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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP Amanda Lobão Torres Garantismo, Ativismo e Cooperação e(m) Crise Mestrado em Direito São Paulo 2016

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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

PUC-SP

Amanda Lobão Torres

Garantismo, Ativismo e Cooperação e(m) Crise

Mestrado em Direito

São Paulo

2016

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Amanda Lobão Torres

Garantismo, Ativismo e Cooperação e(m) Crise

Dissertação apresentada à Banca Examinadora

da Pontifícia Universidade Católica de São

Paulo, como exigência parcial para obtenção

do título de MESTRE em Direito Processual

Civil, sob a orientação do Prof. Dr. William

Santos Ferreira.

São Paulo

2016

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Banca Examinadora

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À minha mãe, pelo exemplo de vida. Ao

meu pai, pela influência na escolha da

profissão e pela pressão que sua

memória representa.

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Agradecimento especial à bolsa do CNPQ e ao apoio do FUNDASP.

Processo. n.:

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AGRADECIMENTOS

Minha eterna gratidão:

Aos dois príncipes de minha vida, Miguel e Marcus, que me

fizeram perceber que o melhor da vida consiste na simplicidade

do dia-a-dia.

Aos meus irmãos e aos problemas que juntos enfrentamos,

ambos engenheiros da verdadeira fraternidade que hoje

possuímos.

Ao meu cunhado e minha sogra, que me escolheram como

componentes de sua família e me auxiliaram, sem qualquer

obrigação, com meu Miguelzinho nos momentos em que tive

que me afastar.

Aos que se foram, aos que ficaram, e aos que foram ficando com

a benção de Deus.

Ao CNPQ e à FUNDASP pelo imenso suporte aos meus

estudos, bem como à Adolfo Alvarado Velloso e à Universidade

Nacional de Rosário, pelo engradecimento na Maestría

argentina.

Ao meu orientador, William Santos Ferreira, pela instrução e

oportunidade, bem como ao Professor João Batista Lopes e

Eduardo José da Fonseca Costa, pelos conselhos.

À minha sócia Larissa Campos Machado, pelo companheirismo

e cuidado de sempre. Suas gentilezas jamais serão esquecidas.

À Letícia Arenal e Silva, por compartilhar questionamentos,

afirmações, felicidades e medos.

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Os positivistas têm uma solução simples: o mundo

deve ser dividido em o que podemos dizer de forma

clara e o resto, sobre o que é melhor passar em

silêncio. Mas pode alguém conceber uma filosofia

mais inútil, visto que o que podemos dizer

claramente equivale a quase nada? Se nos omitirmos

sobre tudo que não é claro, nós provavelmente

ficaríamos com tautologias completamente

desinteressantes e banais.

(Werner Heisenberg)

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RESUMO

O presente estudo aborda o garantismo e as discussões que o permeiam num contexto

nacional e internacional. Passa pelas necessárias considerações à teoria de Luigi

Ferrajoli abordando-o desde sua obra “Direito e Razão” até publicações mais recentes

que demonstram um posicionamento menos contundente no que tange a tese positivista

da separação entre direito e moral. Em seguida, o estudo direcionou-se ao garantismo no

processo civil apresentando as imensas contribuições dessa doutrina para o combate ao

ativismo judicial. Este fora, aliás, histórica e juridicamente apresentado. E então,

considerando que a doutrina processualista brasileira tem recentemente apontado o

modelo cooperativo como um modelo adequado ao Estado Democrático de Direito, uma

visão garantista às considerações cooperatistas ou colaborativas intermediaram a

discussão, localizando o inquisitivismo neste novo modelo, em contraposição ao

sistema acusatório do garantismo processual. Por fim, após o contato com afirmações

garantistas acerca da possibilidade de aplicação de um texto sem interpretação e tendo

em vista também o apego desta doutrina à semântica, foram postas considerações da

hermenêutica filosófica.

Palavras-chave: garantismo, garantismo processual, ativismo judicial, cooperação,

colaboração, modelo cooperativo.

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ABSTRACT

The garantism theory is an existent and important topic surrounding today’s procedural

discussions, both national and international context. So, this study goes through the

necessary considerations to Luigi Ferrajoli theory approaching it since his "Law and

Reason" to more recent publications demonstrating a less forceful position regarding the

positivist thesis of the separation between law and morality. Then the study is directed

to the garantism in civil proceedings presenting the immense contributions of this

doctrine to combat judicial activism. This was, in fact, historically and legally

presented. Since the Brazilian proceduralist doctrine has recently appointed the

cooperative model as the appropriate one for the democratic constitutional state,

considerations garantists were necessary regardin the cooperative or collaborative

doctrine, especially concerning ideological inquisitivists roots to this new model, as

opposed to the adversarial system defended by procedural garantism. Finally,

considering garantists statements about the applicability of a text without interpretation,

and also in view of the attachment of this doctrine with semantics, philosophical

hermeneutics considerations were put, so were also conclusions regarding democratic,

social and liberal paradigms.

Key-words: garantism, procedural garantism, judicial activism, cooperation,

collaboration , cooperative model.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ……………………………………………………………………. 12

1. O GARANTISMO: DO INÍCIO DO VOCÁBULO AO PROCESSO

CIVIL............................................................................................................................. 19

1.1. As primeiras aparições da expressão e os três significados de Luigi

Ferrajoli......................................................................................................................... 19

1.2. Luigi Ferrajoli e sua teoria do garantismo: aprofundando a análise dos três

significados de “garantismo” ...................................................................................... 21

1.3. O sistema garantista: axiomas materiais e processuais ................................ 36

1.4. O garantismo de Ferrajoli e o dilema da dupla “verdade”: quatro limites de

aquisição e controle da verdade fática e da verdade jurídica e o raciocínio

judicial........................................................................................................................... 39

1.5. A teoria garantista ferrajoliana e a herança juspositivista: o problema da

discricionariedade judicial e a separação entre direito e moral .............................. 53

1.6. O Garantismo processual civil ........................................................................ 65

2. ATIVISMO JUDICIAL .................................................................................. 94

2.1. Por que falar sobre isto? ................................................................................. 94

2.2. O caráter patológico do “ativismo judicial” num Estado Democrático de

Direito ........................................................................

2.3. Neoconstitucionalismo e Pós-Positivismo: Analisando a diferença entre

texto e norma, a interpretação do direito não mais como ato revelador da vontade

da lei ou do legislador, e o adeus ao silogismo ......................................................... 104

2.4. Judicialização da política e ativismo judicial .............................................. 110

2.5. Ativismo versus garantismo .......................................................................... 115

3. A COOPERAÇÃO PROCESSUAL COMO MODELO ADEQUADO AO

ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO ............................................................ 133

3.1. Do processo liberal ao processo social .......................................................... 133

3.2. Apresentando a cooperação/colaboração .................................................... 138

3.2.1 A colaboração em Daniel Mitidiero.............................................................. 139

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3.2.2 O que é isto? – A cooperação processual em Lenio Streck ........................ 142

3.2.3 A cooperação em Lucio Grassi ..................................................................... 144

3.2.4 O princípio da cooperação no Direito Processual Civil Português na análise

de Fredie Didier Jr. ................................................................................................... 145

3.2.5 A cooperação em seu perfil comparticipativo e o contraditório como

garantia de influência e de não surpresa com as contribuições de Dierle Nunes..151

3.3. A cooperação processual e o garantismo processual .................................. 158

4. APORTES HERMENÊUTICOS DIALOGANDO COM O GARANTISMO

E SUAS CRÍTICAS AO ATUAL ESTÁGIO DO PROCESSO CIVIL

BRASILEIRO ............................................................................................................ 169

4.1. Da hermenêutica clássica à filosófica................................................................. 169

4.2. O paradigma pós-positivista, a teoria das fontes do direito, a diferenciação

entre princípios e regras e a distinção entre princípios gerais do direito e princípios

constitucionais............................................................................................................. 174

4.3. “Questão de fato” e “questão de direito”: a distinção persiste na visão pós-

positivista? .................................................................................................................. 194

4.4. Afinal, e a verdade? O que diz sobre ela a hermenêutica filosófica?

...................................................................................................................................... 196

4.5. O caminhar metodológico do processo civil ................................................ 204

4.6. O processo civil no Estado Democrático de Direito: a visão liberal do

garantismo processual e a materialidade da Constituição democrática .............. 211

CONCLUSÃO ........................................................................................................... 222

BIBLIOGRAFIA ...................................................................................................... 239

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INTRODUÇÃO

O presente estudo nasceu de curiosidades geradas em sua Autora pelas

apresentações expostas no “Encuentro Panamericano de Derecho Procesal Garantista”

de Azul, em 2014. O ativismo era tão benquisto por esta que, apesar de seus pontos

negativos, não se enxergava melhor solução. Era concebido, diga-se, como um mal

necessário para se fazer justiça. Não se via, neste ponto, nenhum indício de

autoritarismo. Pura ilusão!

As exposições congressuais em Azul e os questionamentos direcionados à

própria Autora após breve pergunta que fez aos expositores com o encorajamento de

Hugo Botto foi o “start” para o início do aprofundamento sobre o garantismo processual

e a sua não concepção da prova oficiosa. Perguntando “Porque o juiz era imparcial

quando determinava a produção de prova oficiosa se não sabia o resultado”, a inquieta

resposta de Adolfo Alvarado Velloso e a tradução de Eduardo Fonseca da Costa como

“clássico argumento da doutrina brasileira” foram fundamentais para o estímulo ao

enfrentamento da questão.

A viagem de volta para casa com as efusivas brincadeiras de Glauco

Gumerato Ramos foram, ademais, o puxão de orelha para o despertar ao “pensar

garantista”.

Afinal, se o constitucionalismo contemporâneo que chegou ao Brasil apenas

no final da década de 80 estabelecia um novo paradigma, ou ao menos proporcionava as

bases para a introdução de um novo, a permanência de velhas formas de interpretar e

aplicar o direito deviam ser, no mínimo, questionadas. Aqueles pontapés foram

decisivos para se buscar compreender os distintos pensamentos, em que pese não saber,

naquele momento, o que se encontraria pela frente.

As considerações expostas aqui não se resumem a uma abordagem pontual

sobre o garantismo (até porque seu próprio “criador” o concebeu com três significados),

pois centrou-se no objetivo de colocar em xeque as afirmações comuns que carregam o

rótulo de garantista (às vezes até com tom pejorativo, vinculando o garantismo

processual ao formalismo) resultantes da banalização do termo no Brasil e da falta de

uma séria e necessária compreensão da extensa obra de Luigi Ferrajoli e Adolfo

Alvarado Velloso. Claro que o estudo, como resultará ao final compreendido, não

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concorda com a integralidade do pensar destes garantistas processuais, contudo,

sobressai-se entre as teorias que se intitulam como uma opção democraticamente válida.

Em sendo assim, o presente estudo aborda primeiramente o início da

expressão “garantismo”, que, como se verá, se deu no âmbito filosófico-político da

escola de Charles Fourier (1112 – 1837) sob uma conotação social. O vocábulo teve seu

uso fortalecido na linguagem filosófico-jurídica italiana do segundo pós-guerra já com o

sentido de proteção das garantias constitucionais das liberdades fundamentais, após a

abordagem com enfoque político por Guido de Ruggiero.

Aliás, como se verá no construir histórico deste estudo, a Segunda Guerra

Mundial produziu uma ruptura paradigmática de grandes influências no direito.

No século XVIII, o garantismo aparece como doutrina de limitação à

discricionariedade potestativa do juiz.

Já em 1970, o termo é designado como caráter próprio das constituições

democrático-liberais e também com o sentido de doutrina político-constitucional.

Entretanto, a pesquisa demonstra que a consolidação do termo garantismo é

decorrência direta das atividades e pesquisas científicas desenvolvidas por Ferrajoli

desde a época em que era juiz vinculado à Magistratura Democrática e professor da

faculdade de Direito da Universidade de Camerino, em especial a partir da publicação,

em 1989, de “Diritto e Ragione: Teoria del Garantismo Penale”.

Foi com a tradução desta obra para o espanhol (Derecho y Razón) em 1995

e para o português em 2002 (Direito e Razão) que o modelo garantista passou a

pertencer ao léxico jurídico e tornou-se progressivamente comum entre os juristas.

Em “Direito e Razão” o autor introduz o garantismo apresentando seus três

sentidos: (i) como modelo normativo, que, sob o plano político designava uma técnica

de tutela idônea a reduzir a violência e fortalecer a liberdade e sob a perspectiva jurídica

como um sistema de vínculos impostos à função punitiva do Estado para garantia dos

direitos dos cidadãos, (ii) como teoria do Direito, pelo que no decorrer deste estudo se

fará breves digressão acerca do juspositivismo de maneira que leitor algum deixe de

compreender o chamado “positivismo crítico” que Ferrajoli confessa ter se inserido,

para no final apresentar o pós-positivismo, diferenciando-o do neoconstitucionalismo,

afinal, a teoria do processo não está imune a rupturas que se dão no campo dos

paradigmas filosóficos e (iii) como filosofia política.

Nesse sentido, em que pese ter concebido inicialmente como uma teoria

liberal do Direito Penal, o garantismo NÃO SE APLICA SOMENTE AO DIREITO

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PENAL! Esse é, aliás, um equívoco encontrado fortemente na doutrina brasileira, o que

provavelmente decorre de uma análise superficial da obra Direito e Razão, trabalho do

autor que teve maior impacto no Brasil. Não foi à toa que entrou no século XX como

verdadeiro clássico.

Mas tal obra, apesar de discutir o sistema penal, o faz como pretensão para

constituir uma teoria geral do garantismo, o que se afirma especialmente tendo em vista

que a quinta parte da obra é intitulada “Para uma teoria Geral do Garantismo”.

Ainda nesse sentido, Norberto Bobbio observa já no prefácio do livro que a

pretensão do autor é a elaboração daquilo que denomina teoria geral do garantismo cuja

premissa fundamental é a antítese que atravessa a história da civilização: liberdade

versus poder.

Repisando tal assertiva, o próprio autor do Garantismo, Luigi Ferrajoli, em

entrevista concedida a Gerardo Pisarello e Ramón Suriano, em 1997, na Universidad

Carlo III de Madrid, afirma que a palavra garantismo, nova no léxico jurídico, foi

introduzida na Itália nos anos 70 no âmbito do direito penal, mas é estendida a todo o

sistema de garantias dos direitos fundamentais.

Feita essa observação, destaca-se com precisão que a teoria garantista de

Ferrajoli apresenta dois elementos constitutivos e que são importantes para sua

abordagem: um relativo à definição legislativa e outro à comprovação jurisdicional,

correspondentes respectivamente às garantias legais/substanciais/materiais e às

garantias processuais/formais (no caso penal, do sistema punitivo que fundamentam).

Isto deixa claro que o modelo penal garantista sustenta a insuficiência de

uma análise que se faça apenas sobre o plano legislativo, considerando necessário o

plano judicial pela constatação de espaços inevitáveis de discricionariedade dispositiva

que assume como inafastáveis.

E foi por pressupor uma dupla verdade, a real e a formal,

concomitantemente com a prevalência no direito criminal do princípio da estrita

legalidade e a suposta exigência, neste ramo, de um nexo mais forte entre a verdade da

motivação e a validade da decisão que em qualquer outro tipo de atividade judicial, que

o autor optou por situar-se aí o seu laboratório de pesquisa.

Resta clara a assunção da dupla verdade no Autor. Mas esse dualismo

persiste?! O contexto ativista demonstra a exacerbada utilização do argumento da

“verdade real” como legitimador de decisões judiciais calcadas em verdades subjetivas

e individuais. Assim, o contraponto necessário entre ativismo e garantismo, torna

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importante a abordagem sobre a busca da verdade no processo. O que se quer chamar

atenção é para o modo como, no campo processual, a dogmática jurídica discute a

questão da verdade, problemática que tem reflexos profundos na gestão da prova.

Nesse tocante, grande parcela jurídica ainda considera o juiz como

destinatário da prova, não o processo, concepção que bem representa o autoritarismo

judicial no Brasil, ainda mais quando acompanha uma motivação concisa e resumida a

uma série de ementas seguida o item “auto-legitimante” do “do livre convencimento”,

que mais se traduzi na convicção pessoal do julgador e leva a uma instrução processual

baseada na certeza interna do magistrado.

Onde se assume haver “verdade real”, há “princípio do livre

convencimento”, mas em contrapartida, como saber que “o que se obteve” é a versão

“real”? Bem, se o conjunto probatório não é suficiente, que venham as provas adicionais

oficiosamente produzidas pelo juiz para que este alcance a certeza de sua decisão, certo?

Afinal, juiz que não se sente convencido não pode decidir sem investigar os fatos,

afirmam: tem que decidir com base no que efetivamente ocorreu, o oposto se estará

permitindo injustiças e erros jurídicos. Mas como seria possível controlar o grau de

“estar-se auto-convencido o juiz” se esse pode simplesmente investigar adicionalmente

e sempre?

É nesse contexto que, no capítulo terceiro, já com as necessárias

considerações ao garantismo (tanto ferrajoliano quanto alvaradiano) e ao ativismo,

apresentar-se-á o Novo Código de Processo Civil brasileiro e o que se tem chamado de

modelo cooperativo ou colaborativo, doutrina que o propor como adequado ao Estado

Democrático de Direito. Far-se-á uma abordagem dos autores brasileiros que se

entregam ao tema com especificidades, como Lucio Grassi, Daniel Mitidiero, Fredie

Didier Jr. Lenio Streck e Dierle Nunes, um a um, para que o leitor perceba as

divergências entre eles.

E ao final deste capítulo, faz-se uma abordagem garantista dos vestígios

inquisitivos apontados à cooperação, bem-vinda ao estudo. Considerações à prova

oficiosa e à preocupação garantista de que o agir probatório de ofício do juiz já carrega

em si a tentativa de uma hipótese a ser confirmada, ao dever judicial em apontar os

erros da petição inicial, ao ônus da prova como necessidade a ser considerada e ao

controle de constitucionalidade em processo que envolva discussão a respeito de direito

transigível serão apresentadas.

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Nesse contexto, note-se que o Novo Código de Processo Civil, como

herança do Código de Processo Civil de 1973, mantém dispositivos processuais que

atrelam o processo à “verdade”. Em contraposição, o garantismo processual aponta

como perniciosa a argumentação jurídica que recorre à “verdade” e a “justiça”. Em

realidade, essa linha argumentativa esconde muitas vezes concepções próprias do

intérprete que busca um fundamento para o que já decidiu.

Nesta direção, o último capítulo abordará considerações pós-positivistas e

hermenêuticas que se entende como enriquecedoras do debate. Abordar-se-á a diferença

entre texto e norma, a (imperceptível) busca pela vontade da lei ou do legislador, a

sentença como processo silogístico, a impossibilidade de subsistência de afirmações,

inclusive, garantistas, de aplicação sem interpretação, a diferença entre princípios gerais

do direito e princípios constitucionais, a (in)existência da dicotomia entre questão de

fato e questão de direito, dentre outras.

Veja-se: não se intenta de modo algum colocar uma pedra no debate,

apontando o que é certo ou o que é errado. Pelo contrário. A discussão sobre

determinados temas que aqui se põe merecem aprofundamentos muito superiores ao

aqui expostos. O que se pretendeu, em realidade, foi alargar um debate que muitas vezes

aponta o garantismo processual como formalista ou prejudicial ao Estado de Direito. O

garantismo, por óbvio, não “quer” que o processo seja inverídico ou injusto, mas ele vê

o poder como prejudicial, e é por esta visão que molda uma teoria visando a garantia

dos direitos fundamentais.

Ocorre que o garantismo processual de Adolfo Alvarado Velloso, como o

reconhece, situa-se no paradigma liberal. Preocupa-se, assim, com um Judiciário

intervencionista e a separação de Poderes. Ocorre que, por outro lado, a história

brasileira concebe um Estado Democrático de Direito que além de valorizar o jurídico,

desloca seu centro de decisões para o Judiciário.

Se no paradigma liberal o Direito era ordenador centralizando-se na

legislação, no Estado Democrático de Direito, o Direito passa a ser transformador,

tensionando-se no Poder Judiciario.

Isto é, a noção deste paradigma põe uma jurisdição que guarda os valores

materiais positivados na Constituição “Cidadã” de 1988 podendo-se falar, inclusive,

numa redefinição da separação das funções.

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A postura intervencionista contrapõe-se à postura absenteísta do modelo

liberal. Ou seja, na falta de cumprimento de políticas públicas surge um Judiciário para

a realização dos direitos previstos e não efetivados.

Olhar a Constituição de 1988 sob as lentes do modelo liberal é manter-se

num paradigma não condizente com a história brasileira e significa ignorar o próprio

texto da carta constitucional que, além de inaugurar o Estado Democrático de Direito,

aponta para a construção de um Estado Social de índole intervencionista, devendo-se

pautar-se por políticas públicas distributivistas.

O estudo do tema precisa conjugar garantismo (como técnica de limitação e

de disciplina dos poderes públicos) juntamente com democracia (tanto democracia

substancial ou social de efetivas garantias quanto uma democracia formal ou política em

que o Estado político representativo baseia-se no princípio da maioria como fonte de

legalidade). Como o resultado dessa união tem-se um Estado de Direito que reflete não

somente a vontade da maioria, mas os interesses de todos, num sentido contra-

majoritário. Ocorre que maiorias eventuais retiram as conquistas da sociedade inúmeras

vezes.

E em que pese ter de se preocupar com a “reserva do possível” ou o

“financeiramente possível”, como parece fazer o garantismo processual, assumir e falar

deste problema não pode levar à ineficácia jurídica de direitos reconhecidos.

Ocorre ao condenar o ativismo judicial e a visar a estrita separação de

poderes, o garantismo processual acaba, numa visão liberal, ignorando os ditames

constitucionais. Afinal, difícil dizer o que cabe ao legislador e o que cabe ao juiz

constitucional. Isso nada tem a ver com a defesa da prova oficiosa, note-se!

O errado é entender que por meio da prova oficiosa, da busca da verdade

real, da justiça no caso concreto, está-se lidando somente com a efetivação de direitos

constitucionalmente previstos e não implementados pelo Executivo e/ou Legislativo

(falta de regulamentação, por exemplo).

Do contrário, o Direito se configurará em um mero exercício de poder, e de

poder excludente, exercido por poucos.

Em se tratando da história brasileira, a Constituição de 1988 estabeleceu o

marco de um novo paradigma no direito brasileiro e por ele inegavelmente derrogou o

inquisitivismo, de maneira que deveria ser suficiente para se afastar o denominado

“princípio da verdade real”. Por que, depois de uma intensa luta pela democracia e pelos

direitos fundamentais, enfim, a comunidade jurídica, tanto na doutrina quanto na

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jurisprudência, continuam a delegar ao juiz a apreciação discricionária das provas ainda

com supedâneo na “busca da verdade real”? De fato este princípio têm sustentado

“verdades solipsistas”.

Ocorre que se a “verdade”, que conduziria a uma decisão “justa”, carrega

tantos subjetivismos quanto as afirmações que sobre ela fazem, como é possível saber o

que é ou não é justo em um caso?

Não se duvida que no caminho da superação desse sujeito deve-se ingressar

no paradigma da intersubjetividade, o que implica admitir que a compreensão exige

suspensão de pré-juízos e que uma decisão não pode ser produto da “vontade”. E por

isso serão feitas as abordagens hermenêuticas e pós-positivistas: o que se diz sobre um

texto é inseparável de quem o diz, pois a partir de suas pré-compreensões o intérprete

produzirá o sentido do texto, evidentemente que sem liberdade para dizer o sentido que

melhor lhe pareça, mas aquele que esteja em conformidade com o próprio texto

constitucional.

Acredita-se que não se romperá com a discricionariedade e o inquisitorialismo,

além de suas derivações como o decisionismo e o ativismo, somente no âmbito da

dogmática jurídica desprovida das discussões necessárias à viragem linguística e

ontológica linguística. Apenas dogmaticamente é impossível olhar o novo com os olhos

do novo.

Pelo menos, reconheça-se, o Novo Código de Processo Civil extirpou dos

dispositivos o “livre convencimento”, extinguindo a contraditoriedade existente quando

se defendia este no bojo de um sistema acusatório, do mesmo modo que se faz

descabida a defesa da verdade real com o repúdio ao sistema inquisitório.

E para tanto, divergências com Luigi Ferrajoli e Adolfo Alvarado Velloso são

necessárias já que o presente estudo se encontra em paradigmas distintos. Afinal, se está

a falar de intersubjetividade, ou seja, da relação sujeito-sujeito em prevalência da

sujeito-objeto, é preciso ao menos desconfiar para se distinguir da parcela ainda

trabalha com os modelos liberais-individualistas.

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1. O GARANTISMO: DO INÍCIO DO VOCÁBULO AO PROCESSO CIVIL

1.1 As primeiras aparições da expressão e os três significados de Luigi Ferrajoli

Embora a expressão garantismo possa ser remetida a períodos anteriores, sua

incorporação no universo jurídico é tão recente quanto seu uso corrente nas línguas

neolatinas, conforme, aliás, sinaliza Luigi Ferrajoli em entrevista concedida a Gerardo

Pisarello e Ramón Suriano, em 1997, na Universidad Carlo III de Madrid.

A história demonstra tratar de palavra criada e codificada semanticamente

no âmbito filosófico-político da escola de Charles Fourier (1112 – 1837) que utilizava o

termo “garantisme” para designar um estado da evolução civil podrômico, ou seja,

passagem necessária para o alcance do ideal supremo de uma perfeita e harmônica

sociedade comunitária, funcionando como um sistema de segurança social que procura

salvaguardar os sujeitos mais fracos, fornecendo a eles as garantias dos direitos vitais

por meio de um plano de reformas que diz respeito tanto à esfera pública quanto à

privada1.

A expressão pode ser também remetida ao século XVIII e especificamente à

figura de Mario Pagano, para quem o garantismo seria, de fato, uma doutrina voltada à

limitação da discricionariedade do juiz.

Já nas primeiras décadas do século XX, a designação dada ao termo pelo

italiano Guido De Ruggiero em “Storia Del liberalismo in Europa-1925” assumiu uma

conotação política indicativa da liberdade do indivíduo frente ao Estado, isto é, de

garantias da liberdade.

E foi com o sentido de proteção das garantias constitucionais das liberdades

fundamentais que se fortaleceu o termo na linguagem filosófico - jurídica italiana do

segundo pós-guerra.

Nos anos sessenta, seguindo esse viés semântico, o termo ingressou no

constitucionalismo inglês, tornando-se, finalmente, de uso habitual.

1 IPPOLITO, Dario. O garantismo de Luigi Ferrajoli. Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica

e Teoria do Direito (RECHTD), p. 34 – 41, Jan – Jun 2011.

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20

Na década de 70 a expressão foi introduzida no âmbito do direito penal

italiano, podendo ser estendida a todo o sistema de garantias dos direitos fundamentais2

e passando a estar presente em todos os principais dicionários, período em que o termo

aparece semanticamente apontado da seguinte maneira:

Em primeiro lugar, o caráter próprio das constituições democrático-liberais

mais evoluídas, consistente no fato de que essas estabelecem instrumentos

jurídicos sempre mais seguros e eficientes (como o controle de

constitucionalidade das leis ordinárias) com a finalidade de assegurar a

observância das normas e dos ordenamentos por parte do poder político

(governo e parlamento). Em segundo lugar, é a doutrina político-

constitucional que propõe uma sempre mais ampla elaboração e introdução

de tais instrumentos. Poder-se-ia parafrasear: (i) garantismo como dimensão

específico do constitucionalismo rígido, (ii) garantismo como teoria

normativa do constitucionalismo rígido.3

Veja-se, então, a ligação do termo com as teorias democráticos, liberais e

constitucionalistas. Ainda, o “garantismo” consta como:

1) Característica própria das mais evoluídas constituições democrático-

liberais, consistente no fato de elas estabelecerem dispositivos jurídicos cada

vez mais seguros e eficientes a fim de garantir a observância das normas e do

ordenamento por parte do poder político; 2) Doutrina político-constitucional

que propugna uma cada vez mais ampla elaboração e introdução de tais

dispositivos no ordenamento jurídico.4

A consolidação do vocábulo, entretanto, advém das pesquisas e atividades

de Luigi Ferrajoli, principalmente pela acepção comum vinculada à justiça penal

divulgado internacionalmente em sua obra “Diritto e ragione: Teoria del garantismo

penale (1989)”5 que fora traduzida para o espanhol em 1995 e para o português em

2002, tonando-se crescentemente comum entre os juristas.

Em “Direito e razão – teoria do garantismo penal”6, Ferrajoli designa três

significados à palavra:

Primeiramente, o autor concebe garantismo (1) como modelo normativo de

direito ideal/utópico, o qual, sob o ângulo epistemológico, é um sistema cognitivo ou de

poder mínimo; já, numa perspectiva política, é uma técnica de tutela idônea que visa

reduzir a violência e fortalecer a liberdade; enquanto que, juridicamente, é um sistema

2 TRINDADE, André Karam. Raízes do garantismo e o pensamento de Luigi Ferrajoli. Disponível em:

http://www.conjur.com.br/2013-jun-08/diario-classe-raizes-garantismo-pensamento-luigi-ferrajoli.

Acesso em: 20/04/2015. 3 IPPOLITO, Dario. apud Grande dizionario della língua italiana de Salvatore Battaglia.

4 Idem. Ibidem.

5 Idem. Ibidem.

6 A obra Direito e Razão é, até o momento, a obra que maior impacto teve na doutrina brasileira. Há,

também de grande importância, o seu trabalho intitulado “Principia iuris: teoria Del diritto e della

democrazia”, publicada em 2007.

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21

de vínculos impostos à função punitiva do Estado para garantia dos direitos dos

cidadãos.

Assume o termo também (2) como teoria do direito consistente numa teoria

jurídica que considera a distinção entre validade e efetividade7 e entre “existência” e

“vigor” das normas.

Por fim, (3) é expressão concebida também como uma filosofia do direito e

crítica política com heranças iluministas.

Com esses significados, garantismo se torna, num primeiro momento, a

teoria liberal do direito penal. Observa-se, contudo, que a parte final da obra retro-

mencionada trata de uma teoria geral do garantismo cujo prefácio de Norberto Bobbio

enfatiza a intenção do autor na formação de uma teoria geral do garantismo, conforme,

aliás, frisa Ferrajoli em diversas entrevistas suas.

Ainda, esta intenção do autor consta também na publicação de estudos como

na obra “Principia iuris: teoria Del diritto e della democrazia” publicada em 2007 no

qual o jusfilósofo italiano trabalha de maneira mais abrangente temas relativos à teoria

do direito e do Estado.

Compreensível, assim, que este garantismo tem olhos à proteção dos

indivíduos oprimidos pelo poder punitivo do Estado a partir do estabelecimento de

limites à legislação, para que esta tutele direitos, e à jurisdição, para que esta seja uma

atividade limitada ao ius dicere, à afirmação da lei, à subsunção dos fatos estabelecidos

pelas normas legislativas.

Cabe agora, partindo sempre do entendimento que o garantismo procura

resguardar o indivíduo do Estado poderoso e opressor, aprofundar o conhecimento

acerca da teoria de Luigi Ferrajoli.

1.2 Luigi Ferrajoli e sua teoria do garantismo: aprofundando a análise dos três

significados de “garantismo”

- Garantismo como modelo de direito

O modelo normativo garantistaepistemologicamente, é fruto da tradição

jurídica do iluminismo e do liberalismo. Utilizar-se-á no presente estudo modelo como

forma ou conjunto, às vezes por ser alcançada, outras por já predominar em dado tempo,

espaço e lugar.

7 O que se quer dizer, explica-se, é que pode haver uma diferença entre o grau de garantismo conforme a

lei e o grau de sua efetividade, ou seja, da observância prática das garantias constantes na lei.

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22

O que se perceberá é que os diversos princípios mencionados no modelo

garantista ferrajoliano configura um esquema epistemológico de identificação do desvio

penal, dirigido a assegurar, em comparação com outros modelos de direito penal

historicamente conhecidos, o máximo grau de racionalidade e confiabilidade do juízo e,

portanto, de limitação do poder punitivo e de tutela da pessoa contra a arbitrariedade.

Esta teoria do garantismo penal baseia-se em dois elementos constitutivos:

um relativo à definição legislativa e o outro à comprovação jurisdicional do desvio

punível.

No âmbito penal, o primeiro destes elementos, o relacionado com a

definição legal, sustenta-se no princípio da legalidade estrita, na determinação abstrata

do que é punível, assim proposta como técnica legislativa específica dirigida a excluir,

enquanto arbitrárias e discriminatórias, as convenções penais referidas não a fatos, mas

a pessoas (estas, portanto, com caráter constitutivo, não regulamentar). Em síntese,

estabelece que “auctoritas, non veritas facit legem” (princípio constitutivo do

positivismo jurídico).

Nesse sentido, não é a verdade, a justiça, a moral, nem a natureza, que

confere relevância penal a um fenômeno, mas somente a autoridade, a lei, e esta não

pode qualificar como penalmente relevante qualquer hipótese indeterminada de desvio,

como fazem aquelas que perseguem os socialmente perigosos e outros semelhantes.

Este primeiro elemento é visto por duas condições, uma formal e a outra empírica.

No que tange a condição formal ou legal, equivalente ao princípio da mera

legalidade, o desvio penal é aquele formalmente indicado pela lei como pressuposto

necessário para a aplicação de uma pena (nulla poena et nullum crimen sine lege)

desgarrada de juízos de valor, de entendimentos pessoais sobre a imoralidade ou

anormalidade social da conduta, até porque funciona como garantia da submissão do

juiz à lei configurando evidente direcionamento aos julgadores. Corresponde ao

conhecido princípio da reserva legal.

Por sua vez, a condição empírica ou fática corresponde ao princípio da

estrita legalidade que consagra que a definição legal do desvio punível deve levar em

consideração apenas aspectos objetivos do comportamento que se deseja punir por meio

de figuras empíricas desprovidas de subjetividades sobre eventuais características do

autor do comportamento punível. Funciona como garantia do caráter deôntico da

proibição ao excluir qualquer configuração extralegal, sendo assim claramente

direcionado ao legislador.

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Já o segundo elemento da epistemologia garantista, o relativo à

comprovação jurisdicional do desvio punível, é o cognitivismo processual na

determinação concreta do desvio punível e que afeta a motivação dos pronunciamentos

jurisdicionais. Resta assegurado pelo princípio da estrita jurisdicionariedade que exige a

verificabilidade das hipóteses acusatórias e a sua comprovação empírica. Nesse sentido,

pela teoria entende-se que comportamentos como “ato obsceno” ou “desacato”

correspondem a figuras delituosas cuja identificação judicial devido à indeterminação

de suas definições legais remete a discricionárias valorações do juiz, muito mais do que

a provas.

Deve-se ter em vista que Ferrajoli conceitua a liberdade do juiz como uma

escolha arbitrária e meramente individual.

Note-se que seu enfoque, contudo, ao contrário do que se poderia imaginar,

não condiz integralmente com a conhecida concepção irracional por meio da qual

inexistem critérios identificáveis para a valoração das provas e para a qual valorar é uma

experiência espiritual e subjetiva do julgador a respeito da qual não se pode conhecer.

Ferrajoli concebe a verificabilidade até certo ponto já que a valoração discricionária da

prova realiza-se racionalmente até alcançar a medida do puro espaço de arbítrio,

conforme aborda os espaços irredutíveis de discricionariedade.

Isto porque as figuras legais com indeterminação de suas definições acabam

por remeter a discricionárias valorações do juiz (mais do que a provas) de maneira que o

princípio da estrita jurisdicionariedade visa a que, o juízo tenha caráter recognitivo (de

direito) das normas e cognitivo (de fato) dos fatos por ela regulados, mas jamais

constitutivo.

Entretanto, Ferrajoli já sabia que a atividade judicial não é mecânica e que a

ideia de um silogismo perfeito é uma ilusão, e por isso reconheceu a existência de

espaços de poder insuprimíveis na atividade judicial afirmando que a verificação, tanto

jurídica quanto fática, nunca é absolutamente certa e objetiva.

Isso porque, da mesma forma que a interpretação da lei na verificação

jurídica nunca é exclusivamente recognitiva, sendo sempre fruto de uma escolha prática

das hipóteses interpretativas alternativas (por mais aperfeiçoada que seja o sistema de

garantias materiais), a verificação fática exige decisões argumentadas de maneira que a

prova empírica dos fatos não é uma atividade apenas cognitiva, pois ao final representa

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uma conclusão mais ou menos provável de acordo com o processo indutivo,

consagrando assim um poder de escolha sobre as hipóteses explicativas alternativas8.

Tais espaços de poder, de acordo com Luigi Ferrajoli, constituem o poder

judicial. Enumera-os em quatro: (i) o poder de indicação, de interpretação ou de

verificação jurídica; (ii) o poder de comprovação probatória ou de verificação fática;

(iii) o poder de conotação ou de compreensão equitativa (esses três constituintes do

poder de cognição e de certa forma irredutíveis e fisiológicos); e (iv) o poder de

disposição ou de valoração ético-política, produto patológico de desvios e disfunções

politicamente injustificadas dos três primeiros tipos de poder9.

Assumindo a impossibilidade de controle integral dos procedimentos

probatórios e interpretativos, a fórmula encontrada por Ferrajoli é a de alcance de um

controle máximo de tais procedimentos por meio desses dois elementos constitutivos de

sua teoria já mencionados: a estrita legalidade e a estrita jurisdicionariedade, integrantes

do sistema garantista ou cognitivo (SG).

Nesse sentido, as preocupações legislativas não são suficientes para a tutela

dos indivíduos de maneira que se deve preocupar adicionalmente com a jurisdição, pois,

para que aqueles princípios sejam satisfeitos é necessário que também o juízo penal,

além da lei, careça de caráter constitutivo e tenha caráter recognitivo das normas e

cognitivo dos fatos por elas regulados. Assim, para tal concepção, o pressuposto da

pena deve ser a comissão de um fato univocamente descrito e indicado como delito.

Mas ora, se o requisito da estrita jurisdicionariedade pressupõe logicamente o da estrita

legalidade, para satisfazê-lo parece necessário que a lei determine tudo quanto seja

possível, deixando aos que julgam o menos possível.

Mas relembre-se que há dois modelos de legalidade logicamente

diferenciados (em sentido formal e substancial), por vezes distinguidos por Ferrajoli

com referência exclusiva ao direito penal, mas posteriormente identificado de modo

generalizado a duas fontes de legitimação: (i) o princípio da mera legalidade, que se

limita a exigir que o exercício de qualquer poder tenha como fonte a lei, traduzindo-se

como condição formal de legitimidade, e (ii) o princípio da estrita legalidade, que exige

que se condicione a legitimidade do exercício de qualquer poder por ela instituído a

determinados conteúdos substanciais.

8 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: Teoria do Garantismo penal. São Paulo: Editora Revista dos

Tribunais, 2002, p. 33/34. 9 Ibidem, p. 33/35.

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Nesse contexto, note-se que o garantismo resta direcionado à conotação

funcional do moderno “Estado de Direito” concebido tanto um sentido formal, lato ou

débil, no qual qualquer poder deve ser conferido pela lei e exercitado nas formas e com

os procedimentos por ela estabelecidos, quanto num sentido forte, ou estrito, ou

substancial, no qual qualquer poder deve ser limitado pela lei que lhe condiciona não

somente as formas, mas também os conteúdos.

E então, em outras palavras, o “Estado de Direito” é associável a duas

noções que variam consoante os clássicos duplos sentidos do princípio da legalidade: (i)

a legalidade em sentido lato, ou validade formal, que exige que todos os poderes sejam

legalmente predeterminados bem como suas formas de exercício; e (ii) a legalidade em

sentido estrito, ou validade substancial, que exige, outrossim, a observâncias de

condições substanciais, ou seja, que lhe sejam legalmente preordenadas e circunscritas,

mediante obrigações e vedações, as matérias de competência e os critérios de decisão.

Pois bem, se de acordo com a noção de legalidade em sentido lato ou

validade formal se encontram os Estados de direito de todos os ordenamentos (inclusive

autoritários e totalitários) e com a noção de legalidade em sentido estrito ou validade

substancial (e que engloba o primeiro) estão somente os Estados Constitucionais – e em

particular aqueles Estados de Constituição rígida – veja-se que aquele é sinônimo deste

em seu sentido tanto formal quanto substancial, isto é, de Estado Constitucional,

superando, assim, o Estado Legislativo.

Nesse sentido, enquanto no direito penal a imunidade do cidadão a punições

e proibições arbitrárias é o que está em jogo, revelando-se as três garantias penais e a

verificação e falsificação destas nas formas expressas pelas garantias processuais,

reconhece Ferrajoli que “nos outros setores do ordenamento, os direitos fundamentais

objeto de tutela são diferenciados; mas mesmo estes, se garantidos

constitucionalmente, se configuram como vínculos de validade para a legalidade

ordinária”10

, que resta caracterizável como estrita legalidade.

É dizer, conforme anteriormente exposto: como modelo de direito o

garantismo diz respeito ao modelo de estrita legalidade SG próprio do Estado de Direito

que, sob o plano epistemológico se caracteriza como um sistema cognitivo ou de poder

mínimo, sob o plano político se caracteriza como técnica de tutela idônea a minimizar a

10

Ibidem. p.791.

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violência e a maximizar a liberdade e, sob o plano jurídico, como um sistema de

vínculos impostos à função punitiva do Estado em garantia dos direitos dos cidadãos.

Sabe-se que o Estado moderno nasceu como Estado de Direito limitado por

vedações e não ainda com obrigações, tanto que as cartas fundamentais, desde a Magna

Carta inglesa, são constituídas por um núcleo essencial formado por regras sobre o

limite dos poderes. Ou seja, o Estado de direito era entendido como sistema de limites

substanciais impostos legalmente aos poderes públicos para a garantia dos direitos

fundamentais, se contrapondo ao Estado absoluto, seja ele autocrático ou democrático.

E assim, sobre nem tudo se pode decidir, nem mesmo pela maioria, pois mesmo um

poder do povo ilimitado caracterizaria um regime absoluto e totalitário, pois a garantia

de direitos vitais é condição essencial para a convivência pacífica.

Consoante essa concepção de Estado de direito que preza não somente pela

vontade da maioria, mas que prima pelos interesses e necessidades vitais de todos e

qualquer um, o Estado de direito, Estado Constitucional, precisa ser conjugado com

democracia, a qual abarca uma concepção tanto (i) formal ou política em que o Estado

político representativo baseia-se no princípio da maioria como fonte de legalidade, (ii)

quanto substancial ou social na qual o Estado se preocupa com a efetivação das

garantias.

Ademais, essa democracia (formal e substancial) soma-se ao garantismo

como técnica de limitação e de disciplina dos poderes públicos cujo foco está na

máxima aproximação entre texto e efetividade e no mínimo descompasso existente entre

a normatização estatal e as práticas que deveriam estar fundamentadas nestas.

Aliás, essa conclusão é compatível com uma das grandes preocupações de

Ferrajoli, qual seja, a distância entre o ser o dever ser já que tal desaproximação implica

na perda de legitimação jurídica11

(tanto formal quanto substancial) do funcionamento

dos poderes públicos e das normas por estes produzidas.

É que, enquanto o garantismo discorre sobre a necessidade de estipulação e

observâncias das garantias, reconhece-se que a dificuldade em coincidir ser e dever ser

cresce juntamente com tal previsão.

11

Sobre a perda de legitimação, basicamente a legitimação formal, mera legalidade ou ainda legalidade

em sentido lato, traduz-se em condições formais ao válido exercício do poder e delineia as regras sobre

quem pode e sobre como se deve decidir, relacionando-se assim com a forma de governo. Por sua vez, a

legitimidade substancial ou estrita legalidade traduz-se em condições substanciais que desenham as regras

sobre o que se deve ou não se deve decidir, subordinando todos os atos, inclusive as leis, aos conteúdos

de direitos fundamentais. Se tais regras são inobservadas na prática, há a perda da legitimação jurídica.

Seria o mesmo que tratar da divergência entre normatividade e efetividade.

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Ou seja, o Estado de direito (de acordo com a noção de legalidade em

sentido lato e estrito, ou seja, Estados Constitucionais) unido à concepção democrática

(em sentido formal e substancial) não pode se distanciar da estipulação de direitos e

garantias e também não pode ignorar a possibilidade da perda de legitimação em

decorrência do distanciamento entre efetividade e vigência das normas, de maneira que

então se passa para o segundo significado do termo garantismo.

- Garantismo como teoria do direito: o direito ilegítimo

Como se viu, o garantismo sustenta a tutela dos direitos vitais dos cidadãos

sempre em atenção à positivação pelo Estado de direito, o que se concebe no âmbito da

teoria do positivismo jurídico12

.

O juspositivismo, em contraposição ao jusnaturalismo, ofereceu uma teoria

coerente do fenômeno jurídico a partir de uma construção racional e controlada,

excluindo, ainda, qualquer conteúdo transcendente ao direito positivo (distinção de

suma importância com relação ao jusnaturalismo) 13

.

É importante recordar que, a depender da teoria positivista, o objeto de

estudo oscila, desde códigos dos novecentos no positivismo legalista, à norma jurídica

Kelseniana, o conceito de regra em Herbert Hart e ainda o conjunto de decisões

proferidas pelos tribunais no realismo jurídico.

Aliás, profundas diferenças existem entre o positivismo jurídico do século

XIX, legalista, cuja característica principal é a equiparação do direito à lei, e aquele

construído no século XX, normativista, reconhecedor do problema dos diversos

12

A título elucidativo: positivismo jurídico é termo que se refere a um modo específico de se estudar o

direito, enquanto direito positivo representa o objeto de estudo do positivismo jurídico: “O direito

positivo pode ser definido como o conjunto de regras e normas que regem o convívio humano num

determinado contexto histórico (temporal), social e territorial (espacial).” ABBOUD, Georges;

CARNIO, Henrique Garbellini; OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. Introdução à teoria e à filosofia do

direito. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014, p. 71. Os autores resumem o conceito de

juspositivismo como “o tipo de postura teórica que se caracteriza por esses três elementos: 1) pelas

fontes sociais do direito; 2) pela separação entre direito e moral; 3) pela discricionariedade delegada ao

juiz nos hard cases ou nas incertezas da linguagem.” ABBOUD, Georges; CARNIO, Henrique

Garbellini; OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. Introdução à teoria e à filosofia do direito, op. cit., 2014, p.

229. Na visão de Lenio Streck, “São três as características presentes de maneira comum nos

positivismos: (i) o objeto é determinado a partir de fontes estatais-sociais do direito recusando a

abordagem do fenômeno jurídico sob uma ótica exterior à regulação pelo Estado; (ii) a tese da

separação entre direito e moral afastando qualquer observação de adequação do direito a um sistema

moral; e, por fim, (iii) um sempre existente coeficiente de discricionariedade judicial.” STRECK, Lenio.

Verdade e Consenso. 5ª Ed. revista, modificada e ampliada. São Paulo: Editora Saraiva, 2014, p. 509. 13

A título elucidativo: positivismo jurídico é termo que se refere a um modo específico de se estudar o

direito, enquanto direito positivo representa o objeto de estudo do positivismo jurídico. Ainda “O direito

positivo pode ser definido como o conjunto de regras e normas que regem o convívio humano num

determinado contexto histórico (temporal), social e territorial (espacial).” ABBOUD, Georges;

CARNIO, Henrique Garbellini; OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. Introdução à teoria e à filosofia do

direito, op.cit., p. 71.

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significados advindos dos conceitos que compõem o direito e que ainda problematiza a

relação desses conceitos com os objetos constituintes do mundo jurídico14

.

O conhecido “exegetismo” tem origem num texto específico no qual

giravam os mais sofisticados estudos do direito, qual seja, o Corpus Iuris Civilis, em

razão da anterior função complementar do direito romano em relação aos Códigos.

Basicamente, se o direito comum não resolvesse o caso, buscava-se a solução nos

estudos sobre o direito romano produzido pelos comentadores ou glosadores15

.

Tal função de complementaridade desaparece totalmente com a vinda dos

Códigos Civis (França em 1804 e Alemanha em 1900) que se tornam o dado positivo

(“texto sagrado”) com o qual deve se dar a ciência do direito.16

Como não poderia deixar de ser, se percebeu que os Códigos não cobriam

todas as hipóteses fáticas, o que gerou um problema de interpretação de direito17

que foi

inicialmente respondido pela Escola da Exegese na França e pela Jurisprudência dos

Conceitos na Alemanha.

É esse primeiro momento que se designa como positivismo exegético,

legalista ou primevo e que é caracterizado principalmente pela consagração de uma

análise sintática para resolução do problema interpretativo18

.

Nesse tocante, necessário saber que uma análise semiótica do direito divide

a análise da linguagem em três níveis: sintática, semântica e pragmática. Em suma, na

análise sintática, a linguagem é considerada a partir da “estrutura dos signos e a análise

obedece a uma lógica de relação signo-signo. Não se considera aqui, para efeitos de

análise, a relação do signo com o objeto ao qual ele faz referência”19

. Já a semântica

visa determinar o sentido do signo relacionando-o com o objeto, E, por sua vez, a

pragmática preocupa-se com o uso que se faz da linguagem por aqueles que com ela

operam20

.

14

ABBOUD, Georges; CARNIO, Henrique Garbellini; OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. Introdução à

teoria e à filosofia do direito, op. cit., p. 230. 15

STRECK, Lenio. Verdade e Consenso, op.cit., p. 33. 16

Ibidem, p. 33/34. 17

“Mas, então, como controlar o exercício da interpretação do direito para que essa obra não seja

“destruída”? E, ao mesmo tempo, como excluir da interpretação do direito os elementos metafísicos que

não eram benquistos pelo modo positivista de interpretar a realidade?” Ibidem, p. 34. 18

Ibidem, p.34. 19

ABBOUD, Georges; CARNIO, Henrique Garbellini; OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. Introdução à

teoria e à filosofia do direito, op.cit., p. 230. 20

Ibidem, p. 230.

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29

Como afirmado, o positivismo legalista restringe-se a conhecer e analisar o

direito na perspectiva sintática a partir do emprego de fórmulas lógicas e dos conceitos

que compõem a legislação.

Mas já nas primeiras décadas do século XX o poder regulatório do Estado

cresceu e, consequentemente, o problema da indeterminação do sentido do direito foi

elevado a foco principal.

Foi então que movimentos como a Escola do Direito Livre e a

Jurisprudência dos Interesses reivindicavam a aproximação do direito aos fatos sociais

expondo o direito a ideologias e à política.

Nesse contexto, o normativismo kelseniano veio como tentativa de resposta

ao estado caótico encontrado. Isto é, os estudos de Hans Kelsen tinham como principal

objetivo reforçar o método analítico proposto pelos conceitualistas como respostas às

nefastas consequências geradas pela Jurisprudência dos Interesses e pela Escola de

Direito Livre como a penetração de argumentos psicológicos, políticos e ideológicos na

interpretação do direito21

.

Kelsen percebe a semântica como problema crucial na interpretação do

direito e constata que o espaço de movimentação do intérprete decorre deste problema

semântico existente quando da aplicação de um signo linguístico.

Nesse sentido, encontra-se em Kelsen a interpretação como resultante de

uma cisão: a interpretação como ato de vontade que produz normas (aqui exsurge a

21

“Kelsen não era um positivista exegético. Sua obra vem para superar essa concepção de positivismo. O

seu positivismo é normativista. Ele não separa o direito da moral, mas, sim, a ciência do direito da

moral. Para Kelsen, o cientista faz um ato de conhecimento, descritivo, não prescritivo; já o aplicador da

lei faz um ato de vontade (acrescento, de poder). Juiz não faz ciência e, sim, política jurídica. Sua

preocupação com relação à ciência do direito é de que o intérprete tem uma ideia (ou imagem) da lei (do

seu texto). Os vários sentidos são descritíveis. Quem aplica a lei, o juiz, não tem nenhum método ou

outros critérios que posam assegurar que uma aplicação é melhor que outra ou que uma seja correta e

outra não. Nesse sentido, até mesmo se o juiz decidir para além da ideia (se quisermos, a moldura) da lei

e ninguém recorrer, essa decisão é válida. Por isso é que sempre devemos ler a obra de Kelsen a partir

da divisão entre a ciência do direito (que é uma metalinguagem) e o direito (que é a linguagem objeto)”.

STRECK, Lenio. Verdade e Consenso, op. cit. p. 35. “A primeira tentativa de resposta a esse caos

sistemático das finalidades e dos interesses somente será oferecida por Hans Kelsen, com a construção

de sua “teoria pura do direito”. De fato, em sua obra, Kelsen continuava a perseguir o tipo de rigor

lógico que inspirava o dedutivismo da Jurisprudência dos Conceitos, porém, sabia que os instrumentos

por ela utilizados eram insuficientes para garantir precisão epistemológica para a ciência jurídica.

Ademais, ele conhecia as críticas formuladas pela Jurisprudência dos interesses e pelo movimento do

direito livre em relação ao problema da determinação do papel do juiz no preenchimento das chamadas

lacunas e sabia que o dogma da completude dos significados dos conceitos que compõem a lei – em

especial os códigos – não podia mais ser defendido àquela altura da história. A saída encontrada por

Kelsen foi estabelecida a partir de uma fratura entre conhecimento e vontade. Explicamos: a construção

epistemológica kelseniana está alicerçada na clássica dicotomia razão vs. vontade. Assim, todas as

questões reivindicadas pelos intereses, finalidades etc. Kelsen atira para dentro daquilo que ele chamou

de política jurídica, que se manifesta, em termos kelsenianos, na interpretação que os órgãos jurídicos

competentes formulam sobre o direito.”

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característica relativista da moral kelseniana) e a interpretação como ato de

conhecimento que produz proposições e que, da descrição no plano da metalinguagem,

decorrem as normas produzidas pelas autoridades jurídicas (relação meramente sintática

entre as proposições).22

Semelhantemente, note-se que Ferrajoli, em seu postivismo crítico, quando

falou em discricionariedade, em decisão judicial, a concebeu, ao fim e ao cabo, como

produto de uma escolha. Kelsen privilegiou as dimensões semânticas e sintáticas,

deixando a pragmática para a discricionariedade. Fato é que a questão destratada pelo

positivismo jurídico é a justificação das decisões, que, como menciona Rosemary

Cipriano da Silva23

, abre margem a discricionariedades.

É preciso compreender o momento em que escreve Ferrajoli, pois, como já

expresso e perceptível ao leitor, é tema essencial de sua teoria o constitucionalismo.

Sabe-se que a Segunda Guerra Mundial produziu atrocidades durante a existência de

regimes totalitários e que é inegável o desejável sentimento de se romper com a

estrutura institucional da época e com as teorias e metodologias predominantes, como

por exemplo, no caso do nazismo, a subsunção positivista24

.

Exatamente por essa necessidade, o período posterior à Segunda Guerra

representa uma mudança paradigmática no direito mundial. É um marco determinante

na história do pensamento jurídico dos países ocidentais25

.

Para superá-las, a revolução ensejada pelo segundo pós-guerra envolveu a

concepção de um texto constitucional marcado pela existência de um texto

compromissório visando o bem-estar social26

e que apostava no Judiciário para a

consecução dos objetivos constitucionais.

22

Cf. STRECK, Lenio. Verdade e Consenso, op.cit., p. 35: “(...) em um ponto específico, Kelsen se rende

aos seus adversários: a interpretação do direito é eivada de subjetivismos provenientes de uma razão

prática solipsista. Para o autor austríaco, esse desvio é impossível de ser corrigido. (...) O único modo de

corrigir essa inevitável indeterminação do sentido do direito somente poderia ser realizado a partir de

uma terapia lógica – da ordem do a priori – que garantisse que o direito se movimentasse em um solo

lógico rigoroso. Esse campo seria o lugar da teoria do direito ou, em termos kelsenianos, da ciência do

direito. E isso possui uma relação direta com os resultados das pesquisas levadas a cabo pelo Círculo de

Viena.” STRECK, Lenio. Verdade e Consenso, p. 36. 23

DA SILVA, Rosemary Cipriano. Direito e processo: A legitimidade do Estado Democrático de Direito

através do processo. Belo Horizonte: Arraes Editora, 2012. 24

TASSINARI, Clarissa. Jurisdição e ativismo judicial: limites da atuação do Judiciário. Porto Alegre:

Livraria do Advogado Editora, 2013, p. 42/43. 25

PINHO, Ana Cláudia Bastos de. Para além do garantismo: uma proposta hermenêutica de controle da

decisão penal. Porto Alegre: Livraria do advogado Editora, 2013, p. 19. 26

ROSA, Alexandre Morais da. A constituição no país do jeitinho: 20 anos à deriva do discurso

neoliberal (Law and economics). Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica: 20 anos de

constitucionalismo democrático – e agora? Porto Alegre, vol. 1, n. 6, p. 15 – 34, 2008, p. 18 – 23.

Page 31: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP ... Lobão Torres.pdfem 1989, de “Diritto e Ragione: Teoria del Garantismo Penale”. Foi com a tradução desta obra para

31

A pauta “Direitos Humanos” tomou conta do cenário jurídico. Para a

exposição internacional da proteção de tais direitos viu-se a criação da Organização das

Nações Unidas em 24 de outubro de 1945 (em que pese representar resposta dos

vencedores aos vencidos)27

. Aliás, a partir de então deu-se a elaboração de instrumentos

internacionais: Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), Convenção

Europeia dos Direitos Humanos (1953), Pacto Internacional sobre Direitos Civis e

Políticos e Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966),

Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica –

1969).

Como não poderia deixar de ser, a ordem externa veio a influenciar os

ordenamentos internos. Mais especificamente, as Constituições dos países democráticos

vieram a positivar, como direitos fundamentais, os valores reconhecidos pela ordem

externa28

.

O fim da Segunda Guerra, então, impulsionou a passagem do Estado

Legislativo de Direito para um Estado Constitucional de Direito com foco na garantia

dos direitos fundamentais constitucionalmente assegurados.

É dizer: a passagem daquele Estado nascido com a afirmação do princípio

da legalidade para que se considerasse como direito existente somente aquilo que fosse

produzido pelo órgão competente (e que caracterizou o monopólio do Estado sobre a

produção jurídica voltada à concepção ético-cognitivista pelo postulado juspositivista

“auctoritas non veritas facit legem”) ao Estado Constitucional de Direito (ou Estado de

direito em senso estrito) caracterizado pelo ordenamento jurídico de constituição rígida

com hierarquia superior das normas constitucionais e sujeito à coerência com os

significados destas, introduzindo um princípio de legalidade substancial (que Ferrajoli

designa como princípio da legalidade estrita) que produz a distinção entre existência e

validade das normas.

O Estado Constitucional, correspondeu, note-se, a uma mutação da

democracia ao deixar de identificar-se somente com a dimensão política do sufrágio

universal, da representatividade e do princípio da maioria para adquirir uma dimensão

constitucional de determinação jurídica do poder, “relativa ao conteúdo das decisões

políticas, submetidas à observância dos direitos fundamentais, os quais, com o

27

PINHO, Ana Cláudia Bastos de. Para além do garantismo: uma proposta hermenêutica de controle da

decisão penal, op. cit. p. 19. 28

Ibidem, p. 20.

Page 32: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP ... Lobão Torres.pdfem 1989, de “Diritto e Ragione: Teoria del Garantismo Penale”. Foi com a tradução desta obra para

32

princípio da igualdade, constituem os fundamentos axiológicos positivos da democracia

constitucional”29

.

Assim, o fenômeno jurídico passou a ser visto sob a perspectiva da

substancialidade/materialidade por meio da força normativa da Constituição que

condicionava materialmente a legalidade e a incorporação de novos direitos com seus

respectivos meios assecuratórios.

Nesse contexto, o aspecto formal está no procedimento já traçado

previamente pelo ordenamento jurídico para a validade de uma nova norma, similar à

Teoria Pura do Direito de Kelsen que estabelece na validade de uma norma anterior no

tempo e superior na hierarquia que prevê as diretrizes formais para que seja válida.

Contudo, Ferrajoli acrescenta ao aspecto formal o elemento substancial, isto é, a

validade para este autor também traria elementos de conteúdo, materiais, como

fundamento da norma, os direitos fundamentais.

Para o autor italiano, se a norma ingressasse no ordenamento pelo

procedimento formal – que para ele configurava vigência – mas não estivesse

substancialmente de acordo com os direitos fundamentais, tal norma seria inválida.

Nesse sentido é que os conceitos de validade e de vigência são separados por Ferrajoli.

Em outros termos, conforme debate publicado em 2012 a respeito de um

artigo seu sob o título “Constitucionalismo principialista e constitucionalismo

garantista”, Ferrajoli aborda o constitucionalismo principialista (não positivista ou

neoconstitucionalista) e o constitucionalismo garantista (positivista reforçado) e

diferencia-os afirmando que o primeiro louva a substituição do juiz boca-da-lei pelo juiz

dos princípios na busca por valores, o que trouxe a fragilização da força normativa da

Constituição.

Nesses termos, condenável seria o neoconstitucionalismo, então, por três

principais elementos, quais sejam, (i) a conexão necessária entre direito e moral, (ii) a

distinção entre regras e princípios, e (iii) a ponderação como modelo privilegiado de

aplicação do direito.

Mas como se verá, neoconstitucionalismo é expressão plurívoca. Ater-se-á,

posteriormente, a teorias neoconstitucionalistas que não negam a autonomia do Direito.

Pela confusão do termo, Lenio Streck opta por utilizar “Constitucionalismo

Contemporâneo” para se referir ao fenômeno pós segunda-guerra.

29

IPPOLITO, Dario. O garantismo de Luigi Ferrajoli, op. cit., p. 34 – 41.

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33

Por sua vez, o autor traz o segundo como juspositivismo reforçado e

consagrador, basicamente, (i.1) da tese da separação entre direito e moral, aceitando a

noção de moral como algo que depende do arbítrio do sujeito, em se tratando da análise

judicial, do arbítrio do juiz, por um viés subjetivista e uma concepção antiobjetivista e

anticognitivista da moral e (i.2) de espaços de discricionariedade na jurisdição, da

crítica (ii.1) à contraposição entre princípios e regras, (ii..2) ao neoconstitucionalismo

como uma fábrica de princípios (fenômeno designado por Lenio Streck como pan-

principiologismo, especialmente porque anunciados como positivação de valores,

errôneo, ademais, por não se dever falar em axiologia principiológica mas em

deontologia dos princípios) e (ii.3) ao uso descriterioso da ponderação por fragilizar a

força normativa da Constituição.

No mesmo contexto, por considerar teorizar um reforço ao positivismo,

necessário identificar que o juspositivismo dogmático distingue-se do juspositivismo

crítico de Ferrajoli na medida em que aquele encampa a orientação teórica que não

distingue o conceito de vigor das normas como categoria independente da validade e da

efetividade, englobando tanto os ordenamentos normativos que reconhecem a vigência

somente das normas válidas quanto os ordenamentos realistas que reconhecem a

vigência somente das normas efetivas30

.

O juspositivismo crítico (com a ressalva da doutrina que entende pela

impossibilidade de o positivismo ser crítico31

) coloca em xeque dogmas do

juspositivismo dogmático como o da fidelidade do juiz à lei e o da função meramente

descritiva e valorativa do jurista na observação do direito positivo vigente.

O primeiro dogma que de Bentham até Kelsen forma o postulado teórico do

juspositivismo, qual seja, a obrigação judicial de aplicar as leis vigentes, é facilmente

relativizada no juspositivismo crítico ferrajoliano pela concepção de que as leis vigentes

podem ser suspeitas de invalidade e, portanto, nesses casos em particular, deveriam os

30

“Precisamente, uma abordagem exclusivamente normativa limitando-se à análise (do significado) das

normas, permite apenas descrever o “dever ser” normativo dos fenômenos jurídicos regulados, e não

também o seu “ser efetivo”. Inversamente, uma abordagem exclusivamente realista, limitando-se à

observação daquilo que ocorre de fato, consente apenas descrever os fenômenos jurídicos como

efetivamente são, e não como normativamente devam ser.” FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: Teoria

do Garantismo penal, op. cit., p.699. 31

“Aquí se há sostenido que el positivismo crítico encierra em si una contradicción porque el

positivismo no puede ser crítico y porque la crítica no es uma función de la teoria del derecho

positivista.” FIGUEROA, Alfonso García. Las tensiones de uma teoría, cuando se declara positivista,

quiere ser crítica, pero parece neoconstitucionalista. In CARBONELL SANCHEZ, Miguel; SALAZAR

UGARTE, Pedro (Coord.) Garantismo: estudios sobre el pensamiento jurídico de Luigi Ferrajoli.

Madrid: 2009, p. 267-284.

Page 34: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP ... Lobão Torres.pdfem 1989, de “Diritto e Ragione: Teoria del Garantismo Penale”. Foi com a tradução desta obra para

34

juízes não aplicá-la, ressaltando seu poder de interpretar as leis e suspender-lhes a

aplicação se as consideram inválidas por contraste à Constituição.

Essa quebra recai inclusive na inobservância do segundo dogma

juspositivista, qual seja, a sujeição acrítica e avalorativa às leis vigentes. Nesse sentido,

a doutrina brasileira conta com inúmeras produções literárias sobre o controle de

constitucionalidade com remissões à teoria garantista de Luigi Ferrajoli32

.

Este segundo dogma se refere também à atitude do jurista e à função da

ciência jurídica no tocante ao direito positivo. As doutrinas juspositivistas apontam o

caráter avalorativo da ciência jurídica e a não possibilidade de crítica das leis vigentes a

partir de seu interior, mas tão somente do seu exterior, ou seja, em sede de moral e

política.

Assim, mantém a distinção entre vigência, validade e justiça, ressaltando

que “confundir as duas primeiras é permanecer no terreno do paleopositivismo,

fazendo verificações meramente formais de validade, sem incorporar as substanciais

modificações trazidas pelo constitucionalismo”33

.

Porém, questiona-se: analisar a validade não seria recorrer a valores internos

positivados nos princípios constitucionais? Aliás, o que a distingue da vigência e

também da justiça, implicando esta em apelar a valores metajurídicos e, portanto,

correlacionado com a legitimação externa do direito. Tal compreendida divergência

entre justiça e validade é respaldada em Ferrajoli para que não haja o enfraquecimento

normativo da Constituição, mas admite como ponto de vista autônomo do e sobre o

direito, o ponto de vista (externo ao direito) da moral e da política que é, portanto, o

ponto de vista crítico do seu juspositivismo crítico34

32

Para mais, ler a obra “Garantismo jurídico e o controle de constitucionalidade material” de Alexandre

Morais da Rosa. 33

PINHO, Ana Claudia Bastos de. Para além do Garantismo: uma proposta hermenêutica de controle da

decisão penal, op. cit., 2013, p. 50. 34

“A tese da separação entre direito e moral, mantendo firme não apenas a distinção, mas também a

divergência entre justiça e validade, permite que não se ancore nas falácias provenientes desta confusão:

a falácia jusnaturalista consistente na identificação (e na confusão) da validade com a justiça, em algum

sentido objetivo desta segunda palavra; e a falácia ético-legalista consistente – mesmo na variante do

constitucionalismo ético – na oposta identificação (e confusão) da justiça com a validade. Ao mesmo

tempo, somente a abordagem juspositivista serve para evidenciar o caráter juridicamente normativo da

Constituição, porque supraordenada a qualquer outra fonte, e, portanto, as outras duas virtuais

divergências deônticas – entre validade e vigência e entre vigência e eficácia – cujo desconhecimento

está na origem de outras duas graves falácias: aquela normativista, que impede, como ocorre na teoria

de Kelsen, de reconhecer a existência de normas inválidas, mesmo se vigentes; e aquela realista, que

impede, ao contrário, de reconhecer a existência de normas válidas, mesmo se ineficazes, e de normas

inválidas, mesmo se eficazes.” FERRAJOLI, Luigi. Constitucionalismo principialista e

constitucionalismo garantista. In: FERRAJOLI, Luigi; STRECK, Lenio. (Orgs.) Garantismo,

Page 35: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP ... Lobão Torres.pdfem 1989, de “Diritto e Ragione: Teoria del Garantismo Penale”. Foi com a tradução desta obra para

35

O juspositivismo crítico exclui aquela sujeição acrítica e avalorativa às leis

vigentes tanto pelos juízos de validade quanto pelos juízos sobre a compatibilidade

entre o conteúdo das leis ordinárias e a Constituição, especialmente porque considera

que a sujeição cega à lei omitiria a complexidade estrutural do Estado de direito e a

potencial ilegitimidade das leis nele geradas por desníveis normativos.

Disso se conclui que Ferrajoli35

critica os dois dogmas a partir da análise

dos juízos de validade, como demonstrado, apontando ainda que ao menos nos

ordenamentos complexos próprios dos Estados de direito tais juízos distinguem dos

juízos sobre o vigor das normas.

Consequentemente, desconsagra tanto a coerência quanto a completude36

,

postulados do juspositivismo dogmático, afirmando e explicando a existência de

antinomias e lacunas.

Seria essa a orientação de crítica ao direito positivo vigente sob uma

perspectiva tanto externa37

ou política, quanto interna38

ou jurídica, voltada à

inefetividade e invalidade que leva à consagração do “juspositivismo crítico”, e que,

como visto, reflete no trabalho do juiz e do jurista especialmente pela fragilização dos

dogmas do juspositivismo dogmático, como se viu até aqui.

- Garantismo como filosofia do direito e crítica da política

O garantismo, num sentido filosófico-político, consiste

(...) de um lado, na negação de um valor intrínseco do direito somente porque

vigente, e do poder somente porque efetivo, e no primado axiológico

hermenêutica e (neo)constitucionalismo: um debate com Luigi Ferrajoli. Porto Alegre: Livraria do

Advogado Editora, 2012, p. 33. 35

A crítica pode ser analisada no tópico “Juízos sobre vigor e juízos sobre validade. Duas aporias

teóricas: a possibilidade de valoração e a discricionariedade dos juízos de validade”. Ainda, “Para que

uma norma exista ou esteja em vigor, é suficiente que satisfaça as condições de validade formal, as quais

resguardam as formas e os procedimentos do ato normativo, bem como a competência do órgão que a

emana. Para que seja válida, é necessário que satisfaça ainda as condições de validade substancial, as

quais resguardam o seu conteúdo, ou seja, o seu significado (...) Todavia, enquanto as condições formais

de vigor consistem em adimplemento de fato, na ausência dos quais o ato normativo é imperfeito e a

norma por ele ditada não vem à existência, as condições substanciais da validade, e exemplarmente as de

validade constitucional, consistem habitualmente no respeito aos valores (...).” FERRAJOLI, Luigi.

Direito e razão: Teoria do Garantismo penal, op. cit., p.701. 36

“Coerência e completude se configuram, no Estado de direito, não já como propriedade do direito

vigente mas como ideais-limites de direito válido, que não refletem o “ser” efetivo mas apenas o “dever

ser” das normas relativamente às normas superiores.” Ibidem, p.705. 37

“Por legitimação externa ou justificação refiro-me à legitimação do direito penal por meio de

princípios normativos externos ao direito positivo, ou seja, critérios de avaliação moral, políticos ou

utilitários de tipo extra ou metajurídicos.” Ibidem, p.171. 38

“Por legitimação interna ou legitimação em sentido estrito refiro-me à legitimação do direito penal

por via de princípios normativos internos ao próprio ordenamento positivo, vale dizer, a critérios de

avaliação jurídico, ou, mais especificamente, intrajurídicos. O primeiro tipo de legitimação diz respeito

ás razões esternas, isto é, áquelas do direitos penal; o segundo, por sua vez, concerne às suas razões

internas, ou de direito penal.” Ibidem, p.171.

Page 36: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP ... Lobão Torres.pdfem 1989, de “Diritto e Ragione: Teoria del Garantismo Penale”. Foi com a tradução desta obra para

36

relativamente a eles do ponto de vista ético-político ou externo, virtualmente

orientado à sua crítica e transformação; e, por outro, na concessão utilitarista

e instrumental do Estado finalizado apenas à satisfação das expectativas ou

direitos fundamentais.39

Segundo o paradigma da democracia, o Estado não é um fim nem um valor,

mas um produto fabricado pelos homens e que vale tanto quanto servir aos homens

naturais que o produziram em comum acordo, podendo ser também construído e

reconstruído quando seus criadores se insurgem contra eles.

Assim, o que politicamente justifica ou não a produção das normas não são

suas fontes ou formas, mas seus conteúdos concretos, e estes, ou seja, o caráter

substancial das normas está relacionado aos direitos fundamentais, que repise-se,

correspondem às faculdades ou expectativas de todos os que definem as conotações

substanciais da democracia.

São também constitucionalmente subtraídos ao arbítrio da maioria como

limites ou vínculos indissociáveis das decisões governamentais.

Em síntese, enquanto o totalitarismo possui uma visão finalista e otimista do

poder como bom e dotado de valor ético graças à fonte de legitimação que o detém, o

garantismo pressupõe uma visão pessimista do poder como maléfico

independentemente de quem o detenha, diante da possibilidade de degenerar em

despotismo dada a ausência de limites e garantias.

1.3. O sistema garantista: axiomas materiais e processuais

O sistema garantista ou cognitivo (SG) contém axiomas correspondentes às

garantias materiais e processuais consoantes a tradição jurídica do iluminismo.

