamento do aparelho psíquico e das pulsões, sempre a partir de seu contato com os

pacientes, na tentativa de responder aos desafios da experiência clínica.

Escolhi como base para a apresentação dessa fase da teoria freudiana, o texto da

conferência XXXI “A dissecção da personalidade psíquica” (1932). Doze anos após o

início da nova formulação teórica, chamada de segunda tópica, ele faz uma conferência

apresentando para o público seu percurso, não se esquivando de falar do quão difícil é nos

defrontarmos com a complexidade das nossas ambivalências e contradições.

Nessa modalidade de exposição teórica, a linguagem freudiana é bem coloquial,

mas não menos complexa; propõe questões que ele parece antecipar por parte do

interlocutor e convida o ouvinte para participar da sua linha de pensamento.

Ele constrói um contexto para a escuta de um tema que, segundo ele, nos causa

estranhamento, porque derivado do reprimido e seus representantes perante o ego. Ele está

falando dos sintomas. E esses sintomas nos conduzem ao inconsciente, à vida instintual, à

sexualidade.

Vai tecendo durante todo o percurso da conferência as relações que se estabelecem

entre as três instâncias psíquicas: o ego, o id e o superego, levando em conta o caráter

tópico, dinâmico e econômico, que lhes dão vida e movimento.

“Os seres humanos adoecem de um conflito entre as exigências da vida instintual e

a resistência que se ergue dentro deles contra esta; e nem por um momento nos

esquecemos dessa instância que resiste, rechaça, reprime, que consideramos aparelhada

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com suas forças especiais, os instintos do ego...” (p. 35). Nessa relação entre forças

reprimidas e forças repressoras, encontra-se o ego, surpreso e atônito, muitas vezes sem

saber que caminho tomar.

Enfim, estamos nos propondo a investigar o ego, mas, ele, em sua própria essência

não é sujeito? Como pode ser transformado em objeto, pergunta Freud. Para concluir que o

ego pode sim, ser dividido, tomar-se a si próprio como objeto, uma parte colocar-se contra

a outra, observar-se, criticar-se, juntar-se novamente. Diferentemente do que acontece nas

doenças mentais, nas quais onde aparece uma fissura, uma brecha, pode haver uma ruptura,

tal como um cristal que se atirado no chão divide-se em pedaços segundo as linhas de

clivagens determinadas em sua estrutura.

Freud ressalta a importância desses pacientes que estão mais aptos para nos revelar

eventos sobre nossa realidade interna psíquica. Experimentam delírios de estarem sendo

observados, numa espécie de perseguição por estarem cometendo atos ilícitos, e por isso,

sujeitos à punição. Como seria “se em cada um de nós estivesse presente no ego uma

instância como essa que observa e ameaça punir”? (p. 36). A diferença é que nos doentes

mentais essa instância se tornou separada do ego e deslocada para a realidade externa.

A separação da instância observadora do restante do ego, com a função de observar,

julgar e punir, é a consciência moral. Porém, no jogo ambivalente de forças instintuais, a

consciência é somente uma de suas funções. Muitas vezes desejo fazer algo que me dá

prazer, mas a consciência intervém com censuras que me faz sentir remorso e culpa.

Essa instância existente no ego, cuja existência goza de certa autonomia, age

segundo suas próprias intenções e é independente para obtenção de sua energia, merece

“um nome que seja seu” (p. 36) – e Freud a chamou de superego.

Na sua relação com o ego, o superego pode ser muito cruel. No caso da melancolia,

por exemplo, por ocasião dos surtos melancólicos, quando o ego encontra-se numa

situação de extrema fragilidade, o superego entra em ação imprimindo-lhe humilhações,

recriminando-o por erros do passado; ameaça-o com castigos, numa clara evidência que

“nosso sentimento moral de culpa é expressão da tensão entre o ego e o superego” (p.37).

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Esta concepção da culpa como tensão entre essas duas instâncias foi largamente explorada

por Freud nos capítulos finais de “O mal estar.da civilização (1930)”, dois anos antes da

publicação desta conferência.

