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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO. PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM FILOSOFIA. Carolina Ribeiro Paraíso Araujo. A NATUREZA ARTIFICIAL DO TEATRO: DIDEROT E OS PARADOXOS. MESTRADO EM FILOSOFIA SÃO PAULO 2016

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO.

PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM FILOSOFIA.

Carolina Ribeiro Paraíso Araujo.

A NATUREZA ARTIFICIAL DO TEATRO:

DIDEROT E OS PARADOXOS.

MESTRADO EM FILOSOFIA

SÃO PAULO

2016

2

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO.

PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM FILOSOFIA.

Carolina Ribeiro Paraíso Araujo.

A NATUREZA ARTIFICIAL DO TEATRO:

DIDEROT E OS PARADOXOS.

MESTRADO EM FILOSOFIA.

Dissertação apresentada por Carolina Ribeiro Paraíso

Araujo, à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade

Católica de São Paulo (PUC-SP), como um dos requisitos

para obtenção do título de Mestre em Filosofia.

Orientadora: Profa Dra.: Maria Constança Peres Pissarra.

SÃO PAULO

2016

3

BANCA EXAMINADORA

______________________________________

______________________________________

______________________________________

4

Aos meus pais, pela presença, sustentação,

inspiração constante em minha vida. Leonardo pela

partilha, companheirismo e incentivo.

Graciela Deri de Codina em memória pelos

ensinamentos, sabedoria e constante incentivadora.

5

Agradecimentos.

Esta é a parte mais grandiosa para não dizer complexa, que fica ocultada, mas também

compõe esta imensa pesquisa. Aqui por meio dessas singelas palavras escorrem

emoções e vivências que jamais serão sentidas duas vezes da mesma maneira. Em cada

linha estão contidos as lembranças, memórias, caminhos, tropeços e recomeços que

constituem toda a trajetória dessa dissertação ora apresentada. Sendo assim, não posso

deixar de elevar o pensamento à magnitude do cosmos que me move, me sustenta, me

anima e fortalece a cada manhã.

Agradeço aos meus queridos e amados pais Izilda e Ubirácio pelas horas de conversas,

pelas discussões políticas, sociais, profissionais e pessoais, meus dois grandes exemplos

de vida, incentivadores e apoiadores intelectuais e emocionais, meu porto-seguro!

Ao meu irmão e melhor amigo Leonardo, o qual se faz presente em todos os momentos

de minha vida, pelo apoio, incentivo intelectual e zelo, além das muitas horas de

conversas “gastas”, discussões infinitas, risadas, brigas, intercâmbio de ideias e

amizades, pelas dicas culinárias, pelos conselhos, pelas piadas, por me ensinar tanta

coisa, com sua gana e leveza agrega sempre mais coisas, agradeço também a Bruna

(cunhada e amiga) pelas conversas, dicas e acolhidas sempre pontuais, que veio somar

para as interações e discussões familiares.

A minha família de longe e de perto, pela torcida e amorosidade, em especial à Camila e

Juliana pelas singelas e grandiosas contribuições.

A caríssima Profª e orientadora Dra. Maria Constança Peres Pissarra, que muito

auxiliou, incentivou e generosamente contribuiu para essa árdua e prazerosa pesquisa,

seja em aula, nas reuniões de grupo, nas conversas informais ou nas propriamente ditas

conversas acadêmicas, e até mesmo nas muitas dicas e referências, as quais colaboraram

e engrandeceram de forma eficaz na realização e conclusão desta dissertação. Assim

agradeço pela paciência, amizade e dedicação em todos esses anos, proporcionando uma

ampla discussão para minha pesquisa.

As Profas Dras: Sônia Campaner e Maria das Graças de Souza pelas valiosas e mui

criteriosas ressalvas, as quais ampliaram de maneira proveitosa as investigações ora

realizadas.

Aos professores do Programa de Pós Graduação em Filosofia da PUC-SP, em especial

às Profas Dras. Sônia Campaner, Yolanda Glória Gamboa, Jeanne-Marie Gagnebin,

Dulce Critelli e Rachel Gazola, as quais colaboraram de modo grandioso, com toda a

6

franqueza intelectual na ampliação dos meus interesses filosóficos, para um maior

aprofundamento e compreensão de muitas indagações ora adormecidas, ora ignoradas.

Agradeço ao Professor Coordenador Peter Pal Pelbart que sempre se demonstrou

disponível e atencioso para com as resoluções das questões acadêmicas.

A querida Graciela Deri de Codina em memória, professora e amiga, grande mentora,

alma generosa e com grande sapiência me conduziu nos primeiros passos da reflexão

filosófica, incentivou à pesquisa desde a graduação e contribuiu de modo pontual para a

minha formação acadêmica e continuidade da pesquisa, além de ajudar na retirada dos

véus da ignorância, contribuindo para eu vislumbrar esse mundo multifacetado e

necessitado de uma visão mais sensível e profunda.

Aos amigos que a vida me presenteou Cristian e Daryel que mesmo em terras distantes,

sempre estão por perto, com debates, risadas, intercâmbio intelectuais, culturais,

acadêmicos.

As amigas Sarah e Clarissa, pelas risadas, pelo apoio, compreensão do afastamento dos

encontros que já foram mais rotineiros, pelas dicas acadêmicas, pelas conversas de

muitos tipos, pela alegria, diversão e surpresas sempre presentes a cada encontro.

A amiga Polyana que se fez presente e alegre agregando inúmeras questões, interesses e

revoluções importantes à vida.

Ao Vinicius amigo de longa data, que contribuiu com a leitura e revisão.

A amiga Mariana pelo ânimo, pelo incentivo, pelas animadas horas de conversas,

danças e até mesmo pela tamanha compreensão das inúmeras recusadas de viagens,

festas, danças e exposições.

A amiga Aline Pereira que em uma aventura em terras longínquas, a fim de um grande

intercâmbio de ideias, pessoas e saberes, por forças do acaso a nossa rota foi um tanto

desviada e nos causou um grande choque emocional. Contudo em vez de nos causar um

grande afastamento e mal-entendidos, nos uniu ainda mais e o aprendizado não ficou

puramente acadêmico, mas sim de gestos e humanidade, a esta chamo de grande amiga-

irmã, a qual me fortaleceu e ajudou no meu reestabelecimento físico e emocional em um

momento tão delicado de minha vida.

A cada membro do Grupo Vocacional de Dança Contemporânea do Centro Cultural da

Penha, que me fez vivenciar na prática aquilo que pesquiso, em especial as mui queridas

Bianca e Daniela e ao orientador e amigo Frank Tavanti que amplia, dinamiza, acredita

e incentiva o apurar do olhar para a sensibilidade corpórea a todos os momentos. Desta

forma a alma dança em meio a profundeza de interações que proporcionadas tanto no

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palco, em rua, nos exercícios, nos fazem refletir, enfim sentir...

Aos amigos de curso que a PUC-SP e a vida me ofertaram, em especial a Patrício

Nascimento grande encorajador, leitor crítico, compartilhador nas muitas trocas de

ideias e informações, João Bosco generoso, amável e questionador, Carla afável e

anfitriã – amigos que formaram a minha primeira turma, a qual me integrei de maneira

mais que excepcional tanto intelectualmente, quanto emocionalmente colaborando para

meu crescimento humano e intelectual, hoje grandes amigos. A Adriana e Valdir sempre

muito alegres e francos. A Pedro Ciucci e Helder Mariani meu grupo predileto,

sincronia intelectual e emocional de alta qualidade, risadas e conversas sempre

corroborando para inúmeras indagações, grandiosas pessoas. A Júlio Cesar pelo

compartilhar de gosto, livros, descobertas, cafés, bolos, risadas, problemas e soluções

que a vida acadêmica e rotineira nos apresenta. A Pedro Dotto e Flávio pelas partilhas

em aulas.

Ao pessoal do grupo de estudo, Bárbara, Laura, Emanuel pelas conversas e discussões

sempre importante na formação intelectual.

A todos meus alunos, pois esses deixam um pouco deles em mim e com toda certeza

carregam uma parte do que sou. A todos vocês que a cada ano me fazem aprender,

crescer, aprimorar, buscando sempre novos modos de atingir suas mentes maravilhosas

e demonstrar o quão importante a filosofia é no crescimento intelectual de vocês,

sempre curiosos e investigadores. A vocês que sempre se demonstraram compreensivos,

generosos, afetivos e questionadores na busca do saber e também aos mais

“intrometidos”: Victor Hugo, Bruna, Gabriel, Marjory, Mauricio e Danton que leram

um pequeno trecho e fizeram suas críticas, além de aconselharem, me fortaleceram com

seus incentivos e singelezas. Agradeço do fundo do meu coração, sem saber me dão

gana e me ensinam, me animam e me contam com alegrias suas desventuras, obrigada

por me motivar a entender que sempre podemos ser melhores, que a imaginação não

tem fim, que acreditar no humano é importante e o movimento do aprendizado é uma

troca constante, por me surpreenderem a cada dia com seus questionamentos, reflexões

e vontades, por me ensinar e fazer lutar, acreditar no potencial de cada um e afirmarem

em presença que o novo sempre vem.

Aos bibliotecários da PUC-SP que sempre se demonstraram muito solidários,

prestativos em me auxiliar. Aos funcionários da Secretaria Acadêmica e do Programa de

Pós-Graduação de Filosofia por sempre se mostrarem dispostos a ajudar.

Ao meu vizinho Wanderlei “que é um DJ” com suas músicas embalou todo o processo

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desta dissertação, do início ao término, sempre animando minhas manhãs, tardes e

noites de estudos com suas músicas: dos clássicos, do jazz até o pop contemporâneo, do

brega ao chique.

A todos de perto, de longe, que contribuíram de alguma forma para constituir esta

dissertação.

E por último e não menos importante ao órgão de fomento CNPq, pelo apoio e

financiamento, ao qual foi de grande contribuição e importância para realização desta

pesquisa.

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Não penses compreender a vida nos autores.

Nenhum disto é capaz.

Mas, à medida que vivendo fores,

Melhor os compreenderás.

