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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP TAÍS HELENA FERNANDES DIAS Entre um e múltiplos Eus: a poesia de Adília Lopes Mestrado em Literatura e Crítica Literária São Paulo 2016

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP

TAÍS HELENA FERNANDES DIAS

Entre um e múltiplos Eus: a poesia de Adília Lopes

Mestrado em Literatura e Crítica Literária

São Paulo

2016

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Taís Helena Fernandes Dias

Entre um e múltiplos Eus: a poesia de Adília Lopes

Mestrado em Literatura e Crítica Literária

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Literatura e Crítica Literária, sob a orientação da Profa. Dra. Maria Aparecida Junqueira

São Paulo

2016

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Banca Examinadora

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a meu querido pai ( in memoriam) por seu amor e amizade também por ser super sid especial

já de nenhum dos mundos eu nem ele surge só fica aquele jeito de saudade

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AGRADEDIMENTOS

A minha orientadora, Profa. Dra. Maria Aparecida Junqueira, por ter me

apresentado à poesia de Adília Lopes e por sua sensibilidade, delicadeza e

astúcia com a poesia.

A profa. Dra. Annita Costa Malufe, por apresentar-me o novo, sempre um

quase devir.

Ao prof. Dr. Leonardo Gandolfi, por ler esta dissertação, compartilhar seu

conhecimento sobre a poeta e sugerir também o não pensado.

A Ana Albertina, por me salvar das confusões burocráticas e ser sempre

disposta e solidária.

Ao programa de Literatura e Crítica Literária, por me ensinar inúmeros

caminhos para ler poesia.

Ao Erico, por falar o que pensa.

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DIAS, Taís Helena Fernandes. Entre um e múltiplos Eus: a poesia de Adília Lopes. Dissertação de mestrado. Programa de Estudos Pós-Graduados em Literatura e Crítica Literária. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, SP, Brasil, 2016. 116 p.

RESUMO

Esta dissertação se propõe a analisar a produção poética de Adília

Lopes. Pretende delinear, a partir de procedimentos poéticos, o projeto

dessa poeta portuguesa, apreendendo as configurações do Eu que emanam

de seu texto. Assim problematiza: Até que ponto a poesia de Adília Lopes

configura a experiência pessoal do sujeito lírico com personagens e histórias,

evidenciando um pacto de intimidade entre eles? Como procedimentos

contra-ficcionais e antilíricos, empregados na poesia adiliana, revelam um

território misto e instável em sua escrita? Para tanto, tece considerações

sobre o acontecimento do Eu em perspectivas: histórica, filosófica, social,

cultural, literária. Como fundamentação teórica acerca do Eu na literatura,

apoia-se em autores como Lejeune, Barthes, Nietzsche, Novalis, Friedrich,

entre outros; para a caracterização dos procedimentos poéticos, utiliza-se

dos estudos críticos de Rosa Maria Martelo e Flora Süssekind, assim como

das crônicas e das entrevistas de Adília Lopes. Entre as considerações nota-

se que sua poesia apresenta uma diversidade de Eus, caracterizando-se por

uma polifonia de vozes. Cada poema parece utilizar um procedimento

poético, mantendo sempre a dúvida de quem é que fala: a autora, a poeta, a

personagem autora, a personagem poeta.

Palavras-chave: Poesia portuguesa contemporânea. Adília Lopes. Eus.

Autobiografia. Biografema.

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DIAS, Taís Helena Fernandes. Entre um e múltiplos Eus: a poesia de Adília Lopes. Dissertation (Master’s Degree). Postgraduate Studies Program in Literature and Literary Criticism. Pontifical Catholic University of São Paulo (PUC), SP, Brazil, 2016. 116 p.

ABSTRACT

This dissertation intends to analyze the poetic production of

Portuguese poet Adília Lopes. Based on poetic procedures, our objective is

to outline this poet's project and to capture the configuration of the Self that

emanates from her text. The question that arises is: To which extend does

Adília Lopes' poetry shape the personal experience of the lyric subject with

characters and stories, showing the intimacy that exists between them? How

do counter fictional and anti-lyrical technique used in Adília Lopes' poetry

reveal a mixed and unstable territory in her writings? To answer this question,

we discuss how the Self is built from the historical, philosophical, social,

cultural and literary point of view. The theoretical framework regarding the

Self in literature can be found in authors, such as Lejeune, Barthes,

Nietzsche, Novalis, Friedrich, and others. For the poetic procedure

characterization we used critical studies by Rosa Maria Martelo and Flora

Süssekind, as well as Adília Lopes' short stories and interviews. Her poetry

presents a diversity of Selves, a multitude of voices. Each poem seems to

use a poetic procedure and sustains the question of who is actually speaking,

whether it is the author, the poet, the author-character or the poet-character.

Key words: Contemporary Portuguese poetry. Adília Lopes. Self.

Autobiography. Biographeme.

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“Os poemas são impessoais. É claro que são autobiográficos…” (Adília Lopes, 2015)

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...................................................................................10

1. CAPÍTULO I: UMA BREVE HISTÓRIA DO EU..................................20

1.1. O Eu e sua origem...................................................................21

1.2. O Eu no Romantismo...............................................................27

1.3. O Eu impessoal........................................................................33

2. CAPÍTULO II: ENTRE O REAL E A FICÇÃO: O OUTRO..................46

2.1. Nome, pseudônimo, máscara, biografema..............................46

2.2. Autobiografia, autoficção, diário, autorretrato..........................55

3. CAPÍTULO III: OUTROS EUS DE ADÍLIA..........................................80

3.1. O Eu na narrativa do poema....................................................83

3.1.1 O Eu narrador: metáfora e literalidade.....................................86

3.2. Referências ou personagens familiares: construção do Eu.....89

3.3. O Eu e o corpo.........................................................................93

3.4. O quotidiano e a autobiografia.................................................97

CONSIDERAÇÕES FINAIS..............................................................105

REFERÊNCIAS.................................................................................110

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INTRODUÇÃO  

Este trabalho surgiu por conta de uma série de questionamentos que

apareceram durante leituras da poesia de Adília Lopes. Uma poesia que se

utiliza do Eu para falar do mundo ou de questões biográficas.

A escrita do Eu invade os séculos XIX, XX, XXI, com biografias e

autobiografias, seja na sua concepção, seja na produção ficcional e poética.

Entre os estudiosos dessa questão, Philippe Leujene (2008, p.88, 89), em

sua obra O Pacto Autobiográfico, afirma que o eu-lírico se permite falar em

primeira ou terceira pessoa e que “A poesia não está em toda parte, e a

autobiografia também não“, pois “É tão íntimo, e pretencioso, se apresentar

aos outros”.

Apesar de compreender que uma biografia ou autobiografia implica

uma verdade, Lejeune (2008) entende que a verdade existente em uma

autobiografia está carregada de diferentes graus de verdade, e uma

autobiografia sonhada não é nem mais nem menos do que uma biografia

que se pretende absolutamente autêntica. A verdade pode ser expressa por

inúmeros artifícios. Isso nos leva a concluir que toda biografia é uma

expressão de ficção.

Ao modo de um mosaico, selecionamos autores que podem não só

contribuir para explorarmos a questão do Eu na poesia adiliana e, assim,

resgatarmos um pouco da história da poesia e do pensamento filosófico, mas

também desenharmos uma paisagem que nos permita deambular por entre

os semblantes existentes do Eu. Desde a irreverência de Rimbaud (2002),

com a contundente Carta do Vidente escrita em 1871 e endereçada a Paul

Georges Izambard, o poeta busca uma nova literatura, por meio do

“desregramento de todos os sentidos”, a fim de encontrar uma nova língua

para a poesia. Ao afirmar: “O eu é o outro”, rompe com a ideia romântica de

um eu transcendental, ideal, suprassensível. Esclarece o que entende por

poesia ao dizer: Trata-se de atingir o desconhecido através do desregramento de todos os sentidos. Os sofrimentos são enormes mas é preciso ser-se forte, ter nascido poeta, e eu reconheci-me poeta. Não é de modo algum culpa minha. É falso dizer-se: eu penso. Deveria dizer se: sou pensado. – Desculpe o trocadilho. - Eu é um outro. (RIMBAUD, 2012)

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Aqui, o Eu lírico de Rimbaud se permite expressar por meio da

linguagem, rompendo com a identidade do Eu do poeta e se firmando por

meio de uma nova língua. Segundo Rimbaud (2002, p.82), o poeta “é

encarregado da humanidade, dos animais até; ele deverá fazer sentir,

apalpar, escutar as suas invenções; se o que ele traz de lá tem forma, ele dá

forma; se é informe, ele dá informe. Encontrar uma língua.”

Na tarefa de perfilar autores para construir este mosaico do Eu,

escolhemos pensadores que entendem a formação do Eu como parte

significativa da história da humanidade. Nessa perspectiva elencamos,

primeiramente, Nietzsche que afirmou, na filosofia moderna, que a noção de

sujeito único, idealizado, essencial e transcendente estava esmorecida. De

maneira geral, podemos dizer que Nietzsche entende a vida como vontade

de potência, desejo, a qual está diretamente vinculada ao corpo. Um corpo

cheio de instintos, impulsos, afetos e perecível enquanto matéria. Esse corpo

é atravessado por uma diversidade de forças físicas, psíquicas, metafísicas,

sociais etc., engendrando no ser uma permanente presença do devir.

Bergson (1907), nessa perspectiva, entende o Eu por meio de dois

estados distintos da atenção/duração, vinculados ao espaço e ao tempo: Eu

superficial e Eu profundo discernidos e intrincados pela linguagem que

percorre um e se estabelece em outro. É só um Eu, social e interior.

Diferentemente, Martim Buber (2001, p.43), fenomenologista, em 1923,

afirmava: “Não há Eu em si, mas apenas o Eu da palavra princípios Eu-Tu, e

o Eu da palavra princípio Eu-Isso.”, entendendo que a ponte entre o tu e

isso está na relação entre os homens e suas experiências. Não menciona a

existência do Eu-Si, talvez porque os Eus apenas se formem por meio de

uma complexidade de acontecimentos, sistemas, pessoas, realidades que

não aludem mais a uma única verdade, mas a um plasma em constante

movimento, configurado por inter-relações.

Nesse jogo constante de apreensão do Eu, Michael Hamburger (2007,

p.86) verifica como o sujeito está colocado no poema. Ao analisar poetas da

tradição simbolista e modernista, considera-os afastados da perspectiva

romântica em que o Eu confessional está identificado com o Eu empírico,

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afirma: “A verdade da poesia se tornou inseparável do que Oscar Wilde

chamou de ‘a verdade das máscaras’”.

Barthes (1971) também colabora com a reflexão por meio da

concepção de biografema ao evidenciar, nos textos literários, os rastros da

realidade da pessoa, do autor, doados ao leitor. Não são fatos, são apenas

sombras de uma história vivida que não se manifestam para criar uma

biografia, mas outra ficção. Carlos Eduardo S. F. de Souza (2010, p.120), faz

uma síntese significativa e poética sobre o biografema barthesiano:

Biografema: estilhaço, pormenor, gosto, inflexão, átomo epicuriano, soluço salutar, outro significante; unidade que repercute o corpo fragmentado do autor no corpo do leitor, esse concebido como sujeito do ato de identificar o biografema como parte de seu próprio corpo disperso. Na alegoria ao filme mudo, outra possibilidade: a história do sujeito como afluxo de imagens, do qual o biografema seria uma espécie de intertítulo, texto que invade o (dis)curso caótico da vida e indicia, sugere e faz aflorarem significâncias.

Agamben (2005) também reflete sobre a questão quando diz que o

sujeito é o resultado da confrontação entre os seres viventes e os

dispositivos existentes em nossa cultura/sociedade. Assim, somos inúmeros

sujeitos ou somos sujeitos com inúmeros papéis.

Observa-se, a partir dessas reflexões, que o Eu existe imerso no

mundo, seja por meio de seu corpo, de seu universo interior e exterior, seja

por meio da constelação de outros inúmeros atributos que se interpenetram

para a construção do Eu que sugere ser tão único como múltiplo. Dado os

saltos no pulo do tempo que cada período configura, não pretendemos

explorar radicalmente essa modalidade de expressão do Eu, mas apenas

atermo-nos aos elementos fundamentais para a leitura de Adília Lopes.

Assim, mergulhados e abastecidos por essas reflexões, aventuramo-nos à

poesia da poeta.

Adília Lopes, pseudônimo de Maria José da Silva Viana Fidalgo de

Oliveira, nasceu em Lisboa, Portugal, em 1960. É poeta, cronista e tradutora.

Começou a publicar em 1985, Um jogo bastante perigoso, edição da autora.

Em 1986 publica O poeta de Pondichéry pela Frenesi e & etc. E, assim, até

2000 publicou um livro a cada um ou dois anos, sempre por editoras

consideradas pequenas em Portugal (& etc, Gota de Água, Black Sun

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Editores, Angelus Novus), mas que trazem em sua essência o apreço do

livro como objeto de arte. Há o cuidado com a capa, o papel, a diagramação,

a ilustração, e as tiragens são bastante limitadas (250 a 500 exemplares de

cada obra). Em Portugal, embora as editoras denominadas grandes tenham

um apelo comercial, as inúmeras editoras menores são caracterizadas por

esse especial cuidado com o livro e por uma busca intensa a novos autores.

Ser considerada uma editora pequena não denigre a imagem de ser uma

importante editora. Segundo a literata e escritora Maria da Conceição Caleiro

(2012),

Para cada um destes editores, o livro é um objeto sem tempo, ou fora do tempo: uma opção que se reflecte, por exemplo, na demora na escolha do papel (o corpo, a espessura, o toque, a marca de água) e numa política editorial de aposta em livros sem garantias de aceitação no mercado.

A editora Mariposa Azual é uma dessas editoras que, em 2000,

publica Obra, reunindo 14 livros publicados de Adília Lopes. Esse momento

é significativo, pois é quando a vida da poeta se modifica. Adília transforma-

se ou é transformada em uma personagem. É convidada e aceita participar

de programas televisivos (RTP, Adília Recomenda. SIC, Noites Marcianas).

Clara Ferreira Alves, jornalista e escritora portuguesa, ao falar dessa poeta,

no site de Arlindo Correia, afirma:

Não conheço Adília Lopes em pessoa, não tenho por ela simpatia ou antipatia. Um poeta mede-se pelos versos que faz e pelo que escreve, e gosto de algumas coisas que Adília Lopes escreve, da sua sinceridade aparente que esconde um sentido profundo das coisas. Adília Lopes tem coisas para ler, e merece ser lida e entendida como tal. Mas, ultimamente, Adília Lopes transcendeu a sua condição de poeta obscuro e aparece em todas as partes. Adília Lopes foi absorvida pelas televisões, a RTP, no Adília Lopes Recomenda, a SIC, nas Crónicas Marcianas e no Herman. Nos dois últimos casos, o que querem eles de Adília Lopes? A sua escrita, a sua qualidade humana, a escritora que ela é? Acho que não. Querem explorar a aparente candura dela, que a leva a dizer com um ar muito sereno o que o senso comum tem o pudor de esconder ou inventar, um relato de opiniões de pechisbeque. Os escritores não são muito considerados pelas televisões. São tratados em pé de página e mantidos à distância de um braço, como se fossem portadores do vírus do intelectual ou da lepra dos incompreendidos. E eis que aparece uma mulher, não muito bonita mas muito inteligente, que não hesita em confessar que não é muito bonita mas é inteligente suficiente para perceber que uma mulher tem, obrigatoriamente, de ser bonita. A escritora destapa o manto diáfano da fantasia e desnuda-se em público. As televisões

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tomam isto por deboche e provocação e aproveitam-se. Se for uma mulher tanto melhor, rende mais. O programa do João Baião goza com ela, deliciado. Está aberto o «freak show», senhores espectadores. E o nome é sublime, Adília Lopes, nome que a falsa Adília inventou, em intuição prévia desta personagem de espectáculo. Cada um dá-se em espectáculo como quer e pode mas, a poesia de Adília é melhor do que isto. Ela, se calhar, também.

Ou seja, mais que ser transformada em uma personagem, é

transformada em uma personagem bizarra, excêntrica e adorada pelo

público, também por aquele não leitor de poesia. Segundo o poeta Pedro

Mexia (2003), Não existe um consenso sobre a poesia de Adília Lopes. Em grande medida, isso deve-se à personagem Adília, que se tornou indissociável dos textos. Durante anos, a figura era suficientemente obscura para não incomodar as poucas dúzias dos que frequentam as obras e os meios literários mais ou menos underground. Mas a televisão veio mudar isso: Adília apareceu em vários programas e tornou-se conhecida de quem não lê poesia (isto é, de quase toda a gente). Essa notoriedade televisiva foi, diga-se de passagem, bastante penosa, sobretudo porque se inseriu numa lógica de freak show totalmente desadequada ao real talento literário da autora. Adília é muito mais que uma mulher gordíssima e chanfrada que diz asneirolas na tv e conta, com candura, que nem tem vida sexual. Existe uma outra Adília, e seria um erro lamentável que isso fosse esquecido, sobretudo por parte de quem se interessa por poesia.

Sobre esse momento de sua vida, Adília (2005) responde, em entrevista

concedida a Carlos Vaz Marques e publicada no Diário de Notícias:

A certa altura, quando foi publicada a sua poesia completa, A Obra, a Adília Lopes tornou-se uma figura pública, de um momento para o outro. Foi a vários programas de televisão, nessa altura. Quem é que lhe parecia que convidavam: a escritora ou uma personagem capaz de dizer em público coisas que a maior parte das pessoas não dizem e de falar, na primeira pessoa, de assuntos como este de que temos estado a falar?

- Eu penso que era mais a pessoa que dizia essas coisas do que propriamente a escritora. Porque para ler os meus poemas para entender a minha poesia, acho que é preciso ter uma certa cultura. Não estou a chamar incultas às pessoas ou a dizer que não são cultas. Todas as pessoas têm... Às vezes não valorizam aquilo que é mais culto nelas. Alguma vez se sentiu usada?

- Não. Não me sentia usada. Eu acho que às vezes as pessoas convidavam-me, faziam-me perguntas e era caso para dizer que não sabiam aquilo que estavam a fazer. Porque as pessoas pensam, às vezes, que eu sou muito ingénua ou pateta ou assim mas eu não queria era ser uma sabichona. Isso quer dizer que cultiva essa ingenuidade?

- Não cultivo a ingenuidade. Não sou é calculista. Mas também não sou uma tonta. Sentiu alguma vez que queriam fazê-la passar por tonta, nessas

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suas aparições públicas? - Não, acho que... Quer dizer, tenho ideia que sentia uma

certa estranheza. Tornou-se uma figura pública, nessa altura.

- Sim, tornei-me. Mas penso que isso já passou. Gostou, na altura, dessa personagem Adília Lopes?

- Era estranho, para mim. Não era muito confortável. Depois o telefone estava sempre a tocar, estavam sempre a convidar-mepara programas e a certa altura eu pus um termo nisso. Não era vida para mim, estar sempre a aparecer. Não gosto disso.

Outro fato importante em sua vida de pessoa e poeta foi descobrir-se

portadora de uma doença mental. Podemos perfilar uma série de poetas e

grandes artistas como Fernando Pessoa, Sylvia Plath, Virgínia Woolf,

Nietzsche, Rimbaud, Antonin Artaud, Van Gogh, Franz Kafka etc., que foram

acometidos por doenças psíquicas como alcoolismo, depressão, sífilis

terciária, esquizofrenia etc., diagnósticos estabelecidos durante suas vidas

ou depois das mesmas. Talvez possamos afirmar que o biografema da

doença mental em suas vidas contaminava suas obras, mas não as

conduzia.

Enveredar por esse percurso é pouco auspicioso e menos nos traz

sobre a poética criativa de seus autores. Adília Lopes refere-se à doença

mental em inúmeros poemas e crônicas. Suas crônicas foram publicadas no

Jornal Público em 2001 e 2002. Assim como fala da família, escritores,

amigos, amigas, professores, Deus, religião, Evangelhos, livros, TV,

anúncios, escrever, criar, também fala de sua doença mental. Afirma em

uma das crônicas: “Há um preconceito em relação à doença mental que não

há em relação às outras doenças. É para ajudar a desfazer esse preconceito

que escrevo isto.” (Mental e Mentol, 2002). Selecionamos trechos de

algumas crônicas em que a poeta revela sua doença com verdade e poesia.

Nesta crônica intitulada “20 anos em 1981” e publicada no Jornal

Público em 08 de abril de 2001, afirma:

Na Primavera de 1981, há 20 anos atrás, eu não tinha vontade de dançar (e não dancei) debaixo das avelaneiras floridas. Pesava menos de 40kg (meço 1,56 m). Não dormia, não sabia se dormia. Não me aparecia o período há não sei quantos meses. Tinha perdido a noção do tempo. Não distinguia o ontem do hoje, o dia da noite, a chuva do bom tempo. Não conseguia estudar nem perceber o que lia. Lia mecanicamente, letra a letra ou sílaba a sílaba, quanto muito. O professor José Pinto Peixoto, meu professor de Termodinâmica no ano lectivo anterior, uma pessoa inteligentíssima, disse-me uma coisa muito estúpida, mas em que,

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ainda hoje, muita gente acredita: "Doenças de nervos são doenças de ricos." A escritora americana Sylvia Plath descreve muito bem o meu adoecer mental no seu romance "A Campânula de Vidro" (editado pela Assírio & Alvim). O desastre de Camarate dela foi a execução do casal Rosenberg. Não me suicidei, mas tentei suicidar-me. Sylvia Plath suicidou-se. Uma colega minha da Faculdade de Ciências suicidou-se. Este país mata-nos lentamente. Portugal é obsceno. O touro acaba-se de matar fora de cena. A América da Sylvia Plath também era obscena. A União Soviética da Anna Akhmatova também, claro. As touradas à espanhola idem. (Crônicas da vaca fria, Público)

Sobre seu primeiro surto, diz na crônica “Ovos Estrelados”, publicada

no Jornal Público em 21 de maio de 2001:

Em 1981, enlouqueci pela primeira vez. Deu-me para sair de casa a correr e para me sentar a chorar à porta de uma capela no Largo do Mitelo. A minha mãe foi atrás de mim, sempre a dizer "ai o meu coração!", sentou-se ao meu lado, no degrau da capela, e fez-me festinhas. Logo apareceu uma dúzia de homens em fato-macaco que se pôs à nossa frente a dizer "não gosto de ver fazer ovos estrelados". Também apareceu uma mulher que se debruçou sobre mim e que disse "porque é que está a chorar? a sua mãe está-me a dizer que é uma menina inteligente, que anda na universidade". Eu, apesar de ter tido 20 a Matemática no primeiro exame do Ano Propedêutico, achava que era atrasada mental. A mulher desapareceu e eu resolvi voltar para casa com a minha mãe que ia chocadíssima com a grosseria daqueles homens. Eu na altura lia Alan Watts e o episódio dos ovos estrelados pareceu-me uma vivência de monja Zen que combinava infortúnio, brejeirice e uma grande dose de humor negro. (Crônicas da vaca fria, Público).

Também relata o tempo de doença, suas consequências e comenta

sobre os psiquiatras na crônica “Notícia de Torto”, escrita nesse mesmo

jornal, em 30 de julho de 2001:

Vinte anos de psiquiatria deixaram-me com mais 40 kg e uma distensão abdominal que me dá lugar sentado em todos os transportes públicos. Ao fim e ao cabo, sou uma veterana de guerra. Há 20 anos eu tinha lido as tragédias gregas e reconhecia-me em Antígona, Electra e Ifigénia. Cedo percebi porém que não vale a pena falar em Sófocles e em Eurípides aos psiquiatras pela simples razão de que os psiquiatras não os leram. Sófocles e Eurípides só entrarão para o vocabulário dos psiquiatras no dia em que forem os nomes do último grito em psicotrópicos. O mesmo se pode dizer do famoso complexo de Édipo, de que os psiquiatras, como toda a gente, sabem umas banalidades aprendidas em más traduções espanholas. O complexo de Édipo só lhes interessará verdadeiramente no dia em que for o nome de um complexo urbanístico de luxo, com piscinas e palmeiras. O meu pai diz de Nossa Senhora "Fia-te na Virgem e não corras", eu digo da Psiquiatria "Fia-te na Psiquiatria e não corras". Electra, ela própria, pode ir chorar baba e ranho para o consultório do psiquiatra. Grita "os muros da casa dos Manon escorrem sangue".

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Que não espere justiça, nem compaixão, nem lágrimas. Na melhor das hipóteses há empatia (chama-se assim), desembolsa umas dezenas de contos e, se estava a tomar dois Zyprexa, passa a tomar cinco. Mas, bem vistas as coisas, tenho mais bem a dizer da Psiquiatria do que mal. Os escritores e os professores de Literatura não são melhores do que os psiquiatras. Ganham a vida (o dinheiro) à custa do "por delicadeza perdi a minha vida" do Rimbaud. E há muitos que não leram Sófocles nem Eurípides. Hoje Electra pode lavar o sangue das paredes da casa dos Manon com detergentes eficazes, coisa que não podia fazer nos tempos de Eurípides. E eu afinal já não tomo remédios nenhuns. Salvo a pílula quando é caso disso. E foi um psiquiatra (não por acaso um homem e não uma mulher) que me ensinou a tomar a pílula e que ma deu. E isto não se aprende a ler Rimbaud. (Crônicas da vaca fria, Público)

E na crônica “Nada Te Turbe, Nada Te Espante” de 24 de setembro

de 2001, publicada também nesse jornal, reflete sobre a batalha interior que

a doença exige:

Não podemos viver sem "stress", foi o que me disse uma vez o dr. René Bartlett, psiquiatra. A batalhação interior é uma luta, não com o Anjo (Jacob luta com o Anjo em Génesis 32.24-32), mas com aHydra, com o rio de fel interior, com os fantasmas que têm "um leve sabor a podre" (mais uma vez cito Sophia, poema "Elsinore" do livro "Ilhas"), com o piano (o do filme) que nos puxa para o fundo do mar e de que temos de nos livrar se não queremos perecer. Há qualquer coisa de viscoso nesta luta. Como no coito. E nem sempre se vai para a cama com o amado. Isto é, nem sempre o texto é amado (ou amável). (Crônicas da vaca fria, Publico)

Em seu percurso, Adília Lopes já publicou cerca de 34 livros quer por

editoras, quer por edição própria, além de 4 antologias. Participa de

palestras em escolas, seminários, entrevistas para televisão e para

estudiosos do seu trabalho. Adília é uma poeta com conhecimento da

tradição literária. Constrói uma poesia cheia de personagens e um Eu-lírico

impregnado de elementos anti-ficcionais (referências diretas à vida da

poeta). Uma poesia abastada de pessoas-personagens, personagens, coisas

do quotidiano, da família, fábulas, contos infantis e intertextos com poetas da

tradição. A poeta sugere que esses elementos estão atualizados em suas

composições e configuram sua lírica. Remete à fotografia do nosso

contemporâneo ou ainda nos despista para realidades que as palavras

podem construir como possível subjetividade real, fictícia ou poética. Um

universo de inúmeras direções.

No entanto, a pergunta se mantém: Quem é esse Eu-lírico? É um

Eu-empírico ou apenas um nome? Nossa problemática se desdobra em: até

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que ponto a poesia de Adília Lopes configura a experiência pessoal do

sujeito lírico com personagens e histórias, evidenciando um pacto de

intimidade entre eles? Como procedimentos contra-ficcionais e antilíricos,

empregados na poesia adiliana, revelam um território misto e instável em sua

escrita? Parece possível afirmar que o Eu lírico de Adília Lopes se sustenta

na diversidade de Eus, advindos de mini-histórias referenciais e ficcionais, ou

seja, de máscaras identitárias! E, ainda, que pela heterogeneidade de sua

composição poética potencializa um campo de instabilidade em sua escrita.