Trata-se de um modelo-limite resultante da adoção de 10 (dez) axiomas ou

princípios axiológicos fundamentais, não deriváveis entre si, denominados, ademais das

garantias, penais e processuais por eles expressas, respectivamente: 1) princípio da

retributividade ou da consequencialidade da pena em relação ao delito; 2) princípio da

legalidade, no sentido lato ou no sentido estrito; 3) princípio da necessidade ou da

economia do direito penal; 4) princípio da lesividade ou da ofensividade do evento; 5)

princípio da materialidade ou da exterioridade da ação; 6) princípio da culpabilidade ou

da responsabilidade pessoal; 7) princípio da jurisdicionariedade, também no sentido lato

ou no sentido estrito; 8) princípio acusatório ou da separação entre juiz e acusação; 9)

39

Ibidem, p.709.

Page 37: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP ... Lobão Torres.pdfem 1989, de “Diritto e Ragione: Teoria del Garantismo Penale”. Foi com a tradução desta obra para

37

princípio do ônus da prova ou da verificação; 10) princípio do contraditório ou da

defesa, ou da falseabilidade.

Os mencionados princípios garantistas consolidados nas constituições e

codificações modernas formam um sistema coerente e unitário, configurando, também,

um esquema epistemológico de identificação do desvio penal voltado a assegurar o

máximo grau de racionalidade e confiabilidade do juízo com vistas à limitação do poder

punitivo em prol da tutela do indivíduo contra a arbitrariedade.

Observa-se, entretanto, que Ferrajoli teorizou um garantismo de direitos.

Contudo, considerando que é por meio do processo que se pode efetivar a concretização

dos direitos e que o foco do estudo é o garantismo processual, nada mais sábio do que

abordar as garantias processuais presente no SG.

Os 10 axiomas compõem o modelo garantista com 10 condições, limites ou

proibições identificadas pelo autor como garantias dos cidadãos contra o arbítrio ou

erro, e já foram, de certa forma, incorporados pelas codificações e constituições dos

ordenamentos desenvolvidos de maneira que converteram-se em princípios jurídicos do

Estado de direito40

.

Por outro lado, reconhece-se nove modelos autoritários caracterizados pela

condição patológica ou ausência total de algum ou de alguns destes limites à

intervenção punitiva estatal.

De A1 a A6 estão enunciadas garantias materiais penais, e que, portanto,

não interessam ao presente estudo proposto neste trabalho, enquanto entre os axiomas

A7 a A10 estão enunciadas as garantias processuais, devendo sempre se ter em

consideração que além de muitas das garantias pressuporem outras, as garantias

processuais condicionam a efetividade das garantias penais e resultariam esvaziadas

pela ausência destas. Ressalta-se, ademais, que o princípio da legalidade em sentido lato

configura pressuposto do sistema garantista, vez que nenhuma outra garantia seria

concebível se ele faltasse por completo. São elas:

A7 Nulla culpa sine judicio (princípio da jurisdicionariedade em sentido lato

ou estrito)

A 8 Nullum judieium sine accusatione (princípio acusatório ou da acusação

entre juiz e acusação)

A9 Nulla accusatio sine probatione (princípio do ônus da prova ou da

verificação)

40

Ibidem, p. 75.

Page 38: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP ... Lobão Torres.pdfem 1989, de “Diritto e Ragione: Teoria del Garantismo Penale”. Foi com a tradução desta obra para

38

A10 Nulla probatio sine defensione (princípio do contraditório ou da defesa,

ou da falseabilidade)

Eventual carência do A9 gera um sistema irracional numa forma absoluta de

Estado “selvagem” ou “disciplinar”, seria o Estado policial caracterizado por leis em

branco com a possibilidade de intervenções punitivas livres de qualquer vínculo,

inclusive o juízo prévio. É o que ocorre em alguns sistemas em “estado de guerra” ou de

“perigo público”41

.

Já o sistema derivado da subtração do A8 “sem acusação separada”

configura o método inquisitivo afetado pela ausência de imparcialidade do juiz e sobre

sua separação da acusação e está presente nos ordenamentos em que o juiz tem funções

acusatórias ou a acusação tem funções jurisdicionais42

.

Nestes, a imparcialidade fica comprometida pela mistura de acusação e

juízo e, chega a enfraquecer consequentemente a publicidade e a oralidade do processo.

Além disso, a carência dessas garantias debilita todas as demais e, em particular, as

garantias processuais do ônus acusatório da prova e do contraditório com a defesa.

Essa fragilidade pode chegar a sistemas que permitem a intervenção penal

sem qualquer satisfação do ônus da prova pela acusação ou sem controle pela defesa,

como a prescrição de prisões preventivas obrigatórias do acusado de acordo com o

delito classificada na denúncia.

Nesse sentido, o grau mais elevado do enfraquecimento de tais garantias

processuais se daria com um ordenamento que permitisse a total falta de prova e de

defesa, não somente em sentido estrito, como também em sentido lato, admitindo, por

exemplo, na esfera criminal, intervenções penais na esfera de liberdade do indivíduo

sem qualquer satisfação ao ônus da prova por parte da acusação e/ou sem qualquer

controle por parte da defesa.

Assim, os juízos acabam por informar-se por critérios meramente

substanciais e de autoridade. Note-se, ainda, que para o autor, as garantias são também

condições ou critérios jurídico-normativos da decisão e do que o autor designa como

verdade processual.

41

Ibidem, p. 82. 42

Ibidem, p. 79.

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39

1.4. O garantismo de Ferrajoli e o dilema da dupla “verdade”43

: quatro limites de

aquisição e controle da verdade fática e da verdade jurídica e o raciocínio judicial.

Como visto, Ferrajoli constrói seu sistema garantista com base na antítese

liberdade versus poder e nesse sentido explora a oposição entre os modelos garantistas e

antigarantistas (estes também chamados de autoritaristas e substancialistas), o primeiro

juspositivista e o segundo tendencialmente jusnaturalista, destacando a alternativa

epistemológica de cada um pelo distinto tipo de verdade por eles perseguida.

Aliás, explica o autor que sua escolha pela jurisdição penal como

laboratório de sua teoria se dá, antes de tudo, por considerar que o nexo exigido pelo

princípio da estrita legalidade entre a “validez” da decisão e a “verdade” da motivação é

mais forte do que qualquer outro tipo de atividade judicial.

O modelo substancialista procura a verdade substancial ou material,

legalmente ilimitada, absoluta e unívoca a respeito das pessoas investigadas, recaindo,

como não poderia deixar de ser, em juízo de valor e consequentemente em

arbitrariedades.

De outro modo, o modelo formalista (garantista) persegue uma verdade

formal ou processual a respeito de fatos e legalmente limitada quanto a sua forma de

aquisição.

Contudo, reconhece o autor ser prescindível a verdade somente em se

tratando de um modelo decisionista com renúncia à principal forma de controle racional

da atividade jurisdicional. Ou seja, conclui que uma justiça “sem verdade” corresponde

a um sistema de arbitrariedades, e que, por outro lado, uma justiça “com verdade”

constitui uma utopia. Entende-se que nesta afirmação está o autor tratando da verdade

absoluta, real, material.

Ocorre que a atividade jurisdicional é una e incindível e os objetivos

colimados não diferem em função da natureza do processo, discordando, assim, da

posição doutrinária tradicional que sustenta a aplicação, ao processo civil, do princípio

da verdade formal, enquanto vigoraria, para o processo penal, o princípio da verdade

real44

.

43

“Sem uma adequada teoria da verdade, da verificabilidade e da verificação processual, toda a

construção do direito penal do iluminismo, que aqui chamei "cognitiva" ou "garantista", termina

apoiada na areia; resulta desqualificada, enquanto puramente ideológicas as funções civis e políticas a

ela associadas.” Ibidem, p. 39. 44

BATISTA LOPES, João. Os poderes do juiz e o aprimoramento da prestação jurisdicional. São Paulo:

Revista de Processo, vol. 35/1984, Jul - Set / 1984, p. 24 – 67.

Page 40: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP ... Lobão Torres.pdfem 1989, de “Diritto e Ragione: Teoria del Garantismo Penale”. Foi com a tradução desta obra para

40

Ferrajoli diferencia a verdade das teses judiciais da verdade das teorias

científicas. Este autor se utiliza da definição de “verdade” tarskiana (rigidamente

cognitiva) que também estipula, de uma maneira geral, condições de uso do termo

“verdadeiro”.

Deduz o autor, se afastando de doutrinas que trazem uma noção intuitiva da

verdade, que a verdade fática diz respeito aos fatos ocorridos na realidade e a verdade

jurídica às normas que a eles se referem, limitando-se a elucidar univocamente e com

precisão o significado do termo “verdadeiro” de forma metalinguística. Por exemplo: a

proposição Tício cometeu culpavelmente tal fato é verdadeira se, e somente se, Tício

cometeu culpavelmente tal fato e a proposição tal fato está definido na lei como delito é

verdadeira se, e somente se, tal fato está definido na lei como delito.

Nesse sentido, tanto a verdade jurídica quanto a fática seriam constitutivas

da verdade processual apresentada como noção intuitiva da verdade como

“correspondência” (base das doutrinas iluministas da jurisdição como “verificação de

fato” e “boca da lei”), contudo, adverte:

Por certo, o modelo iluminista da perfeita "correspondência" entre previsões

legais e fatos concretos e do juízo como aplicação mecânica da lei é uma

ingenuidade filosófica viciada pelo realismo metafísico. Disso se, pode, no

entanto, salvaguardar o valor teórico e político se - e somente se - for redefinido

como modelo limite, nunca plenamente alcançável, senão apenas aproximável e,

sobretudo, se forem esclarecidas as condições na presença das quais este pode ser

mais ou menos satisfeito.45

Assim, o autor explica que não se compromete com o propósito metafísico

da existência de uma correspondência ontológica entre as teses das quais se predica a

verdade e a realidade às quais elas se referem, pois assume que a "verdade" de uma

teoria científica e, geralmente, de qualquer argumentação ou proposição empírica é

sempre, em suma, uma verdade não definitiva, mas contingente, não absoluta, mas

relativa ao estado dos conhecimentos e experiências levados a cabo na ordem das coisas

de que se fala, de modo que, sempre, quando se afirma a "verdade" de uma ou de várias

proposições, a única coisa que se diz é que estas são (plausivelmente) verdadeiras pelo

que sabemos sobre elas, ou seja, em relação ao conjunto dos conhecimentos

confirmados que delas possuímos.

Afirma que somente redefiniu parcialmente a noção intuitiva da verdade

como "correspondência”, porque limita-se a elucidar de maneira unívoca e precisa o

significado do termo "verdadeiro" como predicado metalingüístico de um enunciado, e

45

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: Teoria do Garantismo penal. op.cit., p. 39.

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41

que não seria, então, uma definição real, mas uma definição nominal a servir como um

instrumento útil de análise para distinguir as diversas referências semânticas (da

verdade) das proposições fáticas e das proposições jurisdicionais, pois admite o autor

que não serve de ajuda alguma para a solução do problema relativo às condições na

presença das quais é possível asseverar que tais proposições são verdadeiras.

E assim, uma vez estabelecido que o termo "verdadeiro" pode ser

empregado sem implicações metafísicas no sentido de "correspondência", é na realidade

possível falar da investigação judicial como a busca da verdade em torno dos fatos e das

normas mencionadas no processo, e usar os termos "verdadeiro" e "falso" para designar

a conformidade ou a desconformidade das proposições jurisdicionais a respeito deles.

Consoante a teoria objetiva da verdade como correspondência, “a verdade

resulta da correspondência do enunciado com um estado empírico dos fatos”46

e assim

“uma descrição é verdadeira quando descreve um fato real, isto é, quando fornece uma

imagem fiel de um elemento do mundo empírico”47

. Assim, uma decisão seria

verdadeira quando corresponde aos eventos que realmente ocorreram na situação

empírica em que se baseia a controvérsia judicial.

Então, de difícil utilização os ensinamentos do autor que reconhece a

inalcançabilidade da verdade absoluta mas se utiliza de uma teoria objetiva da verdade.

Até porque, com efeito, conclui que no plano semântico a verdade das teses judiciais

não difere em princípio da verdade das teorias científicas.48

E ademais, Ferrajoli

concebe o processo na busca de certezas, ideal do racionalismo (como seria de esperar

de suas raízes iluministas) “para o qual o indivíduo, valendo-se apenas da razão,

evitando as influências dos ídolos, inteiramente desligado de seus laços culturais e livre

da tradição e das doutrinas filosóficas tradicionais, seria capaz de atingir verdades

absolutas”49

.

A teoria da correspondência costuma ser tratada pela doutrina em distinção

à teoria da coerência, subjetiva (como também é a teoria da aceitabilidade justificada),

para qual “a verdade de um enunciado de fato é somente a função da coerência de um

enunciado específico em um contexto de vários enunciados”50

e assim “uma vez que a

46

TARUFFO, Michele. A prova. Tradução de João Gabriel Couto. 1ª ed. São Paulo: Marcial Pons, 2014,

p. 26. 47

Ibidem, p. 26. 48

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: Teoria do Garantismo penal. op.cit., p. 42. 49

BAPTISTA DA SILVA, Ovídio. Processo e ideologia: O paradigma racionalista. 2. Ed. Rio de

Janeiro: Forense, 2006, p. 6. 50

TARUFFO, Michele. A prova. op.cit., p. 26.

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veracidade ou a falsidade somente pode ser prevista a partir dos enunciados, o único

nível possível para a verdade é o dos enunciados, ou seja, da linguagem e dos

relatos”51

.

Explica o autor que os dois critérios de verdade, no plano sintático e no

plano pragmático, servem para se estabelecer a verdade no plano semântico como

correspondência do que se sabe, pois a coerência servirá como critério para que a tese

alegada se confirme pelas provas coletadas e pelas interpretações jurídicas em

consideração sempre ao conhecimento que se dispõe, enquanto a aceitabilidade

justificada servirá para se dar preferência a um conjunto em razão de sua capacidade

explicativa.

Nesse sentido, quando se fala da verdade de um fato se está a falar sobre a

verdade do enunciado sobre o que ocorreu faticamente e assim, a prova ou

demonstração no processo judicial é a veracidade ou falsidade dos enunciados acerca

dos fatos em litígio52

. Ocorre que, por esta teoria, as narrativas coerentes podem ser

falsas ou podem não pretender ser verdadeiras, o que pode levar à rejeição da verdade

como simples coerência no contexto judicial.

Nesse contexto, Michele Taruffo que (i) a duplicação dos conceitos de

verdade, em real e formal, é inútil (ii) e, também, que é impossível sustentar o alcance

racional de uma verdade absoluta em qualquer domínio do conhecimento humano, tanto

nas ciências como nas físicas e matemáticas, parecendo pertencer tal pensamento

somente à religião e à metafísica, pois a verdade é, em todo contexto, inclusive em se

tratando de processos judiciais, relativa, ou seja, uma verdade não definitiva e não

absoluta relativa ao estado dos conhecimentos e experiências obtidos até dita afirmação,

isto é, conforme o conjunto dos conhecimentos confirmados que delas possuímos.

Para o autor, entusiasta da discricionariedade racionalizada (livre

convencimento motivado) e do ativismo, contrariamente a Ferrajoli, (iii) a verdade

perseguida no processo judicial não é qualitativamente distinta da que se persegue fora

do âmbito do processo, de maneira que os limites apontados por Ferrajoli em se tratando

da verdade das teses judiciais se encontram, de maneira própria, no âmbito científico.

Contrariamente, para Ferrajoli existem quatro razões que consistem em

limites intrínsecos aos procedimentos de controle tanto da verdade fática quanto da

51

TARUFFO, Michele. A prova. op.cit., p. 26. 52

TARUFFO, Michele. A prova. op.cit., p. 19.

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43

verdade jurídica e que fazem da verdade uma verdade inevitavelmente aproximada em

direção ao modelo ideal da correspondência.

A primeira razão para que a verdade processual seja uma verdade

aproximada relaciona-se com a não experimentação direta das proposições judiciais de

fato, pois “ainda quando tanto as proposições judiciais de fato quanto as de direito

sejam teses empíricas de forma existencial ou singular, compartilham com as teses das

teorias científicas a não suscetibilidade a uma verificação experimental direta”53

.

Também William Santos Ferreira ao explicar que “os fatos não são

rigorosamente obtidos pelos meios de prova, mas cognoscíveis por estes”, e nesse

sentido, “o trabalho probatório desenvolvido no processo não alcançará o fato, mas

sim a conclusão de muito provavelmente ter ocorrido (ou não), estar ocorrendo (ou

não) ou poder ocorrer (ou não)”54

E assim, no caso da verdade das proposições fáticas, a investigação judicial

faz com que o juiz experimente não os fatos, mas suas provas, pois as provas

relacionam-se com um fato passado.

É, aliás, tradicional a distinção entre questões de fato e questões de direito.

Nessa tendência, Ferrajoli aborda a verdade entre tais proposições de forma diferente,

consistente na segunda razão ou limite intrínseco trazido pelo autor.

Enquanto a verdade processual fática é um tipo particular de verdade

histórica e cuja verdade pode ser enunciada pelos efeitos produzidos, quais sejam, os

sinais do passado, a verdade processual jurídica resulta de um raciocínio comumente

chamado “subsunção” cuja natureza provém de um procedimento classificatório por

referir-se à classificação ou qualificação dos fatos históricos comprovados de acordo

com o vocábulo jurídico e sua interpretação.

Ademais, de acordo com a teoria ferrajoliana55

, no que concerne a verdade

processual fática, ou seja, sobre o conhecimento do passado, a verdade predicável

resulta de uma ilação envolvendo os fatos comprovados do passado e os fatos

probatórios do presente por meio de uma inferência indutiva cujas premissas contêm a

descrição do fato com a explicação que se pretende e as provas praticadas, além de

generalidades, e na conclusão o fato que se aceita provado pelas premissas

correspondentes à explicação. E como toda inferência indutiva, a conclusão vale como

53

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: Teoria do Garantismo penal, op.cit., p. 43. 54

FERREIRA, William Santos. Princípios fundamentais da prova cível. São Paulo: Editora Revista dos

Tribunais, 2014, p. 55/56. 55

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: Teoria do Garantismo penal, op.cit., p. 45.

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probabilidade, do que se conclui que a verdade não resulta demonstrada das premissas,

mas apenas provável ou razoavelmente plausível. É exatamente por isso que, aliás, o

mesmo conjunto probatório pode levar a conclusões diferentes.

Também a verificação jurídica resulta de uma inferência, só que dedutiva

(não aquela indutiva que se obtém pelo exame das provas para comprovação do fato),

vez que no antecedente consta o conceito jurídico classificatório e no consequente a

classificação do fato provado no antecedente (conceito). Nesse tipo de inferência,

afirma Ferrajoli, as conclusões são verdadeiras sobre suas premissas, mas ambas (tanto

conclusões quanto premissas) são opinativas. Para ele, a validade da subsunção

dependeria da precisão do conceito classificatório e da proposição sobre o fato que será

classificado, ou seja, do antecedente e do consequente.

Ocorre que, na prática, tentando demonstrar a realização de um silogismo

perfeitamente válido, a proposição fática seria enunciada pelas mesmas palavras

utilizadas pela definição legal do conceito jurídico, isso porque a conclusão sobre a

subsunção já está realizada, ou seja, a conclusão de que o consequente está classificado

no antecedente já fora feito em manifesto caráter opinativo.

Estas considerações levam o autor a concluir pelo aspecto provável da

verdade fática e opinativa da verdade jurídica, constituindo no segundo limite e

afastando qualquer juízo de certeza da verdade processual, conforme expressão de seu

autor.

Note-se, assim, que Ferrajoli admite a concepção abstrata de norma jurídica,

isso porque, assume que a norma pode ser anterior à atividade interpretativa necessária

para o deslinde de um caso concreto, concepção que, aliás, condiz com o procedimento

de aplicação por ele adotado em sua teoria, qual seja, a subsunção, consoante sua

inserção no positivismo, o que também quer dizer que o texto abarca a própria

facticidade (toda a norma é geral e contém respostas antes das perguntas).

Como se vê, todo o pensamento de Ferrajoli está estruturado na distinção

entre questão de fato e questão de direito, o que se conclui, entre outras passagens, pela

sua divisão da verdade processual em verdade jurídica e verdade fática. Ocorre que,

com esteio em Castanheira Neves56

, há uma profunda implicação entre fato e direito, já

que este normatiza aquele. A implicação é natural, pois toda questão de direito é jurídica

porque ela juridiciza um fato e o fato, por sua vez, somente possui sua facticidade

56

NEVES, Antonio Castanheira. Questão-de-fato – questão-de-direito; o problema metodológico da

juridicidade (ensaio de uma reposição crítica). Coimbra: Almedina, 1967, p. 511.

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45

levada em conta porque apresenta reflexos jurídicos57

, o que será melhor abordado mais

adiante.

Há, ainda, na teoria ferrajoliana, um terceiro fator limitante a ser

considerado que afasta ainda mais tal predicável certeza, qual seja, “o caráter não

impessoal deste investigador particular legalmente qualificado que é o juiz”58

, ainda

que esteja se esforçando ao máximo para livrar-se de qualquer aspecto que influencie

sua objetividade.

É que, reconhece o autor, o juiz estará sempre influenciado por

circunstâncias ambientais nas quais atua, seus sentimentos, inclinações e emoções, seus

valores ético-políticos, a possibilidade de se comprometer com finalidades externas à

investigação de uma determinada verdade, preconceitos que o leva a valorizar

criticamente uma prova diante de um preconceito seu.

Essa verdade processual seria involuntariamente influenciada pela

subjetividade do juiz e é intensificada por três elementos: um extrínseco e dois

intrínsecos à natureza da jurisdição.

O elemento extrínseco refere-se ao objeto da investigação judicial que se

relaciona com o aspecto moral e emocional repercutindo na decisão conforme as

convicções morais e políticas pessoais do julgador, bem como pelas imposições do

ambiente externo como a cultura.

Veja-se, então, que aqui reside uma contradição: o autor preceitua a tese da

separação entre direito e moral, consoante postula o positivismo, mas prevê como

elemento intrínseco da verdade processual e que a diferencia da verdade científica o

aspecto moral e convicções políticas do julgador. Veja-se que as pré-compreensões

gadamerianas explica esta conclusão de Ferrajoli ao dispor que para pré-compreender o

intérprete já está na moralidade, pois já se encontra na história, na tradição, nos

costumes e orientações políticas, sociais, filosóficas e jurídicas. Gadamer explica que

sobre os prejuízos autênticos é possível limitar o poder do intérprete (e pela total

ilegitimidade de criminalizarem-se condutas imorais). A diferença é que em Ferrajoli os

preconceitos são sempre tomados sem uma forma negativa quando teme pela

incorporação, pelo Estado de Direito, dos ideais da moral religiosa precozinando a

radical cisão entre Direito e Moral.

57

Ibidem, p. 511. 58

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: Teoria do Garantismo penal, op.cit., p. 46/47.

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46

Já os elementos intrínsecos dizem respeito, o primeiro, aos erros judiciários

que não podem ser corrigidos da forma como são os erros historiográficos e cientistas

em razão da coisa julgada, e o segundo à (de)formação profissional própria do juiz, isto

é, ao (des)conhecimento que ele tem das normas. Isso porque, na interpretação

designada por Ferrajoli59

como “operativa”, as normas condicionam a linguagem do juiz

e sua aproximação aos fatos que devem ser julgados, selecionando os fatos relevantes

conforme as normas e ignorando os demais, de maneira que o conhecimento das normas

dessa ou daquela maneira, fará com que os olhos do julgador saltem sobre determinados

fatos e provas e se fechem a outros.

O autor está a pontuar relevantemente a subjetividade do julgador na sua

compreensão. Peca, contudo, ao não generalizá-la.

Reconhece, também, que, na investigação judicial, além da subjetividade do

juiz, soma-se ainda a subjetividade de muitas fontes de prova, como as testemunhas,

especialmente porque a maioria das fontes judiciais, ao revés, é produzida para a

investigação dos fatos a que alude, e não antes e independentemente dessa

investigação60

.

Mas essa subjetividade não é detectável em todas as formas de

conhecimento empírico? O sujeito que conhecerá não estará sempre dotado dessa

subjetividade porque imerso no seu mundo e dotado de suas próprias experiências e

percepções?

A abordagem que Ferrajoli está fazendo é psicológica com o propósito de

esclarecer algumas características do raciocínio que o julgador precisa desempenhar.

Para Michele Taruffo61

, a perspectiva psicológica da valoração das provas não se ocupa

das características da tomada da decisão, mais importantes sob a análise racional e

jurídica.

Para este autor, não há razão para se pensar que quando o juiz entra em

contato imediato com a prova, como ocorre quando escuta uma testemunha, seja

irremediavelmente transportado para uma dimensão irracional na qual somente tem

espaço para reações interiores e individuais. Entende que neste momento provavelmente

59

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: Teoria do Garantismo penal, op.cit., p. 48. 60

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: Teoria do Garantismo penal, op.cit., p. 48. Nesse tocante,

importante observar a diferenciação entre meios e fontes de prova. William Santos Ferreira, de maneira

clara, e em alusão à José Carlos Barbosa Moreira, explica que “Se a pergunta for: onde podem ser

obtidas informações? Estar-se-á tratando das fontes de prova. Se for: como estas informações chegam ao

julgador? Estão sendo procurados os meios de prova. A primeira é objeto, a segunda e instrumento.”

FERREIRA, William Santos. Princípios fundamentais da prova cível, op.cit, p. 57/58. 61

TARUFFO, Michele. A prova, op.cit., p. 131.

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47

está o juiz sujeito a impressões, as quais podem influenciar quando da valoração

judicial, razão pela qual o próprio juiz deve desconfiar e, portanto, assumir uma atitude

de distância crítica em detrimento do envolvimento emocional. Isso porque se existe o

perigo do juiz usar na sua interpretação o comportamento da testemunha, critério

psicológico sem fundamento extraído de um sentido comum cheio de erros e de

prejuízos, é evidente que o juiz que se deixa levar por suas reações emocionais converte

sua valoração em puro arbítrio62

.

Vê-se que Taruffo acredita, ao abordar o “distanciamento crítico”, na

possibilidade de percepção do juiz sobre os inputs que podem ter algum valor

cognoscitivo sobre a base de critérios intersubjetivamente aceitos ou aceitáveis e sobre

aqueles que não têm este valor e pertencem à esfera das reações emotivas estritamente

individuais e desprovidos de qualquer significado intersubjetivo63

.

De forma semelhante, o estudo empírico voltado à influência das ilusões

cognitivas em decisões judiciais a ser adiante abordado aponta a auto-educação por

parte dos juízes para que evitem erros sistemáticos como ponto a ser desenvolvido pelo

sistema em direção à diminuição dos efeitos das ilusões cognitivas do juiz. O

distanciamento crítico não deixa de ser uma auto-educação.

É imprescindível que se perceba que o presente estudo adere à relevância da

psicologia para a compreensão de algumas características quando da tomada de decisões

sobre os fatos, importância que, conclui-se, não é negada por Taruffo, mas que é

minorada ao considerar que a análise psicológica não se ocupa de outras características

mais importantes em comparação com outras perspectivas.

Os juízes são pessoas e pessoas cedem a ilusões cognitivas produtoras de

erros sistemáticos, de maneira que até os mais talentosos e dedicados juízes cometem

erros ocasionais.

No Brasil, um estudioso importante da temática é Eduardo José Fonseca da Costa

que abordou o tema na exposição do Congresso Panamericano em Azul no tocante às

propensões cognitivas do magistrado e o dilema dos poderes oficiosos de produção de prova.

Um estudo empírico voltado à influência das ilusões cognitivas em decisões

judiciais foi conduzido por Chris Guthrie, Jeffrey J. Rachlinski e Andrew J. Wistrich

para determinar o modo como juízes decidem com base em cinco ilusões cognitivas

comuns: âncora (fazendo estimativas baseadas em pontos iniciais irrelevantes),

62

Ibidem, p24/25. 63

Ibidem, p24/25.

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enquadramento (tratamento de ganhos e perdas economicamente equivalentes de forma

diferente), influências passadas (percebendo eventos passados como mais previsíveis do

que eles realmente foram), representatividade heurística (ignorando importantes

informações estatísticas a favor de informações individuais) e influências egocêntricas

(supervalorizar suas próprias habilidades).

Participaram do estudo 167 juízes federais tendo em vista que são

designados, nos EUA, por mérito próprio e recomendações. Contudo, como o estudo

ressalta, não há razões para se acreditar que o estudo se aplicaria unicamente a este

grupo. Estes juízes, que concordaram em participar da pesquisa, responderam a

questionários não identificados entregues a todos os participantes, mas com conteúdos

diferentes, a serem respondidos voluntariamente e independentemente dos demais, sem

qualquer discussão prévia.

Os enunciados nos questionários eram elaborados distintamente e voltados

cada um a uma ilusão cognitiva. O primeiro enunciado tratava de analisar o efeito da

“âncora” sobre as decisões judiciais.

Basicamente, trata-se de analisar os valores que as ofertas iniciais produzem

sobre o valor decidido ou acordado ao final. Russel Korobkin e Chris Gutchrie

perceberam com seus estudos que as pessoas estavam mais inclinadas a aceitarem um

acordo final de $12.000,00 (doze mil dólares) quando seguida de uma oferta inicial de

$2.000,00 (dois mil dólares) do que de uma de $10.000,00 (dez mil dólares), e isso

porque aqueles que receberam a oferta inicial menor esperavam receber um valor

pequeno, de maneira que a oferta final de $12.000,00 (doze mil dólares) pareceu muito

generosa.

Nos questionários da pesquisa com os juízes dividiu-se o enunciado com

uma oferta inicial e sem uma oferta inicial para se verificar quais seria o valor final

estabelecido pelos juízes a título de danos em um caso em que um litigante aciona uma

grande empresa afirmando ter sido hospitalizado e estar em uma cadeira de rodas após

ter sido atropelado por um caminhão da empresa. Os questionários com âncora

informavam, em adição comparativamente com os questionários sem âncora, que a

empresa Ré havia requerido o não recebimento da petição porque não atingia o mínimo

legal de $75.000,00 (setenta e cinco mil dólares).

O resultado das respostas demonstrou que os 66 juízes do grupo sem âncora

indicaram que proveriam os danos numa média de $1.249.000,00 (um milhão duzentos

e quarenta e nove dólares) enquanto os 50 juízes do grupo com âncora proveriam os

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danos numa média de $882.000,00 (oitocentos e oitenta e dois reais). Nota-se que as

diferenças de valores são significantes.

Nesse sentido, o estudo comprova que os juízes são suscetíveis às âncoras,

bem como são os leigos.

Por sua vez, o estudo comprovou que os juízes, bem como comprovado em

estudos anteriores que tinham em consideração advogados experientes, têm menos

suscetibilidade à influência do “enquadramento”.

Diferentemente, o estudo comprovou que os juízes estão tão suscetíveis às

propensões retrospectivas quanto jurados e leigos. As propensões restrospectivas da

psicologia designam a tendência das pessoas de supervalorizarem as suas próprias

habilidades de predizer o passado e acreditam que outros devem ser capazes de prever

eventos melhor do que realmente era possível. Adicionalmente, estudos comprovam que

propensões retrospectivas influenciam julgamentos sobre responsabilidade civil. A

título exemplificativo, Kim Kamin e Jeffrey Rachlinski compararam decisões

prospectivas relativas se deveriam ou não tomar uma medida de precaução contra

inundação com avaliações retrospectivas sobre se a falha de tomar essa precaução foi

negligência. O resultado mostrou que somente 24% dos participantes no grupo das

decisões prospectivas concluíram que a probabilidade de ocorrer uma inundação

justificaria tomar a medida de precaução, enquanto 57% dos participantes no grupo das

propensões retrospectivas concluíram que a inundação era provável de acontecer ao

ponto de haver negligência em não tomar a medida de precaução.

Essa comparação demonstrou que, devido à propensão retrospectiva, a

decisão em tomar a medida de precaução parecia razoável para a maioria dos

participantes ex ante, mas parecia irrazoável para a maioria dos participantes ex post.

E no aspecto judicial, é necessário ter-se em mente que o Judiciário

normalmente avalia um evento depois do fato, de maneira que assim estarão suscetíveis

às propensões retrospectivas.

O reconhecimento da influência das propensões retrospectivas em

julgamentos legais também inspirou uma série de reformas, que incluem

grande influência em juízes. Contudo, esta abordagem é difícil de trazer

sucesso porque as propensões retrospectivas é uma das ilusões cognitivas

mais robustas. Grande confiança nos juízes é improvável de eliminar os

efeitos nas decisões judiciais. Apesar da experiência reduzir o efeito das

propensões retrospectivas, não o elimina.64

64

“Recognition of the influence of the hindsight bias on legal judgements hás also inspired a set of

proposed reforms, which include greater reliance on judges. This approach is unlikely to be successful,

however, because the hindsight bias in one of the most robust cognitive illusions. Greater reliance on

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50

Basicamente, saber o resultado influencia a avaliação dos juízes sobre qual

consequência seria mais provável. Na previsão sobre fatos que já ocorreram, os juízes

acabam por respaldarem-se em fatos indisponíveis no momento da decisão. A

suscetibilidade dos juízes às propensões retrospectivas é equivocada porque juízes são

frequentemente esperados a suprimir seus conhecimentos de uma série de fatos antes de

decidirem. Por exemplo, ao decidirem sobre a supressão de provas resultante de uma

busca policial, juízes precisariam ignorar o conhecimento sobre o resultado da busca

para fins de determinar se a polícia tinha justa causa em conduzir a busca.

Já no que concerne à tendência das pessoas basearem seus julgamentos na

extensão em que a evidência analisada é representativa de uma categoria, é genérica, os

psicologistas chamam de “representatividade heurística”. Quando a evidência aparenta

ser representativa de uma categoria ou similar a ela, as pessoas tendem a acreditar que a

evidência é um produto da categoria.

Mas o resultado do estudo comprovou que os juízes são muito mais

atenciosos que outros profissionais a avaliarem estatísticas e são menos propensos a

fazer decisões baseadas somente na representatividade da evidência.

E finalmente, em se tratando da tendência de se auto-avaliarem, que os

psicologistas chamam de propensões egocêntricas, as pessoas tendem a se super

valorizarem. Primeiramente, na auto-apresentação, ainda quando não acreditam que se

encontram acima da média. Ainda, as pessoas se engajam em buscas mentais

confirmatórias por uma teoria que eles querem acreditar. E ainda, as pessoas lembram

suas próprias ações mais do que das ações dos outros, revelando uma mente

egocêntrica.

Nesse sentido, devido às propensões egocêntricas, litigantes e seus

advogados provavelmente superestimam suas próprias habilidades e a qualidade de seus

serviços, bem como os méritos do caso.

Para verificar se juízes são suscetíveis às propensões egocêntricas, os juízes

foram convidados no questionário a estimarem um percentual de reforma de seus

julgamentos em recurso. O resultado foi claramente egocêntrico. Quase 60% dos

entrevistados estimaram que cerca de 25% de suas decisões eram revertidas em

recursos. Ademais, vários juízes indicaram que nunca tiveram uma decisão reformada.

judges is unlikely to eliminate its effect on adjudication. Although experience reduzes the effect of the

hindsight bias somewhat, it does not eliminate it.”

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51

Contudo, psicólogos concluem que acreditar fortemente nas suas próprias

habilidades ajuda a manter uma boa auto-estima e saúde. Assim, dá-se preferência a

juízes resolvidos e seguros do que tímidos e inseguros.

Vistas as cinco ilusões cognitivas e o resultado do estudo, concluiu-se que,

apesar dos juízes demonstrarem menos vulnerabilidade a duas das cinco ilusões

cognitivas do que outras pessoas leigas ou de outra profissão, os juízes são levados a

erros de julgamento em determinadas circunstâncias.

Nesse contexto, como foi mencionado por Ferrajoli quanto ao terceiro fator

limitante atinente à verdade processual, qual seja, “o caráter não impessoal deste

investigador particular legalmente qualificado que é o juiz”65

estará sempre presente

ainda que esteja se esforçando ao máximo para livrar-se de qualquer aspecto que

influencie sua objetividade.

Comparativamente, as circunstâncias de um julgamento no Judiciário e na

pesquisa são diferentes, mas o estudo concluiu que a não ser que tais circunstâncias

alterem a forma como os juízes pensam, elas não vão eliminar os efeitos das ilusões

cognitivas.

Então, como deveria se comportar o sistema jurídico para evitar ou reduzir

os efeitos das ilusões cognitivas? O estudo apontou três pontos a serem desenvolvidos

no sistema para se atingir esta finalidade.

Primeiramente, a auto-educação por parte dos juízes no que concerne tais

ilusões cognitivas para que evitem erros sistemáticos, bem como a realocação de

decisões entre juízes e júri considerando o que cada um pode da melhor forma decidir

de acordo com o efeito de cada ilusão cognitiva, e ainda, juízes e legisladores podem

minimizar legalmente os efeitos que as ilusões cognitivas produzem no julgamento.

Mas assume que, mesmo que juízes não tenham propensões ou preconceitos

com relação aos litigantes, compreendam inteiramente a lei aplicável e saibam todos os

fatos relevantes, eles ainda podem cometer erros sistemáticos no processo decisório

sobre algumas circunstâncias simplesmente devido à maneira como pensam, como

todos os seres humanos.

O estudo conclui, enfim que ainda que litigantes, advogados e juízes tomem

medidas para diminuírem os efeitos das ilusões cognitivas, elas ainda persistirão.

65

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: Teoria do Garantismo penal, op.cit., p. 46/47.

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Voltando à Ferrajoli, o quarto e último fator, de natureza jurídica e

normativa, é designado por Ferrajoli como o “método legal da comprovação

processual”, denominado como um limite específico do conhecimento judicial e

inexistente no conhecimento científico e histórico.

É bastante difundida a corrente de que a verdade judicial distingue-se de

outras verdades fora do contexto judicial, tendo em vista circunstâncias próprias e

especiais dos processos judiciais, como em Montero Aroca66

. Essa corrente sustenta que

os sujeitos processuais não podem se valer de qualquer meio possível para buscar a

verdade diante das regras de admissibilidade e produção das provas, além de existir, no

contexto judicial, a necessidade da solução final ainda que sem a coleta suficiente de

provas, afastando esta verdade das demais.

De modo contrário, entende-se, a existência de regras processuais não

configura impedimento para a busca da verdade nem é argumento plausível para

enquadrar a verdade judicial como um tipo especial ou formal. Contudo, não se está a

negar que normas jurídicas estabelecem limites para a busca dessa verdade.

Para Taruffo, tais regras não impedem a busca, mas apenas regulam a forma

de se provar os fatos, como a produção de teorias científicas também possuem suas

próprias regulações e limites, considerando, ademais, que os princípios do direito à

prova e da livre-apreciação presentes nos sistemas processuais modernos recomendam

que as normas jurídicas que restringem o uso dos meios de provas devem ser reduzidas

a um patamar mínimo67

.

Aliás, em se tratando de regras que disciplinam a investigação,

comprovação e formação da verdade processual, como são exemplos as preclusões, as

nulidades e os testemunhos inadmissíveis, é óbvio que no sistema informado pelo

princípio da “livre apreciação do juiz” há menos rigidez do que no sistema de “provas

legais”.

Assim, para Taruffo, as normas jurídicas definem um contexto da verdade

judicial configurando-a como uma verdade contextual, como em tantas outras áreas da

experiência cotidiana, não havendo grande diferença epistêmica substancial entre a

verdade produzida no processo e outras68

.

66

MONTERO AROCA. La prueba en el processo civil. Madrid: Editora Civitas, 2002, P. 35. 67

TARUFFO, Michele. A prova, op.cit., p. 24. 68

Ibidem, p. 24.

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Mas será que se deve realmente comparar a verdade judicial com a verdade

dos outros ramos da ciência como fez Ferrajoli e Taruffo? Se a ciência dos outros ramos

buscam a certeza, bem como seus cientistas movem-se procurando a verdade, a

comparação transforma o juiz também neste sujeito que procura a verdade e cujo

resultado de seu esforço, a decisão judicial, é produto de sua certeza. Assim, o juiz que

interpreta vira um matemático que utiliza-se de um método, um procedimento com

regras pré-definidas, para produzir o conteúdo verdadeiro. E não é que o garantismo

processual define o processo como método? Ver-se-á posteriormente.

1.5. A teoria garantista ferrajoliana e a herança juspositivista: o problema da

discricionariedade judicial e a separação entre direito e moral

Ferrajoli fideliza-se, sob o plano teórico, ao positivismo lógico, e sob o

plano metodológico, ao neopositivismo lógico do Círculo de Viena com base no qual

utiliza-se do método axiomático para sua construção da teoria do direito.

O autor sustenta a existência de espaços fisiológicos e insuprimíveis de

discricionariedade judicial, colocando, como já mencionado, quatro dimensões ao poder

do juiz: (i) o poder de denotação ou de verificação jurídica, (ii) o poder de comprovação

probatória ou de verificação fática, (iii) o poder de conotação ou de discernimento

equitativo e (iv) o poder de disposição ou de valoração ético-política.

O poder de verificação jurídica é dependente da semântica da linguagem

legal, aumentando ou diminuindo conforme a vagueza e a imprecisão da linguagem

utilizada de maneira que pode ser reduzido de acordo com uma formulação mais

taxativa normativamente.

Por sua vez, o poder de verificação fática ou comprovação probatória é

aberto à valoração das provas sob a influência do raciocínio probatório indutivo e do

caráter probabilístico de qualquer verdade empírica sendo passível de redução por meio

das garantias processuais, quais sejam, o ônus acusatório da prova, o contraditório, a

não autoincriminação, a publicidade e a oralidade do juízo e a independência dos juízes.

Por fim, o terceiro poder, o de conotação, e também redutível, relaciona-se

com as “figuras do fato”, ou seja, o conjunto dos elementos que diferenciam um

comportamento do outro, dos elementos acidentais e especiais de cada prática delituosa

que a tornam única, dizendo respeito ao caso concreto.

No que tange esse poder em específico, o autor admite que essa tarefa é

valorativa, já que lida com conceitos imprecisos, como “motivo fútil”, apelando para a

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equidade do juiz. Esse juízo de equidade deve fazer com que o juiz impeça suas

ideologias pessoais, prejuízos e inclinações para compreender as da pessoa que está sob

julgamento, acreditando assim que a equidade é uma condição da imparcialidade do

juiz69

. Isso explica porque julgar com equidade acaba por conceber um juízo menos

rigoroso, a favor do imputado.

Estes poderes, que, para o autor, nunca podem ser totalmente reduzidos,

recaem em poder de disposição, o que leva à sua conclusão acerca da inevitabilidade e

inafastabilidade das margens de discricionariedade judicial porque ligadas a limites da

interpretação na racionalidade jurídica e a limites da indução na racionalidade

probatória, isto é, ao caráter discutível da verdade jurídica e ao caráter probabilístico da

verdade factual, já aqui expostos.

Nesses termos, Ferrajoli aponta o garantismo como solução à defesa das

garantias fundamentais e às circunstancias desoladoras de violação ao Estado de direito

ocasionados pelo protagonismo judicial, mas não extirpa a discricionariedade, o que soa

como contradição.

Em síntese, a abordagem garantista, segundo a qual os espaços e os poderes

da jurisdição tornaram-se essenciais, consiste em promover técnicas normativas e

garantias jurisdicionais que possam limitar o arbítrio judicial e impeçam que os juízes

criem o direito70

.

Nesse contexto, Ferrajoli aposta na determinabilidade dos sentidos da

linguagem legal (diria, uma teoria da legislação) ao ter como objetivo a redução do

poder judiciário ilegítimo por meio da redução dos espaços excessivos de

indeterminação. Mas a redação legislativa mais objetiva nunca vai alcançar a

globalidade dos acontecimentos judiciáveis. E assim, parece levar a plano inferior o

problema da interpretação. Parece insatisfatória sua teoria para a questão da

discricionariedade, e consequentemente, arbitrariedade.

Percebeu-se a necessidade de analisar dois pontos essenciais em Ferrajoli: a

defesa da velha tese juspositivista da separação entre direito e moral e a admissibilidade

da discricionariedade judicial.

Robert Alexy explicou que a relação entre direito e moral pode ser vista de

três formas: (i) a tese da vinculação, vista nas doutrinas do direito natural, (ii) a tese da

separação, que se vê nos autores positivistas como Ferrajoli, na qual o conceito de

69

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: Teoria do Garantismo penal, op.cit., p. 165. 70

FERRAJOLI, Luigi. O constitucionalismo garantista e o estado de direito, op.cit., p. 254.

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direito deve ser definido de modo que não inclua elementos morais recaindo na fórmula

kelseniana de que todo e qualquer conteúdo pode ser direito; e (iii) a tese da

complementariedade, defendida por Robert Alexy ao sustentar que a moral é um

parâmetro de correção do direito, possuidor de uma autonomia relativa, pois na

existência de algum tipo de lacuna ou casos de evidente injustiça, o discurso moral

poderia corrigir o discurso jurídico. Ou seja, a tese da complementariedade afirma que

há espaços distintos de atuação entre direito e moral, mas que a insuficiência do

discurso jurídico para resolver certas controvérsias jurídicas pode ser corrigida ou

resolvida pelo discurso moral.

De outro modo, Dworkin afirma que entre direito e moral há uma

interconexão, não existindo, assim, nem separação, nem vinculação, tampouco

completariedade. Nesta interconexão, o direito é um ramo da moral. O autor trata a

teoria jurídica como parte da moral política, inserida nela, como se o argumento jurídico

fosse um tipo específico de argumento moral. Propõe uma teoria construtivista a partir

do direito como um fenômeno interpretativo defendendo que a interpretação jurídica

deve ser feita por uma leitura moral, não para corrigir o direito, mas que a moral é o

local de onde a interpretação jurídica retira sua origem. Dworkin é criticado, aliás, por

Ferrajoli, que quando cataloga o constitucionalismo principialista inclui a proposta de

Dworkin juntamente com a proposta de Robert Alexy, teorias muito diferentes. De todo

modo, os critica como defensores da conexão entre direito e moral.

Por sua vez, Lenio Streck, parte de Dworkin e da hermenêutica filosófica de

Gadamer para afirmar que há entre direito e moral uma cooriginariedade.

Entende-se, contudo, que a tese está da separação está superada.

Em Direito e Razão Ferrajoli atribuiu à separação entre direito e moral um

sentido (i) assertivo ou teórico, afirmando a autonomia dos juízos jurídicos em relação

aos juízos ético-políticos, e outro (ii) prescritivo ou axiológico, como um princípio

político do liberalismo moderno. A separação entre Direito e Moral é, portanto, um

pressuposto teórico e axiológico fundamental de seu garantismo: o direito válido parte

da cisão radical entre direito e moral, portanto.

Mas alerta Ferrajoli sobre a importância de não se incorrer no erro de

interpretar a tese da separação como repúdio a qualquer influência da moral sobre o

direito. A separação, nas próprias palavras de Ferrajoli, quer dizer apenas duas coisas:

(...) segundo a tese assertiva, que é um corolário do princípio juspositivista da

legalidade, a justiça é um ponto de vista externo, variável de pessoa para

pessoa, e o juízo sobre a moralidade ou sobre a justiça de uma lei não implica

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nem está implicado pela tese sobre sua existência ou validade jurídica;

segundo a tese prescritiva, que é um corolário do princípio liberal da

ofensividade, o juízo sobre a imoralidade (não de uma lei, mas) de um

comportamento não é uma condição suficiente (mesmo se necessária) para

justificar a sua proibição.

Note-se, Ferrajoli sustenta a tese da separação entre direito e moral

argumentando que as modificações paradigmáticas advindas com os contemporâneos

Estados Constitucionais não comprometeram a cisão entre moral e direito, pois apenas

tornaram o sistema mais complexo, mas que, não por isso, moral e direito passaram a

implicar-se71

. O autor afasta-se inclusive da tendência de relativização de uma relação

necessária ou conceitual entre direito e moral.

Aliás, para Alfonso Garcia Figueroa72

, o fato de Ferrajoli assumir-se como

um positivista crítico relativiza a tese enquanto que a incorporação de valorações e a

dimensão crítica comprometem o positivismo. Mas Ferrajoli persiste em afirmar que o

que “as constituições democráticas constitucionalizaram não foi a moral, mas alguns

princípios morais fundamentais, de caráter liberal e democrático, que nós

compartilhamos”73

. Um tanto contraditório? O autor relata, apontando inclusive o fim à

onipotência do legislador, que:

Não vejo, portanto, que necessidade há de se falar de incorporação ou

institucionalização da moral, por que, para admitir a dimensão substancial da

democracia constitucional, deve-se dizer, como escreve Streck, que ela é o

reflexo do ingresso da moral no direito, e não simplesmente que é reflexo do

ingresso no direito de determinados princípios morais constitucionalmente

estipulados como fundamentais pela comunidade política. Aquilo que conta é

que o paradigma constitucional, comportando a positivação de alguns

princípios ético-políticos de caráter liberal e democrático, colocou fim à

onipotência do legislador, que caracterizava o modelo paleojuspositivista do

estado legislativo de direito e subordinou, tanto o legislador quanto os juízes,

a tais princípios74

.

Explica-se que a noção de moral compartilhada pelo autor é de algo que

depende do arbítrio do juiz. E, portanto, para Ferrajoli, não há uma resposta ao

questionamento da valoração probatória objetivamente mais correta! Assim “cada um

considerará melhor ou mais correta aquela que entender mais convincente ou melhor

71

PINHO, Ana Claudia Bastos de. Para além do Garantismo: uma proposta hermenêutica de controle da

decisão penal, op.cit., p. 50. 72

GARCÍA FIGUEROA, Alfonso. Las tensiones de uma teoria cuando se declara positivista, quiere ser

crítica, pero parece neoconstitucionalista. In Garantismo – Estudios sobre el pensamiento jurídico de

Luigi Ferrajoli. Madrid: Trotta, 2005, p. 277. 73

FERRAJOLI, Luigi. O constitucionalismo garantista e o estado de direito, op.cit., p. 250. 74

Ibidem, p. 251.

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motivada, mas isto não torna a solução adotada ‘objetivamente verdadeira’ ou a ‘única

correta’”75

.

Esse seria o jogo do direito no qual em cada processo são confrontadas teses

opostas argumentadas como verdadeiras. Mas, por sua teoria, nada poderia garantir qual

a única verdadeira ou absolutamente correta, pois o juiz resolve a demanda conforme a

solução que lhe pareça mais plausível e imparcial de acordo com o caráter somente

provável da verdade factual e discutível da verdade jurídica:

(...) a prova disso é o fato de que, em todo processo, contrapõem-se sempre

duas verdades, jurídicas e/ou factuais entre elas em contradição, nenhuma

das quais pode se dizer nem absoluta ou certamente verdadeira.76

Bem, se moral depende do arbítrio do sujeito, não haveria como ser

favorável uma tese que admitisse os subjetivismos do juiz. Mas as propostas de Ronald

Dworkin77

e de Lenio Streck, que defendem uma interconexão ou uma cooriginariedade

entre direito e moral, obviamente não admitem moralismo, jusnaturalismo, ou esse tipo

subjetivista da moral e que admitisse um cognitivismo ético. Em realidade, admitem

uma responsabilidade política de cada juiz/intérprete/aplicador a obedecer a integridade

do direito evitando raciocínios próprios seus de moralidade, teleologia ou de política.

Mas ocorre que nesses casos, a compreensão do que seja moral é resultante

da melhor interpretação, e como o “melhor” da interpretação implica “valoração”, o

argumento construído a partir dela será necessariamente moral. Só que, contrariamente,

viu-se que Ferrajoli defende que seu constitucionalismo positivista ou garantista reforça

o paleojuspositivismo ao incrementar o juízo de substancialidade na jurisdição

constitucional para que esta identifique o direito constitucionalmente ilegítimo, mas que

essa substancialidade constitucional é refratária da conexão entre direito e moral.

75

Ibidem, p. 253. 76

Ibidem, p. 249. 77

Adianta-se explicação que se fará em capítulo posterior: Afinal, Dworkin diz que o juiz deve decidir

por argumentos de princípio e não de políticas, apontando, assim, os limites da aplicação judicial para o

que não importam as convicções pessoais do juiz, o que passa pelo compromisso da reconstrução da

história institucional do direito e pelo momento de colocação do caso julgado dentro da cadeia da

integridade do direito de maneira que a decisão não seja uma escolha, mas uma interpretação, aquela mais

adequada, de acordo com o sentido do direito projetado pela comunidade política. A distinção entre

argumentos de política e argumentos de princípio em Dworkin é providencial nesse tocante. Para o

jusfilósofo norte-americano, “os argumentos de política justificam uma decisão política, mostrando que a

decisão fomenta ou protege algum objetivo coletivo da comunidade como um todo”, já os “argumentos de

princípio justificam uma decisão política, mostrando que a decisão respeita ou garante um direito de um

indivíduo ou de um grupo”, ambos constituindo argumentos políticos num sentido mais amplo, mas um é

argumento de princípio político e outro de procedimento político (que exige que alguma decisão

particular promova alguma concepção do bem-estar geral ou do interesse público).

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Então, quando se coloca em xeque a tese da separação, se questiona que

quando Ferrajoli reconhece a existência deste juízo de substancialidade da lei em face

da Constituição, a tematização da divergência entre o “dever-ser” constitucional e o

“ser” legislado, esse substancialismo já não carrega intrinsecamente um debate moral

acerca do conteúdo abstrato previsto constitucionalmente?

Aliás, nesse tocante, em vista do fenômeno jurídico como interpretativo,

Gadamer afirma que a moralidade é condição de possibilidade da compreensão de modo

que o homem não tem como optar entre exercer ou não juízos morais na compreensão,

pois já está mergulhado na própria moralidade, na tradição, que condiciona por meio de

conceitos prévios a própria compreensão, ou seja, por meio dos preconceitos, das

opiniões prévias. Em Lênio Streck78

vê-se a ausência de grau zero na compreensão vez

que a pré-compreensão já adianta o sentido e não está à disposição do intérprete, ou

seja, o intérprete não chega cru ao texto já que as pré-compreensões sugerem um

determinado sentido e que serão testadas e revisadas no decorrer para confirmar se são

adequadas àquele texto. É a “coisa mesma” de Martin Heidegger, professor de

Gadamer.

Explique-se, desde já, antes de qualquer dúvida, que a coisa mesma não

significa a coisa em si, até porque a hermenêutica filosófica gadameriana não existe

compreensão sem anteicpação de sentidos, sem pré-compreensão, de modo que um

prejuízo ilegítimo só se retifica quando confrontado com outra antecipação de sentido,

não é confrontando com a coisa sem i, perceba, mas com outra antecipação de sentido

acerca da coisa mesma, o texto, por exemplo79

.

Aceitando que sim como resposta àquela pergunta (é realmente possível que

o juízo de substanciliadade ou materialidade da constitucionalidade da lei seja feito

desprovido dos juízos morais na inetrpretação?) é que Dworkin fala em uma “leitura

moral da Constituição” e do Direito como integridade, e que Lenio Streck toca na

“resposta adequada à Constituição”.

Assim é que afirmam que o constitucionalismo institucionaliza a moral.

Como diz Habermas, a moral está no próprio coração do direito positivo, autor e tema

repisados pela Escola Mineira de Processo.

78

STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso, op.cit, p. 77. 79

PINHO, Ana Cláudia Bastos de. Para além do garantismo: uma proposta hermenêutica de controle da

decisão penal, op.cit., p. 67.

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Ocorre que o Iluminismo, lembrando que Ferrajoli herda as concepções do

movimento da Ilustração, pretendeu luta contra a tradição e concebe o preconceito como

algo negativo, como fruto de um passado a ser abandonado. Substituiu a tradição pela

razão, tomando-a como fonte de toda a autoridade, aliás seu livro chama-se “Direito e

Razão”. Enquanto em Gadamer juízo prévio não significa falso juízo, cabendo a ele

restabelecer o conteúdo positivo da tradição e dos preconceitos, concluindo que pela

tradição e pela incorporação de prejuízos autênticos é possível limitar o poder do

intérprete e decidir pela total ilegitimidade de criminalizarem-se condutas imorais,

objetivo de Luigi Ferrrajoli.

Em “Garantismo, hermenêutica e (neo)constitucionalismo: um debate com

Luigi Ferrajoli”, estes acaba, em realidade, por reconhecer que sua solução é relativa e

insatisfatória diante da existência de divergências interpretativas e múltiplas respostas,

plausivelmente discutíveis, mas cujo número é reduzido em decorrência do ônus da

coerência com os princípios constitucionais. Assim, conclui que o problema da indevida

discricionariedade judicial se resolve por reconhecer que o poder exercitado pelo juiz

além dos espaços inevitáveis de discricionariedade é juridicamente ilegítimo,

recordando-se que este é por ele chamado de “poder de disposição”, margem de

ilegitimidade que também possui um limite de irredutibilidade, vez que a verdade

processual é absolutamente inalcançável e a submissão à lei inevitavelmente imperfeita.

Ocorre que a tentativa de enfrentar o problema da discricionariedade é

exatamente afastar qualquer afirmação, como a que fora feito pelo autor, sobre algum

grau de ilegitimidade que resida na jurisdição.

Como se viu, a hermenêutica filosófica de matriz gadameriana acredita que

a tradição, a moralidade, não dá margem para relativismos, ao contrário do que

estabelece o garantismo que vê os preconceitos, as posições prévias, como a verdadeira

fonte de equívocos a serem disciplinados pela razão para afastar o intérprete dos erros,

por meio de métodos e técnicas, para o que seria necessário cindir Direito e Moral.

Enquanto para a hermenêutica, considerando que o intérprete não está em condições de

distinguir os preconceitos produtivos daqueles que geram mal-entendidos, deve ela

perguntar pelo modo como isso, a distinção entre preconceitos autênticos e inautênticos

se dá.

E então adentramos no segundo tema deste tópico, para o que deve-se

primeiramente alertar o leitor sobre a discricionariedade judicial que ora se debate. Ela é

aquela sinônima de arbitrariedade, não resulta de modo algum da distinção feita pelo

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direito administrativo entre atos discricionários e atos vinculados, diferentes de atos

arbitrários.

Sabe-se que o conceito de discricionariedade teve menor estudo e análise na

esfera judicial do que na administrativa por ter nascido como conceito/instituto teórico

deste ramo doutrinário.

A discussão que ora se trava diz respeito ao grau de liberdade do

intérprete/julgador diante da legislação resultante do devido processo legislativo e

democrático devendo sempre observar a Constituição.

Nesse sentido, o conceito de discricionariedade administrativa não

confunde-se com o de discricionariedade judicial, o que se diz especialmente porque

tem sido muito comum aproximar erroneamente aquilo que se chama de ato

administrativo discricionário pela doutrina administrativa com a discricionariedade

judicial.

Com fulcro em Teresa Arruda Alvim Wambier, a qual ressalta a

importância de se diferenciar a discricionariedade no âmbito administrativo em relação

à judicial, “algumas observações devam ser feitas com o objetivo de diferenciar e

afastar definitivamente essa liberdade de que goza o magistrado no ato de decidir, da

liberdade com que pode contar o agente da administração pública em seu atuar”80

.

Veja-se, então, que não se pode importar conceito próprio daquele ramo para este.

Para Celso Antonio Bandeira de Mello, eminente administrativista, a

discricionariedade representa:

(...) a margem de liberdade que remanesça ao administrador para eleger,

segundo critérios consistentes de razoabilidade, um, dentre pelo menos dois

comportamentos cabíveis, perante cada caso concreto, a fim de cumprir o

dever de adotar a solução mais adequada à satisfação da finalidade legal,

quando, por força da fluidez das expressões da lei ou da liberdade conferida

no mandamento, dela não se possa extrair objetivamente, uma solução

unívoca para a situação vertente.81

Como se sabe, os tribunais pátrios ainda aplicam a tese clássica sob a qual a

discricionariedade administrativa está fora do controle jurisdicional, ou seja, que a

competência constitucional do Judiciário permite apenas o controle sobre a

competência, a forma, a finalidade, o motivo e o objeto do ato administrativo

discricionário, excluindo qualquer controle sobre a execução do ato e impedindo que o

80

WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Recurso especial, recurso extraordinário e ação rescisória. 2.ed.

São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, n.72, p. 192. 81

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Discricionariedade administrativa e controle jurisdicional. 2.

Ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 48.

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Judiciário se manifeste sobre o conteúdo das decisões tomadas pelo administrador no

decorrer dela.

Mas o mérito está exatamente no sentido político do ato administrativo, “é o

sentido dele em função das normas da boa administração, ou , noutras palavras, é o

seu sentido como procedimento que atende ao interesse público, e, ao mesmo tempo, o

ajusta aos interesses privados”82

.

Nesse sentido, o mérito compreende elementos atinentes à aspectos

integrantes e formadores do binômio “oportunidade/conveniência” (justiça,

moralidade...) e estas são dependentes de critérios políticos e meios técnicos peculiares

ao exercício do poder administrativo, o que justifica ser ele de atribuição exclusiva do

Poder Executivo83

, consequência da própria separação de poderes84

. Então, só há

controle do conteúdo quando o ato administrativo for vinculado85

.

Assim, não há como trasladar tal conceito ao âmbito jurisdicional no qual a

discricionariedade permite uma intervenção judicial, vez que na esfera administrativa o

Judiciário não pode intervir no mérito do ato administrativo discricionário.

Conforme ensina Lenio Streck, “no âmbito judicial, o termo

discricionariedade refere-se a um espaço a partir do qual o julgador estaria legitimado

a criar a solução adequada para o caso que lhe foi apresentado a julgamento”86

, de

outro modo, no âmbito administrativo, “tem-se por referência a prática de um ato

autorizado pela lei e que, por esse motivo, mantém-se adstrito ao princípio da

legalidade”87

, isto é “o ato discricionário, no âmbito da administração, somente será

tido como legítimo se estiver de acordo com a estrutura da legalidade vigente”88

.

O autor aponta dois significados para a discricionariedade no Brasil:

“Primeiro, um modo de superar o modelo de direito formal-exegético (e, infelizmente,

82

FAGUNDES, Miguel Seabra. O controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário. 8. Ed. Atual.

Gostavo Binenbojm. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2010, p. 180. 83

Ibidem, p. 181/182. 84

VELLOSO, Adolfo Alvarado. Teoria General Del Proceso – Lección 4. Disponível em Academia

Virtual Iberoamericana de Derecho y de Altos Estudios Judiciales, p. 11. 85

Deixe-se registrada a posição de Georges Abboud para quem “os critérios de conveniência e

oportunidade devem sofrer um filtragem hermenêutica, uma vez que constituem critério inconstitucionais

para se atender o ato administrativo”. ABBOUD, Georges. Discricionariedade administrativa e judicial:

o ato administrativo e a decisão judicial. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 145. 86

STRECK, Lenio. Verdade e Consenso, op. cit., p. 50. 87

Ibidem, p. 50. 88

Ibidem, p. 50.

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acaba não passando disso); b) segundo, uma aposta no protagonismo judicial,

considerado, assim, uma fatalidade (no fundo, Kelsen já havia pensado assim (...)”89

Trata-se, em outras palavras, daquilo:

(...) convalidado pela tradição da teoria do direito, isto é, a experiência

interpretativa “conhece” um conceito de discricionariedade utilizado por

Herbert Hart em seu O conceito de direito. Ao enfrentar o problema da

aplicação da regra jurídica, Hart apresenta a tese de que no direito existe uma

“textura aberta”. Nesse ponto aparece uma diferença gritante com relação à

noção de discricionariedade administrativa: nesta, o administrador está

autorizado pela lei a eleger os meios necessários para determinação dos fins

por ela estabelecidos, mas qualquer ato por ele praticado poderá ser

questionado tendo em vista o princípio da legalidade; já na discricionariedade

judicial, o julgador efetivamente cria uma regulação para o caso que, antes de

sua decisão, não encontrava respaldo no direito da comunidade política.90

Numa análise das decisões judiciais brasileiras é possível perceber que a

discricionariedade atinge qualquer espaço de sentido como vaguezas, ambiguidades e

cláusulas abertas. A consequência é o exercício da subjetividade do intérprete que chega

inclusive a utilizar-se dos princípios para fundamentar sua própria “vontade” e seu

próprio conceito de “justiça”:

(...) da Escola do Direito Livre, passando pela Jurisprudência dos Interesses,

pelo normativismo kelseniano, pelo positivismo moderado de Hart, até

chegar aos autores argumentativistas, como Alexy, há um elemento comum:

o fato de que, no momento da decisão, sempre acaba sobrando um espaço

“não tomado” pela “razão”; um espaço que, necessariamente, será preenchido

pela vontade discricionária do intérprete/juiz (não podemos esquecer que,

nesse contexto, vontade e discricionariedade são faces da mesma moeda).91

No contexto jurisdicional, por exemplo, as decisões judiciais fundamentadas

por meio de fórmulas vazias como “presentes os requisitos legais, nego a liminar”, ou

ainda, “impossibilidade de se examinar as preliminares porque se confundem com o

mérito”, apresentam-se com discricionariedade por não possuírem qualquer

complemento de facticidade ínsita ao caso concreto. Esses termos performáticos

constituem subterfúgios para que o julgador deixe de avaliar aspectos fáticos do litígio

utilizando-se de enunciados performáticos que não são nem verdadeiros nem falsos92

.

Na esfera administrativa, decorrência do mandamento legislativo, essa

discricionariedade se apresenta de maneira distinta ao se performar no binômio

“conveniência/oportunidade”.

89

Ibidem, p. 53. 90

Ibidem, p. 50. 91

Ibidem p. 48. 92

MIRAGEM, Bruno. A defesa administrativa do consumidor no Brasil. Alguns aspectos. Revista do

Direito do Consumidor. São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, abr. 2003, n. 46, p. 120.

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Isto exposto, veja-se que o tema a ser explorado no próximo capítulo diz

respeito ao ativismo judicial. Isso se deve à conclusão de que a discricionariedade

judicial como possibilidade do juiz criar a resposta à questão jurídica apresentada,

propicia ou o ativismo ou o decisionismo judiciais93

.

Note-se que a presença do ativismo judicial fortaleceu-se como solução para

a concretização dos direitos fundamentais diante da própria ideia de um espaço

discricionário à “vontade” do intérprete/julgador. Ocorre que a vontade destes não

configura permissão para uma atribuição arbitrária de sentidos nem tampouco uma

atribuição de sentidos arbitrária, consequência inafastável da discricionariedade94

.

E nesse contexto, Ferrajoli remonta seu pensamento ao positivismo, que já o

próprio Kelsen denunciava a inexistência de um método que possa dar garantia à

correção do processo interpretativo, e à Herbert Hart95

, no qual se precisa perceber que

os espaços da “zona de penumbra” do modelo de regras são preenchidos pelo juiz por

meio da discricionariedade em razão do poder arbitrário a ele delegado, e também, que a

“zona de incerteza” pode resultar de uma construção ideológica do intérprete/juiz

aumentando, consequentemente, o espaço de discricionariedade.

Nesta discricionariedade judicial, diferentemente do que ocorre na

discricionariedade administrativa, há a criação de uma regra para regulamentar o caso

apresentado ao julgador, pois é fruto de uma abertura do sistema para legitimar as

decisões do Judiciário, abrindo, então, espaços para arbitrariedades.

Aliás, pela arbitrariedade decorrente dos espaços de discricionariedade

Dworkin critica o positivismo discricionário de Herbert Hart.

Herbert Hart sustentou que o sistema jurídico é composto por regras

primárias, que impõem deveres, e secundárias, que atribuem poderes, públicos ou

privados, permitindo a criação ou alteração de deveres ou obrigações, formadas estas

últimas pelas de alteração, julgamento e reconhecimento (remédio para a incerteza do

regime das regras primárias). E então desenvolve a tese do direito como instituição

social, como fenômeno cultural constituído pela linguagem, afirmando que a

93

ABBOUD, Georges. Discricionariedade administrativa e judicial: o ato administrativo e a decisão

judicial, op.cit., p. 145. 94

STRECK, Lenio. Verdade e Consenso, op.cit., p. 49. 95

Diga-se, aliás, que Herbert Hart figura como um dos maiores expositores dentre os positivistas do

Common Law. Sua teoria sobre o sistema jurídico ainda assim admite a possibilidade de se solucionar

questões jurídicas sem interpretação, pois, nos seus denominados “casos fáceis” o juiz limitar-se ia a

subsumir a aplicação da regra jurídica em seu núcleo duro, utilizando-se da discricionariedade no

julgamento nos chamados “casos difíceis”, e isso por estar no paradigma interpretativo do positivismo

(por meio do qual se concebe a solução das questões jurídicas pelo silogismo, sem interpretação).

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normatividade é social96

. Trata-se de uma abertura do sistema para o social

comunicando-se com a moral, a política e a sociedade:

Resumindo tudo: em Hart, os deveres (jurídicos) são criados por regrsa

sociais que ganham normatividade através de seu reconhecimento social.97

O positivismo de Hart contempla a discricionariedade judicial na medida em

que todas as regras estariam compostas por uma textura aberta a ser resolvida pelos

tribunais em cujo âmbito a decisão estará sempre certa, discricionariedade no sentido

forte concebido por Dworkin.

A discricionariedade em Dworkin apresenta três sentidos: um forte, um

fraco e um limitado. Basicamente, pelo sentido limitado, o poder discricionário é

determinado a partir da escolha entre duas ou mais alternativas, assemelhando-se à

discricionariedade administrativa, mas em seu sentido forte, a discricionariedade

implica na incontrolabilidade da decisão segundo padrões previamente estabelecidos e

que, assim, legitima a decisão judicial que fica, portanto, passível somente de críticas.

Em outras palavras, o sentido forte do poder discricionário compreende uma ausência

de limitações de padrões (standards) estabelecidos por outra autoridade.

Assim como Hart, Ferrajoli, como visto, concebe a inevitabilidade da

discricionariedade, como no sentido forte de Dworkin, margem incontrolável, na

atividade judicial.

Em “Direito e Razão” Ferrajoli destacou uma solução à loteria do

protagonismo judicial: o garantismo. Mas em 2012, o próprio autor reconheceu a

hermenêutica como alternativa, concluindo que sua teoria é relativa e não inteiramente

satisfatória ao problema, como já mencionado.

O autor reconheceu a grande utilidade da hermenêutica para o fim de limitar

o arbítrio judicial e, para ele, de impedir que os juízes criem direito, uma teoria da

decisão como aquela proposta por Lenio Streck, assim como, de maneira geral, qualquer

teoria da argumentação e do raciocínio jurídico idôneo para reduzir o arbítrio e reforçar

a racionalidade das decisões.

Ocorre que nessa contraposição à Ferrajoli trabalha-se com dois paradigmas

distintos:

No caso de Ferrajoli é desenvolvido o trabalho sob a perspectiva da filosofia

analítica cuja proposta teórica assenta-se no positivismo normativista da tradição do

96

HART, Herbert. O Conceito de Direito. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1988, p. 91. 97

MOTTA, Francisco José Borges. Levando o direito a sério: Uma crítica hermenêutica ao

protagonismo judicial. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2012, p. 72.

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neopositivismo lógico do Círculo de Viena situando sua interpretação do direito fora da

viragem linguístico-ontológica, razão pela qual Ferrajoli aposta numa “linguagem

rigorosa”, e não aceita a tese dworkiniana da única resposta correta (the one right

answer).

Já na teoria de Lenio Steck, o direito é colocado no paradigma da

fenomenologia hermenêutica e da hermenêutica filosófica que possibilita o

enfrentamento da questão da interpretação do direito, e também de sua aplicação

(Gadamer, contra a cisão entre interpretar e aplicar) concluindo pela defesa de um

direito fundamental do cidadão à respostas adequadas à Constituição com a imbricação

entre Hans-Georg Gadamer e Ronald Dworkin.98

O garantismo ferrajoliano indubitavelmente pertence a uma visão da

linguagem como ferramenta disponível para conhecer objetos enquanto Lenio Streck

concebe o giro ontológico linguístico e um novo conceito de norma, que passa a ser

concreta e produto da própria linguagem, da atividade interpretativa do intérprete.

Enfim, precisa-se compreender que, considerando que a discricionariedade

por diversas vezes recai em arbitrariedade, é conceito que com a democracia é

incompatível! Nada mais esperado, para a empreitada que se propõe, abordar as

contribuições dos garantistas processuais civis.

1.6. O garantismo processual civil

A doutrina internacional tratou de aplicar as bases do garantismo de Luigi

Ferrajoli, reconhecendo desde sempre a originalidade da obra do autor da onde ressoou

a voz garantista em virtude do próprio subtítulo que Luigi Ferrajoli utilizou na sua obra

“Direito e razão – Teoria do Garantismo Penal”.

Registre-se desde já, contudo, a existência de equivocada doutrina afirmando

que o reconhecido “garantismo processual civil” baseia-se em errônea aplicação da

teoria de Luigi Ferrajoli ao processo civil, como Jorge Peyrano99

, defensor do ativismo

judicial que muito debate com o garantismo processual de Adolfo Alvarado Velloso,

doutrinador este com destacável repertório e grande defensor do modelo acusatório e da

98

STRECK, Lenio. Neoconstitucionalismo, positivismo e pós-positivismo. In ___; FERRAJOLI, Luigi;

STRECK, Lenio. (Orgs). Garantismo, hermenêutica e (neo)constitucionalismo: um debate com Luigi

Ferrajoli. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2012, p. 88. 99

PEYRANO, Jorge W.. Disponível em:

http://www.pensamientocivil.com.ar/system/files/el_cambio_de_paradigmas_en_materia_procesal_civil.p

df. Acesso em 10 jul 2015.