(Poema: Da sabedoria dos livros, Mario Quintana)

O homem é apenas o ministro ou interprete da natureza:

ele só compreende e age na medida em que tem

conhecimento, experimental ou refletido dos seres que o

cercam.

(Da interpretação da natureza - Denis Diderot, p.149)

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RESUMO

A presente dissertação tem como intuito analisar a importância do teatro no

pensamento de Denis Diderot. Portanto, buscamos como isso entender os propósitos,

aos quais o filósofo evidenciará a partir do ato representativo na França do século

XVIII. Diderot, não só propõe uma reforma no modo de fazer teatro como também nas

próprias representações teatrais. O filósofo irá formalizar uma teoria para que os atores

pudessem aprimorar suas atuações. Estas devem ser pautadas na observação da

natureza, com a finalidade de serem estudadas e representadas com a mais pura

racionalidade. Neste sentido, o enciclopedista enfatiza a artificialidade em detrimento da

natureza para existir a primazia em cena. O teatro para Diderot deveria ser e fazer o

papel de expurgar os vícios da sociedade, fazendo com que os indivíduos aprimorassem

a virtude. Além do mais as peças teatrais deveriam retratar a vida corriqueira das

pessoas e com isso propõe e inaugura um novo gênero, este seria o gênero sério ou

drama, o qual é intermediário, está entre a tragédia e a comédia.

Palavras chaves: Denis Diderot, Teatro, Ator, Natureza, Artifício,

Representação, século XVIII.

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ABSTRACT

The purpose of this dissertation is to present the importance of the theatre

according to Denis Diderot point of view. Thus, based on his thoughts, try to understand

the purposes of which, the philosopher will demonstrate from the representative act, in

France during the 18th century. Diderot suggests an improvement in the way of making

theatre, as well as in its own theatrical representations. The philosopher will determine a

theory for the actors to improve their performances. The performances should be based

on nature observation, aiming to be studied and represented with pure rationality. In this

regard, he gives emphasis to artificiality in disadvantage of nature to create perfection in

a scene. In Diderot’s point of view, the theatre should be and do the job of remove

society’s addictions and make people work on their virtue. In addition, theater plays

should approach people’s busy lives and through that he suggests and introduces a new

genre called drama and it is a genre that can be classified as intermediate, being in

between tragedy and comedy.

Key words: Denis Diderot, Theatre, Actor, Nature, Processes, Representation,

18th

Century.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO: OS MEANDROS DO TEATRO VIRTUOSO ............................13

1. 1º ATO: AS CONTROVÉRSIAS............................................................................20

1.1. Século XVIII: prenúncio de um novo modelo......................................................21

1.2. A defesa do teatro................................................................................................25

1.3. Os contrapontos...................................................................................................29

1.4. Teatro e teoria da representação.........................................................................35

2. O TEATRO MODERNO: DA NATUREZA PARA RAZÃO.............................40

2.1. Natureza e estudo.................................................................................................41

2.2. Sensibilidade, para quê?......................................................................................47

2.3. A identidade do homem-ator................................................................................49

2.4. Os imitadores da natureza...................................................................................52

2.5. Os paradoxos de Diderot.....................................................................................54

2.6. Homens e suas representações............................................................................55

3. A AMBIGUIDADE DO TEATRO.........................................................................57

3.1. O princípio...........................................................................................................58

3.2. O problema: teatro e cultura...............................................................................60

3.3. O pedagógico do teatro.......................................................................................65

3.4. O drama em Diderot...........................................................................................70

3.5. O gesto é a palavra.............................................................................................73

3.6. A constituição do gosto.......................................................................................76

Considerações Finais.....................................................................................................83

REFERÊNCIAIS.........................................................................................................88

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INTRODUÇÃO: OS MEANDROS DO TEATRO VIRTUOSO

Ao perguntar-se: o que é o teatro? – ou o que diz respeito à atuação de um

indivíduo que se postulou chamar de ator –, o leigo poderá pensar em inúmeras respostas,

que a princípio seriam pertinentes ao ato de representação. Contudo, um aprofundamento

no assunto propicia vislumbrar muito além disto. Inúmeras épocas e horizontes podem

fazer pensar nas minúcias que tais atos representativos são capazes conter, desde tempos

mais remotos até a contemporaneidade. Isto porque o teatro se faz conhecer pela sua

importância e sua maneira de interagir em diferentes épocas. Ainda que, é uma arte

representativa, de imitação, de reprodução de formas, de caráter, em um tempo ou espaço

que pode ser algo conhecido ou desconhecido, vivenciado ou fantasiado pela mente,

primeiro dos autores e, em seguida, dos atores em suas atuações. Percebe-se ainda que o

homem, desde que precisou comunicar algo a alguém, necessitou também de utilizar e

apurar a memória e a observação a fim de reproduzir para o outro o que havia vivenciado.

Ao imitar, para fazer-se entendido, já estava se apropriando do que a natureza lhe

concedia para transformar em uma personagem e encenar.

A partir desses pressupostos, pretende-se, aqui, examinar: quais as finalidades e

os motivos necessários para que o teatro, o representar, a encenação e cada cena, e até

mesmo as peças, possam agir na formação moral da humanidade? Para estas indagações

inúmeros filósofos, pensadores e artistas (autores, dramaturgos e atores) interrogaram-se

e, vez por outra, entraram em grandes pelejas a fim de sanar tais questionamentos. No

entanto, sabe-se o quão árduo, vasto e extenso são os caminhos percorridos até aqui para

compreender as minúcias que a arte teatral agregou para a história da humanidade.

Assim foi, por meio de inúmeros homens e mulheres evidenciados ou ocultados da

cena, arena, palco e até mesmo primariamente dos ritos, que o teatro foi tomando forma

e constituindo sua importância para a interação entre os indivíduos.

Nesse sentido, a presente dissertação faz um recorte pontual dentro de um

período histórico específico, que é o século XVIII, firmando-se nos desdobramentos

teóricos do filósofo Denis Diderot. Portanto, nossas indagações têm como intuito

compreender: Como Diderot formula sua teoria de representação? Quais são as

técnicas propostas por ele para o ato representativo? O que a natureza e a razão

contribuem para o teatro? Para quais fins o teatro convém?

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Para tanto, o primeiro capítulo se debruçará sobre as mudanças e as problemáticas

que estavam ocorrendo no âmbito sociocultural do século XVIII. Isto é importante na

medida em que auxiliará na compreensão diante do que sobrevinha ao teatro francês

naquele período. Neste cenário, busca-se abarcar os principais expoentes, os quais tiveram

maior contribuição e notoriedade para as modificações e transformações no que diz respeito

ao teatro francês no século XVIII, conjuntamente às questões filosóficas1. Portanto,

conjecturando as inferências que Voltaire, Rousseau e Diderot proporcionaram para a

época. Assim, vislumbrar-se-á alguns acontecimentos que dizem respeito tanto ao teatro

quanto a excertos dos pensamentos de cada um dos filósofos, ora relatados nesse capítulo.

Logo, Voltaire, como observa Matos (2001, p. 169),

(...) queria se tornar o Racine do século. Não chegou a tanto, mas, de

1718 (Édipo) a 1778 (Irene), impôs-se como o grande poeta trágico do

tempo. Os prefácios de suas peças e uns cem números de cartas revelam um completo homem de teatro: conhecia até mesmo a

delicada arte de usar as cabalas. Nos castelos em que morou, mantinha

salas privadas de espetáculo e sempre reservava para si um papel de

ator (...).

No século XVIII o gosto e a paixão pelo teatro era algo que estava em constante

evidência e abarcava desde as classes mais populares até a alta aristocracia – “dos tablados

de feira à Comédie Française”. Ressalta Matos (Idem, Ibidem): “Se consideramos ainda

que o século XVIII é um desses momentos privilegiados na história da filosofia, em que a

atividade do filósofo é medida pelo seu poder de intervenção na vida social, não é de

espantar que os maiores pensadores do tempo se dedicassem ao teatro e tivessem muitas

coisas a dizer sobre ele”.

Neste domínio, Rousseau entende que a exaltação das artes propiciava a formação

de uma sociedade corrompida. Fez, assim, críticas arrebatadoras aos modos de vivenciar as

coisas em seu tempo. De tal modo, contradisse os filósofos das luzes e seus pressupostos

de glorificação acerca da magnitude da racionalidade. Isto estava na contramão do projeto

das luzes sobre a questão do “progresso para a humanidade”. Sua contestação o afasta dos

iluministas.

1 Em suma, Voltaire pensa o teatro como a fonte para valorização dos princípios da civilização sendo, estes,

o refinamento do gosto e os bons modos em meio à sociedade. Já Rousseau, de maneira totalmente diversa,

reflete os problemas que a cultura francesa tinha, indo em sentido oposto ao êxito da virtude. Diderot, por

sua vez, compreende que o teatro moderno francês não mais condiz com o despertar das virtudes e propôs

uma reforma, teórica e estrutural, fazendo uma inferência para o modo de representar dos atores e até

mesmo às narrativas, que devem ser próximas à realidade da plateia, o que conduz para a formação moral e

à virtude.

15

Neste ponto o filósofo genebrino percebe que nesse tipo de sociedade, que foi

embrutecida pela civilidade, os indivíduos acabam por ignorar suas reais necessidades

naturais substituindo-as por um modelo artificial de vida. Isto contribuiu para fortalecer

as vaidades e orgulhos perante outrem. Por consequência de tal embrutecimento

esclarecido, “a bondade que convinha ao puro estado de natureza não era mais a que

convinha à sociedade nascente” (ROUSSEAU, 1973a, p. 270). Com isso, os bons

modos estabelecem o refinamento do gosto e, ao ver de Rousseau, também enfraquece a

moral, o que ocasiona às mazelas da humanidade.

A corrupção adivinha dos modos artificiais e da consignação do “tornar-se

sociável”. Para o genebrino, seria próprio das sociedades civilizadas refinar-se com a

finalidade de lapidar o gosto e os costumes e enxertar na coletividade ações que

promovem o vício. Portanto, verificou que tanto as ciências quanto as artes devem seu

nascimento aos vícios da sociedade civilizada.