De onde vem essa consciência moral imposta pelo superego? Sabemos que as

crianças, nos seus primeiros anos de vida, são amorais e não têm inibições em relação aos

impulsos prazerosos. Os pais, ao ensinarem os filhos os valores da cultura, assumem essa

tarefa como uma responsabilidade, mas também como prova de amor: interditam a

realização de atividades autoeróticas por meio de ameaças e castigos, levando as crianças a

obedecê-los, não sem o terrível medo da perda desse amor.

Essa ansiedade moral nos leva a internalizar a autoridade parental num processo

de identificação9 que nos acompanhará pela vida adulta e que é provavelmente, segundo

Freud, a primeira e importante forma de vinculação a uma outra pessoa. E que nossa

consciência moral, que a parte mais “racional” e “civilizada” que temos em nós, é fruto de

uma situação afetiva: o medo da perda do amor dos pais.

O superego torna-se o legítimo herdeiro dessa instância parental, dessa vinculação

afetiva na infância, se a tramitação do complexo de Édipo foi bem elaborada. Ao renunciar

às catexias objetais depositadas em seus pais, os filhos se ligam a outros objetos, incluindo

a escolha amorosa.

Tais vínculos objetais se expandem para contextos sociais mais amplos como

escola, igreja e grupos diversos. Algumas pessoas ou líderes são escolhidos como modelos

ideais, na tentativa de cumprir exigências impostas do ideal do ego e garantir a imagem de

admiração e perfeição do amor originário, aspecto amplamente trabalhado por Freud no

texto de 1921, “Psicologia das massas e análise do ego”.

Freud ressalta também a questão da transmissão entre gerações. Os pais, ao

exercerem seu poder e autoridade, estão seguindo os ditames de seus próprios superegos,

transmitindo os valores e tradições herdados de seus pais e antepassados, o que nos dá um ___________________________

(9) “...a ação de assemelhar um ego a outro ego, em conseqüência de que o primeiro ego se comporta

como o segundo em determinados aspectos, imita-o e, em certo sentido, assimila-o dentro de si.” Conferência

XXXI (1932) p.38

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entendimento do comportamento social, ou seja, “a humanidade nunca vive inteiramente

no presente. O passado, a tradição da raça e do povo, vive nas ideologias do superego e só

lentamente cede às influências do presente, no sentido de mudanças novas; e, enquanto

opera através do superego, desempenha um poderoso papel na vida do homem,

independentemente de condições econômicas.” (p. 41)

1. O Superego e o Consciente – o Reprimido e o Inconsciente: não são coincidentes

Sobre o consciente nós sabemos alguma coisa. Sobre o inconsciente somos

obrigados a supor sua existência, embora não saibamos nada a seu respeito.

Descritivamente, “denominamos inconsciente um processo psíquico cuja existência somos

obrigados a supor – devido a algum motivo tal que o inferimos a partir de seus efeitos -,

mas do qual nada sabemos”, tal qual ao processo de uma outra pessoa, ...“exceto que, de

fato, se trata de um processo nosso, mesmo”. (p. 42)

No caso de um lapso, inferimos que a intenção estava presente e não foi levada a

cabo, sendo, portanto, inconsciente. Quando isso é revelado para a pessoa e ela reconhece a

intenção como familiar, demonstra ser temporariamente inconsciente. Se, no entanto repele

como algo desconhecido, permanece inconsciente.

Freud emprega o termo inconsciente em duas acepções. Primeiramente, para

designar algo que está apenas latente, que é transformada com facilidade em algo

consciente, chamou de pré-consciente. A outra, na qual essa transformação só ocorrerá

com um grande dispêndio de energia, podendo até não ocorrer, chamou de inconsciente.

Introduz ainda uma terceira espécie, na qual processos inconscientes importantes ocorrem

sem o conhecimento do ego no sentido dinâmico do processo, concluindo, portanto, que

partes do ego e do superego são inconscientes.

O Inconsciente perde o sentido sistemático que tinha na primeira tópica, deixa de

ser um sistema exclusivo, e Freud vai denominar de id a região da mente cuja principal

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característica é - “o fato de ser alheia ao ego” – identificando, nesse momento, o aparelho

psíquico em “os três reinos, regiões, províncias” (p. 43): o superego, o ego e o id.