O objetivo desta pesquisa é estudar a poética de Adília Lopes, poeta

portuguesa contemporânea. Pretendemos delinear, a partir de seus

procedimentos poéticos, o projeto da poeta, apreendendo as configurações

do Eu que emanam de seu texto.

Esta dissertação divide-se em três capítulos. O primeiro, intitulado

“Uma breve história do Eu”, aborda considerações e contextos do

acontecimento do Eu em perspectivas histórica, filosófica, social, cultural e

literária. Apresenta o Eu em sua origem, por meio de seus papéis sociais,

como personagem, máscara e pessoa. Confere uma busca de identidade

desse Eu, tanto por meio de vozes distintas, como pela consciência,

autoconsciência e inter-relação, sempre buscando a subjetividade da poeta

Adília Lopes em seus poemas. Também trata do Eu no Romantismo,

momento em que esse Eu se estabiliza na literatura em sua expressão

máxima, para, então, enveredar pelo desenvolvimento da poesia moderna e

a despersonalização do mesmo.

O segundo capítulo, “Entre o real e a ficção: o outro”, reflete sobre a

questão do Eu na literatura e tece considerações sobre os diversos gêneros

manifestos por ela: poesia, autobiografia, autoficção, autorretrato e diário.

Passeia, entre outros, por conceitos de nome autoral, pseudônimo, máscara,

biografema, construindo para a leitura da poesia da poeta, possíveis

atmosferas.

O terceiro capítulo, “Outros Eus de Adília”, considera alguns poemas

para refletir sobre procedimentos poéticos utilizados pela poeta e já

sinalizados por alguns críticos, assim como pensar sobre o papel do Eu em

sua poesia. Dividimos este capítulo em quatro subitens: O Eu na narrativa do

poema (ficção, autoficção, metáfora e literalidade); A construção do Eu

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realizada por meio de referências ou personagens familiares; O Eu e o

corpo; O cotidiano e a autobiografia. Todos contemplam a subjetividade

múltipla que parece delinear-se em poemas adilianos.

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CAPÍTULO I - UMA BREVE HISTÓRIA DO EU

As leis da física em sua formulação tradicional, descrevem um mundo idealizado, um mundo estável e não o mundo instável, evolutivo em que vivemos. (Prigogine, 2011).

Escolhemos alguns contextos da realização do Eu sem a pretensão

de universalizar e esgotar sua história, mas nos situarmos em possíveis

considerações relativas às atmosferas criadas na poesia de Adília Lopes.

Em sua história, o Eu passou por inúmeras transformações desde a

sua não existência como um ser pessoal até a sua concretude como

indivíduo. Entendemos que, diante das suas diversas manifestações, vestiu-

se de muitas caras formadas por momentos e processos históricos,

filosóficos, literários, atrelados à conjectura secular do seu aqui e agora,

comungando com um processo de sempre se construir/desconstruir.

Quando se pensava único, encontrou o outro, fragmentou-se para se

encontrar e colidiu com a diversidade de si mesmo, plural, sendo que ainda

se busca, embora não mais único, e talvez nem mais plural, talvez etéreo e

fugitivo de um espaço linear, já versado em um lugar quântico em que os

tempos passado e presente estão em convivência. O pronome Eu sempre

existiu desde os primórdios. Esboçamos, entretanto, pistas que divagam

desde a não consciência até a sua efervescência como uma ideia, um corpo,

um olhar ao outro, uma linguagem. Inúmeros percursos de uma única

partícula performática, misteriosa, que ainda hoje embriaga filósofos e

poetas. Mauss (2003, p. 370), refletindo sobre essa questão, anuncia:

De modo nenhum afirmo que tenha havido uma tribo, uma língua, em que a palavra “ eu - mim” [ je - moi] (vejam que a declinamos ainda com duas palavras) não existisse e não expressasse algo de nitidamente representado. Muito pelo contrário, além do pronome que elas possuem, muitas línguas se destacam pelo uso de abundantes sufixos de posição, os quais se referem em grande parte às relações que existem no tempo e no espaço entre o sujeito que fala e o objeto de que ele fala. Aqui, o “Eu” é onipresente, no entanto não se exprime por “mim” nem por “eu”.

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1.1 O Eu e sua origem

Os povos primitivos atuavam em grupo, e ser-eu e ser-ele não

estavam exatamente discriminados, pois ambos referiam-se ao grupo a que

pertenciam. Marcel Mauss (2003), em seu ensaio “Uma categoria do espírito

humano: a noção de pessoa e de Eu”, apresenta uma visão marcadamente

etnográfica, fundamentada em aspectos históricos e sociais, sobre algumas

sociedades desde o período arcaico até hoje, com o objetivo de entender

como o conceito do Eu foi elaborado ou construído ao longo do tempo.

Analisa desde tribos e clãs do México, Austrália, Noroeste Americano, até as

sociedades como as da Grécia e Roma.

Inicialmente, considera que nos Pueblos (México) a noção de Eu era

estabelecida por meio de papéis sociais e sagrados, exercidos por pessoas

que atuavam como personagens. Mauss (2003, p. 374) afirma que

[...] o clã é concebido como constituído por um certo número de pessoas, na verdade personagens; e por outro lado, o papel de todos esses personagens é realmente figurar, cada um por sua parte, a totalidade prefigurada do clã.

Ao prosseguir no seu estudo etnográfico, observa que de maneira

geral as características se assemelhavam “em termos diferentes mas com

natureza e funções idênticas, o mesmo problema, o do nome, da posição

social, da ‘natividade’ jurídica e religiosa de cada homem livre, e, com mais

razão dos nobres e príncipes” (MAUSS, 2003, p. 375). A noção de indivíduo

não existia, cada pessoa tinha um nome corrente que mudava com a idade e

a função que ocupava na organização do clã e um nome perpétuo que se

referia a seus antepassados, sempre como personagem. Conclui: “Observa-

se evidentemente que um imenso conjunto de sociedades chegou à noção

de personagem, de papel cumprido pelo indivíduo em dramas sagrados,

assim como ele desempenha um papel na vida familiar” (MAUSS, 2003, p.

381).

Afirma também que a Índia é considerada a civilização mais antiga em

que a noção de Eu, enquanto consciência individual, existia. No entanto,

suas diversas filosofias Upanixade, Budista e Hinduísta não desenvolveram

essa ideia, pois o sentido do Eu era para elas ilusório, já que o Eu estava

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atrelado ao universo. Ainda, segundo uma perspectiva histórica e social,

Mauss considera que o aparecimento da noção de pessoa e de Eu

aconteceu por meio dos latinos (Romanos) quando as ideias de direito

jurídico e individual aparecem, assim como as de máscara e persona.

Acrescenta: [...] a palavra persona, personagem artificial, máscara e papel de comédia e tragédia, representando o embuste, a hipocrisia - o estranho ao ‘EU’- prosseguia seu caminho. Mas o caráter pessoal do direito estava fundado, e persona também havia se tornado sinônimo da verdadeira natureza do indivíduo (MAUSS, 2003, p. 389).

A palavra persona vai se construindo por meio da pessoa/Estado,

pessoa/consciência moral. Apenas com o cristianismo a noção de pessoa se

completa: “A pessoa é uma substância racional indivisível, individual”

(MAUSS, 2003, p. 393).

Os gregos falavam de um Eu que se definia por meio do discurso

vinculado à razão, à lógica, ao mundo das ideias, sendo esses elementos

constitutivos da alma. O corpo era só o local onde os instintos se

manifestavam e deveriam ser evitados e domesticados. Para Sócrates e

Platão, a ideia de sujeito, dotado de identidade e individualidade, não existia.

São conceitos que aparecerão no século XIX. Segundo Ângela Zamora

(2010, p. 2), A partir do fenômeno socrático-platônico consolidam-se na civilização ocidental, profundas cisões que refletem um dualismo em todas as instâncias: o homem passa a ser encarado como um ser dividido em duas partes distintas- há um eu (alma) que é eterno e imperecível, causa do pensamento, e um corpo povoado de instintos enganadores dos quais se deve desconfiar e ser comedido na satisfação de seus caprichos.

Ou seja, pode-se dizer que nesse momento a noção de Eu está atrelada ao

dualismo alma/corpo, sendo seu primado a alma representada pela razão.

Está aqui a semente do racionalismo que irá desenvolver-se no século XVII.

Ambos os sensos de desenvolvimento da alma e contenção dos instintos do

corpo deveriam ser apaziguados por meio do cuidado de si.

No século I e II da era cristã, a escrita de si vai exercer algumas

funções voltadas para alentar o sentimento de solidão e ajudar o Homem a

desenvolver a alma e a combater as forças demoníacas provocadas pelo

corpo. Assim, pode-se pensar que o Eu era representado pelo cuidar de si,

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pelo adestramento de si por si mesmo por meio da meditação e da escrita,

para uma posterior ação, num contínuo aperfeiçoamento da conduta

humana.

A escrita de si realizava-se por meio dos hypomnematas e

correspondências. Segundo Foucault (1992, p. 131), os hypomnematas

“Constituíam uma memória material das coisas lidas, ouvidas ou pensadas;

ofereciam-nas assim, qual tesouro acumulado, à releitura e à meditação

ulterior”. Embora pessoais, essas anotações não possuíam um caráter

individualista, seu objetivo era o cuidado de si para o desenvolvimento de

sua conduta. “[...] trata-se, não de perseguir o indizível, não de revelar o que

está oculto, mas, pelo contrário, de captar o já dito; reunir aquilo que se pode

ouvir ou ler, e isto com uma finalidade que não é nada menos que a

constituição de si” (FOUCAULT, 1992, p. 131). Ou, ainda, formar uma

identidade por meio de um conjunto de anotações que não distingue autores,

mas perfilam vozes escolhidas de um dia, de uma vida.

Também as correspondências eram fundamentais no cuidado de si

por meio do desenvolvimento de uma escrita pessoal, caracterizada por uma

dupla ação, atuava como emissor (introspecção) e receptor da carta. Uma

diversidade de funções pertinentes tanto à vida publica, como ao consolo, à

amizade e à ajuda. As correspondências tinham como premissa estar

presente na ausência e dar-se ao outro por meio da introspecção. Com uma

escrita pessoal, anotava-se tudo em pormenores do que se fazia e sentia,

comunicava-se ao outro o seu Eu, essa era uma maneira de contribuir tanto

para o desenvolvimento de si como do outro. Nessa época, o individualismo

não existia, tudo estava direcionado ao desenvolvimento e cuidado de si que

tinha como meta o aperfeiçoamento da alma, sua conduta e ação destinada,

unicamente, ao bem estar da comunidade.

A poesia era caracterizada como épica e dramática. Era construída,

de maneira geral, com ações e diálogos, em que o Eu do poeta, sua

personalidade e julgamentos deveriam estar o mais ausente possível.

Aristóteles (2011, p. 87), ao analisar a tragédia e a poesia épica, em

Poética, afirma: Homero, por conta de muitas outras qualidades, é merecedor de elogios, mas o é, sobretudo, por ter sido o único, entre os poetas épicos, a compreender o papel do próprio poeta quanto a tomar a

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palavra. De fato, o poeta deve dizer o mínimo possível em sua própria voz, porquanto não é um artista da imitação ao agir assim. Os outros poetas mantêm-se o poema inteiro tomando a palavra, dedicando-se à imitação apenas de maneira breve e ocasional.

Aristóteles admira também Homero pela sua grandeza em lidar com a

própria voz na sua poesia.

A partícula Eu foi passando por transformações que, embora lentas,

são significativas para caracterizar o Eu: personagem, máscara, persona,

cuidado de si (conhecimento de si) e busca de uma identidade. Todavia, foi

apenas a partir do Renascimento, Racionalismo, Iluminismo, Romantismo,

que começou a transformar-se mais rapidamente e tornou-se objeto da

filosofia e literatura.

O dicionário de filosofia (ABBAGNAMO, 2007, p. 453), para este

verbete, diz: EU (lat. Ego; in.I, Self; fr. Moi; al.Ich; it.Io). Este pronome, com que o homem se designa, passou a ser objeto de investigaçãofilosófica a partir do momento em que a referência do homem a si mesmo, em termos de reflexão ou consciência, foi assumida como definição do próprio homem. Foi o que aconteceu com Descartes, que foi o primeiro a formular em termos explícitos o problema do eu. “O que sou eu então? “, perguntava Descartes. “ Uma coisa que pensa. Mas o que é uma coisa que pensa? É uma coisa que duvida, concebe, afirma, nega, quer ou não quer, imagina e sente. Certamente não é pouco que todas essas coisas pertençam à minha natureza. Mas por que não lhe pertenceriam? [...] É de per si evidente que sou eu quem duvida, entende e deseja, e que não é preciso acrescentar nada para explica-lo”(Mé.,II). Como se vê, aqui o problema do eu é imediatamente acompanhado pela sua solução: o eu é consciência, relação consigo mesmo, subjetividade. Esta é a primeira das interpretações historicamente dadas do eu.

Nota-se que a concepção do Eu está atrelada à consciência de si que

desenvolver-se-á diferentemente na filosofia e literatura durante os séculos

XVIII, XIX, XX. Não é objetivo deste trabalho abordar o desenvolvimento

psicológico do Eu, assim como fazer uma investigação filosófica minuciosa

do desenvolvimento conceitual do Eu dada a vastidão do tema.

É Abbagnamo (2007, p. 388) também quem informa que a história

filosófica do Eu está dividida em quatro grandes grupos de interpretações,

agregando diferentes e interessantes filósofos. A primeira interpretação

fundamenta-se no Eu como consciência. Entre outros filósofos, Locke (apud

ABBAGNAMO, 2007, p. 388) discute a consciência do Eu como identidade.

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Ele afirma:

Quando vemos, ouvimos, cheiramos, provamos, tocamos, meditamos ou queremos uma coisa, percebemos que a fazemos. O mesmo ocorre com nossas sensações e percepções atuais, e nesse caso cada um é para si mesmo o que ele chama de si mesmo, não se levando aqui em conta o fato de que o mesmo eu continue nas mesmas substâncias ou em substâncias diferentes. E como o pensamento é sempre acompanhado pela consciência do pensamento, sendo ela que faz que cada um seja aquilo que cada um chama de si- mesmo, distinguindo-se assim de todas as outras coisas pensantes, nisso apenas consiste a identidade pessoal.

A segunda interpretação diz respeito ao Eu como autoconsciência,

representada inicialmente por Kant, a partir do desenvolvimento do seu

próprio pensamento. Segundo Abbagnamo (2007, p. 389),

A interpretação do eu como Autoconsciência nasce da distinção que Kant fizera entre o eu como objeto da percepção ou do sentido interno e o eu como sujeito do pensamento ou da apercepção pura, isto é, o eu da reflexão.

Baseado nas ideias de Kant, Fichte desenvolverá a ideia do Eu absoluto,

fundamento do romantismo alemão.

A terceira interpretação, entende o Eu como unidade ou identidade,

fruto das perspectivas anteriores de consciência e autoconsciência. Segundo

Abbagnamo (2007, p. 390), são refletidas também por Kant e Hume, “a

unidade não é absoluta nem rigorosa: é formal e aproximativa, fundada na

constância relativa de certas relações entre as partes ou momentos do eu”.

A quarta interpretação tematiza o Eu como inter-relação. Tanto

Kierkegaard como Heidegger defendem tal posição. O primeiro

definiu o eu como "relação que se relaciona consigo mesma". O homem é uma síntese de alma e corpo, de infinito e finito, de liberdade e necessidade, etc. Síntese é inter-relação, e a reversão dessa inter-relação, ou seja, a relação da relação consigo mesma, é o eu do homem. [...]. Kierkgaard acrescentava que precisamente por relacionar-se consigo mesmo, o eu é relacionar-se com outro: com o mundo, com os outros homens e com Deus (ABBAGNAMO, 2007, p. 390).

O segundo, por sua vez, diz que

A assunção 'Eu penso alguma coisa' não pode ser adequadamente determinada se o 'alguma coisa' ficar indeterminado. Se, porém, o 'alguma coisa' for entendido como ente intramundano, então trará em si, não expressa, a pressuposição do mundo. E é justamente esse o fenômeno que determina a constituição do ser do eu, quando pelo menos ele deve poder ser algo, como em 'Eu penso

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alguma coisa'. Dizer eu refere-se ao ente que eu sou enquanto sou-no-mundo.

Essa tempestade de interpretações nos traz à necessidade de

desvendar como a poeta Adília Lopes, que utiliza a palavra Eu ou a primeira

pessoa do singular de maneira corriqueira em seus poemas, pode estar em

algum andar do tão vasto vale da história. Observemos o poema abaixo:

As osgas têm um eu? As plantas têm um eu apesar de não terem

cérebro? E as pedras? O eu, um eu, o meu eu precisa de luz e de

escuridão.

(LOPES, Adília, 2009, p. 417)

Para os filósofos vinculados à metafisica, essas perguntas da poeta

não fazem qualquer sentido, visto que se não há a possibilidade de

consciência não existe um Eu. Mas para a poeta, as osgas, as plantas e as

pedras esbarram na possibilidade de terem um Eu ou um cérebro: “As

plantas têm um eu apesar de não terem cérebro?” Vinculadas a todos os

reinos da natureza, são substâncias e existências desprovidas de

consciência? O Eu que retém a realidade, um Eu que exerce a experiência, o

meu Eu que se relaciona, todos estão contidos no mundo em que há luz e

escuridão, incógnitas e descobertas. Assim, aparentemente, não faria

qualquer sentido articular uma história do Eu para na sequência negá-la,

muito embora a poeta em inúmeros poemas apresente a motivação do

corpo.

Em um de seus poemas, por exemplo: “O corpo/ nunca/ é porco/ a

alma/ pode ser porca/ (nenhuma porca/ é porca)”, se buscarmos entender

essa estrofe fundados no entendimento de alma e corpo da metafísica,

percebemos que ela se faz presente apesar de apresentar-se invertida. Aqui

a alma é porca. Se prosseguirmos com essa linha de raciocínio, alma e

corpo estão investidos de uma conotação política: a alma julga o corpo. O

paratexto do livro, em que esse poema está, anuncia: “os meus textos são

políticos, de intervenção, cerzidos com a minha vida”. (LOPES, Adília. 2009,

p. 445).

Paralelamente ao acontecimento filosófico do Eu, consideramos,

também de maneira geral, que a poesia até esse período (sec. XVII-XVIII)

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poderia ser classificada como clássica, no sentido de que o Eu do poeta não

está presente e sua produção está atrelada a uma série de regras,

submetida à moral e sujeita à ordem e harmonia. Assim podemos dizer que o

Eu, na era clássica e também no iluminismo, estava aprisionado a uma série

de normas, regras sistematizadas, em que a originalidade e singularidade do

poeta não se apresentavam como algo relevante. É o que Barthes (2000, p.

42) confirma quando diz:

Os achados clássicos são achados de relação, não de palavras: é uma arte da expressão não da invenção; as palavras, aí, não reproduzem como mais tarde, por uma espécie de altura violenta e inesperada, a profundeza e a singularidade de uma experiência; são trabalhadas em superfície, segundo as exigências de uma economia elegante ou decorativa.

1.2 O Eu no Romantismo

Foi a partir do século XVII, com Descartes, que a concepção de Eu

começa a se modificar intrinsicamente na sua subjetividade. Entende-se que,

por meio da razão, o homem tudo pode explicar e entender. Segundo

Bornheim (2002, p. 79),

A res cogitans, tal como Descartes a pensara, exerce um papel fundamental. A razão seria o ponto arquimédico que permitiria dominar o mundo. E se o homem quisesse atingir a sua plenitude, quer dizer, ser soberanamente livre, deveria considerar a razão como essência do seu ser, derivando dela as normas de seu comportamento. O homem atingiria, portanto, o máximo de sua humanidade, se racionalista.

O movimento pré-romântico, denominado Sturm und Drang

(Tempestade e Ímpeto), motivado por uma oposição às regras do

racionalismo, representado por Descartes e expandido no vigente

iluminismo, é considerado de fundamental importância. Suas raízes estão na

obra de Jean Jacques Rousseau que, avesso às ideias racionalistas do

Iluminismo, valoriza a natureza e os sentimentos interiores do ser humano.

Esse movimento, criado por Goethe e Schiller, revela, segundo Rosenfeld

(1969, p.149), que a verdade poética é conquistada por meio da expressão

do que é íntimo e interior. Em suas palavras: “[...] atingir precisamente pela

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auto-expressão a uma verdade objetiva: a projeção do mundo íntimo

‘constitui’ a verdade profunda do universo exterior [...]”.

Para Bornheim (2002) tanto o racionalismo quanto o pré-romantismo

estão unidos pelo subjetivo, por aquilo que caracteriza o indivíduo na sua

intimidade, interioridade. Afirma:

Em Descartes, como na filosofia que dele derivou, a interioridade esgota-se em uma dimensão racionalista, expressa no cogito, e os filósofos fazem a análise da razão, estudam a razão e o conhecimento racional. A interioridade de Rousseau é bem outra, pois para ele interioridade é sinônimo de sentimento, e este é considerado superior à razão (BORNHEIM, 2002, p. 80).

O espírito romântico é entendido como um frenesi, qualificado como típico do

universo humano, daquele que deseja romper com o que está estabelecido e

despertar para o novo, algo que sempre existiu em todas as culturas e

épocas. Nesse sentido,

O romântico seria sempre uma fase de rebelião, de inconformismo aos valores estabelecidos e a consequente busca de uma nova escala de valores, através do entusiasmo pelo irracional ou pelo inconsciente, pelo popular ou pelo histórico, ou ainda pela coincidência de diversos desses aspectos (BORNHEIM, 2002, p. 76).

O romantismo, enquanto movimento, surge na Alemanha no século

XVIII/ XIX, rompendo com todos os valores racionalistas até então

estabelecidos. É um movimento filosófico, histórico, social e cultural que

incorpora inúmeras características distintas, dependendo do lugar em que

se desenvolveu e do tempo em que aconteceu. De maneira geral, possui

algumas características como: retorno à natureza (não ao estado primitivo da

mesma, mas a uma natureza calcada em um espírito místico, como uma

interiorização da natureza para um maior desenvolvimento pessoal), busca

do sobrenatural (a religião está sempre presente), interioridade como

sentimento, autenticidade, espontaneidade do Eu e, ainda, valorização da

tradição popular e nacionalização. Nunes (2002, p. 58) a esse respeito,

declara:

A vida interior, espiritual, livre e profunda, a que levam a capacidade expansiva e o poder irradiante do Eu, concretiza-se em tudo aquilo que o indivíduo tem de singular e característico, e por

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tudo quanto nele, dos sentimentos aos pensamentos, é capaz de, sob a tônica do entusiasmo, manifestar espontaneamente, aflorando ao exterior, pela riqueza superabundante de conteúdos que possuem força própria, a súmula dos elementos pessoais e intransferíveis que constituem o índice de sua originalidade.

Assim, como a subjetividade do poeta é sua única expressão lírica,

filosoficamente, a expressão do Eu, segundo Fichte, está autorizada a

responder às questões da dualidade entre sentimento/razão. Ele desenvolve

uma teoria para responder a tal dualismo, buscando, por meio de um

entendimento dinâmico universal e espiritual, um princípio que abarcasse

todos os seus anseios. Denomina esse princípio de Eu Puro,

autoconsciência pura que, segundo Bornheim (2002, p. 86),

Não é o eu de uma pessoa determinada, de um eu empírico, mas de um princípio supra-individual, um Eu puro, aquilo que o homem traz em si de divino e absoluto, pois, de fato, o Eu de Fichte não deixa de apresentar analogias com o espírito absoluto.

Esse Eu puro torna-se o centro de toda a filosofia romântica e é

contemplado com um idealismo radical. É um “Eu puro, livre e divino”

(Rosenfeld, 1969, p. 161), que produz o Não–Eu, o Eu empírico, as coisas

do mundo, o mundo, a obra. Assim, a obra produzida pelo poeta está

vinculada ao Não-Eu ( ao mundo e ao Eu empírico).

Novalis (apud ROSENFELD, 1969, p. 161) esclarece que ”Para o

íntimo vai o misterioso caminho. Em nós, ou em parte alguma, está a

eternidade.” Os poetas se libertam das regras na escrita ao buscarem a

expressão da alma, da originalidade, por meio de um amor atormentado que

procura a verdade e a essência do homem interiorizado. Segundo Nunes

(2002, p.58), “o eu [...], assegurou um primado ontológico à interioridade, à

vida interior que foi sinônimo de profundeza, espiritualidade, elevação e

liberdade [...]”. Essa é a concepção de real à qual Novalis (apud

ROSENFELD, 1969, p. 163) parece responder: “[...]absolutamente real [...]

Quanto mais poético, tanto mais real”. Adília a isso parece argumentar em:

Quanto mais prosaico

mais poético

A poesia

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(escreveu Novalis)

é o autêntico real absoluto

isto é o cerne da

minha filosofia

quanto mais poético

mais verdadeiro

( LOPES, Adília, 2009, p. 592)

Para Novalis, a poesia é a possibilidade de expressão do real

absoluto: “quanto mais poético/ mais real”. Para Adília, o verdadeiro está

calcado no poético, “quanto mais poético/ mais verdadeiro”. Duas instâncias,

real e verdade, bastante instáveis, podem ser submetidas a diferentes

interpretações que parecem inacessíveis em si mesmas e esbarram em uma

tentativa de definir a poética. Para o Eu romântico, a expressão da

interioridade está no real e deve ser expressa na poesia. Para Adília no

verdadeiro. Mas identifica-se com Novalis ao referir-se ao cerne de sua

filosofia por meio das palavras de Novalis. Daí perguntamos: a poesia é a

verdade de uma pessoa? Constrói-se também por meio de acontecimentos

biográficos ou é a verdade de um Eu lírico, de uma linguagem?

A poesia romântica buscava a expressão dos afetos de um Eu

individual, pessoal, a partir dos sentimentos e experiência atrelados a um Eu

empírico. Friedrich (1978, p. 17) ressalta que

Segundo uma definição colhida da poesia romântica (e generalizada muito sem razão), a lírica é tida, muitas vezes, como a linguagem do estado de ânimo, da alma pessoal. O conceito de estado de ânimo indica distensão, mediante o recolhimento, em um espaço anímico, que mesmo o homem mais solitário compartilha com todos aqueles que conseguem sentir.

Tal sentir pode ser refletido, também, neste aforismo de Adília Lopes

(2009, p. 421):

Pateta, patética, peripatética: eu

Diante desse aforismo, são possíveis algumas atmosferas de sentido,

pois podemos entender tais palavras como pertencentes aos momentos

contemporâneo, romântico e grego. Uma atmosfera bastante contemporânea

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é grafada pela palavra “pateta”, cujos ritmos e sons esbarram em vozes

entoadas por signos que se perdem em sentidos para o Eu ou os ironizam,

tornando-os patéticos. O senso comum para “patética” importuna, visto ser a

palavra entendida como ridícula. Entretanto, uma outra possibilidade de

entendimento é consumada pela ironia que poderia também ser

contemporânea e romântica. Patético é um termo ou conceito concebido por

Schiller e levado ao extremo:

PATÉTICO (in. Patbetic; fr. Pathétique, ai. Pathetísch; it. Patético). F. Schiller designou com este termo uma das espécies do sublime (v.) prático, mais precisamente o que deriva de um objeto ameaçador em si mesmo para a natureza física do homem, portanto doloroso. No sublime prático contemplativo, ao contrário, não é o objeto, mas a sua contemplação que institui o temor e, consequentemente, a sublimidade (Vom Frhabenen, zur Weiteren Ausfuhrung einiger Kantischeu Ideen, 1793, ÍJber das Pathetische, 1793). (ABBAGNAMO, 2007, p. 745)

Assim, tanto podemos entender patético como ridículo (significado utilizado

nos dias de hoje) ou, como assinala Schiller, um estado contemplativo que

possibilita o prazer pela observação da dor, sem que a essa esteja implicado

o real.