Com todas essas críticas à sociedade francesa, assim como para seus costumes e

modos, Rousseau se depara com algo que lhe propicia mais uma crítica ao cenário francês

do século XVIII. Após tomar conhecimento da publicação do verbete “Genebra” escrito

por D’Alembert, o qual relatava coisas que a cidade não provia, entre elas companhias

teatrais e locais próprios para as encenações, Rousseau, indignado e em desacordo com o

que escrevera D’Alembert, refutá-lo-ia por meio da famosa Carta a D’Alembert. Nesta,

contestou a ideia da necessidade do teatro para fins morais e discordou em absoluto que o

teatro pode trazer benefícios à cidade, muito menos ter alguma função didática para

fortalecimento da virtude.

Por conseguinte a isso, far-se-ão algumas reflexões nas quais serão esclarecidas

como Diderot viu o teatro e suas funções em seu tempo. En passant, Diderot propôs

uma reforma para o teatro francês moderno do século XVIII. Franklin de Matos (2004,

p. 33) diz, acerca disso, que Diderot a partir de 1760, como homem de letras, interessou-

se ainda mais pelas formas narrativas. Por meio disso “compusera peças de teatro e

textos de poética, pretendendo renovar a cena francesa do tempo” (Idem, p. 41). Além

do mais, o filósofo francês ressalta os benefícios que a arte e o teatro podem agregar ao

homem, uma vez que seriam meios através dos quais os homens devem ser ensinados e

sensibilizados na constante busca da formação de um ser autônomo, justo, moral, ético e

virtuoso.

16

Esta teoria para o teatro, que diz respeito à formação do ator – em termo

diderotiano: comediante –, é destacada, nesta dissertação, no segundo capítulo. De tal

maneira, no Paradoxo sobre o Comediante, Diderot explicita a enorme importância que

suas reflexões concedem. Conforme Matos:

(...) sobre um dos dados “materiais” mais decisivos do espetáculo: o

desempenho do ator (...). O ator é gesto e voz – é corpo. Há em Diderot um motivo que quase sempre permanece subterrâneo e, às

vezes, aflora à superfície. Certamente tomando de Platão, é o tema

segundo o qual a energia do verbo depende da presença física de quem fala, enfraquecendo-se na obra escrita. Entre outras coisas, isso

explica o gosto do filósofo pela arte da conversação, cultivada nos

cafés e salões do século XVIII, forma refinada de sociabilidade, na qual ele sempre brilhava. (Idem, p.46).

No que diz respeito à “descoberta de técnicas” para a realização de certa arte –

neste caso, ao processo de constituição do ator em cena –, pode-se compreender que

Diderot postula uma teoria que, até então, “certa tradição que remonta à Poética de

Aristóteles pensava essa arte principalmente como poesia dramática, recusando-se a

reconhecer como essencial no trabalho do ator e do encenador” (Idem, p. 67). Mas é

com um olhar apurado para o teatro que o enciclopedista visava que ele fosse “resgatado

em sua materialidade e começa a ser visto propriamente como espetáculo” (Idem,

Ibidem).

Segundo o Paradoxo, o comediante deve mergulhar com profundeza nas coisas

da natureza. Somente por meio disto que o ator formula sua técnica, por estar atento ao

“modelo ideal”. Atuando sempre em consonância com sua memória e imaginação, ele

deve direcionar seus estudos em dois momentos. Matos (Idem, p. 72) complementa que,

(...) o primeiro jato, que é o surgimento da ideia diretriz, do esboço,

do ponto de partida. Enquanto esboço, esse produto do entusiasmo é

ainda informe, um “delírio”, mas, sem ele, nada começa. Mais: apenas graças a ele, “os traços característicos” do modelo ideal se

apresentam. Entretanto, cabe ao sangue frio temperar os delírios do

entusiasmo, afirma enfaticamente Diderot. Deste modo, num segundo momento, eis o gênio em presença de seu esboço: ele o compara à

natureza. Pousa alternativamente um olhar atento sobre um e outro.

Julga, deve manter-se frio para captar as insuficiências do esboço (...).

Além do mais, no Paradoxo o filósofo sustenta a teoria que para um ator ter

excelência ele precisa ser um homem de gênio, que seria aquele que tem a capacidade

de interferir no mundo a fim de cunhar a mais perfeita harmonia entre o que existe no

cotidiano e o seu apuramento racional. Desta maneira Diderot pretende que as cenas,

17

assim como o ator e seus gestos, fossem o mais próximo da natureza e de acordo com

ela.

Em poucas palavras, a um teatro da tirada, no qual as paixões se

exprimem mediadas pela razão e pelo discurso, o Filho Natural opõe

uma dramaturgia das inflexões e dos gestos, onde estes expressam diretamente uma energia primitiva, à qual a cena deve dar voz; contra

uma estética que pensa a arte como imitação das obras do passado,

Diderot insiste na concepção que tem a arte como um confronto

sempre renovado entre o artista e à arte maneiristas, Diderot opõe um ideal naturalista de arte (ou, no mínimo, deixa de tomar qualquer

precaução para não parecer naturalista). (Idem, p. 81).

Para tanto, Diderot pretende que o “grande comediante” combinasse natureza e

arte a fim de, garantir-lhe uma igualdade na formulação de todos os papéis por ele

representado. Neste âmbito, Matos (Idem, p. 82) afirma que “Se a natureza sem a arte

não pode fazer um grande comediante, inversamente a arte sem a natureza só formará

um comediante passável”. Em Pensamentos Soltos de 1767, Diderot (1799, p. 152-153)

diz o seguinte:

A natureza comum foi o primeiro modelo da arte. O êxito da imitação

de uma natureza menos comum fez sentir a vantagem da escolha; e a

escolha mais rigorosa conduziu à necessidade de embelezar ou de

juntar num só objeto as belezas que a natureza mostrava esparsas num grande número. Mas como estabeleceu-se a unidade entre tantas partes

emprestadas de diferentes modelos? Isto foi obra do tempo.2

No entanto, a arte e o ator não devem ser escravos da natureza, mas sim seus

discípulos. Assim como pretendia Diderot (Idem, p.166): “Iluminai vossos objetos

segundo vosso sol, que não é o da natureza; sede discípulo do arco-íris, mas não seu

escravo”. Contudo, Matos (2001a, p. 02) alerta para o seguinte: “Salão de 1767, os

Pensamentos soltos, o Sonho de D’Alembert e o Paradoxo sobre o comediante, as

ênfases já não serão as mesmas. Diderot abandona o elogio da sensibilidade e passa a

insistir no ‘fazer’ do artista: sua atividade será antes ‘sangue-frio’ que ‘entusiasmo’ e a

grande qualidade do homem de gênio já não será a ‘sensibilidade natural’, mas a

“observação”.

Não obstante, o terceiro e último capítulo tratará acerca de alguns pontos que

diferenciam, e de certa forma também unem, Rousseau e Diderot. As críticas que

Rousseau faz sobre o teatro moderno da França do século XVIII, especialmente a partir

2A tradução deste trecho de Pensamentos Soltos foi realizada por Franklin de Matos e está presente tanto

em A cadeia da guirlanda (2000, p. 03) quanto em O filósofo e o comediante (2001, p. 119).

18

da Carta a D’Alembert, serão relevantes para um dos complementos da crítica intentada

nesta dissertação. Para que isso se faça possível, será preciso retomar a crítica de

Rousseau, em sua Carta, ao verbete “Genebra”, constante na Enciclopédia, de

D'Alembert. Segundo Franklin de Matos (2001, p. 187-188),

(...) a Natureza para Rousseau é uma ideia reguladora que jamais pode

ser apreendida absolutamente (...) a ideia reguladora de vontade, que está “para além de qualquer representante”, mas funda a escala que

mede as formas de governo e as situações políticas concretas segundo

o grau de aproximação ou afastamento em relação à vontade. (...) Se projetarmos o mesmo princípio formal sobre a Carta a D’Alembert,

compreenderemos melhor as nuances do seu juízo sobre os

espetáculos.

Para Rousseau, então, o teatro francês era ilusionista e separa de maneira

incisiva o público da plateia. Desse modo, subentende-se que no teatro existe um

afastamento brutal em relação à unidade da natureza. Porém, na festa cívica isso se faz

de outra forma, já que ela é agregadora, uma vez que, o espectador também é partícipe:

ator e ao mesmo tempo o próprio espetáculo. Neste âmbito, Prado Jr. (1975, p.9-10) diz

o seguinte:

(...) não é a estreiteza do moralismo de Rousseau que o opõe aos

Filósofos, e que estaria na origem de sua condenação do teatro: para

Diderot, colocar o teatro a serviço das Luzes corresponde a fazer dele a expressão de uma ética bem próxima à de Rousseau. (...). Esta

convergência transparece claramente no esquema da história do teatro,

tal como o reconstituem Rousseau e Diderot. Dando, com efeito, à natureza uma função paradigmática, reconhecendo no teatro antigo a

expressão mais “natural” da poesia dramática, Rousseau e Diderot se

encontram na crítica do teatro moderno. Este apenas guarda algumas

formas do teatro antigo, mas perdeu o essencial, longe da vida que o animava. Não é o “progressismo” de Diderot que o impedirá de assumir

por sua vez, e com Rousseau o tema da Idade de Ouro (...).

A compreensão de Diderot, ao que diz respeito a uma nova maneira de entender

o teatro, tinha relação direta com o modo em como se constitui e desenvolve o ato de

encenar, e também manter e lapidar o gosto e a moral da população. Isto somente pode

ser efetivado tendo em vista que, o teatro corrobora com a virtude além de auxiliar no

viés pedagógico, que visa à educação moral do público.

No Discurso sobre a poesia dramática, obra que problematiza e contribui para

destacar a constituição de um novo gênero defendido por Diderot. Desta forma o novo

gênero é intermediário, está entre a tragédia e a comédia: o drama. Acerca disso, Matos

(2004, p. 47) diz: “(...) com Diderot, a conversação deixa o espaço da corte e ganha

19

interiores burgueses. Se Voltaire evoca as diversas rodas aristocráticas às quais

pertenceu, Diderot familiariza o leitor com grupos cuja importância se funda apenas no

mérito intelectual ou moral.” Assim sendo Diderot afirma, como reitera Matos (Idem, p.