Freud parece ter encontrado uma solução para o enigma do inconsciente, sente-se

aliviado... “possibilita a remoção de uma complicação”. (p. 43)

2. Comunicação em Rede

Esse novo “reino” do id nos é apresentado como um desconhecido. Por isso usamos

de metáforas para facilitar o nosso entendimento: caos, caldeirão fervilhante.

O que sabemos é que ele contempla a parte obscura, inacessível de nós mesmos, as

necessidades instintuais mais primitivas. Busca satisfazê-las de forma desorganizada,

sujeitando-se unicamente ao princípio do prazer, não possuindo ou se submetendo a

nenhum julgamento de valor.

A lógica não se aplica ao id; contradições são coexistentes não há lugar para

negativa e algo muito importante: os processos mentais não têm um reconhecimento do

passado, não sofrem alteração pelo tempo.

Freud se preocupou com esse dado, diz ter feito pouco uso teórico disso e conclui:

"Impulsos plenos de desejos, que jamais passaram além do id, e também impressões, que

foram mergulhadas no id pelas repressões, são virtualmente imortais; depois de se

passarem décadas, comportam-se como se tivessem ocorrido há pouco. Só podem ser

reconhecidos como pertencentes ao passado, só podem perder sua importância e ser

destituídos de sua catexia de energia, quando tomados conscientes pelo trabalho da

análise.” (p. 44/45)

O ego e o superego também possuem, em alguma medida, características primitivas

e irracionais. O que diferencia o ego do id e do superego é sua relação com o sistema Pré-

Cs/Cs., que é o órgão sensorial, a parte voltada para o mundo externo através da qual se

percebe a realidade externa, fazendo emergir a consciência. Acolhe não só as excitações

provenientes de fora, mas também as do interior da mente.

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Por ser o elo com o mundo externo, o ego tem a tarefa de representar suas

exigências ao id, esforçando-se para atendê-lo. “A relação do ego para com o id poderia ser

comparada com a de um cavaleiro para com seu cavalo. O cavalo provê a energia de

locomoção, enquanto o cavaleiro tem o privilégio de decidir o objetivo e de guiar o

movimento do poderoso animal. Mas muito frequentemente surge entre o ego e o id a

situação, não propriamente ideal, de o cavaleiro só poder guiar o cavalo por onde este quer

ir.” (p.46).

O ego possui a importante tarefa de convocar o id para o teste de realidade,

percebendo e controlando os instintos, visando relativizar o predomínio do princípio do

prazer. O ego também tem como função sintetizar, combinar e organizar os processos

mentais. “Para adotar um modo popular de falar, poderíamos dizer que o ego significa

razão e bom senso, ao passo que o id significa as paixões indomadas”. (p.46)

Por outro lado o ego é observado constantemente pelo superego, que cobra o

cumprimento dos padrões e valores impostos; e caso essas cobranças não sejam atendidas,

o superego pune o ego com um terrível sentimento de inferioridade e culpa.

O ego pressionado pelo id está vulnerável à ansiedade neurótica; confinado pelo

superego, está vulnerável à ansiedade moral; frustrado pela realidade está vulnerável à

ansiedade realística.

Transitar nesse universo não é uma tarefa fácil. Do ponto de vista dinâmico, o ego

dá sinais de fraquezas ao tomar do id quantidades adicionais de energia, usando para isso

métodos e subterfúgios, como, por exemplo, identificar-se com objetos reais ou

abandonados, assumindo para si um grande número de precipitados 10.

É importante admitir que muitas vezes se falha nessa empreitada. O grande desafio

da análise é “fortalecer o ego, fazê-lo mais independente do superego, ampliar seu campo

___________________________ 10 Este conceito me parece interessante, na medida em que dá idéia de movimento, de que os investimentos objetais que o ego toma para si, parecem estar espreitando o momento propício para se apresentarem.

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de percepção e expandir sua organização, de maneira a poder assenhorear-se de novas

partes do id. Onde estava o id, ali estará o ego.” (p.48).

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VI. A NOÇÃO DE INCONSCIENTE COMO GOLPE NARCÍSICO

Cabe ao ego assenhorear-se da sua parte obscura, estranha e desconhecida, enfim,

de sua contingência. Isso é um imperativo, não no sentido “conhece-te a ti mesmo”, mas

como diz Rorty, (1999) para nos tornarmos familiarizados com “nossas idiossincrasias

acidentais, os componentes irracionais em nós mesmos, que nos dividem em conjuntos

incompatíveis de crenças e desejos” (p. 199).