A terceira palavra “peripatético” significa, segundo o dicionário

Houaiss (2009, p.1475), “1. relativo ao pensamento do filósofo grego

Aristóteles (384-322 a.c) 2. que se ensina andando, passeando, como era o

costume de Aristóteles”. Nenhuma dessas atmosferas nos convence

efetivamente, mas nos atrevemos a resgatar em Adília Lopes o permanente

caminho do desvio, um Eu que atravessa a história e que se veste de

palavras, para não se firmar único, mas para, ironicamente, consolidar-se

enquanto linguagem poética. Ou seja, o aforismo tanto pode conter uma

linguagem do senso comum, em que o valor atribuído ao Eu é marcado por

uma desqualificação do Eu, como pode apreciar um movimento que provoca,

aprofunda e alarga o sentimento de poesia e não o enclausura no poema.

Outro aspecto, segundo Schlegel ( 1997, p. 64), é que

A poesia romântica é uma poesia universal progressiva. Sua destinação não é apenas reunificar todos os gêneros separados da poesia e por a poesia em contato com filosofia e retórica. Quer e também deve ora mesclar, ora fundir poesia e prosa, genialidade e crítica, poesia-de-arte e poesia-de-natureza, tornar viva e sociável a poesia, e poéticas, a vida e a sociedade, poetizar o chiste, preencher e saturar as formas da arte com toda espécie de sólida

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matéria para cultivo, e as animar pelas pulsações do humor.

A partir dessas considerações e pensando no livro Andar a pé de Adília

Lopes (2013), perguntamos: Até que ponto ele projeta a concepção de um

Eu impessoal, embora nele se embrenhe uma voz autobiográfica e autoral.

Parece que não há canto seguro na elocução de Adília. Andar a pé foi

editado pela Averno em 2013 e contém 13 pequenos poemas. O título do

livro nos remete ao caminhar, momento em que temos contato com o mundo

e o diverso, assim como, segundo a filosofia peripatética, possibilita-nos a

reflexão, o deambular dos pensamentos. Também em Rousseau de Os

devaneios do caminhante solitário, encontramos momentos de caminhadas

que possibilitam a reflexão, os devaneios do Eu pelos lugares de si mesmo.

Baudelaire, por meio da figura do Flaneur, em “A passante” ou “O homem na

multidão”, também reflete sua poética a partir do deambular. A poeta

Golgona Anghel (2016, p. 27), em seu ensaio “Dissidentes, peregrinos e

excursionistas: passear e pensar”, analisa os aspectos de andar e pensar na

poesia portuguesa recente e afirma:

Se quisermos errar, nós próprios, pelos desvios permanentes da figura do passeio na poesia portuguesa mais recente e tomar medidas dessa tensão constante que se dá entre percepção e reflexão, entre o código do pensamento, começaríamos por invocar as palavras de Nietzsche, proferidas em Ecce Homo: “Estar sentado o menos possível; não confiar em nenhum pensamento que não tenha nascido ao ar livre e em plena liberdade de movimentos”.

Adília deambula em Andar a pé, compõe uma narrativa que percorre,

por meio do tempo, os espaços lisboetas. Resgata da memória,

circunstâncias aparentemente autobiográficas, autorretratos, cenas

pitorescas representadas por um Eu ou sugeridas por ele. É o que parece

dizer este poema:

VERDES ANOS

Lembro-me com gosto do laboratório de Química do Liceu

Pedro Nunes. Lembro-me da reação do sódio com a água, liberta

uma luz amarela. A reação do potássio com a água liberta uma luz

violeta. Tinha um colega, o Pinto, que dizia: “ isto para Maria José

é melhor do que ir ao cinema”. (LOPES, Adília. 2013)

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O poema sugere, na peripatética Adília, lembranças em cores. Verdes anos,

luz amarela e violeta provenientes de reações entre a água e os elementos

químicos. Não configuram metáforas, mas atém-se às imagens de cores que

poderiam inspirar um paratexto: - Isto é cinema. No entanto, a diversidade de

nomes próprios como Liceu Pedro Nunes, Pinto, Maria José, reflete o matiz

íntimo de um cotidiano passado.

1.3 O Eu impessoal

A poesia moderna com autores como Baudelaire, Rimbaud, Fernando

Pessoa, Mallarmé, trouxe o novo para o universo lírico, seja por meio da

forma, da sonoridade, do pensamento/imagens, seja pelo fenômeno da

despersonalização. Segundo Friedrich ( 1978, p. 36),

Com Baudelaire começa a despersonalização da lírica moderna, pelo menos no sentido que a palavra lírica já não nasce da unidade de poesia e pessoa empírica, como haviam pretendido os românticos, em contraste com a lírica de muitos séculos anteriores.

A partir dos modernos, o que importa para a criação moderna não é o

Eu empírico que vive as paixões e mazelas da vida, mas como esse material

é utilizado pelo intelecto, ou seja, por meio de um trabalho sistemático com a

linguagem, no qual a forma adquire importância fundamental. Friedrich

(1978, p. 40) frisa: Assim como a poesia separou-se do coração, também a forma separa-se do conteúdo. A salvação da poesia consiste na linguagem, enquanto o conteúdo permanece em sua insolubilidade.

A modernidade marca-se por um trabalho exaustivo em busca de uma

linguagem sempre nova, na qual o verso branco ganha espaço em

detrimento da métrica e rima que continham a expressão poética. Também o

som é privilegiado em função do conteúdo. A crise da representação está

vinculada à crise do sujeito e a poesia torna-se impessoal. Rimbaud leva ao

extremo essa impessoalidade ao afirmar, em carta escrita, em 1871, para

Georges Izambard, seu amigo e professor, o que é poesia para ele:

Quero ser poeta e trabalho para me tornar visionário: vós não compreendeis nada e eu não sei se saberei explicar-vos. Trata-se de atingir o desconhecido através do desregramento de todos os

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sentidos... É falso dizer: Eu penso. Deveria dizer-se: Sou pensado.- Desculpe o trocadilho. - Eu é um outro... Porque Eu é um outro. Se o cobre se descobre clarim, não há aí nada de culpa sua. Isso é evidente para mim: assisto à eclosão do meu pensamento: vejo-a, escuto-a: lanço um movimento com o arco: a sinfonia vai abalando as profundezas, ou salta de repente para o palco.

Embora Rimbaud não especifique quem ou o quê vem a ser esse

outro, podemos pensar que se trata de um desconhecido, cujos sentidos

devem estar desregrados. Ou seja, também com Rimbaud o sujeito poético e

o Eu empírico devem estar desvinculados/separados. Segundo Friedrich

(1978, p. 69), “Este eu pode vestir todas as máscaras, estender-se a todas

as formas de existência, a todos os tempos e povos.” Entretanto, podemos

pensar também esse “Eu é o outro”, não como uma máscara, mas como

uma projeção do inconsciente, um além Eu não conhecido, um não contínuo

Eu, uma coisa figurada e existente apenas na linguagem.

Adília Lopes (2009, p. 602) parece dialogar com Rimbaud em

“HAVERÁ UMA BELEZA QUE NOS SALVE” quando diz:

Um poema de Rimbaud está cheio de violência. Há muita beleza

na expressão dessa violência. E isto é terrível. Preferia que

Rimbaud não estivesse ferido a ponto de escrever daquela

maneira? Preferia. Mas não posso dizer isto assim.

Adília parece vislumbrar um Eu que se manifesta na linguagem “Há muita

beleza na expressão dessa violência” e carrega um outro Eu. Aquele

machucado, ferido e, assim, violento na linguagem. Será que reflete de

alguma maneira que não é possível uma linguagem sem Eu? ou mesmo feita

a linguagem só com elementos concretos da realidade pode ela manifestar

os afetos que a moldaram?

O Eu lírico de Rimbaud se expressa por meio da linguagem,

rompendo com a identidade do Eu do poeta e se firmando como forma,

sentido, cor, afeto e realidade, na busca de uma dicção para além do que o

próprio Eu poderia vislumbrar/cantar/formar sem se acreditar ser só um, mas

já vestido, ou quem sabe camuflado, do outro. O Eu do poeta é outro:

impessoal, dialético, universal, coletivo, enfim, Eu. De maneira emblemática

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e incisiva, Rimbaud construiu sua poesia fundado em sensações do corpo e

intrincado na questão de que o Eu são os outros. Ao descartar a propriedade

do Eu lírico que a tudo toma e subjetiva, Rimbaud deixa seu clarão na

poesia, afirmando cores e sensações como o espectro de um mundo

reverenciado e vivido. A partir desse momento, não há mais um Eu para

expressar seu interior, todos estão solapados pela existência da linguagem

que transforma o Eu em outro, que pode estar e ser ou não ser Eu. Na

dimensão desse Eu, como o poema abaixo de Adília opera o Eu?

Sou e estou. Eu sou eu e a minha circunstância como disse

Julio Inglesias. Eu não sou eu. Eu sou aquela que não sou. Não,

que disparate, eu sou eu. Já morremos todos e já ressuscitámos

todos. Agora há que se viver a vida.

O Diabo é aquele que diz “Eu sou aquele que não sou”.

Sou eu às vezes.

( LOPES, Adília, 2009, p. 421)

Ser é ter uma realidade, uma circunstância. Não sou é uma das

formas de despersonalização, é ser outro dentro do Eu. Um Eu que não se

define por adjetivos, mas apenas pelo seu próprio estado, atmosfera de Eu.

“Sou e estou. Eu sou eu e a minha circunstância.” A subjetividade do Eu

lírico não está calcada em uma forma única, mas exatamente nessa

oscilação emergir e submergir para acontecer enquanto Eu. “Eu não sou eu.

Eu sou aquela que não sou.” Para ser na voz do outro (O Diabo), ela é às

vezes: “Sou eu às vezes.“

Em Fernando Pessoa os heterônimos mostram um Eu que é múltiplo

e fruto de um projeto consciente e construído. Em suas palavras: “Escravo

como é da multiplicidade de si próprio.” Em 1935, como a inter-relacionar

multiplicidade de si e despersonalização, em CARTA A ADOLFO CASAIS

MONTEIRO (PESSOA, arquivo Pessoa), Pessoa atribui a origem de seus

heterónimos ao fenômeno da despersonalização. Afirma:

[...], a origem mental dos meus heterónimos está na minha tendência orgânica e constante para a despersonalização e para a simulação. Estes fenômenos- felizmente para mim e para os outros- mentalizaram-se em mim; quero dizer não se manifestaram na minha vida prática, exterior e de contato com outros; fazem explosão para dentro e vivo- o eu a sós comigo.

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Nesse sentido a despersonalização é, como diz Fernando Pessoa:

“Esta tendência para criar em torno de mim um outro mundo, igual a este

mas com outra gente, nunca me saiu da imaginação”. Seu projeto poético

afirma-se em não formar um Eu e sim inúmeros e múltiplos. Assim

consagrou os seus heterônimos, como afirma Eduardo Prado Coelho (1984,

p.338): “a sua (des)personalização em diversas personagens

individualizadas psicológica e biograficamente, a que deu o nome,

inicialmente inesperado e hoje inteiramente consagrado, de heterônimos”.

Diferentemente, mas com o mesmo viés de desrealização - não

representar a realidade - podemos entender a despersonalização em

Mallarmé (2010, p. 164), em “Crise de Verso” quando escreve sobre o

impessoal na poesia:

A obra pura implica a desaparição elocutória do poeta, que cede iniciativa às palavras, pelo choque de sua desigualdade mobilizadas; elas se iluminam de reflexos recíprocos como um virtual rastro de fogos sobre pedrarias, substituindo a respiração perceptível no antigo sopro lírico ou a direção pessoal entusiasta da frase.

Diante da problematização do Eu na poesia moderna, como a poesia

de Adília Lopes o configura? Observemos o texto abaixo que sinaliza diálogo

com a obra de Mallarmé e inúmeras outras vozes:

(que caras que baratas batatas comem os irmãos em Cristo de Van Gogh)

A lógica é uma batata. A gramática é lógica aplicada. a=a não

interessa nem ao Menino Jesus. a=b só tem interesse porque a

não é bem b. Uma rosa não é uma rosa não é uma rosa. Partir de

a=b para chegar a a=/a. Reduzir ao absurdo. Cante Kant. Conte

Comte. O verbo ser não é igual a ser igual. Mas a linguagem do

homem e da mulher e a do tentilhão-macho e do tentilhão-fêmea

reduz-se a equações como a natureza de Newton. Se Deus não

jogava aos dados quando criou a Criação, nunca um lance de

dados provará o acaso.

( LOPES, Adília. 2009, p. 414)

Ao que parece nesse poema em prosa, ou nessa prosa poética, ou nesse

contexto do indescidível entre uma e outra, encontramos a força da

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linguagem desprovida de pessoa e alicerçada no canto e ritmo da poesia. A

primeira frase do texto, entre parênteses é uma isotopia, “(que caras que

baratas batatas comem os irmãos em Cristo de Van Gogh)”. Cara,

significando querida ou preço além do que vale ou se pode pagar; Cristo

como os “Comedores de batatas”?. E segue para um principio do raciocínio

argumentativo da lógica, que é uma batata. E que se encerra como um

argumento falso para culminar com o absurdo rítmico e sonoro de “Cante

Kant“ e “Conte Comte“. Por entre o raciocínio lógico estabelecido sustenta

“Uma rosa não é uma rosa não é uma rosa”, remetendo-nos a René

Magritte, Foucault, Mallarmé. Sinaliza e reafirma que a linguagem não é a

representação da realidade. Resgata com o tentilhão as Galápagos de

Darwin e evoca Newton e suas equações sobre as forças de ação e reação

submetidas à natureza, à gravidade, como também a linguagem do homem e

da mulher. Finaliza o texto dialogando com Einstein em “Deus não jogava

dados com o universo”, para desdizer Mallarmé em “Um jogo de dados

jamais abolirá o acaso” e afirmar “nunca um jogo de dados provará o acaso”.

Brinca com os postulados da lógica. Brinca com a linguagem. Do mesmo

modo parece questionar a tradição. Segundo Blanchot ( 2011, p. 35),

A fala poética deixa de ser fala de uma pessoa: nela, ninguém fala e o que fala não é ninguém, mas parece que somente a fala “ se fala” . A linguagem assume então toda a sua importância; torna-se o essencial; a linguagem fala como essencial e é por isso que afala confiada ao poeta pode ser qualificada de fala essencial. Isso significa, em primeiro lugar, que as palavras, tendo a iniciativa, não devem servir para designar alguma coisa nem para dar voz a ninguém, mas têm em si mesmas seus fins. Doravante, não é Mallarmé quem fala mas é a linguagem que se fala, a linguagem como obra e a obra da linguagem.

Estamos assim diante do desaparecimento absoluto do Eu, são as

palavras que falam em desgovernados sentidos, trens de dois trilhos, “um

lance de dados jamais abolirá o acaso” e “nunca um lance de dados provará

o acaso”. Podemos questionar como se realiza o Eu na obra de Adília Lopes

ou, ainda, se ela quer nos despistar de qualquer possibilidade do Eu, muito

embora utilize o pronome frequentemente. Impossível deixar de confrontar a

posição da poeta com a crítica contemporânea que arrefece o uso do Eu e

parece desconsiderar que, depois da poesia moderna, estamos sempre a

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falar de um Eu fictício, atemporal e irrealizável. Foi por meio de Nietzsche

que a filosofia moderna estabeleceu um novo conceito de sujeito baseado

não mais na ideia idealizada de identidade única, mas a partir da existência

do corpo. Até então, a filosofia cartesiana e platônica fundamentava-se na

separação entre mente e corpo, considerando que as demandas do corpo

turvavam a alma em sua possibilidade de enxergar, de ser consciente. De

maneira geral, podemos afirmar que Nietzsche introduz no pensamento

filosófico a ideia do corpo, lugar em que os desejos, afetos e instintos

acontecem em movimento dinâmico e geram uma subjetividade entendida

não como essência mas como processo.

Nessa perspectiva, o conceito de identidade é contestado nas

palavras de Barrenechea ( 2011, p. 13):

Todo e qualquer conceito identitário, referente a uma pretensa substancialidade subjetiva - sujeito, ego, eu, consciência - deve ser contestado. Os instintos são múltiplos, longe de constituírem uma unidade, eles se desenrolam em um jogo de permanentes mudanças, em uma série de composições e recomposições nas relações de poder entre as forças.

Ou seja, o corpo é atravessado por uma diversidade de forças ( físicas,

psíquicas, metafísicas, sociais etc.), engendrando no ser a presença do

devir. Nessa concepção de sujeito em devir, esse devir outro seria, depois

dos modernos, a própria possibilidade de despersonalização.

Outro poema de Adília problematiza esse Eu contemporâneo:

O meu eu, o eu, é frágil, muda e fica, é uma planta.

(LOPES, Adília, 2009, p. 418)

O Eu adiliano está inscrito na existência de uma subjetividade que pode ou

não estar diretamente dirigida a um sujeito ou a um sujeito impessoal. Uma

planta, embora seja um signo, é antes uma palavra e uma imagem. Está

desprovida de consciência e “muda e fica“, de acordo com as estações do

ano, ela muda e também fica, está fixa na terra. Segundo Hamburguer

(2007, p.74), depois do romantismo “[...] o eu de um poeta era o que esse

poeta escolhia fazer dele, sua identidade devendo ser encontrada apenas

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nos corpos que ele escolhia ocupar”. Ou seja, o Eu empírico torna-se

impessoal, não existe a busca de uma identidade, mas reflete um Eu

ficcional. Desenraizado, desrealizado, despragmatizado, não emblema uma

metáfora. A gradação que o poema propõe nos faz percorrer, engendra

instâncias que vão do particular “meu eu”, para algo mais universal “o eu”.

Ainda, depois pessoalizado, o meu Eu cria a instabilidade ao nomear de Eu

aquilo que não possui consciência e livre arbítrio. Mas muda e fica. O Eu

muda e fica? Mas frágil pode ser logo aprisionado? Segundo Nietzsche

(1992, p. 45),

[...] as imagens do poeta lírico, ao contrário, nada são exceto ele mesmo e como que tão-somente objetivações diversas de si próprio. Por essa razão, ele, como centro motor daquele mundo, precisa dizer “eu”: só que essa “eudade“ não é a mesma que a do homem empírico-real, desperto, mas sim a única “eudade” verdadeiramente existente e eterna, em repouso no fundo das coisas, mediante cujas imagens refletidas o gênio lírico penetra com o olhar até o cerne do ser.

O Eu adiliano é uma imagem do Eu que o Eu empírico moldou? É

uma planta que não só muda com as estações, mas diverso de si mesmo,

não se apreende por meio da consciência, não é preciso saber-se planta

para sê-lo. Mas a planta é livre e como todo ser humano, enraizada! Mas o

Eu não convive sem a consciência de saber-se um/identidade e pode ser

uma planta. O Eu não é só consciência, “os pensamentos se pensam”, são

forças e devires, não é a consciência que os determina. Diante de tais

relações, podemos sugerir que o Eu da poeta esbarra em um Eu infinito e

universal e não se manifesta individual, mas singular. Não se manifesta por

meio de um Eu empírico, mas há um Eu lírico que encena o mundo, mas não

é o mundo real. Ao negar o Eu real, ao tornar-se planta, ela aproxima-se do

Eu enquanto linguagem que pode ser uma planta. Nesse sentido Barthes

(2004, p. 60) afirma que

[...] o autor nunca é mais do que aquele que escreve, assim como “eu” outra coisa não é senão aquele que diz “eu” : a linguagem conhece um “sujeito” não uma “pessoa”, e esse sujeito, vazio fora da enunciação que o define, basta para “sustentar” a linguagem, isto é, para exauri-la.

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Em sendo assim, o Eu que é uma partícula performática (do sujeito da

enunciação) que foi idealizada como uma identidade única, proveniente, por

vezes, de sua consciência, de seu estado místico, de suas inter-relações,

ganha com o passar do tempo o caráter de corpo em devir, de linguagem

impessoal. Assim, os Eus se fazem plurais, diversificados, singulares e não

únicos. É o que pensa que é e o que não é. É um corpo investido de afetos e

devires que se manifesta em linguagem e é linguagem. Não há uma verdade

estável, tudo permanece em constante movimento. Podemos retomar aqui a

epígrafe deste capítulo que sinaliza os caminhos da física quântica em que

todos os corpos se relacionam e se interpenetram para apenas se

construírem como a possibilidade mais provável do que se chama Eu.

1.4. Apontamentos sobre o Eu na poesia portuguesa contemporânea

Dada a extensão do tema, contemplemos uma consideração sobre o

que é contemporâneo. Segundo Agamben ( 2009, p. 69),

[...] a contemporaneidade se escreve no presente assinalando-o antes de tudo como arcaico, e somente quem percebe no mais moderno e recente os índices e as assinaturas do arcaico pode dele ser contemporâneo. Arcaico significa: próximo da arké, isto é, da origem. Mas a origem não está situada apenas num passado cronológico: ela é contemporânea ao devir histórico e não cessa de operar neste, como o embrião continua a agir nos tecidos do organismo maduro e a criança na vida psíquica do adulto.

Fundamentados nesse conceito da necessidade de conhecimento e

percepção do passado presentificado e no entendimento de que um

movimento literário surge em resposta ao estabelecido, escolhemos alguns

contextos da poesia portuguesa que vivificam essa contemporaneidade sem

seguir uma cronologia, uma vez que a contemporaneidade prescinde dela.

Sinalizamos alguns momentos da modernidade representados por Fernando

Pessoa (1986, p. 296), por meio de alguns de seus versos escritos por um

dos seus heterônimos ou ele mesmo: “Não sou nada./ Nunca serei nada./

Não posso querer ser nada./ À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do

mundo.” Verso do poema Tabacaria, de Álvaro de Campos, sobre o qual

Eduardo Lourenço (2004), em conversa radiofônica com uma rádio

espanhola, afirma:

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[...] poema matricial, poema resumo, poema síntese, espécie de niilismo épico típico da modernidade. Tudo acontece ao mesmo tempo sem significação e pedindo que tudo seja de novo repensado, recriado, refundido. Isso Pessoa nos há dado, à nossa geração. Esse sentimento de que o mundo era uma espécie de caos que já não podíamos ordenar senão multiplicando sobre ele múltiplos pontos de vista... se dá conta se criando máscaras de si mesmo, os famosos heterônimos. Visão caótica, subversiva, épica.

Outro poema de Pessoa (1986, p. 98) “Autopsicografia”: “O poeta é

um fingidor./ Finge tão completamente/ Que chega a fingir que é dor/ A dor

que deveras sente”, talvez solidifique o caráter ambíguo e plural do Eu do

poeta, como o próprio Pessoa (1986, p. 35) escreve nas notas introdutórias

do Cancioneiro: “De maneira que a arte que queira representar bem a

realidade terá de a dar através de uma representação simultânea da

paisagem interior e da paisagem exterior”.

Outro momento bastante significativo dessa contemporaneidade foi o

neorrealismo português acontecido entre o final da década de 30 e os anos

de 1940 e 1950 que trouxe conteúdos que nos interessam como o Eu

inserido e solapado pela realidade. Nesse período, os portugueses estavam

submetidos aos acontecimentos históricos e sociais como o pós-guerra e a

ditadura que teve início em 1933 com Salazar e só se finaliza com sua morte

em 1974. Época de grande repressão e pobreza material resultou em um Eu

expresso por uma voz social, cuja poética estava vinculada ao movimento

cultural, aos ideais da época como o Marxismo, a poesia com apelo social de

mudança, a luta contra a aspereza do governo ditatorial. Essas

características provocaram inúmeras polêmicas entre críticos de poesia e

poetas em busca do entendimento desse movimento, caracterizado como

bastante heterogêneo. Izabel Margato (2009), em seu artigo intitulado “Notas

sobre o Neorrealismo português: um desejo de transformação”, propõe três

tópicos essenciais para refletir esse período: 1- Uma poética que fosse ao

mesmo tempo “um amplo movimento cultural que também se traduzisse em

prática de resistência à ditadura do Estado Novo” (2009, p. 44); 2- Uma

polêmica não só por meio: da presença de “teoria, prática e poesia ao

mesmo tempo” (PITA, 2008, apud: MARGATO, 2009); mas também pelo

[...] segundo ponto controverso [que] pode ser identificado como o grande responsável pela acirrada polêmica neo-realista. Ele tem

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sua origem em uma orientação (ou interpretação) de que a obra de arte deveria ter “um papel efetivamente atuante do ponto de vista político-social”. Essa orientação, desdobrada em diferentes textos e em diferentes tons, em pouco tempo incorporou expressões como: “critério essencialmente pragmático para a apreciação das obras de arte”; “primado do conteúdo sobre a forma”; comunicabilidade direta da obra de arte”, o que acabou por traduzir-se na fórmula-síntese “a redução do artístico ao ideológico”, que durante anos dessa polêmica- também depois deles- ficou associada ao Neo-Realismo como um todo. (MARGATO, 2009, p.45)

No entanto, segundo a autora (MARGATO, 2009, p. 48), os poetas

neorrealistas preocupavam-se com a linguagem, “se ela poderia constituir-se

em um fato ao mesmo tempo artístico, político e revolucionário“, assim como

com sua capacidade de manifestar o sentimento da época, sem reduzir-se a

temas idealizados e panfletários. O tópico 3 aponta para o trabalho poético

propriamente realizado e o peso político existente na linguagem.

A neovanguarda dos anos 60 ou Poesia 61: Maria Tereza Horta,

Casimiro Brito, Fiama Hasse P. Brandao, Gastão Cruz, Luiza Neto Jorge,

surge por meio de um grupo de poetas que, guardadas as especificidades de

cada um, toma da modernidade, de maneira geral, o abstracionismo da

linguagem, a textualidade para expressar-se e valorizar a palavra. Rosa

Maria Martelo ( 2006, p.131) afirma:

Do mesmo modo, era novamente explorada a impessoalidade de uma poesia de teor bastante abstractizante, e revalorizada a condição de autonomia do texto poético, tal como se procurava reavivar o poder de negação das vanguardas estéticas do início do século. E poderia mesmo acrescentar-se que um certo desfasamento relativamente `as capacidades receptivas do público voltava também, já que, uma vez mais, eram poucos os leitores capazes do dinamismo da leitura exigido por estas formas de textualidade.

Diante desse contexto poético e como atitude quase reativa a esse

abstracionismo, os poetas dos anos 70 enveredam para uma poética mais

emocional, mais realista, caracterizada como figurativa e reaproximando-se

do leitor. Rosa Maria Martelo, em “Reencontrar o leitor” (2003), explicita:

Valorizar a tensão emocional do poema, em detrimento de uma tensão essencialmente verbal, irá implicar uma revalorização da legibilidade do próprio processo de enunciação lírica no enunciado. Daí que Nuno Júdice caracterize os anos 70 como aqueles em que

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“ [o] jogo já não é o da sinceridade dentro do fingimento, como em Pessoa, mas o do fingimento dentro da sinceridade”.