75), “que um autor deve ‘entrar furtivamente’ e não ‘de viva força’ na alma do leitor.”

Neste caso o drama fosse representado, ou sendo como obra literária, era uma ação

pedagógica que se postula no mais íntimo do humano.

Diderot pretende explicitar as distinções entre as “máximas morais” e a “ação”.

Esta última Diderot atribui a Richardson. Portanto, segundo Matos (Idem, p. 77) “A

máxima (...) é a regra de conduta abstrata e geral, e, por isso mesmo, cabe-nos fazer

aplicação (...) a ação imprime em nosso espírito uma ‘imagem sensível’ pondo-nos

diante de exemplos vivos, de carne e osso (...). Como se vê, neste caso não nos cabe

fazer aplicação alguma, feita pela ação de outrem: o romance pode-se dizer, é moral

‘aplicada’ ”. De tal modo, como almeja Diderot, os temas no drama devem ser

condizentes às realidades cotidianas dos indivíduos e fazer com que a imagem sensível

apresentada fosse tão realista que qualquer um pudesse se colocar em lugar, ou ao lado,

do fato ou pessoa.

Por fim, o filósofo, como distingue Matos no prefácio do Discurso sobre a poesia

dramática, “ensina a elaborar o plano de uma peça, ali a dominar o diálogo, o monólogo,

a exposição, o ato3, a cena e mesmo o entreato

4 (...) mostra como desenhar os caracteres e

por que razão se deve esquecer o espectador” (DIDEROT, 1986, p. 24). Todas estas

considerações do enciclopedista contribuem para “(...) firmar a aliança entre o romance e

a moral (...) é preciso se demorar nas minúcias e banalidades que as anunciam, sem as

quais não há identificação e ilusão; e ainda usar a forma sinfônica do romance epistolar

(...)” (MATOS, 2004, p. 94). Todos estes elementos têm relação direta com a reforma

teatral, a qual ambiciona Diderot.

Em suma, o universo de Denis Diderot, juntamente com seus paradoxos e

pretensões de inovação para seu tempo, faz perceber que é preciso manter-se em

constante vivacidade para o ato de indagar-se.

3 “Os atos são as partes do drama. As cenas, partes dos atos. O ato é uma porção da ação total do drama. ”

(DIDEROT, 1986, p. 88). 4 “Chama-se de entreato o espaço de tempo que separa um ato do seguinte. Tal espaço de tempo é variável; mas

já que a ação não se interrompe, é preciso que o cessar no palco, o movimento, continue nos bastidores. ”

(Idem, p. 90).

20

1. 1° ATO: AS CONTROVÉRSIAS.

Um certo tipo de atuação humana no século XVIII foi vista por alguns filósofos,

como é o caso de Jean-Jacques Rousseau, como um problema que o progresso5 causou,

por evidenciar os vícios e o luxo e esquecer os valores e hábitos virtuosos que mantem

uma sociedade em maior harmonia. Por outro lado, encontra-se outros filósofos, como

Voltaire, que enfatiza com veemência que o gosto apurado e o luxo são próprios da

nova ordem e necessários para a manutenção da polidez6 de um povo civilizado.

Queremos com isso ponderar sobre um grande pano de fundo, para as questões

pertinentes ao teatro e suas inovações para o ato representativo no século XVIII francês.

Desta maneira, intentamos compreender e analisar acerca de assuntos centrais que

proporcionam o engajamento de Denis Diderot na busca de uma reforma do teatro

francês “moderno”; assim como os modos de compor, fazer e atuar nos palcos.

De tal maneira, propõe-se reflexionar de modo amplo, sobre as contribuições e

críticas que alguns pensadores tiveram ao pensar o teatro. Voltaire, Rousseau e Diderot

são os expoentes que nos ajudam a compreender os fatos ocorridos, na França do século

XVIII, que dizem respeito à cena teatral, assim como seus efeitos em meio ao público,

inovações propostas pelos pensadores da época, além das mudanças que promovem

inúmeras discussões, tais como as modificações no rumo das formas, temas, as maneiras

de fazer e de representar dos atores. Destarte, o primeiro capítulo recria a atmosfera

histórica, social e cultural que valerá como base de contextualização para os capítulos

subsequentes. Neste âmbito, os demais capítulos têm como intuito compreender o que

diz respeito ao teatro, já que este era um tema corriqueiro e indissociável da filosofia no

séc. XVIII.

5 Termo que Rousseau utiliza para se referir ao ideal iluminista de civilização, segundo o qual se designa,

pelo progresso, a sociedade como algo superior – fato que Rousseau contesta. 6 Voltaire enfatiza o luxo e a polidez como algo essencial de uma sociedade melhor, uma vez que o

refinamento, os modos, gestos e gosto são próprios do homem esclarecido que sabe viver em sociedade.

21

1.1. Séculos XVIII: prenúncio de um novo modelo.

O poeta é imitador, como o pintor ou qualquer outro

imaginário; por isso, sua imitação incidirá num destes três

objetos: coisas quais eram ou quais são, quais os outros dizem

que são ou quais parecem, ou quais deveriam ser (...).

(Poética – Aristóteles)

O século XVIII foi o momento em que o teatro e a ópera se abre para o grande

público. Com a abertura pública, por meio da venda de entradas, os aristocratas e seus

convidados passam a não ter mais acesso exclusivo a esses eventos sociais. Do mesmo

modo, houve também uma maior visibilidade e circulação das pessoas em relação à

prática dos passeios em parques, que eram apenas costume das elites, tornando-se um

costume corriqueiro entre toda a população. Assim, a sociabilização torna-se maior e

visível, não mais restrita a pequenos grupos privilegiados. A ocupação do espaço

público pela população foi importante na medida em que acarreta para a transformação

dos modos de vida.

A vida pública postula a transparência; ela pretende transformar os

ânimos e os costumes, criar um homem novo em sua aparência,

linguagem e sentimentos, dentro de um tempo e de um espaço remodelados, através de uma pedagogia do signo e do gesto que

procede do exterior para o interior. (PERROT, 2009a, p. 14).

A imagem do homem público pode ser visualizada por analogia, no ator teatral,

isto por ser um ente público atuante em sociedade, fossem suas funções comerciais,

políticas ou culturais. Esta imagem, no século XVIII, era bem definida, por ser algo

declarado, aberto, comum e direto, visto que as condições materiais e ideológicas da vida

pública – separação entre vida pública e privada – passaram a se diferenciar após a queda

do Antigo Regime.

Mais que o bairro, é a rua que constitui o espaço de conhecimentos por onde passa a fronteira do secreto. Seu epicentro são as lojinhas,

com seus códigos de cortesia, seus presentes e retribuições. Alguns

personagens são essenciais, vigias, confidentes e testemunhas: a

22

padeira, e principalmente o merceeiro (...). O bairro, mais complexo, é

a introdução à cidade, onde se abrem outras práticas de privatização.

(PERROT, 2009, p. 161).

O homem portanto, passa a atuar em sociedade de maneira que, se reveste de

múltiplas personagens para adentrar e se incluir nas relações estabelecidas neste novo

tempo, do grande palco – o mundo. Segundo Sennett, o mundo como um palco era algo

prosaico de se ouvir em meados do século XVIII, e por meio das funções clássicas do

imaginário do theatrum mundi, que consiste em separar natureza humana da ação social,

fazendo uma divisão entre ator e ação. O fato é que, na visão do senso comum, o

homem como ator é um indivíduo que bastaria mudar de comportamento para não ser

julgado tão cruelmente por quaisquer que fossem seus atos: “ele não nasceu para o

pecado, ele incorre em pecado se acaso representar o vilão.” (SENNETT, 2001, p. 141).

Esse homem se liberta do fardo do pecado original, fazendo a separação entre sua

natureza e suas ações. Neste sentido, “diversão, tolerância cínica, prazer na companhia de

outros amigos, estes eram os timbres de sentimento contido na noção que se tinha na vida

diária sobre o homem como ator.” (Idem, p. 142). Isto faz com que o homem público

pudesse ser visto como ator. No entanto, esta imagem, ainda que evocasse no homem

público o ator, é incompleta, “uma vez que por detrás dela, conferindo-lhe substância, há

uma ideia mais fundamental: trata-se do conceito de expressão como apresentação de

emoções. A partir deste, chega-se à identidade do ator. O ator público é o homem que

apresenta emoções. ” (Idem, p. 138).

Desde a antiguidade7 mais remota o ato de representar tipos, jeitos, gestos e

formas se fez necessário entre os povos. Além disso, o teatro também teve como função

o desenvolvimento da comunicação8 entre todos os homens e suas sociedades. Após

7 “Como na pré-história não havia escrita, ninguém sabe exatamente como as coisas aconteciam, mas

podemos imaginar, por exemplo, que a princípio todos os membros da tribo executassem em conjunto

todo o ritual. Um dia, no entanto, aparece um indivíduo dotado de um talento muito especial e se mostra

capaz de expressar os anseios de toda a sua comunidade. Esse indivíduo, de início, representa ou imita

tudo o que é desconhecido, e com o passar do tempo se verá que, na verdade, ele é a semente da qual

nascerão o sacerdote, o filósofo, o médico, o poeta e ... o ator. Para esse indivíduo poder representar, de

forma convincente, o espírito ou o deus cultuado no ritual, aparece um elemento fundamental para o nascimento do teatro, que é a máscara. No caso do ritual (e muitos, bastante primários, ainda podem ser

vistos em tribos primitivas), a fim de os outros acreditarem que ele representa um deus, o indivíduo que o

realiza tem de perder sua individualidade. É por isso que ele usa uma máscara, ou, melhor ainda, cobre

todo o corpo, a fim de parecer à figura da força desconhecida a quem é dirigido o culto (...). Como o

espírito ou deus é apresentado, no ritual, por meio de sua suposta imagem, já temos aí o que no teatro será

um personagem, e o diálogo o apresentado falando em sua própria pessoa com outros deuses ou espíritos,

ou representantes da população. Com o tempo, o ritual adquire uma forma a ser sempre repetida, que vai

constituir a ação, a pedra fundamental do teatro”. (HELIODORA, 2008, p.10) 8 “Quando um homem mostra sinais de indignação ou cólera, os observadores, por via de regra, não se

23

muitas transformações e reformas sociais, políticas e de interesses diversos, chegamos

ao século XVIII, momento no qual acontece, entre outras coisas, a ascensão política da

burguesia. O século XVIII inicia-se com a monarquia francesa ainda em grande

esplendor e termina com a Revolução Francesa. Neste contexto de grandes ebulições, o

teatro adquire maior visibilidade e continua a ser alvo de inúmeras influências sociais,

políticas e morais. Como relata Barbara Heliodora, a primeira vez que o teatro reflete

que os tempos estavam em grande reforma foi em 1707, especialmente com peças

escritas por Alain-René Lesage. A peça Turcaret ou le Financier (1709), por exemplo, a

qual tem Tucaret9 por protagonista, denuncia as mazelas da sociedade da época.