Isso nos remete ao artigo “Uma dificuldade no caminho da psicanálise”, publicado

por Freud em 1917. 11

Não se trata de uma dificuldade intelectual, diz ele, mas afetiva. Ao deparar-se com

algo desconhecido e estranho, o sujeito sente-se ameaçado e, resiste, defende-se, não se

deixando afetar pelo estranhamento. O afeto é compreendido como intensidade pulsional

que pode ser suprimida, deslocada ou transformada.

No artigo acima citado, Freud retoma o tema do narcisismo (1914), ressaltando

que, no início do desenvolvimento, toda a libido, toda a capacidade de amar, bem como as

tendências eróticas, são dirigidas a si mesmo, ou seja, o investimento é no próprio ego. No

processo do desenvolvimento, essa libido flui do ego para os objetos externos, podendo

retornar ao ego novamente. “O ego é um grande reservatório, do qual flui a libido

destinada aos objetos e para os quais regressa, vinda dos objetos. A libido objetal era

inicialmente libido do ego e pode ser outra vez convertida em tal. Para a completa

sanidade, é essencial que a libido não perca essa mobilidade plena.” (ibid, p.75)

Quando a libido fica retida no ego, instala-se o narcisismo12, ou seja, o investimento

no próprio eu. Porém, uma dose narcísica é importante para desenvolver a autoestima. É o

que nos faz acreditar que somos capazes de grandes ou pequenos feitos, e até mesmo

influenciar o curso dos acontecimentos, crença essa que mobiliza cientistas e anônimos

___________________________ 11 A presente tradução inglesa, com o título, “A Difficulty in the Path of Psycho-Analysis”, baseia-se

na publicada em 1925.

12 Referência à lenda grega, em que Narciso apaixona-se pela própria imagem refletida.

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desde a época dos povos primitivos.

Porém, no decorrer da história, com a evolução das pesquisas científicas, o homem

sofreu “três severos golpes”, diz Freud, que abalaram seu narcisismo, levando-o à reflexão

sobre sua vulnerabilidade e contingência.

O primeiro grande golpe foi o cosmológico. No início, o homem acreditou que a

terra era o centro do universo e que todos os planetas giravam ao seu redor. Se a terra

desempenhasse papel central e dominante do universo, ele, o homem poderia se considerar

o senhor do mundo.

Essa ilusão não durou muito. Acredita-se que já no século III a.C. havia afirmações

de que a terra era menor que o sol e movia-se ao redor dele. Porém, o golpe fatal veio no

século XVI, com Copérnico, quando essa descoberta se propagou. E o homem teve que

reconhecer que não era o centro do cosmos.

O segundo golpe, o biológico. No totemismo primitivo, o homem dava ao animal

um lugar de prestígio atribuindo a si mesmo uma ascendência animal. Deuses eram

representados por cabeças de animais e reverenciados. Esses resquícios aparecem nas

histórias e contos infantis, sendo o animal muito familiar às crianças que lhes atribuem

vozes e emoções humanas. No entanto, o homem foi construindo para si uma posição de

dominação sobre o reino animal. A crença numa posição privilegiada pela ascendência

divina leva o homem a romper os laços entre sua natureza e a do reino animal. Charles

Darwin, na segunda metade do século XIX, pôs fim a mais essa pretensão humana. O

homem, além de não ser superior nem diferente dos animais, deve a eles sua descendência.

O terceiro golpe, “talvez seja o que mais fere”, comenta Freud, é o psicológico.

Sentindo-se acuado frente à realidade externa, ameaçadora e hostil, o ego constrói para si

um lugar de pretensa segurança dentro da própria mente. O que o leva a acreditar que sua

percepção interna, a consciência, lhe dará notícias de tudo que ameaçar sua integridade e,

consequentemente, impulsos e ações indesejáveis serão impiedosamente rechaçados.

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No entanto, o funcionamento da mente é bem mais complexo. E o ego pode nutrir a

ilusão de que fica sabendo de tudo; porém muitas vezes a informação que chega à

consciência não é confiável.