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66

Constituição, Lei, com maiúscula, que sempre está acima da lei, com minúscula,100

ao

que se adere irrefutavelmente.

Nesse sentido, tal movimento jusfilosófico pretende o irrestrito respeito à

Constituição e aos Pactos internacionais hierarquicamente igualados, asseverando que o

juiz empenhe-se em favor das garantias constitucionais, jamais de pessoa ou coisa que

não a Constituição.

Afirma-se detidamente que os louvores do garantismo são pela legalidade, tão

apontada por Ferrajoli, que, como visto, constitui sua teoria com dois elementos, quais

sejam, a estrita legalidade e a estrita jurisdicionariedade, mas obviamente, por

constituir-se como aporte do Estado Constitucional, reclama por uma legalidade

constituída a partir dos valores introduzidos na Constituição.

O garantismo no processo civil sustenta um processo idealizado como

método de debate e dialogal entre as partes condicionado às diligências destas na

atividade processual no qual se intenta assegurar, por meio do devido processo legal,

uma ampla participação que valoriza a ampla defesa, o contraditório e a imparcialidade

judicial com a máxima restrição dos poderes dos juízes101

.

No mesmo sentido exposto, o processo a que se refere Glauco Gumerato

Ramos deve ser entendido como um método de discussão, um meio de debate dialogal e

argumentativo que se realiza entre dois sujeitos naturalmente desiguais situados em

posições antagônicas a respeito de uma mesmo bem da vida102

.

A teoria garantista privilegia o sistema acusatório em detrimento do

inquisitivo. Ferrajoli, aliás, já reconhecia a indubitável conexão entre o sistema

acusatório e seu modelo garantista, ainda que faça de seu modelo algo genérico e

aproximável em todo e qualquer sistema.

Esta doutrina garantista concebe a ideia de processo vinculada histórica e

logicamente à necessidade de organizar um método de debate dialogal concluindo que a

100

VELLOSO, Adolfo Alvarado. El garantismo procesal. In SOARES, Carlos H. RAMOS, Glauco G.;

GRADOS, Guido Aguila; RÚA, Mónica Bustamente; DIAS, Ronaldo Brêtas de Carvalho. (Coord.)

Proceso Democrático y Garantismo Procesal. Belo Horizonte: 2015, Arraes Editores, p. 34. 101

RIBEIRO, Sergio Luís Almeida. Porque a prova de ofício contraria o devido processo legal?

Reflexões na perspectiva do garantismo processual. In: FREDIE DIDIER JR; JOSE RENATO NALINI;

GLAUCO GUMERATO RAMOS; WILSON LEVY. (Org.). Ativismo judicial e garantismo processual.

1ed. Salvador: Editora Juspodivm, 2013, v. 1, p. 639-647. 102

VELLOSO, Adolfo Alvarado. El garantismo procesal, op.cit., p. 16.

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razão de ser do processo não pode ser outra que não a erradicação da força no grupo

social para assegurar a manutenção da paz e de normas adequadas de convivência103

.

É claro, contudo, que a ideia de força não pode ser eliminada por completo,

pois há casos em que se permite a subjugação e o triunfo da vontade sem lógica, casos

em que a demora do Direito poderia permitir a consumação de um mal cuja existência

não se deseja. Em tais circunstâncias, a lei, então, permite aos particulares utilizar de

certo grau de força que, mesmo ilegítima, se vê legitimada pelo próprio Direito.

E nesse sentido, o processo tem duas funções: uma função privada,

considerando-o como instrumento que tem todo indivíduo em conflito para alcançar

uma solução pelo Estado se não tiver alcançado sua dissolução mediante uma das

possíveis formas de autocomposição, e uma função pública, constituindo uma garantia

do Estado a todos seus habitantes em razão da proibição da força privada.

Aprofundando a análise sobre a concepção de processo da doutrina processual

garantista, Adolfo Alvarado Velloso104

parte do conceito de instância, entendida

juridicamente como o direito que tem toda pessoa ou ente de dirigir-se à autoridade para

dela obter, além de um procedimento, uma resposta cujo conteúdo final não pode ser

previamente definido.

Entre o instar e a resolução final existe necessariamente uma série de atos que

deve seguir uma ordem preestabelecida, o que seja, um procedimento.

Note-se: o objeto da instância é sempre um procedimento enquanto o objeto do

procedimento é a resolução da autoridade.

Nesse contexto, dispõem de 5 instâncias, sendo uma delas a ação processual,

(além da denúncia, petição, recurso ou reconsideração e queixa) que se diferencia das

demais por seu caráter bilateral, já que para cumprir a atividade necessita da presença

simultânea de três sujeitos: quem insta, quem recebe o instar e uma terceira pessoa que é

quem deve efetuar a prestação pretendida.

Em síntese, o objeto da ação é obter um procedimento que, por dar-se entre três

e não entre duas pessoas, receberá a denominação de processo. Assim, processo é um

procedimento específico que se dá, no mínimo, entre três sujeitos cuja causa é a

necessidade de alcançar o acolhimento da pretensão contida no instar.

103

VELLOSO, Adolfo Alvarado. Sistema Procesal. Garantía de La libertad. Tomo I. Buenos Aires:

Rubinzal – Culzoni Editores, 2009, p. 307. 104

Cf. aula ministrada no curso de Mestrado na Universidade Nacional de Rosário.

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Denunciam, assim, a equivocada doutrina que privilegia a meta sobre o

método porque concebe como processos simples procedimentos que não se dão em

realidade entre três pessoas e muitas vezes não observam sua essencial série lógica:

afirmação – negação – confirmação – avaliação ou conclusão.

Parece ficar claro que o termo “método” é usado pelo autor no sentido de

um procedimento mecânico prévio, capaz de ordenar e estruturar o conhecimento de

algo, acepção construída na modernidade. Este método é rígido e formado por etapas

pré-determinadas que trarão uma decisão correta se também for correta a sua aplicação.

Parece, assim, que a teoria garantista processual coloca o foco na obtenção

da decisão, que, para os autores, será correta desde observe a série lógica. Salvo melhor

juízo, o resultado da decisão não é uma forte preocupação já que a decisão judicial

estará justificada apenas quando respeita a equidade dos procedimentos. E assim,

arrisca-se a apontar tal teoria como procedimental, pois procura estabelecer critérios

prévios para correção da decisão judicial, ao contrário de substantiva, que seria aquela

preocupada com o conteúdo da decisão judicial justificada não apenas na observância à

equidade dos procedimentos.

Nesse sentido, o processo deve possuir as seguintes características:

- o processo somente pode ser iniciado pelo particular interessado. Nunca pelo juiz;

- o impulso processual somente é dado às partes. Nunca pelo juiz;

- o juízo é público salvo exceções;

- existe paridade absoluta de direitos e igualdade de instâncias entre autor (ou acusador)

e demandado (ou réu);

- o juiz é um terceiro que, como tal, é impartial (não parte), imparcial (não interessado

pessoalmente no resultado do litígio) e independente (não recebe ordem) de cada um

dos contraditores. Portanto, o juiz é pessoa distinta da do acusador;

- não preocupa nem interessa ao juiz a busca incessante e a todo custo pela verdade real

senão que, muito mais modesta, procura alcançar a manutenção da paz social fixando

fatos para adequá-los à norma jurídica, tutelando assim o cumprimento das

determinações legais;

- ninguém intenta alcançar a confissão do demandado ou imputado, pois sua declaração

é um meio de defesa e não de prova, pelo que se proíbe sua provocação (interrogatório);

- correlativamente exige que quando a parte deseja declarar espontaneamente o faça sem

mentir. Portanto, penaliza o perjúrio;

- se proíbe a tortura;

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- o imputado sabe sempre do que é acusado, quem o acusa e quem são as testemunhas.

Inegavelmente essas linhas caracterizam o sistema acusatório. Afinal, o

garantismo concebe o poder como maléfico. Entendem que o sistema acusatório

configura a única possibilidade para se gerar um processo nos termos adiante expostos.

Esse modelo teórico, lembrando que não há porque se falar da existência de um único

garantismo, rechaça toda e qualquer característica que remeta a um sistema inquisitório

ao concordarem que este não poderá nunca dispor de um processo por contrariar a sua

essência lógica.

Sobre a diferenciação entre acusatório e inquisitório, veja-se os

ensinamentos da doutrina garantista, começando por Ferrajoli que relata que:

Pode-se chamar acusatório todo sistema processual que tem o juiz como um

sujeito passivo rigidamente separado das partes e o julgamento como um

debate paritário, iniciado pela acusação, à qual compete o ônus da prova,

desenvolvida com a defesa mediante um contraditório público e oral e

solucionado pelo juiz, com base em sua livre convicção. Inversamente,

chamarei inquisitório todo sistema processual em que o juiz procede de ofício

à procura, à colheita e à avaliação das provas, produzindo um julgamento

após uma instrução escrita e secreta, na qual são excluídos ou limitados o

contraditório e os direitos de defesa.105

O mesmo relata os garantistas processuais ao relatarem que no acusatório as

funções de acusar, defender e julgar são atribuídas a órgãos distintos, enquanto no

inquisitório as funções estão reunidas e o inquisidor deve proceder espontaneamente. E

é por isso que no processo inquisitório a investigação unilateral a tudo se antepõe, tanto

que dele, afirma a doutrina garantista não se tratar de processo genuíno, mas sim de

forma autodefensiva da administração da justiça.

Sobre esta dicotomia, Ada Pellegrini Grinover, apesar de defender o modelo

misto, inconcebível para os garantistas processuais e de, diferentemente, assumir que o

conceito de processo acusatório nada tem a ver com a iniciativa instrutória do juiz,

assume, semelhantemente à transcrição acima, que:

A ambigüidade e indeterminação do binômio acusatório-inquisitório são

conhecidas, sendo polivalente seu sentido. Por isso nos preocupamos, em

diversos escritos, em salientar aquilo que distingue, sinteticamente, o modelo

acusatório do inquisitório. No primeiro, as funções de acusar, defender e

julgar são atribuídas a órgãos distintos, enquanto no segundo as funções estão

reunidas e o inquisidor deve proceder espontaneamente. É só no processo

acusatório que o juízo penal é o actum trium personarum, de que falava

Búlgaro, enquanto no processo inquisitório a investigação unilateral a tudo se

antepõe, tanto que dele disse Alcalá-Zamora não se tratar de processo

genuino, mas sim de forma autodefensiva da administração da justiça. Onde

105

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: Teoria do Garantismo penal, op. cit., p. 453.

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aparece o sistema inquisitório poderá haver investigação policial, ainda que

dirigida por alguém chamado juiz, mas nunca verdadeiro processo.106

Ferrajoli, aliás, também relata que a dicotomia acusatório/inquisitório pode

designar uma dúplice alternativa, quais sejam, (i) a que se faz entre dois modelos

opostos de organização judiciária e por conseguinte, entre duas figuras de juiz, (ii) e

aquele entre dois métodos igualmente contrapostos de investigação processual, e,

portanto, entre dois tipos de juízo.

Mas para Ada Pellegrini Grinover entende que o que se relaciona com os

poderes instrutórios do juiz no processo é o denominado adversarial system, próprio do

sistema anglo-saxão, em contraposição ao inquisitorial system, da Europa continental e

dos países por ela influenciados. E nesse sentido, denomina-se adversarial system o

modelo que se caracteriza pela predominância das partes na determinação da marcha do

processo e na produção das provas107.

Mais adiante, Ferrajoli entende que “o sistema acusatório favorece modelos

de juiz popular e procedimentos que valorizam o contraditório como método de busca

da verdade” enquanto “o sistema inquisitório tende a privilegiar estruturas judiciárias

burocratizadas e procedimentos fundados nos poderes instrutórios do juiz,

compensados talvez pelos vínculos das provas legais e pela pluralidade dos graus de

juízo (instâncias)”108

.

O leitor atento se interrogaria de que verdade está Ferrajoli relacionando

com o processo acusatório, e mais ao final de sua obra magna, o autor explica:

Obviamente, nem o processo inquisitório ignora o problema da tutela do

inocente, nem tampouco o acusatório descuida do escopo da repressão dos

culpados. Os dois métodos se distinguem, antes, com base em duas

concessões diversas: uma, do Poder Judiciário; e outra, da verdade. Enquanto

o método inquisitório exprime uma confiança tendencialmente ilimitada na

bondade do poder e na sua capacidade de alcançar o verdadeiro, o método

acusatório se caracteriza por uma confiança do mesmo modo ilimitada no

poder como autônoma fonte de verdade.109

Mas no que está Ferrajoli se referindo à verdade fruto do poder?

(...) o primeiro (inquisitório) confia não só a verdade, mas, também, a tutela

do inocente às presumidas virtudes do poder julgador; enquanto o segundo

(acusatório) concebe a verdade como o resultado de uma controvérsia entre

partes contrapostas por serem portadoras respectivamente do interesse na

punição dos culpados e do interesse na tutela do acusado presumido inocente

até prova em contrário. É nesse sentido que as diferenças entre modelo

106

GRINOVER, Ada Pellegrini. A iniciativa instrutória do juiz no processo penal acusatório. Revista

Forense, Rio de Janeiro, v. 347, 1999, jul./ago./set., p. 03-10. 107

Ibidem, p. 03-10. 108

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: Teoria do Garantismo penal, op. cit., p. 453. 109

Ibidem, p. 483.

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teórico inquisitório e modelo teórico acusatório (...) podem ser vistas como

expressões de duas opostas epistemologias do juízo: dictum de um só sujeito,

ou contenda entre vários sujeitos; relação vertical inquisidor-inquirido, ou

relação triangular entre duas partes e um terceiro supra partes; operação

unilateral do juiz, ou actus trium personarum, iudicis,actoris et rei: o juiz

como terceiro sujeito separado da acusação como exige nosso axioma A8, o

ator como parte da acusação sobre a qual recai o ônus da verificação segundo

o nosso axioma A9, o réu como parte da defesa que tem direito à contestação

segundo o nosso axioma A10. Em todos esses casos o processo tem por fim a

"descoberta da verdade,síntese e compêndio dos dois supremos interesses

processuais" supra-ndicados. Mas são diversas as maneiras de entender a

verdade e os métodos empregados para atingila. Precisamente, enquanto o

método inquisitório se baseia em uma epistemologia substancial e

decisionista, o método acusatório pode ser configurado como a transposição

jurídica da epistemologia da falsificação delineada no terceiro capítulo. E as

três garantias A8-A10 que o compõem, eqüivalendo às condições

epistemológicas de credibilidade identificadas nos pontos 7 e 8 do parágrafo

10, podem ser consideradas ao mesmo tempo como garantias de uma verdade

controlada pelas partes em causa e da liberdade do inocente contra o erro e o

arbítrio.110

E pelo ensinamento de Ferrajoli acerca da verdade controlada pela

participação das partes, vê-se o inquisitivismo nas palavras de Ada Pellegrini Grinover

quando afirma que “o juiz deve tentar descobrir a verdade e, por isso, a atuação dos

litigantes não pode servir de empecilho à iniciativa instrutória oficial”111, pois está a

reconhecer a verdade e a tutela do inocente às virtudes do bom julgador.

Para os principais garantistas, como Juan Montero Aroca, E. Cipriani e Adolfo

Alvarado Velloso, o papel ativo do juiz é prontamente autoritário e tal estado fica

refletido no processo civil.

É que, como se pode aduzir das lições já expostas, o garantismo entende o

processo como instrumento do indivíduo contra o poder do Estado. O garantismo

referido até aqui situa-se na filosofia política liberal. Esse é o caso, por exemplo, de

Adolfo Alvarado Velloso, que assim expressamente se coloca112

.

Também não se está, por outro lado, a concordar com a doutrina que conclui

pela necessidade de se reler o princípio dispositivo diante das cargas que a legislação

atribui ao juiz grande soma de poderes na busca da verdade e na atuação das regras

processuais113

, pois se se entender ser ele o oposto do princípio inquisitivo, o seu

abrandamento, parece, não seria a assunção do modelo misto?

110

Ibidem, p.484. 111

GRINOVER, Ada Pellegrini. A iniciativa instrutória do juiz no processo penal acusatório, op.cit., p.

03-10. 112

VELLOSO, Adolfo Alvarado. Sistema Procesal. Garantía de La libertad. Tomo I. op. cit., p. 77. 113

BATISTA LOPES, João. Os poderes do juiz e o aprimoramento da prestação jurisdicional, op. cit., p.

24 – 67.

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Contudo, reconheça-se que a mudança de ideologia decorrente das

degenerações do processo liberal fez com que a passividade do juiz fosse vista

pejorativamente e até inflasse o ativismo. Contudo, “é imprescindível evitar confusões

conceituais e ideológicas: é possível que um sistema não se inspire na ideologia liberal

do século XIX, sem que por isso deixe de ser democrático e, sobretudo, sem que resulte

autoritário”114

.

E além disso, um estudo publicado por Mirjan Damaska faz-se de extrema

relevância para o presente tema. Aponta, entre outras observações, que muito além de

qualquer texto, está a mentalidade de quem o aplica, e que ademais de qualquer

impedimento ao juiz e permissão aos advogados, está a efetiva participação de cada

categoria, produto de muitas peculiaridades do sistema e que extrapolam qualquer

determinação legal. Por exemplo, o Código de Processo Civil francês de 1806 (pioneiro

no processo civil da Europa continental e seguido por todo o continente europeu no

período liberal do século XIX) concebia um processo civil em que os litigantes estavam

autorizados a controlar o processo desde o começo até o fim, limitando os fatos e

podendo, inclusive, dele desistirem. Restava pouco espaço para investigações factuais

por parte do juiz de maneira que estavam limitados a considerar as evidências trazidas

pelas partes e não mais podiam determinar a oitiva de testemunhas de ofício. Contudo,

havia uma exceção legal. Pela importante herança da tradição romana-canônica que

entendia a investigação dos fatos como parte essencial da função judicial, estavam os

juízes encarregados de interrogar a testemunha e permitidos a “ampliar o conjunto

probatório”. Mesmo assim, a tradição da justiça civil na Europa continental não se

constitui em uma investigação judicial dos fatos semelhante ao processo criminal da

Europa continental contemporânea, pois, em realidade, a investigação judicial na justiça

cível não era tão ativa, o que a afastava da tradição inquisitiva e dos juízes criminais da

Europa continental.

Para Adolfo Alvarado Velloso115

, importa ao juiz a manutenção da paz

social fixando fatos para adequá-los a uma norma jurídica, tutelando, assim, o

cumprimento do mandato da lei. Tanto é que para o autor o objetivo do processo é

“alcançar uma declaração do juiz diante de quem se apresenta o litígio ainda que, de fato,

114

TARUFFO, Michele. A prova, op. cit., p. 198. 115

VELLOSO, Adolfo Alvarado. El garantismo procesal, op. cit., p. 24.

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muitas vezes não se chegue a isso, pois os interessados – em alguns casos – preferem soluções

autocompositivas (ver o capítulo anterior) que evitam a heterocomposição”116

.

Perceba que a escolha ideológica deste autor é que a função do processo

civil é exclusivamente aquela de resolver controvérsias, pondo fim aos conflitos entre os

indivíduos privados, o que justifica a defesa do sistema acusatório e as afirmações do

Autor nos Congressos sobre a irrelevância da verdade no processo. Nesse sentido,

entende que seja deixada às partes a tarefa de gerir o embate processual e também a

produção das provas, sendo o juiz um árbitro passivo.

A doutrina concebe, por outro lado, uma opção ideológica distinta e

centrada na qualidade da decisão ao considerar que esta deve fundar-se na aplicação

correta e racionalmente justificada do direito, ou ainda, de concepções que levam em

consideração a obtenção de decisões justas e da orientação da administração da justiça

por valores públicos, concluir-se ia pela necessidade da verdade já que, com estes

parâmetros, nenhuma decisão judicial poderia ser considerada legal e racionalmente

correta se apoiada em uma determinação errônea e inverídica dos fatos a que se

refere117

.

Não é que o autor não se preocupe com a qualidade da decisão final, ocorre

que ela não é sua prioridade no processo, pois não entende cabível a defesa da meta

sobre o método.

Ocorre que o ideal seria conjugar o processo com o instrumento para a

resolução das controvérsias sem ignorar a qualidade das decisões que as solucionam.

Reconheça-se as grandes lições do autor argentino na medida em que deve-se melhor

explorar o trabalho das partes devendo ser efetivo e hábil o trabalho dos seus

procuradores, até mesmo pelas preocupações com a imparcialidade do juiz.

É que além da compreensão do juiz de sua função no processo, é de

importância fundamental a performance dos advogados a respeito de seus trabalhos, e

esse é o ponto a que devemos nos ater: “no sistema da Civil Law, eles raramente são

participantes vigorosos na produção das provas, ou zelosos na busca por provas. O

quase monopólio judicial reduz o estímulo a uma postura ativa”118

. Curiosamente, em

contrapartida “no sistema da Common Law funciona uma dinâmica similar, embora em

116

VELLOSO, Adolfo Alvarado. El debido proceso. Colección Temas procesales conflictivos. Lima:

Egacal, p. 39. 117

TARUFFO, Michele. A prova, op.cit, p. 203. 118

Damaška, Mirjan. The Common Law / Civil Law Divide: Residual Truth of a Misleading Distinction,

Supreme Court Law Review, Volume 49, 2010, p. 13.

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direção diferente: já que juízes não se engajam na investigação, os defensores das

partes o fazem”119

.

Aliás, habitualmente, a tradição Common Law é apresentada como sistema

em que o curso do processo é controlado pelos litigantes ao apresentarem o caso para

um juiz passivo, enquanto o processo de Civil Law é controlado por um juiz ativo que

conduz uma investigação dos fatos envolvidos na disputa. Contudo, Mirjan Damaska120

denuncia a particularidade dos impactos de um texto normativo em sistemas em que o

juiz se sente responsável pela exatidão dos fatos a serem julgados. É que a existência e

validade do texto normativo não condicionam sua efetividade de maneira que podem os

juízes invocá-los ou deles não se utilizar.

Observa o autor, a justiça civil da Europa continental permitia ao juiz

ampliar o conjunto probatório, mas pragmaticamente não trouxe grandes efeitos

inquisitoriais. Damaska121

relata algumas razões que contribuíam para a fraca

investigação judicial na justiça civil, quais sejam, (i) a natureza não-difusa dos

interesses prevalecentes nas ações ordinárias, (ii) os direitos das testemunhas em

proteção à autonomia individual e vida privada, (iii) o direito de recusa de depoimento

da parte, (iv) a restrição à possibilidade de entrega de documentos que está sob a posse

da parte e (v) à proibição ao juiz de contradizer as declarações e confissões dos

litigantes ainda que não estivesse claro a ele que os fatos envolvendo as declarações

realmente existiram.

Só que a ausência de um comportamento instrutório ativo do juiz não foi

compensada por uma conduta probatória ativa pelas partes ou seus advogados! Os

advogados se baseavam basicamente nas informações dadas por seus clientes, não

possuíam grande contato com as testemunhas e tampouco conduziam numerosas

investigações fáticas. Mas reconheça-se, a defesa das posições contrárias a seus clientes

era feita do início ao fim de maneira zelosa e adversarial. A atenção do autor está

voltada à observação de que o predomínio da atividade das partes no Common Law não

estava condicionada à restrições na atividade judicial, especialmente porque o sistema

de Common Law reconhecia uma definição vaga a respeito dos “poderes inerentes” dos

juízes neste sistema:

(...) vagamente definido “poderes inerentes” dos juízes do Common Law,

uma visão continental poderia facilmente tender a acreditar que o predomínio

119

Ibidem, p. 13. 120

Ibidem, p. 3. 121

Ibidem, p. 4.

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das partes no processo inglês-americano era decorrente da auto-limitação

judicial na esfera do meu e teu, e por essa razão era menos estável do que em

sua pátria.122

O problema é que os juízes da Civil Law sentem responsabilidade em achar

a verdade e por isso relutam em aceitar as limitações das provas conforme colocadas

pelas partes.

Juízes da Common Law não vêem a exatidão da investigação como central de

suas tarefas, e possuem pouca dificuldade em decidir casos baseados em

provas apresentadas a eles pelas partes. Se esta atitude é um legado de longos

séculos quando a investigação era para o júri, ou se é devida a noções mais

recentes de que os juízes não devem jogar o jogo, o fato permanece que

mesmo nas maiores das reformas dos países de tradição da Common Law,

juízes não se dedicam à investigação, mas meramente supervisionam o

desenvolvimento das provas pelos litigantes. Juízes da Civil Law, por outro

lado, são herdeiros de uma longa tradição na qual precisar a investigação está

no coração de suas vocações123

.

Em que pese o autor relatar que o contraste entre as duas tradições vem

perdendo a utilidade na medida em que países da tradicional família Common Law

foram aproximando-se da tradição Civil Law e vice-versa, do antigo quadro

comparativo continuam as diferentes abordagens sobre a colheita do material para

decisão. Nos países de tradição Common Law, a tarefa é entregue aos representantes

das partes enquanto o juiz somente supervisiona suas atividades e intervém diante de

uma disputa entre eles. Nos países de tradição Civil Law, a tarefa também é ainda

realizada pelos juízes ou por um delegado seu. Enquanto a instrução probatória no

Common Law implica na troca de informações entre as partes e independe da

apresentação de provas, pois os litigantes livremente decidem quais informações

trazidas pela parte contrária serão objeto de produção de prova, no Civil Law a

instrução recebe um sentido formal na medida em que precisa estar nos autos para ser

prova e poderá ser utilizada inclusive como prova emprestada em outros processos. Essa

distinção se torna mais compreensível porque enquanto na Civil Law, a partir da decisão

do juízo a quo as correções de sua decisão deverão ser tradicionalmente realizadas pela

instância superior, respeitando a hierarquia, na Common Law os juízes possuem

significante poder para reconsiderar suas decisões e decidir o prosseguimento de um

recurso. Nota-se que os autos, no Civil Law, são de grande importância, mas não

122

Ibidem, p. 5. Tradução livre: “Apprised of vaguely defined “inherent powers” of common law judges,

a continental visitor could easily be led to believe that the mastery of Anglo-American parties over the

lawsuit was dependent on judicial self-restraint in the sphere of “mine and thine”, and for this reason was

less stable than in his homeland”. 123

Ibidem, p. 13.

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encontram correspondência no Common Law, pois neste as partes possuem “seus

próprios”. Ou seja, enquanto o Common Law confia às partes elemento de extrema

importância no Civil Law, este confia ao Estado seu elemento primordial no processo

civil, o que per si revela as preferências de cada sistema. Qualquer operador do Direito

no Brasil sabe bem o quão importante são os autos para qualquer processo.

Naquele, o desenvolvimento das provas é notoriamente dividido entre as

duas partes e seus representantes legais e, consequentemente, o ônus de seguir adiante

em direção ao convencimento do julgador pode ser claramente dividido entre os

litigantes. Por sua vez, no sistema de Civil Law, as provas permanecem sob a

responsabilidade do juiz, como se percebe, por exemplo, com a ordem de perguntas em

audiência no sistema brasileiro em que aos advogados cabe somente fazer perguntas

adicionais, até porque as testemunhas não são relacionadas com a parte que as arrola.

Evidentemente, tal responsabilidade fará com que o Estado-juiz sinta-se responsável

pelo conjunto probatório.

Isto tudo demonstra que a distinta forma com a qual o Estado-juiz dos dois

sistemas descritos enxerga seu papel é provavelmente a maior diferença entre eles,

sendo também a fonte de outras inúmeras consequências:

Juízes da Common Law não vêem a exatidão da investigação como central de

suas tarefas, e possuem pouca dificuldade em decidir casos baseados em

provas apresentadas a eles pelas partes. Se esta atitude é um legado de longos

séculos quando a investigação era para o júri, ou se é devida a noções mais

recentes de que os juízes não devem jogar o jogo, o fato permanece que

mesmo nas maiores das reformas dos países de tradição da Common Law,

juízes não se dedicam à investigação, mas meramente supervisionam o

desenvolvimento das provas pelos litigantes. Juízes da Civil Law, por outro

lado, são herdeiros de uma longa tradição na qual precisar a investigação está

no coração de suas vocações124

.

Ou seja, os juízes da Civil Law sentem responsabilidade em achar a verdade

e por isso relutam em aceitar as limitações das provas conforme colocadas pelas partes.

A mudança de ideologia decorrente das degenerações do processo liberal fez com que a

passividade do juiz fosse vista pejorativamente de maneira que o sistema da Common

Law consegue melhor aceitar a postura judicial ativista na investigação dos fatos do que

no sistema da Civil Law.

O problema é que, como apontado, além da compreensão do juiz de sua

função no processo está a performance dos advogados a respeito de seus trabalhos: “no

sistema da Civil Law, eles raramente são participantes vigorosos na produção das

124

Ibidem, p. 13.

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provas, ou zelosos na busca por provas. O quase monopólio judicial reduz o estímulo a

uma postura ativa”125

, em contrapartida “no sistema da Common Law funciona uma

dinâmica similar, embora em direção diferente: já que juízes não se engajam na

investigação, os defensores das partes o fazem”126

.

Por fim, ambos os sistemas preocupam-se hoje com a eficiência, de maneira

que a tendência é desenfatizar preocupações com formalidades e concentrar em medidas

que contribuam para o funcionamento eficiente da justiça civil.

As conclusões apresentadas por Mirjan Damaska demonstraram que a

atividade judicial precisa preocupar-se com o reflexo de seus atos na atividade das

partes e de seus advogados, especialmente para se alcançar os resultados buscados por

um Estado Democrático de Direito.

E veja-se que um grande fator sobre as funções dos sujeitos processuais e

para o protagonismo judicial é a maneira como o Estado-juiz enxerga seu papel na

condução do processo.

Quando Adolfo Alvarado Velloso considera a verdade como irrelevante ao

processo, exemplifica sua afirmação por meio de um caso hipotético em que o juiz de

primeira instância decide que o objeto da lide é uma água, dois da segunda instância

decidem o mesmo e o terceiro decide ser refrigerante, dois da última instância decidem

também ser refrigerante e os outros três decidem ser suco. Ao final, então, três

magistrados terão decidido que o líquido é água, três que é refrigerante, e três que é

suco. E então, numa oratória invejável, questiona: “Para o que importa a verdade no

processo?”.

O autor está, em realidade, causando impacto para que se repense a questão da

verdade no processo e se perceba que a verdade do juiz não é a melhor resposta a um

processo democrático. Está, em outras palavras, questionando o protagonismo judicial.

Está afirmando que não interessa ao juiz, tampouco deve preocupá-lo a busca incessante

e a todo custo pela verdade real, a verdade objetiva e absoluta. Pois quando imprime as

respostas dos juízes dessa maneira, está em realidade a apresentar os julgadores

solipsistas, que decidem conforme suas consciências, tanto que cada um chega a

conclusões completamente distintas.

125

Ibidem, p. 13. 126

Ibidem, p. 13.

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Alvarado considera inútil e contraproducente a busca da verdade no

processo, pois para ele, como visto, a finalidade fundamental do processo é a solução

das controvérsias, do contrário estar-se ia privilegiando a meta sobre o método.

Como já expresso, Alvarado crê que o processo como método de diálogo

com respeito absoluto à série lógica de “afirmação – negação – confirmação – avaliação

ou conclusão” controlada pelas partes trará a melhor resposta. Mas será que, mesmo

seguindo essa fórmula, não cairiam os juízes nos mesmos erros apresentados pelo autor

em seu caso hipotético. Essa fórmula talvez garanta que os julgadores observem as

garantias procedimentais das partes estatuídas no sistema, a maior preocupação do

autor, mas claramente não garantirá que todos os juízes cheguem a uma resposta correta

constitucionalmente. Resta, concluir, assim que o autor crê na tese das múltiplas

respostas corretas para um mesmo caso.

O processualista argentino admite, generalizando sua conclusão ao ramo

penal e civil, que, inobservada essa série lógica, já não se estaria diante de uma ação

processual.

Ocorre que as respostas corretas não estão nem no sujeito nem na fórmula:

Não foi (até hoje) possível a construção de uma racionalidade discursiva

que assegurasse condições para uma universalização do processo de

atribuição de sentido, exatamente porque os sentidos não estão nas coisas e

nem na consciência: eles dão-se intersubjetivamente. Sendo assim, estamos

“condenados a interpretar” (Streck), não há outro jeito. A saída é permitir

que a hermenêutica seja filosofia, e lidar com o “método” a partir desta pré-

compreensão”127

.

Aliás, é de se notar também que Alvarado Velloso não considera a sentença

um ato processual por considerá-la o próprio objetivo do processo, enquanto Gustavo

Adrián Calvinho segue na mesma linha, também não a considerando sequer como um

ato procedimental128

.

Essas observações ajudam a compreender o porquê não se vê nessa doutrina

grandes considerações ao conteúdo decisório, ou ainda, preocupações com uma teoria

da decisão.

Essa conclusão revela que um dos grandes problemas quando se faz um

estudo comparado ou se critica uma doutrina estrangeira é a possibilidade de

desconsideração de sua Teoria Geral do Processo. E como se não bastasse, muitas vezes

127

MOTTA, Francisco José Borges. Levando o direito a sério: Uma crítica hermenêutica ao

protagonismo judicial, op.cit., p. 152. 128

CALVINHO, Gustavo Adrián. Teoria Del acto procedimental. Colombia: Revista de Derecho

Procesal Colombiano, 2014.

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se analisa e se constrói uma argumentação baseada exclusivamente no Direito Positivo

sem as devidas considerações à efetividade deste.

Pretende-se afastar ambos os equívocos!

Ademais, Adolfo Alvarado Velloso aponta como únicos princípios

processuais preconizados pelo modelo garantista o princípio da igualdade das partes

litigantes, da imparcialidade do julgador, da transitoriedade do processo, da eficácia da

série procedimental e da moralidade no debate.

Antes de abordar cada princípio, faz-se necessário esclarecer o que este

autor entende por princípio, e como os diferencia de regra.

Afirma o autor que se trata simplesmente de um ponto de partida que deve

ser visto em função do que se pretende alcançar, são diretrizes que sempre ostentam um

caráter unitário, sem os quais não se pode falar de processo. São eles (no âmbito do

processo): o princípio da igualdade das partes litigantes, da imparcialidade do julgador,

da transitoriedade do processo, da eficácia da série procedimental e da moralidade.

Já as regras são diretrizes que se apresentam de forma binárias ou

antinômicas, e que assim, não podem coexistir, pois se autoexcluem129

.

Assevera, ainda, que as regras possuem importância inferior aos princípios,

pois sem estes não haveria processo.

Note que sua distinção se opera a priori, em um plano abstrato.

Com efeito, a preocupação com os princípios é naturalmente pós-positivista.

Se o Direito não é mais concebido como um sistema de regras, mas de regras e

princípios, interessa aos pós-positivistas saber o que fazer diante de casos não

contemplados pelas regras até mesmo como tentativa de restrição da discricionariedade

(nos termos aqui preconizados) judicial. A tematização de um padrão de julgamento

para tomar decisões diante de tal margem de liberdade é realmente importante.

Diante do tema, faz-se necessário abordar a Teoria dos Direitos

Fundamentais de Robert Alexy que tematiza a distinção entre regras e princípios,

semelhantemente à distinção apresentada por Adolfo Alvarado Velloso, cuja principal

preocupação é a de fornecer respostas racionalmente fundamentadas às questões

vinculadas aos direitos fundamentais. Nesse contexto, o autor alemão desenvolve

critérios interpretativos para a solução de casos complexos.

129

VELLOSO, Adolfo Alvarado. Sistema Procesal. Garantía de La libertad. Tomo I, op. cit. p. 347.

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Na teoria alexyana, a distinção estrutural entre as normas de direito

fundamental, bipartida em regras e princípios, e que são normas porque ambas dizem

aquilo que deve ser, reside no fato de que os princípios são mandados de otimização,

enquanto as regras têm caráter de mandados de definição.

Como mandados de otimização, os princípios determinam a realização de

algo na maior medida possível (satisfação principiológica em diferentes graus), desde

que respeitadas as possibilidades e os limites fáticos e jurídicos, limites jurídicos estes

impostos pela existência tanto de regras quanto de princípios opostos. E assim, o caráter

oposicional dos princípios implica na aplicação deles por meio da ponderação. Ou seja,

as colisões de princípios se dão no âmbito do peso, não no âmbito da validade.

Por sua vez, as regras ou são ou não são aplicadas (impossibilidade de

satisfação em diferentes graus = tudo ou nada), e para tanto, implicam na subsunção.

Isto é, regras são normas que somente admitem cumprimento ou

descumprimento, ou seja, se a regra é válida há de ser atendida, nem mais, nem

menos130

. O conflito entre regras somente pode ser solucionada por uma cláusula de

exceção que excepciona a sua incidência em um caso específico, pois se isso não

acontecer uma delas terá que ser declarada inválida implicando na sua exclusão do

ordenamento jurídico, não muito distinto do all or nothing fashion do Dworkin131

.

Robert Alexy defende a relação de complementariedade entre direito e

moral em que a moral serve como parâmetro de correção do direito. Nesse sentido, o

discurso moral poderia corrigir o discurso jurídico. Segundo o autor, os discursos sobre

o direito lida com a correção de enunciados normativos, os quais comportam

enunciados axiológicos (que se referem a valores) e deônticos (quando está em jogo

uma proibição, uma permissão ou um mandamento). Nesse sentido, o discurso jurídico

é um caso especial do discurso prático. Este é um conjunto de enunciados produzidos

sobre o dever-ser (que liga-se a formas deônticas e a valores, veja-se), abrangente de

todo o universo da cultural e do agir humano. Enquanto o discurso jurídico é um caso

especial dele porque sofre limitações internas do sistema, de fatores derivados da

130

ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudios

Constitucionales, 1997, p. 86-87. 131

O autor enumera ainda quatro vantagens do conceito que adota: “(1) se mantienen ló más cerca posible

de la Ley Fundamental y, por cierto, (2) sin que a través de ellas se impidan consideraciones de tipo

general, (3) a través de ellas no se prejuzga acerca de ninguna tesis material y estructural y (4) abarcan,

em lo esencial, las disposiciones a las cuales em la discusión sobre derechos fundamentales se les atribuye

el carácter de derecho fundamental”. Ibidem, p. 50-66.

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legalidade, da conformidade com o ordenamento e da eficácia social com o direito

positivo.

Ou seja, para Alexy, a conexão com a moral faz-se necessária para a

argumentação jurídica, pois esta alcança até onde não são possíveis outros argumentos

jurídicos, quando então, unem-se estes aos argumentos do discurso prático em geral.

Aqui, o discurso jurídico é penetrado pelos valores, pelo discurso moral.

Assim, o autor alemão produz uma teoria da fundamentação racional do

ordenamento jurídico com marco na razão prática entendida numa dimensão axiológica

e o discurso normativo passa a comportar um sentido deôntico e axiológico. Voltando-

se aqui ao ponto inicial: a norma deontológica é composta por regras e princípios e a

norma axiológica comporta as regras de valoração e os critérios de valoração

(propriamente os valores). Afirma, então, que os princípios são normas deônticas

aplicados pela ponderação por meio de um juízo valorativo que será onde o discurso

prático ingressa no discurso jurídico.

Então, note que na Teoria Alexya a distinção também é feita a priori e em abstrato,

pois a norma é configurada antes da problematização de um caso concreto, seja ele real ou

fictício, como Adolfo Alvarado a faz. É uma teoria semântica132

. Ambas são, reconheça-se,

abordagens qualitativas, ou tese como chama Alexy. Isto é, superam a abordagem quantitativa e

que foi denominada por Alexy como tese fraca da separação, que baseava-se na generalidade

como critério adequado para tal distinção, que em realidade é uma conseqüência da natureza dos

princípios, sendo incapaz de proporcionar uma diferenciação essencial.

É oportuna aqui a crítica habermasiana à ponderação alexyana: aponta que

ela implica numa concepção axiologizante do Direito, porque a ponderação só seria

possível ao se poder preferir um princípio a outro, o que somente seria permitido se os

princípios fossem considerados como valores. Para Habermas, no que concorda com

Ronald Dworkin, as normas, como princípios ou como regras, são enunciados

deontológicos, isto é, visam ao que é devido. Já os valores são enunciados teleológicos,

de modo que objetivam o que é bom, melhor ou preferível, sendo condicionados a uma

determinada cultura. E então, a norma alexyana perde a característica de código binário

para se transformar em um código gradual, ao passo que a adequabilidade sede espaço

para uma aplicação ponderada (balanceada) dos princípios tidos como comandos

132

Aliás, a justificativa alexyana para a utilização de um conceito semântico é o propósito de

problematizar as normas no âmbito de sua validade, ou seja, de reunir critérios para saber se uma norma é

ou não válida.

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otimizáveis133

. Já Habermas acredita, como Dworkin, na natureza deontológica da

validade jurídica, devendo as normas jurídicas deixarem-se reger na sua interpretação e

aplicação pro uma lógica deôntica binária (princípio da adequabilidade das normas à

unicidade e irrepetibilidade da situação concreta de aplicação), não por uma axiologia

gradual e multipolar (princípio da ponderação ou do equilíbrio de valores)134

.

Nesse tocante, quando Dworkin faz uso do termo ponderar utiliza-o em

sentido divergente daquele o atribuído por Alexy. Ele utiliza-o com o significado de

refletir, de modo que a solução de um caso demanda uma construção teórica acerca de

um princípio adequado ao caso concreto.

Quando Adolfo Alvarado Velloso afirma que o princípio é um ponto de

partida que depende do objetivo que se quer que se alcance, está, como Alexy,

assumindo-os a partir de um código gradual, até porque somente afirma a regra, note-se,

como binária. E além disso, concebe-os como teleológicos, como um objetivo a ser

alcançado conforme o que seja melhor, um comando otimizável. A margem que não se

deseja no sistema é exatamente essa, que se coloque como princípio um padrão que na

verdade é de política, ou seja, um objetivo a ser alcançado, que geralmente, consiste na

melhoria de algum aspecto econômico, político ou social da comunidade, buscando

promover ou assegurar uma situação econômica, política ou social considerada

desejável e que acaba em uma decisão que nega o direito a quem tem

constitucionalmente, seja por um argumento do mercado econômico, por exemplo, ou

um argumento que prioriza a maioria, ignorando o direito efetivo da minoria.

E uma das objeções de Habermas a Alexy se liga exatamente à crítica da

suposta aplicação gradual do direito em oposição ao código binário, que seria causada

pela máxima da proporcionalidade, causadora da perda de normatividade que o

balanceamento acarretaria aos direitos fundamentais, como enuncia o próprio Alexy: “a

abordagem do balanceamento retiraria os direitos constitucionais de seu poder

normativo. Por meio do balanceamento, pretende ele, os direitos são degradados ao

nível de fins, dos objetivos, das políticas e dos valores”135

.

Nesse contexto, veja-se que Ronald Dworkin, por sua vez, formula conceito

de norma que não comporta enquadramento como gênero que engloba regras e

133

CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Direito Constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos,

2002, p. 88-90. 134

STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso, op. cit., p. 93. 135

ALEXY, Robert. Direitos Fundamentais, balanceamento e racionalidade. Ratio Juris. Vol. 16, n. 2.

Oxford: Blackwell Publishing Ltd., 2003, p.134.

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princípios, de maneira que, aliás, há apontamentos errôneos de autores que, por umna

doutrina indicando para uma justaposição entre a teoria dworkiniana e a alexyana136

. É

que os anglo-saxões não distinguem norma de regra, de maneira que Dworkin não

define princípio como norma por este motivo. Assim, para ele, a deontologia dos

princípios e das regras está na interpretação, já que o próprio direito é interpretação, a

norma própria também o é e, portanto, não significam em abstrato, sendo fundamental a

presença do caso concreto, seja real ou fictício, como já adiantado.

Ou seja, primeiramente, o critério de distinção entre regras e princípios

apresentados por Alexy acima não encontra equivalência na posição assumida por

Dworkin. Este não distingue regras e princípios a partir de critérios morfológicos, mas

sim lógico-argumentativos. Assevera que a distinção não pode se operar a priori, em um

plano abstrato, mas somente em face de um caso concreto de modo a adquirir densidade

em razão da argumentação produzida pelos sujeitos no processo. Dworkin, então,

lembra que certas disposições podem funcionar do ponto de vista lógico como uma

regra e do ponto de vista substantivo como um princípio. Para ele, palavras como

“razoável”, “negligente”, “injusto” e “significativo” desempenham freqüentemente essa

função. Ao ter um desses termos, a regra faz com que sua aplicação dependa, até certo

ponto, de princípios e políticas que extrapolam a própria regra, é que a utilização desses

termos faz com que essa regra se assemelhe mais a um princípio. Mas não chega a

transformar a regra em princípio, pois até mesmo o sentido restritivo desses termos

restringe o tipo de princípios e políticas dos quais pode depender a regra137

. Ademais,

em momento algum a teoria de Dworkin deixa de atribuir a natureza deontológica aos

princípios, típicas das normas em geral.

Tratando então de cada um dos princípios conforme as considerações do

autor argentino, ele trata da igualdade como paridade de oportunidades e de tratamento

judicial, e nesse sentido, as normas que regulam a atividade de uma das partes

antagônicas não podem constituir uma vantagem ou privilégio sobre a outra, nem o juiz

pode deixar de dar um tratamento absolutamente similar a ambos os contendedores138

.

A consequência da aplicação desse princípio é, para os garantistas, a

bilateralidade ou contraditório, de maneira que cada parte tem o irrestrito direito de ser

136

ABBOUD, Georges; CARNIO, Henrique Garbellini; OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. Introdução à

teoria e à filosofia do direito, op. cit., p. 334. 137

DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. Trad. Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes,

2002, p.39/45. 138

VELLOSO, Adolfo Alvarado. El debido proceso, op.cit., p. 240.

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ouvida a respeito do afirmado e confirmado pela outra. E é por esse sentido que

Alvarado afirma que o debate processual é luta, não um passeio alegre e despreocupado,

de maneira que os litigantes não estão interessados na busca da verdade senão em

ganhar o pretendido ou o resistido.

É também pela igualdade das partes como igualdade jurídica e processual,

não como igualdade real ou natural, que ditos garantistas são contra qualquer conduta

judicial tendente a evitar a desigualdade das partes como a do trabalhador frente ao

patrão e a do menor em situação de abandono.

Nas palavras Gustavo A. Calvinho, a igualdade jurídica fomentada pela

democracia constitui um princípio basilar do processo que possibilita um debate sem

preferências nem privilégios que beneficiem a uma das partes em detrimento de seu

oponente, pois “no processo o rico e o pobre, o grande e o pequeno, a maioria e a

minoria, o bom e o mal, o forte e o débil têm idênticas oportunidades de atuar,

defender-se e ser ouvidos. Igualdade que se conjuga com a imparcialidade de um

julgador independente”139

. Para ele, o objeto do processo é o debate, imprescindível

para a democracia e também para o processo acusatório e dispositivo140

. Não se estaria

aqui jamais a discordar da imprescindibilidade do debate a um processo que se diga

democrático.

Condenam a retirada do princípio da igualdade do contexto jurídico que leva

ao entendimento desse princípio confundindo-o com a igualdade real o que leva à

degeneração do processo como garantia, como ocorreu no direito processual social141

.

Condenam essa conduta judicial porque entendem que essa desigualdade real, que

reconhecem, deve ser atenuada, deverá ser cuidada por outros que não o juiz, como

defensores ad hoc e assistentes no litígio atuando conjuntamente com os representantes

dessas partes mais frágeis. Nunca pelo juiz! Aliás, como última saída, o juiz poderá

sempre ordenar a substituição do advogado ou um assistente técnico ao advogado que a

necessita, como possibilitam muitos sistemas.

Afinal, repisam que a função do juiz não é de igualar, mas sim a de julgar:

Tenha em conta que o conceito de processo que se propugna confere

igualdade de oportunidades aos litigantes, de tal maneira que não é tarefa do

juiz igualar as diferenças que ambos podem apresentar no plano da realidade

social. Precisamente, o grande mérito do processo é fazer iguais os desiguais.

Qualquer inobservância do princípio da igualde rompe o equilíbrio do

139

CALVINHO, Gustavo Adrián. El sistema procesal de la democracia. 2ª Ed. Buenos Aires: 2012,

Editorial San Marcos, p. 167. 140

Ibidem, p. 167. 141

Ibidem, p. 177.

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método de debate e põe em xeque a imparcialidade que deve manter quem

resolver o litígio.142

Nesse sentido, sustentam que a tentativa judicial de atingir a igualdade real

gera o desequilíbrio do fiel da balança da Justiça repercutindo na ilegitimidade da

decisão proferida.

Sistemas que tendem a essa conduta judicial de inquisidores integram o sistema

inquisitivo no qual têm o dever de aplicar a lei mais benigna e de introduzir

oficiosamente o conhecimento de fatos quando o réu não as opôs.

E é por isso que o garantismo repugna frontalmente o solidarismo judicial.

Sustenta que as bandeiras do solidarismo (a Justiça, a Verdade, o compromisso do juiz

com seu tempo, com a sociedade, com o litigante mal defendido etc.) não podem ser

colocadas sobre a Constituição. (mas será que a Constituição do Estado Democrático de

Direito não está aí para ser solidária?) Sobre o solidarismo, ensina Glauco Gumerato

Ramos, um dos maiores defensores da bandeira garantista no Brasil:

Ser solidário é apoiar ou aderir-se a uma causa alheia, ideia da qual surge o

solidarismo, considerado como uma corrente destinada a ajudar

altruisticamente os demais. A noção se impôs há anos no direito penal e,

particularmente, no direito processual penal, com a presença de autores e

numerosos juízes movidos pelas melhores intenções que, solidarizando-se

com a vítima de um delito. Este movimento doutrinário e judicial também se

estendeu aos processualistas que operam o processo civil, onde ganhou

numerosos e apaixonados adeptos. Reconheço que a ideia e a bandeira que

carregam são realmente fascinantes: trata-se – nada menos – de ajudar ao

mais fraco, ao pobre, ao que se acha mal ou pior defendido etc. Mas quando

um juiz adota essa postura no processo, não percebe que, automaticamente,

deixa de lado de cumprir com o necessário dever de imparcialidade. E, dessa

forma, vulnera a igualdade processual143

.

Mas veja-se: A crítica ao juiz solidário advém porque “quem assim atua não

cumpre uma tarefa propriamente judicial, em razão de que com isso não se resolvem

conflitos intersubjetivos de interesses, que é a essência da tarefa de outorgar justiça

comutativa”. Estaria o juiz que assim atua praticando justiça distributiva sem ter os

elementos para poder fazê-lo: em primeiro lugar, a legitimidade da escolha pelos votos

do povo; logo, pressuposto adequado, conhecimento da realidade geral e do impacto

que causará na sociedade o dar a uns o que as circunstancias da vida negam a outros,

etc.

Como se verá, o autor utiliza-se dessa argumentação para combater o

ativismo. Mas de acordo com as considerações que se fará ao termo, deve-se aqui ter

142

Ibidem, p. 185. 143

VELLOSO, Adolfo Alvarado. El garantismo procesal, op. cit., p. 33.

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cuidado para que isto não signifique, em realidade, deixar de cumprir com a própria

Constituição, que, aliás, prevê positivamente a justiça, a liberdade e a dignidade,

questões inquestionavelmente morais.

O autor indubitavelmente quer afastar, por exemplo, as concepções “de

justiça” próprias do julgador, individuais suas, ao que se adere. É claro que a afirmação

do autor provoca um choque aos defensores da Justiça, que muitas vezes podem se

tornar até ilegalmente justos. Como os pragmatistas (realistas), que normalmente com

base na justiça, na eficiência ou em alguma outra virtude, acabam por estimular que os

juízes decidam conforme seus próprios pontos de vista. E é exatamente isso que Adolfo

Alvarado Velloso combate. Com isso se está de total acordo. Não se pode aceitar a tese

pragmatista de que o juiz deve tentar melhorar a lei sempre que possível ou que o bom

juiz prefere justiça à lei, inventando o direito em nome da justiça.

Mas o problema é que a afirmação de que não pode colocar a Justiça sobre a

Constituição, pode esquecer que a Justiça é ideal político da própria Constituição, ou

ainda que a inexistência de regulamentação infraconstitucional de um direito previsto

constitucionalmente não pode torná-lo ineficaz, problematização será abordada mais

adiante.

Ingressando no princípio da imparcialidade, este implica em três

características essenciais do julgador: a impartialidade (não há como ser autor e

acusador ao mesmo tempo), imparcialidade (o julgador deve carecer de interesse

subjetivo na solução do litígio) e independência (o julgador não pode atuar com

qualquer subordinação hierárquica a respeito das partes). O autor, veja-se, não fala de

juízo de equidade como condição de imparcialidade do juiz como faz Ferrajoli.

Afinal, este garantismo processual sustenta o simples contentamento da

efetiva tutela dos direitos pelo juiz comprometido com a resolução dos conflitos que a

ele cheguem e ressalvando que é a sua imparcialidade funcional que garantirá a

igualdade processual. Veja-se: a qualidade de imparcialidade do juiz reside em não ter

ele qualquer interesse no resultado do litígio, seja mediato ou imediato.

A preocupação do garantismo processual é com o discurso processual

baseado em argumentações metajurídicas que leva ao arbítrio e ao subjetivismo e

permite ao poder judicial a tomada de decisões solipsistas com base nos sentimentos

próprios do julgador, como também preocupava-se Ferrajoli, apesar de jamais negar os

espaços de discricionariedades intrínsecos à função judicial.

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87

É afastada qualquer doutrina que defenda que o ato de julgamento deve

voltar-se à concreção da lei ou qualquer uma que amplie tal entendimento, pois para o

garantismo o processo se trata de manter a paz social evitando a justiça pelas próprias

mãos144

. O garantismo está aqui voltando-se contra o privilégio da meta sobre o método,

isto é, do desrespeito à lei por atender-se a um sentimento de justiça próprio do

julgador.

Em suma, dito garantismo processual:

defende uma maior valorização da categoria fundamental processo, e

conseqüentemente da cláusula constitucional do due process, de modo a

valorizar a ampla defesa, o contraditório e a imparcialidade do juiz, como os

pilares de legitimação da decisão jurisdicional a ser decretada145

.

Alvarado ressalta que a palavra imparcialidade significa várias coisas

diferentes da falta de interesse que habitualmente se menciona com o fim de definir o

trabalho diário de um juiz. Designa, por exemplo, ausência de prejuízos de todo tipo

(particularmente raciais ou religiosos); independência a qualquer opinião e,

consequentemente, ter ouvidos surdos ante a sugestão ou persuasão da parte interessada

que possa influir em seu ânimo; não identificação com alguma ideologia determinada;

completa alteridade frente à possibilidade de dádiva ou suborno; e a influência da

amizade, do ódio, de um sentimento caridoso, da vadiagem, dos desejos de brilho

pessoal, de figuração periodística, etc., não envolvimento pessoal nem emocional no

ponto crucial do assunto litigioso; evitar toda participação na investigação dos fatos ou

na formação dos elementos de convicção; decidir de acordo com seu próprio

conhecimento pessoal no assunto; não a desvinculação fundamentada dos precedentes

judiciais146

.

Desde já registre-se que esses prejuízos não tem qualquer relação com as

pré-compreensões gadamerianas que sustenta a hermenêutica filosófica no que tange a

noção de aplicatio na qual Gadamer deixa claro que nenhum processo lógico-

argumentativo pode acontecer sem a pré-compreensão, não havendo como separar o

fenômeno interpretativo em partes.

Afinal, se cada juiz obedecesse suas próprias paixões, ao fim e ao cabo tudo

dependeria daquilo que esse “senhor dos sentidos” decidisse, e cada processo teria a sua

144

Ibidem, p. 16. 145

RAMOS, Glauco Gumerato. Ativismo VS. Garantismo no processo civil: apersentação do debate. In

SOARES, Carlos H. RAMOS, Glauco G.; GRADOS, Guido Aguila; RÚA, Mónica Bustamente; DIAS,

Ronaldo Brêtas de Carvalho. (Coord.) Proceso Democrático y Garantismo Procesal. Belo Horizonte:

2015, Arraes Editores, p. 02. 146

VELLOSO, Adolfo Alvarado. El debido proceso, op. cit., p. 243.

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própria verdade que é a daquela que o julga. É isso o que Alvarado Velloso, aliás,

também quer afastar.

E exatamente por essas considerações a hermenêutica filosófica pode

agregar a este estudo. Afinal, como diz Lenio, a tarefa primordial da hermenêutica é

provocar os pré-juízos.147

Segundo a autoridade da tradição de Gadamer, a compreensão só é possível

pelas pré-compreensões que guiam e possibilitam uma interpretação, de modo que,

perceba-se, a interpretação jamais será reprodutiva, mas sempre produtiva, pois não

haverá intérprete sem sua própria conceitualidade prévia (preconceitos).

O intérprete não pode estar fora da tradição e a autoridade desta é que

permitirá verificar a legitimidade dos preconceitos. “Escutar a tradição e situar-se nela

é o caminho para a verdade que se deve encontrar nas ciências do espírito”148

como

ensina Gadamer. Até porque, com Dworkin, a tradição é incontrolável, “os intérpretes

pensam no âmbito de uma tradição interpretativa à qual não podem escapar

totalmente”149

.

Não há como assumir a “neutralidade” do intérprete, pois é de sua

concepção de justiça, entendida por Dworkin como “uma questão que remete à melhor

(ou mais correta) teoria do que é justo, moral ou politicamente”150

que provém sua

interpretação.

A decisão correta ou boa é aquela construída pelas partes que compartilham

suas razões e provas por meio do processo em contraditório e que deve ser exigida dos

juízes mesmo que não esteja garantido que chegarão a uma mesma resposta boa ou

correta, pois, do contrário, estar-se-ia a admitir qualquer concepção individual. E nisso

se concorda totalmente com o garantismo processual.

Em síntese, como afirmou-se ao abordar a tese da separação entre direito e

moral: para pré-compreender, o intérprete já está na moralidade, pois está na história, na

tradição, nos costumes e nas orientações sociais, políticas, filosóficas e jurídicas, de

maneira que a moral, assim, é condição de possibilidade da compreensão, havendo a

pertença e não a cisão. Mas note-se que a hermenêutica não significa a relexão sobre o

147

STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise: Uma exploração hermenêutica da

Construção do Direito, p. 300. 148

GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método II: Complementos e Índice. 2 ed. Bragança Paulista:

Editora Universitária São Francisco, 2002, p. 53. 149

DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. 2. Ed. São Paulo; Martins Fontes, 2003, p. 36. 150

Ibidem, p. 103.

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aprisionamento ao passado, mas a reflexão sobre este. Os pré-conceitos serão colocados

em teste, podendo confirmar-se ou não151

.

Aliás, Alvarado denuncia o caráter multívoco da palavra “prova” e sua

utilização com o exato significado científico de afirmação incontestável, e como tal, não

opinável152

. A título de convencimento do leitor, Alvarado utiliza a comparação da lei

da gravidade e da rotação do planeta ao redor sol com a experiência judicial que

demonstra satisfatoriamente que, ainda que as testemunhas ajam de boa-fé, darão

versões distintas e, muitas vezes, claramente antagônicas.

Está a distinguir a verdade judicial, da verdade científica, como aliás, fez

Ferrajoli, com fulcro na definição de verdade Tarskiana como correspondência.

Ocorre que, para Alvarado, o fato das testemunhas interrogadas

apresentarem versões diferentes significa que todas as versões podem ser reais, ainda

que pareçam antagônicas, porque são subjetivamente reais, já que determinada pessoa

viu um acidente a partir de um ângulo e outro viu o mesmo acidente por outro ângulo,

de maneira que lhe parece óbvio que as testemunhas viram de verdade coisas realmente

diferentes. É que está situando-se no paradigma subjetivista do conceito de verdade

como construção do sujeito, para, como conclusão, afastar qualquer busca da verdade

real no processo.

Já Ferrajoli explica que quando se pede que a testemunha diga a verdade, se

pede que não entre em contradição ao relatar como os fatos ocorreram, e assim, a

coerência e a aceitabilidade justificada são os critérios pelos quais o juiz avalia e decide

acerca da verdade ou da confiabilidade das premissas probatórias da indução do fato e

das premissas interpretativas de sua qualificação jurídica. Nesse sentido, se o relato de

uma testemunha sobre uma prova estiver em contradição com o relato de outra

testemunha, é porque uma delas não está condizente com a verdade e cabe ao conjunto

probatório revelar quanto é mais coerente e mais aceitavelmente justificável para que se

cheque à verdade mais aproximada com o ideal de correspondência.

Isso porque o único significado da palavra “verdadeiro”, na teoria de

Ferrajoli, é a correspondência argumentada e aproximada das proposições para com a

realidade objetiva, constituída no processo pelos fatos julgados e pelas normas

151

PINHO, Ana Cláudia Bastos de. Para além do garantismo: uma proposta hermenêutica de controle da

decisão penal, op. cit., p. 73. 152

VELLOSO, Adolfo Alvarado. El debido proceso, op. cit., p.152.

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aplicadas. Ferrajolia está situando-se no paradigma objetivista, de adequação ou

correspondencial.

E assim, se uma testemunha diz A e outra diz B, a aceitação de A pela

coerência e pela aceitabilidade justificada, faz com que a hipótese explicativa A seja

mais plausível do que a hipótese explicativa B, e, portanto, aceitar uma significaria

rechaçar a outra, até mesmo pelo caráter de probabilidade da verdade.

Ocorre que Alvarado153

ressalta que uma afirmação negada se confirma com

diversos meios que podem gerar convicção a um julgador, mas não em outro, o que

reflete a subjetividade do sujeito cognoscente, bem como o caráter indutivo do

raciocínio probatório. Recorda o juiz justiceiro que, com lealdade e honestidade faz tudo

a seu alcance para se chegar à verdade real dos fatos submetidos a seu julgamento e

depois de longa e incessante busca acreditar ter alcançado essa verdade, mostrando-a

com valor absoluto. Agora, pensando na impugnação da decisão em que os julgadores

do órgão reformador da decisão, também depois de árdua busca, acreditem haver

chegado por eles mesmos à outra Verdade revogando a sentença.

A partir da perspectiva do processualista argentino, a verdade é um valor

relativo alterável no tempo, no espaço e entre os diferentes homens que dela falam. Em

outras palavras, há tantas verdades ou justiças quanto pessoas que pretendem defini-las.

Estas considerações refletem a crise do fundamento (este apontado ou na

coisa objeto do conhecimento e que relaciona-se com a verdade como produto da

correspondência da coisa ao intelecto -paradigma da adequação, objetivista ou verdade

correspondencial- ou no sujeito cognoscente e que relaciona-se com a verdade como

construção subjetiva deste sujeito -paradigma subjetivista ou verdade subjetivista-, e

que torna impossível a noção de adequação entre a inteligência e a coisa baseada na

concepção unitária da verdade agora rompida) que a filosofia no século XX tentou

resolver com o giro linguístico, a ser oportunamente tratado nesse trabalho.

Fato é que a busca da certeza como ainda se pretende em algumas leituras

das ciências naturais não pode ser assimilada. No exemplo da prova testemunhal, o que

se apresenta são informações nem sempre confirmadas, por vezes contraditórias, nas

quais se baseia o juiz no que lhe pareça verossimilhante.

E assim, o que se pode dizer das distintas concepções entre Alvarado e

Ferrajoli é que há uma gigantesca diferença entre a busca da verdade e obtenção, pelo

153

VELLOSO, Adolfo Alvarado. El debido proceso, op. cit., p.159.

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que reflete na grande distinção entre as concepções: um aceita-a como inalcançável,

mas procura obtê-la, enquanto o outro ceticamente rejeita sua busca assumindo há tantas

verdades quanto pessoas que digam sobre elas, pois constatar que verdade conduz a uma

decisão justa carrega tantos subjetivismos quanto a semântica desses conceitos. Isto é,

Alvarado simplesmente concebe a inexistência de meios objetivos para se constatar se o

intérprete se distancia ou se afasta da verdade e esta impossibilidade (de se saber por

maneiras objetivas se a verdade foi alcançada) leva à concluir que a verdade não deve

ser buscada pelo processo, ao que não tem como não se aderir.

Aceitando tais conclusões, veja-se que o grande problema é afirmar que o

processo busca a verdade, ou que, preocupado com a justiça deve o juiz assumir um

papel investigativo na busca do que realmente acontece, quando o sistema jurídico

possui muitos mecanismos para enfraquecer essa obtenção do que para fortalecê-la,

como demonstrou Ferrajoli. No caso de uma presunção legal relativa, por exemplo, o

juiz julga considerando o fato presumido, uma probabilidade, não uma verdade.

É por isso que se concorda com William Santos Ferreira quando diz que a

verdade não é uma meta da sentença, mas dela uma expectativa154

.

Lembre-se que o conceito de “verdade” trabalhado pelos autores é aquele da

teoria da correspondência, segundo o qual uma proposição é verdadeira se sobre o que a

proposição afirma há correspondência com a realidade. É fundamental para que se

entenda a relação dos autores com o paradigma da filosofia da consciência no interior

do qual existe um-mundo-em-si a ser apreendido /conhecido pelo juiz, no caso, que

então utilizará da linguagem para sobre ele se comunicar.

Já o princípio da transitoriedade do processo consiste no equilíbrio da

duração do processo como meio de debate para alcançar a solução do conflito sem

causar um novo, pois deve alcançar o aquietamento das paixões inflamadas.

Ambos os autores dão respostas metodológicas para a questão da verdade.

Mas a hermenêutica filosófica Gadameriana, que foca no que acontece além do querer e

fazer (não no que se faz ou no que se deveria fazer) não procura estabelecer um método,

mas sim descobrir e conhecer o que está ignorado e encoberto pela disputa sobre os

métodos, que percebe a ciência e a torna possível155

, e por isso Lenio Streck alerta para

a melhor de “Verdade contra o Método”, pois o fenômeno hermenêutico não é um

154

FERREIRA, William Santos. Princípios fundamentais da prova cível, op. cit., p. 281. 155

MOTTA, Francisco José Borges. Levando o direito a sério: Uma crítica hermenêutica ao

protagonismo judicial, op. cit., p. 53.

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problema de método e compreender e interpretar textos pertence ao todo da experiência

do homem no mundo.

Por sua vez, o princípio da eficácia da série procedimental preconiza os

passos da série lógica já abordada anteriormente e que seja eficaz: afirmação, negação,

confirmação e alegação. Na ausência de um deles sob o pretexto de acelerar o final do

processo haverá violação do devido processo e da segurança jurídica.

Finalmente, o princípio da moralidade processual sustenta a consistência da

regra moral no desenvolvimento do processo, pois entende que se a razão de ser do

processo é erradicar de todo modo a força ilegítima de uma sociedade e evitar que todos

façam justiça com as próprias mãos, não se pode sequer conceber que o legislador

normatize um meio de debate em que se possa utilizar a força sob a forma perversa da

esperteza ou traição156

. Veja-se que o autor utiliza-se de uma justificação que não é

especificamente jurídica. Sua argumentação em defesa do princípio da moralidade

comporta um juízo valorativo, recorrendo à perversidade, esperteza e traição acaso se

entendesse pela imoralidade processual.

Esta é uma observação pertinente para concluir que o autor filia-se à

complementariedade entre direito e moral.

De toda sorte, o princípio da moralidade processual está a sustentar a boa-fé

no trato processual.

Ademais, o garantismo processual repugna as medidas de evidência e

condena a flexibilização do princípio da congruência; a relativização da coisa julgada e

a eliminação da preclusão processual presente na doutrina italiana157

. Especificamente

sobre as medidas autosatisfativas, permite-se um aprofundamento sob o tema na

perspectiva garantista.

Essas medidas são entendidas como resultantes da ineficiência e morosidade

do Judiciário, por meio da qual se chega a uma solução eficaz para solicitações urgentes

sem processo algum, isto é, resolve-se sem o controle prévio de todos os interessados

procedendo ilegitimamente vez que violam a previsão de expressas cláusulas

constitucionais que operam como firmes garantias para todos os litigantes.

Ensina:

advirto que todos olham o problema desde a ótica do autor que se beneficia

com a imediatidade do resultado e jamais a partir da perspectiva do

demandado que não foi escutado previamente e que deve sofrer de imediato

156

VELLOSO, Adolfo Alvarado. El debido proceso, op.cit., p.246. 157

VELLOSO, Adolfo Alvarado. El garantismo procesal, op. cit., p. 42.

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os efeitos contrários a seu interesse que sobre ele provoca a resolução

judicial. Como sempre ocorre, todas as instituições autoritárias seduzem até

que produzam sofrimento por experiência própria… Gostaria de ver a cara de

um destes amantes da rapidez e da efetividade quando, ao chegar uma noite

em sua casa, se encontra ocupada por outra pessoa a quem um juiz lhe

outorgou a posse porque, com quase divina inspiração, viu em seus olhos um

indicio veemente de propriedade acompanhado de argumentos que o

convenceram da sinceridade dos argumentos. Tanto que não precisou escutar

ao ocupante antes de se alterar o titular.158

Adolfo Alvarado Velloso denuncia a (i) “cautelar” satisfativa por considerá-

la eliminadora do método processual de discussão privilegiando uma meta difusa que se

mostra como justa e verdadeira, o que configura como tipo de decisão decisionista.

Em suma, o garantismo denuncia que em nome da defesa da Constituição,

juízes ativistas assumiram uma postura de intervenção em toda sorte de assuntos cuja

competência constitucional para defini-los foi atribuída a outros Poderes do Estado,

abandonando a sujeição da lei e ingressando numa campo de co-governo e incontrolável

desgoverno.

Assim, em vista da preocupação desse movimento com o chamado

protagonismo judicial, nada mais pertinente do que uma avaliação do ativismo judicial

tão louvado por inúmeros processualistas brasileiros.

158

VELLOSO, Adolfo Alvarado. El debido proceso, op. cit., p. 212.

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1. ATIVISMO JUDICIAL

2.1. Por que falar sobre isto?

A noção de Democracia está relacionada a um sistema em que as normas do

jogo são prévias e claras. É o que se extrai do ensinamento de Noberto Bobbio que

adjetiva a democracia como o governo das leis por excelência e “no momento mesmo

em que um regime democrático perde de vista este seu princípio inspirador, degenera

rapidamente em seu contrário, numa das tantas formas de governo autocrático de que

estão repletas as narrativas dos historiadores”159

.

No Brasil, a presença do ativismo judicial fortaleceu-se como solução para a

concretização dos direitos fundamentais diante da própria ideia de um espaço

discricionário à “vontade” do intérprete/julgador.

Para avaliar criticamente o tema, faz-se necessária uma análise com foco na

importância da lei160

como principal fonte do direito na tradição do Civil Law,

especialmente a partir da Revolução Francesa161

, e, portanto, na relevância de se

argumentar e de se decidir legislativamente como fruto da própria teoria da separação

de poderes, ainda que a insegurança jurídica como resultado de decisões judiciais

ativistas e discricionárias esteja presente também na tradição da Common Law.

Nesse contexto, admitir-se-á, no presente estudo, o conceito de lei como um

texto normativo geral e abstrato constitucional e produzido pelos órgãos legislativos. O

conceito de lei precisa ser tomado tanto em uma perspectiva formal quanto substancial,

de maneira que além de ser produto do competente Poder Legislativo de acordo com

forma constitucionalmente prescrita, no Estado Democrático de Direito ela possui

caráter geral, designando a vontade do povo, e por concretizar esta tem conteúdo

também político a fim de promover a igualdade dos cidadãos. Essa observação é

159

BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. 10ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2006, p. 185. 160

A partir de um ponto de vista estritamente formal, a lei pode ser ocnsiderada todo texto normativo, de

caráter geral e abstrato, cuja aplicação seja para o futuro, mas essas características também estão

presentes no nosso sistema em institutos como a súmula vinculante e as medidas provisórias. 161

De acordo com R. C. van Caenegem, nem sempre a lei foi a principal fonte do direito, o que se deu

após a Revolução Francesa em que se percebeu a manipulação da sociedade e do direito de maneira

direcionada, com a consolidação de um poder central. CAENEGEM, R. C. van. Uma introdução histórica

ao direito privado. 2. Ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 121-123. Também Georges Abboud: “No

que pertine a Revolução Francesa, a lei adquiriu uma posição de destaque, seja para assegurar a

estruturação de um novo regime orientado pela vontade da maioria, seja porque o Judiciário era visto

como poder subserviente ao rei, sendo alvo de grande desconfiança dos Revolucionário.”. ABBOUD,

Georges. Discricionariedade administrativa e judicial: o ato administrativo e a decisão judicial, op. cit.,

p. 420.

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importante porque se adere à concepção de que nem todo conteúdo pode ser

considerado Direito.

Obviamente, não precisaria mencionar que já se ultrapassou a concepção do

juiz como boca fria da lei. A impossibilidade de se aplicar a lei sem interpretá-la não é

novidade (ao que sempre nos remonta ao dispositivo do Código Francês Napoleônico

que expressamente proibia a interpretação dos dispositivos do código em referência ao

ideal de completude que revestia a codificação francesa)!