Ao mesmo tempo, como relata Carlson (1997), o enfoque do teatro fora

direcionado para algo individual e não mais social, e os gêneros teatrais sofreram uma

modificação. Por conseguinte, o drama acabou substituindo a tragédia. No entanto, no

romantismo o teatro voltava-se para o ser humano, as peças falavam sobre emoção, e

surgia o melodrama10

. O teatro passa a ser frequentado pelo povo e aquela realidade – de

um teatro voltado para temas individuais – foi se modificando. A burguesia começou a ser

sentem encolerizados, se bem possam sentir-se divertidos ou amedrontados. Mas se um homem descreve ou representa, de certo modo, uma situação calculada para suscitar indignação (como, por exemplo, um

caso de flagrante injustiça0 e o faz de maneira a patentear o seu próprio sentimento de indignação, poderá

despertar indignação nos ouvintes. Este é o despertar da emoção por “infecção, para usarmos a expressão

de Tolstoi. Quase todas as teorias emocionais da arte giram em torno desse ponto. A ingênua concepção

da arte como instrumento do despertar emocional tem sido fundamental na maioria das discussões da arte

segundo pontos de vista educacionais ou sociológicos e foi a concepção que mais prevaleceu na

Antiguidade (...). Essas tórias põem ser classificadas de teorias de “contágio”: o artista expressa sua

própria emoção ou atitude emocional e o faz de maneira que evoca no público uma atitude emocional e o

faz de maneira que evoca no público uma atitude emocional idêntica em relação à situação que ele

apresenta. Mas a intenção de despertar emoção não é uma concomitância necessária da expressão. Seria

difícil dizer se, em Guernica, Picasso estava expressando, em primeiro lugar, o seu ódio e indignação contra as atrocidades da guerra ou se era seu propósito, primeiro que tudo, despertar nos outros essas

emoções. As teorias da cominação da arte devem ser classificadas, em geral, de teorias instrumentais,

porque presumem que a função central da arte é favorecer uma espécie de comunicação entre os homens

e porque, como padrão para avaliar obras de arte, aplicam o estalão da eficácia no comunicar a emoção ou

a experiência. Usa-se “comunicação” com um significado diferente em diferentes tipos de teorias da

comunicação. Presume-se, às vezes, que se trata de induzir o público ou o observador a experimentar

realmente a emoção, o sentimento ou estado de espírito com que se relaciona a obra de arte. E essas

teorias de induzimento emocional podem visualizar uma experiência efêmera e divertida de emoção, um

intervalo não muito sério entre uma influência permanente e importante sobre o caráter e a personalidade

das pessoas que entram em contato com a obra de arte. Nos dois tipos de teoria, mas, sobretudo no último,

o padrão de eficácia costuma ser completado por uma avaliação moral do efeito. (OSBORNE, 1968, p.224-5). 9 “A intriga ao mesmo tempo expressa e denuncia a importância do dinheiro para subir na vida, algumas

vezes por negócios escusos, outras por meio de casamentos interesseiros, ou mesmo por extorsão ou

suborno. A peça é bem armada e faz uma crítica severa aos hábitos da época, pecando apenas por ser um

tanto pesada.” (HELIODORA, 2008, p. 75). 10 “Outro indicador da busca de um novo público em um novo tom é o aparecimento da chamada comédie

larmoyante, ou ‘comédia lacrimejante’, criada por La Chausée, que atraía um público muito mais popular, de

comédia melodramáticas, de um tom semelhante aos das telenovelas brasileiras de hoje em dia.”

(HELIODORA, 2008, p. 76).

24

maioria nas plateias e o teatro passou a mostrar as realidades burguesas com temas como

a vida social, o casamento, o dinheiro, entre outros. As representações também

começaram a ser mais naturais, apresentando personagens que caracterizavam pessoas

comuns, mais próximas da vida real.

Em seu livro, Teorias do teatro, Carlson afirma que o teatro francês do começo

do século XVIII foi em grande parte semelhante ao modelo do final do século XVII,

quando a influência do classicismo ainda estava latente, no que diz respeito às suas

preocupações e enfoques. Ainda assim, as observações realizadas na primeira década do

século eram feitas majoritariamente, pelos dramaturgos profissionais que estavam

relutantes em se afastar de um modelo tradicional ou aos que foram propostos por seus

sucessores com Molière e Racine.

A tragédia é compreendida com um gênero superior à comédia, mesmo tendo

como principal expoente do gênero comédia o ilustre dramaturgo Molière. Carlson

enfatiza que para compreender algumas discussões realizadas sobre o teatro, as quais

foram de alcance amplo para a sociedade do século XVIII, Jean Dubos apresenta, em

Reflexões críticas sobre a poesia e a pintura, um entendimento com a mesma visão de

Descartes, compreendendo que a arte deve servir de estímulo às emoções. A tragédia

sendo superior à comédia, por ir mais fundo no que diz respeito às emoções, envolve-as

grandemente. Piedade e terror são emoções mais elevadas, segundo o autor, do que

aquelas que ele considera inferiores, como o divertimento e o escárnio.

Para sentir essas emoções, o espectador deve identificar-se até certo

ponto com o seu herói, que por isso mesmo nunca pode ser um homem mau, mas alguém estimável que seja excessivamente

castigado pelos seus erros. Certo distanciamento é também crucial

para impedir que essas emoções fortes provoquem a dor. Assim, as

tragédias devem decorrer em tempos e lugares remotos e envolver personagens um tanto separados de nós. Isso não apenas permite ao

espectador sentir as emoções trágicas de maneira segura como

contribui para outra emoção fundamental no gênero: a admiração. (CARLSON, 1997, p. 138).

Carlson afirma que Dubos é um dos principais pensadores que enfatiza a

importância da arte de representar, dedicando-se ao entendimento sobre a declamação, o

movimento e o gesto. De tal modo, remonta a um teatro clássico, contando com a

técnica dos atores no que diz respeito à tonalidade da voz, movimentos e interpretação

ritmada pela música. “Em notável antecipação a Wagner, Dubos preconiza uma

subordinação similar do ator à música no teatro moderno, para garantir que mesmo os

25

atores medíocres interpretem passavelmente e para unificar a obra de arte. ” (Idem, p.

139).

1.2. A defesa do teatro.

O século XVIII foi um momento de ênfase da civilização. O espaço público

permitia aos cidadãos uma presença mais ativa perante o outro. O aparecer diante da

sociedade e as luxurias se faziam presentes entre a burguesia que estava em constante

ascensão. Diante disso, Voltaire relatou, no cerne de suas discussões, a importância do

ato de parecer, do requinte, da constituição de uma polidez e dos modos de agir perante

o outro, nos quais todas as regras sociais e da etiqueta estão ligadas em conjunção à

moral. Segundo Voltaire, estas seriam as marcas do homem que tem “modos e

etiqueta”, uma vez que este só pode ser o sujeito que já faz parte de uma coletividade e

sabe conviver com as regras e costumes da civilização. Este homem para Voltaire, é o

sujeito próprio do progresso, que está distante das barbáries, da rudeza e dos maus

hábitos que somente atingem os povos sem um refinamento de cultura, tese que também

apresenta em O Mundano11

.

Os nativos dizem que eu tomo o partido dos burgueses; os burgueses

creem que eu tomo o partido dos nativos. Os nativos e os burgueses acham que eu tive muita deferência para com o conselho. O conselho

diz que eu tenho muita amizade com os nativos e os burgueses. Os

burgueses, os nativos e os conselheiros não sabem nem o que querem

nem o que fazem, nem o que dizem. (VOLTAIRE, 2011, p. 132).

Voltaire, no Ensaio sobre a moral e os costumes, atenta para o fato de que, ao

observar os costumes dos príncipes, também se podem julgar os costumes e ações da

população. Além disso, ao notar atentamente os príncipes, podem-se compreender suas

ações e costumes como reflexo de seu tempo e cultura.

Para Voltaire, luxuria não é algo pecaminoso ou que deve ser banido ou

desprezado, assim como queriam as ideologias firmadas pelos clérigos. O filósofo

11Segundo o que afirma Guislain e Tafanelli: “O Mundano (1736) é um poema didático que recebe o louvor do amor e da civilização expressa nas Cartas Inglesas de 1734. Voltaire opõe Fenelon, autor de

Telêmaco (1701), contrapondo Rousseau, assim glorifica as paixões e os bens materiais contra a opinião

dos moralistas do século anterior, como Pascal , La Rochefoucauld ou Bossuet. Ele ridiculariza a tentação

de Eva e a expulsão do Éden, reduzindo a Bíblia para alguns mitologia. A dimensão anti-clérica do texto,

em vez de ser apenas provoncante , causou um escândalo quando foi publicado”. (GUISLAIN;

TAFANELLI, 2005, p. 95). Condorcet escreve a “Vie de Voltaire” contido nas Obras Completas de

Voltaire, e reitera dizendo que, no poema O Mundano, “Voltaire queria mostrar como luxo suaviza as

maneiras, animando a indústria adverte alguns dos males decorrentes da desigualdade fortunas e a dureza

dos ricos”. (VOLTAIRE, 1817, p. 23).