Freud vai descrevendo uma hierarquia de instâncias, um labirinto de impulsos, uma

multiplicidade de instintos antagônicos e incompatíveis que se relacionam entre si e com o

mundo externo, que nos remete à sua teoria do aparelho psíquico da segunda tópica,

explicitada na década seguinte. Noções que, de alguma maneira, já estavam presentes

nesse texto.

Enfim, o que esse texto afirma é que “a vida dos nossos instintos sexuais não pode

ser inteiramente domada” e “que os processos mentais são, em si, inconscientes, e só

atingem o ego e se submetem ao seu controle por meio de percepções incompletas de

pouca confiança”, (p. 78) jogando por terra a idéia do sujeito seguro de seus atos e senhor

de seu destino. Isso equivale dizer, portanto, “que o ego não é senhor da sua própria casa.”

(p. 78)

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VII. O DESCENTRAMENTO E A CONTINGÊNCIA DO SUJEITO – UM PONTO DE VISTA PRAGMÁTICO

Na visão de Rorty, Freud faz uma escolha teórica pelo mecanicismo e não pela

metafísica, nem pelo platonismo herdeiro de Descartes que concebe a mente como a

faculdade de apreender a realidade objetiva, independente da mediação da linguagem.

O mecanicismo no sentido de que máquinas não possuem uma essência, uma

natureza que precisa ser descoberta e que nos indica que caminho seguir; ao contrário, a

máquina é um conjunto de peças interdependentes que se comunicam, se desgastam e

precisam de reparos; assim como as nossas combinações biológicas, nossos mecanismos

psíquicos que muitas vezes entram em colapso e precisam de tratamento.

Nesse sentido os fundamentos da terapia sistêmica se aproximam da noção

freudiana de funcionamento do sujeito em conflito, cindido, descentrado. Porém, Freud

parece operar já na cibernética de segunda ordem, quando os sistemas humanos, regidos

por leis próprias de instabilidade e imprevisibilidade, já não se submetem à regulação e ao

controle postulados pela primeira cibernética.

Como diz Rorty, “Transformando as partes platônicas da alma em parceiros

conversacionais umas para as outras, Freud fez pela variedade de interpretações do passado

de cada pessoa o que a abordagem baconiana da ciência e da filosofia fez pela variedade de

descrições do universo como um todo. Ele nos fez ver narrativas alternativas e

vocabulários alternativos como instrumentos de mudança, ao invés de como candidatos

para o retratar correto de como as coisas são em si mesmas” (1999, p. 202).

A grande novidade que Freud traz para as teorias sobre o humano e seu psiquismo é

a noção do inconsciente.

Nesse trabalho estou propondo uma reflexão sobre essa contribuição para a terapia

sistêmica, propondo diálogos possíveis, especificamente nesse viés do construcionismo

social que privilegia a linguagem como ação constitutiva dos sujeitos em contextos sociais.

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Diferentemente de estrelas e átomos, neurônios e glândulas, que são indiferentes

aos significados e irresponsáveis quanto aos efeitos que produzem, a noção de

inconsciente leva o sujeito a se implicar em suas ações, ao apontar a infinita variedade de

sentidos experimentados como resultado se suas ações. Incita a buscar vocabulários que dê

uma coerência ao vivido de tal forma que o sujeito se reconheça nas suas contradições e

idiossincrasias. Ajuda a compreender as causas e as razões que determinam sua

experiência subjetiva.

Nesse aspecto, a visão de sujeito freudiano como uma multiplicidade de instintos,

sem fronteiras definidas entre a normalidade e a psicopatologia, aproxima-se da definição

de sujeito na perspectiva pragmática da linguagem.

Escolho como referência para essa análise o neopragmatista Richard Rorty, que se

inspira em outro, Ronald Davidson, para definir o sujeito (Bezerra, 1994, citando Rorty)

como “Uma rede de crenças e desejos que deve ser postulada como causa interior do

comportamento lingüístico de um organismo singular. E continua, “não se trata de um

sujeito que possui e observa essas crenças e desejos; o sujeito é essa rede”. (ibid p. 157)

Uma rede tecida em processo contínuo, na aquisição ou no abandono de crenças, na busca

pela coerência e consistência na trama ao costurá-la a outras crenças.