De maneira que “o fingimento dentro da sinceridade” revela alguns aspectos

mais narrativos, autobiográficos, quotidianos e realistas. Assim, também

segundo Martelo (2006, p.133),

Reassumindo uma maior proximidade com o leitor, propondo contratos de leitura que admitem efeitos autobiográficos e/ou de realismo, evitando o risco do hermetismo e incorporando a linguagem quotidiana, recusando o apoio sistemático na metáfora ou na imagem, optando por uma formulação mais narrativa e pelo verso longo – o que a conduz a registos de contaminação com a prosa -, esta poesia caracteriza-se por operar, de diversas formas, uma sobrecodificação que admite uma leitura mais imediatista, embora sem excluir a possibilidade de ser lida a um nível mais elaborado, até pelo facto de frequentemente desenvolver relações intertextuais de grande complexidade.

A mesma autora, no ensaio “Modernidade e senso comum: o lirismo

nos finais do século XX”, comenta os diferentes protocolos de leitura

existentes na poesia romântica, moderna e contemporânea. Para tanto, faz

uso da diferença existente entre estado de poesia e o poema. Afirma que

“Os poemas são as ‘memórias de uma alma’, porque também são a memória

da poesia, a sua cristalização discursiva- enquanto poesia terá sido a

experiência que lhes deu origem” ( MARTELO, 2003, p.92). Analisa que no

romantismo a poesia excedia o poema, na modernidade, os limites de ambos

coincidem e, na poesia contemporânea há “certas formas de desfasamento

da poesia em relação ao poema” (MARTELO, 2003, p.96). De maneira geral

considera que isso acontece em função das diferenças de cada período por

meio, respectivamente, do uso do Eu do poeta – idealismo romântico -, no

qual “o poema é o resultado de uma união dada ao poeta entre o Um e o

Tudo, para usar uma formulação de Novalis, sendo que o leitor deve

entender o poema como uma mediação que lhe dá acesso a experiência

idêntica” (MARTELO, 2003, p.92). Na Modernidade falar de poesia seria o

mesmo que falar de poema, dado a orquestração das palavras e a

impessoalidade do texto. Na poesia contemporânea, a autora considera que

o Eu do poeta aparece por meio do emocional, do vivencial, de elementos

figurativos que reivindicam certo realismo ao poema, assim como mantém

um Eu textual e impessoal. Ela afirma:

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[...] o lirismo figurativo é apenas um dos desenvolvimentos da poesia no último quartel do século XX. O lirismo abstractizante e impessoal tem todas as condições para permanecer, embora seja particularmente visível (e interessante) a tendência para fundir as duas possibilidade numa espécie de sincretismo que, ao mesmo tempo, recupera a tradição da Modernidade (pelo facto de reutilizar/ prolongar) e a subverte, por poder combiná-la com um registro muito mais figurativo e susceptível de produzir um efeito de realismo. (MARTELO, 2003, p. 100)

A década de 90 mantem esse lirismo figurativo articulado com a

experiência vivencial do poeta e uma realidade circunstancial que provoca o

efeito de realismo. Aqui já não importa se a referência utilizada pelo poeta

alude ou não à realidade. O leitor, por sua vez, pode pensar em autobiografia

ou também pseudo-autobiografia, ou máscara. Segundo Rosa Maria Martelo

(2003) declara: Algures no espaço incerto da relação entre o poema e uma certa circunstancialidade reconhecível pelo leitor, a poesia valoriza o próprio processo da enunciação lírica e pode aproximar-se facilmente de registos pseudo-autobiográficos, do monólogo e do monólogo-dramático. Todavia, o leitor também é levado a compreender que, como resumiu ainda Joaquim Manuel Magalhães, “[o] que é pensado é efeito de sinceridade como verossimilhança (daí a noção de artifício, que tudo em arte tem de ser para ser arte) e nunca como verdade”. Essa é, de resto uma das razões pelas quais a circunstancialidade não pode ser confundida com o contexto de produção do poema.

No segundo ano do século XXI surge por meio de uma antologia

denominada Poetas sem qualidades (2002), com prefácio e organização de

Manuel de Freitas, um grupo de nove poetas que supostamente seriam

representantes da “nova poesia” portuguesa contemporânea. Ao termo

“Nova poesia” Antônio Guerreiro (2015, p. 4) entende que é “imposto por

uma noção jornalística de atualidade” e que o antologiador é parcial em suas

escolhas: “são os poetas sem qualidades, designação que o autor da

antologia legitima, no prefácio dando-lhe a consistência de uma quase-

categoria crítica”. Nuno Júdice (2010) também questiona a existência desse

grupo particular de poetas, reflete que, embora eles tratem de temas

semelhantes em seus poemas, dialoguem com a tradição e rejeitem um

projeto estético da poesia, eles não constituem um grupo com projeto

unificado. Júdice (2010, p.292) acrescenta:

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45  

De fato, não é possível constituir um grupo apenas pela rejeição; e muito menos por uma identidade assente na superficialidade de meios e recursos que, indo buscar o seu objeto ao quotidiano, ou a intertextos de poemas lidos apressadamente em antologias, fazem do poema um mero apontamento impressionista que pouco mais é, na maioria das vezes, do que uma sentimental e subjetiva confidência que estaria muito bem num diário de adolescência.

Por outro lado, Rosa Maria Martelo (2003) em seu artigo “Reencontrar o

leitor” atenta-se tanto para o nome da Antologia como para o prefácio

denominado “O tempo dos puetas” e entende que o fundamental para esse

grupo de poetas é o desejo de comunicar uma experiência com o leitor.

Afirma: Com efeito, é neste desejo de comunicar, agora acentuado por Manuel de Freitas como extensivo a um conjunto de poetas, que radica uma importante renovação do lirismo, no último quartel do século XX, frequentemente articulável com a valorização de uma relação mais imediata, ou mais legível, com a experiência e, por consequência, capaz de uma maior cumplicidade com o leitor.

Em todos esses momentos histórico-literários atravessados pela

contemporaneidade, observamos características comuns e próprias da

poesia portuguesa, como por exemplo: o diálogo que estabelece com a

tradição, seja por meio do uso de conceitos passados atualizados, seja pela

intertextualidade recorrente. Outro característica importante é sua relação

com a realidade, não como mimese, ou representação, mas como realidade

compartilhável e identificada pelo leitor. Nuno Júdice (2009, p. 298) já

identifica uma série de poetas nesse século representados por meio da

publicação da revista “Criatura” (2008) ao afirmar: “O que caracteriza estes

poetas é a procura de uma expressão própria, por um lado, e o regresso a

uma relação pessoal com o seu tempo e o seu mundo, liberta de imposições

de escola, de estilo ou de moda”. Assim, a poesia portuguesa

contemporânea persegue seu caminho, sem estilo único e prenha de uma

diversidade de poetas.

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Capítulo 2- ENTRE O REAL E A FICÇÃO: O OUTRO

2.1. Nome, pseudônimo, máscara, biografema

O Eu, na contemporaneidade, é uma palavra bastante utilizada pelos

poetas e um enigma para os diversos críticos que a observam e tentam

encontrar-lhe um significado no contexto da literatura e da escritura.

Também é considerado um dictio que remete a um nome, a um ser no

mundo que se revela como performativo e faz parte fundante de

determinados gêneros literários. Essa palavra está atrelada a uma

diversidade de textos - poesia, autobiografia, romance autobiográfico,

autoficção, autorretrato, diário, confissão, memória, carta, relacionados com

a literatura introspectiva, íntima, conhecida como literatura do Eu. Em cada

um desses gêneros, o Eu está vestido de diferentes características que,

mesmo únicas, se misturam e estão alicerçadas pela/na memória do autor.

No caso da poeta deste estudo, ela utiliza o pseudônimo Adília Lopes

para seu nome Maria José da Silva Viana Fidalgo de Oliveira. Silva Viana se

refere à sua família materna, e Fidalgo de Oliveira, à sua família paterna. O

próprio nome - Maria José - refere-se a seus avós. Em entrevistas e

crônicas, ela afirma que se dava mal com esse nome em função das

inúmeras referências familiares, por isso adotou, para a publicação de seu

primeiro poema, no Anuário de Poetas não Publicados, da editora Assírio &

Alvim, em 1984, o pseudônimo de Adília Lopes, sugerido por um amigo. Se

não bastasse o jogo entre nome e pseudônimo, o título da publicação do

primeiro poema também manifesta ambiguidade (vinda do acaso ou não), já

que é publicação de “Poetas não Publicados”, complexificando a questão.

Em crônica publicada no Jornal Público, em 19 de junho de 2001,

Adília Lopes escreve:

Os meus leitores destas "Crónicas da vaca fria" desconhecem, alguns, não todos, claro, que escrevo poemas. Desde 1984 que publico poemas com o pseudónimo que uso e que é o nome com que também assino estas crónicas: Adília Lopes. O nome do bilhete de identidade é outro, é: Maria José da Silva Viana Fidalgo de Oliveira. Ao problema (ao trauma sublimado e sublime!) dos meus nomes voltarei noutra crónica destas, se Deus quiser. Nesta quero falar da poesia.

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Na entrevista concedida a Carlos Vaz Marques, Adília Lopes (2005)

relata a razão para a escolha do pseudônimo:

- Eu dava-me mal com o meu nome. Tinha problemas com os meus pais e o meu verdadeiro nome, o do bilhete de identidade, era o dos meus pais: Silva Viana da minha mãe, Fidalgo de Oliveira do meu pai. E Maria José́ por causa dos pais, dos avós, de não sei o quê. [...] Precisava de um nome escolhido por mim e queria que tudo, na capa do meu livro, fosse escolha minha. É claro que é uma pretensão. Na vida não escolhemos tudo. Aliás, eu tenho ideia de que na vida escolhemos muito pouco.

Pseudônimo é um nome escolhido pelo autor e utilizado para

substituir o nome estabelecido em cartório, registro civil. Segundo Lejeune

(2008, p.24), O pseudônimo é um nome de autor. Não é exatamente um nome falso, mas um nome de pena, um segundo nome, exatamente como uma freira adota ao ser ordenada. É certo que o emprego do pseudônimo pode, às vezes, encobrir um embuste ou ser imposto pela discrição [...]. Os pseudônimos literários não são, em geral, nem mistérios, nem mistificações: o segundo nome é tão autêntico quanto o primeiro, ele indica simplesmente este segundo nascimento que é a escrita publicada [...] O pseudônimo é simplesmente uma diferenciação, um desdobramento do nome, que não muda absolutamente nada no que tange à identidade.

Parece que tanto na obra da poeta como na maneira com que lida

com seu nome e pseudônimo há uma aura de mistério, uma certa

ambiguidade em relação ao nome do autor, à identidade e ou máscara da

poeta/ autor/ personagem. Seu “nome de pena”, nome escolhido pela poeta

por razões pessoais e que está na capa de seus livros aparece também em

alguns de seus poemas, provocando uma certa confusão entre o nome do

autor e a personagem de tais poemas.

Em outra entrevista, concedida a alunos da Escola Secundária José

Gomes Ferreira em Lisboa, Adília Lopes (2005) aborda outros aspectos do

seu nome e pseudônimo:

Porque criou o pseudónimo «Adília Lopes»? [Rita, 8.º 5.ª; Patrícia, 8.º 1.ª; Miguel M., 8.º 3.ª; Frederico, 8.º 2.ª]Senti, instintivamente, que os textos que escrevia se afastavam de mim, não eram bem eu, como uma máscara, uma caraça. Adília Lopes não é bem Maria José da Silva Viana Fidalgo de Oliveira. Confesso hoje que gostava de ter escrito textos de Maria José Oliveira, mas isso não foi e ainda não é possível….Quem é a Maria José da Silva Viana Fidalgo de Oliveira e como se

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relaciona com ela? [Catarina, 8.º 2.ª]Imagino-a sempre como uma menina metida na cama, friorenta, que não se quer levantar para ir para a escola. Ralho com ela. Ao ler a sua biografia (pequena biografia, digamos) na página 16 do meu manual de Língua Portuguesa, confrontei-me com a seguinte frase: «Adília Lopes e Maria José da Silva Viana Fidalgo de Oliveira são uma e a mesma pessoa. São eu». Poderia dar-me uma ideia mais precisa sobre isto? [Joana L., 8.º 6.ª]Uma pessoa não é um nome nem é uma máscara, não é uma personagem. Eu não me sinto duas pessoas.

Essa entrevista instaura algo de perplexo nas relações entre Adília e

Maria José, pois, quando a aluna solicita-lhe para dar “uma ideia mais

precisa” sobre Adília Lopes e Maria José da Silva Viana Fidalgo de Oliveira

serem “uma e a mesma pessoa”. A poeta responde: “Uma pessoa não é um

nome nem uma máscara, não é uma personagem. Eu não me sinto duas

pessoas.” Ou mesmo quando lhe perguntam quem é Maria José da Silva

Fidalgo de Oliveira e como se relaciona com ela, a poeta dá a entender que

é uma menina recolhida, escondida e que não quer se levantar para ir à

escola. A poeta diz que ralha com ela. Pode-se dizer, então, que “Eu é um

outro” como disse Rimbaud. Aqui, Adília veste-se de ela, dela, dela fala,

despersonaliza-se, cinde e resiste à teoria de Lejeune de que um

pseudônimo é apenas um nome de autor.

Tal problemática é incômoda e sugere a questão: eu me sinto uma,

misturada das duas? Poderia dizer Adília. Quase como se ambas

habitassem um diferente mesmo mundo em que a ambiguidade de ser autor

e pessoa caminhasse do perplexo de ser uma para o paradoxo de ser duas.

Na nossa contemporaneidade, já existe uma fala consensual de que o Eu é

uma referência ao múltiplo e plural, dado tanto aos inúmeros papéis que

cada indivíduo veicula em seu cotidiano, como à diversidade de opiniões,

pontos de vista e atualizações que um mesmo ser tende a adquirir nos

muitos tempos que pode povoar. Ontem pensei isso, hoje aquilo, o tempo

consolida o movimento e permite as inúmeras transfigurações pessoais, não

é mais preciso ser um para ser único. Segundo Paul Ricoeur (2003), existem

dois tipos de identidade pessoal, uma atribuída ao mesmo, à mesmidade, ou

seja, às qualidades pelas quais um Eu é reconhecido socialmente uma

segunda vez em um determinado tempo. E outra atribuída à ipseidade,

palavra originada do latim ipse, o si mesmo. Conforme o autor, a ipseidade

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está vinculada à narrativa pessoal, àquilo que a própria pessoa fala de si

mesmo e que a torna única e singular.

Entendemos que o nome referente de Adília Lopes não pode ser

simplesmente tratado como mais um pseudônimo tal qual acontece com uma

infinidade de outros autores portugueses. Esse pseudônimo, utilizado pela

poeta, parece estar sempre a nos confundir, deixando-nos a sensação de

que talvez se trate de uma máscara ou de uma mistura seleta e mágica entre

um nome civil e um nome de autor, como se existisse um permanente

diálogo entre o Eu empírico e o Eu lírico da poeta, como se observa nos

versos: “Nasci em Portugal/ não me chamo Adília” (Op-Art, 2009, p. 292).

Sabe-se que Maria José da Silva Viana Fidalgo de Oliveira nasceu em

Portugal e adotou o pseudônimo de Adília Lopes.

Nesses versos, Adília Lopes, a autora, seria uma pessoa fictícia, uma

personagem, e não a autora empírica? Entretanto, sabemos que Adília é a

autora, o que sugere que as identidades de Maria José da Silva Vieira

Fidalgo de Oliveira e Adília Lopes se misturam na escritura, em constante

ambiguidade, diferentemente do que diz Lejeune (2008,p.24): “o pseudônimo

é um nome de autor”. O pseudônimo, aqui, é um sujeito, um autor e uma

personagem.

Em outro poema adiliano, o pseudônimo assume um corpo, tem uma

voz e se realiza por meio de uma personagem fragmentada de quem temos

apenas cenas. Posteriormente, um Eu (pronome pessoal) entra no poema, o

que nos leva a perguntar: qual Eu, o do pseudônimo como autor ou como

personagem? Eis o poema:

A Selva

Para Ildásio Tavares, poeta brasileiro

“Qui du cul dún chien sámourose, Il lui paraît une rose”

MARCEL PROUST, “Combray”

1

Adília chora

como

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uma Madalena

2

Adília lê treslê a Bíblia

3

Adília a idiota da família afoga-se em chá de tília

4

Adília memorabilia

Combray Penamacor

*

Cortam-me ou esticam-me braços

e pernas conforme a cama (a cama é a medida)

A medida porém é a Senhora da Aparecida

Também eu fui Procrustes tive duas camas os outros as outras nunca estavam certos

Errei (pequei) estou arrependida (antes não fodida que mal fodida)

* 1

Inclina-se mais a fálica a feminina torre de Pisa continua a escrever

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a poetisa (uma poetisa) problema de estética problema de estática

2

As flores do maracujá as testemunhas de Jeová

o brouhaha o zumbido do mundo (o Apocalipse é só um eclipse)

A pesada a pura poetisa (a torre de Pisa) não cai

Pelo chão rolam os céus (os nenúfares os açúcares)

"Havia até um seu `outro eu´ feminino: a corcunda e perdidamente enamorada Maria José." (Richard Zenith, Fernando Pessoa: o poeta dos muitos rostos)

*

Na maçaneta magoo

o cotovelo (dor de cotovelo) a oração é um anelo do coração (Teresa de Lisieux)

“ Na véspera chumbara a Adília, colega símpatico, que sem custo eu ajudava e gostosamente. Chorosa, surpreendi-a, com outras meninas a rezar. Rezavam aquela ladainha para que eu chumbasse “ (Décima aurora) (LOPES, Adília, 2009, p. 638)

O poema “A Selva” foi publicado em 2007 no livro Caderno, dentro de

uma seção denominada Procrustes, em que a autora cita seu significado por

meio de um verbete retirado do Dictionnaire de la mythologie grecque e

romaine (Larousse).1 Procrustes foi um personagem da mitologia grega que

convidava os viajantes para se hospedarem em sua casa. Ele possuía duas

1  “ PROCRUSTE ou PROCUSTE. ‘ Celui qui étire ‘: tele st surnom du brigand grande taille à s’étendre sur le plus petite t ceux de petite taille à sállonger sur le plus grand. Aux premiers il coupait les membres; aux seconds, il étirait les bras et le jambes. Thésée mit fin aux féroces exploits de Procruste et lui fit sumbir le même supplice.” In Dictionnaire de la mythologie grecque et romaine .” (Larousse)

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camas, uma grande e outra pequena. Aos que eram altos e grandes cedia a

cama pequena e Procrustres cortava-lhes os membros; aos que eram baixos

e pequenos cedia a cama grande e os alongava. O que nos parece sugerir

uma necessidade premente de adaptação às condições existentes. Tal como

na selva, na selva urbana, na selva doméstica, em que o mais adaptado

sobrevive?

A poeta dedica o poema a Ildásio Tavares (1940-2010), poeta

brasileiro e baiano com doutorado em Literatura Portuguesa. Na epígrafe cita

versos de Marcel Proust, de Combray, livro construído por lembranças

autobiográficas da infância do autor. A tradução livre dos versos diz: “do rabo

de uma cachorra amorosa, a ele parecerá uma rosa.”

Nas primeiras quatro estrofes do poema, há o nome de Adília que

pode remeter ou não à autora. Isso porque, ao descrever seus atos (chora,

lê, translê, afoga-se, memorabilia), também sugere que alguém fala dela

como uma personagem, dada a repetição constante em cada estrofe não só

do nome da autora, mas também de verbos usados no presente da terceira

pessoa do singular. As aliterações, construídas com o nome Adília (Bíblia,

família, chá de tília, memorabilia), estão misturadas de maneira irônica ao Eu

da poeta ou, perguntamos, da sua personagem? A autora (Adília Lopes)

escreve a respeito da poeta, do pseudônimo ou dela mesma?

É um poema cujo léxico precisa ser explorado para ser compreendido.

De acordo com Houaiss (2009), “chá de tília” é calmante; memorabilia

significa: “fatos ou coisas que suscitam memórias, lembranças.”; “nenúfares”

é uma planta conhecida também como Ninfeia, cuja representação apareceu

constantemente nas telas pintadas por Monet. “Penamacor” é uma Vila

portuguesa; de acordo com o dicionário Houaiss (online), brouhaha significa:

“algo que as pessoas pensam que é importante, mas não o é”.

Depois de descrever Adília, seus atos e hábitos, encontramos, a partir

do primeiro asterisco do poema, uma poesia escrita na primeira pessoa do

singular. Supõe-se Adília na cama de Procruste, que vestida de grande e

pequena adequa-se: “cortam-me/ ou esticam-me ao tamanho da cama/ a

cama é a medida”. Também como Procrustes: “também eu/ fui Procrustes”,

o que sugere que seu Eu, seja do pseudônimo, da autora ou da

personagem, povoa todos os lugares, em que quase nada se pode concluir,

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pois tudo se pode dizer! Multiplicados estão os olhares, as distâncias e os

afetos. As metáforas existentes entre o nome Adília, a poetisa (aquela), uma

poetisa (qualquer) e “a fálica a feminina/ torre de Pisa“ nos desestabilizam

entre o geral e o particular. Entre opostos e complementares, fálica e

feminina, uma identidade ambígua permanece. Nas referências finais, entre

aspas, cita Richard Zenith, escritor norte-americano, estudioso de Pessoa

que, ao escrever uma apresentação do poeta para a Casa Fernando Pessoa,

diz: "Havia até um seu `outro eu´ feminino: a corcunda e perdidamente

enamorada Maria José. (Richard Zenith, Fernando Pessoa: o poeta dos

muitos rostos).”

Essa citação volta a fomentar Maria José, nome feminino e masculino,

o outro Eu feminino de Pessoa ou, perguntamos, o nome do outro Eu de

Adília? Na sequência, pós asterisco, uma estrofe diz: “Na maçaneta/ magoo/

o cotovelo/ ( dor de cotovelo).” Esse Eu não pronunciado se refere a quem,

seria a Maria José, personagem de Adília? Finaliza a estrofe os versos “a

oração/ é um anelo/ do coração/ (Teresa de Lisieux)”, de Teresa Liseux,

santa, freira que tentou suicídio e escreveu uma autobiografia. E, por último,

uma citação do livro de crônicas e poesias, Décima aurora (1982) de Antônio

Osório (1933-), em que o nome Adília é vinculado a uma cena de cunho

contraditório: “Rezavam aquela ladainha para que eu chumbasse“. As

ambiguidades, contradições e oposições permanecem. Adília personagem,

Maria José personagem, Adília poetisa. E, na trama poética, criatura e

criador se encontram como personagens na voz de outros autores. Adília é

assim múltipla? Mas, ela se diz uma?

Na poesia adiliana, assim como na relação entre nome e pseudônimo,

aparece um outro elemento a integrar o jogo: a máscara. A palavra máscara

tem sua origem na palavra italiana “maschera”, que também significa “peça

com que se cobre parcial ou totalmente o rosto para ocultar a própria

identidade” (Houaiss, 2009, p.1253). Durante a história da humanidade, essa

peça foi utilizada por diversas culturas com funções sagradas, ritualísticas,

teatrais, para caracterizar diferentes personagens e emoção. Outro dicionário

informa que

As funções e significados que [o termo máscara] tem, adquirido ao longo da história e nas diversas culturas fazem-na um dos mais ambíguos artefactos humanos. Isso quer dizer que ela se presta

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única e conjuntamente, a finalidades como: iludir, equivocar, transfigurar, proteger, infundir uma afeição [...] distinguir socialmente ou representar dramaticamente. Essa ambiguidade simbólica se expressa, portanto, no jogo alternado entre o real e o imaginário, o visível e o invisível, o exposto e o protegido, a evidência e o encobrimento. (DICIONÁRIO SESC, 2003, p.405).

A ambiguidade presente na palavra sugere que a mesma dá origem à

palavra persona, cuja etimologia, segundo Dicionário Houaiss (online),

significa:

lat. persōna nom. de persōna,ae 'máscara; figura; papel representado por um ator; pessoa, indivíduo'; cf. ing. persona (1909) 'pessoa; caráter deliberadamente assumido por um autor num trabalho escrito'; como t. da teoria psicanalítica de Carl G. Jung (1875-1961, psiquiatra suíço), o voc. foi us. orign. em al. Persona, emprt. ao lat.; ver person(i)

A palavra persona é derivada da palavra máscara que, segundo

Mauss (2003), não se refere, nas culturas primitivas, a uma pessoa, mas tem

seu sentido inicial vinculado a uma função social, a um papel dentro de um

grupo. Paulatinamente, essa persona adota um nome atrelado às pessoas

do seu antepassado e a alguma natureza do indivíduo. Mauss (2003, p.397)

esclarece:

De uma simples mascarada à máscara; de um personagem a uma pessoa, a um nome, a um indivíduo; deste a um ser com valor metafísico e moral; de uma consciência moral a um ser sagrado; deste a uma forma fundamental do pensamento e da ação; foi assim que o percurso se realizou.

Podemos pensar que a palavra máscara faz parte da constituição da pessoa,

como um acessório que ela possa utilizar para figurar no seu universo.

Além de pseudônimo, máscara e personagem, os estudos do campo

do Eu apontam, também, para o conceito de biografema. Barthes (1971)

colabora com a reflexão ao evidenciar, nos textos literários, os rastros da

realidade da pessoa, do autor, doados ao leitor. Não são fatos, são apenas

sombras de uma história vivida que não se manifestam para criar uma

biografia, mas outra ficção. Segundo Barthes (2003, p.126), “Biografema

nada mais é do que uma anamnese factícia: aquela que eu atribuo ao autor

que amo.” São traços de uma história pessoal, uma vida, um cotidiano. São

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partículas de uma história que mimetizam o signo e explodem como

significante para construir a escritura. Para Barthes (2005, p.XVII),

Se eu fosse escritor, já morto, como gostaria que a minha vida se reduzisse, pelos cuidados de um biógrafo amigo e desenvolto, a alguns pormenores, a alguns gostos, a algumas inflexões, digamos: ‘biografemas’, cuja distinção e mobilidade poderiam viajar fora de qualquer destino e vir tocar, à maneira dos átomos epicurianos, algum corpo futuro, prometido à mesma dispersão.

Esse conceito acolhe o traço, o passo, a pegada do autor e está presente na

poesia de Adília. Existe sempre a sombra de sua realidade.

2.2. Autobiografia, autoficção, diário, autorretrato

A expressão “literatura do eu” refere-se às obras que utilizam, em

diferentes áreas (antropologia, filosofia, psicologia, literatura), o Eu - primeira

pessoa do singular. No entanto, dependendo da área, pode classificar-se

como uma escritura ou literatura e versar ou sobre ficção ou sobre

realidade. Segundo Elena Cuasante Fernández (2007, p.3, tradução nossa),

Preferem falar em “escritura do eu” aqueles, vinculados às ciências humanas e distantes do literário, que se interessam pelo texto como um meio para chegar ao indivíduo: na perspectiva antropológica, por exemplo, todo escrito redigido na primeira pessoa, independente de seu valor literário, nos informa sobre o sujeito que o criou; o importante aqui não é o texto em si, mas o processo de reconstrução de si mesmo que o indivíduo conduziu na e através da escritura.2

Segundo a autora, aqueles voltados para os textos literários preferem

o termo literatura. As palavras literatura e escritura estão imbricadas, seja

pela língua (considerada como sinônimos), seja pela história (ambas

carregam ao menos traços da história da humanidade), seja por suas

diferenças salutares que implicam que uma está contida dentro da outra.