26

defende que a civilização lapida o homem, e considera parte intrínseca do espírito deste

homem civilizado o refinamento do gosto, do gesto, do conhecimento e da razão. Tudo

isso se torna condição da plena harmonia social. Assim sendo, no poema O Mundano,

Voltaire segundo Guislain e Tafanelli (2005, p. 95) analisam que:

(...) Este poema argumentativo assim como livros didáticos,

polêmicos e satíricos, louva e alterna as necessidades do luxo, além de trazer novas ideias de progresso e crítica do passado, particularmente

ao que diz respeito ao Paraíso e virtude primitiva “o paraíso terrestre é

onde estou12

” para Voltaire, a felicidade não está na utopia rural(...)13

Para Voltaire é próprio do homem que saiu de um estado de rudeza, de

barbarismos, de brutalidade, ou seja, de um estado de natureza de ser o “bom

selvagem”14

, para formalizar uma transformação sociocultural, uma vez que é própria

dos pensadores iluministas que a sociabilidade seja uma representação; melhor dizendo:

seria uma tendência inevitável da natureza humana ser e constituir-se em sociedade.

Portanto, os modos de vida se fazem com o outro e a necessidade de saber se portar em

comunidade em função das regras sociais. No entanto, a civilização não fica satisfeita

apenas com as condições que a natureza oferta. Neste sentido, seria necessário um

refinamento dos hábitos, costumes e modos de interagir com o mundo natural. Por isso,

a civilidade traz consigo a apuração dos sentidos, do paladar e apreciação para todas as

coisas que irão exigir dos indivíduos conhecimento, gosto e requinte. De tal modo, “Ao

se ocupar da história, Voltaire investiga a religião, a ciência, a filosofia e a arte, ou seja,

o conhecimento que os homens elaboraram e que tornou possível a convivência entre

eles, ou seja, a formação de uma sociedade: suas instituições, crenças, filosofia, arte e

ciência” (LEAL; OLIVEIRA, 2004, p. 49).

Todas essas questões para Voltaire, só se tornam possíveis porque o indivíduo

adquire com o convívio social e juntamente com o progresso técnico cientifico um

querer e um gosto diferenciado. Desta maneira, é unicamente pelo conhecimento que se

torna provável realçar todos os modos de vida. Assim como em um belo quadro, ópera,

12 Final do Poema Le Mondain: “Du paradis ont recherché la place : Le paradis terrestre est où je suis”. 13 “Ce poéme argumentatif aux registres didactique, polémique et satirique, fait alterner l'éloge du luxe et

des besoins nouveaux avec l'idée de progrés et la critique du passé, en particulier du paradis terrestre et de

la vertu primitive "le paradis terrestre est où je suis" Pour Voltaire, le bonheur n'est pas dans l'utopie

rurale à la manière de Fénelon, pas plus que dans le passe.”( GUISLAIN E TAFANELLI,2005, p. 95). 14 A metáfora do “bom selvagem” demonstra a importância que está contida no pensamento de Rousseau,

onde as qualidades dos sujeitos que viviam em um estado de natureza são superiores aos da civilização que

tanto a filosofia iluminista quanto a política moderna visavam. Pode-se verificar mais sobre isto em O

Contrato Social, livro no qual Rousseau refletirá sobre como salvaguardar a justiça e a liberdade do estado

de natureza em sociedade.

27

música, teatro, festa, culinária, vestimentas ou arquitetura há uma total apreciação do

artista para a natureza a fim de modificá-la, transformá-la e aprimorá-la. O homem da

civilização deve ter o refinamento do gosto. Isso o faz um ser polido para que possa

saber apreciar devidamente os meandros que a técnica do artista obteve na

transformação da natureza apurando e constituindo um artifício.15

Com isso, não só o gosto, mas também o conhecimento só pode ter relação com

o homem do iluminismo, que sabe apreciar todas as coisas boas, belas e saborosas ao seu

redor, as quais foram concretizadas por meio do olhar apurado do homem do saber, o

único que alcança a possibilidade de modificar, construir e aprimorar a natureza.

Essa aparência artificial, cheia de pompas diante do outro é condenada por

Rousseau e enfatizada por Voltaire como algo que deve ser exaltada por todos. É

também a defesa, por este, de uma sociedade que busca o conhecimento, visa à técnica,

às ciências e às artes.

Nesse sentido, se pode afirmar que a educação é a base da formação da

sociedade, ou seja, é a partir da educação que se estruturam as

instituições sociais. Daí a preocupação de Voltaire com a necessidade de esclarecimento dos homens, para que sejam possíveis as

transformações que já se vislumbram na sociedade francesa no século

XVIII. (LEAL; OLIVEIRA, 2004, p. 49).

Contudo, Voltaire aparece no cenário francês e assume uma postura menos

rígida em relação à prática dramática tradicional que ocorria naquele cenário no século

XVIII. Carlson relata que Voltaire, ao retornar de sua viagem à Inglaterra após dois

longos anos, sofreu diretamente uma influência no seu modo de pensar e também em

seus escritos. Com isso, “Voltaire sustentaria que a rima se fazia necessária na França,

repetindo o argumento de que a língua menos flexível a exige e, curiosamente, usando

um dos arrazoados de La Motte, o de que os ouvidos franceses estão acostumados a

ela”. (CARLSON, 1997, p.141). Além do mais, o pensador também deseja equilibrar as

forças e as fraquezas relativas do drama francês e inglês16

.

Voltaire, tanto em sua “peça Bruto (1731), como o seu prefácio, o “Discours sur

la tragédie” [“Discurso sobre a tragédia”], desafiavam implícita e explicitamente certos

15 Diderot abordará a questão da natureza em meio ao artifício no Paradoxo sobre o Comediante.

Trataremos desse tema no Capítulo 2. 16 “As peças inglesas, embora quase sempre monstruosas, têm vigor e cenas admiráveis. Demonstram que

os artistas de gênio podem romper eficazmente com certas práticas tradicionais – como limitar o número

de atores falando a três ou banir toda ação brutal –, desde que as “leis fundamentais do teatro”, como as

três unidades, sejam observadas.” (CARLSON, 1997, p. 141).

28

pressupostos do teatro” (Idem, Ibidem). Também defende que a introdução do elemento,

ou melhor dizendo, do sentimento de amor, deve existir na peça Bruto (1731), o que não

foi bem visto pelos neoclássicos estritos. Compreendia que “como todo teatro seja esse

trágico ou cômico é “a pintura viva das paixões humanas”, o amor deve ser mostrado na

tragédia se for essencial à ação central, se for realmente uma paixão trágica e

conformar-se aos requisitos morais do gênero, “seja levando a sofrimentos e crimes,

para demonstrar quão perigosos ele é, seja cedendo à virtude, para mostrar que não é

invencível” (Idem, Ibidem).

Em dois ensaios contidos nas Cartas filosóficas (1974), Voltaire se refere tanto à

tragédia quanto à comédia. Nos ensaios o pensador fornece um desenvolvimento mais

pleno sobre as ideias pretendidas para cada um dos gêneros. Portanto, terá os ingleses

como base para críticas e comparações. De tal maneira, compreende que a tragédia escrita

por Addison é a primeira tragédia inglesa considerada a melhor entre tantas outras,

mesmo sendo uma obra fria e sem vida. Ainda, diz que os autores ingleses respeitam as

regras francesas, mas não conseguem desabrochá-las para a vida. Voltaire também louva

Shakespeare, uma vez que, este cria obras tão poderosas que, mesmo as suas falhas, são

altamente respeitadas e muitas vezes imitadas.

Ao pensar a comédia inglesa, Voltaire as considera fieis às regras, com inúmeros

personagens sutis e espirituosos, próximos ao modelo natural. Logo, tanto a comédia

quanto a tragédia possuem a finalidade, para ele, de conduzir os indivíduos a atos

moralizantes e de caráter didático.

O filósofo percebe que as lições morais necessárias à população estavam no

cerne do pensamento iluminista, nas questões da civilização, monarquismo benevolente

e religião esclarecida. Desse modo, Voltaire compreende que a verdadeira tragédia pode

ser a escola da virtude, sendo que as diferenças do “teatro purificado” e dos livros

moralistas estão na instrução, que no teatro se encontra no ato em cena, que serve de

esclarecimento para ensinar. Entretanto, a teoria dramática de Voltaire, segundo

Carlson, ainda continha um forte conservadorismo:

Um interesse algo maior no espetáculo visual (especialmente o exótico), embora não a ponto de desafiar a unidade de lugar; uma

liberdade algo maior na expressão. Embora não o bastante para erodir

a forma poética francesa tradicional; uma liberdade algo maior no assunto, permitindo que figuras da história francesa se juntem aos

gregos e romanos como temas possíveis; e uma nova ênfase no

29

emocional, especialmente o sentimental – isso, essencialmente, exaure

as suas inovações. (CARLSON, 1997, p. 143).

1.3. Os contrapontos.

Enquanto Voltaire elogia a França de Luís XIV, segundo Giani (2002), como o

momento da história em que o espírito humano mais se aproxima da “perfeição”, em

Rousseau via-se o contrário, uma vez que questiona a relação entre o renascimento das

ciências e das artes (ROUSSEAU, 1973b, p. 234; ROUSSEAU, 1973a)17

e a condição

da vida humana. Rousseau entreviu de modo crítico o progresso e todas as questões de

“civilidades”. Presumiu que as glórias que faziam com que Le Roi Soleil fosse venerado

e aclamado por seus projetos de protetor das letras, das artes e das ciências eram apenas

uma exaltação corrompida para uma sociedade que visa apenas uma falsa moralidade do

homem civilizado. Assim, combate aquela sociedade desigual, não vendo o menor

sentido e nenhuma validade em todo o esplendor que a Academia Francesa e as

inúmeras outras academias de belas-artes, de música, de arquitetura e de ciências

fundadas e patrocinadas pelo "Rei Sol” promoveram, uma vez que de nada vale a

exaltação das artes se o homem fosse corrompido por toda aquela artificialidade do

mundo civilizado.