Para Freud a mente é compreendida também de representações ou traços de

memória, marcas que a experiência imprime. Quando a idéia, a representação é muito

dolorosa, o eu a separa do afeto, reprimindo-a. Como efeito, o eu não tem palavras para

descrever ou dar sentido à experiência. Por isso a técnica da associação livre, o convite à

palavra com a possibilidade da evocação da representação reprimida no inconsciente

através dos fios associativos da memória, na tentativa de dar-lhe sentido, incluindo-a na

rede da consciência. Ou seja, nomear, dar palavra ao afeto.

Os conflitos acontecem e coexistem nos subconjuntos da rede, sem uma coerência

interna entre eles. “Ela corresponde à idéia de uma subjetividade clivada, cindida e

operando permanentemente sob o modo do conflito e de estabilizações provisórias.” (ibid,

p. 157). Sujeito, portanto, passa a designar todos os eus que buscam organizar essa rede,

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todas as tentativas de articulação de crenças e desejos, cuja pluralidade de histórias

individuais e coletivas se impõe numa montagem subjetiva na qual ele se reconheça.

“Algumas crenças - e desejos - podem mostrar-se mais hegemônicas, mais

duráveis, outras são abandonadas. Algumas estão mais facilmente disponíveis à

consciência porque mais conformes às expectativas narcísicas e culturais, outras podem

apenas ser inferidas ou postuladas a partir de comportamentos estranhos cujo sentido é

enigmático – como nas causas inconscientes de uma fobia ou uma compulsão”. (ibid, p.

159).

Uma nova visão dada por Freud ao inconsciente, segundo Rorty, é a de que esses

conteúdos inconscientes não são sombrios ou repulsivos, brutais ou obtusos, mas parceiros

conversacionais das nossas identidades conscientes; por sinal uma visão bastante otimista e

civilizada, e cita Rieff: “Freud democratizou o gênio ao dar a todos um inconsciente

criativo”. ( Rorty, 1999 p. 199). Ou seja, podemos contar com ele para dar conta das nossas

ambigüidades e contingências.

Recorramos à forma como Davidson elabora essa análise da relação entre o físico e

mental e como ele encara o desafio de não enveredar pela concepção do dualismo

cartesiano.

Segundo Bezerra (1994), Davidson defende a idéia “de que todo evento mental é

idêntico a algum evento físico, mas nem todo evento físico é idêntico a um evento mental.”

(p. 159). O evento físico é o que pode ser descrito unicamente em termos físicos e um

evento mental implica uma intencionalidade. Não se pode compreender qualquer evento

mental de um sujeito “fazendo abstração do restante das intenções, medos, expectativas e

outros estados mentais que compõem a rede de crenças e desejos que é aquele sujeito em

particular” (p.160). É o que ele chama de caráter holístico do mental, opondo-se ao

materialismo reducionista e ao behaviorismo lógico que reduz termos mentais a

comportamentos físicos.

Outra questão importante defendida por Davidson é a tese de que razões podem ser

causas, ou seja, o sujeito responde lingüísticamente a diferentes causas. E o que determina

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esse ou aquele comportamento são os eventos físicos ou mentais, internos ou externos,

micro ou macro estruturais; no entanto, ao descrever em termos de crenças e desejos (em

vez de sinapses e hormônios), estamos usando um vocabulário intencional.

Razão entendida como uma explicação do agente para um evento ou atitude que o

torna plausível para ele mesmo. Marzagão chama de motivos, e resulta que motivos são

embebidos de desejos. E continua, “O analista não ouve causas, mas motivos; esses se

revelam via palavras ditas, palavras não-ditas e palavras malditas”. (1996, p. 36)

Causa é quando uma explicação prescinde do ponto de vista do agente, ou seja, “os

fenômenos naturais estão postos, o ser humano passa por eles”. (ibid, p. 35)

Quando falamos de conflitos e ambivalências, ou seja, de eventos mentais ou

psicológicos, usamos um vocabulário intencional e não uma descrição de eventos físicos.

Ou seja, eles podem ser determinados “por causas lingüísticas que não são razões, isto é,

por crenças e desejos que determinam o sujeito sem que este tenha como descrever sua

própria ação como determinada por aquela causa.” (Bezerra, 1994, p. 162)

Descrever uma tentativa de suicídio por meio de explicações de distúrbios

neuroquímicos não elucidará as razões para essa ação. O inconsciente pode ser descrito

aqui “como uma referência ao conjunto das causas lingüísticas que não são razão para

aquilo que causam”. (Bezerra, 1994, p 162/163).