Nesse tocante, uma observação precisa ser feita no que tange aos

ensinamentos de Adolfo Alvarado Velloso sobre o que faz o juiz. O autor diz que:

(...) el juez siempre norma: ora aplicando em concreto la ley abstracta, con o

sin interpretación de su texto; ora integrando la norma abstracta mediante la

emisión de uma norma concreta; ora creando la norma concreta en caso de

inexistencia de norma abstracta.162

O autor demonstra sua concepção de que somente se interpreta o que não foi

compreendido, pois interpreta-se para compreender o não-compreendido. Aceita a

possibilidade de aplicação de um texto sem sua respectiva interpretação: ou seja,

compreendo e já aplico, sem interpretação, o que será mais explorado adiante.

É que Schleiermacher, com sua hermenêutica romântica, já concebia que a

experiência da estranheza e do mal-entendido são universais e ocorrem em qualquer

tentativa de compreensão, já não concebendo a separação entre compreender e

interpretar. Aliás, segundo Gadamer, sua maior contribuição foi haver desenvolvido

uma verdadeira doutrina da arte do compreender e que concebe a hermenêutica como a

arte de evitar o mal-entendido; pois todo compreender pressupõe um interpretar.

Em realidade, o problema é que a liberdade de interpretação não pode

significar uma ilimitação à atividade decisória. Mas no Brasil o termo “ativismo” tem

sido utilizado para legitimar decisões que, sob uma análise mais aprofundada, poderiam

ser dadas como ilegais e inconstitucionais, possuidoras de valorações do tipo

consequencialistas/utilitaristas163

, não jurídicas.

162

VELLOSO, Adolfo Alvarado. La terminación del proceso: La sentencia judicial. Las costas.

Paraguai, 2014, p.85. 163

O viés consequencialista preocupa-se com as consequências práticas da decisão judicial. A atenção da

decisão judicial volta-se para o problema prático decorrente da decisão. De acordo com Dworkin, os

argumentos pragmáticos, orientam-se para as consequências futuras da decisão sem levar em conta as

práticas do passado. E nesse sentido diferencia os consequencialistas/utilitaristas dos deontológicos, vez

que este está obrigado a agir de uma maneira que gere consequências piores, enquanto os primeiros nunca

estão moralmente ordenados a agir assim. Para Dworkin, os argumentos consequencialistas não podem

ser utilizados, porque, do ponto de vista teórico os princípios da igualdade e da justiça não são

utilitaristas, e do ponto de vista prático, tal argumentação apresenta, em realidade, risco para o cidadão

tanto pela insegurança jurídica que origina quanto pelo prejuízo a seus direitos fundamentais.

DWORKIN, Ronald. A justiça de toga. São Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 32.

Page 96: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP ... Lobão Torres.pdfem 1989, de “Diritto e Ragione: Teoria del Garantismo Penale”. Foi com a tradução desta obra para

96

Em 1988, o Brasil recebeu uma nova Constituição cujo texto está repleto de

direitos fundamentais e sociais. Ora, o modelo anterior, assentado em um pensamento

liberal-individualista, operava com conceitos oriundos das experiências da formação do

direito privado germânico e francês, desprovido de direitos de segunda e terceira

dimensões além da falta de uma teoria constitucional adequada às demandas do novo

paradigma jurídico.

No Brasil, a voz pátria é majoritariamente ativista e a favor dos poderes

instrutórios do juiz, como José Roberto dos Santos Bedaque, Cândido Rangel

Dinamarco e Ada Pellegrini Grinover, entre outros. Exatamente por este motivo a

atuação do Poder Judiciário aparece como tema cada vez mais em destaque,

especialmente em tempos de alteração legislativa. Este é o ponto!

Nesse sentido, os operadores do direito têm visto um Judiciário ativista que

pretende basear-se na concretização do texto constitucional justificando-se em eventuais

valores da sociedade e que seriam os consolidadores do Estado Democrático de Direito.

No pós-Constituição de 1988, o magistrado pareceu declarar sua

independência ao Direito e aos fatos do caso em prol do que lhe parecesse mais

conveniente. E respaldada em valores como critérios para fundamentar as decisões

acabou-se recaindo numa postura ativista que ultrapassa limites estabelecidos na própria

Constituição para sua atuação. O problema é que “uma hierarquia de valores” não atinge

um consenso universal, o que pode gerar decisões solipsistas.

Inegavelmente, o ativismo fragiliza a autonomia do direito e a democracia e

é por isso que se precisa enfrentar o tema.

2.2. O caráter patológico do “ativismo judicial” num Estado Democrático de

Direito

Desde já, faz-se necessário verificar que não há consenso sobre o que

verdadeiramente apresente este fenômeno.

O ativismo tem origem no sistema jurídico norte-americano em que os

precedentes constituem a principal fonte do direito e, portanto, a atividade jurisdicional

implica a própria criação do direito164

.

164164

TRINDADE, André Karam. Garantismo, hermenêutica e (neo)constitucionalismo: um debate com

Luigi Ferrajoli. In ___; FERRAJOLI, Luigi; STRECK, Lenio. (Orgs). Garantismo versus

neoconstitucionalismo: os desafios do protagonismo judicial em terrae brasilis. Porto Alegre: Livraria do

Advogado Editora, 2012, p. 110.

Page 97: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP ... Lobão Torres.pdfem 1989, de “Diritto e Ragione: Teoria del Garantismo Penale”. Foi com a tradução desta obra para

97

Ocorre que o texto constitucional norte-americano é extremamente conciso,

não dotando ela de dispositivo como o rol do artigo 5º da Constituição Federal do

Brasil, extensa lista de direitos e garantias fundamentais. Nesse sentido, a decisão

judicial que nos EUA tutela qualquer direito não previsto no texto constitucional já é

considerada ativista.

Nesse contexto, denuncia-se, aqui, uma deficiência teórica da doutrina

diante de uma confusão generalizada sobre o tema e que produz um diálogo dificultoso.

O termo é apresentado tanto com ênfase em seu elemento finalístico, que

seria a expansão dos direitos fundamentais, quanto com destaque ao caráter

comportamental, em atenção ao aspecto pessoal que determina a compreensão dos

magistrados a respeito das normas constitucionais.

Clarissa Tassinari exemplarmente identifica algumas tendências de

abordagens: (i) como atuação do Judiciário pela judicial review, (ii) como sinônimo de

maior interferência do Judiciário em face dos demais poderes, (iii) como abertura à

discricionariedade no ato decisório e (iv) como aumento da capacidade de

gerenciamento processual do julgador165

.

Mas concorda-se especificamente com Elival da Silva Ramos quando diz

que o fenômeno judicial em estudo constitui uma indevida invasão tanto na esfera

legislativa quanto na Administração Pública, ou seja, em funções constitucionalmente

estabelecidas a outros Poderes:

Por ativismo judicial deve-se entender o exercício da função jurisdicional

para além dos limites impostos pelo próprio ordenamento que incumbe,

institucionalmente, ao Poder Judiciário fazer atuar, resolvendo litígios de

feições subjetivas (conflitos de interesse) e controvérsias jurídicas de

natureza objetiva (conflitos normativos).166

O efetivo surgimento da revisão judicial teve seu precedente em 1803 com o

julgamento do famoso caso Marbury vs. Madison pela Suprema Corte em que se

reconheceu a irrevogabilidade da nomeação de Marbury, mas, em contrapartida, não se

considerava possível tal julgamento, isto é, declarou-se inconstitucional a seção 13 do

Judiciary Act que atribuía competência originária à Suprema Corte sob o fundamento de

que tal disposição legislativa ampliava sua atuação extrapolando o conteúdo

constitucional167

. Entretanto, a Constituição não dava o poder aos tribunais de revisão

da produção do Congresso.

165

TASSINARI, Clarissa. Jurisdição e ativismo judicial: limites da atuação do Judiciário, op.cit., p. 33. 166

RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 117. 167

TASSINARI, Clarissa. Jurisdição e ativismo judicial: limites da atuação do Judiciário, op.cit., p. 23.

Page 98: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP ... Lobão Torres.pdfem 1989, de “Diritto e Ragione: Teoria del Garantismo Penale”. Foi com a tradução desta obra para

98

Christopher Wolfe168

afirma ser resultado da tensão entre o judicial review e

self restraint: grandezas inversamente proporcionais (o aumento da primeira e a

diminuição da segunda gera o fortalecimento do ativismo judicial)169

. A partir do estudo

da jurisdição constitucional e das intervenções da Suprema Corte norte-americana, o

autor identifica três épocas distintas na história do constitucionalismo norte-americano:

a tradicional, uma de transição e finalmente a moderna.

Na primeira (1787 – 1890), a Suprema Corte posicionava-se para aplicar a

Constituição diante das leis ordinárias170

.

Já no segundo período, designado como de transição (1890 – 1937), há um

declínio da judicial review e a Suprema Corte é marcada por um Estado impedido de

tomar quaisquer medidas voltadas à regulação das políticas de bem-estar, ou seja, uma

Suprema Corte que impedia o Estado de interferir nas relações privadas. Configurou

uma política judiciária de contenção (self-restraint), verdadeira tendência conservadora

e que tornou ainda mais evidente na década de 30 em razão da crise econômica ter

levado o Estado a tomar medidas reguladoras para superar o cenário político,

econômico e social por qual passava171

.

Nesse contexto, o jurista norte-americano relata que para fazer com que o

Judiciário, em especial a Corte Hughes pactuasse com as medidas de recuperação de

economia propostas pelo governo, o presidente Roosevelt ameaçou criar mais uma vaga

para a Suprema Corte para cada juiz que ultrapassasse 70 anos de idade. Esta medida

também resolveu a promulgação de leis que antes os juízes consideravam contrárias à

Constituição.

Na última (1937 – hoje), consolidada a partir da segunda metade do século

XX e com maior atuação da Suprema Corte, o foco se deslocou da esfera econômica

para as liberdades civis. Inseridos na tradição da Common Law, os juízes deixaram de

168

É um jurista americano favorável a uma modalidade moderada de judicial activism, mediante a qual a

judicial review seria utlizada para proteger direitos individuais, resguardar minorias, impulsionar

reformas sociais, elimianr discriminações ilegais, bem como fulminar e a atualizar leis inconstitucionais.

Wolfe, Christopher. Judicial Activism: bulwark of Freedom in Precarious Security?. New York: Rowman

& Littlefield Publishers, 1997, p.112. Ocorre que, no Brasil, essas ações podem ser realizadas pelo

Judiciário sem que sua atuação extrapole os limites impostos pela Constituição, de maneira que não

podemos entender o ativismo brasileiro da mesma forma. ABBOUD, Georges. Discricionariedade

administrativa e judicial: o ato administrativo e a decisão judicial, op.cit., p. 420. 169

WOLFE, Christopher. Judicial Activism: bulwark of freedom or Precarious Security?, op.cit., p.1. 170

Idem. The rise of modern judicial review. From constitucional interpretation to judge-made law.

Bsoton: Littlefiel Adams Quality Paperbacks, 1997, p. 17-119. 171

Ibidem, p. 121-204.

Page 99: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP ... Lobão Torres.pdfem 1989, de “Diritto e Ragione: Teoria del Garantismo Penale”. Foi com a tradução desta obra para

99

interpretar as leis e passaram a “reescrevê-las”172

. Essa fase ficou marcada por decisões

que apregoavam a isonomia com o intuito de eliminar discriminações raciais e sexistas,

assegurando, inclusive, aqueles que não teriam previsão constitucional.

O ápice desse fenômeno deveu-se à verdadeira revolução constitucional

provocada por decisões históricas que influenciavam outras cortes e tribunais, com

especial indicação doutrinária ao caso Brown vs. Board Education.

Contudo, enquanto na década de 70 manteve-se a maioria das decisões

consideradas ativistas contrariando claramente a vontade do Presidente Nixon, na

década de 80 a Suprema Corte voltou a assumir um perfil mais conservador.

Willian Marshall enumera sete tipos de ativismo judicial: ativismo

contramajoritário, ativismo não originalista, ativismo de precedente, ativismo

jurisdicional, ativismo criativo, ativismo remediador e ativismo partisan. Cita-se sua

classificação somente para se observar que ela pressupõe uma disfunção na atividade

jurisdicional, o que revela que também este autor conclui o ativismo sob uma ótica de

extrapolação dos limites jurisdicionais estabelecidos para o exercício do poder a eles

atribuídos pela Constituição.

Veja-se que há no Brasil notórios juristas que atrelam à ideia de ativismo

apenas a uma participação mais ampla e intensa do Judiciário na concretização dos

valores e fins constitucionais, como a maior interferência nos outros Poderes, mas sem

recair em criação do direito173

. Esse não é o entendimento, como visto, defendido nesta

obra.

É também por esses entendimentos que a análise majoritária da questão no

solo nacional identifica o fenômeno como “bom” para a democracia por ser concepção

oposta ao passivismo judicial.

O mesmo tem ocorrido em outros países latino-americanos, como, por

exemplo, na Argentina, como se vê na doutrina de Pablo L. Manili174

que identifica o

“bom” e o “mau” ativismo, Jorge W. Peyrano, Hernán Carrillo, Carlos Carbone, Marcos

Peyrano, Sergio José Barberio, Inés Lépori, Abraham Vargas, Roxana Mambelli e

Maria Carolina Eguren, entre outros.

172

Ibidem, p. 205-322. 173

BARROSO, Luis Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. In:

COUTINHO, Jacinto N. de Miranda; FRAGALE FILHO, Roberto; LOBÃO, Ronaldo (Orgs.)

Constituição e ativismo judicial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 279. 174

MANILI, Pablo. L.. El activismo en la jurisprudencia de la Corte Suprema. In: Quintana e Carlos S.

Fayt. (orgs). Revista Juridica Argentina La Ley. Derecho Constitucional. Doctrinas Esenciales. Buenos

Aires: La Ley, 2008, t. I, n. II, p. 1147-1153.

Page 100: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP ... Lobão Torres.pdfem 1989, de “Diritto e Ragione: Teoria del Garantismo Penale”. Foi com a tradução desta obra para

100

Todavia, entendendo o ativismo como o exercício da função jurisdicional

para além dos limites impostos, ou melhor, decisão judicial fundamentada nas

convicções pessoais do julgador, ou seja, é o pronunciamento judicial no qual as fontes

normativas são substituídas pelo senso de quem a prolatou, conclui-se pelo caráter

sempre patológico do ativismo no Estado Democrático de Direito, para o que é

descabido adjetivá-lo como bom já que sempre será ruim, não importando o resultado

prático de uma decisão ativista: ela viola a Constituição, a Democracia e a Separação de

Poderes, entre muitas outras considerações! E isso porque, em síntese, o Estado

Constitucional, plus ao Estado de Direito, é contra concepções como a de Jorge Peyrano

que sustentam que “O ativismo judicial confia nos magistrados (...) códigos de

procimentos civis mais recentes, depositam nas mãos dos juízes civis um amplo número

de faculdades-deveres para melhor sua missão de distribuir o pão da Justiça”175

!

Jorge Peyrano parece crer que os juízes são seres magnânimes e

extraordinários dotados de uma capacidade única e incontestável?

O fenômeno entendido como “bom” relaciona-se com a tradição jurídica da

Common Law em que se insere os EUA e outros países, denuncia Georges Abboud,

pela dicotomia desenvolvida por Herbert Hart e aqui já sucintamente explorada entre

easy cases vs. hard cases. Nestes últimos admite-se a discricionariedade do julgador

para que exerça o ativismo.

De todo modo, fato é que o ativismo ultrapassou as fronteiras do Common

Law e atingiu o Civil Law. É um dos reflexos do pós-Segunda Guerra Mundial produto

do avanço significativo no direito pelo incremento, na dogmática constitucional, da

positivação de novos direitos.

O que simbolizou o novo modo de compreender a concretização dessas

garantias foi a Lei Fundamental176

e a Jurisprudência dos Valores de acordo com a

postura do Tribunal Constitucional Federal Alemão (na França deu-se Escola do Direito

Livre e no Common Law vieram as correntes realistas).

175

PEYRANO, Jorge W. Activismo y garantismo procesal. Córdoba: Academia Nacional de Derecho y

Ciencias Sociales de Córdoba, 2009, p. 11. Tradução livre: “El activismo judicial confia en los

magistrados (...) códigos de procedimientos civiles más recientes, depositan em manos de los jueces

civiles un amplio número de facultades-deberes para mejor cumplir su cometido de distribuir el pan de la

Justicia”. 176

Situação peculiar vivenciada pela Alemanha por uma espécie de “assembleia constituinte de

emergência” composta pelos aliados e que impulsionou o papel do Tribunal Constitucional e cuja atuação

estava direcionada a constitucionalizar a ordem jurídica a partir de um órgão que, à diferença do Conselho

Parlamentar que aprovou a Lei Fundamental (hoje Constituição), efetivamente representava o povo

alemão. TASSINARI, Clarissa. Jurisdição e ativismo judicial: limites da atuação do Judiciário, op. cit.,

p. 43.

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Em síntese, o objetivo da Jurisprudência dos Valores era romper com o

modelo jurídico vigente no nazismo para que se legitimasse a tomada de decisões em

respeito à Constituição outorgada em 1949 pelos aliados, notando-se inclusive decisões

contra legem e extra legem como maneira encontrada para se fugir as leis do regime

nazista177

.

Por sua vez, no Brasil, foi promulgada a Constituição Cidadã de 1988,

considerada ápice do processo de redemocratização em que se rompia com o período

ditatorial no país. Nesse sentido, a forte participação do Judiciário atrelava-se a uma

perspectiva em direção à abertura política, e portanto, caminho certo à redemocratização

do país.

Isso porque a Constituição de 1988 representou uma ruptura paradigmática

na história do direito brasileiro, seja pela oposição ao regime autoritário, seja no que diz

respeito aos compromissos firmados pelo constituinte, seja ainda em face da nova

relação que se estabelece entre sociedade e Estado em que se conferiu ao Poder

Judiciário e a todos os seus atores o papel de fiador dos direitos fundamentais e do

regime democrático.

Isto é: o contexto constitucional não consistia em pregar uma democracia

meramente institucional, mas a promessa de inclusão social e de maioria como

pressuposto de sua efetiva conquista.

Assim, as tradições jurídicas aproximam-se nesta questão que se está a

debater: a atuação do Poder Judiciário.

Contudo, um olhar mais preciso das decisões de cada Corte demonstra

distintas posturas para a compreensão dos limites da atividade jurisdicional, e portanto,

de seus ativismos: uma conservadora e outra progressista, ainda que ambas contenham

cunho político.

Representativo do contexto estadunidense é o caso Lochner vs. New York

tratado por Laurence H. Tribe em seu livro American Constitutional Law 178

. Julgado

em 1905, um padeiro reclama da limitação da carga horária de trabalho fixada

legalmente no Estado de Nova Iorque, ao que a Suprema Corte decidiu que a lei violava

a liberdade contratual. Assim, ao interferir na política legislativa do Estado de Nova

177

TRINDADE, André Karam. Garantismo versus neoconstitucionalismo: os desafios do protagonismo

judicial em terrae brasilis. In:FERRAJOLI, Luigi; STRECK, Lenio. (Orgs.) Garantismo, hermenêutica e

(neo)constitucionalismo: um debate com Luigi Ferrajoli. In Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora,

2012, p. 113. 178

TASSINARI, Clarissa. Jurisdição e ativismo judicial: limites da atuação do Judiciário, op.cit., p. 24.

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102

Iorque, a Suprema Corte o faz em respeito à não intervenção na esfera privada dos

indivíduos, retratando sua postura conservadora.

No Brasil, representativa é a emblemática Reclamação Constitucional

4335/AC em que, a título de mutação constitucional atribuiu-se efeito erga omnes à

decisão proferida em sede de controle difuso de constitucionalidade sob a argumentação

de que o Senado, pelo artigo 52, X da Constituição Federal, apenas cumpre o papel de

dar publicidade à decisão179

, o que retrata o perfil progressista de alteração do texto

constitucional via Judiciário.

Enfim: acredita-se ter demonstrado que, no contexto brasileiro, ativista é a

decisão judicial fundamentada nas convicções pessoais do julgador, ou seja, é o

pronunciamento judicial no qual as fontes normativas são substituídas pelo senso de

quem a prolatou, em consonância com o que expusemos da discricionariedade como

falta de vinculação ao Direito. Nesse tocante, note que não se está aqui a submeter o

Judiciário à legalidade estrita, pois se for a lei inconstitucional, cabe a ele não aplicá-la,

limite que assim o é para qualquer decisão judicial.

Afinal, se toda decisão que aplica a lei está por reputá-la constitucional

implicitamente, a que deixa de aplicar faz o inverso!

O ativismo abrasileirado aproveitou-se fortemente do ativismo norte-

americano quanto à intensificação da atividade jurisdicional potencializada inclusive

para que se concretizassem direitos, ou seja, como solução para os problemas sociais e

etapa indispensável para o cumprimento do texto constitucional, mas desprovido do

necessário debate e problematização sobre o tema180

.

Em nosso país, a doutrina da instrumentalidade do processo enxergou como

natural e positiva o ativismo judicial. Esta doutrina defende um tratamento publicista do

processo com foco na jurisdição enquanto instrumento do Estado para perseguir seus

objetivos181

. Para tanto, o problema da efetividade do processo é resolvida pela redução

das formalidades que teoricamente impedem a realização do direito material em conflito

por meio do princípio da adequação ou adaptação do procedimento à correta aplicação

179

A título explicativo: O controle difuso de constitucionalidade brasileiro tem como regra a atribuição de

efeito inter partes para a declaração de inconstitucionalidade. O artigo 52, X, Constituição Federal prevê a

competência do Senado Federal atribuir efeito erga omnes nos casos de declaração de

inconstitucionalidade via controle difuso. 180

TASSINARI, Clarissa. Jurisdição e ativismo judicial: limites da atuação do Judiciário, op. cit.,p. 26. 181

DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 12. Ed. São Paulo? Editora

Malheiros, 2005, p. 51-67.

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103

da técnica processual reconhecendo ao julgador a capacidade para adequá-lo às

especificidades da situação182

.

André Karam Trindade, estudando a realidade brasileira representada pela

atuação do Supremo Tribunal Federal183

assim como das demais instâncias do Poder

Judiciário no concebido Estado Democrático de Direito, a divisão da evolução da

jurisprudência constitucional brasileira, pode-se dizer, deu-se em três estágios: a fase de

ressaca, a fase da constitucionalização e a fase ativista, na qual no encontramos hoje184

.

A fase de ressaca, iniciada com a promulgação da Constituição de 1988,

caracteriza-se pela crise de modelo de direito decorrente da dificuldade em se

compreender o novo paradigma que instituiu o Estado Democrático de Direito com a

consequente necessidade de se filtrar constitucionalmente o ordenamento jurídico, em

especial, pelos mecanismos por ela ampliados no que tange o controle de

constitucionalidade.

Por sua vez, a fase da constitucionalização (década de 90 – 2004)

caracteriza-se pela atenção que passa a se dar à Constituição e seus princípios com

repercussão no papel dos tribunais que se tornam intérpretes da Constituição.

Em suma, o numeroso rol de direitos garantidos previstos na Constituição,

somado à forma de controle de constitucionalidade inaugurada com a fundação da

República e reformulação com a Emenda Constitucional n.16/65185

pelo que se

possibilitou a revisão dos atos dos demais Poderes, o Supremo Tribunal Federal assume

a função de guardião do cumprimento da Constituição, momento em que se iniciam os

debates sobre o ativismo judicial no país!

Já na atual fase ativista com início com a Emenda Constitucional 45

caracteriza-se por um crescente estímulo ao ativismo que permeia todas as instâncias

judiciais sob a argumentação de que posturas pró-ativistas são imprescindíveis para a

implementação dos direitos fundamentais.

Apostou-se no protagonismo do juiz! Confiou-se nele como o faz Jorge

Peyrano. Sob tal ótica, deveria este apontar os valores constitucionais por meio da

técnica da ponderação para que fundamentasse sua decisão racionalmente, o que gerou,

182

BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Efetividade do processo e técnica processual. São Paulo:

Malheiros, 2006, p. 43/45. 183

“Anuário da Justiça de 2009: O Ano da Virada: País descobre que, ao constitucionalizar todos os

direitos, a Carta de 1988 delegou ao STF poderes amplos, gerais e irrestritos.” 184

Está-se aqui a utilizar da classificação exposta por André Karam Trindade, apesar de ser uma questão

meramente de classificação e metodológicas, apenas para se apresentar o contexto brasileiro. 185

Disponível em <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/emecon/1960-1969/emendaconstitucional-16-26-

novembro-1965-363609-publicacaooriginal-1-pl.html> Acesso em: 19/07/2015.

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104

em realidade, enorme discricionariedade. Aliás, o pior e maior efeito da

discricionariedade parece ser o enfraquecimento da normatividade da Constituição e

consequentemente do regime democrático.

O juiz, sob o pretexto de concretizar os direitos fundamentais, utiliza-se de

suas convicções pessoais, o que configura alto grau de voluntarismo e insegurança

jurídica, relegando à interpretação da dogmática jurídica verdadeira escolha casuística

pela consciência do julgador186

: “um juiz ou tribunal pratica ativismo quando decide a

partir de argumentos de política, de moral, enfim , quando o direito é substituído pelas

convicções pessoais de cada magistrado”187

.

Obviamente, as conclusões propostas neste estudo não são contra a

concretização dos direitos fundamentais pelo Judiciário. Afinal, implementar esses

direitos não é uma escolha a nenhuma dos três poderes. Mas desde que motivados em

parâmetros jurídico-constitucionais. Nesse sentido, o que importa à caracterização do

ativismo é a fundamentação da decisão, não seu resultado.

No mesmo sentido, de pleno acordo se está com Adolfo Alvarado Velloso

quando denuncia a influência midiática sobre o juiz188

, afinal, a legalidade existe!

2.3. Neoconstitucionalismo e Pós-Positivismo: uma distinção dos conceitos.

Analisando a diferença entre texto e norma, a interpretação do direito não mais

como ato revelador da vontade da lei ou do legislador, e o adeus ao silogismo.

O termo neoconstitucionalismo é importada do direito constitucional

espanhol como novo paradigma científico para estudarmos este ramo jurídico.

Ingressou definitivamente no léxico jurídico e vem sendo empregada para se

referir às tentativas de explicar as transformações ocorridas no campo do direito a partir

da Segunda Guerra Mundial em consideração às novas Constituições que passam a

positivar diversas garantias fundamentais como novos limites para a atuação do Poder

Público.

Miguel Carbonell a utiliza para se referir a duas questões: (i) a uma série de

fenômenos evolutivos resultantes do paradigma do Estado Constitucional e (ii) a uma

determinada teoria do Direito que sustenta essas mudanças e/ou delas trata189

. Nesse

contexto, o discurso do neoconstitucionalismo significa ir além de feições liberais para

186

STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso, op. cit., cap 4, §1 e cap. 13, §5. 187

Ibidem, p. 589. 188

VELLOSO, Adolfo Alvarado. El debido proceso, op.cit., p.205. 189

CARBONELL, Miguel. Neoconstitucionalismo(s). Madrid: Editorial Trotta, 2003, p. 09/10.

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105

se atingir um constitucionalismo de feições dirigentes visando à efetivação de um

regime democrático vez que as Constituições passaram a consagrar os direitos

fundamentais em seu texto190

. E claro que com o novo formato dos textos

constitucionais a doutrina também sofreu alterações em vista da preocupação de

concretizá-los.

Note-se aqui que o instrumentalismo processual brasileiro de Dinamarco

contagia o discurso de concretização do texto constitucional, pois, como visto, aquela

doutrina acredita que a jurisdição é responsável pela concretização dos “verdadeiros

valores” que corroboram com a efetiva justiça.

Bulow, iniciador da face metodológica do processualismo, aliás, já concebia

o processo como instrumento da jurisdição, mas não na perspectiva de controle da

atividade dos juízes. Como denuncia André Cordeiro Leal, há muito do modelo

bulowiano em Dinamarco, pois seu escopo foi o de

(...) apresentar, com base na releitura do direito romano, fundamentos

histórico-sociológicos pretensamente autorizativos da migração do controle

social pela magistratura alemã e de justificar, a partir daí, a adoção de

técnicas que permitissem a desvinculação de julgadores das abordagens

formalistas ou legalistas na aplicação do direito”.191

Leciona Ferrajoli que o constitucionalismo, principialista, jusnaturalista ou

não positivista é uma corrente neoconstitucionalista, em antítese ao constitucionalismo

normativo ou garantista. Nesse sentido, Ferrajoli entende o constitucionalismo de duas

maneiras distintas e opostas: (i) primeiramente como a superação em sentido

jusnaturalista ou ético-objetivista do positivismo jurídico, concepção sob a qual

denuncia estar frequentemente etiquetada de neoconstitucionalista, (ii) ou ainda como a

expansão ou completamento do positivismo, concepção esta que sustenta sob a bandeira

juspositivista192

.

Então, para Ferrajoli, o constitucionalismo principialista, corrente

neoconstitucionalista, é por ele criticada por transformar os direitos fundamentais em

valores ou princípios morais, o que gerou a fragilização da normatividade do direito

com a ponderação.

De todo modo, não se pode negar que o neoconstitucionalismo representou

um importante passo para a afirmação da força normativa da Constituição, em que pese

190

STRECK, Lenio Luiz. Neoconstitucionalismo, positivismo e pós-positivismo, op. cit., p. 61. 191

LEAL, André Cordeiro. Instrumentalidade do Processo em Crise. Belo Horizonte: Mandamentos,

Faculdade de Ciências Humanas, p. 30-31. 192

FERRAJOLI, Luigi. Constitucionalismo principialista e constitucionalismo garantista. In:

FERRAJOLI, Luigi; STRECK, Lenio. (Orgs.) Garantismo, hermenêutica e (neo)constitucionalismo: um

debate com Luigi Ferrajoli. In Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2012, p. 13.

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106

ter acabado por incentivar/institucionalizar uma recepção acrítica da jurisprudência dos

valores, da teoria da argumentação de Robert Alexy e do ativismo judicial norte-

americano193

.

É por essas considerações que Lenio Streck prefere utilizar-se da expressão

Constitucionalismo Contemporâneo para designar a insurgência do constitucionalismo

pós-Segunda Guerra Mundial em atenção ao redimensionamento do papel do Judiciário

que, progressivamente, tem sido provocado a se manifestar sobre os mais variados

assuntos194

.

Em síntese, o termo neoconstitucionalismo designa um fenômeno político-

jurídico de surgimento de um conjunto de textos constitucionais que surgem após a

segunda guerra.

Neoconstitucionalismo significa a tradição na qual estamos situados em que

a Constituição é topo normativo de perfil dirigente e compromissório. Nesta concepção,

o Direito transforma o social por meio da concretização de direitos com assento

constitucional. E assim “a adesão a essa corrente de pensamento exige que

reconheçamos, entre outras coisas, a interlocução que se dá entre a Moral e o Direito

(...) através, significativamente, da positivação dos direitos fundamentais”195

.

Diferentemente, Luís Flávio Gomes cita o neoconstitucionalismo como a

(neo)constitucionalização do Direito com o risco de superposição da Moral sobre o

Direito vigente196

.

Por isso chama-se a atenção para teorias que se dizem

neoconstitucionalistas, mas que não reconhecem a autonomia do Direito nem trabalham

com a co-originariedade entre Direito, Moral e Política.

Aliás, outra coisa é o pós-positivismo (que remonta à Friedrich Muller e a

sua Metódica Estruturante do direito), um paradigma filosófico estruturado sob a base

do giro linguístico e ontológico-linguísitico197

, em que pese haver séria e respeitada

doutrina que utiliza os conceitos (neoconstitucionalismo e pós-positivismo) como

sinônimos sem discriminação do que seja de fato tais fenômenos.

193

STRECK, Lenio. Verdade e Consenso, op. cit., p. 35/37. 194

Lenio Luiz Streck prefaciandoa obra de Clarissa Tassinari, qual seja, Jurisdição e ativismo judicial:

limites da atuação do Judiciário. Porto Alegre: 2013. 195

MOTTA, Francisco José Borges. Levando o direito a sério: Uma crítica hermenêutica ao

protagonismo judicial, op. cit., p. 53. 196

Idem, apud, GOMES, Luis Flávio. Candidatos Fichas-Sujas: STF Afasta o Risco da Hipermoralização

do Direito. In: Carta Forense, p. 11, dez. 2008. 197

ABBOUD, Georges. Discricionariedade administrativa e judicial: o ato administrativo e a decisão

judicial, op. cit., p. 85.

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107

Fredie Didier Jr., por exemplo, afirma que neoconstitucionalismo é a fase

atual do pensamento jurídico, entendendo que “há quem denomine esta fase de pós-

positivismo, o que também não quer dizer muita coisa, a não ser o fato de que é um

estágio posterior ao positivismo”198

. O perigo está em minorar fenômeno de extrema

importância.

O pós-positivismo possui berço na obra pioneira de Friedrich Muller199

: a

sua teoria estruturante do direito cujo intento é superar as deficiências do positivismo

conforme os avanços da filosofia da linguagem e da hermenêutica. Ou seja, Müller

navega numa perspectiva pós-positivista da norma jurídica.

Como já mencionado no início deste estudo, o positivismo exclui qualquer

conteúdo transcendente ao direito positivo (por isso opõe-se ao jusnaturalismo) e

sustenta a separação entre direito e moral. Mas as teorizações positivistas oscilam em

torno do seu objeto de estudo. Em síntese: se o objeto de estudo está nos códigos

produzidos nos novecentos, chamamos de positivismo legalista ou exegético, ou em

Ferrajoli, paleojuspositivista; se na norma jurídica, cujo maior expositor teórico é Hans

Kelsen, positivismo normativista; se no conceito de regra, com Herbert Hart ou com

base no conjunto de decisões emitidas pelos tribunais, o realismo jurídico.

Nesse sentido, para que se classifique uma teoria como pós-positivista, é

necessário distinguir norma e texto normativo, e então, diante de uma nova concepção

de norma, aplicar o direito não mais pela via do silogismo. Isto implica dizer que a

norma não é prévia ao caso nem existe em abstrato, pois passa a ser concreta, produto

da linguagem e da atividade interpretativa. Ou seja, o paradigma pós-positivista não

concebe a resolução de nenhuma questão jurídica sem a intermediação da hermenêutica.

Como dito por Castanheira Neves, o direito é fundamentalmente linguagem.

E assim, nesse paradigma, norma é a interpretação conferida a um texto (enunciado),

parte de um texto ou combinação de um texto, de forma que os significados jurídicos

são trabalhados concomitantemente com seu uso prático. Daí que a solução das questões

jurídicas, tanto pelo Judiciário quanto pela Administração Pública, produzem norma,

uma vez que ela não pode mais ser reduzida a uma determinação normativa mediante

silogismo subsuntivo.

Em outros termos:

198

DIDIER JR. Fredie. Curso de Direito Processual Civil. Vol. 1. Salvador: Ed. Jus Podivm, 2015, p. 43. 199

MÜLLER, Friedrich. O novo paradigma do direito. Introdução à teoria metódica estruturante do

direito. 3. Ed. São Paulo: Ed. RT, 2013, n.1, p. 10-11.

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108

o texto deve ser compreendido em cada momento e em cada situação de uma

maneira nova e distinta, justamente porque ele não é a norma pronta a ser

aplicada ao caso concreto. O texto, na realidade, apesar de fisicamente o

mesmo, pode tornar-se múltiplos textos a partir de suas interpretações e

compreensões durante o processo histórico de sua aplicação.200

Ocorre que o pensamento jurídico dominante em nosso país ainda incorre no

equívoco de equiparar texto e norma. Tanto que Ministros de nossos Tribunais afirmam

a desnecessidade de se interpretar enunciados como súmulas vinculantes por conterem

uma prescrição literal e objetiva. O mesmo acontece nas aulas de cursinhos para o

exame da Ordem dos Advogados do Brasil. Ora, todo texto, por mais claro e objetivo

que seja, sempre comporta interpretação!

Perceba que há, portanto, três pontos primordiais no paradigma pós-

positivista: (i) a diferença entre texto e norma, (ii) a interpretação do direito deixa de ser

ato revelador da vontade da lei ou do legislador, e (iii) a sentença deixa de ser processo

silogístico201

.

Para o primeiro ponto, interessa saber que a prescrição juspositivista é

apenas o pontapé inicial na estruturação da norma, já que a prescrição literal, na teoria

de Friedrich Muller, como ficará claro, serve para a elaboração do programa da norma,

mas esta não se resume aqui, pois a normatividade202

(aptidão da norma), entenda, não é

produzida pelo texto. “O texto determina os limites extremos das possíveis variantes em

seu significado”203

. Esse é apenas o caminho de entrada, muito importante, diga-se, no

processo de concretização da norma. O texto possui normatividade por ter aptidão para

produzir a norma em conjunto com o caso concreto.

A teoria estruturante de Müller leva em conta duas entidades jurídicas: o

programa normativo, que configura os dados linguísticos do processo concretizador, ou

200

ABBOUD, Georges. Discricionariedade administrativa e judicial: o ato administrativo e a decisão

judicial, op. cit., p. 66. 201

ABBOUD, Georges. Jurisdição constitucional e direitos fundamentais. São Paulo: Ed. RT, 2011, p.

61. 202

Ensina Friedrich Müller que a normatividade “não é nenhuma qualidade (estática, dada, substancial)

de textos de normas. Ela é um processo baseado no trabalho comprometido com o Estado de Direito e a

democracia. Esse processo parte dos textos das normas (e dos casos jurídicos) e encontra neles os seus

limites”. Müller, Friedrich. Metodologia do direito constitucional. 4 ed. São Paulo: Ed. RT, 2011, p.

124/125. 203

MÜLLER, Friedrich. Postpositivismo. Cantabria: Ediciones TDG, 2008, p. 166/167. “Não obstante o

texto normativo não carregar a norma em si, obviamente que ele constitui um dos limites para as

variantes interpretativas a serem alcançadas. Ou seja, não se pode considerar legítima e correta

qualquer interpretação alcançada do texto normativo. Esse ponto da Teoria Estruturante é fundamental

para demonstrar que a importância dada á prescrição literal busca impossibilitar que a atividade

produtora da norma jurídica possa sempre ser socorrida por elementos discricionários ou arbitrários.

Portanto, ainda que a norma seja diferente do texto normativo, o resultado alcançado pela atividade

interpretativa deve obrigatoriamente ser comportável pelo programa normativo.” ABBOUD, Georges,

Discricionariedade administrativa e judicial: o ato administrativo e a decisão judicial. p. 74.

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109

seja, seu teor literal, e o âmbito normativo, composto pelos elementos não linguísticos,

um recorte da realidade social criado pelo programa da norma como seu âmbito de

regulamentação.

Nesse sentido, matematicamente, a norma jurídica tem que ser mais do que

o texto. Ela resulta da problematização do caso concreto, seja real ou fictício (e por isso

o equívoco brasileiro no que tange a súmula que almeja ser “norma acabada”).

É que cada ato de interpretação deriva da compreensão que se tem a respeito

do ser dos entes. Ou seja, “o Ser-aí compreende o ente em seu ser e, de uma forma

derivada, torna explícita essa compreensão através da interpertação. Na interpretação,

procuramos manifestar onticamente aquilo que foi o resultado de uma compreensão

ontológica”204

pois “A interpretação é o momento discursivo-argumentativo em que

falamos dos entes (processo, direito, etc...) pela compreensão que temos de seu ser.”205

Isto é, “interpretar não é tomar conhecimento do que se compreendeu, mas elaborar as

possibilidades projetadas no compreender”206

.

Assim, a interpretação dos conceitos jurídicos precisa levar em conta toda a

dimensão histórica interpretativa que está por trás de cada um de tais conceitos.

Interpretar e aplicar são realizações que se dão no mesmo momento.

A norma é concreta não apenas porque produzida a cada processo individual

de decisão jurídica, mas porque produto da perspectiva do intérprete em relação ao caso,

real ou fictício, único e irrepetível.

Assim, se não se pode admitir a solução de questões jurídicas sem

concomitante atividade interpretativa, porque texto normativo e norma jurídica não se

confundem, já que o primeiro é pontapé para a segunda, a atividade do Judiciário na

resolução de questões jurídicas tem que ser criativa, além de produtiva de normas, para

o que o silogismo subsuntivo não funciona.

Assim sendo, falemos em hierarquia de textos normativos, não de normas,

pois essas são o resultado da interpretação. E por esta hierarquia, somente é permitido

afastar-se do texto normativo infraconstitucional pelo controle de constitucionalidade,

até mesmo para que se conforme a interpretação daquele para com o texto

constitucional.

204

ABBOUD, Georges. Discricionariedade administrativa e judicial: o ato administrativo e a decisão

judicial, op. cit., p. 66. 205

Ibidem, p. 66. 206

HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo.10ª. ed. Tradução de Márcia Sá Cavalcante Schuback. Bragança

Paulista/Petrópolis: Editora Universitária São Francisco e Editora Vozes Petrópolis , 2015, p. 209.

Page 110: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP ... Lobão Torres.pdfem 1989, de “Diritto e Ragione: Teoria del Garantismo Penale”. Foi com a tradução desta obra para

110

Parece assim, restar esclarecida a confusão entre neoconstitutionalismo e

pós-positivismo, pois nem toda teoria neoconstitucionalista carrega em seu bojo

aspectos essenciais do paradigma pós-positivista.

2.4. Judicialização da política e ativismo judicial

Faz-se necessário abordar a diferenciação entre ativismo judicial e

judicialização da política, especialmente porque é inegável que ambas as expressões

contextualizam a atual conjuntura jurídica brasileira com centralização na atuação do

Judiciário.

A resposta ao que seja judicialização da política passa pela percepção da

interação entre Direito, Política e Judiciário, notando-se, então, que Direito e Política se

interpenetram, e que isto não está necessariamente vinculado a um ativismo.

Essa é uma importante observação a ser feita porque é devido à articulação

entre Direito e Política que possivelmente as duas expressões (ativismo judicial e

judicialização da política) confundem-se no imaginário das pessoas.

Veja-se, por exemplo, que Luis Roberto Barroso207

, na tentativa de

distingui-las, afirma a existência de uma ambiguidade: o Direito, ao mesmo tempo, é e

não é Política. Contraditório?

O ativismo, para Barroso, resume-se em “uma participação mais ampla e

intensa do Judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais, com maior

interferência no espaço de atuação dos outros dois poderes”208

.

De outro modo, Clarissa Tassinari, em extenso trabalho sobre o ativismo, o

sintetiza “como a configuração de um Poder Judiciário revestido de supremacia, com

competências que não lhe são reconhecidas constitucionalmente”209

.

No tocante à judicialização da política, para Vanice Regina Lírio210

a

constitucionalização do direito pós-Segunda Guerra Mundial e todo o contexto político

neste período provocou uma maior participação do Estado na sociedade, abrindo espaço

para a jurisdição em face da inércia dos demais Poderes. É o que Luiz Werneck

207

BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática, op. cit., p.

285. 208

Ibidem , p. 279-280. 209

TASSINARI, Clarissa. Jurisdição e ativismo judicial: limites da atuação do Judiciário, op. cit., p. 32. 210

VALLE, Vanice Regina Lírio do (Org.) Ativismo Jurisdicional e o Supremo Tribunal Federal:

laboratório de Análise Jurisprudencial do STF. Curitiba: Juruá, 2009, p. 32.

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111

Vianna211

chama de publicização da esfera privada na medida em que o contexto de

existência de novos direitos e remodelagem do Estado, entre outros fatores, desfez o

Judiciário inerte às transformações sociais.

Conforme Lenio Streck: “(...) a judicialização é um fenômeno que exsurge

a partir da relação entre os poderes do Estado (pensemos, aqui, no deslocamento do

polo de tensão dos Poderes Executivo e Legislativo em direção da justiça

constitucional”212

.

Feitas essas distinções, é de se notar que o que está atrelado ao plantio e

cultivo da cultura judicante é a judicialização da política, e não necessariamente o

ativismo judicial, fenômeno que deve-se mais ao pós-Segunda Guerra Mundial, ao

surgimento da noção de constitucionalismo dirigente e à atuação dos Tribunais

Constitucionais.

Como se sabe, a Segunda Guerra Mundial produziu atrocidades durante a

existência de regimes totalitários. Pairava o sentimento de que era necessário se romper

com a estrutura institucional da época e com as teorias e metodologias

predominantes213

. Exatamente por essa necessidade, o período posterior à Segunda

Guerra representa uma mudança paradigmática no direito mundial. Para superá-las, a

revolução ensejada pelo segundo pós-guerra envolveu a concepção de um texto

constitucional marcado pela existência de um texto compromissório visando o bem-

estar social214

. É um marco determinante na história do pensamento jurídico dos países

ocidentais215

.

A pauta “Direitos Humanos” tomou conta do cenário jurídico. Para a

exposição internacional da proteção de tais direitos não se pode olvidar o influente fato

histórico que foi a criação da Organização das Nações Unidas em 24 de outubro de

1945 (em que pese representar resposta dos vencedores aos vencidos)216

.

Aliás, destaca-se cronologicamente a partir de então a elaboração de

instrumentos internacionais: Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948),

211

VIANNA, Werneck; CARVALHO, Maria Alice R. de; MELO, Manuel P. Cunha; BARGOS, Marcelo

B. A judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Reavan, 1999, p.15. 212

STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso, op. cit., p. 589. 213

TASSINARI, Clarissa. Jurisdição e ativismo judicial: limites da atuação do Judiciário, op. cit., p.

42/43. 214

ROSA, Alexandre Morais da. A constituição no país do jeitinho: 20 anos à deriva do discurso

neoliberal (Law and economics). In: Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica: 20 anos de

constitucionalismo democrático – e agora? Porto Alegre, vol. 1, n. 6, p. 15 – 34, 2008, p. 18 – 23. 215

PINHO, Ana Cláudia Bastos de. Para além do garantismo: uma proposta hermenêutica de controle da

decisão penal, op. cit., p. 19. 216

Ibidem, p. 19.

Page 112: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP ... Lobão Torres.pdfem 1989, de “Diritto e Ragione: Teoria del Garantismo Penale”. Foi com a tradução desta obra para

112

Convenção Europeia dos Direitos Humanos (1953), Pacto Internacional sobre Direitos

Civis e Políticos e Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais

(1966), Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa

Rica – 1969).

Como não poderia deixar de ser, a ordem externa veio a influenciar os

ordenamentos internos. Mais especificamente, as Constituições dos países democráticos

vieram a positivar, como direitos fundamentais, os valores reconhecidos pela ordem

externa217

.

O fim da Segunda Guerra, então, impulsionou a passagem do Estado

Legislativo de Direito para um Estado Constitucional de Direito visando à garantia dos

direitos fundamentais constitucionalmente assegurados.

O Estado Constitucional deve ser um Estado Democrático de Direito para

que possua os atributos do constitucionalismo, identificando-se por duas qualidades: o

Estado de direito e o Estado democrático no qual o poder estatal deve organizar-se em

termos democráticos e o poder político deriva do poder dos cidadãos218

. Isto é, deve ser

a evolução do Estado nascido com a afirmação do princípio da legalidade para que se

considerasse como direito existente somente aquilo que fosse produzido pelo órgão

competente (e que caracterizou o monopólio do Estado sobre a produção jurídica

voltada à concepção ético-cognitivista pelo postulado juspositivista “auctoritas non

veritas facit legem”) ao Estado Constitucional de Direito (ou Estado de direito em senso

estrito) caracterizado pelo ordenamento jurídico de constituição rígida com hierarquia

superior das normas constitucionais e sujeito à coerência com os significados destas,

introduzindo um princípio de legalidade substancial (que Ferrajoli designa como

princípio da legalidade estrita) que produz a distinção entre existência e validade das

normas.

Vê-se que o Estado de direito completou-se com o Estado Constitucional de

Direito, que, aliás, correspondeu ainda a uma mutação da democracia ao deixar de

identificar-se somente com a dimensão política do sufrágio universal, da

representatividade e do princípio da maioria para adquirir uma dimensão constitucional

de determinação jurídica do poder, “relativa ao conteúdo das decisões políticas,

submetidas à observância dos direitos fundamentais, os quais, com o princípio da

217

Ibidem, p. 20. 218

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 7. Ed. Coimbra:

Almedina, 2004, Parte 1, Cap. 3, p. 93/98.

Page 113: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP ... Lobão Torres.pdfem 1989, de “Diritto e Ragione: Teoria del Garantismo Penale”. Foi com a tradução desta obra para

113

igualdade, constituem os fundamentos axiológicos positivos da democracia

constitucional”219

.

Então, o fenômeno jurídico passou a ser visto sob a perspectiva de

substancialidade/materialidade por meio da força normativa da Constituição que

condiciona materialmente a legalidade e a incorporação de novos direitos com seus

respectivos meios assecuratórios.

Como a complexização das estruturas constitucionais demandou uma

intervenção bem mais efetiva do Poder Judiciário para dar conta desse novo modelo de

Estado baseado nos direitos fundamentais (individuais e sociais), a jurisdição

constitucional passou a tomar forma220

.

No caso europeu, a inexistência de uma efetiva jurisdição sobre a

Constituição somada à necessidade de respeitar a hierarquia constitucional desde a

Constituição de Weimar fez dar vida aos Tribunais Constitucionais que fundamentavam

suas decisões respaldando-se na jurisprudência dos valores. Nesse contexto, além do

Tribunal Constitucional Federal alemão, outros excelentes exemplos de Cortes

Constitucionais instituídas no segundo pós-guerra para a realização da chamada

jurisdição constitucional com vistas ao controle de constitucionalidade das leis e da

interpretação da Constituição são o Tribunal Constitucional espanhol, a Corte

Constitucional italiana e o Tribunal Constitucional português.

É necessário notar, contudo, que o contexto latino-americano nesse período

pós-Segunda Guerra foi marcado por sofrer golpes ditatoriais, por isso os avanços

constitucionais na Europa se deram na América Latina como ruptura aos regimes

ditatoriais de forma tardia. Especificamente no Brasil, o movimento constitucionalizante

chegou em 1987-1988221

e foi definitivamente assimilado com a promulgação da

Constituição de 1988, a chamada Constituição Cidadã, que, lembre-se, inaugurou o

Estado Democrático de Direito222

.

Então, juízes que jamais tiveram de lidar em demandas de tamanha

complexidade já que acostumados com demandas individuais viram-se diante de uma

219

IPPOLITO, Dario. O garantismo de Luigi Ferrajoli. Revista de Estudos Constitucionais,

Hermenêutica e Teoria do Direito (RECHTD), op. cit., p. 34 – 41. 220

PINHO, Ana Cláudia Bastos de. Para além do garantismo: uma proposta hermenêutica de controle da

decisão penal, op. cit., p. 20. 221

TASSINARI, Clarissa. Jurisdição e ativismo judicial: limites da atuação do Judiciário, op. cit., p. 23. 222

DA SILVA, Rosemary Cipriano. Direito e processo: a legitimidade do Estado Democrático de Direito

através do processo, op. cit., p.1.

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114

Constituição recheada de princípios que apontava para uma mudança de postura

inexoravelmente. Como descreve Ana Cláudia Bastos de Pinho:

Juízes formados na tradição positivista e acostumados a (só) decidir com base

em regras de tudo ou nada, efetuando aplicações silogísticas e operando a

partir de métodos tradicionais de interpretação, teriam, agora, de trabalhar

com princípios e acudir em questões da mais alta relevância, envolvendo

direitos e garantias fundamentais.223

Afinal, a Constituição deve constituir-a-ação224

. Em que pese alertar-se

desde já para a equivocada concepção de abertura principiológica da Constituição e sua

nefasta consequência, qual seja, o decisionismo, pois do contrário recair-se-á novamente

no gravíssimo problema da discricionariedade herdada pelo positivismo225

.

No Brasil teve grande influência a obra de José Gomes Canotilho226

na qual

pretendeu afirmar a força atuante do direito constitucional de modo que do texto

constitucional extrai-se direções sociais e políticas a influenciarem os atos do Estado,

inclusive dando novos rumos à jurisdição. A concepção de constituição dirigente

relaciona-se com a mudança da realidade pelo direito.

Contudo, no Brasil, o constitucionalismo dirigente restou fragilizado diante

dos ideais neoliberais de 1990.

A partir da invasão da “Análise Econômica do Direito” a esfera jurídica viu-

se contaminada pelas expectativas predominantes no campo econômico, em especial por

um ideal de eficiência que manipulava o critério de justiça, o que também levou ao

desprivilégio dos direitos sociais e enfraquecimento do Estado Democrático de Direito.

A promulgação do texto constitucional com o extenso rol de garantias a fim

de concretizar-se o bem-estar social e, em contrapartida ao dever do Estado em torná-las

efetivas a fragilização da esfera estatal, criou-se um ambiente de maior procura do

223

PINHO, Ana Cláudia Bastos de. Para além do garantismo: uma proposta hermenêutica de controle da

decisão penal, op. cit., p. 20 224

STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do direito. Porto

Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p. 78. 225

“No positivismo, a discricionariedade está presente porque, como as palavras não prendem

significados, ante a falta de clareza delas, fica tudo nas mãos do juiz, para decidir como melhor lhe

aprouver. Eis o enorme perigo de manter uma postura positivista num modelo constitucional

democrático: a corrida aos relativismos e decisionismos.” PINHO, Ana Cláudia Bastos de. Para além do

garantismo: uma proposta hermenêutica de controle da decisão penal, op. cit, p. 21. 226

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador: contributo

para a compreensão das normas constitucionais programáticas. 2 ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2001,

p. 27. Não custa lembra que o próprio autor português posteriormente desencantou-se com a inefetividade

da programaticidade constitucional, isso porque passou a conviver com o enfraquecimento do Estado em

face da constituição da União Europeia. Deve-se ater, contudo, às especificidades do contexto brasileiro,

como o texto de sua própria Constituição.

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115

Judiciário227

. A ampla litigiosidade veio como modo de efetivar as promessas não

atendidas pelo Estado Democrático de Direito.

Aliás, denuncia Clarissa Tassinari que o regime democrático acentua a

conflituosidade social já que neles distribui-se difusamente o poder o que aumenta a

possibilidade de surgimento de conflitos, os quais, na sociedade contemporânea, são

encaminhados para o Judiciário228

.

Infelizmente, o cenário piora quando se verifica a tendência da tutela de

direito pela via do litígio individual numa sociedade complexa cuja produção, consumo

e distribuição apresentam-se massificados cuja pluralidade deveria ser tutelada pela via

coletiva.

Ainda, o movimento de acesso à justiça incrementou a judicialização da

política na medida em que proveu meios para o ingresso no Judiciário como a criação

dos Juizados Especiais, a Defensoria Pública e a incorporação da tutela antecipada.

Enfim, a judicialização é uma questão social a respeito do maior número de

demandas decorrentes da consagração de direitos e regulamentações constitucionais, ou

seja, não é uma postura positiva ou negativa sem qualquer análise sobre o

fortalecimento da jurisdição, não depende do órgão judicante, como o ativismo, pelo

contrário, a judicialização deriva de fatores alheios e externos à jurisdição229

.

Ou seja, a judicialização é um fenômeno gerado pela insuficiência dos

demais Poderes em determinado contexto social independentemente da postura de juízes

e tribunais, enquanto o ativismo diz respeito a uma postura do Judiciário para além dos

limites constitucionais230

.

2.5. Ativismo versus garantismo

Para o melhor aproveitamento do tema, seria uma gravíssima falta deixar de

mencionar que o estudo dos antecedentes históricos desse debate se deve em grande

parte a Glauco Gumerato Ramos, um dos grandes contribuidores da relevância do tema

nacionalmente.

Em 1995, o estudioso do tema outorga como relevante marco inicial o

estudo de Franco Cipriani sob o título “Nel centeario Del Regolamento di Klein (Il

227

TASSINARI, Clarissa. Jurisdição e ativismo judicial: limites da atuação do Judiciário, op. cit., p. 44-

46. 228

Ibidem, p. 46-47. 229

Ibidem, p.32. 230

Ibidem, p. 36/37.

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116

processo civile tra libertá e autoritá)” em que congregou historicamente os aspectos

ideológicos em que se radicou o CPC austríaco projetado por Franz Klein:

Em síntese, CIPRIANI demonstra que o Regulamento Klein : i) encara o

processo civil como um “mal social” a gerar influência na economia

nacional; ii) tratou o processo como objeto social; iii) conferiu viés publicista

ao processo civil, com “negação” às partes; iv) reforçou os poderes do juiz no

processo. 231

Isto é, Cipriani demonstrou a criação de um juiz com grandes poderes de

direção no processo.

Em 2001, Juan Montero Aroca escreveu “Los princípios políticos de la

nueva Ley de Enjuiciamento Civil – Los poderes del juez y la oralidad”, obra que

representa sua conferência proferida nas XVII Jornadas Iberoamericanas de Derecho

Procesal, organizada pelo Instituto Iberoamericano de Derecho Procesal e pela Corte

Suprema da Costa Rica na cidade de San José em 2000232

.

Em mencionada conferência, Aroca afirmou que a nova Ley espanhola não

assumiu a ideia da publicização do processo civil, contrariando a concepção reinante na

doutrina do século XX e afastando a legislação processual de seu país das diretrizes

encampadas pelo Código Procesal Civil Modelo para Iberoamérica:

Esta conferência de encerramento teria sido o despertar de um novo enfoque

ao direito processual civil, na qual foi proposto, a partir das diretrizes

políticas que segundo MONTERO AROCA orientaram a nova LEC

espanhola, que o processo civil estava passando por um momento de

mudança de paradigma, com a observação do esvaziamento de seu conteúdo

publicístico. 233

No mesmo ano da conferência foi realizado o II Congresso Internacional de

Derecho Procesal Garantista na cidade de Azul, em Buenos Aires em que foram

distribuídos aos congressistas o texto da conferência de Montero Aroca em Costa Rica e

a tradução de Adolfo Alvarado Velloso do mencionado texto de Franco Cipriani a

respeito do Regulamento de Klein. Foi então que, o autor doutrinariamente tachado de

“revisionista”234

Franco Cipriani nota a correspondência entre suas ideias e as de

231

RAMOS, Glauco Gumerato. Activismo vs. Garantismo em el proceso civil: presentación del debate,

op. cit., p. 3. 232

Ibidem, p. 6. 233

Ibidem, p. 7. 234

Por defender um processo civil italiano adequado à Constituição em vigor, opondo-se aos

negacionistas que rechaçam a ideia de que o CPC italiano de 1940 seja autoritário.

Page 117: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP ... Lobão Torres.pdfem 1989, de “Diritto e Ragione: Teoria del Garantismo Penale”. Foi com a tradução desta obra para

117

Montero Aroca, traduzindo ao italiano posteriormente do autor espanhol “Los princípios

políticos”235

.

Com a tradução italiana de Cipriani, Giovanni Verde publica, na Italia, um

artigo integralmente dedicado ao livro de Montero Aroca, texto que foi traduzido ao

espanhol e publicado na Revista Iberoamericana de Derecho Procesal, a partir do qual a

temática se alastra na América Latina e na Europa.

Viu-se que há no Brasil notórios juristas que atrelam à ideia de ativismo

apenas a uma participação mais ampla e intensa do Judiciário na concretização dos

valores e fins constitucionais, como a maior interferência nos outros Poderes, mas sem

recair em criação do direito236

.

Todavia, essa não é a visão apresentada aqui. O ativismo é o exercício da

função jurisdicional para além dos limites impostos, ou ainda, como resultado de

decisões judiciais fundamentadas nas convicções pessoais do julgador, ou seja,

pronunciamentos judiciais nos quais as fontes normativas são substituídas pelo senso de

quem as prolatou. Ou ainda:

O ativismo é gestado no interior da própria sistemática jurídica, consistindo

num ato de vontade daquele que julga, isto é, caracterizando uma

“corrupção” na relação entre os Poderes, na medida em que há uma

extrapolação dos limites na atuação do Judiciário pela via de uma decisão que

é tomada a partir de critérios não jurídicos.237

Nesse sentido, conclui-se pelo caráter sempre patológico do ativismo no

Estado Democrático de Direito, para o que é descabido adjetivá-lo como bom já que

sempre será ruim, não importando o resultado prático de uma decisão ativista, pois ela

sempre violará a Constituição, a Democracia e a Separação de Poderes! E isso porque,

em síntese, o Estado Constitucional, plus ao Estado de Direito, é contra concepções

ativistas como a de Jorge Peyrano que sustentam que “El activismo judicial confia en

los magistrados (...) códigos de procedimientos civiles más recientes, depositan em

manos de los jueces civiles un amplio número de facultades-deberes para mejor

cumplir su cometido de distribuir el pan de la Justicia”238

!

235

RAMOS, Glauco Gumerato. Activismo vs. Garantismo em El proceso civil: presentación del debate.

op. cit., p. 8. 236

BARROSO, Luis Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática, op. cit., p.

279. 237

STRECK, Lenio. Verdade e Consenso, op. cit., p. 65. 238

PEYRANO, Jorge W. Activismo y garantismo procesal, op. cit., p. 11.

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118

Assim, consoante o que fora dito sobre a distinção conceitual entre

judicialização da política e ativismo judicial, este é fenômeno que tem como ponto

observado o comportamento judicial, ou melhor, uma postura ativa e criativa.

Condizente com esse pensamento do que é o ativismo, deve-se ater ao

sistema jurídico brasileiro. O Código de Processo Civil de 1973, em seu art.130, e o

Código de Processo Civil de 2015 prevêem a prova judicial oficiosa. Apesar de tal

disposição trazer a possibilidade da prova de ofício, ela é genérica, e assim, o que o

garantismo processual afirma é que a determinação de produção de provas de ofício

pelo juiz é produto de convicções isoladas do julgador, portanto, ativista.

Reconheça-se que a autorização para atividade probatório de ofício coloca a

possibilidade de que o juiz esteja a buscar confirmações para hipóteses que ele próprio

formulou. Por outro lado, entenda-se que quando o Código assim prevê a prova oficiosa

está a passar a mensagem de que as decisões de mérito devem estar adequadas aos fatos

ocorridos, e se poucas provas podem conferir uma probabilidade pequena, a solução

encontrada será a busca por mais provas.

Viola o princípio da imparcialidade, da separação dos poderes e da

igualdade processual. De todo modo, entende-se que, em vista da lei brasileira, faz-se

necessário o reconhecimento da inconstitucionalidade do dispositivo consoante as

considerações garantistas.

É inegável que essa previsão legal é caracterizadora do sistema misto no

processo civil brasileiro por caracterizar o juiz investigativo e inquisidor na fase

instrutória, concomitantemente com um processo regido pelo princípio dispositivo.

Aliás, relembre-se que o modelo misto é monstro processual que deve ser rechaçado

para Adolfo. Alvarado Velloso

Nesse contexto, observe que a teoria garantista está dizendo que a simples

determinação da produção de uma prova já viola a imparcialidade judicial. Isso se diz

por que a clássica objeção de que a imparcialidade judicial está preservada nos casos de

determinação judicial oficiosa da produção de uma prova porque não há como o juiz

saber o resultado da instrução probatória merece maior detalhamento para que seja

afastada.

Aliás, o autor, não aponta ao vocábulo prova um exato significado científico

de asseveração incontestável, e como tal, não opinável. Considerando situar-se no

subjetivismo da verdade, ou seja, de que cada pessoa pode considerar um fato como

subjetivamente verdadeiro, de acordo com sua percepção, prefere utilizar-se da palavra

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119

confirmação, a qual significa reafirmar uma probabilidade: a rigor, uma afirmação

negada se confirma com diversos meios que podem gerar convicção (não certeza) a um

julgador e não gerar em outro239

. E assim, a confirmação não advém necessariamente de

uma prova científica que não admite opinibilidade alguma. Nesse sentido, designa como

etapa confirmatória a fase instrutória.

Aliás, Ferrajoli, no que chama modelo nomológico-dedutivo da explicação

causal, com auxílio de Popper, Hempel e Oppenheim já advertia na impossibilidade de

demonstrar a verdade, podendo apenas de confirmá-la, admitindo que “não dispomos de

um método de descobrimento ou de verificação, senão apenas de um método de

confirmação ou refutação”240

.

Então, a confirmação tem por objeto os fatos suscetíveis de serem

confirmados de acordo com os fatos afirmados pelo autor e negados pelo réu, de

maneira que, se não há fatos controversos, a questão seria somente de direito, não

havendo o que confirmar no respectivo processo, salvo aqueles insuscetívies de

confirmação: fatos evidente, normais, notórios, presumidos por lei e negativos (pois se

confirma o fato positivo). É que o autor detecta que nem tudo o que vê, ouve ou

racionaliza tem ou pode ter objetivamente a mesma entidade confirmatória, e então

expõe como meios de confirmação processual a comprovação (ou prova propriamente

dita, produz certeza), a acreditação (que significa fazer digno de crédito, produz

verossimilhança), a demonstração (produz percepção) e a convicção (que produz

probabilidade)241

.

Aquele que determina a produção de uma prova a faz com base em alguma

suspeita interna sua, algum indício de que tal alegação não é verdadeira, por isso

ativista, e ademais, acaba auxiliando algum dos lados tendo em vista o ônus da prova,

independentemente do resultado.

E assim, ao agir baseado em convicções suas, auxilia o ônus da prova,

independentemente do resultado probatório, pois a prova não é neutra, mesmo que dela

não se extraia o que se pretende.

239

VELLOSO, Adolfo Alvarado. La prueba judicial: Notas críticas sobre la confirmación procesal.

Paraguai, 2014, p.28. 240

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: Teoria do Garantismo penal, op. cit, p. 141. 241

VELLOSO, Adolfo Alvarado. La prueba judicial: Notas críticas sobre la confirmación procesal, op.

cit., p.80.

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120

O juiz oficioso age respaldado no princípio inquisitivo que valoriza, em

variadas medidas, regras voltadas à ampla atividade instrutória do juiz, à

desconsideração de atos de vontade das partes, à inadmissibilidade dos efeitos da

revelia, à não incidência da preclusão, entre outros, ao reconhecer-se o interesse público

do objeto discutido na lide.242

Sob tal perspectiva publicista, o ativismo consagra que os poderes

concedidos ao Estado-juiz se destinam à realização do direito objetivo com vistas a

proporcionar a pacificação social com relevância à proximidade do juízo de certeza a

partir dos elementos probatórios trazidos para apreciação na resolução de questões, ou

seja, pontos controvertidos de fato e de direito243

.

Essa conclusão coloca a prova e os deveres-poderes instrutórios voltados à

realização do direito objetivo e à formação do livre convencimento necessário do

julgador. Note que considerar o juiz como destinatário da prova é tão ativista quanto

colocar como finalidade da prova a formação da convicção do julgador.

Como se sabe, no Brasil impera o princípio da persuasão racional ou livre

convencimento motivado que consiste, nas palavras de Daniel Penteado de Castro, na

garantia do juiz “formar livremente a sua convicção (persuasão racional), de sorte que

o convencimento esteja vastamente fundamentado (livre convencimento motivado)”244

.

Mas a doutrina ativista, e para tanto utilizarei as palavras do próprio Daniel

Penteado de Castro em sua obra “Poderes Instrutórios do juiz no processo civil”

reconhece que:

Há limites do próprio saber humano que impedem uma visão completa da

realidade. O conhecimento científico mostra como algo considerado correto

atualmente pode ser definido como errôneo no futuro, ao passo que já se

afirmou que a característica marcante de uma tese científica é a possibilidade

de testabilidade e não de seu acerto absoluto. O juiz, ao ter a iniciativa

probatória, deve tomar a cautela de tornar-se um juiz inquisidor que tente a

todo custo obter a certeza absoluta como condição necessária para decidir a

demanda. Portanto, acerta a preocupação para se evitar a postura do juiz que

se compromete como um inquisidor e tende de forma desenfreada descobrir a

verdade nos autos na ânsia de fazer justiça, até porque tal medida pode vir a

protelar excessivamente a entre da tutela jurisdicional.245

De maneira cristalina explica William Santos Ferreira246

em sua obra

“Princípios fundamentais da prova cível” (em que a palavra “verdade” é inclusive

242

FERREIRA, William Santos. Princípios fundamentais da prova cível, op. cit., p. 226. 243

PENTEADO DE CASTRO, Daniel. Poderes instrutórios do juiz no processo civil: fundamentos,

interpretação e dinâmica. Editora Saraiva, 2013, p. 107. 244

Ibidem, p. 107. 245

Ibidem, p. 107/108. 246

FERREIRA, William Santos. Princípios fundamentais da prova cível, op. cit., p. 11.

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evitada por reconhecer a impossibilidade de seu alcance por meio do processo se

entendida semanticamente como conformidade com a realidade), afirma que:

No processo não se busca “a verdade”, mas são empregados meios capazes

de dar condições para formação do convencimento judicial acerca dos fatos,

na medida exata do possível e razoável para permitir um julgamento. Em

poucas palavras, na sentença a verdade não é a meta, mas expectativa, ou,

tecnicamente, a máxima probabilidade. Tanto assim o é, que no caso de

incidência de uma presunção legal relativa, não havendo prova em contrário,

o juiz julga com base no fato presumido, o que nada mais é do que julgar de

acordo com a probabilidade e não com a demonstração efetiva que resultaria

no fato provado.247

Nesse sentido, entende essa doutrina que quando o Estado-juiz é chamado a

resolver o conflito somente caberá conclusões conforme os fatos de acordo com a

possibilidade de investigação para determinar a produção de provas ainda que

oficiosamente, vez que “deveres-poderes instrutórios do juiz são a ponte entre o dever

de julgar (elemento estático) e o livre convencimento motivado (elemento

dinâmico)”248

.

O caráter dúplice dos poderes-deveres, leciona José Manoel de Arruda

Alvim que a todo dever corresponde, no plano do direito público, um poder, de modo

que poder-dever constitui um binômio que se concretiza através da atividade pública

judicante. No mesmo sentido, Dinamarco assevera que os poderes do juiz ensejam

situações jurídico-processuais ativas e têm, em contrapartida, situação passiva

representada pelo dever de cumpri-los. Resumindo, como compreende Moacyr Amaral

Santos: “dever do juiz é usar dos seus poderes, movimentando a relação processual e,

desde que regular, decidir da ação e do mérito”. Mas note-se que enquanto William

utiliza-se da expressão “dever-poder”, outros utilizam-se da expressão poder-dever.

E nesse contexto, o garantismo combate a doutrina que, ainda que

excepcionalmente, subordina o poder probatório do juiz às condições de a) que se haja

esgotado a atividade das partes e b) que seja absolutamente necessário249

, ou seja, a

complementariedade judicial.

Para o garantismo, o ativismo elimina a ideia de processo como método de

discussão (concebido por Adolfo Alvarado Velloso) na medida em que o utiliza como

meio de investigação aproximando-se de um sistema inquisitivo. O garantismo

processual sustenta que os responsáveis por impulsionar e por dirigir o processo são as

247

Ibidem, p. 281. 248

Ibidem, p. 238. 249

GUZMÁN, Nicolás. La verdad en el proceso penal: Una contribución a la epistemologia jurídica.

Buenos Aires: Editores Del Puerto, 2011, p. 206/209.

Page 122: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP ... Lobão Torres.pdfem 1989, de “Diritto e Ragione: Teoria del Garantismo Penale”. Foi com a tradução desta obra para

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partes privilegiando-se o princípio dispositivo, não o juiz (princípio inquisitivo), nesse sentido,

rechaça a prova de ofício por considerar suas raízes inquisitivas num Estado

Democrático de Direito no qual deveria prevalecer a iniciativa probatória das partes

moldada sob um sistema acusatório, até mesmo como limite à atuação do juiz e como

defesa da liberdade.

Sérgio Luiz Almeida Ribeiro relata que a iniciativa probatória judicial é

entendida também como declinadora de sua imparcialidade, não com relação às partes,

já que não se sabe qual delas será favorecida pelo resultado da prova, mas com relação

ao objeto da lide diante do comprometimento psicológico do juiz, ainda que

inconscientemente, pela convicção sentimental e ideológica em relação aos interesses e

argumentos das partes250

.

Aliás, essa influência das convicções sentimentais, ideológicas e

psicológicas consta em Ferrajoli como demonstração da sempre existente

discricionariedade do juiz e como terceiro fator limitante da verdade processual, qual

seja, o caráter não impessoal deste investigador particular legalmente qualificado que é

o juiz ainda que se esforce para livrar-se de qualquer aspecto que influencie sua

objetividade. Como visto, Ferrajoli asseverou que o juiz é influenciado por

circunstâncias ambientais (sentimentos, inclinações e emoções), seus valores ético-

políticos, a possibilidade de comprometer-se com finalidades externas à investigação de

uma determinada verdade, preconceito que o leva a valorizar criticamente uma prova

diante preconceito seu. Por isso a compreensão de que a iniciativa probatória judicial

viola a imparcialidade. Até porque a imparcialidade do juiz é vista, em Adolfo Alvarado

Velloso, nas decisões judiciais de julgadores que não consideram seus próprios

preconceitos em nenhuma esfera (não estar-se a falar das pré-compreensões

gadamerianas necessárias para a compreensão).