Para Barthes (2000, p.24), a escritura possui uma destinação social e está

atrelada a um momento histórico. No entanto, dependendo de suas

2  “Prefieren hablar de “ escrituras del yo” quienes, desde las ciências humanas ajenas a lo literário, se interesan por el texto como médio para llegar al individuo: desde la perpectiva antropológica, por ejemplo, todo escrito redactado en primera persona, independentemente de su valor literário, nos informa acerca del sujeto que lo ha creado; lo importante aqui no es el texto en sí, sino el processo de reconstrucción de sí mismo que el individuo lleva a cabo en y a través de la escritura.”

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características - “o tom, o fluxo verbal, o fim, a moral, o natural de sua fala” -,

existem escrituras semelhantes em tempos históricos distintos, assim como

diferentes escrituras em um mesmo momento histórico. Barthes entende que

isso depende de como o escritor articula a história, a tradição. Ele afirma:

É sob a pressão da História e da Tradição que se estabelecem as escrituras possíveis de um determinado escritor: existe uma História da Escritura; mas essa História é dupla: no exato momento em que a História geral propõe – ou impõe- uma nova problemática da linguagem literária, a escritura continua ainda cheia de lembranças de seus usos anteriores, porque a linguagem nunca é inocente: as palavras têm uma memória segunda que se prolonga misteriosamente em meio às significações novas. A escritura é precisamente esse compromisso entre uma liberdade e uma lembrança é essa liberdade lembrante que só é liberdade no gesto da escolha, mas já não o é mais na sua duração. (BARTHES, 2000, p. 26)

Entendemos que a escritura está atrelada a um momento histórico,

sendo ela uma escolha permanente do escritor de como irá lidar com a

língua, com a tradição e com o próprio momento histórico para construir a

poética. Em outro texto, Barthes (1977, p.15) explicita o que é literatura:

Essa trapaça salutar, essa esquiva, esse logro magnífico que permite ouvir a língua fora do poder, no esplendor de uma revolução permanente da linguagem, eu a chamo, quanto a mim: literatura. Entendo por literatura não um corpo ou uma sequência de obras, nem mesmo um setor de comércio ou de ensino, mas o grafo complexo das pegadas de uma prática: a prática de escrever. Nela viso portanto, essencialmente, o texto, isto é, o tecido dos significantes que constitui a obra, porque o texto é o próprio aflorar da língua, e porque é no interior da língua que a língua deve ser combatida, desviada: não pela mensagem de que ela é o instrumento, mas pelo jogo das palavras de que ela é o teatro. Posso portanto dizer, indiferentemente: literatura, escritura ou texto.

Diante de tais diferenças e coincidências, a escritura está atrelada à

escolha de palavras na língua para veicular um momento que explicita a

história, e a literatura, ao rompimento da submissão da língua pelo escritor

(“revolução permanente da linguagem”); e coincidentemente, ambas

atreladas à língua, à construção da linguagem. Entendemos que o que se

chama de literatura do Eu não carrega em si tais questionamentos, mas

espelha, de maneira geral, um montante de obras produzidas como literatura

que se utilizam, singularmente, do pronome pessoal Eu.

Aquilo que se denomina literatura do Eu, hoje, segundo Fernández

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(2007, p.7), alguns críticos a denominavam literatura íntima. No entanto, o

termo não é suficiente, já que o que é íntimo para um escritor pode não sê-lo

para outro. Também foi denominada de literatura pessoal, todavia, tal termo

não satisfaz, dado que “[...] remete a um uso privado que pouco tem a ver

com um processo de comunicação interpessoal como o literário” 3 (Lecarme

et Lecarme-Tabone, apud: Fernández, 2007, p.7, tradução nossa). Assim, o

termo Literatura do Eu torna-se mais comum e utilizado para os textos que

empregam o pronome pessoal sendo mais aceito por aqueles que trabalham

com literatura. Os gêneros que constituem tal literatura são: poesia,

autobiografia, romance autobiográfico, autoficção, autorretrato, diário,

confissão, memória, carta.

A palavra autobiografia surgiu, segundo Weintraub (1991, p.18,

tradução nossa), na Alemanha, em 1800, e no Oxford English Dictionary, em

1809. Ele afirma:

No idioma alemão este termo aparece pela primeira vez um pouco antes de 1800, no entanto o dicionário de Inglês de Oxford atribui o primeiro uso do termo a Sothney, em um artigo sobre literatura portuguesa de 1809.4

Baseado nos estudos do antropólogo Maurízio Catani, Wander Melo

Miranda (2009, p.26) revela que a autobiografia foi um gênero que se definiu

em 1789 com a declaração dos direitos humanos e “cujo individualismo e

cuja concepção de pessoa encontram na autobiografia um dos meios mais

adequados de manifestação.”

A autobiografia é definida no contexto social como um conjunto de

acontecimentos reais instalados no espaço e tempo cronológicos, mesmo

que a vida do sujeito investigado ou autorretratado não tenha acontecido de

maneira linear, segundo o calendário. Como reflete Bourdieu (1986, p. 184),

“tendem ou pretendem organizar-se em sequências ordenadas segundo

relações inteligíveis”, possibilitando uma coerência ao trajeto do relato. No

3  - “[...] el la medida en que remite a un uso privado cuyos limites sería imposible estabelecer, a una actividad individual que poco tiene ver con un processo de comunicatción interpersonal como el literário “ ( apud: Lecarme et Lecarme-Tabone, Fernández, 2007, p. 7)

4 “En el idioma alemán este término aparece por primera vez poco antes de 1800 mientras que el Oxford English Dictionary atribuye a Sothney su primera utilización en un artículo dela año 1809 sobre la literatura portuguesa.”

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entanto, segundo o mesmo autor, depois do advento do romance moderno,

não foi mais possível entender a vida de maneira linear. Afirma:

Produzir uma historia de vida, tratar a vida como uma historia, isto é, como o relato coerente de uma sequência de acontecimentos com significado e direção, talvez seja conformar-se com uma ilusão retórica, uma representação comum da existência que toda uma tradição literária não deixou e não deixa de reforçar. (BOURDIEU, 1986, p. 185)

A ilusão retórica da linearidade é substituída por uma vida descrita por

fragmentos, um real descontínuo e um Eu sem unidade. Entendemos que,

embora todo ser humano e social possua um nome, um nome próprio e um

número, esses elementos não garantem a identidade e a constância da

existência do indivíduo. Nesse nome próprio não existem as mudanças do

ser, suas relações objetivas, subjetivas e singulares, vinculadas ao trajeto no

espaço e tempo de sua existência. Este poema de Adília exemplifica a ideia

e expande sua identidade como autora:

COPIADO DE SOPHIA

Creio

na nudez

da minha vida

E

não me peçam

cartão de identidade

que nenhum outro

senão o mundo

tenho

(LOPES, Adília, 2009, p.492)

Como o próprio título do poema indicia, há um verso de Sophia Breyner de

Mello Andresen “Creio na nudez da minha vida”, publicado em um poema no

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livro Coral de 1950:

Passam os carros e fazem tremer a casa A casa em que estou só. As coisas há muito já foram vividas: Há no ar espaços extintos A forma gravada em vazio Das vozes e dos gestos que outrora aqui estavam. E as minhas mãos não podem prender nada.

Porém eu olho para a noite E preciso de cada folha.

Rola, gira no ar a tua vida, Longe de mim... Mesmo para sofrer este tormento de não ser Preciso de estar só.

Antes a solidão de eternas partidas De planos e perguntas, De combates com o inextinguível Peso de mortes e lamentações Antes a solidão porque é completa.

Creio na nudez da minha vida. Tudo quanto nela acontece é dispensável. Só tenho o sentimento suspenso de tudo Com a eternidade a boiar sobre as montanhas.

Jardim, jardim perdido Os nossos membros cercando a tua ausência... As folhas dizem uma à outra o teu segredo, E o meu amor é oculto como o medo. ( ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner. Coral, 2003, p.23)  

Será por meio do título do poema “COPIADO DE SOPHIA” e dos

versos em comum que Adília Lopes realiza seu poema, constrói outra

realidade e recontextualiza os mundos de Sophia e o seu? Walter Benjamin

(1969) em “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, analisa a

necessidade da reprodução da obra de arte e constata que essa sempre

existiu na humanidade. Inicialmente, apareceu por meio da imitação

realizada nos ateliês em que as obras de um mestre eram copiadas por seus

discípulos e, progressivamente, por meio da xilogravura, imprensa,

litogravura e gravura em metal até chegar ao cinema. Tematiza as

consequências da reprodutibilidade por meio da perda da autenticidade em

função da perda do aqui e agora e, assim, a perda da aura, lugar singular e

de tradição dessa obra de arte.

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Adília Lopes possui o verso de Sophia, ele é um rastro, um verso

perdido em sua introspecção que se atualiza na dimensão de poeta, doando

a ele novo rumo. No poema de Sophia, o Eu lírico parte do movimento dos

carros para embrenhar-se na casa de sua memória: “Passam os carros e

fazem tremer a casa”. A memória: “As coisas há muito já foram vividas:/ há

no ar espaços extintos”, e seu tempo histórico estão presentes: “Porém eu

olho para a noite/ E preciso de cada folha”. Da estrofe: “Creio na nudez da

minha vida./ Tudo quanto nela acontece é dispensável./ Só tenho o

sentimento suspenso de tudo”, Sophia se desnuda e sem memória mantem-

se em estado de suspensão.

Adília resgata o verso por meio da cópia, utiliza a crença e a subverte

por meio de uma realidade pragmática, encabeçada pelo “cartão de

identidade”, e a espelha, a referência é o mundo e não um número,

evidenciando a nudez: “E/ não me peçam/ cartão de identidade/ que nenhum

outro/ senão o mundo/ tenho“. Uma tem o mundo, e outra “o sentimento

suspenso de tudo”. Uma cópia que não reproduz, mas cria, atualiza e recria

o verso. Uma nova aura?

Muito embora seja possível estabelecer diálogos maiores entre ambos

os poemas, entendemos que o que nos importa, aqui, é apreender a

diversidade de vozes que vão compondo a obra de Adília, e também que tais

vozes entram em rede complexa para discutir e refletir o campo do Eu: nu

em sua vida e o mundo como cartão de identidade. Os poemas de outro

poeta fazem parte de seu acontecimento como poeta, identificada com o

mesmo e singularizada pela voz do outro e pela própria voz. Podemos dizer

que a identidade do mesmo verso torna-se outro e torna-se também

autêntico por meio da cópia e é singular na voz da poeta e do mundo que se

funda por meio de outro Eu que também parece se fazer seu.

Pergunta-se: Seria por meio da personagem e máscara de outro que

Adília se anuncia? O Eu é tematizado em seu procedimento, por meio do

outro atualizado em seu contexto íntimo, e nos sugere que fala dela, ela já

do mundo, ela quase impessoal? Por meio da voz de um narrador outro, do

texto copiado e já seu, atualizado, a autora, Eu, se realiza enquanto

personagem do mundo. No entanto, a autora se utiliza de um pseudônimo

parecendo existir dubiedade sistêmica entre narrador e autor.

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Segundo Lejeune (2008), o pacto autobiográfico se firma por meio de

uma identidade entre o narrador, o autor e o personagem pertencentes a um

mesmo Eu, que seria o princípio de identidade veiculado pelo pacto. De

maneira geral, esse princípio é frequentemente representado pelo pronome

pessoal Eu. O pacto, entretanto, pode ser veiculado por uma narrativa

realizada em terceira pessoa, desde que mantenha o princípio de identidade

mencionado. Nas palavras de Lejeune (2008, p.27):

A identidade de nome entre autor, narrador e personagem pode ser estabelecida de duas maneiras: 1-Implicitamente, na ligação autor-narrador, no momento do pacto autobiográfico. Este pode assumir duas formas: a- Uso de títulos que não deixem pairar nenhuma dúvida quanto ao fato de que a primeira pessoa remete ao nome do autor (História da minha vida, Autobiografia etc.) b- seção inicial do texto onde o narrador assume compromissos junto ao leitor, comportando-se como se fosse o autor, de tal forma que o leitor não tenha nenhuma dúvida quanto ao fato de que o ” eu” remete ao nome escrito na capa do livro, embora o nome não seja repetido no texto 2- De modo parente, no que se refere ao nome assumido pelo narrador-personagem na própria narrativa, coincidindo com o nome do autor impresso na capa

Consideramos que a poeta, por meio de sua escritura, preenche todas

as características descritas por Lejeune e, de alguma maneira, simula,

confunde a identidade entre autor/narrador/personagem, visto que usa

títulos, por exemplo, que remetem ao nome do autor. É o caso deste poema:

AUTOBIOGRAFIA SUMÁRIA DE ADÍLIA LOPES

Os meus gatos

gostam de brincar

com as minhas baratas

(LOPES, Adília, 2009, p.72)

Conforme afirma Lejeune, podemos dizer que Adília Lopes usa o Eu

como autor do livro, seu pseudônimo. Além do título, assume o papel de

“narrador-personagem na própria narrativa, coincidindo com o nome do autor

impresso na capa” (LEJEUNE, 2008, p.27). A autobiografia de seu

nome/pseudônimo enfatiza elementos cotidianos do sujeito pessoal. Dado o

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título, pode-se perguntar: qual o sentido da palavra sumária? Vincula-se a

um entendimento como algo curto e conciso ou ao sentido do português

arcaico de azêmola que, segundo Houaiss (2009, p.234), significa: “1. Besta

de carga; 2. Cavalo velho e sem préstimo; 3. Fig pessoa parva, idiota, inútil.“

Ou, nada é o que parece!? Uma autobiografia que transgride o conceito

literário atribuído a ela. Parece mostrar uma intenção de quem está por trás

da cena, de uma pessoa que existe apenas como um nome/pseudônimo de

autor, de um ser que não surge pelo seu Eu, mas por entre a relação de

seus bichos. Uma autobiografia que é um gesto, um ato performativo que

não se lê pela concepção autobiográfico tradicional, mas que propõe novo

modo de se autobiografar. Poderíamos dizer que ela, a poeta, busca um

novo significado ou rompe com o signo autobiografia. Como leitora de

Barthes (1977, p.14): “Em cada signo dorme este monstro: um estereótipo”,

Adília ressignifica o signo.

Nesse sentido sobram perguntas: a autora escreve sobre a poeta, ela

mesma? Adília se torna nesse momento uma personagem da autora? Qual

autora? A pessoa autora? Parece que a poeta sugere a dúvida, a

ambiguidade para o autobiografar-se. Há e não há um pacto de identidade,

que é construído por diferentes olhares-poemas. Parece dizer: estou a falar

de mim, mas qual delas? E diz por meio de um jogo de identidades

ambiguizadas na linguagem.

Lejeune também relata que tanto faz se o autor diz ou não

exatamente a verdade. O fundamental é que ele acredite que diz a verdade,

e o leitor acredite que o autor diz a verdade, a isso denomina pacto

referencial. Adília diz a verdade? Diz, mas parece não confirmar o pacto ao

afirmar “Mas/ a linguagem-máscara/ mascara” (LOPES, Adília, 2009, p.574).

Esses sentidos de verdade, no entanto, possuem na modernidade

aspectos controversos, dado que não estão contemplados apenas pelos

fatos externos, mas também pela interioridade do autor que os descreve.

Contardo Calligaris (1998), em seu ensaio “Verdades de Autobiografias e

Diários Íntimos”, define autobiografia por meio do conceito de ato

autobiográfico, desenvolvido, em 1976, por Elizabeth Bruss. Ele afirma:

Ela considera qualquer produção autobiográfica moderna (autobiografia narrativa ou não, jornal etc.) como um “ato

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autobiográfico”, ou seja, como um performativo, no sentido de Austin. O sujeito que fala ou escreve sobre si, portanto, não é o objeto (re)presentado por seu discurso reflexivo, mas tampouco é o efeito, por assim dizer, gramatical de seu discurso. Falando eescrevendo, literalmente, ele se produz. Narrar-se não é diferente de inventar-se uma vida. Ou debruçar-se sobre sua intimidade não é diferente de inventar-se uma intimidade. O ato autobiográfico é constitutivo do sujeito e de seu conteúdo. (CALLIGARIS,1998, p.49).

Ou seja, parece que, para Calligaris, a autobiografia está sempre

impregnada da possibilidade de inventar-se a si mesmo por meio de um

conteúdo talhado na veracidade de uma vida. A partir dessa compreensão,

Calligaris (1998, p.53/53) afirma:

A verdade que o ato autobiográfico entrega me parece ser dupla. 1.É uma verdade que concerne ao sujeito autobiógrafo em umpasso sempre crucial: o passo que consiste em se dar (de uma só vez ou no dia-a-dia) significação e consistência. Essa verdade crucial evidentemente não pode ser julgada no tribunal da verdade factual. Omissões, acréscimos, remanejamentos são peças do puzzle do sujeito em um momento do seu fieri. Nesse sentido (um pouco diferente de suas intenções), vale a ideia de Lacan de que a verdade está em uma linha de ficção. Sob a condição de entender que ficcionalizar a própria vida é o jeito ocidental moderno de orientá-la e reorientá-la [...] 2. É uma verdade, como vimos, que concerne à história do sujeitomoderno. Sob esse ponto de vista, aliás, mesmo no quadro da poética narrativa ainda dominante, uma mudança recente pode nos interessar. Disse rapidamente, em uma nota mais acima, que é irrelevante tentar discriminar, por exemplo, entre diários que foram escritos para serem publicados e outros que seriam propriamente íntimos. O que é, sim, relevante é que o sujeito que se constitui por seu ato autobiográfico pode se constituir sob o olhar de Deus, sob um olhar que ele estima ser o seu próprio, ou ainda- para e com publicação ou não –sob o olhar dos outros.

Em sendo assim, entende-se que a verdade do ato autobiográfico não

está submetida aos fatos demarcados por uma suposta realidade, mas aos

fatos relevantes para o autor/narrador que tanto pode ressaltar valores que

reorientem sua história ou priorizar quem deseja ser diante do olhar do outro.

Frente a isso, questiona-se: diante do performativo existente nas afirmações

das interpretações de realidade e narrativas construídas por um sujeito ou

poeta, estamos todos sujeitos aos pactos de identidade e referencial? O

leitor, ao ler uma autobiografia, relativiza a referência de verdade fornecida

pelo autor? Segundo Lejeune (2008, p.106), o leitor permanece acreditando

no pacto referencial, pois,

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O que é impressionante é a dissociação esquiziofrênica entre a autobiografia como valor (reinvindicado) e como realidade (recusada). Por que seria, aliás, interessante ou necessário que uma ficção expressasse o eu profundo do autor? Essa afirmação não seria uma espécie de ilusão de recepção, cujo mecanismo é bem ilustrado pela atitude do meu correspondente? O que é recebido pelo leitor com intensidade e utilizado por ele para a construção de sua identidade narrativa parece-lhe não poder vir senão do eu profundo do autor. O intenso parece “verdadeiro”, e o verdadeiro só pode ser autobiográfico.

O leitor tende a buscar a verdade a qualquer preço e a acreditar que essa é

autobiográfica, na medida que se aproxima da vida com intensidade.

Lejeune (2008), ao analisar uma diversidade de poesias ditas

autobiográficas, considera que existem várias maneiras de se fazer poesia a

partir da autobiografia. São narrativas autobiográficas convencionais que

exploram a vida do autor em pormenores e estão escritas em versos. Elas

podem ser exercícios de dicção, vinculadas ao ritmo para atribuir sentido, ou

poemas que enfatizam a métrica e priorizam o encontro de um vocabulário

inédito. Ainda, podem ser narrativas da infância, adolescência, juventude,

como também romances-poemas. Também considera a importância de

poemas que escrevem a autobiografia do poema, isto é, tratam de como o

poema foi construído.

Adília Lopes, em constante revelar ambíguo dos impasses

biografia/autobiografia, conduz-nos a refletir sobre suas problematizações.

Embora longo, vejamos o poema:

ANONIMATO E AUTOBIOGRAFIA

1. Um escritor de romances escabrosos

(o seu tema predilecto foi a relação incestuosa

entre três irmãos)

decidiu permanecer anónimo

não por ter vergonha de assinar romances escabrosos

mas para tornar ainda mais escabrosos os romances

assim os leitores suspeitavam que os romances eram

autobiográficos

e se ele os assinasse com o seu nome

os leitores ficavam a saber que ele era um filho único

é claro que como filho único

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vivia fascinado pelo incesto entre dois irmãos

que inspirou Chateaubriand

(e não podia perceber o aforismo de Joyce

é tão fácil esquecer um irmão como um guarda-chuva)

mas mesmo que se considere como eu

que a leitura de um livro pode ser tão importante

na vida de uma pessoa

como ter um irmão

dois irmãos não são três irmãos

2. Um poeta assinava os poemas com o seu nome

mas um romance por ser autobiográfico

assinou com um pseudónimo pouco banal

contava no romance (e foi isto que o levou

a decidir-se por um pseudónimo)

que comia ao pequeno-almoço

alheiras às rodelas com salada de tomate

no supermercado quando pediu à empregada

da charcutaria às 8h30 da manhã duas alheiras

a empregada perguntou-lhe se ele tinha escrito

As singularidades de Carolina (era o nome do romance)

ele ficou tão embaraçado que pediu à mãe

para ser ela a comprar as alheiras e os tomates

mas quando a mãe chegava ao lugar da hortaliça

com um saco de plástico cheio de alheiras

o indiano do lugar perguntava-lhe logo

se ela tinha escrito As singularidades de Carolina.

3. Um terceiro escritor escreveu uma autobiografia

em que se limitou a contar

que ao pequeno-almoço bebia café com leite

e comia pão com geleia de laranja

assinou a autobiografia com o seu nome

e nenhuma empregada de supermercado

o importunou

mas depois de ter o livro publicado

sempre que bebia café com leite e comia pão com geleia de

laranja

ao pequeno almoço

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sentia-se mal como se estivesse num palco ou num circo

a ter de beber café com leite e a ter de comer pão com geleia de

laranja

diante dos olhos que abolem a privacidade

e por se sentir assim passou a comer flocos de aveia

(LOPES, Adília, 2009, p.153/154)

O título do poema ANONIMATO E AUTOBIOGRAFIA apresenta uma

primeira oposição em que anonimato se refere a um texto não assinado por

seu autor, um obscuro autor para o seu leitor, a autobiografia discorre sobre

a vida de seu autor. Essa dicotomia sugere um campo quase inacessível,

confuso e instável para um primeiro entendimento. O poema, também está

dividido em 1, 2 e 3 partes, nomenclatura utilizada para a divisão em

capítulos de um romance, mas é um poema.

Na parte 1 do poema, nos deparamos com um escritor de romances

que quer se manter anônimo, “um escritor de romances escabrosos/ [...]

/decidiu permanecer anônimo [...]/ mas para tornar ainda mais escabrosos os

romances/ assim os leitores suspeitavam que os romances eram

autobiográficos”. Segundo Lejeune (2008, p.106), uma autobiografia criada

não é nem mais nem menos verdadeira que uma vivida, entretanto, o leitor

entende que o que lê, para ser intenso tem que ser verdadeiro. “O intenso

parece ‘verdadeiro’, e o verdadeiro só pode ser autobiográfico”. Para tanto,

a autora do poema cita Chateaubriand, que também escreveu, entre outras

autobiografias, a novela Renè, autobiografia sobre o amor incestuoso entre

um irmão e uma irmã. Mas ele pôs seu nome e não a fez escabrosa. Ou

seja, ao relatar algo verdadeiro com o nome do autor, não é possível

perverter a realidade, faz-se necessário o anonimato para se falar o que se

queira e tornar escabrosa a ficção. Ou, utilizar a ficção, pois a verdade,

mesmo que fictícia, tem seus limites que esbarram no necessário anonimato.

Na parte 2 do poema, os leitores do romance autobiográfico, assinado

pelo poeta por meio de um pseudônimo, querem descobrir seu autor por

meio dos objetos (tomates e alheiras) contidos na autobiografia. Ou seja, o

leitor quer conhecer o autor, não o nome que está na capa do livro, mas

aquele que come tomates e alheiras, quer conhecer as evidências

construídas por esse autor. Nesse contexto, o pseudônimo foi utilizado pelo

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autor para o tornar anônimo, mas já não era o nome que importava e sim o

hábito de tomates e alheiras. Como diz Paul Ricoeur (2003), o Eu se define

pelas coisas que o caracterizam, o identificam em seu universo, tanto pela

repetição do mesmo, como pela singularidade que o faz único.

Na parte 3, o escritor escreveu uma autobiografia, e passou a viver

sua vida como uma ficção. Poderíamos pensar que a verdade descrita

permitiu que o mesmo se despersonalizasse de sua própria vida, foi

aprisionado por seu próprio relato: “mas depois de ter o livro publicado/

sempre que bebia café com leite e comia pão com geleia de laranja/ ao

pequeno-almoço/ sentia-se mal como se estivesse num palco ou num circo”,

e para buscar qualquer privacidade, descaracterizou-se ou buscou outro Eu

para ser e/ou simplesmente estar: “e por se sentir assim passou a comer

flocos de aveia”. Nesse sentido, perguntamos: o escritor criou uma (outra)

máscara para estar no mundo? Teve que despersonalizar-se para buscar

uma identidade?

Parece que a poeta Adília Lopes evidencia, de maneira irônica e

política, os paradoxos contidos na autobiografia por meio da relação

existente entre autor, leitor, narrador e personagem. Todos envolvidos no

pacto autobiográfico descrito por Lejeune. O autor escreve uma ficção tão

intensa que o leitor a entende como verdadeira; o autor escreve uma

verdade por meio de um pseudônimo e não pode mais ser quem era, em

função dos outros que perseguem suas evidências; o autor escreve uma

verdade e é aprisionado por sua escritura. Lejeune (2008, p.26) afirma:

[...] se a identidade não é afirmada (caso da ficção), o leitor procurará estabelecer as semelhanças, independente do autor; se ela é afirmada (caso da autobiografia), ele terá tendência a procurar as diferenças (erros, deformações, etc.). Frente a uma narração de aspecto autobiográfico o leitor tem seguidamente tendência a se tomar por detetive, isto é, a procurar as rupturas do contrato.

Georges May (apud VILLANUEVA, 2013, p.50, tradução nossa) afirma

que “a autobiografia não é verídica porque é justamente uma autobiografia”,

e Villanueva completa “quer dizer, porque é literatura”5 . Também, para

5 “la autobiografia no es verídica porque es justamente una autobiografia”.... “es decir, porque es literatura.”

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esclarecer essa oposição entre realidade e ficção na autobiografia,

Villanueva (2013, p.51, tradução nossa) cita Lejeune:

que ilusão acreditar que nós podemos dizer a verdade, e crer que há uma existência individual e autônoma! [...] Como podemos pensar que uma autobiografia é a vida vivida que produz o texto, enquanto que é o texto que produz a vida! 6

Ou seja, sendo a autobiografia um gênero literário, depende da possibilidade

inventiva do Eu do autor que cria um texto e produz uma vida com os fatos

da sua realidade. Nesse sentido, a autobiografia, enquanto escritura, forma

de arte, tende a se descolar da vida de seu autor. Segundo Miranda (2009,

p.30), [...] a autobiografia tende a assimilar técnicas e procedimentos estilísticos próprios da ficção. Isso evidencia o paradoxo da autobiografia literária, a qual pretende ser simultaneamente um discurso verídico e uma forma de arte, situando-se no centro da tensão entre a transparência referencial e a pesquisa estética e estabelecendo uma gradação entre textos que vão da insipidez do curriculum vitae à complexa elaboração formal de pura poesia.