Por tais questionamentos Rousseau começa a realizar estudos que irão

“contradizer” o século das luzes com todo pressuposto de maravilhas, as quais Voltaire

e outros filósofos ilustrados enfatizam e assumem como de grande importância.

Contesta, então, o grande projeto das luzes que propicia o progresso da humanidade,

haja vista que entre Rousseau e Voltaire existiram inúmeras correspondências em que

ambos trocaram além de informações, pensamentos e elogios. Além destes, também

teceram comentários, alguns ásperos em relação às suas divergências de pensamentos,

bem como em relação ao “tal estado de natureza”, sobre o qual Voltaire não concordava

o que tornam as cartas um divertido jogo de conhecimento e reflexões sobre este

momento.

A passagem do estado de natureza para o estado civil determina no

homem uma mudança muito notável, substituindo na sua conduta o

17 Referimo-nos aqui, especialmente, ao “Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade

entre os homens”: “(...) todos os progressos da espécie humana distanciando-a incessantemente de seu

estado primitivo, quanto mais acumulamos novos conhecimentos, tanto mais afastamos os meios de

adquirir o mais importante de todos: é que, num certo sentido, à força de estudar o homem, tornamo-nos

incapazes de conhecê-lo. ” (ROUSSEAU, 1973b, p. 234).

30

instinto pela justiça e dando às suas ações a moralidade que antes lhes

faltava. É só então que, tomando a voz do dever o lugar do impulso

físico, e o direito o lugar do apetite, o homem, até aí levando em consideração apenas sua pessoa, vê-se forçado a agir baseando-se em

outros princípios e a consultar a razão antes de ouvir suas inclinações.

Embora nesse estado se prive de muitas vantagens que frui da natureza, ganha outras de igual monta (ROUSSEAU, 1973, p. 42).

Há de se compreender, antes de tudo, como aponta o próprio Rousseau em suas

reflexões, que o estado de natureza era apenas uma forma hipotética para uma

aproximação um tanto mais pedagógica para se tratar o assunto. Sendo hipotético, não

cabe afirmar, com certeza, a existência do estado natural que pressupunha. Assim, a

condição natural primitiva, o sentimento de autopreservação que inclui o sentimento de

existência, a fome, o sexo e o instinto de defesa, conduz o homem natural a recorrer em

ações agressivas. Deste modo, mais forte que o sentimento de autopreservação, no

estado de natureza, era o sentimento de piedade, essencialmente natural, que seria

anterior à reflexão, ou até mesmo à consciência. A consciência, por sua vez, engendra o

amor-próprio, o luxo, a vaidade, a ociosidade e toda a falsa moral. Ela engendrou a

maldade e a corrupção, desde seu estado de origem, o estado de vida social em seus

primórdios.

(...) errando pelas florestas, sem indústrias, sem palavra, sem domicílio,

sem guerra e sem ligação, sem qualquer necessidade de seus

semelhantes, bem como sem qualquer desejo de prejudicá-los, talvez sem sequer reconhecer alguns deles individualmente, o homem

selvagem, sujeito a poucas paixões e bastando-se a si mesmo, não

possuía senão os sentimentos e as luzes próprias desse estado, no qual

só sentia suas verdadeiras necessidades, só olhava aquilo que acreditava ter interesse de ver, não fazendo sua inteligência maiores progressos do

que a vaidade (ROUSSEAU, 1973b, p. 262).

Rousseau18

não deixa de enfatizar as questões voltadas à educação, como uma

nova forma de um mundo engajado contrariamente em um processo histórico de

deslocamento.

Enquanto seus contemporâneos mais ativos, também tocados pela “graça educacional”, ocupam-se de “fabricar a educação”; e os

mestres do pensamento se esforçam, por meio da educação, de

remodelar o homem, tornando-o senão um humanista, um bom cristão,

um cavalheiro, um bom cidadão, Rousseau deixa de lado o conjunto das técnicas. Rompendo com todos os modelos e proclamando que a

18 Na obra Emílio ou da Educação (2004), Rousseau propõe um projeto para a formação do homem para

uma nova sociedade, a qual não seria a da França do século XVIII. Com isso quer que a educação deva

ser de acordo com a natureza, valorizando a Liberdade, bem como todo o desenvolvimento das faculdades

da criança, formando-se um cidadão pleno e feliz agindo em conformidade com a natureza.

31

criança não tem que se tornar outra coisa senão naquilo que ela deve

ser. (SOËTARD, 2010, p. 14).

Streck, refletindo sobre a questão da educação a partir do pensamento de

Rousseau, dará ênfase ao fato de que, em um sentido amplo, educar faz parte da própria

vida. Assim podemos compreender que sempre se ensinou e sempre se aprendeu uma

vez que, pode-se dizer: o aprender e o ensinar são parte intrínseca da natureza de

qualquer ser vivo. Levando em conta exemplos do próprio Rousseau, Streck nos faz

lembrar que é pela natureza que as aves aprendem a fazer ninhos, os vegetais aprendem

a se virar para o lado da luz; a vida aprende, enfim, porque ela quer ser, simplesmente, a

vida. Rousseau, então,

(...) reconhecia que, se quiséssemos identificar uma característica humana

por excelência, esta não poderia ser procurada no fato de que pesamos, porque, à sua maneira e em seu nível, também os animais pensam. O que

distingue o ser humano é o fato de ele ter a possibilidade de ser um agente

livre, e a meta da educação seria formar esse agente. Mas o que nos faz crer na própria possibilidade de educar alguém para qualquer coisa? É a

pergunta pela educabilidade que se coloca para a pedagogia no momento

em que nem o mundo nem homens e mulheres podem ser vistos como

prontos. (...) (STRECK, 2008, p. 21-2).

Rousseau compreende a natureza como a manifestação primordial da humanidade,

o estado primeiro, ou seja, o estado de natureza, isto é, entende que neste momento tudo que

existe é espontaneidade, uma liberdade que não se relaciona jamais com o que vier a ser

antinatural ou uma artificialidade. “A natureza (...) torna fortes e robustos aqueles que são

bem constituídos e leva todos os outros a perecerem.” (ROUSSEAU, 1973a, p. 244).

Segundo o filósofo, a natureza é um instrumento de salvação e organização de todos os

homens, algo que provém do estado de natureza: “A natureza manda em todos os animais, e

a besta obedece. O homem sofre a mesma influência, mas considera-se livre para concordar

ou resistir, e é, sobretudo na consciência dessa liberdade, que se mostra a espiritualidade de

sua alma” (Idem, p. 249).

O homem, no estado de natureza, vive segundo Rousseau de acordo com suas

necessidades mais legítimas, e assim é mais feliz. Autossuficiente, ele satisfaz suas

necessidades sem grandes sacrifícios, não sente grandes angústias, porque por meio do

sentimento inato da piedade ele evita fazer o mal desnecessariamente aos demais.

O homem selvagem, abandonado pela natureza unicamente ao instinto, ou ainda, talvez, compensado do que lhe falta por faculdades capazes de

a princípio supri-lo e depois elevá-lo muito acima disso, começará, pois,

pelas funções puramente animais. Perceber e sentir serão seu primeiro

32

estado, que terá em comum com todos os outros animais; querer e não

querer, desejar e temer, serão as primeiras e quase únicas operações de

sua alma, até que novas circunstâncias nela determinem novos desenvolvimentos (...). (Idem, p. 249-50).

Rousseau, no entanto, observa que a sociedade impõe ao homem uma forma

artificial de comportamento, induzindo-o a ignorar suas necessidades naturais e os

deveres humanos, tornando-o vaidoso e orgulhoso. Deste modo, o homem precisa

buscar uma maneira de conviver com os outros, além de ter uma nova forma de interagir

com a natureza. Assim, seria de suma importância entender que os homens devem agir

em grupo para a manutenção da vida. Rousseau, diz que o homem primeiramente teve

que aprender a lidar com o que a natureza lhe servia para que, assim, pudesse fazer uso

de seus bens, aprimorando-os e também os modificando a seu bel prazer. O homem,

nesse âmbito,

(...) aprendeu a dominar os obstáculos da natureza, a combater,

quando necessário, os outros animais, a disputar sua subsistência com

os próprios homens ou a compensar-se daquilo que era preciso ceder ao mais forte. A medida que aumentou o gênero humano, os trabalhos

se multiplicaram com os homens. A diferença das terras, dos climas,

das estações, (...) tudo que consomem, exigiram deles uma nova indústria (Idem, p. 266).

Nesse ponto o homem teve que compreender os mecanismos necessários para

haver uma primeira relação a fim de interagir com a natureza, dominá-la para que assim

pudesse transformá-la. Na medida em que seu desenvolvimento e observação foram

aprimorados, sua forma de domínio e superioridade perante outras espécies se faz de

maneira muito mais ampla e com consciência de seus feitos, afastando o homem da

natureza, da produção e extração de recursos naturais apenas para sua sobrevivência e

de sua família ou de um pequeno grupo. Para tanto, já se compreende uma civilização

muito mais elaborada, esclarecida, a qual via nessa produtividade a vanglória do

advento da razão.

As novas luzes, que resultaram desse desenvolvimento, aumentaram sua superioridade sobre os demais animais, dando-lhe consciência dela.

Aplicou-se a preparar-lhe armadilhas, revidou-lhes os ataques mil

maneiras e, embora inúmeros deles sobrepassassem em força no combate ou em rapidez na corrida, daqueles que poderiam servi-lo ou nutri-lo veio

a tornar-se com o tempo, o senhor de uns e o flagelo de outros. Assim, o

primeiro olhar que lançou sobre si mesmo produzir-lhe o primeiro

movimento de orgulho; assim, apenas distinguindo as categorias por considerar-se o primeiro por sua espécie, dispôs-se desde logo a

considerar-se o primeiro como indivíduo. (...) (Idem, p. 266-67).

33

De tal forma, o modo de produzir e extrair da natureza foram cada vez mais

aprimorados e tudo que era retirado seria revertido em recursos para uma maior

comodidade de vida. Assim o homem se entende em um processo civilizatório

avançado: “Quanto mais esclarecidos os espíritos, mais se aperfeiçoava a indústria”

(Idem, p. 268).