Além de consistir em violação à imparcialidade do juiz, configura

inobservância da separação entre acusação e julgador, ou seja, separação das funções,

pois ao Judiciário incumbe a tarefa de julgar, não de investigar. Isso porque, como visto,

o garantismo processual entende o processo como método de efetivo debate entre as

partes condicionado às diligências destas na atividade processual na qual se intenta

assegurar às partes, por meio do devido processo legal, uma ampla participação, e

portanto, valoriza a ampla defesa, o contraditório e a imparcialidade do juiz com a

250 RIBEIRO, Sergio Luís Almeida. Porque a prova de ofício contraria o devido processo legal?

Reflexões na perspectiva do garantismo processual, op. cit., p. 639-647.

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123

máxima restrição dos poderes dos juízes251

. É o Axioma 8 do sistema garantista de

Ferrajoli: princípio acusatório ou da separação entre juiz e acusação.

Nas palavras de Sergio Luiz Almeida Ribeiro:

Ao juiz compete atuar como um espectador, um terceiro imparcial, não

podendo criar ou modificar as regras do processo, tampouco produzir provas

como investigador dos fatos, sob pena de promover um desequilíbrio na sua

imparcialidade em relação ao objeto da demanda.252

Nesta direção, o garantismo não admite sequer poder instrutório

complementar por parte do juiz, como já mencionado anteriormente:

...ainda quando normativamente seja estabelecido que logo após a etapa

instrutória deve realizar-se um juízo ora, público e contraditório entre as

partes, onde a prova será formada e controlada por elas, se este modelo

confere poderes instrutórios residuais ao tribunal que deve decidir o caso,

pode sustentar-se que a garantia da separação de funções continua sendo

violada e, por tanto, também as garantias da imparcialidade e do ônus

probatório.253

Respondendo então à pergunta feita anteriormente: seria possível negar

poderes instrutórios oficiosos ao juiz quando o que está em debate no processo é de

caráter indisponível? Ou seja, poderá o juiz, na omissão das partes, determinar as provas

necessárias à instrução da causa?

Essa pergunta é de extrema relevância porque o que se percebeu da doutrina

brasileira colhida é que reconhecem que o julgador não deve se tornar em inquisidor,

mas temem quando retiram das mãos dos juízes o destino de direitos fundamentais.

Eles, de certa forma, acreditam no Judiciário em consideração às mazelas da

desigualdade social no Brasil. E o que o garantismo ensina é que não cabe ao juiz sentir-

se responsável por essas mazelas.

Tanto é assim que, para João Batista Lopes, a utilização do poder oficioso

judicial deve depender do que está em jogo no processo, ou seja, se o direito tem caráter

disponível ou não254

.

De fato a doutrina costuma correlacionar a postura judicial ativista norteada

pelo princípio inquisitivo à indisponibilidade do direito255

(ou ao argumento de que a

finalidade do processo é a verdade), o que é errôneo na visão de William Santos Ferreira

251

Ibidem, p. 639. 252

Ibidem, p. 640. 253

GUZMÁN, Nicolás. La verdad en el proceso penal: Una contribución a La epistemologia jurídica,

op. cit., p. 197. 254

BATISTA LOPES, João. Os poderes do juiz e o aprimoramento da prestação jurisdicional, op. cit., p.

24 – 67. 255

FERREIRA, William Santos. Princípios fundamentais da prova cível, op. cit., p. 227.

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124

que considera não haver qualquer relação entre o direito material e os poderes do juiz,

mas sim uma opção do sistema jurídico por uma atividade instrutória mais incisiva com

preocupações relacionadas ao livre convencimento motivado.

Certamente João Batista Lopes não está a confundir a relação material e a

processual, ou estaríamos renegando a envergadura intelectual deste autor. Parece,

outrossim, que está a corroborar com a preocupação de William em dizer que a

atividade instrutória oficiosa recai na convicção do julgador para que somente dê o

direito a quem tem, não incorrendo em erro. Note-se: a preocupação do autor, se certa

tal conclusão, está em deixar de dar direito a quem tem, especialmente quando este é

uma parte frágil acompanhada de um advogado sem grande técnica e experiência.

Infelizmente, é o juiz solidário.

Ocorre que ao concluir que “se indisponível o direito, o juiz pode

determinar as provas necessárias quando da omissão da parte”, o autor condiciona os

poderes oficiosos do juiz ao direito material objeto do processo, vez que em se tratando

de direito material disponível o juiz não deve utilizar-se de tais poderes.

Ao que parece, João Batista Lopes está a fazer um juízo de ponderação,

ainda que inconsciente, entre a retirada pontual (porque não se quer admitir violação) de

controle exclusivo na gestão da prova pelas partes (o que decorreria da competência

concorrente com a oficiosidade judicial na determinação da produção da prova) e o

benefício gerado pelo resultado daquela prova ao direito da parte que será beneficiada

com o resultado da instrução, além de cumprir com o sentimento íntimo do juiz na

busca da exatidão jurídica da resposta ao caso apresentado ao julgador? E nesse

contexto, se estiver em jogo direito indisponível, o benefício terá maior peso do que o

controle exclusivo das partes na gestão da prova.

Mas, se sabemos, não é possível adivinhar o benefício a ser tido pela

produção de determinada prova (argumento muito utilizado para justificar que não há

quebra na imparcialidade do juiz ao determinar a produção de uma prova), a conclusão

é única: apriorísticamente, em abstrato, se está admitindo a relevância do direito

material, quando indisponível, sobre o direito processual de exclusividade das partes no

requerimento das provas consequência do princípio dispositivo. Poder-se-ia dizer que

não há direito exclusivo, já que o próprio Código de Processo Civil admite a

oficiosidade judicial. Mas lembre-se que o garantismo parte do pressuposto que tal

permissão é inconstitucional tendo em vista que viola o princípio da imparcialidade já

que está o juiz oficioso sendo conduzido por intuições suas a respeito da falta de

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confiabilidade nas alegações e dos eventuais suspeitas sobre os resultados da produção

probatória.

É que (i) a participação do juiz na formação da prova afeta gravemente sua

imparcialidade, pois indefectivelmente se envolve com uma hipótese que logo tende a

confirmar e, além disso, (ii) uma investigação desenvolvida por um juiz unilateralmente

dificulta a detecção dos erros em que se poderia haver incorrido e de contaminações nos

elementos probatórios. Em palavras mais simples: Quem pergunta o faz porque algo em

mente tem, caso contrário não o faria, e o faz de certa maneira porque considera esta

forma mais correta de fazê-lo, de modo que reconhecer qualquer vício/falsidade/erro

nesta atividade lhe será de grande esforço! Afinal, todo esforço próprio, comprova a

experiência humana aqui representada pela pesquisa empírica com os juízes americanos,

parece ser mais digna de reconhecimento do que o alheio, o que implica que um juiz

que toma sobre si o trabalho de provar o fato estará mais disposto a reconhecer os frutos

dessa ação própria, que já há implicado uma predisposição de sua parte baseada na

crença sobre a veracidade da acusação e a possibilidade de comprová-la256

.

Também não valeria assumir que sopesando a imparcialidade e a defesa dos

direitos indisponíveis devem estes ter maior peso num juízo de ponderação, já que o juiz

deve-se utilizar de todos os meios possíveis para fazer justiça! Essa afirmação só seria

válida em um sistema autoritário e que ignora toda a construção histórica que culmina

no processo apontada por Adolfo Alvarado Velloso.

Nesse contexto, pergunta-se novamente: é possível sustentar a prova

oficiosa quando for favorável ao acusado? Questiona-se porque há autores que

defendem que só neste único caso poderia o juiz conduzir uma tarefa investigativa

dispondo de ofício acerca da realização de uma prova não proposta pelas partes

considerando que seu resultado será favorável ao acusado.

Como já respondido, ainda que de boas intenções, tal postura seria

equivocada! Afinal, como ensina Abel Flemin e Pablo López Viñals257

, as provas não

são neutras!

Com supedâneo em Nicolás Guzmán258

, o juiz deve limitar-se a julgar a

respeito dos fatos que lhe são apresentados pelas partes em forma de hipótese e em

256

FLEMING, Abel; LÓPEZ VIÑALS, Pablo. Garantías del imputado. Santa Fe: Rubinzal-Culzoni,

2007, p. 625/631. 257

Ibidem, p. 625. 258

GUZMÁN, Nicolás. La verdad en el proceso penal: Uma contribución a La epistemologia jurídica,

op. cit., p. 197-214

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126

função dos elementos de prova que são obtidos no processo como contraditório entre

elas de modo tal que sua participação na busca e formação da prova deveria restringir-se

ao máximo.

E isso não apenas pela violação à imparcialidade gerada com o

envolvimento do juiz na condução da prova, pois como já dito, as provas não são

neutras e elas ao fim e ao cabo, beneficiarão uma ou outra parte, ou seja, servem para

convalidar ou desvirtuar a hipótese em que se baseia a acusação e por tal razão quando o

Tribunal decide a seu modo produzir uma determinada diligencia não está fazendo outra

coisa que suprir a insuficiente atividade do órgão requerente ou da defesa, com o que se

afeta sua imparcialidade259

.

Mas também porque (iii) tal conduta judicial é inútil, pois, com o exemplo

do âmbito penal, se a culpabilidade não foi comprovada, ou seja, quando não foi

confirmada com um grau suficiente (além de toda dúvida razoável), a absolvição deve

resolver-se em função do estado de inocência pela regra do in dúbio pro reo, mas se o

resultado da prova for desfavorável para aquele, o elemento probatório assim obtido se

transforma em prova de acusação que deverá ser valorada por esse mesmo juiz para

resolver o caso.

É por isso que repetidamente Adolfo Alvarado Velloso afirma que o juiz só

produz prova para condenar, já que de outra forma não faz sentido ordenar a prova já

que com a dúvida já é possível afastar a hipótese afirmada pela parte que alega. E é

também por isso que o autor afirma que não é necessário conhecer a verdade do

acontecido para resolver o caso e muito menos deve buscá-la, posto que quando não

chega a conhecê-la conta com os critério jurídicos (o princípio da inocência e o in dúbio

pro reo) que lhe dão as armas necessárias para decidir260

.

Nas palavras de Nicolás Guzmán: “La comprobación de la verdad de la

hipótesis acusatória correrá por cuenta de quien tiene la carga de la prueba, es decir,

el acusador”261

.

Se o direito em jogo é indisponível, a única afirmação que se pode assegurar

em um modelo democrático é que neste modelo a participação dos sujeitos processuais

ganha em importância para o deslinde da causa e consequentemente maior

responsabilidade terão seus procuradores na investigação e apresentação de provas. Se

259

FLEMING, Abel; LÓPEZ VIÑALS, Pablo. Garantías del imputado, op.cit., p. 625/631. 260

GUZMÁN, Nicolás. La verdad en el proceso penal: Una contribución a La epistemologia jurídica,

op. cit., p. 209. 261

Ibidem, p. 209.

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127

estes não são tecnicamente satisfatórios, o sistema, por outros meios, educacionais e

executivos, além do próprio mercado, é que devem tratar desta questão. Não se está

aqui, observe, falando que o Judiciário não deve prover na omissão dos outros Poderes

quando a Carta Magna reconhecer um direito a uma parte, mas se está aqui somente

falando de sua conduta probatória para a decisão sobre a existência de tal direito

faticamente. Diz-se isso porque se a Constituição dirigente prevê o direito a uma vaga

em uma escola pública, aquele que busca o Judiciário pela omissão do Executivo deve

tê-la.

O garantismo vê a prova oficiosa como violação ao princípio dispositivo e

incompatível com a garantia do devido processo legal, por “impor à parte uma

providência jurisdicional não requerida, ferindo-lhe a liberdade individual de

participação no processo e a sua faculdade de disposição, assumindo o ônus da sua

escolha”262

.

E a degeneração da imparcialidade se afirma porque, como demonstrado

pela pesquisa empírica colacionada neste trabalho, é possível reduzir os erros

sistemáticos das ilusões cognitivas, mas jamais exterminá-las. Se demais sistemas

sociais puderem demonstrar que o juiz conseguiria desvincular-se de suas ilusões e não

recair em erros sistemáticos, aí ter-se-ia que considerá-la.

É também contra a inversão das cargas probatórias legais mediante a utilização do

conceito de cargas dinâmicas, acusando o juiz de trocar as regras do jogo no momento

de sentenciar apesar de serem outras as regras observadas pelos litigantes durante o

decorrer do processo. Ainda que o momento acerca da dinamização do ônus probatório

seja anterior à fase instrutória, as partes iniciariam um processo sem conhecer as regras

do jogo? É verdade que a distribuição dinâmica do ônus da prova não significa inversão,

mas significa alteração, ainda que excepcional, à clássica distribuição do ônus

probatório, ainda mantida no Novo CPC, não esqueça-se, pela qual cabe ao autor,

quanto ao fato constitutivo de seu direito e ao réu, quanto à existência de fato

impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor.

De fato, a apresentação do juiz como protagonista do sistema que com

imparcialidade julga corretamente é de ser contestada. O “mito da imparcialidade

(neutralidade) como blindagem ao elemento anímico do juiz faz crer no seu

262

RIBEIRO, Sergio Luís Almeida. Porque a prova de ofício contraria o devido processo legal?

Reflexões na perspectiva do garantismo processual, op. cit., p. 643.

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128

desinteresse no julgamento, de modo absoluto, conduzindo ao desprezo de suas pré-

compreensões”263

.

Para as teorias garantistas processuais, o Poder Executivo é, por essência, o

gestor dos interesses coletivos, enquanto os juízes não devem ditar suas sentenças sobre

a base de argumentos de utilidade e que claramente não sejam gestores de interesses,

que é a base da imparcialidade.

Nas palavras de Alberto M. Binder, em uma República Democrática de base

igualitária, o juiz não poderia alegar que sua legitimidade surge de alguma capacidade

ou herança aristocrática ou de sua adesão a uma moral ou religião particular, tampouco

de sua maior capacidade para captar valores ou dá-lhes forma concreta264

, ao que se

adere.

As considerações trazidas quando se abordou o neoconstitucionalismo e a

construção histórica trazida neste trabalho demonstrou que o decisionismo que atingiu o

sistema brasileiro se deve ao sujeito solipsista que se tornou o julgador conjugando a

Democracia com a possibilidade de atingir e efetivar a ordem concreta de valores que

entende estar disposta na Constituição de 1988.

Alberto M. Binder assume a legitimidade do juiz por seu compromisso com

a verdade mas paradoxalmente reconhece a verdade como tão importante que não deve

o juiz buscá-la, pois, em defesa do sistema adversarial, ensina que deve o juiz exigir a

verdade dos acusadores!

Ocorre que na Democracia o foco de tensão se volta para o Judiciário, pois o

Direito, nestes quadros, é um instrumento de transformação. Aliás, o fenômeno de

expansão da competência do Judiciário, já percebida por Mauro Cappelletti, não é

privilégio do Brasil, como denuncia Lenio Streck265

, mas é um fenômeno próprio das

sociedades contemporâneas, bem como são os aumentados poderes legislativo e

executivo.

O que se está a dizer é que as considerações garantistas são de imensa

importância para combater o atual estágio depressivo da jurisprudência brasileira,

porém, percebe-se sua veia liberal.

263

NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre. Disponível em: http://justificando.com/2014/10/09/processo-e-

republica-uma-relacao-necessaria/. Acesso em: 09.08.2015. 264

BINDER, Alberto M. La implementación de La nueva justicia penal adversarial. Buenos Aires, 2012,

p. 221. 265

STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise: Uma Exploração Hermenêutica da

Construção do Direito. 5ª. Ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 55.

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129

Nos quadros da Constituição Brasileira de 1988 que inaugurou o Estado

Democrático de Direito, nossa Constituição Cidadã, não lhe é possível negar o caráter

de programática e dirigente, o que não quer jamais dizer que substitui a política. Ocorre

que torna-se premissa material da política, de maneira que as inércias do Executivo e a

falta de atuação do Legislativo serão supridas pelo Judiciário mediante os mecanismos

democráticos constitucionalmente previstos266

! E assim, muito cuidado deve-se ter

quando se diabolizam os “solidarismos” do Judiciário!

Claro é que não se está aqui de falar de solidarismo como defesa do mais

fraco, do pobre, do que se acha mal ou pior defendido, muito visto na Justiça do

Trabalho em que prevalece o entendimento de que é um poder que cuida apenas do

interesse do trabalhador, e não da relação de trabalho. O empregador sabe que em

muitos casos o empregado que recorre à Justiça termina indenizado após uma audiência

de martirização do juiz.

Está-se falando de fazer acontecer a principiologia e a normatividade

constitucional democrática, claro que independementemente da riqueza ou pobreza, da

saúde ou da doença, da alegria ou da tristeza de uma dar partes.

A crise de dupla face que acomete o direito e a dogmática jurídica nos

países de modernidade tardia, abordada por Lenio Streck , já aponta que o pensamento

jurídico dominante continua lidando com o fenômeno jurídico consoante o paradigma

liberal absenteísta próprio do legalismo econômico reinante ao tempo do Estado

Liberal-burguês.

Ocorre que enquanto o constitucionalismo nasceu como fenômeno

histórico-político cuja função consistia em limitar e racionalizar o poder político por

meio da previsão de regras acerca da atividade do Estado, impondo limites ao poder

soberano pela divisão de poderes (afinal o direito constitucional não surgiu no século

XX, mas se desenvolveu por séculos visando coibir os excessos do Poder Público), a

Constituição Federal Brasileira de 1988 resulta do constitucionalismo democrático do

século XX a partir de Weimar, e nesse movimento histórico as Constituições foram

além com o objetivo primordial de assegurar a existência de alguns princípios

constitucionais fundamentais.

Veja-se: o século XIX colheu os frutos do desenvolvimento do Estado

funcionalizado por meio de uma Administração Pública assentado do Estado

266

Ibidem, p. 55.

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130

Absolutista do medievo em que as funções governamentais começaram a se

especificar267

tendo sido dominado pela ideia liberal de uma forma de governo

constitucional e parlamentar. Mas no século XX, parte dos modelos liberais da Europa

foram modificados, pois foram dados passos em direção ao Estado-providência como

consequência das fortes práticas constitucionais. E bem, o final da Segunda Guerra

Mundial marca a evolução para uma nova ordem social, política e jurídica.

Em sendo assim, os textos constitucionais estabelecem princípios e direitos

fundamentais a serem promovidos e respeitados pelos três poderes, sendo a lei um dos

principais instrumentos normativos para implementá-los.

A crítica de Adolfo Alvarado Velloso é que, o juiz solidário, por ter a tarefa

de praticar justiça comutativa, quando pratica piedade com relação às partes, pratica

justiça distributiva sem ter os elementos para poder fazê-lo: em primeiro lugar, a

legitimidade da escolha pelos votos do povo; logo, pressuposto adequado,

conhecimento da realidade geral e do impacto que causará na sociedade o dar a uns o

que as circunstancias da vida negam a outros268

., etc.

Ocorre que ao falar de falta de elementos, pode o autor estar se referindo a

falta de normas regulamentadoras ou falta de possibilidade financeira pelo Estado.

Então, a primeira faceta para a falta de elementos que se precisa ter cuidado

é a inexistência de regulamentação legal de uma hipótese e que poderia inviabilizar o

reconhecimento de um direito fundamental e social. Bem, sob uma concepção jurídico-

formalista vigente em face da inexistência de normas a regular os casos, com relação à

divisão das funções de poder e ou repartição de competência, não cabe ao Judiciário

legislar e, portanto, em estando ele vinculado à lei, sob uma perspectiva

procedimentalista, não poderia julgar.

Ocorre que, quando se trata da proteção de direitos, não resta alternativa

àqueles que se veem privados dos meios necessários ao seu exercício a não ser buscar o

Judiciário, devendo este agir por uma visão constitucional e substancial, pautando seu

agir em princípios. Caso diferente, aliás, é quando o magistrado precisa declarar a

inconstitucionalidade de lei. Não se está aqui a defender que se passe por cima da

legalidade.

267

Surge a figura do funcionário e dos elementos do conceito moderno de Estado, quais sejam, povo,

território e soberania. 268

VELLOSO, Adolfo Alvarado. El garantismo procesal, op.cit., p. 43.

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131

Ademais, em se tratando da segunda faceta, é verdade que há um problema

quanto à “reserva do possível”, ou seja, que o Estado não tenha “elementos” para a

concretização dos direitos fundamentais e sociais previsto no texto constitucional.

Afinal, o texto constitucional apresenta um rol exemplificativo de direitos, sejam eles

individuais ou sociais fundamentais, o que lhe rendeu o nome de “Constituição Cidadã”.

Ocorre, no entanto, que os referidos direitos não se encontram efetivados em sua

plenitude no mundo dos fatos. E a reserva das possibilidades fáticas e jurídicas do

Estado não tem como consequência a ineficácia jurídica dos direitos estabelecidos

constitucionalmente. E assim, clamar por um intervencionismo onde o processo político

falha, onde o Legislativo e o Executivo se omitem, como na implementação de políticas

públicas e dos objetivos sociais nela implicados, caberá ao Poder Judiciária uma postura

ativa (não ativista).

A tese substancialista parte exatamente da assunção de uma postura que

pode ser entendida como intervencionista, distinguindo-se da postura absenteísta liberal.

Além disso, a crítica do autor ao juiz solidário advém porque “quem assim

atua não cumpre uma tarefa propriamente judicial, em razão de que com isso não se

resolvem conflitos intersubjetivos de interesses, que é a essência da tarefa de outorgar

justiça comutativa”269

, pois estaria o juiz que assim atua praticando justiça distributiva

sem ter os elementos para poder fazê-lo.

E aqui se visualiza uma terceira faceta da afirmação do autor. O que com

maior clareza se pode extrair de sua conclusão é que devem ser afastadas, por exemplo,

as concepções “de justiça” próprias do julgador, ao que se adere. Não se pode aceitar a

tese pragmatista de que o juiz deve tentar melhorar a lei sempre que possível ou que o

bom juiz prefere justiça à lei, inventando o direito em nome da justiça.

Mas com o que não se concordaria é com o não colocar a Justiça sobre a

Constituição se essa afirmação levar ao esquecimento de que a Justiça é ideal político

inserido no núcleo mínimo da própria Constituição brasileira. E se isso for esquecido ou

ignorado, recair-se-á na conclusão de que deve-se aplicar o direito posto pouco

importante se sua decisão é justa ou injusta, afinal, consoante sua concepção, o

procedimento será legitimante de seu resultado.

269

VELLOSO, Adolfo Alvarado. El debido proceso, op. cit., p. 206. Tradução livre: “(...) quien así actúa

no cumple una tarea propiamente judicial, en razón de que con ello no se resuelven conflictos

intersubjetivos de intereses, que es la esencia de la tarea de otorgar justicia conmutativa.”

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Note-se que Alvarado não está, jamais, a afirmar que um processo seja

injusto ou inverdadeiro. O processo não “quer” é óbvio, não ser verdadeiro ou ser

injusto. O que o autor está a chamar a atenção é para a difusa ideia de que o juiz deve

buscar a verdade real já que o processo tem que propagar a justiça. Em terras de

ativismos, a verdade (eis a retoricidade do termo) é que no discurso jurídico a “verdade”

muitas vezes apenas legitima um raciocínio íntimo de quem dela se utilizar. Além disso,

sustentar que o processo busca a verdade (real) leva à consequente afirmação de que

deve-se atribuir ao juiz/intérprete poderes instrutórios suficientes para que se certifique

da certeza de que os fatos ocorreram tal como parecem ter ocorridos no processo,

assumindo uma tarefa investigativa até sentir-se convencido.

Ocorre que não se pode olvidar a história do constitucionalismo no Brasil e

o dirigismo da própria Carta Constitucional, para que a necessidade da efetivação de seu

texto faz-se imperativa pelo próprio Judiciário. A concepção de Estado Democrático

que se está a defender consoante a história brasileira sustenta uma certa redefinição da

separação de Poderes.

Page 133: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP ... Lobão Torres.pdfem 1989, de “Diritto e Ragione: Teoria del Garantismo Penale”. Foi com a tradução desta obra para

133

3. A COOPERAÇÃO PROCESSUAL E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO

CIVIL

3.1. Do processo liberal ao processo social

Far-se-á uma breve apresentação histórica dos dois “modelos processuais”

clássicos: o liberal e o social, analisando também seu desenrolar no contexto brasileiro.

Isso porque a discussão processualística atual tem abordado um terceiro

modelo designado como cooperativo produto do esgotamento e das degenerações dos

dois modelos que comumente divide a teoria processual: o inquisitivo e o dispositivo.

O Estado Liberal, resumidamente, desincumbia-se dos domínios

econômicos e sociais abstendo-se em prol do predomínio da liberdade individual e

concorrencial. Coerentemente, no processo liberal predominava a igualdade formal dos

cidadãos, a escritura270

e o princípio do dispositivo em consonância com a

imparcialidade do juiz e com o comportamento passivo deste. Ademais, neste modelo

de processo o contraditório se reduzia a uma mera bilateralidade de audiência.

Considerando esse conjunto, resta clara a predominância do protagonismo

processual das partes e a posição de mero espectador que possuía o juiz, mero aferidor

do resultado do duelo dos litigantes. É o que se também vê nas exposições de Alvarado

Velloso, em que pese os inúmeros acertos da teoria garantista, aos quais se adere.

Era assim que o liberalismo processual permitia a manipulação do processo

pelas partes, o que gerou claras insatisfações e degenerações sistêmicas resultando no

seu consequente esgotamento no curso do século XIX.

Concomitantemente à percepção dos problemas que o modelo liberal de

processo gerava e à progressividade das mazelas da sociedade industrial do século XIX,

vieram legislações sociais e a defesa do direito como instrumento de transformação

social.

Em busca da melhoria da técnica processual, no final do século XIX

começou a se fortalecer o modelo de processo socializador na doutrina austro-

270

Para Mauro Cappeleti, o princípio da escritura “segundo o qual o juiz devia julgar apenas com base

nos escritos, sem nunca entrar em contato direto (e, por conseguinte, oral) (...) Era, na realidade, a

barreira, o diafragma que separa o juiz do processo e daqueles que do processo são os verdadeiros

protagonistas privados.” In CAPPELETI, Mauro. O processo civil no direito comparado. Belo

Horizonte: Cultura Jurídica, 2002, p. 39-40.

Page 134: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP ... Lobão Torres.pdfem 1989, de “Diritto e Ragione: Teoria del Garantismo Penale”. Foi com a tradução desta obra para

134

germânica271

que ganha força a partir do delineamento do paradigma de Estado de bem-

estar social.

Como não poderia deixar de ser, essa nova linha teórica defende uma maior

intervenção estatal criticando a lógica liberal de abstenção estatal e predomínio da

liberdade individual.

Seus maiores inspiradores são Anton Menger, Franz Klein, no âmbito

legislativo, e Oskar Von Bülow.

Em síntese, Anton Menger criticava os ideais liberais respaldando-se na

conclusão de que na luta de classes os ricos sempre eram privilegiados ao se tomar por

base a ótica da igualdade formal272

.

Para Menger, o juiz possuía um duplo papel, quais sejam,

extraprocessualmente, a de educador, pelo qual deveria o juiz instruir todo cidadão

acerca do direito vigente, de modo a auxiliá-lo na defesa de seus direitos, e

endoprocessualmente, a de representante dos pobres.

Ou seja, tinha o juiz que compensar as desigualdades materiais entre as

partes mantendo sua atenção nas minorias como a mulher, o trabalhador, o menor, e etc.

Essas considerações foram decisivas para a obra Magna de Franz Klein273

,

qual seja, o Código Processual Civil Austríaco, considerada a primeira legislação

tipicamente socializadora (OZPO de 1895).

Nascido em 1854 em Viena, onde estudou e se formou em direito, o

pensamento de Klein resultou das observações tidas em sua experiência profissional.

Como advogado, Franz Klein observou a prática de abusos e condutas maliciosas. Aliás,

continuando com sua formação, recebeu a “vênia legendi” por um importante trabalho

sobre a conduta processual maliciosa das partes.

Ademais, importante notar o que antecedeu a obra Magna deste jurista.

Desde o ano de 1781 vigorava o chamado Código Josefina, também chamado de

Código General dos Tribunais (Allgemeine Gerichtsordnung (AGO) o Josephinische

Gerichtsordnung) que estabelecia o procedimento civil aplicável ao Império Autro-

húngaro implantando um sistema baseado na escrita, no sigilo e no sistema de prova

271

JÚNIOR, Humberto Theodoro; Nunes, DIERLE; BAHIA, Alexandre Melo Franco; PEDRON,

FLAVIO. Novo CPC: fundamentos e sistematização. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2015, p. 63. 272

MENGER, Anton. El derecho civil e lós pobres. Atalaya: Buenos Ayres, 1947, p.69. apud NUNES,

Dierle José Coelho. Processo Jurisdicional Democrático. Belo Horizonte: Juruá Editora, 2012, p. 80.

NUNES, Dierle José Coelho. Processo Jurisdicional Democrático. Belo Horizonte: Juruá Editora, 2012,

p. 81.

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135

legal ou tarifada. Na atividade contenciosa, a colheita das informações fáticas e a

decisão eram atribuídas a juízes diferentes274

.

Os processos tinham uma excessiva duração no tempo, ao juiz faltava poder

para coordenar o processo, e, por fim, era absolutamente irrelevante qualquer aspecto

relacionado com a verdade, de modo que permitia o êxito da parte mais forte e com

maior poder para influenciar no caso275

.

Assim, Klein o influenciou de maneira a defender, diversamente dos

modelos reformistas liberais, uma reestruturação do papel das partes e dos juízes com

acentuação da função social do processo. Visionava no processo escopos político, social

e jurídico, “o juiz, na esteira do pensamento mengeriano, deveria auxiliar as partes

buscando o clareamento dos requerimentos obscuros, sugerindo o preenchimento de

detalhes incompletos e impedindo que o engano ou desconhecimento na sua elaboração

inviabilizassem o julgamento”276

.

De novas técnicas legislativas de elaboração das leis com a adoção de

conceitos indeterminados decorreria sua cultivada e esperada postura judicial.277

Nessa perspectiva, a contribuição de Franz Klein (social) e Adolf Wach

(liberal) ao desenvolvimento do processo civil europeu e contemporâneo tiveram uma

série de coincidências e diferenças na missão e visão reconhecidas pelo processo e pela

justiça civil. Ambos tiveram o êxito de identificar os três padrões ou variáveis que se

relacionam com uma boa administração de justiça, o que já havia sido mencionado por

J. Bentham278

.

Ainda, a linha de Oskar Bulow, mencionada no tópico anterior, gerou a

autonomia do estudo do direito processual inaugurando o “processualismo científico”,

no final do século XIX por Oskar Bulow, parcialmente sistematizado ainda àquele

tempo por Adolf Wach.

Nesse sentido, ao estruturar a autonomia da ciência processual a partir do

desenvolvimento da concepção de relação jurídica, concebe-se uma relação publicística

274

RAGONE, Álvaro J. D. Pérez. Retrato del revisionismo garantista en el proceso civil a través de

Klein y Wach:algunas precisiones sobre eficiencia y derechos procesales. In Revista de Processo. Vol.

233/2014. P. 241 – 269. 275

RAGONE, Álvaro J. D. Pérez. Retrato del revisionismo garantista en el proceso civil a través de

Klein y Wach:algunas precisiones sobre eficiencia y derechos procesales, op.cit. P. 241 – 269. 276

NUNES, Dierle José Coelho. Processo Jurisdicional Democrático, op. cit., p. 83 277

Ibidem, p. 85. 278

RAGONE, Álvaro J. D. Pérez. Retrato del revisionismo garantista en el proceso civil a través de

Klein y Wach: algunas precisiones sobre eficiencia y derechos procesales, op. cit., p. 241 – 269.

Page 136: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP ... Lobão Torres.pdfem 1989, de “Diritto e Ragione: Teoria del Garantismo Penale”. Foi com a tradução desta obra para

136

lastreada primordialmente na figura do juiz. Dessa maneira, as partes seriam meros

colaboradores ao se buscar uma aplicação livre e subjetiva do direito.

Conforme o exposto, é evidente que essa linha teórica idealizada e

sistematizada por Menger, Klein e Bülow, entre outros, assume uma posição estatalista

(socializadora) com direcionamento ao enfraquecimento do papel das partes e ao

protagonismo judicial.

Essa defesa (do modelo social autoritativo) até é compreensível quando nos

atemos ao fato de que é fruto da luta contra as degenerações da aplicação liberal do

direito a qual impôs o predomínio dos interesses privados em detrimento dos sociais,

não no atual momento de Estado e da Ciência processual, quando a única opção aceita é

a falta de protagonismo de qualquer um dos sujeitos processuais.

Dito de outra forma: o processualismo fez oposição ao praxismo que

concebia, no final do século XIX, o processo como um mero apêndice do direito

material. A opção pela compreensão de “processo” demonstra que além deste não se

confundir com o direito material debatido entre as partes, manteve-se a subordinação

entre as pessoas e que contém um conceito de jurisdição como atividade do juiz.

No Brasil, a tendência legislativa socializadora que formula o papel ativo do

juiz foi implementada pelo Código de Processo Civil de 1939.279

Contudo, no território nacional essa tendência ganhou contornos próprios,

como por exemplo, quanto ao princípio da oralidade caracterizante desse modelo, em

que a distância existente entre a lei e a realidade no nosso país nos revela que a

oralidade acaba por esfacelar-se quando as argumentações foram e são reduzidas a

escrito.

Ademais, a título elucidativo, Dierle Nunes ressalta que,

de fato, o único aspecto da socialização que se implementou no Brasil foi o

de se reforçar o papel da magistratura e a credulidade de sua superioridade,

ao se partir de um suposto privilégio cognitivo que encontra suas bases no

âmbito da teoria do processo, no pensamento de vários autores, mais

notadamente, Oskar Von Bulow”280

.

Os contornos próprios da tendência socializadora no Brasil traz a lembrança

sobre o questionamento de uma existência de fato do Estado Social no território

nacional, em virtude de um percurso histórico diverso na conquista de direitos, o que

afasta a história brasileira da europeia. No Brasil aponta-se a centralidade do tema do

279

NUNES, Dierle José Coelho. Processo Jurisdicional Democrático, op.cit., p. 98. 280

Ibidem, p. 98.

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137

direito e da justiça a partir da década de 1980 no País, em que,“[...] vinda a abertura

política e a redemocratização, o Judiciário voltou a ter voz ativa.

É possível, desta maneira, abordar o surgimento do Movimento pelo acesso

à justiça a partir de apontamentos de momentos históricos situados após a Segunda

Guerra, numa espécie de evolução teórica do conceito de acesso à justiça, intimamente

relacionada à construção de um Estado Social, como momento posterior ao Estado

Liberal.

De fato, ao investigar o tema “acesso à justiça” são encontradas diversas

considerações que, se por um lado aparentam a obviedade do sentido social ao se tratar

de justiça, por outro, muitas vezes se misturam em tecnicismos, processualismos e mera

exegese legal. Aqui nos remetemos ao sentido proveniente de pesquisa de campo

realizada pelo Projeto Florença, que resultou em Relatório Geral mais conhecido

simplesmente por “Acesso à Justiça”, redigido por Mauro Cappelletti e Bryant Garth.

Esta pesquisa trouxe não só o estudo do tema, mas um novo enfoque social

do direito. As discussões quanto ao acesso à justiça ultrapassaram os limites colocados

pelo Projeto Florença, de tal maneira que, muitas vezes, ao ser mencionado o termo

“acesso à justiça”, assimila-se, automaticamente, este como sinônimo do conceito dado

pelo Projeto em questão.

O ápice do movimento socializador se deu com o Projeto Florença de

Acesso à Justiça281

, momento em que ocorreu no Brasil reformas do processo civil

brasileiro com a introdução em nossos sistemas de algumas novidades como a ação civil

pública além de alterações no sistema já em vigor em prol da socialização processual282

.

Houve, no plano acadêmico, um incentivo ao estudo acerca das finalidades

da jurisdição e do reforço do papel dos juízes, enquanto no plano doutrinário apareciam

obras a respeito da instrumentalidade do processo e dos poderes do juiz com tendências

socializadoras.

No modelo reformista brasileiro junto à tendência socializadora se deu uma

subversão das próprias ideias dos socializadores (entre eles as de Dinamarco), vez que

estes buscaram uma colonização do Direito pelos imperativos do Mercado, como vem

281

Ibidem, p. 115. Ademais, nesta mesma obra, Dierle Nunes relata que o movimento de acesso à justiça

surgiu exatamente no momento histórico em que a crise do Welfare State estava plenamente

implementada pela incapacidade do Estado provedor de cumprir e aplicar as suas promessas. 282

O Projeto Florença de Acesso à Justiça que envolveu 23 países representados por grandes juristas

nacionais, do qual decorreu o movimento pelo acesso à justiça com o desenvolvimento de ondas de

reforma voltadas à assistência judiciária, à tutela efetiva dos interesses difusos e coletivos e à

simplificação de procedimentos

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138

sendo realizado de modo sub-reptício e sob o rótulo de ‘socialização’ pelo aqui

chamado neoliberalismo processual”283

.

Apostava-se na virtude de um órgão decisor para captar uma ordem concreta

e homogênea de valores compartilhados pela comunidade, ou seja, para identificar os

sentimentos e as vontades de todos os membros. Desse modo, o processo se torna mero

instrumento de aplicação de um ideal já predefinido e de acordo com os sentimentos da

comunidade sensíveis ao julgador.

Contudo, claro é que depender da captação de uma ordem concreta de

valores por um sujeito (nesse caso, o julgador) de maneira solitária, especialmente se

considerarmos a história brasileira de distorções entre o interesse social e interesses

funcionais do mercado ou da própria Administração Pública (e seus agentes estatais),

significa ignorar grandes riscos de dominação.

Aliás, parecia se estar olvidando da estrutura complexa e plural de nossa

sociedade que impossibilita a própria captação desses valores.

Fato é que na contemporaneidade, após a evolução da Ciência Jurídica

considera-se impensável e ingênua a sustentação de qualquer forma de protagonismo,

seja o das partes ou o do juiz, conclusão que decorre do perfil democrático que se espera

de um processo, análise que será aprofundada no decorrer do presente estudo.

A única premissa aceitável nessa discussão é a de que o Estado

Constitucional de Direito extirpou qualquer concepção de monopólio das partes na

instrução da causa com consequente abandono da concepção do juiz espectador!

3.2. Apresentando a cooperação/colaboração

Viu-se que os movimentos reformistas iniciados no final do século XIX

serviram como ponte de um processo liberal a um processo social que permitiu o

fortalecimento dos poderes judiciais tanto no seu aspecto formal, de regular e promover

a ordem e o ritmo dos atos do processo, quanto no aspecto material, de ofertar ao órgão

judicial controle e iniciativa oficiosa no recolhimento do material que formará o objeto

de juízo sobre o mérito.

Era o Estado paternalista na esfera judicial.

283

NUNES, Dierle José Coelho. Processo Jurisdicional Democrático, op.cit., p. 155.

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139

O aumento da ingerência do Estado na vida dos cidadãos levou a um

discurso processual que tinha em consideração a perspectiva liberal. Em um ou outro

extremo, as degenerações do processo liberal mostraram-se inaceitáveis.

A esperteza da parte mais forte pela perspectiva privatista ou o acesso

privilegiado de um sujeito aos ideais de justiça levou às degenerações desses modelos

rumo a um modelo com enfoque na utilização do espaço processual para a discussão das

questões em prol da formação adequada da decisão.

No Brasil, o contexto do Novo Código de Processo Civil brasileiro traz o

ápice da discussão de um novo modelo processual: o cooperativo.

Cooperação, do latim cooperacione, significa ato ou efeito de cooperar.

Cooperar, do latim cooperare, por cooperari, significa operar ou obrar simultaneamente;

trabalhar em comum; colaborar; ajudar; auxiliar.

Contudo, na perspectiva que aqui se pretende abordar, o vocábulo não pode

ser compreendido como “andar de mãos dadas”, tampouco como solidarismo. Ronaldo

Brêtas de Carvalho Dias, em Congresso do Instituto Panamericano, apontou que talvez

seja uma palavra com nova semântica em nosso idioma.

A doutrina brasileira já se depara com contribuições de consideráveis

estudiosos sobre o tema, sendo a produção mais extensa voltada ao ordenamento

jurídico brasileiro a tese de doutoramento de Daniel Mitidiero, grande estudioso do

formalismo-valorativo de Carlos Alberto Alvaro de Oliveria. No tema são magníficas as

contribuições de Dierle Nunes sobre o “Processo Jurisdicional Democrático” e o estudo

de pós-doutoramento de Fredie Didier a respeito dos “Fundamentos do princípio da

cooperação no Direito Processual Civil Português”.

Nesse sentido, inciar-se-á com breve exposição do pensamento de parcela

da ilustre doutrina brasileira a respeito do tema.

3.2.1. A colaboração em Daniel Mitidiero

Primeiramente, é importante observar que a extração do posicionamento de

Daniel Mitidiero se deu pela leitura da segunda edição de sua obra “Colaboração no

processo civil – pressupostos sociais, lógicos e éticos”.

Essa ressalva é feita porque somente a partir desta edição foi que o autor

levou em consideração produções bibliográficas ainda não acessadas quando da

primeira edição do livro como os texto de Lúcio Grassi, tese de Dierle Nunes e o

relatório de pós-doutoramento de Fredie Didier Júnior, bem como a jurisprudência que

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140

progressivamente se formou a partir da ideia de colaboração no processo civil e das

regras que intentam concretizá-la no Projeto do Código de Processo Civil apresentado

ao Congresso Nacional pela Comissão em junho de 2010.

Na mencionada obra, Daniel Mitidiero parte da ideia de formalismo

processual284

para identificar três modelos processuais civis correspondentes a três

modelos de organização social, o que confirma sua assertiva de que o modelo de

organização política da sociedade condiciona a maneira como vai se resolver o

problema da divisão do trabalho entre o juiz e as partes.

Então, como mencionado, do estudo de três modelos de organização social

identifica três maneiras diferentes de conceber o formalismo processual no que tange ao

papel reservado aos juízes e às partes: (i) o modelo paritário, (ii) o modelo hierárquico e

(iii) o modelo colaborativo.

Nesse sentido, o estudo de Mitidiero defende que o modelo de processo civil

conforme as exigências do Estado Constitucional corresponde ao processo cooperativo,

considerando este uma decorrência do formalismo – valorativo por compreender que os

deveres de colaboração do juiz para com as partes e das partes para com o juiz só

podem ser identificados a partir da visão total do fenômeno processual – de seu

formalismo.

Conclui, assim, que o princípio da colaboração assenta-se no Estado

Constitucional e que não há processo justo sem colaboração. Isso porque espera-se do

Estado Constitucional não só abstenções como a que vigia no Estado Legislativo dos

Oitocentos, mas também prestações que viabilizem o alcance de todos os fins inerentes

à pessoa humana, o que, em termos processuais, significa organizar um processo justo –

de formalismo cooperativo – e muito especialmente idôneo para prestação de tutela

jurisdicional adequada, efetiva e tempestiva aos direitos, o que repercute na posição do

juiz no processo.

Então, o que é colaboração para Mitidiero? Responde ser um modelo de

processo civil e um princípio.

284

Daniel Mitidiero entende a expressão “formalismo do processo” no sentido de formalismo ou forma

em sentido amplo, como algo que abrande “a totalidade formal do processo, compreendendo não a

forma, ou as formalidades, mas especialmente a delimitação dos poderes, faculdades e deveres dos

sujeitos processuais, coordenação de sua atividade, ordenação do procedimento e organização do

processo, com vistas a que sejam atingidas suas finalidades primordiais”, investindo-se assim na “tarefa

de indicar as fronteiras para o começo e o fim do processo, circunscrever o material a ser formado,

estabelecer dentro de quais limites devem cooperar e agir as pessoas atuantes no processo para o seu

desenvolvimento”, consoante o formalismo-valorativo de Carlos Alberto Alvaro de Oliveira.

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141

É um modelo de processo civil que visa a organizar o papel das partes e do

juiz na conformação do processo285

, isto é, objetiva dar feição ao formalismo do

processo dividindo de forma equilibrada o trabalho entre todos os seus participantes286

.

Trata-se, então, de modelo estruturado a partir de pressupostos culturais que

podem ser enfocados sob o ângulo social, lógico e ético.

Pelo ponto de vista social, o Estado não pode ter um papel de pura

abstenção e cumpre com seus deveres constitucionais por meio de prestações positivas.

Pela perspectiva lógica, reconhece-se o caráter problemático do Direito o que enfatiza a

sua feição argumentativa. Ou, melhor dizendo, o autor entende que o Direito “deixa de

ser visto como um objeto que o homem tem de conhecer para alcançar a verdade e

passa a ser encarado como um problema que o jurista tem de resolver em uma

atividade dialética, comunicativa, visando à obtenção do consenso”287

. Mas sob o

ângulo ético, o processo busca, tanto quanto possível, a verdade, jamais olvidando seus

sujeitos, inclusive o juiz, a observância da boa-fé objetiva.

O autor sustenta a existência de uma nova dimensão do papel do juiz na

condução do processo: o juiz do processo cooperativo é um juiz isonômico na condução

do processo e assimétrico no momento da decisão das questões processuais e materiais

da causa. O que, aliás, é uma colocação diferente dos demais autores que abordam o

tema, como se verá.

Assim, para Daniel Mitidiero, o juiz desempenha duplo papel, pois ocupa

dupla posição: paritária no diálogo e assimétrico na decisão. Visa-se alcançar, com isso,

um “ponto de equilíbrio” na organização do formalismo processual, conformando-o

como uma verdadeira “comunidade de trabalho”288

entre as pessoas do juízo.

Paritária no diálogo porque, embora dirija processual e materialmente o

processo, agindo ativamente, o faz de maneira dialogal, colhendo a impressão das partes

a respeito dos eventuais rumos a serem tomados no processo, possibilitando que elas

dele participem, influenciando-o a respeito de suas possíveis decisões (de modo que o

iudicium acabe sendo efetivamente um ato trium personarum, como se entendeu ao

longo de toda a praxe do direito comum).

285

MITIDIERO, Daniel Francisco. Colaboração no Processo Civil como Prêt-à-porter: Um Convite ao

Diálogo para Lenio Streck. In: Revista de Processo, 194, ano 36, Abril de 2011. 286

Ibidem. 287

MITIDIERO, Daniel Francisco. O Problema da Invalidade dos Atos Processuais no Direito

Processual Civil Brasileiro Contemporâneo. In: Revista Ajuris. Porto Alegre, n.96, dez. 2004, p. 70. 288

A expressão “comunidade de trabalho” aplicada ao processo fora cunhada por Leo Rosenberg.

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142

Assim, nesse processo, perceba-se, o juiz integra o contraditório. Coloca-se

o órgão jurisdicional como um dos participantes do processo, igualmente gravado pela

necessidade de observar o contraditório ao longo de todo o procedimento. O juiz

converte-se em um de seus sujeitos. Por força do contraditório, vê-se obrigado ao

debate, ao diálogo judiciário. Vê-se na contingência, pois, de dirigir o processo

isonomicamente, cooperando com as partes, gravado por deveres de esclarecimento,

prevenção, consulta e auxílio para com os litigantes.

Além de um modelo processual, Daniel F. Mitidiero considera a cooperação

um princípio, pois impõe um estado de coisas que tem de ser promovido: “O fim da

colaboração está em servir de elemento para a organização de processo justo idôneo a

alcançar a decisão justa”.

Mas, no momento da decisão, há uma assimetria apesar de não aceitar um

foco de centralidade no juiz. Essa assimetria advém do caráter obrigatório da decisão.

Destoando-se de grande parte da doutrina, afirma Mitidiero que a

colaboração no processo civil não implica colaboração entre as partes, em que pese o

artigo 6º do Novo Código de Processo Civil estabelecer que “Todos os sujeitos do

processo devem cooperar entre si”. Antecipe-se, todavia, que cooperar entre si não é

explicado com o significado de “andar de mãos dadas” ou “abdicar de seus próprios

interesses por solidariedade”.

3.2.2. O que é isto? – A cooperação processual em Lenio Streck289

Lenio Streck de pronto afirma que cooperação não é princípio:

“A ‘cooperação processual’ não é um princípio; não está dotada de densidade

normativa; as regras que tratam dos procedimentos processuais não adquirem

espessura ontológica face à incidência desse standard. Dito de outro modo, a

‘cooperação processual’ – nos moldes que vem sendo propalada – ‘vale’

tanto quanto dizer que todo processo deve ter instrumentalidade ou que o

processo deve ser tempestivo ou que as partes devem ter boa-fé. Sem o

caráter deontológico, o standard não passa de elemento que ‘ornamenta’ e

fornece ‘adereços’ à argumentação. Pode funcionar no plano performativo do

direito. Mas, à evidência, não como ‘dever ser’.”290

Este autor afirma não ser crível nem constitucional, “atribuir aos

contraditores o dever de colaborarem entre si a fim de perseguirem uma “verdade

289

STRECK, Lenio; DELFINO, Lucio; et. al. Disponível em <http://www.conjur.com.br/2014-dez-

23/cooperacao-processual-cpc-incompativel-constituicao> Acesso em: 08/05/2015. 290

STRECK, Lenio Luiz. Um debate com (e sobre) o formalismo-valorativo de Daniel Mitidiero ou

“colaboração no processo civil” é um princípio? In: Revista de Processo. vol. 213, Nov 2012, p. 13 – 34.

Page 143: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP ... Lobão Torres.pdfem 1989, de “Diritto e Ragione: Teoria del Garantismo Penale”. Foi com a tradução desta obra para

143

superior”, mesmo que contrária àquilo que acreditam e postulam em juízo, sob pena de

privá-los da sua necessária liberdade para litigar”291

.Afinal, o que cada uma das partes

e seus advogados ambiciona é resolver a questão da melhor forma possível, desde que

isso signifique favorecimento em prejuízo do adversário.

Ainda, de acordo com seu entendimento, o referido artigo 6º do novel

Código está a sugerir que a obtenção de decisões justas, efetivas e em tempo razoável

não constituem propriamente direitos dos cidadãos brasileiros e estrangeiros residentes

no pais, mas também deveres a eles impostos, pois para o proferimento de uma decisão

justa, efetiva e tempestiva, necessariamente deverá o jurisdicionado cooperar com o juiz

e sobretudo com a contraparte, mas é inconcebível a ideia de parte e contraparte estarem

de mãos dadas a fim de alcançarem a pacificação social.

Entende que o Novo Código acredita no homem bom em descompasso com

a realidade do Estado brasileiro e que, sob a insígnia da cooperação, fortalece o

protagonismo judicial, pois

As palavras “entre si” do artigo 6º. podem servir para uma instrumentalização

epistemológica do processo pelo Estado-juiz, numa ética narrativa tão penosa

e desventurada que não é endossada nem mesmo por um Michelle Taruffo[2]

— entusiasta da “discricionariedade racionalizada” (= livre convencimento

motivado) e do ativismo processual como método truth acquiring centrado

no juiz.

Para o autor:

Uma comunidade de trabalho com a finalidade de regulamentar o diálogo

entre juiz e partes é algo bem diferente de inserir a todos num mesmo

patamar, como se o primeiro exercesse juntamente com as últimas o

contraditório, debatendo teses, argumentando e rebatendo argumentos,

levando fatos (ou obrigando as partes a levá-los) para o processo, produzindo

provas e contraprovas.292

Ocorre que, ao contrário do que afirma Lenio Streck, a cooperação é

defendida por outra parte da doutrina não como solidarização entre as partes, tampouco

institui em favor do juiz poderes para obrigá-las, contra vontade delas, renuncia a seus

interesses, mas sim comunicação entre todos os sujeitos para a formação e influência da

decisão do órgão jurisdicional, fruto esta do debate e de um contraditório que veda a

decisão surpresa, como se verá.

É que, veja-se, parte da doutrina atribui uma semântica ao termo

“cooperação”, enquanto Lenio Streck, trabalhando no paradigma hermenêutico, afirma

que “cooperação ou colaboração não parecem mesmo ser os melhores “nomen juris”

291

STRECK, Lenio; DELFINO, Lucio; et. al. Disponível em <http://www.conjur.com.br/2014-dez-

23/cooperacao-processual-cpc-incompativel-constituicao> Acesso em: 08/05/2015. 292

STRECK, Lenio; DELFINO, Lucio; et al. Disponível em <http://www.conjur.com.br/2014-dez-

23/cooperacao-processual-cpc-incompativel-constituicao> Acesso em: 08/05/2015.

Page 144: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP ... Lobão Torres.pdfem 1989, de “Diritto e Ragione: Teoria del Garantismo Penale”. Foi com a tradução desta obra para

144

para designar o processualismo pós-liberalista e pós-socialista, ora sob recomposição

paradigmática no Estado Democrático de Direito”. Não está o autor, contudo,

contrariando “a formulação da coparticipação por Dierle Nunes, enquanto garantia de

influência e não surpresa” nem negando o acerto deste autor quando reconhece “que há

papeis distintos, mas que todos cooperam para o resultado final”.

O autor está, em realidade, alertando para o protagonismo que pode surgir e

afastar os aspectos positivos da cooperação que até combina com democracia denotando

um agir conjunto, participação, apoio293

.

3.2.3 A cooperação em Lucio Grassi

Para Lucio Grassi, a legitimidade da decisão judicial advém da “efetiva

oportunidade dos agentes processuais participarem ativamente de sua construção.

Agentes que interagem, dialogam, participam e cooperam”294

.

Referido autor utiliza-se da expressão “cooperação intersubjetiva”, à qual

aponta como definição para o direito processual a significação de trabalho em comum,

em conjunto, de magistrados, mandatários judiciais e partes, visando a obtenção, com

brevidade e eficácia, da justa composição do litígio.

Ademais, eleva a cooperação intersubjetiva à categoria de princípio porque

a considera como orientação a atividade de todos os sujeitos processuais, não só a do

intérprete-aplicador, e interferir na interpretação dos demais dispositivos legais contidos

na legislação processual civil.

Então, o princípio da cooperação intersubjetiva como comparticipação dos

sujeitos processuais para formação da decisão com a efetiva participação de todos,

respaldando no “princípio da participação” constante do art. 5º, LV da Constituição

Federal.

Contudo, a primeira observação quanto às contribuições de Lucio Grassi

consiste nos dois aspectos que atribui à cooperação: “(a) dever das partes de cooperarem

com o juízo ou tribunal; (b) dever do juízo ou tribunal de cooperar com as partes.”295

.

Ou seja, não considera a cooperação entre as partes (entre si). As contribuições do autor,

293

STRECK, Lenio; DELFINO, Lucio; et al. Disponível em <http://www.conjur.com.br/2014-dez-

23/cooperacao-processual-cpc-incompativel-constituicao> Acesso em: 08/05/2015. 294

GRASSI, Lucio. A função legitimadora do princípio da cooperação intersubjetiva no processo civil

brasileiro. In: Revista de Processo Vol. 172, Jun. 2009, p. 32-53. 295

Ibidem, p. 32-53.

Page 145: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP ... Lobão Torres.pdfem 1989, de “Diritto e Ragione: Teoria del Garantismo Penale”. Foi com a tradução desta obra para

145

todavia, são anteriores à redação final do Novo Código de Processo Civil e portanto, à

vigência do art.6º.

Ademais, a cooperação em Lucio Grassi objetiva atingir um sistema de

“processo social, dirigido por um juiz ativo, responsável(...)processo nitidamente com

caráter publicístico e dialógico, aproximando-se do que Klein qualificou como um

instituto de bem estar social”296

.

Nesse sentido, a compreensão de Lucio Grassi resta distinta da grande

maioria da doutrina brasileira acerca do tema, em que pese ser autor que abordou o tema

com anterioridade.

3.2.4 A cooperação do Direito Processual Civil Português na análise de Fredie

Didier Jr.

O modelo reformista português sempre inspirou o processo brasileiro.

A partir das reformas dos anos 90, o sistema português tende a afastar-se do

caráter social (ou seja, de um modelo com predominância do controle judicial gerado

pela degeneração do processo liberal) aproximando-se de um modelo de repartição da

direção do processo entre partes e juiz por meio da aplicação da “cooperação

intersubjetiva” a partir do exemplo alemão.

Nesse sentido, considerando a reconhecida importância do diploma

processual civil português aos sistemas de civil-law, bem como a influência da

legislação portuguesa sobre o sistema brasileiro, necessário se faz analisar seu

ordenamento em razão do artigo 266.º, 1, do Código de Processo Civil Português que

consagra a cooperação.

Primeiramente, de acordo com Miguel Teixeira de Sousa, o princípio da

cooperação constitui linha do processo civil não-liberal, de cunho social, destinado a

transformar o processo em uma comunidade de trabalho297

.

O autor português aduz que o princípio da cooperação gera os poderes-

deveres de (i) esclarecimento, (ii) consulta (das partes sobre os pontos fáticos e jurídicos

que cercam a demanda), (iii) prevenção e (iv) auxílio resultantes estes de regras

específicas e previstas no ordenamento que concretizam aquele princípio.

296

Ibidem, p. 32-53. 297

SOUSA, Miguel Teixeira de. Estudos sobre o novo processo civil. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris,

2006, p. 62.

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146

Aliás, Miguel Teixeira de Sousa divide tais regras que concretizam o

princípio da cooperação em “fechadas”, que são aquelas que não deixam margem de

verificação ao tribunal e cuja inobservância acarretam invalidade processual, e em

“abertas”, constituídas por aquelas que dão discricionariedade ao julgador, cujas ofensas

não implicam qualquer sanção.

Nesse contexto, Ana Paula Costa e Silva enxerga no princípio objeto de

estudo a opção legislativa de estabelecer o modelo processual civil cooperativo, e

consequentemente, reconhece que o princípio da cooperação gera situações jurídicas

processuais diversas298

, em que pese não admitir a eficácia direta, assumindo que “o

conteúdo do princípio da cooperação será estritamente aquele que resultar da

justaposição do conteúdo dos deveres em que se manifesta”299

, de modo que sempre

que a lei impor uma intervenção deverá o tribunal assim atuar.

Ademais, para Miguel Teixeira de Sousa, o dever de esclarecimento

consiste no dever do julgador esclarecer junto das partes quanto às dúvidas que tenha

sobre as suas alegações, pedidos ou posições em juízo300

.

Claramente, possui o dever de esclarecimento um duplo sentido já que

permite ao magistrado esclarecer fatos e situações jurídicas em consonância com a

premissa de máximo aproveitamento do mérito além de viabilizar às partes a

potencialidade de obter do magistrado decisões que sejam fruto do debate em

contraditório, desprovidas de dúvidas e obscuridades.301

Quanto a este dever, observa Fredie Didier, que “parece que o dever de

esclarecimento não se restringe ao dever de o órgão jurisdicional esclarecer-se junto

das partes, mas também o dever de esclarecer os seus próprios pronunciamentos para

as partes”, e nesse sentido, conclui que “o dever de motivar contém, obviamente, o

dever de deixar claras as razões da decisão” não havendo, assim, “necessidade de buscar

o fundamento do dever de esclarecer as decisões no princípio da cooperação, visto que

ele já está muito bem delimitado no dever de motivar.”.302

298

SILVA, Paula Costa e. Acto e processo – o dogma da irrelevância da vontade na interpretação e nos

vícios do acto postulativo. Coimbra: Coimbra Editora, 2003, n. 410 – 418, p. 590. 299

Ibidem, p. 591. 300

SOUSA, Miguel Teixeira de. Estudos sobre o novo processo civil, op. cit. p. 65. 301

DIDIER JR., Fredie. Fundamentos do princípio da cooperação no direito processual civil português.

Coimbra: Coimbra Editora, 2010, p. 20/21. 302

Ibidem, p. 20/21.

Page 147: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP ... Lobão Torres.pdfem 1989, de “Diritto e Ragione: Teoria del Garantismo Penale”. Foi com a tradução desta obra para

147

Há também o dever de consulta pelo qual o magistrado deve consultar as

partes sobre eventual questão fática ou de direito para que possam elas se manifestar,

mesmo que possa ser conhecida de ofício303

.

Ainda, tem o magistrado o dever de prevenção, que, conforme os

ensinamentos de Teixeira de Sousa, persiste em todas as situações nas quais o sucesso

em favor do interesse de uma parte esteja em risco pelo uso inadequado do processo,

devendo ser aplicado para a explicitação de pedidos pouco claros, em eventuais lacunas

de fatos relevantes, para a adequação necessária do pedido à situação concreta e ainda

como aconselhamento de conduta à parte.304

Adota o autor a compreensão do dever de prevenção do Direito alemão,

identificando um dever geral de prevenção305

.

Para Fredie Didier, o dever de prevenção, corolário do máximo

aproveitamento e da primazia do mérito, consiste no dever do magistrado em apontar as

deficiências das postulações das partes, para que possam ser supridas, concretizado no

dever de convite ao aperfeiçoamento pelas partes dos seus articulados306

.

Por fim, existe o dever de auxílio que assegura, às partes, o efetivo exercício

de seus direitos, faculdades, ônus ou deveres valendo-se elas sempre da necessária

providência por parte do juiz para a superação de dificuldades e obstáculos que o

impeça307

.

Fredie Didier ensina que o dever de assistência é também chamado dever de

auxílio constitui no dever do juiz de providenciar, sempre que possível, eventuais

dificuldades que impeçam o exercício de direitos ou faculdades ou o cumprimento de

ônus ou deveres processuais308

.

Outrossim, para Ana Paula Costa e Silva, lamentando a impossiblidade de

se dar ao dever de prevenção uma amplitude maior pela análise do sistema português,

conclui que ele não foi consagrado como cláusula geral porque previsto para

determinada situação, qual seja, “a complementação ou clarificação na exposição da

matéria de facto”309

.

303

SOUSA, Miguel Teixeira de. op.cit., p. 65/66. 304

Ibidem, p. 66. 305

DIDIER JR., Fredie. Fundamentos do Princípio da Cooperação no Direito Processual Civil

Português, op. cit., p. 20. 306

Ibidem, p. 20/21. 307

SOUSA, Miguel Teixeira de. Estudos sobre o novo processo civil, op. cit. p. 67. 308

DIDIER JR., Fredie. Fundamentos do princípio da cooperação no direito processual civil português,

op.cit., p. 20/21. 309

Artigo 508º, 1, b, CPC português:

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148

Essa limitação do dever de prevenção no sistema português leva Fredie

Didier a concluir que mais adequado seria falar em “dever de determinar a

complementação ou clarificação da exposição fática”, vez que aquela constitui

designação mais genérica.310

Outro aprendizado311

que se pode extrair do sistema português consiste na

previsão normativa de ilícito processual sob a tipificação de grave omissão, ao que

melhor seria se a omissão bastasse para configuração de ilícito.312

No que diz respeito às sanções, José Lebre de Freitas aduz que o

descumprimento do dever de cooperação gera a obrigação de indenização, multa e o

ônus da prova quando a violação impossibilitar eventual produção de prova pela parte

prejudicada.

Imputa, ainda, duas dimensões (sentidos) ao princípio da cooperação: a

dimensão material, em que o princípio da cooperação apontaria para a apuração da

verdade sobre a matéria fática, e a dimensão formal, que consiste na justa composição

do litígio no menor tempo possível, sem protelações indevidas. E nesse sentido

identifica regras condizentes com tais dimensões, demonstrando que sua análise parte de

dispositivos específicos com direção ao princípio da cooperação, e não extraindo do

dispositivo 266 as eventuais possíveis consequências jurídicas no sistema.313

Fredie Didier relata que, no tocante ao dever de esclarecimento, Lebre de

Freitas compreende que ele consiste no poder do juiz de ouvir as partes e no dever das

partes de colaborar e prestar esclarecimentos, isto é, a dimensão material do princípio da

cooperação implica poderes do juiz e deveres das partes, diversamente do que ocorre na

Alemanha, onde o princípio da cooperação implica verdadeiros deveres do magistrado,

ainda que reconheça a tendência de aumento desses deveres com extensão aos

magistrados314

.

As contribuições de Fredie Didier com a publicação de sua tese de pós-

doutoramento são importantíssimas para o contexto nacional porque trouxeram uma

explicitação mais aprofundada da cooperação.

310

DIDIER Jr., Fredie. Fundamentos do Princípio da Cooperação no Direito Processual Civil Português,

op. cit., p. 20. 311

Ibidem, p. 28. 312

artigo 456, 2, c, do CPC português 313

DIDIER JR., Fredie. Fundamentos do Princípio da Cooperação no Direito Processual Civil

Português, op. cit., p. 28. 314

Ibidem, p. 30.

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149

Mas além disso, o autor defende que além dos dois modelos de estruturação

do processo comumente identificadas pela civilização ocidental resultantes das

influências do iluminismo, quais sejam, o modelo dispositivo (também chamado pelo

autor como modelo adversarial) e o modelo inquisitivo (denominado também de não

adversarial), um terceiro modelo seria o cooperativo315

. E logo os diferencia:

Em suma, o modelo adversarial assume a forma de competição ou disputa,

desenvolvendo-se como um conflito entre dois adversários diante de um

órgão jurisdicional relativamente passivo, cuja principal função é a de

decidir. O modelo inquisitorial (não adversarial) organiza-se como uma

pesquisa oficial, sendo o órgão jurisdicional o grande protagonista do

processo. No primeiro sistema, a maior parte da atividade processual é

desenvolvida pelas partes; no segundo, cabe ao órgão judicial esse

protagonismo. (...)Fala-se que, no modelo adversarial, prepondera o princípio

dispositivo, e, no modelo inquisitorial, o princípio inquisitivo.316

Contudo, questiona-se: modelo adversarial e dispositivo são a mesma coisa?

Viu-se com Ferrajoli que adversarial é um modelo dispositivo. E ainda, será que

realmente não existe em vigor um modelo completamente adversarial? O autor não

comprovou sua afirmação empiricamente, de maneira que necessitamos questioná-la.

Veja-se que o autor utiliza princípio como orientação preponderante, como

fundamento, e, no caso dos princípios dispositivo e inquisitivo, utiliza a dicotomia com

relação à atribuição de poderes ao juiz manifestando um ou outro quando o legislador

atribuir ao magistrado ou aos litigantes e pode, nesse sentido, manifestar-se em relação

a vários temas: “a) instauração do processo; b) produção de provas; c) delimitação do

objeto litigioso (questão discutida no processo); d) análise de questões de fato e de

direito; e) recursos etc”317

de maneira que “nada impede que o legislador, em relação

a um tema, encampe o princípio dispositivo e em relação ao outro, o princípio

inquisitivo”318

pelo que seria difícil estabelecer um critério identificador da

dispositividade ou da inquisitividade que não comporte exceção pois assume o autor

não existir sistema totalmente dispositivo nem completamente inquisitivo. Os

procedimentos são frutos de suas combinações.

O autor, salvo melhor juízo, está a afirmar que só existem, no mundo,

procedimentos mistos.

315

DIDIER JR. Fredie. Os três modelos de direito processual: inquisitivo, dispositivo e cooperativo.

Disponível em:

<https://d24kgseos9bn1o.cloudfront.net/editorajuspodivm/arquivos/ativismo%20soltas%20fredie.pdf>

Acesso em 13/06/2015. 316

Ibidem, p. 209. 317

Ibidem, p. 209. 318

Ibidem, p. 209.

Page 150: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP ... Lobão Torres.pdfem 1989, de “Diritto e Ragione: Teoria del Garantismo Penale”. Foi com a tradução desta obra para

150

É então que encampa o surgimento de um princípio que surge baseado nos

princípios do devido processo legal, da boa-fé processual e do contraditório, o princípio

da cooperação que define o modo como o processo civil deve estruturar-se no direito

brasileiro.

O modelo guiado pelo princípio da cooperação diferencia-se dos demais

porque inclui o órgão jurisdicional no rol dos sujeitos do diálogo processual e não mais

como um mero espectador do duelo das partes. Neste modelo, a condução do processo

não é determinada pelas partes, tampouco há uma condução inquisitorial pelo órgão

jurisdicional em posição assimétrica em relação às partes. O que é uma condução

cooperativa do processo sem destaques a algum dos sujeitos processuais.

O autor nega veementemente a doutrina de Daniel F. Mitidiero no que tange

a assimetria no momento decisório. Para Fredie Didier, não há pradidade no momento

da decisão porque as partes não podem decidir com o juiz tratando de função

exclusivamente sua, mas a decisão judicial é fruto da atividade processual em

cooperação por ser resultado das discussões travadas ao longo de todo o arco do

procedimento. A assimetria se faz necessária porque a decisão jurisdicional é

essencialmente um ato de poder, mas no processo autoritário/inquisitorial, essa

assimentria existe também na condução do processo, e assim, o autor afirma que

“assimetria, aqui, não significa queo o órgão jurisdicional está em uma posição

processual composta apenas por poderes processuais, distinta da posição processual

das partes, recheadas de ônus e deveres”319

, mas “assimetria significa apenas que o

órgão jurisdicional tem uma função que lhe é própria e que é conteúdo de um poder,

que lhe é exclusivo”320

.

Por fim, esse seria o modelo de direito processual civil que o autor

considera adequado à cláusula do devido processo legal e ao regime democrático.

3.2.5 A cooperação em seu perfil comparticipativo e o contraditório como garantia

de influência e de não surpresa com as contribuições de Dierle Nunes

As contribuições de Dierle Nunes e da Escola Mineira de Processo são de

grande valia para o estudo do tema, como aliás, para o todo o processo civil. Mas

adiante-se que o autor possui uma visão procedimental de Estado Democrático de Direito. De

319

Ibidem, p. 213. 320

Ibidem, p. 213.

Page 151: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP ... Lobão Torres.pdfem 1989, de “Diritto e Ragione: Teoria del Garantismo Penale”. Foi com a tradução desta obra para

151

todo modo, são inegáveis suas contribuições para a ideia de contraditório que se debate

no Novo Código de Processo Civil brasileiro.

A estruturação de um espaço com técnicas de fomento ao debate somente

pode ser efetivamente atendido sob a perspectiva democrática de Estado, na qual se

percebe não haver predominância de qualquer aspecto, seja público ou privado321

.

Nessa perspectiva, e em direção à efetiva democratização jurídica do

processo jurisdicional, o processo deverá permitir o controle recíproco entre o julgador

e as partes, uma responsabilidade compartilhada entre os sujeitos processuais.

Foi nesse sentido que o Novo Código de Processo Civil implementou um

sistema cooperativo (cooperação/comparticipação322

) no qual todos os sujeitos

processuais possuem responsabilidades na construção do provimento final por meio de

uma comunicação ativa ao prever em seu artigo 6º que “Todos os sujeitos do processo

devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito

justa e efetiva”.

Fala-se da cooperação policentrista sob um perfil comparticipativo323

. Aliás,

o autor entende que a visão procedimental de Estado Democrático de Direito impõe uma

necessária comparticipação na implementação legislativa e jurisdicional. O autor assume

também a concepção do primeiro Fazzalari324

na teoria do processo, que problematiza

(...) o significado do aumento dos poderes dos juízes no processo, em face de

uma aplicação forte dos princípios constitucionais, tentando verificar o modo

de estabelecer contrapesos a essa atuação salvadora dos juízes que impeçam a

redução do papel das partes a uma mera sujeição e o processo a mero

instrumento técnico.325

Elio Fazzalari inaugurou a defesa da procedimentalidade como necessária

para as decisões a partir do processo como procedimento em contraditório, afastando a

concepção de processo como relação jurídica processual.

321

NUNES, Dierle José Coelho. Processo Jurisdicional Democrático, op. cit., p. 49. 322

Chamada pela doutrina alemã de “comunidade de trabalho”. NUNES, Dierle José Coelho. Processo

Jurisdicional Democrático. Belo Horizonte: Juruá Editora, 2012, p. 212 e ss. 323

Nunes, p. 50. A tese comparticipativa é vista em Dierle Nunes a partir de uma reconstrução

historiográfica e comparatística dos sistemas processuais apresentando as principais características e

degenerações dos processos liberal e social. Na defesa de sua tese, Dierle Nunes assumiu como marco

teórico no campo da teoria do processo do primeiro Fazzalari, afastando assim a adoção da teoria da

relação jurídico-processual, dando ênfase ao procedimento na formação das decisões e no controle do

exercício das funções estatais.Na teoria do direito adotou a teoria procedimental de Estado Democrático

de Direito de Jurgen Habermas, “que defende uma tensão entre os argumentos liberais e sociais

apontando suas inconsistências teóricas e permitindo a busca de uma legitimidade alicerçada na relação

interna entre direitos fundamentais e soberania do povo”. NUNES, Dierle José Coelho. Processo

Jurisdicional Democrático. Belo Horizonte: Juruá Editora, 2012, p.51 – 52. 324

O pensamento Fazzalariano foi propagado pela obra pioneira de Aroldo Plínio Gonçalves. 325

NUNES, Dierle José Coelho. Processo Jurisdicional Democrático, op.cit. p. 202.

Page 152: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP ... Lobão Torres.pdfem 1989, de “Diritto e Ragione: Teoria del Garantismo Penale”. Foi com a tradução desta obra para

152

O presente estudo demonstrou que os paradigmas jurídicos dos Estados

Liberal e Social produziu um protagonismo inaceitável por seus resultados práticos.

Este protagonismo acredita que um sujeito solipsista conseguiria captar o bem viver em

sociedades complexas e plurais diante da concepção democrática do direito.

Essa conclusão torna necessária a existência de uma procedimentalidade na

qual os interessados possam participar com a possibilidade e finalidade de influenciar na

formação das decisões.