“Davidson se refere a isso dizendo que “forças cegas estão na categoria do não-

racional, não do irracional” (Bezerra, citando Davidson, 1994, p. 162), “Então, ele destaca

que a força de dizer que o ser humano às vezes se comporta irracionalmente está em que

ele ou ela às vezes exibe um comportamento que não pode ser explicado por referência a

um único conjunto de crenças e desejos.

“Finalmente, ele conclui que a razão de ser da ‘divisão’ do self entre consciente e

inconsciente é a de que esse último pode ser visto como um conjunto alternativo,

inconsistente com o conjunto familiar que nós identificamos com a consciência, ainda que

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suficientemente coerente internamente para contar como uma pessoa” (Rorty, 1999,

citando Davidson, p. 197).

Nesse sentido a descrição do inconsciente de Rorty citada acima e ainda “enquanto

parceiro sensível, extravagante, que trabalha nos bastidores e que nos nutre com nossas

melhores tiradas espirituosas” (p. 200) diferencia-se do inconsciente freudiano apresentado

na segundo tópica como um caos obscuro e desorganizado, labirinto de contradições que

coexistem que não conhece a negação e não sofre alteração do tempo.

No entanto, Rorty destaca a necessidade de discernir a afirmação de Freud de que

(...) “nosso intelecto é uma coisa frágil e dependente, um brinquedo e um instrumento de

nossos instintos e afetos,” como uma expressão de que a razão é escrava das paixões, (...)

“de sua nova e interessante afirmação de que a distinção consciente-inconsciente está além

das distinções humano-animal e razão-instinto.” (1999, p. 200). E sugere pensar que duas

almas residem em nosso ser. Uma, mais ou menos sã, e uma mais ou menos louca, ao invés

de uma humana e outra bestial.

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VIII. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Iniciei esse Curso de Especialização em Teoria Psicanalítica com algumas

inquietações e perguntas que emergiram da clínica e me conduziram para o tema dessa

monografia.

Confesso que termino, não com respostas, mas com questões, e com algumas

possibilidades de ampliação teórica e clínica.

O que me instigou a busca de diálogos e interlocuções com a psicanálise foi a

possibilidade de agregar aos pressupostos da terapia sistêmica a noção de inconsciente.

Acredito que o sistema (casal, família ou grupo), assim como o sujeito

individualmente está imerso numa trama de significados que se constrói no convívio e no

diálogo com os outros.

A Terapia Sistêmica no viés do construcionismo Social se propõe a busca pelo

entendimento dos processos de como as pessoas descrevem o mundo. A linguagem como

ação, como uma prática social que nos constitui.

Porém, não acredito que nas nossas histórias sejam apenas os acasos que nos

oferecem o contexto das descrições que fazemos de nós, do outro e do mundo e que

constituem nossa subjetividade. Incluem razões, nem sempre claras e evidentes, das

escolhas que fazemos ao longo de nossas vidas; sejam elas amorosas, profissionais, ou

qualquer outro tipo de escolha. Ou seja, o estranho, ao mesmo tempo familiar, incitando e

causando o sujeito. Freud diria que são atos psíquicos que carecem de consciência.

Essas questões me incitaram a revisitar o caminho da minha formação em terapia

familiar como uma maneira de construir sentido para a minha inquietação; e talvez por isso

eu tenha feito uma retrospectiva histórica tão longa, pelo que me desculpo com o leitor.

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Na ocasião, pude trazer o repertório das experiências profissionais anteriores na

rede pública de saúde, com indivíduos, famílias e grupos, cuja abordagem era apenas de

apoio, orientação, e encaminhamento para recursos sociais.

A abordagem agora era um contexto terapêutico no qual terapeuta e paciente

participam da construção de narrativas onde a pluralidade de vozes possa ser ouvida na

busca de histórias ainda não contadas.

E onde esse meu processo se enlaça com a psicanálise? Acasos, escolhas, estranho,

familiar, pluralidade de vozes, histórias ainda não contadas... Tudo isso foram ingredientes

que me levaram à busca de diálogos e interlocuções com a psicanálise, ficando claro nesse

percurso, a necessidade de incluir a noção de inconsciente na clínica.