Desse modo nos parece não ser possível a construção de um discurso

puramente autobiográfico, mas que toda a escritura está permeada pelo

paradoxo de ser uma forma de verdade e uma ilusão de verdade. Villanueva

(2013, p.56, tradução nossa) conclui o paradoxo da autobiografia afirmando:

Resumindo, podemos concluir o paradoxo de que estamos tratando nos seguintes termos: a autobiografia é ficção quando a consideramos sob uma/ diante de uma perspectiva genética, pois nessa o autor não pretende reproduzir, mas criar seu eu; no entanto/ porém a autobiografia é verdade para o leitor, que com maior facilidade do que em qualquer outro texto narrativo , faz dela uma leitura intencionalmente realista.7

6 “quelle illusion de croire qu’ on peut dire la verité, et de croire qu’ on a une existence individuelle et autonome! (...) Comment peut-on penser que dans l’autobiographie c’est la vie vécue que produit le texte, alors que c’est le texte que produit la vie!”.

7 Podemos ya concluir, pues, resumiendo la paradoja de la que estamos tratando en los seguintes términos: la autobiografia es ficción cuando la consideramos desde una perspectiva genética, pues con ella al autor no pretende reproducir, sino crear su yo; pero la autobiografia es verdade para el lector, que hace de ella con mayor facilidade que de cualquier otro texto narrativo, una lectura intencionalmente realista.

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O paradoxo existente na autobiografia é explicitado pela realidade de

uma vida contada por meio de escolhas, olhares e afetos íntimos do próprio

autor. Tal paradoxo leva-nos a pensar no conceito de autoficção, um

neologismo criado por Serge Doubrovsky em 1977, a partir do conceito de

autobiografia explorado por Lejeune. Doubrovsky considera que a

autobiografia é importante para os poucos famosos e interessantes, e , na

contemporaneidade, é a ficção de si mesmo que interessa. A autoficção é

uma narrativa fictícia que utiliza a autobiografia do autor e introduz, para o

leitor, um caráter ambíguo de verdade. Manuel Alberca (2013, p.37, tradução

nossa) diz: [...] o neologismo “autoficção” não permite em sua forma sintética apenas uma explicação, ao contrário, a autobiografia lato sensu com a forma e o estilo de uma novela (poderia incluir alguns elementos fictícios). Ou, pelo contrário? , é uma ficção (novela do eu), em que o autor, com seu próprio nome, se converte no protagonista de uma historia totalmente inventada. 8

Esse caráter ambíguo, sugere que a autoficção não é um gênero

definido, mas um gênero híbrido que acolhe tanto a autobiografia quanto a

ficção. Silviano Santiago, (2007, p. 2), ao refletir sobre autoficção, considera-

a um texto híbrido: Inserir alguma coisa (o discurso autobiográfico) noutra diferente (o discurso ficcional) significa relativizar o poder e os limites de ambas, e significa também admitir outras perspectivas de trabalho para o escritor e oferecer-lhe outras facetas de percepção do objeto literário, que se tornou diferenciado e híbrido. Não contam mais as purezas centralizadoras da autobiografia e da ficção; são os processos de hibridização do autobiográfico pelo ficcional, e vice-versa, que contam. Ou melhor, são as margens em constante contaminação que se adiantam como lugar de trabalho do escritor e de resolução dos problemas da escrita criativa.

Seria, então, Adília a protagonista de uma autoficção? Explorar traços

autobiográficos ou fazer uma autoficção de sua existência muda sua

produção poética? Ou estamos apenas diante de concepções que nos

mantêm num lugar comum e pouco dizem sobre os procedimentos usados

8 [...]... el neologismo “autoficción“ no permite en su forma sintética una sola explicación, al contrario, por autobiografia sensu latu con la forma y el estilo de una novela (que bien podria introducir incluso algunos elementos fictícios)? O, por el contrario, ? se trata de una ficcion (novela del yo), en la que el autor, con su propio nombre, se convierte en el protagonista de una historia totalmente fabulada?

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pela poeta? No poema a seguir, por exemplo, observamos um intenso

diálogo da poeta com seu nome civil e sua família:

PATRONYMICA ROMANICA

“mais où sont les dames d’ antan, et leurs noms...”

JOSEPH-MARIA PIEL. “Sobre Mumadona

e nomes de outras donas medievais”

Maria José Silva

bióloga amiga

da minha mãe

Maria José Viana

a minha mãe

e a minha avó

Maria José Fidalgo

o fidalgo aprendiz

Maria José Fidalgo de Oliveira

O Cavaleiro de Oliveira

ou o Monsieur de la Souche

já não sei se da Escola de Mulheres

se do Burguês Fidalgo

Maria José da Silva Viana Fidalgo de Oliveira

Freira poetisa barroca

( LOPES, Adília, 2009, p.320/321)

O título do poema se refere à palavra patronímico que, segundo o

dicionário Houaiss (2009, p.1448), “diz-se de patrônimo, de nome

antroponímico formado do nome do pai ou de nome de ascendente. Sua

etimologia diz: gr. patrōnumikós,ḗ,ón 'tirado do nome do pai' pelo lat.

patronymĭcus,a,um 'id.'; ver pater- e –onímico“. Ao discorrer sobre os nomes

femininos de sua família, e não fazer referência aos masculinos, Adília

parece já transgredir tanto em relação ao vocábulo quanto à tradição.

A epígrafe do poema traz a frase de Joseph-Maria Piel (1903-1992),

filólogo e linguista alemão dedicado ao estudo da filologia românica, em

especial o galego, que diz: “Mas onde estão as senhoras de outrora, e seus

nomes...?” (tradução nossa). Na sequência, o poema aponta para os traços

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da biografia das pessoas Maria José, diferenciadas por sobrenomes: Silva

(“bióloga amiga/ da minha mãe“), Viana (“a minha mãe/ e a minha avó”), mas

não da autora Adília Lopes, o que nos confunde e faz pensar Maria José

como uma personagem. Além disso, leva-nos a indagar: Ela é biografada por

Adília Lopes por meio da historia de seu nome? Ou ela revela sua origem por

meio da máscara/ identidade da poeta?

Estamos no campo da autoficção que se define como um gênero

híbrido que carrega uma narrativa fundada no real e outra estruturada por

meio dos recursos da ficção. A autoficção se delineia quando a poeta utiliza

“Maria José Fidalgo/ o fidalgo aprendiz”, ou “Maria José Fidalgo de Oliveira/

O Cavaleiro de Oliveira/ ou o Monsieur de la Souche/ já não sei se da Escola

de Mulheres/ se do Burguês Fidalgo.” Fidalgo de Oliveira é o nome de sua

família paterna, e no poema existe uma referência às comédias de Molière,

em que seus personagens masculinos eram bastante ridicularizados na

época. Está sugerida e não explicitada a origem dos nomes masculinos.

Diferentemente do que faz com as mulheres de sua família, usa aqui

personagens fictícios de outrora para nos contar mais sobre a origem dos

seus mesmos nomes. Encerra o poema com seu nome civil completo, sendo

descrita como “Freira poetisa barroca” . Em uma de suas entrevistas ela

relata que teria gostado de ser freira ou de ter tido muitos filhos, poeta que é,

ou poeta barroca, faz menção à biografia que escreveu de Mariana

Alcoforado, freira barroca. Ou seja, é por meio de inúmeras vozes que a

poeta descreve sua personagem/ máscara, sua identidade de autora e

poeta. Parece não ser possível escolher um único percurso, pois todos o

significantes são importantes e não possuem único caminho, quase como

uma polissemia sistêmica.

Há no poema traços biográficos precisos, mas também a autoficção

dos mesmos fatos e a menção a inúmeros personagens e também

biografias. Parece que a poeta está sempre a nos confundir diante de atos

autobiográficos, diante de cenas fronteiriças do real e da ficção, diante do

valor dado a seus traços na escritura, sem deixar o desprendimento do

autobiográfico. Lejeune (2008, p.81), em “O Pacto Autobiográfico, 25 Anos

Depois”, elabora novamente uma análise sistemática dos diversos gêneros

fronteiriços:

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Nos anos seguintes tentei estudar analiticamente uma série de “fronteiriços” ou de casos-limites: a autobiografia que finge ser uma biografia (a narrativa em terceira pessoa), a biografia que finge ser uma autobiografia (as memórias imaginárias), todos os mistos de romance e autobiografia (zona ampla e confusa que a palavra-valise “autoficçao” , inventada por Doubrovsky para preencher uma casa vazia de um dos meus quadros, acabou por abranger), a enunciação irônica e o discurso indireto, todos os casos em que um mesmo “eu” engloba várias instâncias ( história oral, entrevista, textos escritos em colaboração etc., depois as produções que associam a linguagem, capaz de dizer “eu”, a meios de comunicação que se mostram menos capazes de fazê-lo (como a imagem) etc. Nada disso impediu que continuassem a me olhar de cara feia: “mas... será que isso entra na sua definição?, como se eu fosse um contrabandista de mim mesmo! O problema não é mais esse. A autobiografia a la Rousseau é uma das muitas combinações possíveis, mas, para mim, o essencial continua sendo, confesso, o pacto, quaisquer que sejam as modalidades, a extensão, o objeto do discurso de verdade que se prometeu cumprir.

Parece que podemos entender que, para Lejeune, o que importa

realmente não é o gênero a que a escritura, o texto se prende, mas o que

continua valendo é o pacto estabelecido entre autor e leitor. No poema Z/S

de Adília Lopes, a mesma dúvida é corroborada. Leia-se o poema:

Z/S

De Zézita a Zé

por causa dos Cinco

impus-me

recusando ser bebé

de Zé a Maria José

recusei a Zèzinha

minha mãe

e me fiz mulher

e em tudo isto

fui acompanhada

pela reforma ortográfica

que tirou à Zezinha

o acento grave

assim a Zé vai à Sé

como me disse

a minha avó Zé

antes de morrer

e de eu a esbofetear

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e lhe arrancar as alianças

de viúva e esposa

que são hoje minhas

(LOPES, Adília, 2009, p.320/321)

Nesse segundo poema, separado do primeiro por um asterisco,

mantivemos inicialmente o mesmo raciocínio escorregando por entre um

som e um tom, um nome e uma máscara estampados no melódico dos

apelidos Zézita, Zézinha e Zé de Maria José, filha, mãe e avó. No entanto,

no segundo verso “por causa dos cinco”, o diapasão perdeu o prumo, a reta

certa e destoou, e Z/S ganhou nova melodia ao ser invertida e vestida de

S/Z. Os personagens familiares poderiam ser da família, mas significantes e

significados se esbarraram, confundiram-se, mas não se misturaram.

Segundo Barthes (1970, p.13), “Interpretar um texto não é dar-lhe um sentido

(...), é, pelo contrário, apreciar o plural de que ele é feito.“

Leitora de Barthes, Adília Lopes transmuta S/Z em Z/S. S/Z é um

ensaio escrito por Barthes entre os anos 1968-69, em que analisa a obra

Sarrasine de Balzac e explicita os cinco códigos existentes na estruturação

de um texto: “...as cinco vozes: Voz da Empiria ( os proiaretismos), Voz da

Pessoa (os semas), Voz da Ciência ( os códigos culturais), Voz da Verdade

(os hermeneutismos), Voz do Símbolo” (1970, p.23). Todos esses códigos,

ou vozes, segundo Barthes, estão contidos no texto não para lhe

configurarem um sentido ou estrutura única, mas esses “formam uma

espécie de rede“ polifônica e polivalente na qual todos são importantes. Ao

mesmo tempo, pergunta-se: S/Z copia Barthes, Z/S fala de Adília, seu

pseudônimo? Fala da autora, sua personagem?

Identificamos que Zé pertence a todas as mulheres da família de

Maria José da Silva Fidalgo de Oliveira. Zé é sua mãe e avó, um símbolo da

família. “recusei a Zèzinha/ minha mãe”, mergulhada nos acontecimentos

culturais da ortografia lusofônica acontecida em 1973 pela reforma

ortográfica que tirou à Zezinha/ o acento grave”. Num permanente contexto

relacional, a poesia se cria por meio de cenários e ações: “antes de morrer/ e

de eu a esbofetear/ e lhe arrancar as alianças/ de viúva e esposa”, e revela

seu enigma “que são hoje minhas”, ela que possui agora todas de Zé e Zè.

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Os cinco códigos se misturam e brincam. O plural desdenha a ambiguidade

entre Marias. Todas são personagens de Adília, tanto são seus nomes como

suas histórias narrativas. Como afirma Barthes (1970, p.13), “o texto não é

uma estrutura de significados, é uma galáxia de significantes”. A

ambiguidade já não era suficiente! Fez-se necessário uma galáxia. Mesmo

assim, Adília (2015) afirma em entrevista ao jornalista Hugo Pinto Santos

sobre seu último livro, Manhã: “Os poemas são impessoais. É claro que são

autobiográficos...”.

Entendemos que esse paratexto (informação fornecida pela autora

sobre sua obra) mantém a ambiguidade até agora descrita, são impessoais,

como toda a poesia lírica desde Rimbaud, e são autobiográficos da pessoa

Maria José, da autora Adília Lopes. Indaga-se: São suas personagens, suas

máscaras, seus signos de poetisa?!

Segundo Manuel Alberca (2013, p.23, tradução nossa), existe um

pacto ambíguo entre a autoficção e a autobiografia, entre o narrador e o

autor, competindo ao leitor caminhar por ambas as esferas. Em suas

palavras: Inicialmente, a forma, a estrutura ou o conteúdo de um texto compele o leitor a um movimento de identificação do narrador ou do personagem com o autor, com o intuito de compreender a relação da escritura com a vida. O conhecimento dos fatos biográficos do autor permite evidenciar as coincidências e divergências, as lacunas do relato, as fantasias e imaginários que ele deposita em seu personagem. Posteriormente, o leitor deve compreender que os elementos biográficos e as alusões diretas ou indiretas à vida do autor tornaram-se signos literários ao adentrarem a um relato ficcional, sem perderem totalmente suas referências e fatos externos conhecidos. A partir disso, a explicação biográficas, por si só, já é insuficiente. 9

Esses elementos nos fazem refletir que a poeta, embora utilize

elementos de sua realidade, converte-os em poesia, escritura, texto. Não se

propõe a ser autobiográfica, mas impessoal. Cabe ao leitor de sua poesia,

9 En principio, la forma, la estrutura o el contenido del texto compele al lector a un movimento de identificación del narrador o del personaje con el autor, en un intento de compreender la relación de la escritura y la vida. El conocimiento de los hechos biográficos del autor permite apreciar las coincidências y divergências, las lagunas del relato, las fantasias e imaginários que aquel deposita en su personaje. Posteriormente, el lector debe compreender que los elementos biográficos y las alusiones directas o indirectas al mundo del autor se han convertido en signos literários al insertarse en un relato de ficción, sin perder totalmente su referencialidad o factualidad externas. A partir de ahí la explicación biográfica, por sí sola, es ya insuficiente.

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escolher qual o traço fundamental de sua obra: a poesia ou os elementos

autobiográficos ficcionalizados. Afinal, sua poesia não pretende ser

autobiográfica, mas impessoal.

A prática poética adiliana, no campo da literatura do EU, seleciona

também a escrita de diário e de autorretrato para problematizar a questão.

Vejamos um pouco de diário, neste poema:

Diário lisboeta

1 de Abril de 2011, 6a feira

Vi um cão abandonado.

2 de Abril de 2011, Sábado

Vi dois papagaios verdes no alto de um choupo.

3 de Abril de 2011, Domingo

Vi uma rosa cor-de-rosa no quintal do 14.

4 de Abril de 2011, 2.a feira

Arrumei o casacão no guarda-fato.

6 de Abril de 2011, 4a-feira

A Bé gostava de ter um macaquinho.

9 de Abril de 2011, Sábado

Quero escrever frases, tagarelar e dançar. Gosto de Solinho. Ver o

barómetro.

10 de Abril de 2011, Domingo

Descomplicar.

A Leonor tem roupa à janela.

(LOPES, Adília. 2011, PÚBLICO, p.7)

O diário íntimo está calcado na verdade de fatos do quotidiano, no

entendimento acontecido em cada dia e fragmentado por escolha de

momentos. No entanto, é quase aprisionado pelos dias consecutivos

referenciados pelo calendário. Segundo Blanchot (2013, p.271),

O diário íntimo, que parece tão livre de forma, tão dócil aos movimentos da vida e capaz de todas as liberdades, já que

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pensamentos, sonhos, ficções, comentários de si mesmo, acontecimentos importantes, insignificantes, tudo lhe convém, na ordem e na desordem que se quiser, é submetido a uma cláusula aparentemente leve, mas perigosa: deve respeitar o calendário [...] Os pensamentos mais remotos, mais aberrantes, são mantidos no círculo da vida cotidiana e não devem faltar com a verdade.

O diário reflete uma seleção livre que o próprio autor faz para contar

os fatos, afetos, pensamentos relevantes acontecidos na unidade espaço e

tempo de um dia, durante dias consecutivos. Atualmente, diferencia-se

também o diário que foi feito para a intimidade, memória e organização de

um eu pessoal do autor, cujo receptor é apenas ele mesmo e o diário que é

feito para ser publicado, cujo receptor é o outro. No primeiro caso, foi

fundado em uma relação Eu-Eu, no segundo, em uma relação eu- tu.

Sabemos que a autora mantém como prática um diário intimo não publicado

e, ao observarmos o poema escrito por Adília na forma de diário, ele nos

remete menos ao estatuto de verdade do que da ficção, ou o recorte feito em

cada um dos dias nos faz poetar os pequenos acontecimentos descritos,

sem buscarmos uma mimese de seu cotidiano. São fragmentos de um dia

nos quais ela se utiliza de verbos no passado, primeira pessoa do singular,

mas especificamente o verbo ver ( “Vi dois papagaios verdes no alto de um

choupo.“), arrumar, gostar, escrever, por meio dos quais nos descreve o

cenário de um lugar próximo (“Vi uma rosa cor- de- rosa no quintal do 14” ),

com pessoas conhecidas ( “A Bé gostava de ter um macaquinho), mas o que

fala dela? São fatos, imagens, desejos recortados de cada dia (não

consecutivos) que, assim como nos aproximam de um quotidiano, também

nos afastam da intimidade pela escolha do que é descrito.

Em seus autorretratos ou self-portrait, como ela os intitula, também

observamos movimento semelhante. De maneira geral, considera-se que o

autorretrato é uma manifestação artística do retrato do eu do artista em

determinado momento. Na Biblioteca do Itaú Cultural, encontramos a

seguinte consideração:

A produção de autorretratos acompanha uma parcela considerável da história da arte. Não são poucas as vezes em que os artistas projetam suas próprias imagens no papel ou na tela, em trabalhos que trazem a marca da autorreflexão e, por isso, tocam o gênero autobiográfico. Nesses retratos - em que os artistas se veem e se deixam ver pelo espectador -, de modo geral, o foco está sobre o rosto, quase sempre em primeiro plano. O semblante do

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retratista/retratado raramente se apresenta em momento de relaxamento ou felicidade. Em geral, a visão do artista sobre si próprio é sombria, angustiada e até mesmo cruel, quando se evidenciam defeitos físicos ou mutilações.

O autorretrato literário também possui um conteúdo autobiográfico,

reflexivo do eu do escritor. Segundo Karl J. Weintraub (1991, p. 22, tradução

nossa), o autorretrato literário está voltado para o estado presente do eu,

“em que o simples desejo de autodescobrimento e autoafirmação dá lugar a

um retrato fixo ou estático”10. Desejam identificar o estado presente de seu

eu para descobrir o rumo que devem seguir. Ou seja, operam por meio de

uma reflexão do estado do Eu e o desejo referente a esse momento. Veja os

autorretratos escritos por Adília Lopes, denominados Self-portrait:

SELF-PORTRAIT 1

My cats

enjoy playing

with my cockroaches

My cockroaches

enjoy eating

my potatoes

And

what about

my potatoes?

(LOPES, 2003, p. 65)

Nesse autorretrato escrito em inglês, encontram-se traços de uma

poesia infantil, lúdica, rítmica, com repetições de palavras que fazem

progredir um acontecimento. É uma cena construída por meio do universo de

bichos e alimentos cotidianos. O mesmo, aparentemente, se repete no

poema:

SELF-PORTRAIT 2

My potatoes

10 “en el que el mero afán de autodescubrimento y de autoafirmación da lugar a um retrato fijo o estático”.

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laugh

And my frog

frog frog

*

Regarde

les choux

ils sont

couverts

des bijoux

Regarde

mes genoux

ils sont

couverts

de hiboux

Regarde

les hiboux

ils

te regardent

(LOPES, 2003, p.66)

Esse poema também lúdico sugere um autorretrato sonoro/visual

repleto de significantes que realizam um cenário que prescinde dos

significados inseridos na realidade, como se clamassem apenas para serem

escutados e vistos. A poetisa se autorretrata por meio de elementos do seu

ambiente doméstico, estabelecido por um jogo de linguagem que se faz

intenso no ritmo alcançado por meio de repetições, rimas, progressão da

narrativa e, assim, nos dá seu autorretrato no qual há a ausência da pessoa.

Esse apelo ao mundo animal ou à natureza morta nos mistura no universo

pictórico por meio de cenas exóticas. É estrangeira nas línguas que utiliza e,

embora tenha aparente domínio em ambas as línguas, resta a questão para

que se autorretratar por meio do que é estrangeiro a si mesmo. Não é ela

que se apresenta nas estrofes do poema, mas fala dela por meio do outro.

São vozes que não são suas e nos falam dela. A ausência e a presença

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evocam vozes do doméstico e do pessoal com o que construímos a

pluralidade e a ficção, mas algo permanece obscuro, embora o uso dos

pronomes possessivos manifestem a presença de um autorretrato. No

entanto, foi a presença constante dos animais: baratas, gatos, corujas; dos

vegetais: batatas e repolhos; e, coisas: joias que nos chamaram a atenção. A

única referência ao humano acontece por meio de joelhos e pelo uso dos

pronomes possessivos. Segundo Bataille (1993, p.11),

Há, efetivamente, na situação animal, o elemento da situação humana — o animal pode, a rigor, ser olhado como um sujeito para o qual o resto do mundo é objeto —, mas nunca lhe é dada a possibilidade de ele próprio se olhar assim. Elementos dessa situação podem ser apreendidos pela inteligência humana, mas o animal não os pode realizar.

Ou seja, a outra característica humana contida nos autorretratos é como a

poeta olha para os animais, vegetais e coisas. Todos eles podem

efetivamente, em algum momento, serem sujeitos. Podem assim representá-

la? São todos também suas máscaras? Em crônica escrita para o Jornal

Público (2002), a poetisa publica os poemas acima e escreve: ”Os meus

poemas são todos chomskyanos e muito devem à programação de Basic

que estudei na Faculdade de Ciências em 1980/81 no terceiro ano da

licenciatura em Física.” (“Puro é o nojo”, Cartas do meu moinho). Por essa

afirmação poderíamos dizer que outra voz se instala.

Mais uma vez parece que a poeta perverte todos os signos voltados

para o EU- autobiografia, diário e autorretrato- de maneira a dar a esses um

novo e possível estado de linguagem. Parece perguntar: para ser Eu não é

preciso ser consciente? Posso, tal qual os animais que não pensam que são

animais, prescindir da consciência para existir? Também parece responder

com perguntas: é possível ser sujeito como coisa, bicho e planta, sem o

sermos. Adília é Adília e nessas imagens não pensa que é Adília. Ou seria

Maria José?

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CAPÍTULO 3 - OUTROS EUS DE ADÍLIA

A poesia de Adília Lopes possui uma diversidade de características

manifestas de acordo com o ano em que foi escrita ou com o projeto poético

a que estava integrada. Poemas e livros analisados podem indicar

procedimentos poéticos ou mesmo um projeto poético bastante elaborado.

No entanto, em entrevista concedida a Célia Pedrosa (2008, p.102), Adília

Lopes relata:

Nunca tive programas, objetivos a cumprir. Nunca pensei vou fazer isso com esse fim. As coisas aconteciam espontaneamente. Quando comecei a escrever poemas como Adília Lopes tinha 23 anos. Já não pedia a mim mesma poemas, tinha mudado tudo. Tinha deixado a Física e ia para a Faculdade de Letras. Queria era ser uma aluna razoável em Letras e tive que voltar ao liceu porque tinha que fazer cadeiras de letras que não tinha e nessa altura reli os clássicos porque tive que fazer exames sobre os clássicos portugueses. E foi dessa releitura que começaram a surgir os poemas. Não gosto muito de me classificar. Gosto de viver, de ter uma vida simples, recatada. Os poemas são uma maneira de partilhar meu mundo com as outras pessoas.

Sem desconsiderar ou desqualificar o que a poeta relata, observamos

pontos que sinalizam elementos coincidentes em sua escrita e, independente

da espontaneidade revelada, do talento manifesto, ou da generosidade

compartilhada com seus leitores, pode-se elencar vários procedimentos. A

crítica ressalta características diversas em sua poesia, por exemplo, Rosa

Maria Martelo (2010, p. 224) a identifica como uma poeta ironista de acordo

com os pensamentos de Rorty, e reflete que “O principal alvo de

desconfiança de uma ironista é o senso comum, e, para a ironista, o senso

comum é, antes de mais, uma linguagem que só pode ser objecto de

distanciação mediante outra linguagem”. Outros a veem como poeta kitsch,

poeta com linguagem próxima da oralidade. Poeta que dialoga

permanentemente com outros poetas, que se utiliza de fábulas, da

publicidade do mundo atual etc. Todas essas características estão presentes

em sua poesia, no entanto, a que nos interessa, particularmente, são as

poesias que se utilizam da partícula Eu, que aludem a questões biográficas

ou, simplesmente, tratam de uma poesia que se utiliza do Eu para falar do

mundo, um Eu que é personagem ou vários personagens, um Eu que é

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autoral, que é a poetisa ou um pseudônimo, ou uma máscara. É um Eu

ficcional ou uma permanente dissimulação do Eu? Ou é um Eu que é só um

nome? Segundo Martelo (2010, p. 238), .

Seria possível argumentar que o nome Adília Lopes é um pseudônimo e, logo, uma microficção – como, de resto, a própria Adília lembrou em 2001, na Fundação Eugênio de Andrade -, tal como seria possível argumentar que nada garante a contratualização autobiográfica de um texto lírico e menos ainda no caso deste poema, que em lado algum aponta para esse registo. E assim é, de facto, se bem que a contratualização autobiográfica seja recorrente na obra de Adília Lopes.

Entende-se por lírico uma característica da poesia que expressa

inicialmente o Eu do poeta, sua alma, intimidade, sentimentos, enfim, sua

subjetividade, estando diretamente ligada ao Eu-empírico do poeta. De

acordo com Massaud Moisés (1978, p.310),

O vocábulo “lirismo” foi cunhado no interior do Romantismo francês, com vistas a designar o caráter acentuadamente individualista e emocional assumido pela poesia lírica a partir do século XIX.