Assim, o fluxo discursivo dará margem a um procedimento a partir dos

princípios fundamentais do processo e que permite refletir a respeito do aumento dos

poderes dos juízes no processo em prol de uma possibilidade de não se diminuir o papel

das partes para que não fique resumido a uma mera sujeição.

A concepção de uma procedimentalidade balizadora das decisões tem como

marco inicial o pensamento de Elio Fazzalaria que concebeu o processo como

procedimento em contraditório e não uma relação jurídico-processual permissiva da

subordinação entre os sujeitos processuais com predominância do papel do juiz tal

como demonstrado pelo pensamento de Oskar Von Bülow.

Isto porque Fazzalari buscou uma forma de legitimação decisória pelo

debate e pelo procedimento, não a partir da jurisdição que conta com a sabedoria do

juiz, de maneira que se contrapõe a Bülow, representando inclusive uma superação do

estudo baseado nos institutos da ação e da jurisdição ao centralizar-se na categoria

processo.

Em seu estudo, Fazzalari demonstrou que a difusão de módulos processuais

em atividades tanto jurisdicionais quanto não-jurisdicionais poderia proporcionar a

participação dos interessados em direção à formação dos provimentos.

Em torno das decisões judiciais, é evidente que as partes são os destinatários

do ato emanado e que este vela primeiramente por seu interesse e apenas

secundariamente no interesse do Estado. Ademais, o processo permite que os mesmos

destinatários do ato possam participar da concretização do poder naquele ato, do que se

pode concluir ser o processo a forma típica de explicação da função jurisdicional326

.

Nesse contexto, Fazzalari percebeu em Benvenutti uma estrutura dialética

de procedimento, levando-o a entender a existência do processo pelo contraditório

existente na formação de um ato. Parte da concepção de Feliciano Benvenutti de que o

326

Ibidem, p. 205.

Page 153: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP ... Lobão Torres.pdfem 1989, de “Diritto e Ragione: Teoria del Garantismo Penale”. Foi com a tradução desta obra para

153

processo e o procedimento pertenciam a um gênero comum na medida em que como os

atos do procedimento são pressupostos de validade e eficácia do ato final, cada

provimento é necessariamente precedido de um procedimento, que deixa de ser um

simples procedimento e se torna um processo quando:

(...) um ou mais atos de um dos sujeitos (v.g. o Estado) encontram as suas

razões de ser ou o seu limite em atos de outro sujeito (v.g. o particular). E

quando essa razão de ser ou esse limite surge ou é colocado no interesse do

sujeito diverso daquele que emana o ato e que é deste o destinatário, está-se

na presença não mais de um simples procedimento, mas de um processo.327

Mas se a participação das partes for pontual, não se configurará processo,

mas somente mero procedimento:

(...) processo é um procedimento do qual participam (estão habilitados a

participar) também aqueles em cuja esfera jurídica o ato final é destinado a

desenvolver efeitos: em contraditório e de modo que o autor do ato não possa

impedir as suas atividades328

.

Apenas a título de recordação, o processo, para Adolfo Alvarado Velloso, é

um procedimento. O procedimento é o objeto das instâncias, e uma destas instâncias é a

ação processual. Esta específica instância possui características próprias e gera um

processo quando respeitadas tais características, já mencionadas, e quando segue a série

lógica que o autor afirma como necessária para que o procedimento não seja um simples

procedimento, mas sim um processo.

Observe-se, contudo, que na teoria de Fazzalari329

somente as partes são

sujeitos do contraditório, e, aliás, tal participação técnica das partes na formação das

decisões configura elemento estrutural e legitimante das atividades processuais, mas o

autor do provimento não integra o contraditório330

.

Nesse contexto das diferenças entre Dierle Nunes e Elio Fazzalari, este

também não demonstrou uma aplicação dinâmica dos princípios constitucionais, de

maneira que a teoria fazzalariana permite, a partir da sua concepção sobre a relevância

da participação técnica das partes no processo, somada a bases do constitucionalismo

(contemporâneo) e da teoria do direito, o alcance de uma procedimental democratização

do processo.

327

BEVENUTTI, Feliciano. Funzione amministrativa, procedimento, processo. Rivista Trimestrale di

Diritto Pubblico. Milano: Giuffrè, p. 118-145, 1952. apud NUNES, Dierle. Processo jurisdicional

democrático. Curitiba; Juruá Editora, 2012, p. 205. 328

FAZZALARI, Elio. Diffusione Del processo e compiti della dottina. Rivista Trimestrale di Diritto e

Procedura Civile,: Giuffrè, n. 3, p. 873. apud NUNES, Dierle. Processo jurisdicional democrático.

Curitiba; Juruá Editora, 2012, p. 206. 329

FAZZALARI, Elio. Diffusione Del processo e compiti della dottina, op.cit., p. 873. apud NUNES,

Dierle. Processo jurisdicional democrático, op.cit., p. 206. 330

NUNES, Dierle. Processo jurisdicional democrático, op.cit., p. 206.

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154

Já no campo da teoria do direito, Dierle Nunes adotou a teoria

procedimental de Estado democrático de direito de Jürgen Habermas, que a partir das

inconsistências dos argumentos liberais e sociais permitiram a busca de uma

legitimidade baseada na relação interna entre direitos fundamentais e soberania do

povo331

.

O estudo a partir das tensões entre os paradigmas Liberal e Social permite a

conclusão de suas visões produtivistas “de uma sociedade econômica apoiada no

capitalismo industrial que despreza o nexo interno entre a autonomia pública e privada

e delineia um quadro de exclusão”332

seja pela cegueira social, como se dá no modelo

liberal, seja pela insensibilidade de autodeterminação dos cidadãos, como no modelo

social333

.

Assim, assume-se a correlação entre a forma de estruturação do sistema

jurídico com a própria organização estatal implementada em determinado espaço

histórico falando-se em paradigmas como um norte interpretativo de acordo com a

teoria procedimentalista de Habermas.

Ocorre que, como elucidado anteriormente, o Direito brasileiro permitiu,

após o movimento de acesso à Justiça com seus contornos próprios, a instalação do

neoliberalismo processual em cujo bojo reina a sobrevalorização da rapidez

procedimental e de uma específica concepção funcional de eficácia. Disso decorreu a

massificação dos julgamentos e a redução do aspecto técnico do processo a uma mera

formalidade. Permitiu, ademais, que o Judiciário legitimasse o interesse do mercado e

da Administração.

Restou ignorado o processo como verdadeira garantia contra o exercício

ilegítimo de poderes públicos e privados em todos os campos, como elemento

estruturante e legitimante da participação cidadã e da própria democracia.

Nesse sentido, os procedimentalistas, como Dierle Nunes, capitaneados pela

tese procedimental de Habermas pretendem a superação da oposição entre os

paradigmas liberal e social de Direito propondo um modelo de democracia

constitucional que não tem como condição prévia fundamentar-se nem em valores

compartilhados, nem em conteúdos substantisvos, mas em procedimentos que

asseguram a formação democrática da opinião e da vontade e que exige uma identidade

331

Ibidem, p. 52. 332

Ibidem, p. 202. 333

Ibidem, p. 202.

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155

política não mais ancorada em um “nação de cultura”, mas em uma “nação de

cidadãos”.

Na opinião de Habermas, uma interpretação da Constituição baseada em

valores, optando assim por um sentido teleológico, desconhece o pluralismo das

democracias contemporâneas e a lógica do poder econômico e administrativo. E nesse

sentido, entende que a função da justiça constitucional deve limitar-se a compreender

procedimentalmente a Constituição, ou seja, a proteger o processo de criação

democrática do Direito, não devendo guardar uma suposta ordem suprapositiva de

valores substanciais334

.

Nesse sentido, o processo na perspectiva comparticipativa e policêntrica dá-

se como um espaço público no qual se apresentam as condições comunicativas para que

todos os envolvidos, assumindo a responsabilidade de seu papel, participem na

formação de provimentos legítimos que permitirá a clarificação discursiva das questões

fáticas e jurídicas335

.

O jurisdicionado, por meio do processo, expõe as razões relevantes sobre o

tema a ser julgado conforme o modelo constitucional de processo e os princípios

processuais constitucionais que fixa limites de atuação e asseguram a possibilidade de

participação de todos os sujeitos processuais na discussão para a formação da decisão

mais adequada ao caso.

Está-se a falar da denominada “comunidade de trabalho” entre juiz e partes

que, reconheça-se, nasceu numa perspectiva de discurso social, que deve ser revista

numa perspectiva policêntrica e comparticipativa especialmente diante do novo

paradigma do Estado Democrático de Direito. Aliás, um grande responsável nesse

sistema policêntrico é a advocacia como categoria de profissionais vinculados a uma

participação cidadã. Perspectiva já abordada com as considerações de Mirjan Damaska.

A assunção de linhas pós-positivistas, em especial, a procedimentalista

normativa, leva à inaceitabilidade de subjetivismos e preferências dos agentes políticos

limpando o espaço do processo para o conforto de argumentos racionais sujeitos ao

debate em que os interessados participem amplamente. Nesse sentido, o autor rechaça

qualquer aceitação de discricionariedades, assunção esta que afasta a teoria de Ferrajoli.

334

HABERMAS, J. Direito e Democracia – entre faticidade e validade. Vol. I. Rio de Janeiro: Tempo

Brasileiro, 1997, p. 297 e ss. 335

NUNES, Dierle. Processo jurisdicional democrático, op.cit., p. 211.

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156

Ocorre que há uma reflexão necessária: a representatividade do discurso

pós-positivista comunitarista que encara a Constituição como uma ordem concreta de

valores ostentada por uma participação ativa do Estado-juiz, como se tais valores

pudessem ser homogeneamente compartilhados numa sociedade complexa é concepção

que foi, no Brasil, apropriada pelo neoliberalismo e permitiu a aplicação do direito por

manipuladores agentes políticos que observavam preferências do mercado e dos poderes

públicos!

Mas enquanto os liberais acreditam que os direitos fundamentais devem

prevalecer sobre a soberania popular, os comunitaristas pregam a sobreposição da

vontade da comunidade em relação aos direitos humanos, numa terceira via, Habermas

sustenta que autonomia privada e autonomia pública são interdependentes, de maneira

que devem ser asseguradas simultaneamente336

.

O abandono aos modelos solipsistas típicos de um modelo autoritário de

viés positivista ou axiológico, acredita Dierle Nunes, poderá ser alcançado com uma

leitura forte e dinâmica dos princípios formadores do modelo constitucional de processo

a servirem como diretrizes normativas para as decisões e que geram responsabilidades a

todos os sujeitos processuais sem o protagonismo de qualquer um destes.

Afinal, seu modelo cooperativo e de democratização processual assume um

perfil comparticipativo e policentrista sob o pilar de inexistência de qualquer

protagonismo, o que só poderá ocorrer pela divisão de atuação entre partes e julgador a

partir de um contraditório dinâmico como garantia de influência e de não surpresa e

como princípio fundante do processo, um elemento normativo estrutural da

comparticipação envolvendo todos os sujeitos processuais.

É fundamental notar a profunda diferença entre o contraditório de Adolfo

Alvarado Velloso que o vê como bilateralidade da audiência e o contraditório de Dierle

Nunes que não se resume à possibilidade das partes à devida informação e possibilidade

de reação. Veja-se:

A reforma alemã de 1976 que influenciou o modelo reformista português e

que, por sua vez, inspira o discurso processual brasileiro desde sempre possibilitou pela

doutrina a extração de 4 deveres do magistrado. São eles: dever (i) de prevenção, (ii) de

336

LEITE, Roberto Basilone. Hemenêutica constitucional como processo político comunicativo: a crítica

de Jürgen Habermas às concepções liberal e comunitarista. In: LOIS, Cecilia Caballero (Org.) Justiça e

democracia: entre o universalismo e o comunitarismo. São Paulo: Landy, 2005, p. 197 – 230.

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157

esclarecimento, (iii) de assistência das partes e (iv) de consulta a elas dos pontos fáticos

e jurídicos que cercam a demanda, já tratados.

O dever de esclarecimento consistente no dever de prestar informações

sobre os ônus que lhes incumbem, convidando-as, por exemplo, a esclarecer e a

complementar suas declarações acerca dos fatos, ou chamando-lhes a atenção para a

necessidade de comprovar alegações”337

.

O dever de prevenção, corolário do máximo aproveitamento e da primazia

do mérito, consiste no dever do magistrado em apontar as deficiências das postulações

das partes, para que possam ser supridas, concretizado no dever de convite ao

aperfeiçoamento pelas partes dos seus articulados338

.

Já o dever de assistência, também chamado dever de auxílio constitui no

dever do juiz de providenciar, sempre que possível, eventuais dificuldades que impeçam

o exercício de direitos ou faculdades ou o cumprimento de ônus ou deveres

processuais339

.

Por fim, o dever de consulta impõe o fomento ao debate preventivo e a

submissão de todos os fundamentos jurídicos que sustentam a decisão (ratio decidendi)

da futura decisão ao contraditório, assegurando-se a igualdade de chances e a igualdade

de armas.

Evidentemente tais deveres do magistrado influenciam a comunidade de

trabalho, e consequentemente, o entendimento do contraditório como garantia de

influência e de não surpresa que se desenvolve nos deveres de informação do juiz e nos

direitos de manifestação e consideração para partes340

.

O dever de informação, também chamado dever de orientação, advirta-se

desde já, não se trata de assistencialismo do magistrado, mas sim de trazer às partes

observações acerca de pontos de fato e de direito, sejam eles materiais ou processuais,

relevantes para a causa.

Por sua vez, o direito de manifestação da parte se liga à garantia de

fundamentação ao exigir do juiz a análise de fatos e fundamentos discutidos

337

BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Temas de direito processual. São Paulo: Saraiva, 1984, p. 52. 338

DIDIER JR., Fredie. Fundamentos do princípio da cooperação no direito processual civil português,

op. cit, p. 20/21. 339

DIDIER JR., Fredie. Fundamentos do princípio da cooperação no direito processual civil português,

op.cit., p. 20/21. 340

JÚNIOR, Humberto Theodoro; Nunes, DIERLE; BAHIA, Alexandre Melo Franco; PEDRON,

FLAVIO. Novo CPC: fundamentos e sistematização. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2015, p. 83

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158

previamente no processo, manifestação esta que deve se dar antes da decisão, salvo

hipóteses de urgência.

E do outro lado, o dever do juiz de levar em consideração os argumentos das

partes341

. Nessa tendência, o juiz não pode mais decidir, em grau algum de jurisdição,

com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de

se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício seria

passível de nulidade por ofensa ao contraditório.

Aliás, Dierle Nunes denuncia precedente da Corte de Cassação da Itália, (n.

14637,2002), em que se decidiu que “é nula a sentença que se funda sobre uma questão

conhecida de ofício e não submetida pelo juiz ao contraditório das partes”342

.

Esse é o modelo cooperativo que entende Dierle Nunes tenha sido adotado

pelo Novo Código de Processo Civil Brasileiro, que, de maneira inovadora quanto ao

seu texto prevê o já expresso artigo 6º estabelecendo que “Todos os sujeitos do processo

devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito

justa e efetiva”.

3.3. A cooperação processual e o garantismo processual

Primeiramente, é importante mencionar que os garantistas estudados não

concebem um modelo cooperativo de processo. Entendem que se cooperação é trabalho

em comum para um mesmo objetivo (cooperar semanticamente como ajudar), não é

possível adotá-la ao considerar que processo é luta.

Contudo, viu-se que a cooperação é repisada por alguns autores brasileiros

com uma semântica distinta da proposta por eles. Para estes autores, cooperar não

significa ajudar a outra parte no pleito desta contrariando os seus próprios interesses

como se estivessem em um processo civil dos ursinhos carinhosos ou no caminho de um

arco-íris processual: “um processo efetivo e célere e capaz de produzir resultados

justos”343

. Essa seria uma tese sem nexo! Afinal, só há “processo (em jurisdição

contenciosa) porque há crise, conflito de interesses qualificado por uma pretensão

resistida e levado à resolução pelo Poder Judiciário. Cada sujeito assume nele uma

341

JÚNIOR, Humberto Theodoro; Nunes, DIERLE; BAHIA, Alexandre Melo Franco; PEDRON,

FLAVIO. Novo CPC: fundamentos e sistematização. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2015, p. 83 342

NUNES, Dierle. Processo jurisdicional democrático, op.cit., p. 232. 343

MACHADO, Marcelo Pacheco. Disponível em: http://jota.info/novo-cpc-principio-da-cooperacao-e-

processo-civil-do-arco-%C2%ADiris. Acesso em: 12.05.2015.

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159

diferente função e representa um diferente interesse”344

. É legítimo que o litigante não

busque uma decisão justa ou tampouco uma jurisdição célere, pois o próprio Estatuto da

Advocacia estabelece em seu artigo 2º, §2º que o objetivo direto da advocacia é a

postulação de uma decisão favorável ao seu constituinte345

.

Para Marcelo Pacheco Machado, cooperação “configura apenas um limite

imposto ao exercício dos direitos processuais, especialmente, ao contraditório. Limite

que é, no mínimo, tão velho quanto a Constituição Federal de 1988”346

.

Para Leonardo Carneiro da Cunha, a cooperação impõe deveres para todos

“os intervenientes processuais, a fim de que se produza, no âmbito do processo civil,

uma ‘eticização’ semelhante à que já se obteve no direito material, com a consagração

de cláusulas gerais como as da boa fé e do abuso de direito”347

.

Cooperação, nesse sentido, designaria o fomento ao diálogo, à participação,

ao debate instrutório, à formulação de teses fundamentadas contra as afirmações e

provas trazidas e contra seus interesses, de maneira que as partes colaborem com uma

efetiva participação na defesa de seus interesses com as melhores armas que tiverem em

prol da construção da decisão influenciando a convicção do julgador, que, por sua vez,

utilizará seus poderes para fomentar o debate entre as partes e a participação destas, sem

condutas autoritárias que empurram uma conciliação ou restrinjam o contraditório.

Até porque, como se sabe, no ambiente processual prevalece os interesses

não cooperativos de todos os sujeitos processuais. O juiz mantém-se concentrado em

metas impostas que envolvem o número de seus julgados, enquanto as partes se atêm ao

agir estratégico com a finalidade de obtenção de êxito.

Assim sendo, os autores repisam que a Lei 13.015/2015 acredita na

cooperação como serviço ao diálogo por seu viés democrático no qual todas as esferas

de exercício do poder encontrariam um controle compartilhado, uma blindagem de mão

dupla, em um espaço de problematização incessante, que impediria o subjetivismo e o

autoritarismo judicial, de um lado, e a má-fé e a procrastinação por parte do advogado,

do outro.

Mas ainda assim, o garantismo processual não concordaria com tal modelo

cooperativo porque, entre muitas outras discordâncias, a que mais salta os olhos é a

344

Ibidem. 345

Ibidem. 346

Ibidem. 347

Disponível em: <http://www.leonardocarneirodacunha.com.br/artigos/o-principio-contraditorio-e-a-

cooperacao-no-processo/>. Acesso em: 19/07/2015.

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160

concepção do contraditório na perspectiva do modelo cooperativo apresentado, seja

pelos deveres que reflete ao magistrado, os deveres de prevenção, auxílio, consulta e

esclarecimento, seja ainda porque inclui o julgador no âmbito do contraditório.

Note-se que a doutrina brasileira também não é pacífica no que toca o

contraditório, como já exposto. Na redação do Projeto de Lei da Câmara 8046/2010, o

dispositivo que consagra a cooperação era diferente e nele constava que “as partes têm

direito de participar ativamente do processo, cooperando com o juiz”. Mas a alteração

de redação induz que de mera condição de produção da sentença pelo juiz ou de aspecto

formal do processo, ou seja, pela redação sancionada deve ser afastada a compreensão

de que o dispositivo voltou-se ao juiz no sentido de garantir-lhe subsídios para que

profira decisões. E assim, a cooperação instituída inclui: (i) a cooperação das partes para

com o juiz, (ii) do juiz para com as partes, (ii) e das partes entre si, ou seja, colaboração

entre todos os sujeitos processuais.

Alertam, contudo, não se tratar de solidariedade entre as partes nem andar

de mãos dadas como se acreditássemos ingenuamente, sob uma visão romântica, que as

pessoas querem utopicamente chegar ao resultado conforme o ordenamento em clara

renúncia aos seus interesses. Não se trataria de fingir serem os sujeitos processuais bons

amigos, como se o processo fosse um alegre passeio no jardim na companhia do juiz.

Também não estão os cooperatistas, alegam, a defender correntes

doutrinárias que assumem a cooperação partindo da premissa estatalista, socializante, de

submissão das partes ao juiz. Há na doutrina nacional, como visto no presente estudo,

que apregoam outro viés semântico à cooperação que não o perfil comparticipativo e de

processo democrático.

A cooperação no Novo Código de Processo Civil tratar-se-ia, em realidade,

de uma releitura democrática normativa da cooperação sob um perfil comparticipativo,

que leva a sério o contraditório como influência e não surpresa, de modo a garantir a

influência de todos na formação e satisfação das decisões e inibir aqueles atos

praticados em má-fé processual348

. E assim, prega que mesmo com papéis distintos,

todos cooperam para o resultado final, na medida em que colaboram para construir a

decisão vez que esta cooperação é lida por um contraditório como garantia de influência

e não surpresa!

348

JÚNIOR, Humberto Theodoro; Nunes, DIERLE; BAHIA, Alexandre Melo Franco; PEDRON,

FLAVIO. Novo CPC : fundamentos e sistematização, op.cit., p. 60.

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161

Ocorre que tal entendimento não corrobora com a visão garantista do

processo. A título exemplificativo, o poder de esclarecimento do juiz, nos processos

alemão e italiano, cumpre dupla função: a de facilitar a obtenção de elementos de

convencimento e a de proporcionar uma assistência à parte débil, eventualmente

suprindo uma defesa eficiente num viés assistencial para a obtenção de melhor defesa

para as razões do litigante débil, cumprindo a técnica do processo com finalidade social.

Nota-se uma técnica do processo com finalidade social promovendo a paridade real de

armas. O garantismo é contra esta concepção. Para eles, os cooperatistas estão, em

realidade, escondendo aspectos do processo social, ainda que sem intenção.

Ademais, o Novo Código de Processo Civil traz um conjunto que assenta o

controle das ações dos sujeitos processuais e um fomento ao diálogo, como a

fundamentação estruturada das decisões, ressaltando que não se considera

fundamentada a decisão que judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que (i)

se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua

relação com a causa ou a questão decidida; (ii) empregar conceitos jurídicos

indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso; (iii) invocar

motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão; (iv) não enfrentar todos os

argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada

pelo julgador; (v) se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem

identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento

se ajusta àqueles fundamentos; ou (vi) deixar de seguir enunciado de súmula,

jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de

distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento.

Outro fundamento muito importante para assumirmos essa afirmação é a

“retirada” do livre convencimento349

. Parece melhor, a retirada do mero convencimento

judicial. Afinal, como visto e com base em Ferrajoli, o princípio da livre convicção não

é princípio da mera convicção, mas simplesmente um princípio que leva à insuficiência

da prova legal como critério único de formação da decisão a partir dos dados que se

entende como comprovados. A livre convicção entendida como mera convicção produz

sim autoritarismos, subjetivismos, decisionismos, solipsismos e todos os ismos que

possam retratar a decisão como escolha do julgador desgarrada da lei porque agarrada

somente num ideal individual de justiça.

349

STRECK, Lenio. Por que agora apostar no projeto do novo CPC!. Disponível em:

http://www.conjur.com.br/2013-out-21/lenio-streck-agora-apostar-projeto-cpc>. Acesso em: 21/09/2013.

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É nesse sentido que alivia Lenio Streck:

Conseguir romper com o mito de “Oskar Bülow” é um salto em direção ao

futuro. Livrar o processo civil das amarras do instrumentalismo presente em

Carnelutti, Couture, Liebman etc, é olhar para o futuro. Mais do que isto, é

entender o papel da história e das possibilidades de deixar para trás aquilo

que foi importante, mas que se perdeu em face das alterações paradigmáticas

que se produziram na filosofia e no direito. Se Bülow e Klein apostaram, no

século XIX, no protagonismo judicial para a recepção do direito romano, isto

não quer dizer que isso que propalou — porque o primeiro era adepto do

Movimento do Direito Livre — pode(ria) ainda hoje ser útil em tempos de

fortalecimento da autonomia do direito e da produção democrática da

legislação. Isto é, efetivamente, alvissareiro.350

Nesse contexto de discussões e incertezas trazidas pelo Novo Código de

Processo Civil, especialmente com os dispositivos cooperativos/comparticipativos,

importante será revisitar assuntos que constituem o núcleo duro do processo. Note-se

também que o Novo Código de Processo Civil inova, otimiza e transforma dispositivos

cooperativos/comparticipativos do regime processual de 1973 que caminha para

revogação.

Um exemplo é a emenda da petição (emendatio libeli), como permissão de

correção da parte autora a corrigir defeito expressamente apontado pelo juiz

previamente ao indeferimento da exordial. Decorre da observância do dever de

prevenção sob pena de nulidade da decisão em consideração ao máximo aproveitamento

da atividade processual.

Por sua vez, conforme previsto no novo Código em seu artigo 321, o

magistrado terá que ir além ao “indicar com precisão o que deve ser corrigido ou

completado”. Ademais, somente na hipótese de descumprimento o magistrado

indeferirá o libelo.

Para o garantismo processual, a imposição ao juiz do dever de apontar os

defeitos ou omissões da petição inicial é revestido de caráter inqusitorial. O garantismo

processual entende que se um dos requisitos intrínsecos para a apresentação da demanda

é que o conteúdo da demanda seja eficiente, o cumprimento deste requisito é de capital

importância pois ele viabiliza a defesa do demandado351

.

Este tema não se relaciona, observe-se, com a correção da própria decisão

pós recurso, que é admitida pelo garantismo processual como dever do juiz, pois

350

Ibidem. 351

VELLOSO, Alvarado. Accion procesal, pretensión y demanda, acumulación y eventualidad. El

derecho de defensa em juicio. Del actor. Paraguay, 2014, p.121.

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“parece claro que resulta absurda la elevación de la causa al superior si el propio juez

puede suplir la omisión, aclarar el concepto oscuro, o corregir el error material”352

.

Essa doutrina entende que para que cada litígio possa cumprir com a

garantia constitucional generalizada universalmente que assegura um devido processo

como meio para chegar a uma solução heterocompositiva legítima e eventualmente

justa, faz-se necessário que desde o próprio escrito da demanda se possibilite um

adequado e pleno contraditório dentro do marco de regras de debate que devem

respeita-se por todos os sujeitos do processo. Para que o demandado possa efetivamente

se defender, é preciso que o autor exponha inequivocamente o conteúdo de sua

pretensão: 1) quem pretende, 2) de quem se pretende, 3) o quê se pretende (com as

exceções quando isso não é possível, claro) e 4) o porquê se pretende (sujeitos, objeto e

causa da pretensão). É para isso que a leis processuais prevêem os requisitos gerais

(intrínsecos e extrínsecos) e os requisitos específicos da demanda.

Caso tais requisitos não sejam respeitados, o demandado podem apresentar

uma exceção de defeito legal no modo de propor a demanda (excepción Del defecto

legal en el modo de proponer la demanda), ressaltando que esta exceção é espécie do

gênero exceções cujo objeto é paralisar o processo, alegando fato impeditivo da

continuação do processo. No caso dessas exceções, algumas são solucionáveis pelo

autor no mesmo procedimento e este pode prosseguir, enquanto outras exigem o arquivo

do procedimento autuado e o posterior ingresso do autor com nova demanda que se

adeque aos pressupostos que regulam sua utilidade.353

Note a mensagem do garantismo processual: se o processo se dá entre as

partes, então deixe que elas resolvam suas questões. Se a parte não apresentou a

exceção, é porque não viu prejuízo ao seu direito de defesa. Se a viu, apresentará. O que

não pode é o magistrado imiscuir-se em problema que a parte, que é quem se defende,

não entendeu prejudica. Se o magistrado indicar com precisão o que deve ser corrigido

ou completado na petição, sem a parte assim fazer, além de ultrapassar o seu papel de

julgador, (i) ou estará auxiliando uma das partes, caso sua determinação tenha aclarado

os pontos da petição, (ii) ou suas determinações resultam de decisionismo e relativismo,

pois estarão conforme suas próprias convicções, suas suspeitas íntimas, sem qualquer

respaldo no direito de defesa de nenhuma das partes.

352

VELLOSO, Adolfo Alvarado. Sistema Procesal. Garantía de La libertad. Tomo II. Buenos Aires:

Rubinzal – Culzoni Editores, 2009, p. 421. 353

VELLOSO, Alvarado. Contestación y excepción. El derecho de defensa Del demandado civil y del reo

penal. Paraguay, 2014, p.67.

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164

Exemplificando, um dos requisitos da demanda diz respeito à exposição

fática, devendo estar ser feita com clareza. Mas poderia o magistrado determinar que o

peticionante indique este ou aquele fato com maior precisão? Será que a instrução

probatória, visando confirmar as alegações das partes, já não os explicaria? Se não os

explicar, o fato não restará confirmado, devendo o magistrado levar em conta quando da

sentença.

Outro exemplo é o dispositivo 342 do Código Buzaid (não muito utilizado

na prática) e que constitui mecanismo para a cognição ao prever a possibilidade do juiz,

de ofício, em qualquer estado do processo determinar o comparecimento pessoal das

partes, a fim de interrogá-las sobre os fatos da causa.

E a conduta oficiosa, já se abordou aqui, deve ater-se às propensões

cognitivas (cognitive biases – estudo apresentado por Eduardo Costa) e a eventual

desestímulo de debate entre as próprias partes. Aliás, o estímulo da conduta judicial

oficiosa sem as preocupações que isso pode causar no sistema pode demonstrar que

este, em realidade, persiste em premissas socializadoras.

Como viu-se no estudo publicado de Mirjan Damaska, foi apontado, entre

outras observações, que muito além de qualquer texto, está a mentalidade de quem o

aplica, e que a justiça civil da Europa continental permitia ao juiz ampliar o conjunto

probatório, mas pragmaticamente não trouxe grandes efeitos inquisitoriais.

Basicamente, a ausência de um comportamento instrutório ativo do juiz não foi

compensado por uma conduta probatória ativa pelas partes ou seus advogados, pois os

advogados se baseavam basicamente nas informações dadas por seus clientes, não

possuíam grande contato com as testemunhas e tampouco conduziam numerosas

investigações fáticas. Afirmou Damaska que no Common law a produção de provas é

de controle das partes ou de seus advogados com a possibilidade de uma compelir a

outra a produzir prova contra si mesma, pois o processo liberal não reconhecia tal

conduta como contrário à autonomia dos litigantes.

Mas na hipótese trazida, qual seja, a possibilidade do juiz, em qualquer

estado do processo, determinar, de ofício, o comparecimento pessoal das partes, a fim

de interrogá-las sobre os fatos da causa, além das considerações já feitas a respeito da

não admissão da determinação de produção probatória oficiosa na teoria processual

garantista, esta afirmaria que o juiz que age pactuado com tal dispositivo está em busca

da verdade real sobre os fato submetidos a seu julgamento para fazer a Justiça,

comprometendo sua imparcialidade.

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Veja-se: o julgador justiceiro, com toda honestidade de espírito, faz tudo o

que está a seu alcance para chegar à verdade real dos fatos submetidos a julgamento. E

depois de árdua busca, acreditar ter alcançado a verdade, com base em que emitirá sua

decisão.

O que está por trás do juiz que determina o comparecimento pessoal das

partes para que estas expliquem fatos da causa? Está a busca da verdade sobre o que

“realmente” aconteceu até certeza de como os fatos ocorreram.

O Código de Processo de 2015, aliás, contribui, infelizmente, para tal

pensamento quando se refere à prova como comprovação da verdade dos fatos, como

por exemplo, o artigo 319, IV ao prever que “A petição inicial indicará (...): IV - as

provas com que o autor pretende demonstrar a verdade dos fatos alegados”), o artigo

369 ao estabelecer que “Todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos,

ainda que não especificados neste Código, são hábeis para provar a verdade dos fatos,

em que se funda a ação ou a defesa” e o artigo 378 “Ninguém se exime do dever de

colaborar com o Poder Judiciário para o descobrimento da verdade”.

Se todas as instâncias buscam a verdade, como justificar o fato da verdade

do juiz da primeira instância não coincidir com a verdade do tribunal de 2 instância, e

por aí em diante?

E veja: se a outra parte podia, por meio de exceções e da própria instrução

probatória, apontar a deficiente explicação acerca dos fatos, pelo que resta prejudicado

seu direito de defesa, ou por meio da etapa instrutória apresentar provas que contrariem

a versão da outra parte, o juiz só estará a agir para, em realidade, pactuar com seu

sentimento interno de justiça e que o faz sentir-se responsável pelo destino que tomarão

as partes após sua declaração definitiva.

Mas do dispositivo, no Novo Código, foi retirada a expressão “de ofício”354

,

preservando-se o direito de não produzir prova contra si355

, em coerência, aliás, com a

previsão legal pela qual não se poderá mais decidir, em grau algum de jurisdição, com

base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se

manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício. Ou seja, o

seu dever-poder de decidir é limitado pela vedação às “decisões surpresa” ou “juízos de

354

Art. 139. O juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código, incumbindo-lhe: VIII -

determinar, a qualquer tempo, o comparecimento pessoal das partes, para inquiri-las sobre os fatos da

causa, hipótese em que não incidirá a pena de confesso;. 355

Art. 379. Preservado o direito de não produzir prova contra si própria, incumbe à parte: I – comparecer

em juízo, respondendo ao que lhe for interrogado; II – colaborar com o juízo na realização de inspeção

judicial que for considerada necessária; III – praticar o ato que lhe for determinado.

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terceira via”, os quais, em muitos casos, exatamente porque não ouvidas as partes,

podem ignorar aspectos relevantes da relação litigiosa (direito material e processo).

Afinal, no NCPC, o contraditório é concebido como desenvolvimento nos

deveres de informação do juiz e nos direitos de manifestação e consideração para

partes356

, como explicado no tópico anterior.

Sob a perspectiva garantista, os direitos de manifestação e consideração são

reflexos, em realidade, da necessidade de motivação de toda e qualquer decisão, muito

importante para o garantismo em que pese não trabalharem analiticamente com uma

teoria da decisão. E o direito de informação do juiz seria reflexo do assistencialismo do

magistrado ao ter que trazer às partes observações acerca de pontos de fato e de direito,

sejam eles materiais ou processuais, relevantes para a causa.

Lembre-se: os cooperatistas entendem que este dispositivo decorre do

dever-poder de esclarecimento. Ocorre que nos processos alemão e italiano, o poder de

esclarecimento do juiz cumpre dupla função: a de facilitar a obtenção de elementos de

convencimento e a de proporcionar uma assistência à parte débil, eventualmente

suprindo uma defesa eficiente num viés assistencial para a obtenção de melhor defesa

para as razões do litigante débil, cumprindo a técnica do processo com finalidade social.

Uma técnica do processo com finalidade social promovendo a paridade real de armas.

Veja-se, inclusive, que com Miguel Teixeira de Sousa, o princípio da

cooperação constitui linha do processo civil não-liberal de cunho social, destinado a

transformar o processo em uma comunidade de trabalho357

.

No que tange a prova, William Santos Ferreira relatou em palestra no

tocante aos deveres-poderes instrutórios do juiz sobre o artigo 370358

, vez que houve a

passagem da possibilidade de indeferimento das diligências inúteis ou meramente

protelatórias para um parágrafo único, não mantendo mais no caput do dispositivo como

é feito pelo artigo 130 do Código Buzaid, o que indicaria à excepcionalidade da

possibilidade de indeferimento.

356

JÚNIOR, Humberto Theodoro; Nunes, DIERLE; BAHIA, Alexandre Melo Franco; PEDRON,

FLAVIO. Novo CPC: fundamentos e sistematização, op.cit., p. 83 357

SOUSA, Miguel Teixeira de. Estudos sobre o novo processo civil, op.cit., p. 62. 358

Art. 370. Caberá ao juiz, de ofício ou a requerimento da parte, determinar as provas necessárias ao

julgamento do mérito. Parágrafo único. O juiz indeferirá, em decisão fundamentada, as diligências inúteis

ou meramente protelatórias.

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167

Observa o autor que o artigo 369359

subjetivou o direito à prova ao prever

que “as partes têm o direito de empregar todos os meios legais, bem como os

moralmente legítimos” (...), não mantendo a redação do artigo 322360

do Código

Processual de 1973 no sentido de que “todos têm direito”, induzindo à contenção dos

poderes instrutórios do juiz, ou seja, da excepcionalidade da iniciativa probatória do

juiz, além da configuração do autônomo direito à prova.

Sob um viés garantista e acusatório, já viu-se que o controle da gestão da

prova é das partes, de maneira que os poderes instrutórios do juiz já são relegados

intrinsecamente na teoria a uma contenção.

Aliás, no que tange a prova pericial, João Batista Lopes defende mesmo na

omissão das partes, caberá ao juiz determinar sua produção sempre que a complexidade

da matéria fática o exigir. Por exemplo, suponha-se que para demonstrar o cumprimento

de obrigações contratuais, exiba o réu, na contestação, numerosos demonstrativos

contábeis cuja compreensão escape ao conhecimento do juiz. O autor conclui que

“Nessa hipótese, mesmo que o réu não requeira perícia contábil, caberá ao juiz

determiná-la para perfeito esclarecimento dos pontos controversos”, e assim, para ele,

poder-se-ia dizer que “a prova pericial deve ser produzida sempre que se mostrar

necessária, haja ou não sido requerida pelas partes”361

.

Contudo, “garantisticamente”, se há pontos controversos, devem as partes

confirmá-los consoante seus interesses, afinal, o sistema processual civil concebe o ônus

da prova com relação às alegações das partes em consonância com a previsão do art.

373, I do Novo Diploma Processual (art. 333, I do CPC de 1973). Acaso não cumprido

o ônus, recairá uma situação desfavorável, no caso da prova, o não reconhecimento pelo

juiz do que alega a parte. Nesse sentido, a apresentação de documentos sem as devidas

explicações implicam na não confirmação dos fatos, e se o fato alegado não é

confirmado/provado, o juiz terá que assim considerar os fatos quando se suas

conclusões na sentença. Afinal, fazer alegações e confirmá-las é tarefa das partes, não

do julgador.

359

Art. 369. As partes têm o direito de empregar todos os meios legais, bem como os moralmente

legítimos, ainda que não especificados neste Código, para provar a verdade dos fatos em que se funda o

pedido ou a defesa e influir eficazmente na convicção do juiz. 360

Art. 332. Todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, ainda que não especificados

neste Código, são hábeis para provar a verdade dos fatos, em que se funda a ação ou a defesa. 361

BATISTA LOPES, João. Iniciativa instrutória do juiz e os arts. 130 e 333 do CPC. São Paulo: Revista

de Processo, vol. 716, Jun 1995, p. 41 – 47.

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168

No que tange à postura dos sujeitos processuais, o princípio da cooperação

impôs condutas362

. Além da imposição ao juiz em ouvir as partes antes de decidir

oficiosamente sobre determinadas matérias, a doutrina traz como exemplo a advertência

sobre a possibilidade de revelia no mandado citatório, dando ciência sobre o prazo de

defesa e explicando a consequência no caso concreto sobre a ausência de resposta e

participação no processo, bem como eventual informação acerca da Defensoria Pública

e de como dela se utilizar, não por informações genéricas, mas com dados específicos.

Isso se daria porque o leigo, em especial o hipossuficiente, desconhece o

significado de revelia e não compreende a expressão “reputar-se-ão verdadeiros os fatos

alegados na petição inicial”, de maneira que permaneceria inerte.

O garantismo apenas dirá que há sempre uma série de erros por parte do

jurisdicionado que se mantém inerte e não se interessa em participar da causa

acreditando que nada vai lhe acontecer, margeando a lei.

Fato é que a sorte do processo civil brasileiro é uma incógnita! Sabe-se que

louváveis esforços não garantem, pelo menos de modo seguro, um diagnóstico prévio

acerca das reais consequências do novo sistema.

É evidente que nem todas as opções do Novo Código de Processo Civil

atrairão a concordância geral, até porque, críticas foram, são e serão continuamente

apresentadas, como aquelas resultantes da constatação de inúmeras precisões técnicas

que não correspondem ao atual estágio do desenvolvimento teórico da ciência jurídica

brasileira363

.

Não se pode é deixar de reconhecer que as críticas e os elogios mostram que

a Lei 13.0105/2015 é resultado de um incessante debate democrático com participação

das diversas classes da comunidade jurídica, como juízes, advogados, políticos e

professores.

362

MACHADO, Marcelo Pacheco. Disponível em: http://jota.info/novo-cpc-principio-da-cooperacao-e-

processo-civil-do-arco-%C2%ADiris. Acesso em: 12.05.2015. 363

DIDIER JR., FREDIE. A teoria dos princípios e o projeto de novo CPC. In: ROSSI, Fernando;

RAMOS, Glauco Gumerato; GUEDES, Jefferson; DELFINO, Lúcio. MOURÃO, Luiz Eduardo. (Coord.)

O futuro do processo civil no Brasil: Uma análise crítica do Novo CPC. Belo Horizonte: Editora Fórum,

2011, p. 699.

Page 169: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP ... Lobão Torres.pdfem 1989, de “Diritto e Ragione: Teoria del Garantismo Penale”. Foi com a tradução desta obra para

169

4. APORTES HERMENÊUTICOS DIALOGANDO COM O GARANTISMO

E SUAS CRÍTICAS AO ATUAL ESTÁGIO DO PROCESSO CIVIL

BRASILEIRO

Como mencionado, Ferrajoli reconhece que uma teoria da decisão como as

trabalhadas por Lenio Streck e defendida por André Karam Trindade no livro

“Garantismo, hermenêutica e (neo)constitucionalismo: um debate com Luigi Ferrajoli.”

é opção para reduzir o arbítrio e reforçar a racionalidade das decisões. Por isso, fez-se

necessário abordar o tema no presente trabalho, mesmo reconhecendo que iminentes

processualistas brasileiros não trabalham sob os termos da Hermenêutica Filosófica.

Mesmo ciente de que esta exposição pode não refletir a grandiosidade dos

ensinamentos de tais autores, decidiu-se por expô-la porque é debate que, no Brasil,

circunda o garantismo e que pode engrandecer o debate por abordar tema tão importante

como a interpretação e os prejuízos do intérprete.

4.1. Da hermenêutica clássica à filosófica

Na hermenêutica jurídica clássica, a interpretação se dá segundo uma

relação sujeito-objeto, na qual o conjunto normativo é tido como algo totalmente

despido de sentido e que irá receber, da nossa compreensão subjetiva, determinada

significação, como se essa significação fosse determinada pelo sujeito.

Assim, a linguagem é um meio pelo qual o sujeito conhece o sentido dos

textos. Veja: o intérprete só revela o sentido do texto. A interpretação é ato de

conhecimento “e toda preocupação está voltada para que seja garantida a objetividade

da interpretação ou um caráter de neutralidade do intérprete em relação à lei (ou à

vontade do legislador)”364

.

O sujeito se põe frente ao objeto, passivamente, para apreender a realidade. E para

esta apreensão faz-se necessários métodos que condicionam a atividade do sujeito

perante o texto. Veja-se: é inconcebível que o sujeito venha a ocupar os dois polos da

relação (esquema sujeito-sujeito). Concebe-se, na hermenêutica clássica (i) a pretensão

de totalidade de apreensão de sentidos do texto e (ii) a possibilidade de métodos que

garantam a objetividade do sentido do texto atribuído por seu autor, como os

364

ABBOUD, Georges. Introdução à teoria e à filosofia do direito, op. cit., .p.395.

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conhecidos nos primeiros anos da graduação, o gramatical, lógico, sistemático, histórico

e teleológico365

( que preconiza que a interpretação deve ser realizada tendo em vista a

“ratio legis” ou “intento legis”, isto é, conforme a intenção da lei, buscando-se entender

a finalidade para a qual a norma foi editada, isto é, a razão de ser da norma).

Perceba-se: há na hermenêutica jurídica clássica uma separação entre

interpretação e aplicação do direito, o que leva ao entendimento de que a interpretação é

ato de conhecimento, do qual (se espera que) o sujeito reproduzirá o sentido exato

extraído do texto legal.

Veja-se que no atual sistema jurídico brasileiro a Lei de Introdução às

Normas de Direito Brasileiro consagra em seu art.5o,, a aplicação da lei pelo juiz

atendendo aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum. Ou seja,

Nesse sentido, o intérprete primeiro interpreta para só depois compreender o sentido do

texto submetido e assim o aplicar.

Ocorre que, a própria noção de círculo hermenêutico (no interior do qual o

intérprete fala e diz o ser na medida em que o ser se diz a ele, e onde a compreensão e

explicitação do ser já exige uma pré-compreensão) já incompatibiliza a autonomia de

tais métodos de interpretação e/ou seu desenvolvimento em partes e/ou fases. Se não

existe um método dos métodos, será arbitrária e, portanto, autoritária e voluntarista o

uso de um deles.

E além disso, conheva-se

Afinal, toda interpretação sempre será gramatical (porque, à evidência, deve

partir de um texto jurídico); será inexoravelmente teleológica (seria viável

pensar em uma interpretação que não fosse voltada à finalidade da lei, com a

conseqüente violação à firme determinação do art. 5º da Lei de Introdução ao

Código Civil, que determina que o juiz, na aplicação da lei, atenderá aos fins

sociais a que ela se destina e às exigências do bem comum?); será,

obrigatoriamente, sistemática (porque é impossível conceber que um texto

normativo represente a si mesmo, sem se relacionar com o todo (...)).

. A hermenêutica jurídica clássica concebe a interpretação da Constituição de

uma forma distinta daquela atinente aos preceitos infraconstitucionais. Lenio Streck é

contra por entender haver aqui uma objetificação da Constituição, porque não seria

possível falar de uma hermenêutica especificamente constitucional já ela não pode ser

regionalizada pós-giro-linguístico ou reviravolta linguística quando a filosofia percebeu

a impossibilidade de se chegar diretamente aos objetos.

365

“Posteriormente, Jhering – para muito o fundador intelectual da chamada jurisprudência dos

interesses – introduz o método teleológico, tão caro à instrumentalidade do processo” Ibidem, p. 394.

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Aliás, Lenio Streck remete ainda a um giro ontológico-linguístico, pois além

do problema da linguagem refere-se ao deslocamento da questão ontológica para um

plano concreto e fático legado por Heidegger à filosofia no âmbito da hermenêutica

filosófica. Isto é, o giro ontológico supera a ontologia da coisa pela ontologia da

compreensão a partir do deslocamento do ser humano para o interior da problemática

ontológica366

. O acesso se dá pela linguagem, já que “temos acesso às coisas e

chegamos a conhecê-las porque temos palavras para mencioná-las”367

.

Aluno de Heidegger, Han-Georg Gadamer atravessou todo o século XX

(1900-2002) e teve por objetivo demonstrar o estado da arte que se encontrava a

hermenêutica neste século, propondo, então, um modelo de hermenêutica filosófica. O

autor critica a crença na racionalidade, a aposta no método como forma de chegar á

verdade, a radical reação iluminista à tradição e aos preconceitos (concebidos sempre

negativamente, à separação entre sujeito e objeto (que é conhecido pelo sujeito

cognoscente), concebendo a compreensão a partir dos juízo que já estão historicamente

no próprio intérprete, jamais afastando-o, como já mencionado, do próprio intérprete,

mergulhado que sempre está na tradição e na moralidade.

Como foi aluno de Martin Heidegger e, quando da elaboração de seu

modelo, sofreu enorme influência de seu professor, especificamente da fenomenologia

hermenêutica gadameriana, tanto que em sua obra “Verdade e Método” destina um item

sobre ela analisando a descoberta heideggeriana sobre a estrutura prévia da

compreensão e apresenta a descrição heideggeriana do círculo hermenêutico. Para

Gadamer, é em consideração à historicidade e à temporalidade que Heidegger constrói a

estrutura prévia e circular da compreensão. O autor questiona a possibilidade da

compreensão independentemente do querer do sujeito ou do que este deve fazer,

analisando o que é comum a todo compreender, generalizadamente.

É que Heidegger já se preocupava com a arbitrariedade na compreensão,

como Gadamer, pois para ambos “toda interpretação correta tem que proteger-se da

366

Heidegger denominou de Metafísica a tradição anterior, apontando ter investigado o ente algo que

seria do ser, pensado o ente ao invés do ser, ou seja, relegado a um plano ôntico algo ontológico. Pontua

que a metafísica não pensou o vinculo necessário entre homem e ser (Dasein). Ela pensava a ontologia

fora do homem, pois era uma ontologia do objeto, da coisa, do ente, e não dirigia-se ao ser. Heidegger

coloca o homem dentro da ontologia (ontologia da compreensão) designando de ontologia fundamental,

que recebe a forma de uma analítica existencial, a que possibilidade todas as demais ontologias por

compreender o ente que compreende o ser e se compreende. Cf. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise. Uma

Exploração Hermenêutica da Construção do Direito. 8 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009,

Cap. 10 e 11. 367

ABBOUD, Georges. Introdução à teoria e à filosofia do direito, op. cit, p. 403.

Page 172: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP ... Lobão Torres.pdfem 1989, de “Diritto e Ragione: Teoria del Garantismo Penale”. Foi com a tradução desta obra para

172

arbitrariedade de intuições repentinas e da estreiteza dos hábitos de pensar

imperceptíveis e voltar seu olhar para ‘as coisas elas mesmas’”368

(noção

herideggeriana das coisa mesma, aparecendo em Gadamer no sentido de que a coisa já

antecipa o seu sentido, explicado anteriormente369

).

Veja: jamais se concebeu o afastamento das opiniões prévias e indevidas

como tarefa fácil. O afastamento dos mal-entendidos é claramente algo difícil. E é por

isso que Gadamer sequer aceita a possibilidade de se esquecer das opiniões prévias

pessoais, necessárias para a compreensão. O que o autor ensina é que para evitar o mal-

entendido deve-se abrir para a opinião do texto e colocá-la em conflito com as opiniões

do próprio intérprete. Isto é: a compreensão deve “elaborar os projetos corretos e

adequados às coisas, que como projetos são antecipações que só podem ser

confirmadas nas coisas”370

.

Gadamer concebe a “distância temporal” como elemento essencial de

compreensão. A distância temporal é necessária para avaliar criticamente os prejuízos

advindos da tradição e que recuperam a historicidade371

do sentido (que proporcionam a

compreensão) para que não se produza mal-entendidos.

Assim, os projetos prévios de sentido antecipados logo que se mostra um

primeiro sentido do texto é revisado na medida em que se aprofunda o sentido do texto

(círculo hermenêutico), ou seja, os sentidos produzidos pelo intérprete adquirem

validade na medida em que são compatíveis com a coisa ela mesma ou com a coisa em

si presente no texto. Se esta alteridade entre texto e intérprete se mostrar incompatível

368

GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: traços fundamentais de um hermenêutica filosófica. 7ª

ed. Tradução de Flávio Paulo Meurer. Nova revisão da tradução por Enio Paulo Giachini.

Petrópolis/Bragança Paulista: Editora Vozes e Editora Universitária São Francisco, 2014, p. 355. 369

Gadamer explica que “as coisas elas mesmas” é para os filólogos os textos com sentido que tratam, por

sua vez, de coisas: “Esse deixar-se determinar assim pela própria coisa, evidentemente, não é para o

intérprete uma decisão heroica, tomada de uma vez por todas, mas verdadeiramente a tarefa primeira,

constante e última. Pois o que importa é manter a vista atenta à coisa através de todos os seus desvios a

que se vê constantemente submetido o intérprete em virtude das ideias que lhe ocorrem.” Ibidem, p.

355/356. Note-se, então, que a coisa mesma não significa a coisa em si, até porque a hermenêutica

filosófica gadameriana não concebe a compreensão sem antecipação de sentidos, sem pré-compreensão,

de modo que um prejuízo ilegítimo só se retifica quando confrontado com outra antecipação de sentido,

não é confrontando com a coisa em si, perceba, mas com outra antecipação de sentido acerca da coisa

mesma, o texto, por exemplo: “Quem quiser compreender um texto, realiza sempre um projetar. Tão logo

apareça um primeiro sentido no texto, o intérprete prelineia um sentido do todo. Naturalmente que o

sentido somente se manifesta porque quem lê o texto lê a partir de determinadas expectativas e na

perspectiva de um sentido determinado. A compreensão do que está posto no texto consiste precisamente

na elaboração desse projeto prévio, que, obviamente, tem que ir sendo constantemente revisado com base

no que se dá conforme se avança na penetração do sentido.” Ibidem, p. 356. 370

Ibidem, p. 356. 371

A historicidade do sentido, e que não se confunde com conhecimento dos eventos do passado (historie

é diferente de Geschichte, que é a história enquanto acontecer humano), se refere ao caráter de

acontecência que reveste a própria existência humana.

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com a coisa em si, há a substituição dos sentidos atribuídos pelo intérprete por outros

mais autênticos, e, assim, sucessivamente.

Isso demonstra que a interpretação está desde sempre condicionada pelos

pré-juízos e pela pré-compreensão do intérprete decorrentes da tradição histórica na

qual ele – intérprete – está linguisticamente mergulhado. E portanto, o que guia o

intérprete hermenêuticamente são seus projetos de sentido que emanam do confronto de

seus pré-juízos/pré-compreensão com o texto. Não são métodos.

E então, como ensina Georges Abboud:

Com Heidegger e Gadamer, então, a hermenêutica deixa de ser

normativa/metodológica, constituída a partir de metafísicos esquemas

dedutivos-subsuntivos em que o objeto é construído pelo cogito ou refletido

na consciência; e passa a ser filosófica, na medida em que está estruturada na

antecipação de sentido presente na base do círculo hermenêutico acima

descrito. Desta forma, o caráter da interpretação será sempre produtivo. É

impossível reproduzir um sentido. A atividade criativa/produtiva do

intérprete no trabalho hermenêutico é parte inexorável do sentido da

compreensão e de sua estrutura prévia.372

Veja-se a hermenêutica jurídica de cunho produtivo em que a interpretação

da lei é uma tarefa eminentemente criativa. Com essas considerações a respeito da

questão da pré-compreensão e da antecipação de sentido, conclui-se que a hermenêutica

não pode ser método, mas sim filosofia. A hermenêutica com o objetivo de esclarecer as

condições o as quais surge a compreensão, condições que não se buscam no método,

mas dadas pelos preconceitos transmitidos pela tradição, diferentemente do que sugere o

garantismo que se baseia na crença de que o homem deveria afastar-se de suas

concepções prévias e usar criteriosamente a razão para atingir a verdade.

Com Gadamer:

(...) é certo que não existe compreensão que seja livre de todo preconceito,

por mais que a vontade do nosso conhecimento tenha de estar sempre

dirigida, no sentido de escapar de nossos preconceitos. No conjunto desta

investigação evidencia-se que, para garantir a verdade, não basta o gênero de

certeza, que o uso dos métodos científicos proporciona. Isso vale

especialmente para as ciências do espírito, mas não significa, de modo algum,

uma diminuição de sua cientificidade, mas, antes, a legitimação da pretensão

de um significado humano especial, que elas vêm reivindicando desde

antigamente. O fato de que, em seu conhecimento, opere também o ser

próprio daquele que conhece, designa certamente o limite do método(...)373

Para Gadamer, a aplicação (applicatio) e interpretação se dão no mesmo

processo. A interpretação passa a ser uma atividade criativa de atribuição de sentido,

372

ABBOUD, Georges. Introdução à teoria e à filosofia do Direito, op. cit., p. 422 373

GADAMER, Hans-George. Verdade e método I. op. cit., p. 709.

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não de reprodução do sentido unívoco presente no texto normativo, ou seja, rompe com

a interpretação reprodutiva.

Obviamente que essa contribuição não pode advir de um ato de vontade

subjetiva do intérprete, problema que é tematizado no âmbito de uma teoria da decisão.

Três autores procuram solucionar esta questão e são extremamente

debatidos na doutirna nacional, a teoria procedimental da decisão de Robert Alexy,

Ronald Dworkin e o princípio do direito como integridade, e a teoria de decisão de

Lenio Streck, que defende o direito fundamental da resposta correta ou adequada à

Constituição a partir de uma imbricação entre Gadamer e Dworkin.

4.2. O paradigma pós-positivista, a teoria das fontes do direito, a diferenciação

entre princípios e regras e a distinção entre princípios gerais do direito e princípios

constitucionais.

Uma breve abordagem sobre o pós-positivismo foi feita quando o

diferenciamos do neoconstitucionalismo no capítulo sobre o ativismo judicial. Foram

feitas as necessárias remissões à Friedrich Muller e sua Metódica Estruturante do direito

(constando o termo já na primeira edição de seu Juristiche Methodik em 1971) e

afirmou-o como um paradigma filosófico estruturado sob a base do giro linguístico e

ontológico-linguísitico374

, observando que o giro linguístico é utilizado como

fundamento para superação do positivismo.

Friedrich Muller teorizou um modelo para superar as deficiências do

positivismo conforme os avanços da filosofia da linguagem e da própria hermenêutica.

E para tanto, examina a norma jurídica numa perspectiva pós-positivista mediante a

qual não existe uma cisão entre o estudo do direito e a realidade375

.

Adotando a perspectiva de Friedrich Muller em sua teoria estruturante do

direito, norma jurídica e texto normativo são distintos. Como visto, teoriza que a norma

possui dois elementos: um programa e um âmbito. E assim, a prescrição literal

juspositivista é somente o início para se compreender a norma, até porque o texto

estabelece limites, de maneira que nem toda compreensão sobre determinado enunciado

pode ser realizado. Mais além, o âmbito normativo traz a realidade, o caso concreto e o

intérprete para a produção da norma.

374

ABBOUD, Georges. Discricionariedade administrativa e judicial: o ato administrativo e a decisão

judicial, op. cit., p. 85. 375

Ibidem, p. 55.

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175

Assim, perceba-se, a normatividade “significa a propriedade dinâmica da

ordem jurídica de influenciar a realidade e de ser, ao mesmo tempo, influenciada e

estruturada por este aspecto da realidade”376

.

Relembre-se, aliás, que em Alexy, teorizador de uma diferença estrutural

entre regras e princípios, como a de Adolfo Alvarado Velloso, a realidade estava no

âmbito da argumentação, não no âmbito normativo.

É que Alexy filia-se à matriz teórica do racionalismo discursivo: ele divide

as normas de direito fundamental entre as diretamente estatuídas pela Constituição e que

são a estas adscritas conforme o direito, seja pela própria positivação ou pela

possibilidade de desenvolvimento de uma fundamentação jurídica correta. Perceba-se,

então, que os dados da realidade social estão no âmbito da argumentação, não no âmbito

normativo, explicando que é mais útil separar aquilo que o legislador impôs como

norma e as razões do intérprete em uma determinada aplicação. Ao distinguir a norma

semanticamente e os dados da realidade social que fornecem argumentos para sustentá-

la, Alexy cinde fato e Direito, o que já não se encontra no paradigma hermenêutico

filosófico.

Já Friedrich Muller ensina que o texto determina somente os limites

extremos das possíveis variantes em seu significado, e assim, interpretação jurídica de

todo texto legal conterá a historicidade de maneira que será alterada considerando o

momento histórico em que é realizada.

Ou seja, a atividade interpretativa será sempre histórica e sofrerá a

interferência das pré-compreensões do intérprete, porque o texto, quando abordado, o é

a partir dele, do seu momento histórico, da sua realidade.

Assim, conforme Müller, a norma não é prévia e abstrata, é concreta e

produzida perante um caso jurídica, real ou fictício:

Nesse novo paradigma, a norma deixa de ser um ente abstrato, ou seja, ela

passa a inexistir ante casum, uma vez que não se equipara mais ao texto

legal, consequentemente, a norma passa a ser coconstitutiva da formulação

do caso concreto. Essa nova concepção de norma jurídica demanda uma

visão do direito que abandone os dualismos irrealistas tais como norma/caso

e direito/realidade bem como o silogismo como mecanismo de aplicação do

direito.377

376

ABBOUD, Georges; CARNIO, Henrique Garbellini; OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. Introdução à

teoria e à filosofia do direito. op. cit., p. 349. 377

ABBOUD, Georges. Discricionariedade administrativa e judicial: o ato administrativo e a decisão

judicial, op. cit. p. 56.

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176

Mas Friedrich Muller concebeu a distinção estrutural entre texto e norma, e

Lenio Streck, numa dimensão compreensiva, a tematiza na perspectiva da diferença

ontológica no sentido heideggeriano, já que norma será o sentido do texto, o sentido do

ente.

Como já dito, a filosofia de Heidegger colocou o homem dentro da

ontotologia, que antes era uma ontologia da coisa, de essências e objetos. A filosofia

heidegeriana, pretendendo responder à questão sobre o sentido do “ser” que é diferente

do “ente”, constitui a diferença ontológica, sobre o que Gadamer explica:

Nenhum homem sabe no fundo o que o conceito ‘o ser’ designa, e, apesar

disso, nós todos temos uma primeira pré-compreensão ao ouvirmos a palavra

‘ser’ e compreendermos que aqui o ser, que cabe a todo ente, é elevado desde

então ao nível do conceito. Com isso, ele é diferenciado de todo ente.

Entender a distinção entre texto e norma e a diferença ontológica é

fundamental para dar-se continuidade nas conclusões deste paradigma, pois:

Ignorar a diferença ontológica (diferença entre ente e ser) e todos seus

desdobramentos é condição para diversos equívocos que ainda permeiam

nossa dogmática jurídica, merecendo destaque alguns: não compreensão da

distinção entre vigência e validade; crença equivocada na possibilidade de se

descobrir vontade na lei ou no legislador; ingênua crença de que ainda há

silogismo; falsa suposição de que é possível decidir depois buscar o

fundamento; cisão pura entre questão de fato e questão de direito; ato de

decidir é ato de vontade etc.378

(grifos nossos)

A diferença ontológica e o círculo hermenêutico compõem

fundamentalmente a fenomenologia hermenêutica: “Sabemos, então, que o homem(Ser-aí)

compreende a si mesmo e compreende o ser (Círculo hermenêutico) na medida em que

pergunta pelos entes em seu ser (diferença ontológica)”379

. Nesse sentido, Heidegger demonstra

que se compreende para se interpretar, pois esta deriva daquela que se tem a respeito do ser dos

entes na medida em que “na interpretação procuramos manifestar onticamente aquilo que foi

resultado de uma compreensão ontológica. A interpretação é o momento discursivo-

argumentativo em que falamos dos entes pela compreensão que temos de seu ser”380

,

contrariando o paradigma anterior no qual primeiro se interpreta para depois compreender.

Nisto reside o vínculo entre homem e ser e uma cooriginariedade entre ser e mundo, não

havendo primeiro o Ser-aí e depois o mundo como uma ponte entre consciência e mundo. O

Ser-aí é Ser no mundo (rompendo-se com os dualismos da tradição metafísica de consciência e

mundo, palavras e coisas, conceitos e objetos etc.).

378

Ibidem, p. 61. 379

Idem. Introdução à teoria e à filosofia do Direito, p. 415 380

Idem. Introdução à teoria e à filosofia do Direito, p. 415.

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Aliás, é de acordo com tais considerações que se conclui que o método não

funciona como elemento interpretativo, porque o que organiza o pensamento é a diferença

ontológica, não uma estrutura metodológica.

E não cair nesses equívocos é que faz situar uma teoria no paradigma pós-

positivista.

Então, se os textos não possuem um sentido íntimo que contenha as normas

prontas para aplicação, isto é, se texto e norma não se confundem, pois as normas são

construídas a cada caso a ser decidido, ainda que apenas ficcionalmente, a concepção de

decisão judicial como simples silogismo formulado a partir de um procedimento lógico-

formal apresenta-se defasada:

(...)um dos principais equívocos que o conceito de sentença como silogismo

proporciona é a confusão entre texto normativo e norma, porque, ao se

considerar a sentença como silogismo, o enunciado legislativo e a norma se

confundem, uma vez que a sentença passa a ser ato meramente declarativo, e

não criador do direito.381

De todo modo, não se fala em descobrir a norma, mas em produzir/atribuir

um sentido à norma diante da problematização de um caso concreto, de forma que a

concepção subsuntiva produto do positivismo mecanicista é algo irreal e inconcebível

num paradigma pós-positivista.

Os enunciados jurídicos, ou seja, os textos normativos, derivam, entre

muitos fatores, da interpretação existencial do intérprete, de maneira que tal enunciado

ou texto nunca está pronto para ser aplicado silogisticamente como solução para os

casos futuros, mas apenas um elemento constitutivo da norma para a solução desses

casos. “O dispositivo da sentença consistirá na norma, porque possui uma motivação e

uma fundametnação, derivada da compreensão histórica e fática do intérprete”382

.

Nesse sentido, então, se a norma não pode, como já referido, ser

considerada como entidade abstrata, separada de um caso (seja real ou fictício), não há

como ser representadora da vontade da lei ou do legislador, até porque, como dito, o

texto nunca está pronto para ser aplicado.

Coadunando com o exposto do tópico anterior, Georges Abboud menciona

três transformações na filosofia do século XX: o giro-linguístico que leva à superação

do esquema sujeito-objeto, o declínio de um modelo matemático de fundamentação e o

giro ontológico, transformando o que tradicionalmente se tinha de Hermenêutica (qual

381

Idem. Jurisdição constitucional e direitos fundamentais. São Paulo, Ed. RT, 2011, p. 66. 382

Idem. Discricionariedade administrativa e judicial: o ato administrativo e a decisão judicial, op. cit.,

p. 63.

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seja, a de teoria ou arte da interpretação de textos) ao tratar como objeto dela a

compreensão do ser, a faticidade (de onde viemos?), e para o que se encaminha o ser, a

existência (para onde vamos?). E assim, “aquilo que tinha um caráter ôntico, voltado

para textos, assume uma dimensão ontológica visando a compreensão do ser do Ser-

aí”383

(que em Heidegger é o ser humano, em alemão Dasein, o único ente que existe

porque compreende o ser). É que o homem compreende o ser na medida em que

pergunta pelo ente, ou seja, interroga-se o ente pelo seu ser, mas apesar de compreendê-

los numa unidade, claramente restam aqui distintos na diferença ontológica. Nota-se no

pensamento heideggeriano o círculo hermenêutico em que já se pressupõe uma

compreensão do ser ao dizer que algo é e só se relaciona com algo quando ao

compreendê-lo, na medida em que aquele que compreende o ser assim só o faz porque

em sua própria faticidade.

Isto é, como já referido aqui, a hermenêutica desde Heidegger deixa de ser

“arte da interpretação” e passa a relacionar-se com as condições prévias da interpretação

de textos e de todo pensamento e atividade humana. Ela deixa de ser uma técnica

interpretativa ou uma ferramenta metodológica para determinar a correta interpretação

da legislação, já que, no interior deste paradigma, a linguagem deixa de ser uma terceira

coisa que se interpõe entre um sujeito e um objeto e passa a ser condição de

possibilidade384

. A linguagem, constituinte e constituidora do mundo do homem, passa

a ser um modo de ser daquele que compreende o direito385

.

Diante disso, se linguagem e compreensão estão coimplicadas, pelo que se

chama de círculo hermenêutico, e que hermenêutica passa a ser um modo de ser daquele

que compreende o direito, a sentença deixa de ser um ato silogístico do sujeito que

pretensamente revela a norma presente na vontade do legislador ou na vontade da lei.

Essa reviravolta linguística já mencionada, como bem sintetiza Francisco

José Borges Motta

consiste em que a linguagem deixa, a partir da Filosofia Hermenêutica, de ser

relegada a uma terceira coisa que se interpõe entre um sujeito (o intérprete) e

um objeto (a realidade), para ser alçada à cimeira condição de possibilidade

do nosso modo-de-ser-no-mundo; supera-se, assim, a metafísica relação

cognitiva sujeito-objeto, desmistificando, consequentemente, a ideia de que a

383

Idem. Introdução à teoria e à filosofia do Direito, p. 413. 384

STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica. Uma nova crítica do direito, op. cit.,

p. 197. 385

ABBOUD, Georges. Discricionariedade administrativa e judicial: o ato administrativo e a decisão

judicial, op. cit., p. 62.

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verdade possa ser produto de um procedimento cognitivo (quase sempre, um

método).386

Em outras palavras, a reviravolta linguística significou novo paradigma para

a filosofia em que a linguagem passa de objeto da reflexão filosófica para a esfera dos

fundamentos de todo pensar387

.

A doutrina aponta que a primeira metade do século XX produziu revoluções

importantes para a filosofia e para o direito. Pautou-se (i) o problema do conceito

absoluto de verdade e sua consequente implicação no fundamento e (ii) o problema do

método para a revelação da verdade388

.

O problema do fundamento (este apontado ou na coisa objeto do

conhecimento e que relaciona-se com a verdade como produto da correspondência da

coisa ao intelecto -paradigma da adequação, objetivista ou verdade correspondencial- ou

no sujeito cognoscente e que relaciona-se com a verdade como construção subjetiva

deste sujeito -paradigma subjetivista ou verdade subjetivista-, e que torna impossível a

noção de adequação entre a inteligência e a coisa baseada na concepção unitária da

verdade agora rompida) tentou ser resolvido pela filosofia no século XX com o giro

linguístico. Note-se: a questão do fundamento relaciona-se com o conceito de verdade

na medida em que admitir determinado fundamento deve estar de acordo com a opção

pelo conceito de verdade que se faz uso, como se viu ao situar as “verdades” de Luigi

Ferrajoli e de Adolfo Alvarado Velloso em paradigmas distintos, o primeiro objetivista

e o segundo subjetivista.

Assim, com o giro linguístico, a questão do fundamento da verdade389

é

deslocada para a linguagem, uma estrutura constituidora do mundo. Para Gadamer, a

linguagem não é um dos meios pelos quais a consciência se comunica com o mundo,

como um terceiro instrumento ao lado do signo e da ferramenta, em que pese estes doiz

façam parte da caracterização essencial do homem. Há a percepção de que a linguagem

386

MOTTA, Francisco José Borges. Levando o direito a sério: Uma crítica hermenêutica ao

protagonismo judicial, op. cit., p. 42. 387

ARAÚJO DE OLIVEIRA, Manfredo. Reviravolta linguístico-pragmática na filosofia contemporânea.

2. Ed. São Paulo: Loyola, 2001, p. 12-13. 388

ABBOUD, Georges. Discricionariedade administrativa e judicial: o ato administrativo e a decisão

judicial, op. cit., p. 57. 389

A ausência de fundamento na filosofia se inaugura com a subjetividade e se desenvolve como filosofia

transcendental. É através da filosofia transcendental que se mantém a ausência de fundamento para a

verdade: ela deixará de ser adequação com o real. Na ciência, na práxis, bem como na filosofia, verdade

será construção. É por isso que se introduz, nas três áreas, o niilismo, isto é, a perda do fundamento. A

verdade (formalização) nas ciências, a verdade (tecnocracia) na práxis e a verdade (transcendentalidade)

na filosofia, tornam-se três áreas interligadas, pois sua fonte é a mesma: a subjetividade. (...) Neste

quadro, a busca da verdade pode ser realizada somente como tarefa. Perdemos a convicção de que ela nos

foi dada como um todo. Cf. ABBOUD, Georges. Discricionariedade administrativa e judicial: o ato

administrativo e a decisão judicial, op. cit., p. 57.

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já está em tudo que pensamos, e não como ferramenta, como instrumento. Não é

possível guardar a linguagem como se guarda um instrumento porque jamais estamos

desprovidos de linguagem390

. E a compreensão do fenômeno jurídico não pode ignorar a

análise da linguagem. Ou seja, o direito, a partir de então, não pode ser

instrumentalizado como se pudéssemos fazer ele dizer apenas o que queremos.

O Direito visualizado como linguagem391

toma uma dimensão interpretativa

que obriga o intérprete a levar em consideração toda a dimensão histórico-interpretativa

que está por trás de cada conceito jurídico:

Quando se diz que a Constituição deve fundamentar todas as leis e

proposições jurídicas, que os princípios constitucionais devem sempre ser

observados, que os direitos fundamentais são limites intransponíveis para os

particulares e principalmente para o Estado, que no Estado Constitucional há

obrigação de se fundamentar as decisões da Administração e do Judiciário, há

toda uma estrutura de sentido que se antecipa e possibilita dizê-los.392

Observe-se: não se trata mais, portanto, de “perguntar pela essência das

coisas, tampouco por aquilo que o sujeito tem certeza de que sabe (no caso do conceito

subjetivista), mas, sim, perguntar pelas condições de acesso ao universo simbólico e

significativo produzido pela linguagem”393

.

O conhecimento já é tomado pela própria linguagem, e no caso do

conhecimento jurídico, a dimensão linguística do direito já toma o intérprete.