Pelo o que pude ler e estudar em Freud, ressaltando que é apenas um recorte, não

encontrei nenhuma incompatibilidade e objeção nesse sentido. Até mesmo porque o que

Freud nos oferece para lidar com a complexidade humana é a possibilidade de fazer

perguntas, lidar com imprevistos, ambigüidades e contingências. Desde que, na clínica,

tenhamos uma teoria que nos sustente.

Não é tarefa fácil fazer a articulação proposta. Meu objetivo foi apenas o de iniciar

uma possibilidade de diálogos teóricos e interlocuções clínicas. Para mim foi um exercício

útil e instigante. Nesse caminho foram abertas algumas trilhas que poderão levar a outros

lugares.

Penso ser fundamental ter a clareza de quais andaimes teóricos orientam a prática

clínica. É importante que esses andaimes sejam baseados, organizados e compartilhados

em crenças que se perguntam continuamente sobre as singularidades e sobre o mundo em

contexto, sem a pretensão de ser o saber melhor ou o mais verdadeiro.

No final deste meu trajeto, não poderia deixar de mencionar, ainda que

superficialmente, o tema da interpretação e da transferência/contratransferência, conceitos

extremamente importantes na obra de Freud.

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Na visão pragmática, tal como exposta por Marzagão [1996], poderíamos descrevê-

los como jogos de linguagem vividos pela dupla analista/analisando num contexto

específico da análise ou da terapia, pelo terapeuta/cliente (indivíduo, casal, família ou

grupo). (ver Construcionsimo social – lugar do terapeuta). Nesse caso, os envolvidos no

jogo não são somente o analista e o analisando, mas uma trama de relações transferenciais

dos diversos atores presentes na cena terapêutica.

É mais libertador, propõe o autor citado acima, refletir sobre qual o jogo de

linguagem o paciente joga com o analista, que convites são formulados naquele

determinado contexto, para aquele interlocutor específico: é o jogo histérico? O obsessivo?

O perverso? Ou o psicótico? “Então, o analista escuta jogos, tenta entender as regras que

estão sendo propostas, acolhe ou recusa; ao assim fazê-lo, interpreta.” (p.97)

Na visão pragmática, portanto, o discurso não representa objetos ou

acontecimentos; ele é concebido como uma ação vivida na sua interação com o

interlocutor. Tem a intenção de chegar ao interlocutor e causar um efeito. É recorrente na

atualização de clichês sempre disponíveis (compulsão à repetição).

O terapeuta, ao fazer a interpretação, adota o papel de parceiro de jogo,

possibilitando à compulsão neurótica de um discurso recorrente, uma identificação

transferencial; “suporta as transferências ambivalentes quando as virtualiza e, no momento

preciso, dissolve a atadura do paciente. Dessa maneira, o terapeuta se constitui em

instrumento de conhecimento não via exclusão, mas antes pela inclusão controlada de sua

subjetividade.” (Marzagão, 1996, p. 83).

Seria interessante aprofundar o tema da transferência e da interpretação, incluindo a

contribuição de outros autores, mas por conta da limitação do tempo e da proposta desse

trabalho, fica como questão a ser explorada futuramente.

Devo concluir dizendo que o exercício dessa pesquisa, o contato com as produções

dos diversos autores e, principalmente com a obra de Freud, mobilizou meu interesse por

outros temas e despertou o prazer pela pesquisa e pela escrita.

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Deparei-me com um Freud aberto ao novo e ao inesperado, embora ele tenha

tentado transformar a psicanálise em uma ciência. Mas foi exatamente essa ação fecunda

do seu criador de estar conectado aos imperativos e demandas de seu tempo que propiciou

a propagação de seu arcabouço teórico. E é isso que nos dá a possibilidade de estar ainda

hoje propondo essas interlocuções.

Enfim, acredito que teorias são mapas, guias para a ação. E como tais, devem ser

preservadas, modificadas ou abandonadas como respostas aos desafios que são chamadas a

enfrentar. Freud fez isso ao longo de sua vida... E nos deixa o convite para aceitar esse

desafio.

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