No entanto, depois da poesia moderna, esse Eu não existe apenas

em um interior, mas na relação com o outro, ele deve abrir-se para o exterior

numa permanente relação de identidade e alteridade que o vincula às coisas,

às palavras e ao mundo. Por meio da linguagem, o lírico passa a ser

classificado, de maneira geral, como algo impessoal. Collot (2013, p.226)

afirma: A distinção estabelecida pela linguística entre o sujeito do enunciado e o sujeito da enunciação parece vir ao apoio dessas teses: dizendo Eu, o locutor sai de si para se enunciar. Benveniste

mostrou bem que os pronomes ditos “pessoais” não são propriedade de ninguém: “eles não remetem nem a um conceito, nem a um indivíduo”, porque eles não têm sentido senão em função de uma situação de enunciação. O pronome da primeira pessoa, em particular, não designa senão o locutor, que é bem um sujeito singular, mas cuja identidade muda a cada ato de enunciação, e que se define em relação recíproca a um outro, interlocutor, sempre suscetível de dizer Eu, por sua vez. Essa permutabilidade dos pronomes e dos papéis discursivos impede de encerrar o sujeito da enunciação em uma interioridade e uma identidade estáveis e o abre para a alteridade.

Ao pensar na permutabilidade existente entre o Eu do enunciado e da

enunciação nos parece que o mesmo permanece sem pouso único, mas

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como possíveis e inúmeros distintos sujeitos causados pela alteridade da

poesia ou ainda de cada poema. Isso prenuncia que a poesia de Adília é

essa mutabilidade de vestir-se de inúmeros Eus. Conforme Barthes (1977,

p.19), É de bom-tom, hoje, contestar a oposição das ciências às letras, na medida em que relações cada vez mais numerosas, quer de modelo, quer de método, ligam essas duas regiões e apagam frequentemente sua fronteira; e é possível que essa oposição apareça um dia como um mito histórico. Mas, do ponto de vista da linguagem, que é o nosso aqui, essa oposição é pertinente: o que ela põe frente a frente não é aliás, forçosamente, o real e a fantasia, a objetividade e a subjetividade, o Verdadeiro e o Belo, mas somente lugares diferentes de fala. Segundo o discurso da ciência — ou segundo certo discurso da ciência — o saber é um enunciado; na escritura, ele é uma enunciação. O enunciado, objeto habitual da linguística, é dado como o produto de uma ausência do enunciador. A enunciação, por sua vez, expondo o lugar e a energia do sujeito, quiçá sua falta (que não é sua ausência), visa o próprio real da linguagem; ela reconhece que a língua é um imenso halo de implicações, de efeitos, de repercussões, de voltas, de rodeios, de redentes; ela assume o fazer ouvir um sujeito ao mesmo tempo insistente e insituável, desconhecido e no entanto reconhecido segundo uma inquietante familiaridade: as palavras não são mais concebidas ilusoriamente como simples instrumentos, são lançadas como projeções, explosões, vibrações, maquinarias, sabores: a escritura faz do saber uma festa.

Diante de tais reflexões quase somos solapados por um pensamento

tautológico em que o Eu não existe como sujeito, mas apenas como uma

palavra que anuncia o enunciado e perverte a enunciação, tornando-a

impalpável para o leitor. Não há autor, biografia, vivência, experiência, ou

mesmo, não há mais pessoa, ou se há é sempre um ser Eu multiplicado. No

entanto, Rosa Maria Martelo (2003, p.9), em seu ensaio “Reencontrar o

leitor”, ao analisar a poesia contemporânea portuguesa, afirma:

[...], no último quartel do século XX, o lirismo tende a configurar mais nitidamente o sujeito, e a presença da subjetividade surge não apenas enquanto rasto de um processo enunciativo entretanto tornado inacessível ao leitor, mas enquanto presença de um sujeito de enunciação susceptível de ser entendido como actor ou agente num processo discursivo- e não como produto; ou resultante, ou efeito desse processo. Retomando o conceito de “poesia figurativa”, proposto por José Luis Garcia Martín, poderia dizer-se que o lirismo abstracto dominante na tradição da Modernidade pós-baudelairiana tende agora a dar lugar à dominância de um lirismo figurativo. Trata-se na verdade, de uma revalorização da enunciação lírica (daí as marcas do processo enunciativo estarem mais presentes no enunciado);

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Nos capítulos anteriores, contemplamos os poemas que se utilizam

do Eu por meio da ambiguidade representada pelo Eu empírico e Eu lírico

que tematizam uma recorrente dissimulação diante da qual falamos de uma

personagem, de uma máscara, de uma autobiografia, de um pseudônimo, de

uma autora, de uma autoficção ou simplesmente de um Eu nome. Estamos

sempre num percurso instável.

Neste capítulo, pretendemos explorar a questão do Eu em quatro

contextos distintos: o Eu na narrativização do poema ou, ainda, um Eu lírico

sem identidade autoral explícita; o Eu construído por meio de referências ou

personagens familiares; o Eu e o corpo; o Eu que se autobiografa com

elementos e pessoas de seu cotidiano. De alguma maneira, um Eu vinculado

às suas experiências de vida e transformado em linguagem. Lidamos, assim,

com o objetivo de responder: Quem é esse Eu-lírico. É um Eu-empírico ou

apenas um nome? É um Eu impessoal? Um Eu figurativo? Uma máscara?

Se o é, de quem, da autora, da poeta, do pseudônimo, do leitor? E ainda

perguntamos: como a heterogeneidade da composição poética adiliana

potencializa um campo de instabilidade em sua escrita poética que

singulariza uma subjetividade independente de qualquer nome?

3.1 O Eu na narrativa do poema

O Eu, primeira pessoa do singular, pode manifestar-se sem uma

específica identidade autoral, muito embora os signos usados em sua

escritura possam fazer com que o poeta seja agudamente identificado.

Dizemos poeta e não a figura do autor. Essa afirmação contem várias

implicações. A pessoa carrega os fatos de sua vida pertencentes a vivências,

memórias e, dependendo do estado de poesia, manifesta na enunciação

diferentes enunciados, todos causados por um mesmo fato. A figura do

autor é cúmplice e testemunha de cada poema. Em seu ensaio “O que é um

autor?”, Foucault (2009, p. 278/ 279) analisa que a função do autor não

remete a um indivíduo real:

É sabido que, em um romance que se apresenta como o relato de um narrador, o pronome da primeira pessoa, o presente do indicativo, os signos da localização jamais remetem imediatamente

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ao escritor, nem ao momento em que ele escreve, nem ao próprio gesto de sua escrita; mas a um alter ego cuja distancia em relação ao escritor pode ser maior ou menor e variar ao longo mesmo da obra. Seria igualmente falso buscar o autor tanto do lado do escritor real quanto do lado do locutor fictício: a função autor é efetuada na própria cisão - nessa divisão e nessa distância. Será possível dizer, talvez, que ali está somente uma propriedade singular do discurso romanesco ou poético: um jogo do qual só participam esses "quase-discursos". Na verdade, todos os discursos que possuem a função autor comportam essa pluralidade de ego.

É nesse espaço intervalar do entre, autor e narrador (EU) da

ficção/autoficção, que a poesia se manifesta. No poema abaixo, notamos

uma narratividade em forma de poesia expressa por meio do pronome Eu,

em que a narrativa do poema envereda por um caminho ficcional, assim

como esbarra em possíveis conjunturas e traços da vida da autora. A

narratividade com que constrói seus poemas envolve intimidade, fornecida

pelos aspectos orais do discurso, em que já não é possível dizer o que é

real/ ficção ou autoficção. Observemos o poema:

Eu realmente falo muito

em raparigas

ora as raparigas

haverá excepções

foram sempre muito minhas amigas

da onça

um dia convidei uma

para morrer comigo

hei-de tentar entrar na morte

a dançar disse-lhe eu

ela disse-me o que tu dizes

não se escreve

pois não não lhe disse eu

e o que eu escrevo não se diz

então vamos comer um gelado

eu não vou eu digo

apetece-me um gelado

mas não como disse-me ela

o que é que se pode fazer

com uma rapariga destas?

(LOPES, Adília, 2009, p.35/36)

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A enunciação provoca um estado de poesia possivelmente suscitado

pela intimidade da cena e pela temática afetiva que congrega contrários, a

evocação de morrer se acompanha da de tomar um gelado. O enunciado

confunde ao contemporizar o escrever “o que eu escrevo não se diz”, aqui já

não mais é certo quem é o sujeito do enunciado e da enunciação, dado que

quem escreve é necessariamente o autor. A possibilidade de real é o ruído

da ficção. O enunciado modifica o sujeito da enunciação. A alteridade parece

preservar o pessoal. O sujeito da enunciação e do enunciado se confundem,

mas não se misturam, não mitigam o Eu. Há uma fronteira esburacada, mas

eles não se fundem, senão seria pessoal. Entretanto, a narrativa poética se

inicia quase como um texto confessional em que o Eu relata uma prática de

seu quotidiano inofensivo (“Eu realmente falo muito/ em raparigas”) até que a

metáfora para definir a rapariga se manifesta (“foram sempre muito minhas

amigas/ da onça”).

Esse coloquialismo carrega o poema de ambiguidade e o paradoxo se

estabelece, como quase a nos preparar para o verso seguinte “um dia

convidei uma/ para morrer comigo”, e assim encerra o que parecia um

monólogo para adentrar em um diálogo dramático, “hei-de tentar entrar na

morte/ a dançar disse-lhe eu”. No diálogo, o Eu e o tu parecem se misturar,

invertem-se os papéis (“então vamos comer um gelado/ eu não vou eu digo/

apetece-me um gelado/ mas não como disse-me ela) para, no último verso,

brincar com os sujeitos existentes no poema (“o que é que se pode fazer/

com uma rapariga destas?” ). Qual rapariga, a amiga?, o Eu do poema, ela

outra, ela si mesma? Flora Süssekind (2002, p.223), ao tecer considerações

sobre o livro O poeta de Pondichéry, evidencia uma estrutura básica na

poesia de Adília a partir da relação entre os elementos contra-ficcionais

(auto-exposição) e a dramatização contidos em alguns de seus poemas.

Afirma: Máscara identitária tensionada pela própria organização lírica da enunciação, no caso dos monólogos de Pondichéry, de um lado: dicção pressionada internamente – “Vês aquela rapariga ali? qual?”- à dramatização, de outro, na série de desdobramentos e histórias entranhadas a um processo de formulação com dupla vinculação discursiva como acontece na poesia de Adília Lopes. Com uma liminaridade complexa , resistente à unificação, e cuja auto-exposição se converteria, no seu caso, em princípio estrutural

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básico. Dai as variações de foco, voz, as duplicatas, as citações explícitas etc [...]

3.1.1 O Eu narrador: metáfora e literalidade.

Apesar do uso constante de elementos contra-ficionais em seus

poemas, observamos que em alguns a metáfora e a literalidade se

movimentam em copresença vociferando mais um Eu. Consideremos mais

atentamente as figuras de linguagem metáforas e metonímias. Segundo

Pignatari (2005, p.16), “Metonímia = tomar a parte pelo todo [...] Metáfora=

relação de semelhança entre duas coisas designadas pela palavra ou

conjunto de palavras”. Aristóteles (2011, p.78) define metáfora como “a

aplicação de um nome que pertence a uma outra coisa, quer transferência

do gênero à espécie, da espécie ao gênero, da espécie à espécie, quer por

analogia”. Massaud Moisés (1978, p.325), ao definir e refletir sobre a

metáfora, afirma:

A universalidade da metáfora ainda se manifesta como um processo básico de comunicação verbal: se cada vocábulo apresenta simultaneamente um índice denotativo (literal ou referencial) e um índice conotativo ( figurado ou polissémico), a metáfora estaria implicada no ato mesmo de procurar traduzir em palavras os nossos pensamentos e sensações. Tudo se passaria como se o signo verbal fosse, por natureza, uma metáfora.

Tal conceito continua a ser bastante estudado e questionado por

alguns críticos e filósofos. Annita Malufe (2012, p.187), ao estudar a

linguagem e o pensamento de Deleuze, elucida o modo não-

representacional e não-metafórico da escrita poética. O próprio Deleuze

(apud MALUFE, 2012, p.188) diz: “ou você fala literalmente ou você não fala

nada”, “é preciso falar literalmente, por isso todas as figuras são

ultrapassadas”. Chamando a questão para a poeta Adília Lopes

perguntamos até que ponto ela se utiliza das metáforas ou apenas é literal

em sua construção poética. Vejamos o poema:

A DOMADORA DE CROCODILOS

Todos os dias meto a cabeça na boca do crocodilo

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O meu feito é feito de paciência

Já meti a cabeça no forno estava farta dos crocodilos e dos amantes

Não tenho tido amantes tenho tido crocodilos

Com os crocodilos ganho o pão e as rosas

Morrer é um truque como tudo o mais

Dobrada entre os crocodilos dobrados arrisco a pele

A pele é a alma

(LOPES, Adília, 2009, p. 625/626)

O título do poema “A domadora de crocodilos” é inusitado e tanto

pode nos remeter a uma prática, atividade profissional que, embora quase

fictícia, é consumada na África e Tailândia, como a um show para divertir

turistas. O título também nos reporta a um guache assim intitulado e pintado

por José de Gonçalves, artista contemporâneo português com referências à

pop-art. Atmosferas começam a ser criadas. No sentido denotativo,

crocodilo é um réptil predador e carnívoro e, no sentido conotativo ou

sentido figurado (HOUAISS, 2009, p. 576), “falso amigo; traidor”. A

ambiguidade da figuração da domadora se estabelece: ao lidar com

crocodilos animais, pode configurar a imanência permanente e quotidiana de

uma morte real; ou fictícia, ao lidar com crocodilos pessoas, amigos falsos e

pessoas não confiáveis. A metáfora ainda não parece responder do que trata

o poema, entretanto, a literalidade da palavra nos movimenta e nos coloca

em consonância poética, à espreita. Assim, tanto o título do poema como a

primeira imagem construída “Todos os dias/ meto a cabeça/ na boca/ do

crocodilo” são atmosferas possíveis, flutuam. O verso, que finaliza a primeira

estrofe “o meu feito é feito/ de paciência”, sugere uma paranomásia com o

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dito popular português “o meu dito é feito de“ , “dito e feito”; segundo

Pignatari (1983, p. 18), “metáfora é uma semelhança de significados, a

paranomásia é uma semelhança de significantes”. Esse jogo entre

significantes e significados, que conferem certeza e imediatismo ao Eu, é

composto pelo substantivo paciência. Quase como a declarar que as

ambiguidades são plurais e não apenas feitas de dicotomias.

A segunda estrofe nos afugenta do real e nos aproxima do mesmo,

“meto a cabeça na boca do crocodilo”, a sequência com “já meti a cabeça no

forno” é algo muito mais real e possível, dependendo do ponto de vista ou

experiências vividas. Um jogo de diversidades de possíveis não é

estabilidade no sentido que se monta, mas um jogo permanente de

ambiguidades múltiplas, presentes e simultâneas. Quase numa tautologia da

narrativa, “estava farta de crocodilos e amantes”, parece ir ao encontro do

erotismo com a morte.

Na estrofe, “com os crocodilos ganho meu pão e rosas”, parece que a

metáfora se solidifica e escapa. É por meio de crocodilos (e todos seus

possíveis entendimentos metafóricos e literais) que o poema se realiza, mas,

concretamente e literalmente, é por meio da palavra que a poeta constrói seu

poema. Ou seja, a poeta cria atmosferas por entre a linguagem, utiliza-se de

todos os elementos concernentes a ela, à realidade, à metáfora e à

literalidade. Dobra-se a todos, mas não cede a nenhum. É ela uma

Domadora de crocodilos? Da linguagem? Das figuras de linguagem? Para

Deleuze, segundo Malufe (2012, p.188),

O sentido literal [...], portanto, não se confunde com o sentido próprio. Ele não se contraporia ao sentido figurado, mas sim à lógica que instaura esta separação entre o próprio e o figurado – um sentido originário e mais real de uma palavra versus um sentido derivado, imaginário. De modo que literal” em Deleuze não é sinônimo de sentido próprio em oposição ao figurado, mas é antes a subversão desta oposição, na proposta de um novo modo de escrever, ler, compreender. Como afirma Deleuze em seus Diálogos com Claire Parnet: “Não há palavras próprias, tampouco metáforas.”

Essa abertura que o sentido literal propõe à linguagem parece

fortalecer a possibilidade de criação de imagens que cada corpo-leitor pode

suscitar e, dependendo da singularidade e expansão de suas referências,

atmosferas para uma mesma imagem podem ser criadas. Assim a metáfora

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enclausura uma diversidade de possibilidades que incorporam o sentido

próprio, figurado e aquele outro singularizado pelos leitores, todos em

direção aos sentidos criados para compor a multiplicidade de atmosferas

que o poema pode movimentar.

3.2. Referências ou personagens familiares: construção do Eu

As referências ou personagens familiares trazem elementos do

universo íntimo, quotidiano e familiar da autora representado por meio da

mãe, do pai, da avó, das tias e dos lugares de convívio. Vejamos o poema:

Minha avó e minha mãe

perdi-as de vista num grande armazém

a fazer compras de Natal

hoje trabalho eu mesma para o armazém

que por sua vez tem tomado conta de mim

uma avó e uma mãe foram-me

entretanto devolvidas

mas não eram bem as minhas

ficámos porém umas com as outras

para não arranjar complicações

(LOPES, Adília, 2009, p.64/65)

Inicialmente, há a descrição de uma cena natalina em que algo

quotidiano, porém inusitado, aconteceu “Minha avó e minha mãe/ perdi-as de

vista num grande armazém/a fazer compras de Natal”, seguida por uma

mudança de temporalidade e uma inversão afetiva “ hoje trabalho eu mesma

para o armazém/ que por sua vez tem tomado conta de mim”. A cena passa

a pertencer ao presente e o armazém é quem cuida de quem estava perdido.

Então, a narrativa do poema escapa do real e resvala no absurdo do mesmo.

Mãe e avó são devolvidas como uma mercadoria, “mas não eram bem as

minhas”, e todas as personagens envolvidas silenciam-se. Tornam-se

apenas tipos sociais/ familiares? Ou as relações estão projetadas e

submetidas ao senso comum? A ironia parece permitir o distanciamento da

imposição de qualquer sentido.

Rosa Maria Martelo (2010, p.224), ao analisar a obra de Adília Lopes,

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em seu ensaio “Contra a crueldade, a ironia”, entende que a ironista em

Adília nasce pelo seu nome/ pseudônimo, que já é uma máscara, e afirma:

“O principal alvo de desconfiança de um ironista é o senso comum, e, para a

ironista, o senso comum é, antes de mais, uma linguagem que só pode ser

objeto de distanciação mediante outra linguagem”. De maneira que o uso do

senso comum em Adília é contemporizado pelo relato de uma cena do

quotidiano familiar:

Minha mãe era uma pessoa

tão poupada

que as tias de meu pai

diziam a minha mãe

ó Maria Adelaide

esse teu vestido!

Já tinha idade para ir à escola

(LOPES, Adília, 2009, p. 71)

Essa estrofe faz parte de um poema denominado Microbiografias. O

nome (Maria) verte o universo do real. Uma construção cheia de humor,

quase uma anedota, em que a personagem da mãe e as tias, embora

configurem uma atmosfera íntima, parecem mantê-las desprovidas de

pessoas-sujeitos. A construção poética encena uma dissimulação do íntimo

que nos dirige para uma ficção por meio do uso de tipos de personagem e

não de pessoas reais ou mesmo personagens. Embora esbarre na

estereotipia das personagens, reais ou não, deixa (a construção poética)

para o leitor apenas um traço de sua personalidade vir à tona – poupada -,

inscreve-o em uma narrativa dramatizada e atualizada num tempo presente

com elementos autobiográficos. Em outro poema em prosa, afirma:

A minha avó materna e a minha tia-avó, irmã da minha avó

materna, passavam as tarde na sala de estar, sentadas no sofá,

sem fazer nada. A minha avó materna, quando o sol ficava

encoberto, dizia “Lá vamos para o túnel”. Era como se estar assim

em casa, sem fazer nada, fosse viajar de comboio. Estavam

atentas à passagem do tempo. Eu acho isso importante. (LOPES,

Adília, 2009, p. 644)

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O poema mostra mais uma imagem familiar, quotidiana e que remete

a elementos autobiográficos, ou ainda, como se refere Rosa Maria Martelo

(2010, p.245): Mas essa contratualização autobiográfica – e não me interessa discutir até que ponto ela é fiel à vida, basta-me constatar a sua existência na obra e a continuidade que mantém com depoimentos, entrevistas e paratextos da Autora – é condição indispensável da eficácia crítica da obra poética adiliana. Porque ela associa uma hiperconsciência discursiva de poeta, pela qual a poeticidade dos textos adilianos sempre se põe em evidência, à vulnerabilidade de um quotidiano banal e comum que habitualmente não tem voz, e menos ainda tem tradição de presença de poesia. Esse quotidiano é apresentado de um ponto de vista singular, individual e diferenciado, que só por si responde à quantificação reinante com a afirmação do um e da diferença, com a exigência de respeito pela singularidade e pela diferença.

No poema abaixo, outras características surgem em sua poesia,

embora o ponto de partida seja, novamente, uma aparente rede familiar

autobiografada que nos remete a uma figuração autoral ambígua e que

surpreende pelo uso singular da relação entre as palavras:

PRÊMIOS E COMENTÁRIOS

A avó Zé e a tia Paulina

deram-me os parabéns

e disseram

agora já é uma senhora!

a Maria disse

parabéns por quê?

é uma porcaria!

quanto a comentários

a poesia e a menarca

são parecidas

*

Em 72 recebi

o prêmio literário

dos pensos rápidos Band-Aid

o prêmio foi uma bicicleta

às vezes penso

que me deram uma bicicleta

para eu cair

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e ter de comprar pensos rápidos

Band-Aid

é o que penso dos prêmios literários

em geral

(LOPES, Adília, 2009, p.305)

Se, inicialmente, parecia estarmos diante da figuração autoral

autobiográfica da família da poeta, por meio das personagens já conhecidas

como a tia Paulina e a avó Zé, somos interrompidos por Adília que se refere

à Maria na terceira pessoa do singular, uma personagem, também ela

mesma. No entanto, seguimos envolvidos por sua autobiografia, melhor

dizer, pelo biografema de Maria José.

No livro Manhã (2014), a poeta escreve um texto em prosa

denominado “Prêmios”, reproduzimos parte dele:

Ganhei cinco prêmios literários. O primeiro aos 11 anos, a bicicleta

dos pensos rápidos Ban-aid. Era vermelha, tinha escritos Cycles

Pop-Pop.[...] Já não tenho a bicicleta porque ocupava muito

espaço e já estava estragada. Os outros prêmios tenho todos e

faço bom uso deles. Dão-me muita alegria” (LOPES, Adília, 2014,

p. 39).

Nesse texto com características autobiográficas mais evidentes,

encontramos a fonte do poema PRÊMIOS E COMENTÁRIOS. Há no poema

inúmeros possíveis rastros de sua biografia, no entanto, a Maria desse

poema se constrói como uma personagem excêntrica, assemelha-se a uma

personagem gauche em que a sua relação com a realidade é explicitada por

características de anti-herói, tornar-se mulher, ganhar uma bicicleta e um

prêmio literário não são acontecimentos desejáveis, mas quase ciladas da

própria vida. Como uma anti-poeta, circula palavras marcadas de quotidiano

e constrói com a linguagem relações nada pueris, mas ditas por um senso

crítico irônico e mordaz. A relação entre a menarca e a poesia são

adjetivadas como porcarias. A relação entre o prêmio literário e uma

consequente queda aliviada por pensos rápidos, Ban-Aid, evidenciam uma

atitude política e critica à publicidade, assim como aos prêmios literários.

Segundo Rosa Maria Martelo (2010, p. 244),

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[...]enquanto figuração autoral que consente uma leitura autobiográfica, Adília Lopes apresenta-se sempre desarmada pela sua imagem de anti-poeta menina. E todavia, esta condição desarmada de Adília Lopes também é sua arma mais desarmante. Porque é ela que lhe permite ser especialmente eficaz na denúncia da hipocrisia, da crueldade, da cupidez e da estupidez desse mundo em que vivemos.

Ou, poderíamos pensar que o discurso publicitário é ingerido pela poeta e

transformado em pop-art? Nada é simples em Adília, são tantas as

atmosferas introduzidas que permeamos apenas sugestões de estados

poéticos desprovidos de sentido único. São sempre veredas, cuja atenção

deve flertar e reconhecer inúmeros percursos que são indiciados e nos

atravessam. Interessante observar que vários conceitos da história da arte

são utilizados pela poeta: autorretrato, retrato, body art, op-art, pop-art.

3.3 O Eu e o corpo

A relação do Eu com seu corpo manifesta-se em entrevistas,

paratextos e crônicas. Vincula aos poemas elementos bastante conhecidos

do seu biografema: a doença mental e os remédios utilizados para o seu

tratamento que a fizeram engordar. Vejamos como Adília opera este poema:

BODY ART?

Com os remédios

engordo 30 kg

o carteiro pergunta-me

para quando

é o menino

nos transportes públicos

as pessoas levantam-se

para me dar o lugar

sento-me sempre

Emagreço 21 kg

as colegas

da Faculdade de Letras

perguntam-me

se é menino

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ou menina

No metro

um rapaz

e um velho

discutem

se eu estou grávida

o rapaz quer-me

dar o lugar

Detesto

o sofrimento

(LOPES, Adília, 2009, p. 340)

O título do poema, BODY ART?, nos remete diretamente a um

gênero de arte definido como: A body art é aquela que usa o corpo, geralmente o próprio corpo do artista, como um meio. Desde o fim da década de 60 foi uma das mais populares e controvertidas formas de arte e disseminou-se pelo mundo. Representa, sob muitos aspectos, uma reação à impessoalidade da arte conceitual e do minimalismo... No entanto, a body art também pode ser vista como um prolongamento da arte conceitual e do minimalismo. Nos exemplos em que ela assume a forma de um ritual público ou de uma performance, também se sobrepões a arte performática, embora seja criada frequentemente na intimidade e em seguida comunicada ao público por meio da documentação [...] Os espectadores da body art vivenciam uma multiplicidade de papéis, que vão de observador passivo a voyeur, passando pelo de participante ativo, Reações emocionais são provocadas neles por meio de obras intencionalmente distanciadas, enfadonhas, chocantes, engraçadas ou que convidam à reflexão (DEMPSEY, 2003, p. 244).

Esse é um movimento que acolhe uma diversidade de manifestações

artísticas que utilizam o corpo como suporte e envolvem, necessariamente, a

participação do público. Também é sabido que há na body art uma vertente

que extrema a transformação do corpo do artista realizada por ele mesmo.

Segundo Guy Amado (site Itaú Cultural) “É característico de propostas da

body art um interesse em testar os limites do corpo humano, podendo em

casos mais extremos envolver automutilações”. Tais modificações

independem dos aspectos morais e sociais que a mesma possa envolver -

são alterações, muitas vezes, deformações estéticas para um padrão moral,

e sempre estão condicionadas a uma crítica social. Nessa manifestação

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artística, a arte é um Eu que se expressa por meio de um corpo, daí o título

do poema, Body-art ?, que por estar seguido de um ponto de interrogação,

sugere a dúvida em relação à própria arte nomeada, ao nome do poema, ou,

antecipa uma narrativa carregada de ironia e fuga do senso comum? Na

body-art, a alteração investida pelo artista é absolutamente voluntária, no

poema esta transformação é atribuída aos remédios: “Com os remédios/

engordo 30 kg”. Parece que é por meio de um movimento contra-ficcional

que a poeta ironiza o contexto e o retira do senso comum, “para quando é/ o

menino” . No exato senso comum, engordar = engravidar, a poeta desrealiza

o óbvio, ao nunca, explicitamente, negar o senso comum: “nos transportes

públicos/ as pessoas levantam-se/ para me dar o lugar/ sento-me sempre”. A

possibilidade de uma nova vida no lugar de uma doença mental. O paradoxo

se fortalece por meio da própria modificação corporal constituída pela

verdade dos remédios e as hipótese dos transeuntes.