E se assim, se interpretação e compreensão são concomitantes, impossível

primeiro se decidir e depois se buscar o fundamento. Tal interpretação não seria

autêntica, pois o intuito de uma fundamentação dessas é tão somente a de preencher

formalmente um dos elementos da sentença, mas não a aplicação do direito ao caso sob

uma perspectiva hermenêutica. Decidir e depois buscar o fundamento consiste em

fórmula que não se coaduna com o Estado Democrático de Direito, haja vista se tratar

de uma forma de maquiar verdadeira arbitrariedade, porque decidir conforme o

intérprete quer e depois buscar o fundamento configura uma simples manobra para

disfarçar arbitrariedades.

Por todo o exposto, para que uma teoria situe-se no paradigma pós-

positivista, faz-se necessário (i) diferenciar texto e norma, (ii) afastar a concepção de

390

GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método II Complementos e Índice, op. cit, p. 174. 391

Como Castanheira Neves ensina, “o direito é linguagem e terá de ser considerado em tudo e por tudo

como uma linguagem. O que quer que seja e como quer que seja (...) propõe-se sê-lo numa linguagem”.

NEVES, Antonio Castanheira. Metodologia jurídica: problemas fundamentais. Coimbra: Coimbra Ed.,

1993, p. 90. 392

ABBOUD, Georges. Discricionariedade administrativa e judicial: o ato administrativo e a decisão

judicial, op.cit, p. 61. 393

ABBOUD, Georges. Discricionariedade administrativa e judicial: o ato administrativo e a decisão

judicial, op. cit., p. 59.

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181

interpretação como revelação da vontade da lei e do legislador e (iii) também a via

silogística quando da aplicação do direito394

.

Essas considerações iniciais nos levam a revisitar sucintamente o tema da

teoria das fontes do direito, diferenciando positivismo e pós-positivismo, em razão,

também , do fenômeno do constitucionalismo.

Com fulcro em Castanheira Neves, podem ser considerados fontes os

processos, atos ou modos constitutivos de positivação do direito395

.

A tradicional classificação divide as fontes do direito em diretas, a lei e o

costume, e indiretas, a jurisprudência e a doutrina. Está alçada, perceba-se, no

paradigma positivista em que a lei é a fonte jurídica por excelência. Contudo, é preciso

questionar se no Brasil, e com clareza com o Novo Código de Processo Civil, esta

classificação não se encontra defasada ao considerar-se institutos como súmulas

vinculantes e precedentes judiciais.

Castanheira Neves identifica três mudanças que influenciaram na mudança

dessa classificação: (i) na concepção do direito, tendo em vista que o direito não deve

mais ser considerado puramente estatista (do positivismo legalista) já que com o pós-

guerra deu-se o constitucionalismo que, além de racionalizar o poder, inseriu nos

ordenamentos jurídicos os princípios constitucionais e os direitos fundamentais; (ii) na

realização do direito ao tornar-se instrumento de promoção de direitos e construção da

democracia, não podendo mais ser encarado como mera aplicação da legalidade vigente,

(iii) e no sentido do sistema jurídico, já que o direito precisa referir-se à realidade

histórico-social, não mais apenas ao sistema legislativo vigente396

.

Ensina Lenio Streck que essas alterações se fazem necessárias até mesmo

para que seja possível concretizar os ditames do Constitucionalismo Contemporâneo,

evitando decisionismos, arbitrariedades e discricionariedades interpretativas397

.

Conclui-se: “em função do surgimento e da evolução do constitucionalismo,

a teoria tradicional das fontes apresenta-se defasada. Isso porque ela estava assentada

na quase exclusividade do dogma da lei como sua fonte máxima”398

.

394

ABBOUD, Georges; CARNIO, Henrique Garbellini; OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. Introdução à

teoria e à filosofia do direito. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014, p. 346-353. 395

NEVES, Antonio Castanheira. Fontes do direito. Digesta: escritos acerca do direito do pensamento

jurídico da sua metodologia e outros. Coimbra: Coimbra Ed., 1995, vol. 2, p.53. 396

Ibidem, p 45/53. 397

STRECK, Lenio. Verdade e Consenso, op.cit., p. 69. 398

ABBOUD, Georges; CARNIO, Henrique Garbellini; OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. Introdução à

teoria e à filosofia do direito, op.cit., p. 239.

Page 182: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP ... Lobão Torres.pdfem 1989, de “Diritto e Ragione: Teoria del Garantismo Penale”. Foi com a tradução desta obra para

182

Assim, a teoria das fontes precisa ser atualizada para adequar-se ao ponto

atual da história, em que o direito possui a função de instrumento de proteção e de

promoção dos direitos fundamentais do cidadão, bem como da igualdade.

Aliás, por essas considerações abordamos anteriormente o sentido de lei

além do aspecto meramente formal, ao considerar sua dimensão material: enunciado de

caráter geral e abstrato advindo dos órgãos legislativos com observância da Constituição

a fim de promover a igualdade dos cidadãos. Nesse sentido, “a lei não pode ser

utilizada como instrumento em favor do governo, do contrário, a lei não assegurará a

liberdade, mas tão somente o regime absolutista”399

.

A evolução do constitucionalismo tem como uma de suas principais funções

a regulação do poder e a preservação dos direitos fundamentais. Afinal, nem todo

conteúdo legislativo pode ser considerado direito depois da segunda guerra mundial.

Por isso as brilhantes considerações de Luigi Ferrajoli no que tange a

inconstitucionalidade material das leis e a distinção entre vigência e validade.

A própria Constituição Federal em seu artigo 5º relata os direitos

fundamentais, enquanto seu §2º prevê a não exclusão de outros decorrentes do regime e

dos princípios por ela estabelecidos, ou dos tratados internacionais em que a República

Federativa do Brasil seja parte. E ainda, seu §1º estabelece a aplicação imediata de tais

direitos, de maneira que asseguram ao cidadão uma posição jurídica subjetiva de buscá-

los junto ao Poder Público, independentemente de lei ordinária regulamentadora,

deficiente ou inadequada prevendo inclusive o mandado de injunção como garantia se

sua aplicabilidade direta quando da inexistência de lei infraconstitucional que o

regulamente.

Nesse sentido, os direitos fundamentais servem primordialmente como

limitação do Poder Público, tanto em sentido formal quanto substancial, e proteção

contra formação de eventuais maiorias, interpretação consoante com a perspectiva

garantista do Estado Democrático de Direito, pois constituem reservas de direitos que

não pode ser atingida nem pelo Poder Público (em nenhuma de suas esferas) nem pelos

próprios particulares.

Portanto, os direitos fundamentais possuem absoluta normatividade! Ocorre

que enquanto o constitucionalismo nasceu como fenômeno histórico-político cuja

função consistia em limitar e racionalizar o poder político por meio da previsão de

399

Ibidem, p. 274.

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regras acerca da atividade do Estado, impondo limites ao poder soberano pela divisão de

poderes (afinal o direito constitucional não surgiu no século XX, mas se desenvolveu

por séculos visando coibir os excessos do Poder Público), a Constituição Federal

Brasileira de 1988 resulta do constitucionalismo democrático do século XX a partir de

Weimar, e nesse movimento histórico as Constituições foram além com o objetivo

primordial de assegurar a existência de alguns princípios constitucionais fundamentais.

Veja-se: o século XIX colheu os frutos do desenvolvimento do Estado

funcionalizado por meio de uma Administração Pública assentado do Estado

Absolutista do medievo em que as funções governamentais começaram a se

especificar400

tendo sido dominado pela ideia liberal de uma forma de governo

constitucional e parlamentar. Mas no século XX, parte dos modelos liberais da Europa

foram modificados, pois foram dados passos em direção ao Estado-providência como

consequência das fortes práticas constitucionais. E bem, o final da Segunda Guerra

Mundial marca a evolução para uma nova ordem social, política e jurídica.

Em sendo assim, os textos constitucionais estabelecem princípios e direitos

fundamentais a serem promovidos e respeitos pelos três poderes, sendo a lei um dos

principais instrumentos normativos para implementá-los.

Mas o que devemos considerar por princípios? Como já antecipado aqui, o

questionamento é complexo. Viu-se o conceito de Alexy, sua aproximação com Adolfo

Alvarado Velloso, e a teleologia de ambos no que concerne aos princípios.

Na doutrina brasileira, o termo é designado de diversas formas: como

normas fundantes e nucleares de um sistema, o ponto inicial dos estudos de uma

disciplina jurídica, normas de normas, utilizados para colmatar lacunas, etc.

Para não cairmos no mesmo erro recorrente daqueles que se utilizam da

linguagem jurídica sem precisá-los, far-se-á uma distinção entre os princípios gerais do

direito dos princípios constitucionais, pois os primeiros não podem ser considerados

como sucedâneo dos outros. Não é correto trabalhar com a tese da continuidade entre

princípios gerais do direito e princípios constitucionais401

.

A utilização dos princípios gerais do direito remonta ao século XIX e à

formação dos sistemas codificados de direito privado, mais especificamente, como

reforço ao ideal de completude dos sistemas codificados (codificação francesa e à

400

Surge a figura do funcionário e dos elementos do conceito moderno de Estado, quais sejam, povo,

território e soberania. 401

STRECK, Lenio. Verdade e Consenso, op.cit., p. 518.

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184

fórmula dedutivista da pandectista alemã) nos casos das aparentes lacunas

legislativas402

.

Diferentemente, os princípios constitucionais remontam ao final da Segunda

Guerra Mundial e se associam à Constituição, com um forte elemento pragmático.

Para Nelson Nery Junior, os princípios gerais do direito são “regras de

conduta que norteiam o juiz na interpretação da norma, do ato ou negócio jurídico”403

.

Para Henrique Garbellini Carnio, Rafael Tomaz de Oliveira e Georges Abboud, os

mesmos são “topois argumetnativos e consistem em sistematização de métodos e regras

utilizadas para a solução de antinomias, em grande parte advindas da evolução do

próprio direito privado”404

.

Já no que tange aos princípios constitucionais, a Segunda Guerra Mundial

foi decisiva para o processo de ruptura mencionado por Lenio Streck, os princípios

agora atrelam-se ao contexto constitucional e histórico.

Para Castanheira Neves, princípios constitucionais “são agora princípios

normativamente materiais fundamentantes da própria juridicidade, expressões

normativas de ‘o direito’ em que o sistema jurídica cobra o seu sentido e não apenas a

sua racionalidade”405

.

O contexto das consequências nefastas da guerra e a percepção da

fragilidade do direito frente à política propiciaram a procura por uma solução para a

qual o âmbito jurídico fez-se importante. A superação dos aspectos formais positivistas

era necessária. E então, ganhou importância o contexto material do direito, o que

implicava a afirmação de um direito distinto da lei, ou seja, de elementos normativos

ademais da lei, constitutivos da normatividade. Note-se: aqui se dá a perda da

exclusividade da lei como fonte jurídica.

É que o discurso para superar o legalismo enfatizou os princípios como

componente libertário para a interpretação do direito, extremamente importante para a

402

Sobre o tema, veja-se que “O sistema seria sempre completo, uma vez que os princípios gerais do

direito seriam postulados racionais que estariam pressupostos pelo sistema codificado. Sua aplicação a

casos particulares, além de excepcionalíssima, obedeceria ainda às regras do método dedutivo-

axiomático. O apelo à razão é significativo aqui porque denota, de forma expressiva, como tais

“princípios gerais” representavam uma espécie de reminiscência jusnaturalista dentro do sistema

positivo de direito privado, plasmado nas codificações.” ABBOUD, Georges; CARNIO, Henrique

Garbellini; OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. Introdução à teoria e à filosofia do direito. São Paulo: Editora

Revista dos Tribunais, 2014, p. 283. 403

NERY Jr., Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil comentado. 9. Ed. São Paulo: Ed.

RT, 2012, p. 230. 404

ABBOUD, Georges; CARNIO, Henrique Garbellini; OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. Introdução à

teoria e à filosofia do direito, op.cit., p. 285. 405

Ibidem, p. 291.

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185

decisão dos juízes. E nesse sentido, discursos que enfatizavam os princípios para que o

deixasse de ser a boca da lei revelava a consideração a eles como sucedâneo dos

princípios gerais do direito ou como positivação dos valores da sociedade.

Nesse contexto:

Os juízes são colocados perante tarefas de indagação de métodos racionais de

conhecimento de valores, a partir da problemática oferecida pelo caso que

será julgado, abrindo espaço para a chamada discricionariedade judicial. A

incorporação dessa nova tarefa jurisdicional e inserção de dimensões

valorativas no âmbito das questões jurídicas obriga a teoria do direito a

analisar reflexivamente seus próprios conceitos, mormente os princípios

jurídicos e o dever de motivação das decisões. Isso, por si só, começa a

demonstrar o esgotamento do modo tradicional de se olhar para o direito.406

(grifos nossos.)

Na Alemanha, a Lei Fundamental outorgada pelos Aliados com a aplicação

do Tribunal Constitucional Federal Alemão leva à conhecida Jurisprudência dos

Valores com argumentos axiológicos para legitimá-la frente à sociedade alemã e em

prol da demonstração de ruptura com o regime político do nazismo.

A aplicação do princípio geral do direito tempus regit actum envolvendo os

fatos ocorridos sobre a égide do nazismo significaria dar vigência às leis nazistas num

contexto já democrático. E então, para afastar as leis nazistas, o Tribunal construiu

argumentos fundados em princípios “axiológicos-materiais”. Advieram disso as

fundamentações “fora da lei” remetidas à cláusulas gerais, “enunciados abertos” e

também “princípios”.

É que o caráter aberto de textos principiológicos permitiu grande margem

interpretativa possibilitando a adequação das decisões à nova realidade histórica

concreta. Caiu-se no relativismo interpretativo-decisório.

No momento em que a jurisprudência dos valores procura construir

mecanismos para justificar o não relativismo dos valores e da discricionariedade do

Tribunal, a ponderação será o elemento decisivo para o significado do conceito de

princípio operado por Robert Alexy em sua teoria da argumentação, o qual busca criar

um procedimento para a aplicação dessas “cláusulas de abertura” a partir da crítica à

jurisprudência do Tribunal Constitucional Alemão baseado no discurso racional prático.

Mas note-se: Robert Alexy, como Luigi Ferrajoli, assume o elemento discricional como

inevitável.

406

Ibidem, p. 291.

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186

Mas afinal, os princípios, como questiona Lenio Streck, fecham ou abrem a

interpretação? 407

Os princípios advém da vivência da comunidade política, e por isso são

deontológicos: “os princípios não são princípios porque a Constituição assim o diz,

mas a Constituição é principiológica porque há um conjunto de princípios que

conformam o paradigma constitucional, de onde exsurge o Estado Democrático de

Direito”408

por vezes, princípios são aplicados como regras, confusão já denunciada por

Adolfo Alvarado Velloso. Luigi Ferrajoli já afirmava que princípios não são valores,

porque sobre eles deve-se falar em deontologia, não em axiologia.

Em outras palavras, “a Constituição é considerada materialmente legítima

justamente porque fez constar em seu texto toda uma carga principiológica que já se

manifestou no mundo prático, no seio de nossa comum-unidade”409

.

No direito brasileiro, entretanto, os princípios gerais do direito constam no

artigo 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, juntamente com a

analogia e os costumes, como critérios para solução de lacunas do ordenamento. Ora,

esses princípios, reminiscentes dos Códigos dos oitocentos em que eram chamados para

atuar quando as regras não eram suficientes não podem mais ser encarados como

continuidade na evolução constitucional.

Como demonstrado, no Constitucionalismo Contemporâneo os princípios

não são instrumentos de solução de lacunas da lei ou do ordenamento, pois assumem

uma dimensão de constituidores de normatividade.

E nesse sentido, grande é a influência de Lenio Streck (que tem na base de

sua teoria da decisão os pensamentos de Hans-George Gadamer, Ronald Dworkin,

Martin Heidegger e Friedrich Muller) na assunção de que toda decisão judicial

hermeneuticamente correta só será adequada à Constituição se dela for possível extrair

um princípio.

Mas os princípios constitucionais não precisam estar expressos na

Constituição para assumirem esse status, até mesmo em atenção aos direitos

fundamentais numa dimensão maior do que aquela expressa pelo texto constitucional,

no sentido aqui já atribuído, cujo caráter é deontológico e não axiológico (os princípios

não são valores! Como já abordado.).

407

STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso, op. cit. 408

Idem. Neoconstitucionalismo, positivismo e pós-positivismo, op. cit. p. 70. 409

Idem. Verdade e Consenso, op. cit., p. 495/496.

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187

Habermas, como Dworkin, acredita na deontologia das normas e na

regência por uma lógica deôntica binária, ao passo que Adolfo Alvarado somente coloca

as regras dentro de um código binário, estando os princípios dentro de um código

gradual. Este autor argentino, relembre-se, define os princípios como ponto de partida

que depende do que se quer alcançar, pelo que se concluiu afirmar o autor seu caráter

teleológico, em prol de um objetivo, o que já criticou Habermas quando de seus

apontamentos à Alexy.

Dworkin, observando a atividade judicial, apontou componentes ademais

das regras (rules) que influenciavam as decisões dos tribunais, ou seja, os princípios

(general principles of Law). Mas note-se que o conceito de norma de Dworkin não

comporta enquadramento como gênero de regras e princípios:

(...) o fato de Dworkin não mencionar o gênero norma na distinção que ele

realiza entre regra e princípio também aponta para algo inquietante (...) isso

porque, a partir de Dworkin, poderíamos afirmar que essa dimensão deôntica

que reveste as regras e os princípios é sempre interpretação.

Para Dworkin, preocupado com as bases do dever judicial, princípio é “um

padrão que deve ser observado, não porque vá promover ou assegurar uma situação

econômica, política ou social considerada desejável, mas porque é uma exigência de

justiça ou equidade ou alguma outra dimensão da moralidade”410

.

Deve neste ponto já estar claro ao leitor que a distinção entre regras e

princípios reside num nível puramente semântico, não num nível pragmático-existencial

ou hermenêutico.

Como já dito, há doutrina sustentando a tese da justaposição entre as teorias

de Alexy e Dworkin apontando suas similaridades, mas os autores não trabalham com o

mesmo conceito de norma e o caráter deôntico são apresentados diferentemente em cada

um deles. Enquanto em Alexy o princípio é deôntico porque é norma, é mandado, em

Dworkin o princípio possui normatividade porque se manifesta concretamente na

prática interpretativa (nível pragmático), até porque neste autor não há conceito prévio e

abstrato de norma jurídica, a dimensão deôntica que reveste as regras e os princípios em

Dworkin é sempre interpretação. Aliás, o autor opõe-se à ideia de um número fixo de

padrões de algum tipo, seja regras ou princípios, pois concebe a formação de um

sistema jurídico como parte do problema interpretativo.

Como já exposto, Alexy divide as normas de direito fundamental entre as

diretamente estatuídas pela Constituição e que são a estas adscritas conforme o direito,

410

DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. 2ª. Ed. São Paulo; Martins Fontes, 2003, p. 36.

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seja pela própria positivação ou seja pela possibilidade de desenvolvimento de uma

fundamentação jurídica correta. Perceba-se, então, que os dados da realidade social

estão no âmbito da argumentação, não no âmbito normativo, explicando o autor que é

mais útil separar aquilo que o legislador impôs como norma e as razões do intérprete em

uma determinada aplicação.

Ao distinguir a norma semanticamente e os dados da realidade social que

fornecem argumentos para sustentá-la, Alexy cinde fato e Direito, o que já não se

encontra em Dworkin.

O conceito de regras de Alexy e Dworkin de fato assemelham-se pela

aplicação à moda do tudo ou nada, mas o conceito de princípios é absolutamente

distinto como aponta o próprio Alexy.

Quando Dworkin diz que o juiz deve decidir por argumentos de princípio e

não de políticas, está apontando os limites no ato de aplicação judicial para o que não

importam as convicções pessoais do juiz, o que passa pelo compromisso da

reconstrução da história institucional do direito e pelo momento de colocação do caso

julgado dentro da cadeia da integridade do direito de maneira que a decisão não seja

uma escolha, mas uma interpretação, aquela mais adequada, de acordo com o sentido do

direito projetado pela comunidade política.

É que Dworkin desenvolve a chamada “interpretação construtiva”. A atitude

interpretativa dworkiniana é marcada pela interação entre o “propósito” (projeto

compreensivo, um determinado sentido do objeto da interpretação, texto ou prática

social, pois interpretamos sempre) e o “objeto” da interpretação (relação sujeito-sujeito).

Nas palavras de Francisco José Borges Motta, a interpretação construtiva:

(...) trata-se, em última análise, da compreensão de algo (um texto, por

exemplo) que deve levar em conta fatores históricos (como a “intenção do

autor”), mas que, uma vez dirigida por um “interesse” (como a atribuição de

um sentido “jurídico” ao texto) do intérprete (também ele “situado”

historicamente), resultará na “construção de um “sentido” novo, mas ainda

assim “fiel” ao texto (ou seja, nem por isso deixará de ser uma interpretação

“correta”). Cuida-se de reconhecer a impossibilidade de reconstruir as

intenções históricas, e de ainda assim, mantermo-nos fiéis à tradição à qual

aderimos.411

As amarras do intérprete construtivo de Dworkin são vistas em Gadamer

como a “autoridade da tradição”

411

MOTTA, Francisco José Borges. Levando o direito a sério: Uma crítica hermenêutica ao

protagonismo judicial, op. cit., p. 92.

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Além disso, o tudo ou nada na regra de Dworkin não relaciona-se com a

subsunção na medida em que esta pressupõe silogismo e consequentemente pressupõe

também a distinção entre questão de fato e de direito, enquanto o autor refere-se a essa

característica das regras pelo modo de sua justificação argumentativa, não pela sua

aplicação. O que se quer dizer é que, o esforço argumentativo é menor quando se

argumenta por regras do que quando se argumento por princípios pois neste tipo se deve

demonstrar a coerência com o contexto e com a integridade do Direito. É que o

princípio é um padrão de julgamento ligado a uma justificativa moral que deve ser

aplicado na defesa de direito e que, diferentemente das regras, não determina

imediatamente um comportamento, apesar de ser perfil deontológico (pretensão de

eficácia), enquanto as regras retiram justificativas nos princípios que integram o Direito:

Colocando o problema de forma mais clara, a regra não subsiste sozinha, não

retira validade de si própria. Ela deve ter algum “sentido”, que não é prévio,

que não é fixo, que não pode ser aferido proceduralmente, chamamos

princípio! (...) os princípios trazem o mundo prático de volta para o Direito

(...) e nessa conjuntura, temos que, mais do que um campo de ponderação, o

decantado princípio da proporcionalidade melhor servirá ao projeto

democrático se for compreendido como o “nome a ser dado à necessidade de

coerência e integridade de qualquer decisão”.412

Dworkin fala em ponderar como refletir. Repita-se: Em Dworkin, a

diferença entre regra e princípio decorre do comportamento quando da argumentação

num caso jurídico, conforme demonstrado. E além disso, em Alexy os princípios

jurídicos fornecem uma abertura do sistema que lhe outorga discricionariedade por via

da ponderação (como técnica para equilibrar os valores), enquanto Dworkin utiliza-se

da integridade do ordenamento de maneira que não há conflito e a interpretação deve ser

conduzida para a resposta correta.

Francisco José Borges Motta afirma que o autor alemão acaba incorrendo

em muitos resvalos que serviram já para denunciar as insuficiências do positivismo

jurídico:

Em primeiro lugar, temos de ter presente que qualquer distinção a priori que

se faça entre regras e princípios (seja ela lógica ou estrutural, não importa)

assume o risco de dar mãos com a metafísica. Principalmente se esta

separação se der (como se dá em Alexy) com o escopo de distinguir a forma

de solucionar casos “jurídicos” (estes também divididos em fáceis ou

difíceis). Neste sentido, impressiona a naturalidade com que se afirma que

alguns (ou muitos) problemas (do Direito!) podem ser resolvidos mediante

“subsunção” da prescrição normativa (naturalmente abstrata) à realidade

social. Essa consideração, ao reconhecer um espaço próprio para (meras)

412

MOTTA, Francisco José Borges. Levando o direito a sério: Uma crítica hermenêutica ao protagonismo

judicial. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2012, p. 160.

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inferências lógico-dedutivas na prática do Direito, é visivelmente atrelada ao

paradigma representacional (pressupõe uma espécie de naturalismo, ou seja,

admite a possibilidade de explicações emergentes de raciocínio dedutivos),

exatamente aquele que sustentou, filosoficamente, o “sistema de regras”.

Encontramos então, nessa proposição, muito mais do positivismo jurídico de

Hart do que Alexy julga ter deixado para trás. (...) Apesar disso, o fato é que

as teorias da argumentação (dentre elas, a desenvolvida por Alexy), enquanto

projeto de superação do positivismo jurídico, não têm condições de avançar o

suficiente. Há uma barreira de impedi-las, não tanto de perfil normativo (ou

“jurídico”, em sentido estrito), mas, antes, de cariz filosófico. Alheios à

guinada linguístico-ontológica que conduz o nosso estudo, os

argumentativistas seguem reféns, como vimos, do paradigma

representacional (significando que não escapam da aposta ora numa espécie

de suficiência ôntica da regra, receptáculo dos sentidos, ora nas condições

subjetivistas privilegiadas do sujeito, que então assujeita o objeto conforme

as possibilidades de sua consciência).413

Nesse sentido, enquanto no positivismo na há direito quando as regras são

vagas e indeterminadas, implicando em novo elemento da legislação, para Dworkin os

direitos preexistem ao Estado cabendo aos juízes nos casos difíceis desenvolver uma

argumentação em prol dos direitos das partes entendendo o Direito como unidade

coerente, como “completeza” e “integridade”414

. É dizer: por trás das regras deve haver

um princípio. E assim, Dworkin recusa a discricionariedade “forte” de Hart sustentando

a existência de “única resposta correta”415

.

Dworkin trava um debate com a tradição do convencionalismo (positivistas)

e do pragmatismo (realistas), para concluir pelo afastamento da discricionariedade

judicial.

Para se opor a compreensão positivista do direito como um conjunto de

regras, Dworkin irá compreender os princípios jurídicos também como espécie do

gênero norma sustentatndo a diferença entre princípios e regras sob uma natureza

lógica-argumentativa:

Os dois conjuntos de padrões apontam para decisões particulares acerca da

obrigação jurídica em circunstâncias específicas, mas distinguem-se quanto à

natureza da orientação que oferecem. As regras são aplicáveis à maneira do

tudo-ou-nada. Dados os fatos que uma regra estipula, então ou a regra é

413

Ibidem, p. 150. 414

DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. São Paulo; Martins Fontes, 2002, p. 202. 415

José Francisco Borges Motta dá preferência à expressão “boa resposta” a “resposta correta” aduzindo

aliviar a carga semântica que a noção de “incorreto” versus “incorreto”, “não raramente associada ao

logos matemático e ás ciência naturais, costuma carregar consigo. Uma decisão boa, para nós, terá

assumido a tentativa de ser a única correta de que nos falará Dworkin, devendo ser dito desde já que a

tese da resposta correta é uma teoria sobre a responsabilidade judicial, uma espécie de obrigação de meio,

e não, propriamente, de resultado. Mas deixemos dito com todas as letras: quando falamos em boas

respostas, não dizemos nada diferente do que as respostas corretas de Dworkin (se o juízo de correção for

hermeneuticamente compreendido ou que as respostas hermeneuticamente/ constitucionalmente

adequadas de Lenio Streck”. MOTTA, Francisco José Borges. Levando o direito a sério: Uma crítica

hermenêutica ao protagonismo judicial. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2012, p. 65.

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válida, e neste caso a resposta que ela oferece deve ser aceita, ou não é

válida, e neste caso nada contribui para a decisão.416

Outra característica das regras é que, pelo menos em tese, “todas as

exceções podem ser arroladas e o quanto mais o forem, mais completo será o

enunciado da regra”417

. Se duas regras entram em conflito, uma delas será válido, e esta

decisão deve ser tomada recorrendo a considerações que estão além das próprias regras,

podendo um sistema jurídico regular esses conflitos por meio de outras regras por

critérios prévios como a hierarquia, especificidade, temporalidade e aquelas sustentadas

pelos princípios mais importantes, por exemplo. Elas não possuem a dimensão de peso

ou importância dos princípios, podendo-se dizer apenas que elas são funcionalmente

mais importantes no sentido de que uma é mais importante que outra na regulação do

comportamento, mas não que uma é mais importante que outra enquanto parte do

mesmo sistema de regras intentando a suplantação de uma pela outra418

.

Já os princípios possuem tal dimensão de peso ou importância e quando se

intercruzam o julgador vai levar em conta a força relativa de cada um, mensuração esta

que não pode ser exata e o julgamento que determina que um princípio ou uma política

particular é mais importante que outra seja frequentemente objeto de controvérsia, mas

é uma dimensão integrante do conceito de princípio que não se pode deixar de perguntar

por ela.

Os princípios jurídicos, diferentemente das regras, não apresentam as

conseqüências jurídicas que seguem quando as condições são dadas. Eles não

pretendem, nem mesmo, estabelecer as condições que tornam a sua aplicação

necessária. Ao contrário, eles enunciam uma razão que conduz a um argumento e a uma

determinada direção. Com relação aos princípios não há exceções, pois elas não são,

nem mesmo em teoria, susceptíveis de enumeração.

Dworkin ainda se preocupa em distinguir princípios e políticas, distinção

essa que é olvidada por Alexy. Sobre tal diferenciação, o princípio é aquele padrão que

contém uma exigência de justiça, eqüidade, devido processo legal ou aquele que resolve

o conflito deve levar em conta a força relativa de cada um ou qualquer outra dimensão

de moralidade. Por sua vez, o padrão denominado política estabelece um objetivo a ser

alcançado, que geralmente, consiste na melhoria de algum aspecto econômico, político

416

DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. São Paulo; Martins Fontes, 2002, p. 39. 417

DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. São Paulo; Martins Fontes, 2002, p. 40. 418

DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. São Paulo; Martins Fontes, 2002, p. 43.

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192

ou social da comunidade, buscando promover ou assegurar uma situação econômica,

política ou social considerada desejável419

.

Outro problema que Dworkin visa superar frente à tradição do positivismo

jurídico é a afirmação de um espaço discricionário para aplicação do direito nos casos

difíceis, de modo que ao magistrado fosse permitir criar direito e aplicá-lo

retroativamente ao caso.

Como solução irá propor, em nítida influência gadameriana, que os direitos

são fruto tanto da história quanto da moralidade, utilizando-se argumentativamente da

metáfora do juiz Hércules e, posteriormente, do romance em cadeia.

No primeiro caso, Dworkin imagina um magistrado com capacidades e

paciência sobre-humanas que, de maneira criteriosa e metódica, seleciona as hipóteses

de interpretação dos casos concretos a partir do filtro da integridade. Assim, ele deverá

interpretar a história como um movimento constante, desprezando a vontade do

legislador como proposto pelo positivismo. Já no romance em cadeia, o que se propõe

consiste no seguinte exercício literário:

Suponha que um grupo de romancistas seja contratado para um determinado

projeto e que jogue dados para definir a ordem do jogo. O número mais baixo

escreve o capítulo de abertura de um romance, que ele depois manda para o

número seguinte, o qual acrescenta um capítulo, com a compreensão de que

está acrescendo um capítulo a esse romance, não começando outro, e, manda

os dois capítulos para o seguinte, e assim por diante. Ora, cada romancista, a

não ser o primeiro, tem a dupla responsabilidade de interpretar e criar, pois

precisa ler tudo o que foi feito antes para estabelecer, no sentido

interpretativista, o que é o romance criado até então.420

Nessa perspectiva, cada juiz será como um romancista na corrente, de modo

que deverá ler tudo o que os outros juízes escreveram no passado, buscando descobrir o

que disseram, bem como o estado de espírito quando disseram, objetivando chegar a

uma opinião do que desses juízes fizeram coletivamente. A cada caso o juiz que for

incumbido de decidir deverá se considerar como parte de um complexo

empreendimento em cadeia no qual as inúmeras decisões, convenções e práticas

representam a história, que será o seu limite. Seu trabalho consistirá na continuação

dessa história no futuro por meio do que ele faz no presente. Ele deverá interpretar o

que aconteceu no passado, porque será responsável por levar adiante o dever que tem

em mãos e não partir em uma nova direção.

419

DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério, op. cit., p. 36. 420

DWORKIN, Ronald. Uma Questão de Princípio. Trad. Luís Carlos Borges. 2. ed. São Paulo: Martins

Fontes, 2001, p. 235/236.

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O dever do juiz consiste, para Dworkin421

(2001:239-240), em interpretar a

história jurídica que encontra e não, inventar uma história melhor. Desta forma, não

pode o juiz romper com o passado. A escolha de qual dos vários sentidos que o texto

legal possa ter não pode ser remetida à intenção de ninguém, devendo ser decidida pelo

juiz como uma questão de teoria política a luz do melhor princípio ou política que

justifica tal prática.

Outro ponto importante, é que Dworkin pressupõe a existência de uma

comunidade de princípios, ou seja, uma dada sociedade é formada por pessoas que

concordam que sua prática é governada por princípios comuns e não somente por regras

criadas em conformidade a um acordo político422

. Assim, o direito não está restrito ao

conjunto de decisões tomadas em âmbito institucional, mas transborda o mesmo,

devendo ser tomado em termos gerais, como um sistema de princípios que essas

decisões devem pressupor. Desta forma, tanto o juiz Hércules quanto os co-autores do

romance em cadeia representam membros dessa comunidade, tendo sua visão moldada

por esse mesmo “pano de fundo de silêncio compartilhado” que rege as práticas sociais.

Assim, tais atividades levarão o magistrado ao melhor argumento possível

do ponto de vista da moral política substantiva, mas ainda, a um argumento com

pretensões de ser correto.

Aliás, o juiz “Hércules” não se trata de um protagonista cujo bom-senso

individual resolve com justiça os casos, mas um juiz cuja compreensão abarca o Direito

em sua totalidade, ou seja, considera a produção legislativa e os casos já decididos.

Está-se buscando a demosntração das concepções dworkianas, mas não se

está, obviamente, a afastar certas críticas ao privilégio cognitivo do juiz Hércules

dworkiano e à tese da única resposta correta.

Certo é que cabe ao processo fornecer as condições de possibilidade para a

obtenção de uma resposta correta que se deve exigir de todo juiz democrático sempre

lembrando que o processo jurisdicional democratizante conta com a participação efetiva

das partes e que os princípios, atrás de cada regra, trazem a moral para o Direito

(compreendido como integridade – em Dworkin).

Essas considerações são importante para o estudo tendo em vista as

concepções ferrajolianas e alvaradianas, como a tese da separçaão entre direito e moral

421

Ibidem, p.239/240. 422

Idem. O Império do Direito. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p.254.

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194

e o entendimento de aplicação de texto sem interpretação. Mas, de toda sorte, não foram

o objetivo principal deste estudo.

4.3. “Questão de fato” e “questão de direito”: a distinção persiste na visão pós-

positivista?

Inquestionavelmente, esse é um tema fundamental para o desenvolvimento

do direito processual, afinal, é questão que envolve o princípio dispositivo e também a

máxima iura novit cúria. Ou seja, envolve a conclusão de que o juiz julga a questão de

fato com base nas alegações das partes e no que elas confirmam ou comprovam, mas

decide as questões de direito sem depender de suas manifestações.

Repise-se, pelo princípio dispositivo, somente os fatos são suscetíveis de

prova, a apreciação jurídica não, a qual é somente objeto da valoração normativa da

decisão judicial!423

Castanheira Neves, em estudo dedicado especificamente ao tema, afirma

que essa distinção é tão somente dogmática, e não metodológica, já que a questão de

direito não pode subsistir sem a influência da questão de fato, já que o fato ganha

relevância jurídica quando quanto a ele se aplica o direito424

.

Os advogados bem sabem que quando se pensa o fato já se visualiza, sobre

ele, a matéria do direito, e do inverso, quando pensa o direito já o reposiciona sobre o

fato.

Ocorre que, como ensina Georges Abboud, do ponto de vista metodológico,

a distinção entre questão de fato e questão de direito também não se sustenta porque

para ser operacionalizado um não prescinde do outro, ou seja, o fenômeno jurídico,

“não se apresenta puramente em abstrato, ele não pode prescindir do caso concreto.

Até porque sem o caso concreto, o direito passa a se limitar a simples regulador do

processo de estruturado do poder”425

. Se não há processo sem caso concreto, não há

porque se afirmar a aplicação de alguns institutos, por exemplo o julgamento antecipado

da lide e a teoria da causa madura, como se não contivessem questão fática e tão-só

matéria puramente de direito. Em realidade, o que se quer afirmar é que a dilação

probatória é desnecessária!

423

ABBOUD, Georges. Discricionariedade administrativa e judicial: o ato administrativo e a decisão

judicial, op. cit. p. 78. 424

NEVES, Antonio Castanheira. Questão de facto – Questão de direito: ou o problema metodológico da

juridicidade: ensaio de uma reposição crítica. Coimbra: Almedina, 1967, p. 55/56. 425

ABBOUD, Georges. Discricionariedade administrativa e judicial: o ato administrativo e a decisão

judicial, op. cit., p. 80.

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195

Ou também, como ensina Teresa Arruda Alvim Wambier426

, o mais correto

seria falar em questões que sejam predominantemente de fato e predominantemente de

direito, pois todo fenômeno jurídico tem sempre uma questão de fato e de direito, já

que, com Castanheira Neves427

, toda questão de direito é jurídica porque juridiciza um

fato, o qual somente é relevante por seus reflexos jurídicos.

Oportunas são as considerações de Luiz Guilherme Marinoni e Julio Cesar

Goulart Lanes428

que, em vendo a inseparabilidade entre as questões de fato e as

questões de direito conclui que o debate prévio sobre os elementos fático-jurídicos junto

à ideia de inseparabilidade entre fato e norma desautoriza a motivação que empregue a

máxima iura novit curia.

Isso muito se vê na jurisprudência ao considerar certas situações “tão

evidentes” na concepção (interna) do julgador.

Enfim, o que ser quer registrar é que a dicotomia objeto do presente tópico e

que apresenta eventos em todo o direito processual precisa ganhar uma dimensão pós-

positivista pois faz-se necessário ter em mente que como não há processo sem caso

concreto, de maneira que não existe “causa puramente de direito” e que não contenha

nenhuma questão fática. Elas não são independentes, havendo, em alguns casos,

desnecessidade de dilação probatória.

4.4. Afinal, e a verdade? O que diz sobre ela a hermenêutica filosófica?

Desde já deixa-se registrada a profunda dificuldade da doutrina brasileira

em tratar do tema. É que a questão da verdade está longe de ser algo a ser tratado apenas

dogmaticamente.

No âmbito da dogmática jurídica, a importância da viragem linguística para

a filosofia do século XX ainda não ganhou todo o seu prestígio, já abordada no presente

estudo. Em uma visão ligada ao processo em geral, utilizando a matriz teórica da

hermenêutica filosófica e da crítica hermenêutica do direito, ressalta-se Lenio Streck,

Rafael Tomaz de Oliveira, Georges Abboud, Francisco J. Borges Motta, Adalberto

Hommerding e Maurício Ramires.

426

WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Distinção entre questão de fato e questão de direito para fins de

cabimento de recurso especial. Revista de Processo. Vol.92. São Paulo: Ed. RT, 1998, p.52. 427

NEVES, Antonio Castanheira. Digesta: escritos acerca do Pensamento Jurídico da sua Metodologia e

Outros, op. cit., p. 483/522. 428

MARINONI. Luiz Guilherme; LANES, Júlio Cesar Goulart. Fato e direito no processo civil

cooperativo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014, p. 214.

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Primeiramente, boa parte da doutrina processual - especialmente a penal,

ainda se prende à dicotomia da busca da verdade real na esfera criminal e da verdade

formal nos ramos não-penais.

Para outros, o juiz deve buscar sempre a “verdade real”, o que nos remete ao

socialismo processual e ao protagonismo judicial sendo traduzida como aquela capaz de

recompor os fatos tais como ocorreram em prol da justiça e da certeza. Em realidade, o

que aparenta é que a “verdade real” acaba sendo utilizada mais como artifício retórico

para justificar uma “verdade formal”, uma verdade da consciência do julgador que não

se dá ao trabalho ou na verdade não possui os fundamentos que lhe gostaria para sua

decisão. Fica clara essa conclusão especialmente diante de defesas, como a de Ada

Pelegrini Grinover, que sustentam a atividade investigativa por parte do juiz mesmo

quando os fatos forem incontroversos.

O princípio da verdade real, que foi o mito de um processo penal voltado

para a liberdade absoluta do juiz e para a utilização dos poderes ilimitados na

busca da prova, significa hoje simplesmente a tendência a uma certeza

próxima da verdade judicial: uma verdade subtraída à exclusiva influência

das partes pelos poderes instrutórios do juiz e uma verdade ética, processual e

constitucionalmente válida (…) e ainda agora exclusivamente para o

processo penal tradicional, indica uma verdade a ser pesquisada mesmo

quando os fatos forem incontroversos, com a finalidade do juiz aplicar a

norma de direito material aos fatos realmente ocorridos, para poder pacificar

com justiça.429

Essa defesa encontra adeptos porque invoca um interesse maior, o público.

Mas esconde o que realmente ocorre:

Embora, no plano filosófico, não fique claro esse delineamento

paradigmático, tudo está a indicar que o sistema inquisitório é um corolário

da filosofia da consciência (não vejo a doutrina processual penal reconhecer

isso). E por quê? Porque a ideia de “sistema inquisitivo” representa uma

profissão de fé na tese de que o sujeito (do esquema S-O) é “senhor dos

sentidos”, de modo que esse sujeito - e não a sociedade - é que deve se

“convencer”, ter a “certeza” de seu julgamento etc.430

A indagação que se mostrou desde a introdução desta obra foi: como a

verdade é então real se com ela se tem o convencimento? Vale dizer: ora a verdade é

representada em um dado bruto (o fato em si?!) ao qual o sujeito cognoscente deve se

429

GRINOVER, Ada Pellegrini. A iniciativa instrutória do juiz no processo penal acusatório. In: Revista

Forense. vol. 347. Rio de Janeiro: Forense, jul.-set. 1999, p.7 e ss. 430

STRECK, Lenio. O que é isto – a verdade real? - Uma crítica ao sincretismo jusfilosófico de terrae

brasilis. Revista de Processo. Vol. 921. São Paulo: Editora RT, 2012, p. 359/392.

Page 197: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP ... Lobão Torres.pdfem 1989, de “Diritto e Ragione: Teoria del Garantismo Penale”. Foi com a tradução desta obra para

197

amoldar; ora a verdade é tida como uma construção, erguida - a partir de uma pseudo

“consciência metodológica” - pelo sujeito cognoscente, algo que aparece claramente no

conceito de “livre convencimento”.

Ou (i) há uma verdade real nos fatos (buscar a verdade nas essências das

“coisas”/fatos e que são verdades irrefutáveis, indiscutíveis e, portanto, não há

convencimento, uma vez que sequer há sujeito - metafísica clássica), ou, (ii) há, sim, um

livre convencimento, no qual é possível se deduzir, autônoma e racionalmente, através

do método construído pela subjetividade, o que é verdadeiro ou não (metafísica

moderna)431

.

Mas sabe-se que a primeira metade do século XX produziu revoluções

importantes para a filosofia e para o direito. Pautou-se (i) o problema do conceito

absoluto de verdade e sua consequente implicação no fundamento e (ii) o problema do

método para a revelação da verdade432

.

O fundamento estava apontado ou na coisa objeto do conhecimento e que

relaciona-se com a verdade como produto da correspondência da coisa ao intelecto -

paradigma da adequação, objetivista ou verdade correspondencial- ou no sujeito

cognoscente e que relaciona-se com a verdade como construção subjetiva deste sujeito -

paradigma subjetivista ou verdade subjetivista-, e que torna impossível a noção de

adequação entre a inteligência e a coisa baseada na concepção unitária da verdade agora

rompida.

Situando a dogmática jurídica, esta sustenta a identidade entre o

conhecimento e o seu objeto, o que faz manter no sentido comum teórico dos juristas a

identidade entre conceito e realidade, ou seja, refém do paradigma objetivista. E assim,

o julgador, inspirado em um interesse impessoal, afastando-se de sua ideologia,

reproduziria a verdade material, descomprometida, desinteressada, inquestionável. Mas

veja-se: não estar-se-ia a esperar uma boa vontade reivindicadora de práticas de

solidariedade e que tanto repudia o garantismo?433

431

Ibidem, p. 359/392. 432

ABBOUD, Georges. Discricionariedade administrativa e judicial: o ato administrativo e a decisão

judicial, op.cit., p. 57. 433

Está-se referindo à crise de fundamento da metafísica que partiu a unidade do saber humano. A

concepção unitária da verdade perde seu fundamento possibilitava a definição da verdade como

adequação entre a inteligência e a coisa. A ausência de fundamento na filosofia se inaugura com a

subjetividade e se desenvolve como filosofia transcendental. É através da filosofia transcendental que se

mantém a ausência de fundamento para a verdade: ela deixará de ser adequação com o real. Na ciência,

na práxis, bem como na filosofia, verdade será construção. É por isso que se introduz, nas três áreas, o

niilismo, isto é, a perda do fundamento. A verdade (formalização) nas ciências, a verdade (tecnocracia) na

práxis e a verdade (transcendentalidade) na filosofia, tornam-se três áreas interligadas, pois sua fonte é a

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198

O problema é que os juízes brasileiros parecem ainda se sentir responsáveis

por encontrar essa tal verdade real. Trata-se, como mencionado, do “objetivismo”

sustentado na ontologia clássica presente no positivismo exegético (sintático) do século

XIX consoante o qual o juiz era boca da lei que contém o direito.

O problema do fundamento tentou ser resolvido pela filosofia no século XX

com o giro linguístico, já repassado por diversas vezes em tópicos anteriores. Relembre-

se: a questão do fundamento relaciona-se com o conceito de verdade na medida em que

o posicionamento acerca do primeiro deve estar de acordo com o segundo. O que se

quer dizer é que com o giro linguístico, a questão do fundamento é deslocada para a

linguagem, uma estrutura constituidora do mundo. Em outras palavras, a reviravolta

linguística significou novo paradigma para a filosofia em que a linguagem passa de

objeto da reflexão filosófica para a esfera dos fundamentos de todo pensar.

Nesse sentido, a abordagem filosófica trazida por este estudo já demonstrou

que texto e norma não se confundem, por isso é tão importante o pós-positivismo.

Relembre-se que a hermenêutica jurídica clássica concebia a interpretação

como uma relação sujeito-objeto na qual o conjunto normativo é desprovido de sentido.

É a compreensão subjetiva que dará determinada significação ao conjunto normativo,

como se essa significação fosse determinada pelo sujeito, servindo a linguagem como

um meio pelo qual o sujeito conhece o sentido dos textos pois o intérprete só revela o

sentido do texto numa interpretação como ato de conhecimento “e toda preocupação

está voltada para que seja garantida a objetividade da interpretação ou um caráter de

neutralidade do intérprete em relação à lei (ou à vontade do legislador)”434

.

Como o sujeito se colocará diante do objeto para apreender a realidade, os

métodos se fazem necessários para essa apreensão e condicionarão a atividade do

sujeito perante o texto.

Mas estas afirmações restam fragilizadas com o advento da hermenêutica

filosófica. Como já expresso neste estudo, para este paradigma o intérprete não pode

operar o Direito como quem assujeita um objeto.

É que é possível dividir dois grandes grupos que levam a uma necessária

opção paradigmática entre um ou outro quando se está a falar sobre a tarefa da filosofia

mesma: a subjetividade. (...) Neste quadro, a busca da verdade pode ser realizada somente como tarefa.

Perdemos a convicção de que ela nos foi dada como um todo. Cf. ABBOUD, Georges. Discricionariedade

administrativa e judicial: o ato administrativo e a decisão judicial. São Paulo: Editora Revista dos

Tribunais, 2015, p. 57. 434

ABBOUD, Georges; CARNIO, Henrique Garbellini; OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. Introdução à

teoria e à filosofia do direito, op.cit., p.395.

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no processo de conhecimento, o analítico (ou semântico) e o continental (no qual se

situa a hermenêutica, sua corrente de maior privilégio). O primeiro reconhece a

polissemia dos significados produzidos pela linguagem (superada, portanto, a ideia da

pura sintática) sustentando reduzi-la por meio de uma análise lógica dos enunciados

linguísticos, mas tendo em conta seu uso denotativo, enquanto o segundo concebe o

papel e a tarefa da filosofia como superadora dessa análise lógica, não ignorando sua

importância.

Para a hermenêutica, há uma dimensão que vai além daquela comportada

pela linguagem humana, ou seja, esta não se esgota no que diz, pois para a hermenêutica

a linguagem está no seu aspecto teórico e prático: “o que é significado pela linguagem

aparece a partir dos contextos histórico-concretos a partir do qual estão envolvidos o

sujeito que conhece e o objeto que é conhecido”435.

Nesse contexto, a hermenêutica afirmaria que a concepção alvaradiana de

processo como “método” ou como uma “técnica” cuja obediência resulte em respostas

seguras desconsidera o Direito como integrante das ciências do espírito (ciências

humanas e sociais), pois, como Gadamer ensina, as produções destas ciências estão

distantes do ideal de verificabilidade e de seus padrões, pois a verdade, nelas, possui sua

própria historicidade e temporalidade436

.

A pré-compreensões vistas em Gadamer (que Heidegger437

assevera que a

interpretação advém de uma posição prévia, visão prévia e concepção prévia), são

sentidos assumidos inconscientemente pelo intérprete por transmissão da própria

linguagem, considerando sentido como “a perspectiva na qual se estrutura o projeto de

posição prévia, visão prévia e concepção prévia. É a partir dela que algo se torna

compreensível como algo”438

.

É com a linguagem que se possibilita interpretar o compreendido:

E aqui chegamos ao (já antes anunciado) caráter circular da compreensão, na

exata medida em que a “interpretação já sempre se movimenta no já

compreendido e dele se deve alimentar”, o que não deve ser entendido como

“um vício”, mas, sim, como um reconhecimento das condições essenciais de

realização de qualquer interpretação possível; é no contexto destas reflexões

que Heidegger lança uma de suas máximas mais conhecidas: “o decisivo não

é sair do círculo mas entrar no círculo de modo adequado”, o que quer dizer

que a possibilidade positiva do conhecimento mais original só pode ser

apreendida de modo autêntico se a interpretação tiver compreendido que “sua

primeira, única e última tarefa é de não se deixar guiar, na posição prévia,

435

Ibidem, p. 406. 436

GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método II: Complementos e Índice, op.cit., p. 61-63. 437

HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo, op.cit., p. 211. 438

Ibidem, p. 212-213.

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visão prévia e concepção prévia, por conceitos populares e inspirações”, ou

seja, na “elaboração da posição prévia, da visão prévia e concepção prévia,

ela deve assegurar o tema científico a partir das coisas elas mesmas”439

.

Está-se a falar do “método” fenomenológico e do círculo hermenêutico.

“Toda interpretação correta tem que proteger-se da arbitrariedade de intuições

repentinas e da estreiteza dos hábitos de pensar imperceptíveis e voltar seu olhar para

as coisas elas mesmas”, pois “o que importa é manter a vista atenta à coisa através de

todos os desvios a que se vê constantemente submetido o intérprete em virtude das

ideias que lhe ocorrem”.

Francisco José Borges Motta sintetiza a fenomenologia como “método” não

como algo “exterior e puramente técnico, mas tanto mais ligado à discussão das coisas

em si mesmas (...) que não visa a caracterizar os conteúdos dos objetos da pesquisa

filosófica, mas que apenas caracteriza o como, a maneira de proceder da filosofia”440

.

Se a linguagem é constituinte e instituidora do saber, e, portanto, do nosso

modo-de-ser-no-mundo, que implica as condições de possibilidades que temos para

compreender e agir, ou seja, já que é com a linguagem que se pensa, ela possibilita

interpretar o compreendido, a relação entre a palavra e a coisa consiste em que aquela, a

palavra, é a própria relação, já que é a palavra que confere ser às coisas e o ser mora na

palavra.

Claro, contudo, que a linguagem não cria o mundo, pois este existe com

independência , mas a linguagem é analisada não num sistema fechado de referências,

mas sim no plano da historicidade, aproximada à práxis humana, como existência e

faticidade, em que o texto é ligado a uma existência concreta, a uma carga pré-

ontológica que na existência já vem antecipada441

.

Assim revoluciona-se o conceito de verdade pela percepção de inexistência

de separação entre o sujeito cognoscente e um objeto a ser conhecido, o que destrói a

verdade como representação do real.

Com Heidegger, deve-se deixar cada ente ser o que ele é entregando-se ao

ente para que este se manifeste naquilo que é e como é, e esta liberdade de deixar-ser o

ente é a essência da verdade, a verdade como “desvelamento”, como “des-ocultação”. E

439

MOTTA, Francisco José Borges. Levando o direito a sério: Uma crítica hermenêutica ao

protagonismo judicial, op. cit., p. 49. 440

Ibidem, p. 46. 441

STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica (jurídica) e Estado Democrático de Direito: uma análise crítica.

In: Anuário do Programa de Pós-graduação em Direito – Mestrado e Doutorado. São Leopoldo: Centro de

Ciências Jurídicas UNISINOS, 1999. p. 79-80.

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se o desvelamento do ser é a verdade ontológica, pelo conceito já apresentado de

diferença ontológica, o desvelamento do ser é desvelamento do ser do ente. E então, o

desvelamento do ente implica na verdade ôntica. Assim percebe-se “a essência ôntico-

ontológica da verdade em geral, desta maneira necessariamente bifurcada, somente é

possível junto com a irrupção dessa diferença ontológica”.

Gadamer, a partir das lições de Heidegger, preocupado com a construção de

uma hermenêutica prática filosófica que reconhece o caráter universal da linguagem e

que o enfrenta numa batalha para a superação de arbitrariedades interpretativas, passou

a desenvolver uma filosofia com uma série de categorias hermenêuticas (pré-conceito,

applicatio, tradição, história efeitual, círculo hermenêutico, fusão de horizontes).

A hermenêutica filosófica Gadameriana, que foca no que acontece além do

querer e fazer (não no que se faz ou no que se deveria fazer), como já mencionado, não

procura estabelecer um método, mas sim descobrir e conhecer o que está ignorado e

encoberto pela disputa sobre os métodos, que percebe a ciência e a torna possível442

, e

por isso Lenio Streck alerta para a “Verdade contra o Método”, pois o fenômeno

hermenêutico não é um problema de método e compreender e interpretar textos pertence

ao todo da experiência do homem no mundo.

Deve-se ter em mente os ensinamentos de Gadamer para a compreensão nas

ciências do espírito: deve-se considerar que o Direito é interpretativo, hermenêutico e

filosófico. E assim, afirma ser possível construir verdades que não sejam matemáticas,

mas hermenêuticas, não menos verdadeiras do que aquelas. Afinal, como bem disse,

nem sempre a via da demonstração será a via correta para fazer com que outra pessoa

veja o verdadeiro443

. É que a tese da demonstrabilidade advém de uma metafísica que

adote a proposição verdadeira somente como decorrência de um fato verdadeiro.

Mas Dworkin afirma que há alguma coisa no mundo, além de fatos

concretos, afirmada pela hermenêutica gadameriana com os “fatos morais”444

. Dworkin

442

MOTTA, Francisco José Borges. Levando o direito a sério: Uma crítica hermenêutica ao

protagonismo judicial, op. cit., p. 53. 443

GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método II: Complementos e Índice, op. cit., p. 61-63. 444

Dworkin utiliza-se do exemplo da escravidão afirmando que ela é injusta em si, não porque se pensa

que ela é injusta ou nesse sentido convencionam. Não porque os valores morais estão à espera de captura

ou prova, mas porque para sustentar esta afirmação utiliza-se da moralidade, não da metafísica

aprisionadora do mundo em conceitos, na qual somem os casos concretos. Dirá que: “não existe diferença

importante de categoria ou posição filosófica entre a afirmação de que a escravidão é iníqua e a

afirmação de que existe uma resposta certa à questão da escravidão, isto é, que ela é iníqua. Não posso,

racionalmente, considerar a primeira dessas opiniões como uma opinião moral sem fazer o mesmo com

relação à segunda. Uma vez que o ceticismo exterior não oferece razões para repudiar ou modificar a

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dirá que uma proposição de Direito pode ser considerada verdadeira se for mais

coerente do que a posição contrária, mas que há duas dimensões para sustentar que uma

justificativa é melhor do que a outra: a dimensão da adequação e a dimensão da

moralidade política. A distinção entre argumentos de política e argumentos de princípio

em Dworkin é providencial nesse tocante.

Para o jusfilósofo norte-americano, “os argumentos de política justificam

uma decisão política, mostrando que a decisão fomenta ou protege algum objetivo

coletivo da comunidade como um todo”, já os “argumentos de princípio justificam uma

decisão política, mostrando que a decisão respeita ou garante um direito de um

indivíduo ou de um grupo”445

, ambos constituindo argumentos políticos num sentido

mais amplo, mas um é argumento de princípio político e outro de procedimento político

(que exige que alguma decisão particular promova alguma concepção do bem-estar

geral ou do interesse público)446

.

Assim, enquanto o princípio favorece um direito, a política é um padrão que

estabelece uma meta, sendo argumentos de política aqueles em favor de um objeto

coletivo, relacionado ao bem comum.

No processo legislativo, ambas as modalidades de argumentação são

admitidas, e a lei transforma os argumentos de política em uma questão de princípio, de

maneira que as decisões judiciais devem ser geradas por princípio e não por políticas.

Ou seja:

O caso é que, a partir do momento que aceitamos que o Judiciário deve tomar

decisões política importantes, devemos refletir sobre quais motivos, em suas

mãos, são bons motivos; e a visão de Dworkin –fixemos pela repetição – é a

de que o tribunal deve tomar decisões de princípio, decisões sobre quais

direitos as pessoas têm sob determinado sistema constitucional, e não

decisões sobre como se promove o bem-estar geral; e mais: deve tomar essas

decisões elaborando e aplicando a “teoria substantiva da representação”,

extraída do princípio básico de que o governo deve tratar as pessoas como

iguais.447

E, portanto, Dworkin concebe seu juiz Hércules não como o juiz solipsista

ou protagonista. Recusando a discricionariedade “forte” atribuída aos juízes por Hart, o

autor sustenta a existência de “única resposta correta”, esta a ser produto do juiz

Hércules que compreende o Direito na sua totalidade (isto é, considera tanto a produção

primeira, também não oferece razões para repudiar ou modificar a segunda. As duas são afirmações

internas à moral, e não sobre ela.” DWORKIN, Ronald. O Império do Direito, op. cit., p. 83. 445

Idem. Levando os Direitos a Sério, op. cit., p. 129. 446

Idem. Uma questão de princípio, op. cit., p.6. 447

MOTTA, Francisco José Borges. Levando o direito a sério: Uma crítica hermenêutica ao

protagonismo judicial, op. cit., p. 133.

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203

legislativa quanto o que fizeram e fazem acertadamente os demais juízes) prestando

contas ao conjunto principiológico a partir da Constituição.

Essa é, aliás, uma das maiores objeções às suas considerações dworkinianas.

Afinal, se não é provável que uma resposta seja mais correta que a de outro juiz, é inútil

exigir a busca judicial por essa resposta, até porque, poder-se-ia argumentar, não há

mesmo como provar que seja a resposta correta.

Outrossim, se não há respostas corretas e o juiz decide decisionisticamente,

então não há porque apostar numa resposta correta sobre os direitos dos cidadãos, de

maneira que deve-se aceitar que os juízes frequentemente errarão.

Como visto, para a hermenêutica gadameriana não existe compreensão sem

antecipação de sentido, ou seja, sem pré-compreensão. E assim, interpretar não pode ser

apontar o verdadeiro significado dos conceitos jurídicos. A hermenêutica jurídica não

pode ser extrair da norma o que ela já contém.

E em consideração ao Estado Democrático de Direito e ao

constitucionalismo democrático, a gestão da prova, que está ligada à questão da

verdade, deve ser pensada no contexto de um processo democraticamente gerido, o que

nos leva a questionar os limites do juiz. E assim, a gestão da prova recai numa teoria da

decisão.

É nesse contexto que este paradigma acredita ser possível falar em

“verdade” no direito, uma verdade hermeneuticamente construída (história institucional

do direito – método hermenêutico) e que não é nem uma essência do objeto, nem uma

construção da consciência, mas, sim, o produto de uma compreensão situada do ser-aí

(Dasein).

“A verdade não é o resultado da construção de um sujeito consciente, mas

sim, aquilo que emerge de uma compreensão, linguística e historicamente

situada. E é a linguisticidade da compreensão que permite à comunidade

política articular uma censura controladora do sentido das decisões dos

casos jurídicos”448

.

A verdade, no sentido hermenêutico, “não é uma questão de método, mas,

isso sim, uma questão relativa á manifestação do ser, para um ser cuja existência

consiste na compreensão do ser”449

, ou seja, “verdade, assim, é des-velamento, des-

ocultação, é retirar o ente do velamento, permitindo que este se revele”450

.

448

STRECK, Lenio. O que é isto – a verdade real? - Uma crítica ao sincretismo jusfilosófico de terrae

brasilis. Revista de Processo. Vol. 921. São Paulo: Editora RT, 2012, p. 359/392. 449

Idem. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise: Uma Exploração Hermenêutica da Construção do Direito.

Porto Alegre, Livraria do Advogado, p. 199. 450

Ibidem, p. 199.

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204

Ou seja, na experiência hermenêutica a verdade nada tem a ver com a

verdade como correspondência. A verdade hermenêutica se fundamenta na dialética, na

fusão de horizonte entre o contexto do sujeito e o contexto da tradição, acontece no

diálogo, insto é, na interação de perguntas e respostas em que os prejuízos ilegítimos

têm a chance de se tornarem legítimos.

4.5. O caminhar metodológico do processo civil

O processo civil que conhecemos atualmente resulta de paciente evolução, a

qual costuma ser estudada em fases metodológicas. O novo Código de Processo Civil

brasileiro trouxe ao contexto doutrinário a discussão a respeito do que se chama

“modelo cooperativo”, não reconhecido pelos garantistas mas que adiante se abordará

mais profundamente.

A doutrina que o sustenta, defende que as fases do processo civil trouxe-o

ao formalismo-valorativo, e portanto, faz-se necessário abordá-lo sempre na tentativa de

trazer os acertos das críticas garantistas à nossa doutrina, que desde o início criticou tal

modelo e inclusive inúmeras passagens do novo diploma.

Quatro linhas costumam ser destacadas no direito processual civil: o

praxismo, o processualismo, o instrumentalismo e o formalismo-valorativo.

O praxismo ou período sincretista refere-se à pré-história do direito

processual civil, tempo em que se aludia ao processo como “procedura” e não ainda

como “diritto processual civile”.

Evidentemente, não se vislumbrava o processo como um ramo autônomo do

direito, mas como mero apêndice do direito material, confundido-o inclusive com o

mero procedimento definido como sucessão de atos.

Os conhecimentos eram puramente empíricos, sem qualquer consciência de

princípios, sem conceitos próprios e sem a definição de um método.

Neste período inexistia qualquer menção à relação jurídica entre seus

sujeitos ou tampouco sobre a participação dos litigantes (contraditório). Em síntese, a

jurisdição era encarada como um sistema posto para a tutela dos direitos subjetivos

particulares, enquanto a ação era compreendida como um desdobramento do direito

subjetivo e o processo como simples procedimento.

Com Oskar von Bülow (Bülow) o processo deixa de ser tratado como mero

procedimento e passar a ser uma relação jurídica abstrata obediente a pressupostos

próprios de existência e validade.

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205

Em 1868, Bülow publica na Alemanha uma obra intitulada A Teoria das Exceções

Processuais e os Pressupostos Processuais. A teoria basicamente trata da relação jurídica

processual ocorrente entre as partes e o juiz. Esta ideia já foi discutida por vários outros autores,

porém o mérito a Bülow se dá pela sistematização da relação processual e não propriamente

pela existência da relação processual.

É então que nasce, com o conceito de relação jurídica processual, a

autonomia do estudo do direito processual inaugurando o “processualismo científico”

no final do século XIX por Bülow, também conhecido como

conceitualismo/autonomismo.

A partir de então a doutrina cifra-se à racional construção do arcabouço de

conceitos do direito processual civil. Aliás, não por outro motivo as grandes linhas deste

ramo enquanto disciplina autônoma foram traçadas nesta fase.

A jurisdição assumiu a função de realizar o direito objetivo estatal e

pacificar a sociedade. Foi nesse contexto que a ação deixou de ser compreendida como

um apêndice do direito material, passando a representar um direito público subjetivo

autônomo de ir a juízo e poder lograr uma sentença.

Ao mesmo passo, passa-se de uma inspiração privatista (“procedura”), para

uma perspectiva publicística (“diritto processuale”). Ocorre que esse clima

processualista acabou por afastar o processo dos valores sociais.

E então, a ideia de processo como instrumento do direito material vem com

a perspectiva instrumentalista, constituindo uma superação da perspectiva puramente

técnica e como decorrência do realismo jurídico norte-americano451

, mérito aliás da obra

de Cândido Rangel Dinamarco intitulada “Instrumentalidade do Processo” publicada em

primeira edição em 1987.

A teoria de Dinamarco, sob a influência das teorias socializantes, enxerga o

processo civil dotado de escopos metajurídicos (sociais, políticos e econômicos) a

alcançar, “repetindo, todavia, as mesmas finalidades já sustentadas por Franz Klein em

sua célebre preleção em Dresden, em 1901”452

.

Socialmente, o processo serve para persecução da paz social e para a

educação do povo. Politicamente, o processo consagra a autoridade do Estado, a

liberdade dos cidadãos e a participação dos atores sociais. Juridicamente, o processo

visa a “vontade concreta do direito”.

451

NUNES, Dierle José Coelho. Processo Jurisdicional Democrático. Belo Horizonte: Juruá Editora,

2012, p. 145. 452

Ibidem, p. 142.

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206

Em síntese, o procedimento jurídico para Dinamarco funciona como mero

instrumento de aplicação de um ideal predefinido de bem viver, fruto dos sentimentos

da nação com conteúdos fixos atribuídos à sensibilidade do agente estatal, assumindo-se

uma realidade axiológica presumida.

E nesse sentido, a jurisdição ocupa o lugar de destaque por constituir uma

manifestação do poder estatal exercido pelos juízes para a consecução dos fins do

próprio Estado. A legitimidade constitucional do sistema jurídico dependeria, na ótica

do autor, de procedimentos vocacionados à ampla obediência pelos cidadãos dos

entendimentos encontrados pelos seus agentes estatais453

.

No que tange o binômio direito-processo, opta-se pela teoria dualista do

ordenamento jurídico (ou declarativa, liderada por Chiovenda) em detrimento da teoria

unitária (ou constitutiva, liderada por Canelutti)454

. Para aquela teoria, colocar o

instituto da ação como centro do estudo seria escolha individualista e isolada do

processo civil, por outro lado, também não se poderia colocar o processo como

instituto-chave do direito processual porque seria um formalismo exacerbado tê-lo como

ponto de convergência dos outros institutos455

.

Contudo, como poderia caber à jurisdição cumprir tão somente uma função

declaratória da ordem jurídica preestabelecida pelo legislador? Se texto e norma não se

confundem, então não é possível defender que jurisdição simplesmente declara a norma

dada pelo legislador, isto é, não há declaração da vontade concreta do direito material

456.

O processo caminhou para a busca de justiça no caso concreto. Vale o

processo agora do devido processo legal com as exigências do devido processo

constitucional, libertando o processo das apriorísticas e abstratas soluções legais

infraconstitucionais.

Além disso, o relacionamento entre o direito processual civil e o direito

constitucional ultrapassou a tutela constitucional do processo (constitucionalização das

normas jurídicas fundamentais de processo) e da jurisdição constitucional, pois o

453

Ibidem, p. 144. 454

DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo, op. cit., p. 189. 455

MITIDIERO, Daniel. Colaboração no processo civil. Pressupostos sociais, lógicos e éticos, op. cit., p.

38 – 41. 456

Ibidem, p. 42 - 43.

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207

pensamento constitucional irradiou para o processualismo civil, especialmente com uma

nova classificação das normas457

e com a preocupação sobre os direitos fundamentais:

Com efeito, enquanto a primeira constitucionalização do processo teve

por desiderato incorporar normas processuais na Constituição, a segunda,

própria de nosso tempo, visa atualizar o discurso processual civil com

normas tipo-princípios e tipo-postulados, além de empregar, como uma

constante, a eficácia dos direitos fundamentais para a solução dos mais

variegados problemas de ordem processual.458

Outro aporte do direito constitucional foi para a aplicação do processo civil

no que tange a teorização da aplicabilidade imediata e da plena eficácia dos direitos

fundamentais, da interpretação com eles conforme, e da vinculação do Estado e dos

particulares aos direitos fundamentais.

Essa bagagem do direito constitucional junto ao direito processual civil,

concebendo-se a democracia participativa como um direito fundamental de quarta

dimensão, no bojo da qual o processo caracteriza-se como um espaço privilegiado de exercício

direto de poder pelo povo, e por consequência, o enfoque do processo nas posições dos

sujeitos processuais, transferiu o polo metodológico da jurisdição para o processo, o que

corresponde, em termos de lógica jurídica, à passagem da lógica apodítica à lógica

dialética, ou seja, do monólogo jurisdicional ao diálogo judiciário459

.

Potencializa-se o valor participação no processo, incrementando-se as posições

jurídicas das partes a fim de que o processo se constitua, firmemente, como um democrático

ponto de encontro de direitos fundamentais.

Nesse sentido, para Daniel Mitidiero e Carlos Alberto Alvaro de Oliveira, o

instrumentalismo teria sido superado por três razões:

(...) uma, por assinalar função puramente declaratória à jurisdição; duas,

porque as relações entre processo e Constituição não se colocariam apenas no

plano das garantias, devendo ser pensadas a partir de uma nova teoria das

normas e dos direitos fundamentais; e três, porque a colocação da jurisdição

como centro do processo negligenciaria a dimensão participativa que a

democracia haveria conquistado no direito contemporâneo.460

457

Para Humberto Ávila, as normas podem ser divididas em princípios, que são normas de finalidade,

regras (normas de primeiro grau), que são normas de conduta, e postulados normativos (normas de

segundo grau), que são normas de método. 458

MITIDIERO, Daniel. Colaboração no processo civil. Pressupostos sociais, lógicos e éticos, op. cit, p.

46. 459

Ibidem, p. 48/49. 460

OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de; MITIDERO, Daniel. Curso de processo civil: teoria geral do

processo civil e parte geral do direito processual civil. São Paulo: Atlas, 2010. vol. 1, p. 15.

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208

Nesse contexto, a doutrina afirma adentrar na fase metodológica do

formalismo-valorativo461

, proposta por Carlos Alberto Alvaro de Oliveira em sua tese

de doutoramento462

. Primeiramente, importante explicar a semântica da expressão

formalismo na concepção de Carlos Alberto Alvaro de Oliveira:

O formalismo, ou forma em sentido amplo, não se confunde com a forma do

ato processual individualmente considerado. Diz respeito à totalidade formal

do processo, compreendendo não só a forma, ou as formalidades, mas

especialmente a delimitação dos poderes, faculdades e deveres dos sujeitos

processuais, coordenação de sua atividade, ordenação do procedimento e

organização do processo, com vistas a que sejam atingidas suas finalidades

primordiais. A forma em sentido amplo investe-se, assim, da tarefa de indicar

as fronteiras para o começo e o fim do processo, circunscrever o material a

ser formado, e estabelecer dentro de quais limites devem cooperar e agir as

pessoas atuantes no processo para o seu desenvolvimento. O formalismo

processual contém, portanto, a própria idéia do processo como organização

da desordem, emprestando previsibilidade a todo o procedimento463

.

O processualista gaúcho teoriza visando impedir que a realização do

procedimento fique deixa ao simples querer do juiz funcioanndo como uma garantia de

liberdade contra o arbítrio dos órgãos que exercem o poder do Estado464

Isto é, “o termo ‘formalismo’ não está sendo empregado na locução como

supervalorização da forma em sentido estrito (...) trata-se de conceito que visa a

abarcar a totalidade das posições jurídicas processuais objetivando seu equilíbrio” 465

.

Até porque não é possível defender um processo constitucionalizado sob

uma maior formalidade processual vez que uma das principais funções de qualquer

processo constitucionalizado é garantir a participação dos interessados na decisão.

Já a alusão ao valorativo significa “realçar que toda normatividade só se

justifica no Estado Constitucional se ancorada nos valores encarnados na

Constituição”466

.

Isso porque o formalismo, assim como o processo, é destinado a um fim.

Sendo o processo produto do homem, e portanto, de sua cultura, uma ligação entre os

461

Que Daniel Mitidiero “assume como um verdadeiro método de pensamento e programa de reforma de

nosso processo”. MITIDIERO, Daniel. Colaboração no processo civil: pressupostos sociais, lógicos e

éticos, op. cit., p. 50. 462

Carlos Alberto Alvaro de Oliveira analisou em sua obra “Do formalismo no processo civil” a

antinomia existente entre formalismo e justiça, preocupando-se com a realização do direito material e dos

valores constitucionais. O autor conceitua formalismo para extremá-lo da concepção de formalismo-

valorativo, e então estabelece os principais valores e princípios com que, sob sua ótima, deve trabalhar o

processo. Cf. O formalismo-valorativo em confronto com o formalismo-excessivo, o autor refina as ideias

lá expostas e desenvolve os conceitos ali lançados. In: Revista de Processo, n. 137. 463

Ibidem, p. 57. 464

Ibidem, p.59. 465

MITIDIERO, Daniel. Colaboração no processo civil: pressupostos sociais, lógicos e éticos, op. cit.,

p. 52. 466

Ibidem.

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mundos do ser e do dever-ser, torna-se natural falar aqui em valores. É exatamente em

virtude do fenômeno cultural que o formalismo não se confunde com a técnica, que é

neutra a respeito da questão axiológica. Até porque, não obstante a diversidade de

valores entre os povos, não há como se negar o aproveitamento de técnicas e soluções

para problemas comuns.

Nesse sentido, Carlos Alberto Álvaro ressalta:

Impõe-se, portanto, a análise dos valores mais importantes para o processo:

por um lado, a realização de justiça material e a paz social, por outro, a

efetividade, a segurança e a organização interna justa do próprio processo

(fair trial). Os dois primeiros estão mais vinculados aos fins do processo, os

três últimos ostentam uma face instrumental em relação àqueles. A par desses

valores específicos, mostram-se ainda significativos para o processo os

valores constitucionais e os valores culturais relacionados ao meio onde se

insere determinado sistema processual.467

Com efeito, da base axiológica apresentada por referido autor ressaem

princípios, regras e postulados para sua elaboração dogmática, organização,

interpretação e aplicação. Vale dizer: do plano axiológico, ligado a questões de

preferências subjetivas sobre determinada situação concreta, vai-se ao plano

deontológico, ligado à fixação de uma conduta de dever, típica das normas, isto é, que

trace uma conduta que possa ser avaliada pelo direito como proibida, permitida ou

obrigatória468

.

Em outras palavras, a proposta é que os valores essenciais efetividade e

segurança, que estão em permanente conflito, funcionem como sobreprincípios para

orientar na aplicação das regras e princípios. Nos casos não resolvidos pela norma, o

órgão judicial, com o emprego das técnicas hermenêuticas adequadas, deverá solucionar

aquele conflito permanente ponderando qual dos valores deverá prevalecer469

.

Assim, o processo civil cooperativo dar-se-ia nesta última fase

metodológica do processo civil, qual seja, a do formalismo-valorativo.

Inegavelmente é feliz Alvaro de Oliveira ao reconhecer a importância da

forma para a limitação do arbítrio e também o mal que é o formalismo excessivo. Mas o

autor, perceba-se, aposta na axiologia dos princípios semelhante à proposta alexyana. E

o que se questiona é: a deontologia da Constituição não resta enfraquecida exatamente

com sua compreensão axiológica?

467

OLIVEIRA, Carlos Alberto Álvaro de. O formalismo-valorativo em confronto com o formalismo-

excessivo. In: Revista da Ajuris. Porto Alegre: 2006. 468

MITIDIERO, Daniel. Colaboração no processo civil: pressupostos sociais, lógicos e éticos, op. cit., p.

51. 469

OLIVEIRA, Carlos Alberto Álvaro de. O formalismo-valorativo em confronto com o formalismo-

excessivo, op. cit., p.56.

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É que, sob uma perspectiva garantista e histórica (refere-se ao período pós-

segunda guerra), na qual a democracia não deve ser vista sob uma concepção

majoritária somente, mas sim de consideração a todos os indivíduos em plena igualdade

na comunidade política, o processo deve ser visto contra os interesses coletivos, ou

ainda, sob uma axiologia que possa recair na negação do direito de quem efetivamente o

tem.

Mas perceba-se:o autor afirma que a ponderação entre o valor formalismo e

justiça deve ser feita mediante o recurso à equidade, que para ele é a justiça do caso

concreto, com o que sai-se da legalidade e ingressa-se no direito. Ou seja, a ponderação

é um exercício de equidade, um instrumento à disposição do juiz imbuído de um

sentimento de justiça.

Não estaria o autor apostando na subjetividade do juiz apesar de afirmar a

inconveniência da atribuição de ampla liberdade ao órgão judicial quando aposta na

equidade e em valores que estão fora do sistema?

4.4. O processo civil no Estado Democrático de Direito: a visão liberal do

garantismo processual e a materialidade da Constituição democrática.

O garantismo processual de Adolfo Alvarado Velloso, assumidamente,

pactua da filosofia política liberal470

. O Estado liberal está edificado pela liberdade

individual e se ressente de uma desconfiança da magistratura que estaria, atualmente,

radicalizando o princípio da separação dos poderes.

Ocorre que a noção de Estado Democrático de Direito pressupõe uma

valorização do jurídico e consequentemente uma redefinição dos Poderes do Estado

pela discussão sobre o papel destinado ao Poder Judiciário que leve em conta o

constitucionalismo pós-segunda guerra e que trouxe a Constituição como ponto de

encontro das dimensões democrática (formação da unidade política), liberal

(coordenação e limitação do poder estatal) e social (configuração social das condições

de vida).

Lenio Streck, abordando a crise de dupla face que acomete o direito e a

dogmática jurídica nos países de modernidade tardia, demonstrou que o pensamento

jurídico dominante continua lidando com o fenômeno jurídico consoante o paradigma

470

VELLOSO, Adolfo Alvarado. Teoria General Del Proceso – Lecciones. Disponível em Academia

Virtual Iberoamericana de Derecho y de Altos Estudios Judiciales, p. 11.

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liberal absenteísta próprio do legalismo econômico reinante ao tempo do Estado

Liberal-burguês.

É que nos quadros de um Estado Democrático de Direito, não se pode

ignorar o Direto como transformador da sociedade e do modo de composição de suas

relações: de um lado está o texto constitucional que estipula e aponta a necessidade da

realização dos direitos fundamentais-sociais e de outro a difícil vivência entre os

Poderes do Estado eleitos por uma maioria que pode, aliás, discordar dos próprios

mandamentos constitucionais471

.

No caso específico do Brasil, o processo constituinte de 1986-1988 luto não

apenas pela reconstrução do Estado de Direito, mas também pelo forte papel do Direito

que pela jurisdição guardaria o conteúdo material da Constituição, passando, o

Judiciário, a colocar-se no debate político.

E daqui extrai-se a discussão acerca da legitimidade do Poder Judiciário na

desconstituição de atos normativos do Poder Executivo e da declaração de

inconstitucionalidade das leis infraconstitucionais especialmente em países que preveem

o controle difuso de constitucionalidade.

De acordo com o atual entendimento do processualista argentino, a

declaração de inconstitucionalidade deve depender somente do requerimento da parte,

evitando-se toda atuação oficiosa do juiz, quando o objeto do litígio são direitos

transigíveis, pois, em tais casos, deve ser soberana a atuação das partes472

, relembrando

que a Argentina admite o controle de constitucionalidade difuso.

A discordância ou concordância com a afirmação do autor, ou seja, o

posicionamento acerca do papel exercido pela jurisdição constitucional relaciona-se

com uma discussão num contexto maior, qual seja, o papel do Poder Judiciário na

realização/efetivação dos direitos sociais-fundamentais no modelo de Estado

Democrático de Direito.

A intenção aqui é de se desfazer um equívoco: o debate sobre a efetividade

da Constituição e a atuação do Judiciário é muitas vezes remetida pela doutrina

brasileira (que discute o âmbito processual) à dicotomia entre garantistas e ativistas que

classifica aqueles como formalistas, até despreocupados com a concretização dos

direitos fundamentais e com a preservação da Constituição, e estes como defensores

árduos da Constituição. Ou ainda, ao que pretendem, por meio dos poderes instrutórios

471

STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso, op.cit., p. 90. 472

VELLOSO, Adolfo Alvarado. Sistema Procesal. Garantía de La libertad. Tomo I, op. cit., p. 485.

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do juiz garantir a materialidade da Constituição justificando-os numa deplorável

desigualdade social.

Pelo exposto até aqui, o leito já deve ter se dado conta que o ativismo não é

democrático. E também que não se é a favor de atividades judiciais oficiosas como

forma de resguardar a efetividade constitucional. Pelo que se concorda com a doutrina

garantista processual. É que a conduta judicial de ofício pode esconder que o juiz esteja

buscando hipóteses por ele já formuladas. Aliás, o próprio Luigi Ferrajoli defende a

materialidade/substancialidade constitucional. E é claro que Adolfo Alvarado Velloso,

jamais, repisa-se, deixaria de defender a democracia ou os direitos fundamentais. Ocorre

que o garantismo situa-se, como já mencionado, no modelo liberal. Aliás, arrisca-se

apontar que são suas pré-compreensões liberais que o leva a concluir pela possibilidade

de declaração de inconstitucionalidade oficiosa somente quando a controvérsia judicial

dizer respeito a direitos indisponíveis. Essa sua parcial assunção do controle difuso de

constitucionalidade pelo Judiciário advém, primeiramente, da alteração de seu

posicionamento tendo em vista abusos gerados pelos juízes, e consequentemente, pela

sua defesa liberal como única forma de combater os decisionismos.

Ocorre que no Estado Liberal, o centro de decisão apontava para o

Legislativo (o que não é proibido é permitido, direitos negativos), mas passou-se pelo

Estado Social, em que a primazia ficava com o Executivo, em face da necessidade de

realizar políticas públicas e sustentar a intervenção do Estado na economia, e alcançou-

se o Estado Democrático de Direito, em que o foco de tensão se volta para o

Judiciário.473

Ou seja, no Estado Democrático de Direito efetiva-se o controle da

atividade legislativa no sentido desta ter que estar consoante os procedimentos e

também o conteúdo material previsto na Constituição, diploma dirigente que aponta

para um dever de legislar conforme os direitos fundamentais e sociais. Isto se diz

considerando ainda o próprio contexto brasileiro, no qual o controle de

constitucionalidade surgiu inicialmente com a República, mas foi a Constituição de

1988 que trouxe importantes inovações com repercussões práticas para efetivá-lo.

A Carta Cidadã de 1988 inaugurou o Estado Democrático (e Social) de

Direito, regulou a intervenção do Estado na economia e estabeleceu a obrigação da

realização de políticas públicas, além de prever um rol de direitos fundamentais-sociais.

Ela, aliás, reconhece a sua própria força normativa para a concretização do que nela se

473

STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise: Uma Exploração Hermenêutica da

Construção do Direito, op. cit., p.55.

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regula quando prevê que as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais

têm aplicação imediata (art.5º, 1º).

Nos quadros de um Estado assim elaborado, o foco é deslocado para o

Poder Judiciário, observação já percebida por Mauro Cappeleti474

que apontou a ênfase

na atividade da Magistratura em 1999 como protetora dos tradicionais direitos

individuais e dos novos direitos difusos, coletivos e fragmentados.

As considerações que se faz à história brasileira se dá porque a discussão

sobre o papel do Direito e da justiça constitucional deve sempre ser contextualizada,

pois além do núcleo mínimo que pode ser considerado comum a todos os países que

adotam formas democrático-constitucionais de governo, há circunstâncias específicas de

cada Constituição e que vai levar em conta especificidades regionais e a identidade

nacional, importante até mesmo para que se interprete o texto constitucional.

No caso brasileiro, o Estado Social provedor que decorre da crítica ao

paradigma liberal nunca foi efetivamente implantado, de modo que o Direito como

transformador da sociedade é de extrema importância para que a Constituição não seja

simples texto, mera simbologia ou utopia.

Nesse contexto, a Constituição brasileira efetivamente aponta para a

transformações de um modelo de Estado Democrático em cujas bases econômicas está o

Estado Social, como se extrai do seu artigo 3º:

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do

Brasil:

I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;

II - garantir o desenvolvimento nacional;

III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades

sociais e regionais;

IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor,

idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Esse dispositivo constitucional, somado à história do Estado brasileiro

claramente aponta pra a construção de um Estado Social Democrático intervencionista

em cujo bojo devem constar políticas públicas distributivistas, até porque o conceito-

chave do Estado Social está no papel “de promover a integração da sociedade nacional

(...) integração esta que, no caso brasileiro, deve-se dar tanto no nível social quanto no

econômico”475

. Dito de outro modo, o que acrescenta ao Estado no paradigma

474

CAPPELLETI, Mauro. Juízes legisladores? Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1999, p.59-60. 475

STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica: Perspectivas e Possibilidades de

Concretização dos Direitos Fundamentais-Sociais no Brasil. Novos Estudos Jurídicos - Volume 8 - Nº 2,

maio/ago. 2003, p. 278.

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214

democrático é referida síntese nas fases anteriores agregando mecanismos para suprir

suas lacunas para a realização dos direitos fundamentais-sociais, além de outras

características.

Claro que não está aqui defendendo decisionismos, mas o efetivo

cumprimento da Constituição pelos mecanismos constitucionais e que envolvem o

Poder Judiciário, superando a concepção de Estado Social pela valorização do jurídico

que prevê diversos mecanismos de efetivação das promessas estabelecidas no próprio

texto constitucional. É nisso que as concepções se distanciam: o Estado Social

concentra suas forças no Executivo e seu caráter intervencionista advém das políticas

públicas (políticas de bem estar social) que mais refletem o interesse de grupos de poder

do que das necessidades da sociedade colocando em risco a realização dos direitos

sociais e fundamentais.

E é por isso que já se chamou a atenção quando o garantismo processual

ataca os decisionismos do ativismo apontando o descumprimento de uma tarefa

propriamente judicial em privilégio de uma prática de justiça distributiva sem quaisquer

elementos de legitimidade para fazê-lo, justificando-se inclusive na legitimidade

advinda da eleição pelos votos do povo476

.

Pelo exposto não há dúvidas em se dizer que o Judiciário não pode

continuar com uma postura passiva diante da sociedade mediante os ditames

constitucionais, que aliás prevalecem mesmo diante da legislação produzido por

maiores parlamentares: tanto porque a Constituição deve moldar uma postura contra-

majoritária, quanto porque a crise de representatividade brasileira vai desde um modelo

em que determinado estado da Federação não possui a representatividade na Câmara

dos Deputados conforme sua efetiva população477

, desde a exclusão social que retira

grande parte do eleitorado do debate político por carecimento da instrução necessária.

De fato, reconheça-se que, a tese substancialista que defende uma postura

intervencionista, longe da postura absenteísta do modelo liberal, clamando pelo

cumprimento dos direitos fundamentais e sociais da Constituição de 1988, de maneira

que onde o Legislativo e o Executivo falhe ou se omita na implementação das políticas

476

VELLOSO, Adolfo Alvarado. El garantismo procesal, op. cit., p. 43. 477

São Paulo, por exemplo, possui uma população elevada, mas não é numericamente bem representado

na Câmara dos Deputados tendo em vista esbarrar no máximo de cadeiras (70) permitido pela

Constituição, enquanto um Estado de população pequena acaba por prevalecer com o mínimo de 8

cadeira sem atingir o quociente necessário, o que impossibilita falarmos em real maioria no contexto

nacional. Como o máximo de cadeira na Casa Parlamentar é de 513, um mesmo deputado por São Paulo

representa uma população maior, do que um deputado do Acre, por exemplo, que representa uma

população menor. Mas ambos tem o mesmo peso (de 1 voto) na votação da Casa.

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215

públicos e dos objetivos sociais caberá a atividade do Poder Judiciário na prestação

desses serviços sociais faltantes, a ordem judicial pode esbarrar na impossibilidade

financeira do Estado.

Mas a conhecida cláusula da reserva do possível, que se entende estar

Adolfo Alvarado Velloso a se referir quando menciona que pode o juiz não ter

elementos para oferecer justiça distributiva, não pode conduzir à ineficácia jurídica de

um direito subjetivo público que se entende existir e ser devido pelo caráter dirigente e

compromissário do texto constitucional.

Outra consideração que se pode fazer ao garantismo processual relaciona-se

com o processo como “método” e a necessidade de uma adequada teoria da decisão

judicial, o que não se vê com ênfase nesta doutrina. É que nesse tocante, Adolfo

Alvarado Velloso aduz que como ato jurídico, a sentença não ostenta caráter processual

pois, o processo, como método, não pode integrar seu objeto, a sentença. Adriano

Calvinho também não considera a sentença um ato processual nem procedimental.

Aliás, essa despreocupação com uma teoria da decisão, ou seja, com as interpretações,

deve correr pela assunção do autor, como já expressa, de se aplicar um texto sem se

interpretar e de suas teorias preocuparem-se centralmente com as semânticas. São duas

as observações.

Primeiramente, na filosofia do conhecimento, o método é um procedimento

de regras pré-definidas, uma estrutura para que o homem conheça, intérprete, textos e

objetos, coisas em suas essências. Aliás, é matemático aquilo que se conhece por um

método. Nesse sentido, pelo método como o procedimento estruturado pela série lógica

proposta pelos autores, as significações jurídicas relacionadas com as afirmações

acoplariam os fatos e as respectivas confirmações, e produziriam “verdadeiramente” a

decisão judicial. Ocorre que esta legitimação da decisão por um raciocínio dedutivo

para que seja ela menos criticável (ou seja, esse racionalismo, herdado do cartesianismo,

no âmbito do direito) esconde a dimensão hermenêutica do fenômeno jurídico.

É que quando um intérprete se depara com um texto, os fatos, as provas, não

conseguirá desvincular-se de sua própria história e faticidade, mesmo que queira, pois

quando se acessa um objeto já se dá uma compreensão antecipadora do ser, e quando se

diz que algo é, já se pretende dizer como ele é.

O que, apesar dessas considerações, felizmente traz o garantismo

processual, é o processo como um ambiente de diálogo. E mais do que isso, ao fazer

suas considerações à prova oficiosa, acerta quando compreende que o intérprete já

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216

antevê o resultado possível de sua pesquisa, de maneira que não poderá determinar

provas, ainda que adicionais, tendo em vista a impossibilidade de já não possuir

hipóteses acerca do resultado da prova.

Uma outra observação relaciona-se com a busca pela vontade da lei e do

legislador!

Para Adolfo Alvarado Velloso, em razão do mandamento do legislador nem

sempre ser claro e completo, já que o ordenamento não prevê todas as condutas

possíveis de acontecer na realidade da vida, a prática diária ensina, a seu ver, que:

1) A lei se aplica como está emitida pelo parlamento quando o juiz encontra

nela a solução que deseja aplicar ao caso concreto e, ademais, compreende

cabalmente e aceita as palavras do legislador; 2) quando o julgador entende

que a norma é obscura para os fins de poder cumprir a atividade de

subsunção dos fatos e provas aceitados, a interpreta em função de certas

regras de hermenêutica. E, agora, a aplica; 3) quando ao ingressar ao plexo

legislativo o julgador adverte que a norma é insuficiente para realizar a

subsunção já antes aludida, deve integrá-la a partir de sua comparação com

outras normas análogas; 4) finalmente, se o julgador não decide a norma que

necessita para resolver o caso judicial, deve criá-la a partir da aplicação ao

caso dos princípios gerais do direito e, então, subsumí-lo nela.478

Essa transcrição parece demonstrar muitas conclusões do autor, e que

merecem atenção neste trabalho: Consoante os ensinamentos já expostos, apenas para

situar a doutrina do autor, ele está a falar de hermenêutica como técnica de

interpretação, e assim, hermenêutica clássica, não estando, nesta específica passagem,

falando de hermenêutica filosófica, aquela que se preocupa com as condições prévias da

interpertação. Note que o autor só concebe a interpretação a partir do momento em que

o texto seria obscuro para o que seriam necessárias as técnicas hermenêuticas. A

obscuridade estaria impedindo a compreensão, para o que seria necessário interpretá-la

e se chegar à compreensão479

. Além disso, entende a sentença como ato de subsunção, e

consequentemente, a interpretação como busca pela vontade da lei e do legislador. Ao

aceitar, no item 2 transcrito, a interpretação em função de certas técnicas de

hermenêutica, o autor admite que a norma interpretada pelo julgador, para que seja

aplicada ao caso concreto, não é a mesma norma emitida pelo legislador. E é por isso

478

VELLOSO, Adolfo Alvarado. La terminación del proceso: La sentencia judicia. Las costas, op. cit.,

p.82-83. 479

Recorde-se passagem anterior em que o autor concebe a aplicação sem a interpretação do texto: “(...)

el juez siempre norma: ora aplicando em concreto la ley abstracta, con o sin interpretación de su texto;

ora integrando la norma abstracta mediante la emisión de uma norma concreta; ora creando la norma

concreta en caso de inexistencia de norma abstracta”. Ibidem, p.85.

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217

que admite que a tarefa do julgador ao sentenciar é extraordinariamente subjetiva480

.

Arrisca-se a dizer que, assim como Ferrajoli, aceita a impossibilidade de se afastar a

discricionariedade. Esta necessidade advém, como disse o autor, da obscuridade da

“norma” produzida pelo legislativo, em realidade, obscuridade do texto com o qual se

depara o julgador, de maneira que é por isso que propõe a objetividade no texto legal,

com as semânticas.481

Ocorre que, a própria noção de círculo hermenêutico (no interior do qual o

intérprete fala e diz o ser na medida em que o ser se diz a ele, e onde a compreensão e

explicitação do ser já exige uma pré-compreensão) já incompatibiliza a autonomia de

tais métodos de interpretação e/ou seu desenvolvimento em partes e/ou fases. Se não

existe um método dos métodos, será arbitrária e, portanto, autoritária e voluntarista o

uso de um deles.

Além disso, convenha-se:

Afinal, toda interpretação sempre será gramatical (porque, à evidência, deve

partir de um texto jurídico); será inexoravelmente teleológica (seria viável

pensar em uma interpretação que não fosse voltada à finalidade da lei, com a

conseqüente violação à firme determinação do art. 5º da Lei de Introdução ao

Código Civil, que determina que o juiz, na aplicação da lei, atenderá aos fins

sociais a que ela se destina e às exigências do bem comum?); será,

obrigatoriamente, sistemática (porque é impossível conceber que um texto

normativo represente a si mesmo, sem se relacionar com o todo (...))482

.

. Parece que essas técnicas de interpretação, aliás, exoneram o juiz da

responsabilidade por suas decisões ao atribuir ao legislador as injustiças de seu

provimento483

.

Destrinchando o questionamento semântico: se as palavras do texto legal

são mais naturalmente utilizadas por alguém que tomou uma decisão do que a outra,

então, pelo menos, prova que o legislativo tomou essa decisão. Ocorre que

simplesmente pode o legislativo não ter tomado decisão alguma sobre determinada

controvérsia.

480

Note-se: o autor, quando chega à conclusão que a norma do julgador será diferente da norma do

legislador, não está concebendo que toda interpretação é produtiva, mas sim que a norma do julgador será

específica ao caso concreto, por isso diferente da do legislador que é geral e abstrata. 481

VELLOSO, Adolfo Alvarado. La terminación del proceso: La sentencia judicia. Las costas, op. cit.,

p.83-85. 482

STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise: uma exploração hermenêutica da

construção do Direito. 11ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2014, p. 249 483

DALLARI, Dalmo de Abreu. O poder dos juízes. São Paulo: Saraiva, 1996, apud, STRECK, Lenio

Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito, op.cit.,

2014, p. 246/249.

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218

Problema da indefinição do direito é maior, pelo que se concebe da

exposição do autor, quando o julgador sequer encontra texto obscuro para o caso,

quando não conseguiria utilizar nem a hermenêutica nem a analogia e teria ele, então,

que criar a norma com base nos princípios gerais do direito. Recai-se aqui na

completude dos sistemas codificados de direito privado (século XIX) reforçada pelos

princípios gerais do direito nos casos de aparentes lacunas legislativas, relembrando-se

que os princípios gerais do direito que são postulados racionais pressupostos pelo sistema

codificado cuja aplicação restringia-se a casos particulares e obedeceria ainda às regras do

método dedutivo-axiomático484

.

De acordo com as concepções do autor, se a criação de direitos deve ser

tomada pelo Poder Legislativo, já que os legisladores é que são eleitos pela comunidade

como um todo, não haveria como conceber que um juiz o fizesse. Afinal, os juízes não

são eleitos nem reeleitos, devem somente aplicar a legislação tal como se encontra, até

porque suas decisões são imunes ao controle popular. Aliás, sequer podem declarar a

inconstitucionalidade de uma lei infraconstitucional se não requerido pela parte em

casos que envolvam direitos transigíveis.

Bem, assim, se o caso não encontra resposta no repertório legal do sistema,

a busca é pelo que teria o legislador inserido nele de acordo com os princípios gerais do

direito codificados. Isso seria uma busca pela vontade do legislador acaso ele tivesse

pensado acerca daquele caso, de maneira que o juiz decidiria com base no que o

legislador faria, não no que ele pensa que seja o melhor. Se todo o trabalho que se tem

em dado momento da instituição que deve fazer as leis não responde a um tal caso, é

mais justo, ou racional, tomar a decisão conforme o que estaria na legislação com base

nos princípios gerais de direito. Quando os juízes buscam trazer a vontade dos

legisladores responsáveis não estão lidando com decisões políticas? Certamente cada

julgador decidirá de uma maneira nessa busca do que estaria no texto legal, e então eis o

problema.

Ocorre que um juiz que esteja diante de um caso não previsto em lei, parece,

não está diante da pergunta do que o Poder Legislativo teria feito se estivesse tomando

uma decisão acerca de determinada hipótese, mas sim que o Legislativo teria tomado tal

decisão por tais fundamentos conforme o que ele já decidiu. Pois, é provável que sobre

certa questão o Legislativo não queira legislar em determinado sentido considerando,

484

ABBOUD, Georges; CARNIO, Henrique Garbellini; OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. Introdução à

teoria e à filosofia do direito, op. cit., p. 283.

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por exemplo, que pode prejudicar uma categoria da sociedade, ou seja, que legislará por

razões políticas485

De outro modo, negando então que o texto seja a fonte exclusiva dos

direitos, ou se as palavras do texto são obscuras e admite-se, para tais casos, mais que

uma decisão possível, qual delas melhor se ajustaria aos direitos das partes

reconhecendo que o ideal da prestação jurisdicional é que os cidadãos os acessem no

Judiciário? Por meio dos princípios deve-se chegar à resposta. Mas supondo que possa

existir dois princípios que tragam resposta e que não sejam claramente incompatíveis

com o conjunto normativo, cada juiz fará o que a ele parecer mais correto. Se mais de

um é compatível, parece, a escolha entre maneiras de caracterizar a lei reflitirá a própria

moralidade política do juiz.486

Veja-se: A tese de única resposta correta e do privilégio cognitivo do juiz

Hércules dworkiniano de fato merecem suas críticas. Mas, reconheçamos: se sempre se

interpreta, e para se interpertar necessita-se compreender, para o que é preciso das pré-

compreensões constituídas em sentidos prévios, o processo hermenêutico será sempre

produtivo pelo intérprete que compreende o sentido do texto consoante sua própria e

específica existência e pré-compreensão. Ou seja, a norma que sai do texto será produto

da interpretação do intérprete, e por isso vigência e validade, além de texto e norma, não

se confundem, como afirmou Friedrich Muller explicado por Lenio Streck consoante a

diferença ontológica heideggeriana.

E assim, o texto só pode ser válido se em conformidade com a Constituição.

E novamente: a interpretação acerca da conformidade exigirá a pré-compreensão sobre

o sentido da Constituição. Se as pré-compreensões do intérprete estiverem corrompidas

dando pouco valor à Constituição, e à jurisdição constitucional estiver sendo mal

compreendida, a norma estará sendo mal aplicada porque baseada somente na

infraconstitucionalidade.

Nesse sentido, não se pode pactuar com a compreensão de que o juiz deve-

se omitir e aceitar a interpretação da parte no que tange a constitucionalidade da

legislação infraconstitucional. Se a parte não alega a inconstitucionalidade,

implicitamente está alegando a constitucionalidade, pelo que o magistrado não deve se

abster e acatar. Quando aplica a legislação infraconstitucional, está implicitamente

485

Ronald. Uma questão de princípio, op. cit., p.23. 486

Ibidem, p. 24-25.

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reconhecendo a constitucionalidade. E isso, obviamente, independe dos direitos em jogo

no processo serem transigíveis ou não.

Nesse contexto, de acordo com o substancialismo de Dworkin, fala-se em

uma “leitura moral” da Constituição, uma postura interpretativa por meio da qual todos,

não apenas os juízes, mas todos interpretem e apliquem dispositivos da Constituição

norte-americana como referências a princípios morais abstratos, como limites aos

poderes do Estado487

.

Nesse sentido, o intérprete dos sentidos possíveis da Constituição está

obrigado a lidar com a história e a linguagem, partindo do que os autores disseram e do

contexto em que foram ditas. A hermenêutica aqui não está como método de extração

de sentidos do texto! Nas palavras de Francisco José Borges Motta:

(...) a leitura moral dworkiniana é uma boa tática para esse propósito, na

medida em que impede os juízes de afirmarem que a Constituição expresse

suas próprias convicções, equilibrando essa necessidade com a correta

afirmação de que somos governados pelo que nossos legisladores disseram –

pelos princípios que declararam – e não por quaisquer informações acerca de

como eles mesmos teriam interpretado esses princípios ou os teriam aplicado

em casos concretos. (...) A Constituição não é só um documento, mas

também uma tradição; assim, o operador do Direito (intérprete) deve ter a

disposição de entrar nessa tradição e ajudar a interpretá-la de maneira

condizente com a ciência do Direito, e não de questioná-la e substituí-la por

alguma (ou qualquer) visão política (ou jurídica) radical que não possa ser

objeto de argumentos.488

É dizer, os princípios abstratos previstos na Constituição devem ser

interpretados pelos juízes junto à história política a partir da assimilação de outros

trabalhos, da doutrina e de casos julgados anteriores, com os argumentos trazidos pelos

participantes do processo.

A leitura moral trata de estratégia hermenêutica que afasta o protagonismo

individual do julgador e se volta à compreensão do sentido do princípio constitucional

que esteja em questão no caso concreto como uma norma com dimensão moral a ser

compreendida como dever-ser, e por isso a importância e o peso se verifica no caso

particular.

E com essas considerações, deve-se perceber que o princípio político

fundamental que deve nortear todo processo democrático é o de que todo cidadão tem o

direito de ser julgado por um juiz que não se envolva com a acusação, o que é a síntese

487

DWORKIN, Ronald. O Direito da Liberdade: A leitura Moral da Constituição Norte-Americana. São

Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 24-26. 488

MOTTA, Francisco José Borges. Levando o direito a sério: Uma crítica hermenêutica ao

protagonismo judicial, op. cit., p. 37.

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do sistema acusatório. A inquisição ficou para trás, como enfatiza Adolfo Alvarado

Velloso em todas as suas passagens.

O juiz, como necessidade democrática, tem que notar que não é mais aquela

figura que acusa, produz prova, julga e executa, porque o juiz democrático é o juiz que

decide. E por isso, aliás, o cuidado que precisa ter com o “princípio do livre

convencimento motivado”, que, se aceitar que princípios são deontológicos, o livre

convencimento motivado não pode ser concebido como princípio, porque princípios não

são construções dogmáticas como coisas que se colocam no texto da lei para encaixar

práticas judiciais tendo em vista a abertura de sentido causada pela principiologia. Os

princípios advém das práticas sociais, e no caso, da tradição democrática.

Note-se aqui não haver porque se sustentar poderes instrutórios oficiosos

mesmo quando se defende juízos de substancialidade da Constituição. É por meio do

processo que se pode efetivar a concretização dos direitos com uma decisão que foge da

consciência isolada do julgador e que é formada pela participação dos demais

interessados a partir da Constituição. Não se está diante de um Estado Liberal ou Social,

mas de um Estado Constitucional e Democrático de Direito em que a compreensão do

Direito a partir de um sentido da Constituição implica necessariamente numa postura

substancialista.

Mas reconheça-se: o Direito Processual Civil está em crise! A reconstrução

histórica do processo civil brasileiro e das fases metodológicas do processo nos põe a

par da convivência com traços do liberalismo processual com o protagonismo da parte e

passividade do juiz inspirado pelo princípio dispositivo, de um lado, e, de outro, a

socialização do processo cuja jurisdição possui perfil paternalístico e o processo é

publicizado para o renomado bem-estar social a ser proporcionado por um

protagonismo judicial (ironicamente).

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CONCLUSÃO

É impossível negar que a expectativa criada em torno do advento do novo

Código de Processo Civil evidencia a necessidade de percepção entre temas

momentâneos e permanentes.

São diversas as preocupações quando a doutrina se dedica ao estudo dos

poderes do magistrado, Especialmente em momentos de alteração legislativa, pois são

nessas circunstâncias que os descontentes com a ordem vigente se preparam para

debater e propor soluções para o modelo aplicado, o que sempre gira em torno da

conduta dos sujeitos processuais e implica diretamente na atividade judicial.

A preocupação com a atividade judicial em um processo democrático levou ao estudo

do ativismo, do garantismo e da cooperação, com considerações hermenêuticas para o

engrandecimento da discussão.

1. Viu-se que a palavra “garantismo”, hoje de uso corrente nas principais línguas

neolatinas, é um neologismo do século XIX, tempo em que muito se utilizava os

“ismos” políticos como liberalismo, constitucionalismo, comunismo. O seu significado

originário do léxico político francês era muito distante daquele atual e utilizado.

2. Fourier utiliza o termo “garantisme” para designar um estado da evolução civil

que sinaliza a realização do ideal supremo de uma perfeita e harmônica sociedade

comunitária e que é também um objetivo intermediário e transitório do seu projeto

político. Nas aspirações fourierianas, o garantismo consagra um sistema de segurança

social que procura salvaguardar os sujeitos mais fracos, fornecendo a eles as garantias

dos direitos vitais por meio de um plano de reformas que diz respeito tanto à esfera

política quanto à privada.

3. Posteriormente, em 1925, Guido De Ruggiero em Storia Del liberalismo in

Europa fala do assim chamado garantismo. Este primeiro emprego da palavra foi

encontrado por Perfecto Andrés Ibañez notando que De Ruggiero entende por

garantismo a concepção da liberdade política como liberdade do indivíduo do Estado e

frente ao Estado, ou seja, ponto de vista das garantias da liberdade que começa a tomar

forma com Montesquieu em torno da análise da Constituição inglesa e da correlativa

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teorização sobre as técnicas de limitação dos poderes públicos face à tutela dos

indivíduos.

4. O termo garantismo se radica na linguagem filosófico-jurídica italiana do

segundo pós-guerra como centralização das garantias constitucionais das liberdades

fundamentais. E obviamente, uma vez que seu uso se tornou habitual, o termo

“garantismo” aparece nos principais dicionários.

5. Como se viu, de acordo com o “Grande Dizionario della língua italiana” de

Salvatore Battaglia, há dois significados. O garantismo é, numa dimensão específica do

constitucionalismo rígido o (i) caráter próprio das constituições democrático-liberais

mais evoluídas, consistente no fato que essas estabelecem instrumentos jurídicos sempre

mais seguros e eficientes (como o controle de constitucionalidade das leis ordinárias)

com a finalidade de assegurar a observância das normas e dos ordenamentos por parte

do poder político (governo e parlamento) ou, como teoria normativa do

constitucionalismo rígido (ii) “doutrina político-constitucional que propor uma sempre

mais ampla elaboração e introdução de tais instrumentos”.

6. Então, garantismo se tornou o nome da teoria liberal do direito penal, ou seja, do

paradigma normativo de matriz iluministra do direito penal mínimo. Em tal obra o

garantismo se apresenta como uma teoria do direito penal compreendido como

instrumento de proteção dos direitos fundamentais tanto dos delitos quanto das penas

arbitrárias, ou seja, como sistema de garantias idôneo a minimizar a violência na

sociedade, fruto de uma reflexão iluminista sobre o fundamento, os escopos e os limites

da “justiça punitiva”.

7. Resumidamente, em “Direito e Razão”, Ferrajoli concebe um modelo processual

antitético por natureza e estruturado sob a presunção de inocência e a liberdade pessoal

do imputado, a publicidade e a oralidade do rito, a paridade e o contraditório entre as

partes, a imparcialidade do juiz e sua atuação como terceiro não interessado. Do que se

vê, o (por alguns chamados) “neo-iluminismo” penal de Ferrajoli insere este conjunto

de garantias processuais em um complexo paradigma normativo voltado à proteção dos

indivíduos mercê da regulação do poder punitivo do Estado, a qual perpassa por meio

de um sistema de limites e vínculos, impostos tanto à legislação penal quanto à

jurisdição penal, com o objetivo de restringir a primeira à tutela dos direitos e a segunda

a uma atividade tendencialmente cognitiva.

8. Nesse sentido, a Teoria do Garantismo foi a princípio considerada, de maneira

geral, como aquela que premia os anseios de todos os juristas democratas e libertários.

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224

9. Após adentrar-se na teoria ferrajoliana, procurou-se abordar suas principais

heranças juspositivistas: a tese da separação entre direito e moral e o problema da

discricionariedade judicial.

10. Ocorre que, inicialmente, já se enfrenta um questionamento: Ferrajoli situa-se no

paradigma positivista, admite o controle material de constitucionalidade, assumindo o

que designa como juspositivismo crítico. Mas o fato de Ferrajoli assumir-se como um

positivista crítico já não relativiza a própria tese da separação entre direito e moral

enquanto que a incorporação de valorações e a dimensão crítica comprometem o

positivismo.

11. No que tange a tese da separação entre direito e moral: Ferrajoli, explicitamente,

defende essa cisão incisivamente. Afirma que o que a Constituição positivou não foi a

moralidade, mas alguns princípios morais fundamentais, de caráter liberal e

democrático, que nós compartilhamos. O autor tenta afastar-se inclusive da tendência de

relativização de uma relação necessária ou conceitual entre direito e moral. Por sua vez,

o garantismo alvaradiano se aproxima da tese da complementariedade entre direito e

moral, conclusão extraída da justificativa do autor ao sustentar o princípio da

moralidade processual, o qual consiste numa regra moral para o desenvolvimento do

processo, em que pese apreocupação do garantismo processual com o discurso

processual baseado em argumentações metajurídicas que leva ao arbítrio e ao

subjetivismo e permite ao poder judicial a tomada de decisões solipsistas com base nos

sentimentos próprios do julgador, como também preocupava-se Ferrajoli, apesar de

jamais negar os espaços de discricionariedades intrínsecos à função judicial.

12. Neste tocante, a discricionariedade judicial, entendendo-a como um espaço a

partir do qual o julgador estaria legitimado a criar a solução adequada para o caso que

lhe foi apresentado a julgamento, Ferrajoli pressupõe a existência de quatro dimensões

ao poder do juiz, colocados como quatro inevitáveis espaços de discricionariedade,

quais sejam, (i) o poder de denotação ou de verificação jurídica, (ii) o poder de

comprovação probatória ou de verificação fática, (iii) o poder de conotação ou de

discernimento equitativo e (iv) o poder de disposição ou de valoração ético-política, o

que é pormenorizadamente explicado conforme o entendimento de Direito e Razão.

Esses espaços são inevitáveis porque coexistem ainda que sob um grau de

irredutibilidade alcançável por meio da efetivação das garantias processuais e materiais.

13. Note-se que quando Ferrajoli discorre sobre o terceiro poder judicial, o de

conotação (que relaciona-se com o conjunto dos elementos que diferenciam um

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225

comportamento do outro, dos elementos acidentais e especiais de cada prática delituosa

que a tornam única), o autor admite que essa tarefa é valorativa, já que lida com

conceitos imprecisos, como “motivo fútil”, apelando para a equidade do juiz. Esse juízo

de equidade deve fazer com que o juiz impeça suas ideologias pessoais, prejuízos e

inclinações para compreender aquelas da pessoa que está sob julgamento, acreditando

assim que a equidade é uma condição da imparcialidade do juiz. Isso explica, afinal, na

teoria do italiano, porque julgar com equidade acaba por conceber um juízo menos

rigoroso, a favor do imputado.

14. A crença na discricionariedade é um dos pontos que a teoria do garantismo como

opção para a democracia não satisfaz. A presença do ativismo judicial fortaleceu-se

como solução para a concretização dos direitos fundamentais diante da própria ideia de

um espaço discricionário à “vontade” do intérprete/julgador. Ocorre que a vontade

destes não configura permissão para uma atribuição arbitrária de sentidos nem

tampouco uma atribuição de sentidos arbitrária, consequência inafastável da

discricionariedade489

.

15. Como forma de reduzir o poder judicial e consequentemente a

discricionariedade, preocupa-se com uma precisão semântica a partir da filosofia

analítica, propondo uma manipulação formal da linguagem. Aqui mostra sua prisão na

filosofia da consciência e sua consequente relação sujeito-objeto: existiria um mundo a

ser apreendido e conhecido em sua essência, pela razão, e depois comunicado aos outros

pela linguagem, via sentença judicial.

16. Mas por mais precisa que seja linguagem, há espaços de indeterminação que

dependerão da discricionariedade, e por isso conclui esta como inafastável em absoluto.

17. E nesse contexto, Ferrajoli remonta seu pensamento ao positivismo, que já o

próprio Kelsen denunciava a inexistência de um método que possa dar garantia à

correção do processo interpretativo, e à Herbert Hart490

, no qual se precisa perceber que

os espaços da “zona de penumbra” do modelo de regras são preenchidos pelo juiz por

meio da discricionariedade em razão do poder arbitrário a ele delegado, e também, que a

489

STRECK, Lenio. Verdade e Consenso, op.cit., p. 49. 490

Diga-se, aliás, que Herbert Hart figura como um dos maiores expositores dentre os positivistas do

Common Law. Sua teoria sobre o sistema jurídico ainda assim admite a possibilidade de se solucionar

questões jurídicas sem interpretação, pois, nos seus denominados “casos fáceis” o juiz limitar-se ia a

subsumir a aplicação da regra jurídica em seu núcleo duro, utilizando-se da discricionariedade no

julgamento nos chamados “casos difíceis”, e isso por estar no paradigma interpretativo do positivismo

(por meio do qual se concebe a solução das questões jurídicas pelo silogismo, sem interpretação).

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“zona de incerteza” pode resultar de uma construção ideológica do intérprete/juiz

aumentando, consequentemente, o espaço de discricionariedade.

18. Nesse sentido, não negando margens de discricionariedade, Ferrajoli declara

ambas as posições, do mito iluminista da certeza jurídica objetiva e do decisionismo

subjetivista, como inaceitáveis, mas não proclama o abandono da busca da verdade no

processo. O autor utiliza-se da teoria de Tarski da verdade como correspondência. Mais

uma vez as grades da filosofia da consciência ficam claras: a verdade decorre do efetivo

alcance da realidade dos fatos, ou seja, da captação de uma essência das coisas.

19. Ademais, expõe quatro fatores limitantes à verdade processual, entendida esta

como uma conjunção da verdade fática com a verdade jurídica. Esses fatores limitantes

são abordados como razões que consistem em limites intrínsecos aos procedimentos de

controle tanto da verdade fática quanto da verdade jurídica e que fazem da verdade uma

verdade inevitavelmente aproximada em direção ao modelo ideal da correspondência

(verdade tarskiana).

20. A primeira razão para que a verdade processual seja uma verdade apenas

aproximada do ideal de correspondência e que a diferencia de uma verdade científica

relaciona-se com a não experimentação direta das proposições judiciais de fato, pois

ainda quando tanto as proposições judiciais de fato quanto as de direito sejam teses

empíricas de forma existencial ou singular, compartilham com as teses das teorias

científicas a não suscetibilidade a uma verificação experimental direta.

21. Enquanto a segunda razão ou limite intrínseco está nas distinções dos problemas

de verificação e verificabilidade das proposições judiciais de direito e de fato, pois

enquanto a verdade processual fática é um tipo particular de verdade histórica e cuja

verdade pode ser enunciada pelos efeitos produzidos, quais sejam, os sinais do passado,

a verdade processual jurídica resulta de um raciocínio comumente chamado

“subsunção” cuja natureza provém de um procedimento classificatório por referir-se à

classificação ou qualificação dos fatos históricos comprovados de acordo com o

vocábulo jurídico e sua interpretação.

22. Já como terceiro fator limitante a ser considerado que afasta ainda mais a

predicável certeza, está o caráter não impessoal deste investigador particular legalmente

qualificado que é o juiz por mais que tente se livrar de aspectos que influenciem sua

objetividade. Nesse tocante, viu-se que Ferrajoli prevê três elementos intensificadores

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227

da subjetividade do: um extrínseco e dois intrínsecos à natureza da jurisdição491

. O

elemento extrínseco refere-se ao objeto da investigação judicial que se relaciona com o

aspecto moral e emocional repercutindo na decisão conforme as convicções morais e

políticas pessoais do julgador, bem como pelas imposições do ambiente externo como a

cultura. Por sua vez, os elementos intrínsecos dizem respeito, o primeiro, ao erro

judiciário que não podem ser corrigidos como são os erros historiográficos e cientistas

em razão da coisa julgada, e o segundo à (de)formação profissional própria do juiz, isto

é, ao (des)conhecimento que ele tem das normas. Isso porque, na interpretação

designada por Ferrajoli492

como “operativa”, as normas condicionam a linguagem do

juiz e sua aproximação aos fatos que devem ser julgados, selecionando os fatos

relevantes conforme as normas e ignorando os delmais, de maneira que o conhecimento

das normas dessa ou daquela maneira, fará com que os olhos do julgador saltem sobre

determinados fatos e provas e se fechem a outros. Aliás, na investigação judicial,

reconhece Ferrajoli que além da subjetividade do juiz, soma-se ainda a subjetividade de

muitas fontes de prova, como as testemunhas, especialmente porque a maioria das

fontes judiciais, ao revés, é produzida para a investigação dos fatos a que alude, e não

antes e independentemente dessa investigação493

.

23. O quarto e último fator (de natureza jurídica e normativa) é designado por

Ferrajoli como “método legal da comprovação processual”, específico do conhecimento

judicial, concluindo que no sistema informado pelo princípio da “livre apreciação do

juiz” há menos rigidez das regras de comprovação processual do que no sistema de

“provas legais”, em que pese ambos disciplinarem normativamente a investigação,

comprovação, formação da verdade processual, como são exemplos as preclusões, as

nulidades e os testemunhos inadmissíveis.

24. Não é que os fatores colocados por Ferrajoli não existam, afinal não há como retirar

o juiz de sua subjetividade ou tampouco desistir da normatização da investigação judicial

491

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: Teoria do Garantismo penal. São Paulo: Editora Revista dos

Tribunais, 2002, p. 48. 492

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: Teoria do Garantismo penal. São Paulo: Editora Revista dos

Tribunais, 2002, p. 48. 493

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: Teoria do Garantismo penal. São Paulo: Editora Revista dos

Tribunais, 2002, p. 48. Nesse tocante, importante observar a diferenciação entre meios e fontes de prova.

William Santos Ferreira, de maneira clara, e em alusão à José Carlos Barbosa Moreira, explica que “Se a

pergunta for: onde podem ser obtidas informações? Estar-se-á tratando das fontes de prova. Se for:

como estas informações chegam ao julgador? Estão sendo procurados os meios de prova. A primeira é

objeto, a segunda e instrumento.” FERREIRA, William Santos. Princípios fundamentais da prova cível,

op. cit., p. 57/58.

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228

(porque indispensável ao procedimento), até mesmo porque o juiz tem o dever de

decidir mesmo nos casos de não confirmação de fatos.

25. O que a hermenêutica questiona é a premissa, que é também aquela encontrada em

Adolfo Alvarado Velloso: a verdade como correspondência, apesar de assumirem-na como

inalcançável ou ceticamente desnecessária.

26. Aliás, são distintas as compreensões sobre a verdade entre tais garantistas, pois

além de Ferrajoli conceber a verdade objetiva enquanto Alvarado admite a verdade

subjetivista no sentido de que cada um admitirá como verdadeiro uma versão, o

primeiro a busca e teoriza extensamente para tornar a sua captação a mais objetiva

possível, enquanto o segundo não a prioriza e considera inútil e contraproducente a

busca da verdade no processo, pois para ele, como visto, a finalidade fundamental do

processo é a solução das controvérsias, do contrário estar-se ia privilegiando a meta

sobre o método.

27. Notem que por mais que assumam a inalcançabilidade ou desnecessidade da

verdade na decisão final do processo, se distanciam das conclusões hermenêuticas

filosóficas. Suas conclusões decorrem do pensamento de que o sujeito, destacado de seu

objeto, não o alcança. Em Ferrajoli, por exemplo, o único significado da palavra

“verdadeiro” é a correspondência argumentada e aproximada das proposições para com

a realidade objetiva, constituída no processo pelos fatos julgados e pelas normas

aplicadas. Isto é, o julgador, ao destacar-se dos fatos, constata que as provas dos autos

ainda não atingiram os fatos que realmente aconteceram, ou seja, que aquele estado das

coisas no processo não corresponde com a realidade. E, além disso, porque, no processo, o

juiz deve decidir com base na regra do ônus da prova.

28. Tangente a isso, cabe explicar que a doutrina internacional tratou de aplicar as

bases do garantismo de Luigi Ferrajoli, reconhecendo desde sempre a originalidade da

obra do autor.

29. Nesse sentido, tal movimento jusfilosófico pretende o irrestrito respeito à

Constituição e aos Pactos internacionais hierarquicamente igualados, asseverando que o

juiz empenhe-se em favor das garantias constitucionais, jamais de pessoa ou coisa que

não a Constituição.

30. O garantismo processual civil sustenta que os louvores do garantismo de direito

ferrajoliano são pela legalidade, a qual, como visto, constitui sua teoria com dois

elementos, quais sejam, a estrita legalidade e a estrita jurisdicionariedade. Mas

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229

obviamente, por constituir-se como aporte do Estado Constitucional, reclama por uma

legalidade constituída a partir dos valores introduzidos na Constituição.

31. O garantismo no processo civil sustenta um processo idealizado como método de

debate e dialogal entre as partes, condicionado às diligências destas na atividade

processual no qual se intenta assegurar, por meio do devido processo legal, uma ampla

participação que valoriza a ampla defesa, o contraditório e a imparcialidade judicial

com a máxima restrição dos poderes dos juízes.

32. Por essas linhas, o garantismo processual sustenta o sistema acusatório como o

adequado para um Estado Democrático de Direito. Ferrajoli também fazia correlação

entre o processo acusatório e seu modelo ideal garantista, entendendo que enquanto o

método inquisitório exprimia uma confiança ilimitada na bondade do poder e na sua

capacidade de alcançar o verdadeiro, o método acusatório se caracteriza por uma

confiança ilimitada no poder como autônoma fonte de verdade. Explica-se, quando o

modelo inquisitório confia a verdade e a tutela do inocente às presumidas virtudes do

poder do julgador, o modelo acusatório concebe a verdade como o resultado de uma

controvérsia entre partes contrapostas por serem portadoras, respectivamente, do

interesse na punição dos culpados e do interesse na tutela do acusado presumido

inocente até prova em contrário. Dito de outro modo, no acusatório há a verdade

controlada pela participação das partes.

33. Claro que Alvarado não pretende um processo verdadeiro ou injusto, mas sua

atenção é voltada para o procedimento, não para seu resultado, pois concebe o processo

como método, e assim, seu objetivo, a meta, a sentença, a declaração do juiz, não o

integra. O procedimento já a legitima.

34. Aliás, a concepção garantista processual é a de que cabe ao juiz a manutenção da

paz social fixando fatos para adequá-los a uma norma jurídica, tutelando, assim, o

cumprimento do mandato da lei. Nesse sentido, o objetivo do processo é alcançar uma

declaração do juiz diante de quem se apresenta o litígio ainda que, de fato, muitas vezes não se

chegue a isso, pois os interessados – em alguns casos – preferem soluções autocompositivas

(ver o capítulo anterior) que evitam a heterocomposição.

35. Perceba-se que a escolha ideológica deste autor é que a função do processo civil

é exclusivamente aquela de resolver controvérsias, pondo fim aos conflitos entre os

indivíduos privados, o que justifica a defesa do sistema acusatório e as afirmações do

Autor nos Congressos sobre a irrelevância da verdade no processo.

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230

36. Este procedimento de regras pré-definidas é concebido pela observância de uma

série lógica: afirmação-negação-confirmação-conclusão. A inobservância a tal série, na

concepção do autor, geraria um mero procedimento, não um processo. Este é, aliás uma

instância (de instar) diferente das demais porque, em síntese, ocorre entre três sujeitos.

Procedimentos que não se deem entre três pessoas também não constituem processo, do

contrário, estar-se-ia por privilegiar a meta sobre o método.

37. Tanto Ferrajoli quanto Alvarado trabalham com uma espécie de lista de

princípios: o primeiro com 10 axiomas e o segundo com 5 princípios processuais,

formulados a priori e como forma de apontar a ilegitimidae do Direito e das práticas,

quais sejam, o princípio da igualdade dos litigantes, da imparcialidade do julgador, da

transitoriedade do processo, da eficácia da série procedimental e da moralidade no

debate.

38. O garantismo processual argentino utiliza-se de uma distinção estrutural e

semântica entre regras e princípios.

39. Esta distinção estrutural entre regras e princípios assemelha-se à teoria de Robert

Alexy, defensor da tese da complementariedade.

40. Segundo o autor, os discursos sobre o direito lida com a correção de enunciados

normativos, os quais comportam enunciados axiológicos (que se referem a valores) e

deônticos (quando está em jogo uma proibição, uma permissão ou um mandamento).

Nesse sentido, o discurso jurídico é um caso especial do discurso prático. Este é um

conjunto de enunciados produzidos sobre o dever-ser (que liga-se a formas deônticas e a

valores, veja-se), abrangente de todo o universo da cultura e do agir humano. Enquanto

o discurso jurídico é um caso especial dele porque sofre limitações internas do sistema,

de fatores derivados da legalidade, da conformidade com o ordenamento e da eficácia

social com o direito positivo.

41. Ou seja, para Alexy, a conexão com a moral faz-se necessária para a

argumentação jurídica, pois esta alcança até onde não são possíveis outros argumentos

jurídicos, quando então, unem-se estes aos argumentos do discurso prático em geral.

Aqui, o discurso jurídico é penetrado pelos valores, pelo discurso moral.

42. Assim, o autor alemão produz uma teoria da fundamentação racional do

ordenamento jurídico com marco na razão prática entendida numa dimensão axiológica

e o discurso normativo passa a comportar um sentido deôntico e axiológico.

43. Nesse sentido, classifica a norma deontológica como a composta por regras e

princípios, e a norma axiológica, que comporta as regras de valoração e os critérios de

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valoração (propriamente os valores). Afirma, então, que os princípios são normas

deônticas aplicados pela ponderação por meio de um juízo valorativo que será onde o

discurso prático ingressa no discurso jurídico.

44. Veja-se, então, que na teoria alexyana a distinção estrutural entre as normas de

direito fundamental, bipartida em regras e princípios, os princípios são normas porque

ambas dizem aquilo que deve ser.

45. Como mandados de otimização, os princípios determinam a realização de algo

na maior medida possível (satisfação principiológica em diferentes graus), desde que

respeitadas as possibilidades e os limites fáticos e jurídicos, limites jurídicos estes

impostos pela existência tanto de regras quanto de princípios opostos. E assim, o caráter

oposicional dos princípios implica na aplicação deles por meio da ponderação. Ou seja,

as colisões de princípios se dão no âmbito do peso, não no âmbito da validade.

46. Já as regras, mandados de definição, ou são ou não são aplicadas

(impossibilidade de satisfação em diferentes graus = tudo ou nada), e para tanto,

implicam na subsunção. Isto é, regras são normas que somente admitem cumprimento

ou descumprimento, ou seja, se a regra é válida há de ser atendida, nem mais, nem

menos494

. O conflito entre regras somente pode ser solucionada por uma cláusula de

exceção que excepciona a sua incidência em um caso específico, pois se isso não

acontecer uma delas terá que ser declarada inválida implicando na sua exclusão do

ordenamento jurídico.

47. Por sua vez, para Adolfo Alvarado Velloso, conceitua o princípio como um

simples ponto de parte que deve ser visto em função do que se pretende alcançar,

ostentando um caráter unitário. São diretrizes mais importantes do que as regras, sendo

estas diretrizes binárias ou antinômicas.

48. Então, note que na Teoria Alexyana a distinção também é feita a priori e em

abstrato, pois a norma é configurada antes da problematização de um caso concreto, seja

ele real ou fictício, sendo uma teoria semântica. Ambas são, reconheça-se, abordagens

qualitativas, isto é, superam a abordagem quantitativa que se baseia na generalidade

como critério adequado para tal distinção, o que, em realidade, é uma conseqüência da

natureza dos princípios, sendo incapaz de proporcionar uma diferenciação essencial.

49. Estas distinções recaem numa concepção axiologizante do Direito, porque para

se poder preferir um princípio a outro precisa-se admitir que isso somente seria

494

ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudios

Constitucionales, 1997, p. 86-87.

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permitido se os princípios fossem considerados como valores, como critica Habermas a

ponderação alexyana. Nesse sentido, para Habermas, as normas, como princípios ou

como regras, são enunciados deontológicos, isto é, visam ao que é devido. Já os valores

são enunciados teleológicos, de modo que objetivam o que é bom, melhor ou preferível,

sendo condicionados a uma determinada cultura. Foi-se, aliás, o que se viu na

argumentação alvaradiana a respeito do princípio da moralidade processual.

50. Não se está aqui a valorar se as concepções são boas ou não, até porque a ideia

do estudo não foi superar teorias extensas e tão bem dispostas. Jamais se poderia, aliás,

superar as compreensões intelectuais dos autores aqui estudados. O que se pretendeu,

até aqui, foi compreender suas diferenças e situá-las num contexto jurídico de maior

debate, apenas como tentativa de enriquecer o debate.

51. De toda maneira, um ponto forte do garantismo no combate ao ativismo são as

suas conclusões práticas acerca da igualdade jurídica, basilar de um Estado Democrático

de Direito. Ela possibilita que o debate no processo ocorra sem preferências nem

privilégios que beneficiem uma das partes em detrimento de seu oponenente, pois o

objeto do processo é o debate, imprescindível para um processo acusatório e

dispositivo. Com essas premissas, condenam a retirada do princípio da igualdade do

contexto jurídico que leva ao entendimento desse princípio confundindo-o com a

igualdade real implicando na degeneração do processo como garantia, como ocorreu no

direito processual social.

52. O princípio da imparcialidade é também relevante, pois ressalta que ele significa

várias coisas diferentes da falta de interesse que habitualmente se menciona com o fim

de definir o trabalho diário de um juiz. Designa, por exemplo, ausência de prejuízos de

todo tipo (particularmente raciais ou religiosos); independência a qualquer opinião e,

consequentemente, ter ouvidos surdos ante a sugestão ou persuasão da parte interessada

que possa influir em seu ânimo; não identificação com alguma ideologia determinada;

completa alteridade frente à possibilidade de dádiva ou suborno; e a influência da

amizade, do ódio, de um sentimento caridoso, da vadiagem, dos desejos de brilho

pessoal, de figuração periodística, etc., não envolvimento pessoal nem emocional no

ponto crucial do assunto litigioso; evitar toda participação na investigação dos fatos ou

na formação dos elementos de convicção; decidir de acordo com seu próprio

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conhecimento pessoal no assunto; não a desvinculação fundamentada dos precedentes

judiciais495

.

53. Afinal, se cada juiz obedecesse suas próprias paixões, ao fim e ao cabo tudo

dependeria daquilo que esse “senhor dos sentidos” decidisse, e cada processo teria a sua

própria verdade que é a daquela que o julga.

54. E exatamente por essas considerações que a hermenêutica filosófica pode

agregar a este estudo. Afinal, como diz Lenio Streck, a tarefa primordial da

hermenêutica é provocar os pré-juízos.

55. A hermenêutica filosófica vem dizer que não há como assumir a “neutralidade”

do intérprete, pois é de sua concepção de justiça, entendida por Dworkin como “uma

questão que remete à melhor (ou mais correta) teoria do que é justo, moral ou

politicamente”496

que provém sua interpretação.

56. O que se está a levantar é que o posicionamento individual do julgador, sobre a

política, a religião, não importa ao seu julgamento no processo. Pois neste o que deve

prevalecer é o Direito e a sua história. E a forma de se controlar o que levou o

magistrado a tomar determinada decisão é a sua motivação, o viés argumentativo que

tomará.

57. A hermenêutica filosófica reconhece que o intérprete não pode estar fora da

tradição e a autoridade desta é que permitirá verificar a legitimidade dos preconceitos.

“Escutar a tradição e situar-se nela é o caminho para a verdade que se deve encontrar

nas ciências do espírito”497

como ensina Gadamer. Até porque, com Dworkin, a

tradição é incontrolável, “os intérpretes pensam no âmbito de uma tradição

interpretativa à qual não podem escapar totalmente”498

.

58. A decisão correta ou boa seria, então, aquela construída pelas partes que

compartilham suas razões e provas por meio do processo em contraditório e que deve

ser exigida dos juízes mesmo que não esteja garantido que chegarão a uma mesma

resposta boa ou correta, pois, do contrário, estar-se-ia a admitir qualquer concepção

individual.

59. Em síntese, como afirmou-se ao abordar a tese da separação entre direito e

moral: para pré-compreender, o intérprete já está na moralidade, pois está na história, na

495

VELLOSO, Adolfo Alvarado. El debido proceso, op. cit., p. 243. 496

Ibidem, p. 103. 497

GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método II: Complementos e Índice. 2 ed. Bragança Paulista:

Editora Universitária São Francisco, 2002, p. 53. 498

DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. 2. Ed. São Paulo; Martins Fontes, 2003, p. 36.

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tradição, nos costumes e nas orientações sociais, políticas, filosóficas e jurídicas, de

maneira que a moral, assim, é condição de possibilidade da compreensão, havendo a

pertença e não a cisão. Mas note-se que a hermenêutica não significa o aprisionamento

ao passado, mas a reflexão sobre este. Os pré-conceitos serão colocados em teste,

podendo confirmar-se ou não499

.

60. A preocupação da hermenêutica, de Luigi Ferrajoli e de Adolfo Alvarado

Velloso, convenha-se, é com os decisionismos, se distanciam nos caminhos para

combatê-lo.

61. Pode-se dizer que as maiores contribuições do garantismo processual dizem

respeito ao combate ao ativismo e ao debate probatório na seara democrática que

circundam profundamente o debate em solo brasileiro, especialmente diante de

alterações legislativas que ainda sustenta boa dose inquisitivista.

62. O que se notou é que a cultura jurídica brasileira é ativista e inquisitivista, e isso

se faz até imperceptivelmente. Exatamente por este motivo a atuação do Poder

Judiciário aparece como tema cada vez mais em destaque.

63. No pós-Constituição de 1988, o magistrado pareceu declarar sua independência

ao Direito e aos fatos do caso em prol do que lhe parecesse mais conveniente. E

respaldada em valores como critérios para fundamentar as decisões acabou-se recaindo

numa postura ativista que ultrapassa limites estabelecidos na própria Constituição para

sua atuação. A doutrina aponta a importação equivocada da jurisprudência dos Valores

(que objetivava romper com o modelo jurídico vigente no nazismo para que se

legitimasse a tomada de decisões em respeito à Constituição outorgada em 1949 pelos

aliados) e a teoria de Robert Alexy como contribuidores para o estágio ativista da

jurisprudência brasileira.

64. Veja-se que há no Brasil notórios juristas que atrelam à ideia de ativismo apenas

a uma participação mais ampla e intensa do Judiciário na concretização dos valores e

fins constitucionais, como a maior interferência nos outros Poderes, mas sem recair em

criação do direito500

.

499

PINHO, Ana Cláudia Bastos de. Para além do garantismo: uma proposta hermenêutica de controle da

decisão penal, op. cit., p. 73. 500

BARROSO, Luis Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. In:

COUTINHO, Jacinto N. de Miranda; FRAGALE FILHO, Roberto; LOBÃO, Ronaldo (Orgs.)

Constituição e ativismo judicial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 279.

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65. Mas deve-se entender ativismo judicial como uma indevida invasão tanto na

esfera legislativa quanto na Administração Pública, ou seja, em funções

constitucionalmente estabelecidas a outros Poderes.

66. Em nosso país, a doutrina da instrumentalidade do processo enxergou como

natural e positiva o ativismo judicial. Esta doutrina defende um tratamento publicista do

processo com foco na jurisdição enquanto instrumento do Estado para perseguir seus

objetivos501

. Para tanto, o problema da efetividade do processo é resolvida pela redução

das formalidades que teoricamente impedem a realização do direito material em conflito

por meio do princípio da adequação ou adaptação do procedimento à correta aplicação

da técnica processual, reconhecendo ao julgador a capacidade para adequá-lo às

especificidades da situação.

67. O problema é que sob essa concepção, o juiz pode afastar os princípios

constitucionais. O juiz, sob o pretexto de concretizar os direitos fundamentais, utiliza-se

de suas convicções pessoais, o que configura alto grau de voluntarismo e insegurança

jurídica, relegando à interpretação da dogmática jurídica verdadeira escolha casuística

pela consciência do julgador um juiz ou tribunal pratica ativismo quando decide a partir

de argumentos de política, de moral, enfim, quando o direito é substituído pelas

convicções pessoais de cada magistrado.

68. Veja-se: o juiz substitui argumentos de princípio, por argumentos de política, o

que traz inúmeros prejuízos para a democracia. Nesse tocante, a distinção entre

argumentos de política e argumentos de princípio em Dworkin é providencial nesse

tocante.

69. Para o jusfilósofo norte-americano, “os argumentos de política justificam uma

decisão política, mostrando que a decisão fomenta ou protege algum objetivo coletivo

da comunidade como um todo”, já os “argumentos de princípio justificam uma decisão

política, mostrando que a decisão respeita ou garante um direito de um indivíduo ou de

um grupo”502

, ambos constituindo argumentos políticos num sentido mais amplo, mas

um é argumento de princípio político e outro de procedimento político (que exige que

alguma decisão particular promova alguma concepção do bem-estar geral ou do

interesse público)503

.

501

DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 12. Ed. São Paulo? Editora

Malheiros, 2005, p. 51-67. 502

Idem. Levando os Direitos a Sério, op. cit., p. 129. 503

Idem. Uma questão de princípio, op. cit., p.6.

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236

70. Assim, enquanto o princípio favorece um direito, a política é um padrão que

estabelece uma meta, sendo argumentos de política aqueles em favor de um objeto

coletivo, relacionado ao bem comum.

71. No processo legislativo, ambas as modalidades de argumentação são admitidas,

e a lei transforma os argumentos de política em uma questão de princípio, de maneira

que as decisões judiciais devem ser geradas por princípio e não por políticas.

72. Dworkin concebe seu juiz Hércules não como o juiz solipsista ou protagonista.

Recusando a discricionariedade “forte” atribuída aos juízes por Hart, o autor sustenta a

existência de “única resposta correta”, esta a ser produto do juiz Hércules que

compreende o Direito na sua totalidade (isto é, considera tanto a produção legislativa

quanto o que fizeram e fazem acertadamente os demais juízes) prestando contas ao

conjunto principiológico a partir da Constituição.

73. Essa é, aliás, uma das maiores objeções às suas considerações dworkinianas.

Afinal, se não é provável que uma resposta seja mais correta que a de outro juiz, é inútil

exigir a busca judicial por essa resposta, até porque, poder-se-ia argumentar, não há

mesmo como provar que seja a resposta correta.

74. Outrossim, se não há respostas corretas e o juiz decide decisionisticamente,

então não há porque apostar numa resposta correta sobre os direitos dos cidadãos, de

maneira que deve-se aceitar que os juízes frequentemente errarão.

75. Buscou-se a demonstração das concepções dworkianas, mas não se afastou de

certas críticas ao privilégio cognitivo do juiz Hércules dworkiano e à tese da única

resposta correta.

76. De toda forma, inegavelmente, o ativismo fragiliza a autonomia do direito e a

democracia. É sempre patológico. E é por isso que se precisou enfrentar o tema.

77. É que em 1988 o Brasil recebeu uma nova Constituição cujo texto está repleto

de direitos fundamentais e sociais. Ora, o modelo anterior, assentado em um

pensamento liberal-individualista, operava com conceitos oriundos das experiências da

formação do direito privado germânico e francês, desprovido de direitos de segunda e

terceira dimensões além da falta de uma teoria constitucional adequada às demandas do

novo paradigma jurídico.

78. Nesse sentido, os operadores do direito têm visto um Judiciário ativista que

pretende basear-se na concretização do texto constitucional justificando-se em eventuais

valores da sociedade e que seriam os consolidadores do paradigma do Estado

Democrático de Direito.

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237

79. Sugerindo um modelo adequado a este paradigma, adveio o Novo Código de

Processo Civil que propõe o que designa como modelo cooperativo, o que mereceu

diversas considerações garantistas.

80. A produção de prova de ofício pelo juiz, por exemplo, é prontamente rechaçada

pelo garantismo processual. Afirmam que quando o juiz busca provas, já possui uma

hipótese pré-concebida, de modo que ao investigar, além de assumir tarefa que, no

processo, cabe às partes, viola sua imparcialidade por sucumbir aos seus prejuízos em

relação a elas.

81. É por essa conclusão que Adolfo Alvarado Velloso afirma que o juiz só produz

prova para condenar, já que de outra forma não faz sentido ordenar sua produção se com

a dúvida já seria possível afastar a hipótese afirmada pela parte que alega. E é também

por isso que o autor afirma que não é necessário conhecer a verdade do acontecido para

resolver o caso e muito menos deve buscá-la, posto que quando não chega a conhecê-la

conta com os critérios jurídicos (o princípio da inocência e o in dubio pro reo) que lhe

dão as armas necessárias para decidir.

82. De outro modo, buscou-se na hermenêutica explicar a condenação da prova

oficiosa. A viragem linguística proporciona afirmar que a verdade real é inatingível

porque insustentável filosoficamente: a verdade não advém nem das essências, nem de

um sujeito cognoscente privilegiado, pois com o giro linguístico na Filosofia, o

processo interpretativo não gera a descoberta do verdadeiro, do correto ou do unívoco.

Do processo interpretativo decorrerá a produção de um sentido pela compreensão do

sujeito em sua própria situação hermenêutica, de sua própria “bagagem”.

83. Essa conclusão parece erradicar a dicotomia da verdade em verdade real e

verdade formal.

84. Veja-se: enquanto nas ciências formais e nas ciências da natureza pretende-se a

objetividade dos fatos, sem interferência subjetiva ou valorativa por parte do sujeito que

observa, nas ciências do espírito (humanas ou da cultura), o sujeito, pela sua carga

subjetiva e valorativa, é inseparável do objeto que interpreta.

85. A contribuição hermenêutica é de fundamental importância a partir da ideia de

que a verdade, no campo jurídico, é uma verdade hermenêutica: interpretar não conduz

ao conhecimento de algo que pertence a um texto intrinsecamente, em essência, pois o

objeto, o texto, é relacional por constituir-se num jogo hermenêutico em que o intérprete

possui objetivos e propósitos com ele e por meio dele, e que este sujeito parte de suas

próprias pré-compreensões.

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86. Mas veja-se que as considerações da hermenêutica filosófica foram colocadas

neste estudo para trazer o debate a discussões atuais. Não se pretendeu desconstruir as

propostas teóricas ou aprimorá-las, corrigi-las ou emendá-las, até porque a hermenêutica

separa-se do garantismo por não propor uma técnica, mas um processo de compreensão

que se dá no diálogo considerando a tradição que determina o sujeito, não sendo

possível manipular a linguagem, o que leva à provisoriedade das respostas no tempo.

87. Elas foram primordiais para introduzir a diferença entre neoconstitucionalismo e

pós-positivismo, que às vezes a doutrina os coloca como sinônimos, razão pela qual

abordou-se (i) a diferença entre texto e norma, (ii) a interpretação do direito como ato

revelador da vontade da lei ou do legislador (especialmente porque a doutrina garantista

consagra a aplicação do texto sem necessidade de interpretação), (iii) o processo

silogístico da sentença, e (iv) o dualismo entre questão de fato e questão de direito.

88. Isto exposto, situando a história do Brasil, o estudo conduz para a necessidade de

enfrentamento da visão liberal garantista. É que olhar o Estado Social sob as lentes do

modelo liberal quando a Constituição de 1988 aponta para a construção de um Estado

Social intervencional e pautado por políticas públicas consoante o próprio art.3º da carta

magna não parece “constitucional”.

89. Sustentar juízos de substancialidade da Cosntituição não se traduzem na defesa

de poderes instrutórios oficiosos em busca de uma verdade real, que, por inatingível, se

resumirá sempre em uma verdade imaginada pelo próprio intérprete.

90. Deve-se perceber que o princípio político fundamental que deve nortear todo

processo democrático é o de que todo cidadão tem o direito de ser julgado por um juiz

que não se envolva com a acusação, o que é a síntese do sistema acusatório. A

inquisição ficou para trás, como enfatiza Adolfo Alvarado Velloso em todas as suas

passagens.

91. O juiz, como necessidade democrática, tem que notar que não é mais aquela

figura que acusa, produz prova, julga e executa, porque o juiz democrático é o juiz que

decide.

92. É por isso também que se prega o cuidado com o “princípio do livre

convencimento motivado”. Se se aceitar que princípios são deontológicos, o livre

convencimento motivado não pode ser concebido como princípio, porque princípios não

são construções dogmáticas como coisas que se colocam no texto da lei para encaixar

práticas judiciais. Os princípios advém das práticas sociais, e no caso, da tradição

democrática.

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