Barrenechea (2011, p.9), em “Nietzsche: Corpo e Subjetividade”,

afirma: Na ótica nietzschiana, o corpo é um permanente jogo de forças, de instintos em relação; trata-se de uma luta entre afetos, sentimentos, entre impulsos que se encontram num constante embate, numa incessante mudança. O pensamento considerado racional, dito consciente, é apenas um resultado, um fruto desse jogo total de forças corporais inconsciente, não racionais: “é apenas uma certa relação dos instintos entre si [...] a atividade do nosso espírito ocorre, em sua maior parte, de maneira inconsciente e não sentida por nós”.

No poema todos os afetos sentidos pelo corpo são projetados em

circunstâncias sociais diversas ( relação com o carteiro, transporte público,

faculdade, metro), lugares em que qualquer sofrimento possível do corpo

está resguardado pelo senso comum: engordou porque está grávida. A

forma do corpo sugere, em todas as estrofes, a possibilidade de uma nova

vida, entretanto, a crueldade do texto está fora dele. Está no conhecimento

que o leitor possui dos rastros da autobiografia da poeta. O último verso:

“Detesto/ o sofrimento”, ganha força dramática ímpar, já não se sabe a que

sofrimento esse Eu se refere, se dela ou dos personagens do poema. É uma

enunciação vivencial, de experiência de vida ou um enunciado da ficção/

autoficção? Assim, mais uma vez, não é possível estabelecer um único

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protocolo de leitura para a poesia de Adília. Observemos também este trecho

do poema intitulado “O cheiro de Jesus”:

1 O corpo

nunca

é porco

a alma

pode ser porca

(nenhuma porca

é porca)

2 O corpo

não faz

batota

o corpo

do morto

faz-se lírios

(LOPES, Adília, 2009, p.478)

Como já dito, foi com Nietzsche que o corpo entrou na reflexão

filosófica e dualista sobre a relação do Eu com seu corpo. Até então, falava-

se de um corpo carregado de instintos que desvirtuavam a alma. Nietzsche

considera tal perspectiva idealista, dado que é no corpo o lugar da existência

dos afetos, das forças e devires . Nesse poema, Adília volta a estabelecer a

relação entre alma e corpo, mas diferentemente dos metafísicos ou com um

pensamento oposto a eles, “o corpo/ nunca é porco/ a alma/ pode ser porca”.

Prossegue: “o corpo/ não faz/ batota”. Perguntamos: é o que é, não trai, não

engana, não mente? E o corpo, quando morto, são apenas lírios? O lugar

que o corpo ocupa é limpo e feito de verdade e lírios. Não perece. Mantem-

se o dualismo corpo e alma, mas com qualidades invertidas.

Diferentemente, em outro poema, aborda uma relação entre partes do

corpo, a relação pele e cérebro:

Tenho uma doença mental, tenho uma doença de pele. A pele é

exterior, o cérebro é interior. Tenho um eczema, tenho uma

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psicose. Às vezes penso que a pele é interior e que meus miolos

estão à mostra como a mioleira da vaca no balcão do talho.

(LOPES, Adília, 2009, p. 421)

A pele é aquilo que nos separa do outro, é uma limite exterior. Diz que você

é um e não está misturado ao outro. No entanto, ela faz sentir o outro.

Como já mencionamos, Nietzsche entende que o corpo é atravessado

por uma diversidade de forças físicas, psíquicas, metafísicas, sociais etc.,

engendrando no ser uma permanente presença do devir na pele e no

cérebro. A pele é exterior, separa o outro, mas torna-se interior. “Às vezes

penso que a pele é interior [...]” . Os miolos, seus juízo estão “à mostra” ,

passíveis de perderem o controle ou serem revelados pela poeta. No

entanto, um eczema coça e afasta o outro. Uma doença mental deixa à flor

da pele afetos e pensamentos. Uma pergunta grita: há Eu na pele? Valery

diz: “O mais profundo é a pele”. O corpo revela seus devires e o poema

inverte o senso comum.

3.4. O quotidiano e a autobiografia

A autobiografia, traços autobiográficos, autoficção, diferentes ou já similares

conceitos, estão quase involuntariamente permeando a poesia de Adília

Lopes, não pelo fato de mostrar quem é, mas por apresentar-se como

personagem que parece estar sempre entre o real e o fictício. O poema que

segue é exemplo:

A minha gata morreu. Agora já me posso suicidar. (LOPES, Adília, 2009, p. 416)

Embora entendamos que a poeta se utiliza de elementos de seu

quotidiano, sua afirmação desnorteia. Fora do esperado, do senso comum,

sua autobiografia subverte os valores sociais e nos põe, enquanto leitores,

em um campo minado. Se pensarmos que a linguagem é o verbo, o motivo

aludido aturdi a possibilidade de real. Poderíamos dizer que se torna

impessoal? O peso do signo suicidar-se, já não tem relação com a realidade.

Ou esse signo é exatamente o reflexo de uma época em que todas as

opções são possíveis.

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Segundo Flora Süssekind (2002), a linguagem usada pela poeta se

manifesta, em geral, por meio de narrativas curtas, ficções identitárias e

ilusão de realidade ao que é inventado, à autoficcionalização de seu nome

real, às referências a contos tradicionais e a outros poetas. São narrativas

antilíricas e antificcionais por utilizarem acontecimentos da vida da poeta. No

entanto, a pergunta se mantém: Quem é esse eu-lírico? Esse Eu é um

sujeito, um Eu-empírico? Ou, exatamente, é esse entre: nem empírico, nem

lírico, nem impessoal, lugar em que muitos elementos do universo pessoal

da poeta se interpenetram a construírem na linguagem a magia de todos os

lugares possíveis desse Eu.

O poema cujo título é “Op-art”, já remete à arte e à física. A física,

segundo Adília, é um elemento de seu pensamento que reporta a ordem, e a

op-art, uma arte que se utiliza dos conhecimentos da óptica e pretende ser

acessível a todos. Vejamos o poema:

Op- art

“Buen vestido no haze ledos los tristes” Gil Vicente, Dom Duardos

1

A poetisa é Marta

e é Maria

mas a máquina de costura

encravou

e Jesus hoje não passou

2

Porque não deixa de escrever

e passa a dizer Tchau?

3

A minha biografia foi-se

como leite derramado

entre Tridim-M e Tridim-T

4

Tenho 32 anos

nunca fui a um enterro

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e também nunca fui

ao Algarve

5

Se o bom verso

como o bom vestido

não alegra as poetisas

ajuda bastante

6

Nasci em Portugal

não me chamo Adília

7

Sou uma personagem

de ficção científica

escrevo para me casar

8

Que morra Marta

mas que como Maria

morra farta

(LOPES, 2009, p. 292/293)

Atentando à estrutura do poema, observa-se inicialmente uma

epígrafe de Gil Vicente, conhecido dramaturgo português. O poema é

dividido em estrofes enumeradas o que sugere partes ou cenas de uma peça

teatral. São cenas dramáticas.

Em relação a uma definição de op-art, considera-se que

Embora toda arte se apoie, até certo ponto, em ilusões de óptica, a arte op emprega especificamente fenômenos ópticos com a finalidade de confundir os processos normais de percepção. Composta de padrões precisos em preto-e-branco ou de justaposições de cores em tonalidades fortes, as pinturas da arte op vibram, ofuscam e oscilam, criando efeitos de ondulação, ilusões de movimento ou pós-imagens (DEMPSEY, p.230, 2003).

Após o título que nos remete à arte, encontramos estrofes que nos

lembram a religiosidade da poeta, manifesta em diversos textos e paratextos

em que se recorda e cita partes da bíblia. Sugere uma religiosidade calcada

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no conceito primordial da mesma, no sentido de se religar a algo misterioso

ou mesmo desconhecido. A poeta, em entrevista a Célia Pedrosa (2008,

p.107), se define como cristã e católica:

Sou cristã e católica, por gostar da imagem. Não diria protestante. Isso é uma coisa mais [...], menos ligada aos sentidos, mais racional, um entendimento do cristianismo, mais do abstrato. É o enigma. Todos os dias digo não há Deus e todos os dias penso que isto é um enigma.

O poema parece fazer referência ao capítulo São Lucas da bíblia ao

colocar em cena Marta e Maria que recebem Jesus em sua casa.

Reproduzimos os versículos:

38 Caminhando Jesus e os seus discípulos, chegaram a um povoado, onde certa mulher chamada Marta o recebeu em sua casa. 39 Maria, sua irmã, ficou sentada aos pés do Senhor, ouvindo-lhe a palavra. 40 Marta, porém, estava ocupada com muito serviço. E, aproximando-se dele, perguntou: "Senhor, não te importas que minha irmã tenha me deixado sozinha com o serviço? Dize-lhe que me ajude! " 41Respondeu o Senhor: "Marta! Marta! Você está preocupada e inquieta com muitas coisas; 42 todavia apenas uma é necessária. Maria escolheu a boa parte, e esta não lhe será tirada". ( Bíblia online, Lucas 10:38-42)

Na cena 1 parece existir uma relação inicial direta aos versículos em

que a poetisa é Marta e Maria. “A poetisa é Marta/ e é Maria”, a poetisa é

Marta que trabalha e Maria que escuta Jesus, mas para ambas nada

aconteceu, “a máquina de costura/ encravou/ e Jesus hoje não passou”. Na

cena 2, pergunta-se à poetisa “porque não deixa de escrever”, de trabalhar

ou ter sensações? Quem pergunta? Na cena 3 apresenta uma biografia

derramada que se vai entre Tridim-M e Tridim-T , obras do Victor Vasarely,

pai da Op-Art. Ele intencionou criar uma arte para ser compreendida por

todos, promovendo ilusões concernentes tanto à identificação de quem as

observa como relativizando a imagem da obra em função da posição do

observador. Segundo a Fundação Vasarely,

Por meio do uso de unidades bicolores de cores sólidas ou contrastantes , o artista cria o Alfabeto Plástico que introduz novas ideias aos artistas da arte abstrata do início do século - a pesquisa de um método que crie uma linguagem universal e compreensível por todos.

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Este Alfabeto Plástico abre a porta para o início da arte coletiva. Por intermédio do jogo e transformação de formas e sombras, o artista produz inumeráveis ilusões. "A utilização de inumeráveis combinações na Op Art fornece uma ferramenta universal , sem limitar a expressão das personalidades como das identidades étnicas ."11  

Talvez, assim, como uma biografia que se perde “como leite

derramado” de acordo com o ponto de vista pelo qual é observada, ou que

permanece entre uma ou outra impressão, sempre dependendo de quem a

lê, a vê. A cena 4 parece se apresentar por meio de uma autobiografia da

autora “Tenho 32 anos”, já não é Marta ou Maria? E relata “nunca fui a um

enterro/ e também nunca fui/ ao Algarve”. A cena singela sugere que a dor e

o prazer dialogam como sendo desconhecidas da autora. No enterro a

morte, e no Algarve a vida. Algarve é um dos conhecidos destinos europeus

de turismo, cheio de glamour e diversão. Mas a poeta está no entre lugar,

desconhece tanta a lívida experiência da vida como a pura diversão, assim

como a maiúscula tristeza de enterrar alguém. A cena 5 parece uma

continuidade da cena 4 por meio da própria epígrafe de Gil Vicente: “Bom

vestido não faz alegre os tristes”. A aparência na época medieval de Gil

Vicente era muito importante e classificava, por meio do vestuário, classe e

grupos sociais. Mas, hoje, basta um bom verso ou um bom vestido. Ou seja,

seria possível pensar que hoje, se a aparência ou um verso não bastam,

ajudam. Ainda a tecer uma autobiografia ou usar traços da mesma, na cena

6, Adília nega seu nome de poetisa. Então, é quem? Maria José? Para,

então na cena 7, apresentar-se como uma personagem de ficção científica

(não deixa sua identidade como física?) e, ironicamente confessar - “escrevo

para me casar”.

Esse verso provocou muitas situações conflitantes no mundo poético

e, em uma crônica intitulada “Fazer prosa, fazer rosa”, Adília (2001) diz:

11  Using these bicolor units with solid or contrasting colors, the artist invents the Alphabet Plastique which breathes new life into an idea which dates back to the beginning of the century among abstract artists - the search for a method to create a universal language understandable by all. This Plastic Alphabet opens the door to the introduction of collective art. Through the matching and transforming of shapes and shades, the artist makes a number of different illusions appear. “The use of combinations of this scale in plastic art provides a universal tool, without limiting the expression of personality such as that of ethnic identities.” (The father of Op Art, http://www.fondationvasarely.fr/uk/vasarely4.php) (tradução nossa)

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Aqui está a resposta à pergunta do Valter Hugo Mae, ou antes, a esta: com quem quer ( ou com quem deve ) casar a poetisa? Prefiro citar Baltazar Lopes (Osvaldo Alcântara) citado por Sophia na portada de "Primeiro Livro de Poesia", "casem-se os poetas com a respiração do mundo". E eu vou ser mesmo moralista e vou dizer: acho que toda a gente devia ter o propósito de casar com a respiração do mundo. Ou, porque não?, com a respiração de Deus. A poesia é uma questão de fidelidade a esse casamento. Tenho medo de estar a ser hermética.

A poetisa casa-se com o mundo e com Deus, como uma ficção? Como uma

proposta política?

Encerra o poema com a cena 8, “Que morra Marta/ mas que como

Maria/ morra farta”. Farta de poesia? Farta de fé? Quem é quem ao anunciar

essa ambivalência constante, essas inúmeras vozes entre Marta, Maria,

Adília. Ou seja, todos esses elementos estão contidos nesse movimento que

se faz autobiográfico. Será mesmo? Segundo Rosa Maria Martelo (2010, p.

242),

Adília Lopes tem pago um preço elevado: ao acentuar uma cumplicidade entre poesia e vida que a afasta da tradição de impessoalidade, fingimento e alterização que foi determinante para a tradição da poesia moderna, Adília Lopes acabou presa a uma figura autoral muito marcada pela condição autobiográfica que os seus livros sugeriram.

Essa condição autobiográfica que a deixou presa a uma figura autoral

não é suficiente para afastá-la da impessoalidade ou do fingimento, Adília

opta por uma diversidade de construções de linguagem que remete a várias

vertentes dos seus Eus sempre chacoalhados pela ficção de si mesma, pelo

jocoso de sua personagem, respondendo muitas vezes de maneira irônica

ao mundo que a quer uma. São diversas intimidades que configuram

espaços de convivências, reais, fictícios e ambivalentes. Nunca se sabe com

certeza quem fala, parece fazer de Maria José mais uma personagem, uma

voz a configurar paisagens que se repetem e remetem a um ser humano que

esbarra na realidade, mas não a constrói. Assim vai se fazendo o universo

de Adília, que já não necessita de seu sobrenome. Segundo a crítica Joana

Emídio Marques (2015, Jornal Observador), “Adília (e é de propósito que

abandonámos o sobrenome, ela já não precisa dele) não terá honras de

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Panteão mas tem versos que entraram e se incrustaram na nossa linguagem

quotidiana”.

A poeta, a mulher ou qualquer personagem eleito dentro de seu

universo parecem ser costurados nas diversas intimidades que configuram

um Eu fragmentado e polivalente situado em espaços de convivência e

dotados de inúmeros papéis sociais, familiares, pessoais e impessoais. A

ficção sempre presente desnorteia referências e acontecimentos biográficos,

imagens são aturdidas pela intimidade quotidiana que constroem

personagens e, num permanente movimento pendular, aproximam-se e se

afastam, seja pelo movimento de figuração narrativa em que sua família é

aliada à sua escrita, seja por meio de personagens diversos conhecidos,

emprestados de outros autores, inventados: “A vida/ é livro/ e o livro/ não é

livre” (LOPES, Adília. 2009, p.300). Quase que por meio da entrega de uma

intimidade possível, faz-se sempre uma dobra. Uma dobra para mais um Eu.

É o que diz neste poema:

Mesmo que pudesse

dizer tudo

Gosto de me deitar

sem sono

para ficar

a lembrar-me

das coisas boas

deitada

dentro da cama

às escuras

de olhos fechados

abraçada a mim

(LOPES, Adília. 2009, p. 381)

Em outro texto traços autobiográficos parecem emergir, no entanto,

sua crueza e sugestão de verdade, contraditoriamente, o torna impessoal,

diz:

Nunca fodi. Mas não me importo de morrer sem ter fodido.

Apaixonei-me. E ninguém por quem eu me tenha apaixonado se

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apaixonou por mim. Acho horrível uma pessoa foder sem estar

apaixonada. Acho horrível uma pessoa nunca se ter apaixonado.

Acho que é o pior que pode acontecer a uma pessoa. Não é nunca

ninguém se ter apaixonado por nós. É tão horrível alguém

apaixonar-se por nós e nós não podermos corresponder. As

paixões desencontradas é como as cabeças trocadas.

(LOPES, Adília. 2009, p.411)

Aqui, mais uma vez, encontramos uma narrativa à primeira vista

confessional, que remete a um contexto autobiográfico. Será? Segundo

Malufe (2011, p. 197),

Dizer “eu”, afirmar-se em um enunciado, aparece como um complexo jogo de selecionar vozes, cortá-las e rejuntá-las. Podemos assegurar através da primeira pessoa o discurso de um sujeito, conceber a noção do discurso direto “de” alguém. Mas este discurso direto, este enunciado que atribuímos ao sujeito manifestante, não deixa de ser um coletivo de vozes, ele é apenas um fragmento da polifonia maior donde foi retirado.

Assim, a poeta usa sua autobiografia, usa seus traços do senso

comum e a transforma por meio da evocação de vozes múltiplas, dispares,

dispersas, numa composição impessoal e crítica que fundamenta sua

linguagem poética sem enclausurá-la. Paul Ricoeur afirma, citando

Bachelard (2000, p.329): “Sim, de fato, as palavras sonham”.

Por entre inúmeras épocas e tempos, Adília faz seu contemporâneo,

abdica da secularização existente e opta por mesclar-se em um e outro

tempo, em um e outro espaço, em um e outro Eu. Parece que só assim

existe a possibilidade de apreensão de sua poesia, fazer-se por todos os

tempos da literatura, não enclausurá-la nunca, deixar-se ser autobiográfica e

impessoal, vivencial e fictícia. Eis Adília vestida de todos os seus possíveis

Eus.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

O percurso realizado com os poemas e a poesia de Adília Lopes, que

circulavam pelas atmosferas do Eu, possibilitou uma maior aproximação da

palavra Eu, tanto por meio da investigação sumária de sua história, como do

seu uso na literatura. Todo esse trajeto contribuiu para o discernimento e a

identificação das inúmeras maneiras de ser Eu na poesia de Adília Lopes.

Foi por meio do estudo de cada Eu, vislumbrado na história da

filosofia e literatura, que investigamos poemas da poeta e a possibilidade

do encontro de uma nova voz, mais uma maneira de dizer Eu. De um Eu

personagem e máscara chegou-se à concepção de indivíduo. Depois, a

partir de uma pesquisa dicionarística, investigamos o Eu metafísico

solidificado pela consciência. Da noção de corpo e alma, enveredamos para

a noção de Eu pela reflexão, autoconsciência como também pela ideia de

unidade ou identidade, da relação do homem consigo mesmo, e a partir daí

com o outro e com o mundo.

Assim, sem a consciência de si não existia Eu. Encontramos poemas

que muitas vezes não dialogavam com tais conceitos, pois neles se

questionava a existência de consciência em seres não humanos, mas

também encontramos poemas que invertiam os valores morais investidos

entre o corpo e a alma. Discernimos o Eu pulverizado por entre as

características e épocas literárias do romantismo, da modernidade e da

poesia contemporânea. Para cada época, encontrávamos poemas. No

romantismo, um Eu definido por uma busca de interioridade espontânea, Eu

empírico, produzido a partir de um Eu-absoluto. Na modernidade, um Eu que

já podia ser muitos, que dava vez às palavras e tornava-se impessoal. E na

contemporaneidade, um Eu que se deixa ser vivencial, circunstancial e oscila

com a impessoalidade. Todos pareciam inseridos em histórias que,

particulares ou não, deixavam o rastro do Eu ser um outro. Escapávamos

constantemente da ideia do Eu contemporâneo matizado pela multiplicidade

de papéis, fragmentado pelo vazio e pelos inúmeros agenciamentos

quotidianos. Era importante não nos prendermos a nenhum, sempre

questionando qualquer possibilidade de resposta porque exatamente a poeta

deixava em seus poemas essa permanente dúvida do ser outro, embora

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muitas vezes submerso no universo pessoal. A poeta parecia não se prender

a qualquer Eu.

Partimos então para a investigação do Eu nos gêneros literários que

se utilizam dessa partícula para existirem, não sem antes vasculharmos

conceitos como nome, máscara, pseudônimo e biografema, dado que todos,

em diferentes momentos, são utilizados em seus poemas. O uso de seu

pseudônimo, aquele que assina o livro, não poucas vezes era utilizado em

poemas, assim como o nome de pessoa real, ou um Eu personagem,

mascarado. Com o tempo o conceito de biografema parecia o mais acertado

para descrever os inúmeros indícios que a autora deixava, quase como uma

marca d’água em seus poemas. Mas sempre como indícios e não

referencialidade ou circunstancialidade, dado que um mesmo traço recebia

diferentes tratamentos poéticos em diferentes momentos de seu acontecer

poético.

A diversidade de histórias que refletem aspectos de sua vida, indícios

autobiográficos, assim como a crítica que insistia em denominá-los

autobiográficos, nos fez percorrer uma extensa definição de autobiografia e

autoficção. Era necessário comprovarmos a impressão de que seus Eus

eram sim marcados por sua vida, mas não eram sua vida. Eram fatos de um

Eu, mas também sinais da poética, da reflexão social e da história íntima das

gentes que, muitas vezes familiares, apenas criavam atmosferas íntimas

para então enveredar por ficções ou autoficções ou pseudo-autobiografias.

Ou, ainda, histórias que se embrenhavam pela literatura, como se a literatura

e suas histórias atravessassem a poeta em um e outro momento, e

imprimissem por meio do poema do outro uma nova voz também com áurea.

Diante de sua poesia encontramos alguns ou inúmeros procedimentos

que fazem uso do Eu. O Eu na narrativa, um signo sem identidade autoral.

Também o Eu na questão autobiografia, realidade e ficção. Na Autoficção,

ficção de si mesma, um Eu fragmentado, polivalente e fugidio. Diário e

autorretrato, gêneros que se comprometem a falar de si, constituídos pela

presença do outro, bichos, cenas ou pessoas. Fala dela, um Eu, por meio de

outro Eu, aquele que é uma diversidade de possibilidades.

Também encontramos um Eu modificado a partir das transformações

corporais ocorridas pelo uso de medicamentos . Um corpo que não é refém

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da realidade quando vítima de uma doença mental, e agrega espaços da

cidade ao se movimentar. Experimenta uma outra voz, a própria ou de algum

Eu. Um Eu quotidiano, feito da intimidade da casa, do estar em si mesmo e

no mundo.

Quando partimos para elencar os percursos desse Eu na poesia

adiliana, sabíamos que não seria acontecimento único, mas de alguns

escolhidos, que nos saltaram aos olhos. Entendemos que outros

acontecimentos ou evidências do Eu podem, diferentemente, ser buscados.

Uma reflexão que não cessa.

Um Eu também manifesto na Impessoalidade. Não apenas no sentido

dos modernos em que o Eu desaparece e dá voz às palavras, como também

um Eu multiplicado, polifônico. Aqui, a impessoalidade não contem um Eu

desaparecido, desrealizado ou dessubjetivado, mas um Eu multiplicado que

alicerça espaços da memória à recontextualizações poéticas, presente no

estado de poesia que se realiza em cada poema. As vivências de realidade

despotencializam as cenas autobiográficas por meio da trama ficcional em

que são inseridas, fornecendo-nos muitas vezes um jogo de imagens, um

espaço dramático, um Eu performativo que dá voz a um outro Eu. Um Eu

que pode ser Maria, o Eu da poeta e da Maria. As inumeráveis Marias, que

aparecem para dar voz a outro Eu, feito da poeta, feito da personagem da

poeta, feito pela personagem da autora, um Eu que é também uma máscara

feita de linguagem. “Mas/ a linguagem- máscara/ mascara“ (LOPES, Adília.

2009, p. 574). Mas também um Eu que se lança ao autobiográfico, todavia

não é encarcerado por ele, tem vida própria, encadeia um fluxo de

pensamentos e cenas que se libertam de memórias ao corporificarem as

palavras, ao se tornarem cores, gestos, confidencias com ar de verdade e

cheiro de fingimento. Devir e dialética, afirmado e contradito.

Consideramos que por ser plural, esse Eu se torna inapreensível. A

concomitância da diversidade de vários Eus torna esmorecida um único Eu

sujeito, pessoa. Há sempre o possível de um outro devir. Construído por

palavras, torna-se impessoal, desprovido da figura do escritor. Não um autor

morto, mas à espreita. O Eu da poeta e Maria seriam um caminho para

aprofundar tal estudo. Um Eu quântico, como quase tudo que acontece em

um tempo e em todos os tempos. Em um e outro espaço. Um Eu que é um,

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dois ou três. “Adília Lopes é água no estado gasoso e Maria José é a mesma

água em estado sólido” (LOPES, Adília. 17/06/2005).

No momento, aguardo quando Adília estiver pronta para escrever

como Maria José Oliveira, quem sabe a encontre (qual, não sei), quando for

a Lisboa e visitar Estefânia.

(a partir de Teixeira Pascoaes)

Se não

fossem

as minhas

coisas

eu não

era

a que sou

As coisas

estão

partidas

estão

perdidas

por minha

culpa

e causa

A mim

não volto

mais

Porém

sem

minha

culpa

e causa

(de partir

e perder)

eu não

era

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a que sou

(LOPES, 2009, p. 510)

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REFERÊNCIAS

Da autora:

LOPES, Adília. Antologia, São Paulo: Coleção Às de Colete, Cosac Naify/

7Letras, 2002.

LOPES, Adília. Le vrai la nuit- A árvore cortada, Lisboa: & etc, 2006.

LOPES, Adília. Caderno. Lisboa: Assírio & Alvin, 2009.

LOPES, Adília. Dobra. Lisboa: Assírio e Alvim, 2009.

LOPES, Adília. Andar a Pé. Lisboa: Averno, 2013

LOPES, Adília. Como se faz um poema? [resposta a um inquérito], In:

Inimigo Rumor: revista de poesia, n 20, Rio de Janeiro e São Paulo: 7Letras

e Cosac Naify, 2008.

LOPES, Adília. Diário Lisboeta, Jornal Público, 21/05/2011, p. 7.

LOPES, Adília. Crônicas da Vaca Fria. Público, 2001.

http://arlindocorreia.com/adilia_lopes_fria.html#A%20minha%20m%E3e%20beb%E9 LOPES, Adília. Cartas do meu Moinho. Público, 2002/ 2003.

http://arlindo-correia.com/180902.html

LOPES, Adília. Entrevista de Adília Lopes conduzida por Carlos Vaz

Marques, In: Diário de Notícias, Lisboa: 17/06/2005.

http://arlindo-correia.com/adilia_lopes_guerreiro.html

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