Logo após esse primeiro momento de construção de um poder diante de todas as

formas naturais, o homem, para Rousseau embrutece de um modo esclarecido. Assim

sendo, Rousseau esclarece que:

(...) as relações já estabelecidas entre os homens exigiam deles

qualidades diversas daquelas que deviam à sua constituição primitiva;

que começando a moralidade a introduzir-se nas ações humanas, e

constituindo cada um perante as leis o único juiz e vingador das ofensas que recebia, a bondade que convinha ao estado puro de

natureza não era mais a que convinha à sociedade nascente; que as

punições se tornavam mais severas à medida que as ocasiões de ofensa se tornavam mais frequentes e que caberia ao terror das

vinganças ocupar o lugar de freio das leis. (Idem, p. 270).

As ações, tanto do homem em particular quanto em sua coletividade, agora

seriam apenas possíveis ser realizadas pelo estabelecimento de regras que devem ser

cumpridas por todos, a fim de conservar e obter a manutenção da vida harmoniosa do

grupo.

Podemos, com isso, compreender que, ao se relacionar com outros homens e

obter o domínio das espécies, da natureza e se agruparem em sociedade, o homem se

aprimora, sai da sua mera experiência bruta, para se tornar o fazedor e constituinte de

coisa, interferindo em todos os locais em que houvesse necessidade de transformação,

seja em um ambiente a fim de torná-lo mais sociável, seja para seu puro prazer e deleite.

Nas críticas realizadas por Rousseau, essa forma de agir no mundo se constitui

no momento em que o homem sai do seu estado de natureza para formar a sociedade.

Assim o artifício é uma das causas que corrompe a sociedade e a torna hipócrita a tal

ponto, que não pode mais reconhecer quem realmente é o homem de bem: “as suspeitas,

os receios, os medos, a frieza, a reserva, o ódio, a traição esconder-se-ão todo o tempo

sob esse véu uniforme e pérfido da polidez” (ROUSSEAU, 1973b, p. 344). Isso se dá

porque o filósofo compreende que o refinamento dos costumes era próprio da sociedade

civilizada e próspera, a qual rompe com qualquer tipo de “ignorância” e faz nascer os

vícios sob nome de modernidade, civilidade ou sociedade próspera: “(...) as ciências e

34

as artes devem, portanto, seu nascimento a nossos vícios (...). Se nossas ciências são

inúteis no objeto que se propõem, são ainda mais perigosas pelos efeitos que produzem”

(Idem, p. 351).

Para tanto, o sujeito que se constituía a partir de todas as formas de

esclarecimento, precisa de um disfarce. Utilizando artifícios como a lisonja, a hipocrisia

e a adulação, age tal qual um bom ator, valendo-se de vários artifícios para poder

persuadir e convencer os que o cercam, normalmente demonstrando suas virtudes em

sociedade, mesmo que não fossem reais. O aparentar ser tem mais importância e maior

prestígio em relação a qualquer que fosse a real virtude do cidadão:

Para proveito próprio, foi preciso mostrar-se diferente do que na realidade se era. Ser e parecer tornaram-se duas coisas totalmente

diferentes. Dessa distinção resultaram o fausto e majestoso, a astúcia

enganadora e todos os vícios que lhes foram cortejo. Por outro lado, o

homem, de livre e independente que era, devido a uma multidão de novas necessidades passou a estar sujeito, por assim dizer, a toda a

natureza e, sobretudo, a seus semelhantes dos quais num certo sentido

se torna escravo, mesmo quando se torna senhor (ROUSSEAU, 1973a, p. 273).

Neste contexto, a partir do verbete contido no sétimo volume da Enciclopédia

(1957), o artigo sobre a cidade de Genebra, escrito por D’Alembert, provoca discórdia e

uma série de disputas e contestações, as quais desencadeam na realização da resposta de

Rousseau para D’Alembert. Deste modo, Jean-Jacques Rousseau rompe definitivamente

com os iluministas e, indignado com a pretensão dos filósofos – Voltaire e D’Alembert,

especialmente – que contrariam as leis, costumes e regras de Genebra, Rousseau escreve

a Carta a D’Alembert. Esta Carta é um ensaio que enfatizar os interesses de Rousseau e

que, segundo Carlson, foi chamada de “Enciclopédia de Rousseau”. O teatro será o tema

unificador da Carta, em especial ao que diz respeito aos efeitos que as peças causam em

seus espectadores.

Para Rousseau, como assegura Carlson, “não se pode falar em divertimentos

públicos bons ou maus em si mesmos (...) já que o homem é tão modificado pela

religião, governo, leis, costumes, predisposições e clima que não cabe perguntar o que é

bom para os homens em geral” (CARLSON, 1997, p. 146). O filósofo não compreende

quais benefícios o teatro traz para Genebra, a não ser enfatizar a corrupção, a luxúria e o

vício. Por conta de tais malefícios, Rousseau contesta e nega que a instrução fosse seu

35

grande objetivo. Por isso, no mínimo serve apenas para a diversão, opinião pública e

adulação da mesma.

(...)Rousseau nega inteiramente a doutrina da catarse, insistindo em

que o despertar das emoções não pode de modo algum remover essas

mesmas emoções (...). De fato, se quisermos aprender a amar a virtude e a odiar o vício, os melhores mestres são a razão e a natureza. O

teatro não é necessário para ensinar isso, mesmo que fosse capaz de

fazê-lo. (Idem, Ibidem).

Carlson explica que, no que diz respeito às peças representadas pelos artistas no

palco, Rousseau relaciona com a tradição moralista cristã, uma vez que entende o ator

como aquele que pratica a arte de mentir, representa falsas aparências, e isso

necessariamente cai nas amarras da corrupção. Assim, na Carta, Rousseau interroga

D’Alembert sobre as regras que são caras ao teatro, e porque os atores devem seguí-las,

se não fosse por receio da corrupção que o teatro pode causar. Por esse motivo,

Rousseau reforça que Genebra já tinha leis e regras seguras e fortes, as quais proíbe

qualquer tipo de atuação e de atores. Desta maneira, a vida social da cidade fica sã e

salva, não estando a mercê dos vícios que o teatro pode incutir nos cidadãos.

Mesmo com tantas ressalvas, Rousseau ainda pensa em um tipo de teatro que

possa existir em Genebra. Este deve “ser um teatro adequado a uma pequena república

ainda perto da natureza e da virtude – espetáculo ao ar livre com dança, ginástica e

celebração inocente por toda a população” (CARLSON, 1997, p. 147). Neste sentido

como explicita Carlson, Rousseau, concede apenas as festas populares o lugar do

“verdadeiro teatro”, por este ter em si, a expressão viva do agir popular juntamente com

a arte. Para tanto, os líderes da Revolução Francesa entrevem nos pressupostos de

Rousseau uma forma de promover grandes festivais19

para a população.

1.4. Teatro e a teoria da representação.

As críticas realizadas sobre o teatro no verbete “Genebra”, feitas por D’Alembert,

resultou na refutação de Rousseau contida na Carta a D’Alembert supracitada. Isto de nada

contribui para que a Enciclopédia continuasse a valorizar o trabalho de Diderot, o que

19 “Um século depois, Rolland e outros reviveram de novo na França esse ideal propugnado por Rousseau

de um teatro comunal populista totalmente oposto à tradição maior, que tornou a florescer no Proletcult

russo e nas teorias teatrais populistas de meados do século XX.” (CARLSON, 1997, p. 147).

36

começa a afetar o processo e a continuidade do projeto. Logo a “defecção de Rousseau ex-

colaborador do projeto de Diderot, foi um novo golpe. D’Alembert se retira, e no começo

de 1759 a Encyclopédie foi suprimida por decreto régio” (CARLSON, 1997, p. 147).

Naquele período Diderot começa a desenvolver um novo interesse, que seria a

dramaturgia. A partir de então o filósofo se dedica a desenvolver duas obras, as quais

foram notavelmente originais para época, acompanhadas de ensaios de grande

significância: O filho natural (1757) e O pai de família (1758). Ambas as obras sugerem

reformas para o teatro muito mais revolucionárias do que as propostas por Voltaire.

Diderot considera que as reformas propostas para o teatro são necessárias e se

faz urgentes, mas por conta das controvérsias entorno da Enciclopédia, além das críticas

feitas por Rousseau, a concretização das reformas que o enciclopedista tanto almejava

foram impedidas. “O impacto último de suas ideias foi enorme, mas o efeito imediato

sobre o teatro e o drama de sua própria época revelou-se insignificante.” (Idem,

Ibidem).

A teoria dramática de Diderot, pode ser encontrada no romance As joias

indiscretas (1748), um tanto licencioso, e cujos capítulos 34 e 35 trazem observações

referentes ao teatro. Por conseguinte, o prazer é tema presente nesta obra. A prevalência

sobre as regras, e a fonte de todo o prazer está contida na ilusão da realidade.

Entretanto, Diderot afirma que apesar de haver uma consciência que estivesse presente

no teatro, a representação quando se faz mais próxima à natureza sempre agradará de

modo muito mais profundo. Com isso, o teatro moderno na teoria do enciclopedista

deve ter novos pressupostos, os quais tinham muito mais relação e proximidade com o

público da época. O prazer no divertimento, nos exageros e nas luxurias não mais

seriam a essência das representações, a qual Diderot acredita.

Os interesses do enciclopedista sobre o realismo estão contidos em

Conversações (1757), em três diálogos que se dão entre “Dorval” e “Eu”, que

acompanham o filho natural. Sendo que “estes atacavam quase todos os aspectos do

teatro francês coevo como uma ofensa à verossimilhança” (CARLSON, 1997, p. 148).

As questões pertinentes à composição de uma peça teatral não foram discutidas

apenas no âmbito do texto (autor/poeta) e representação (ator), mas também no que diz

respeito à forma do fazer e aos espaços nos quais uma peça deve ser representada.

37

Também tinha grande importância, neste momento para Diderot, as minúcias que

compunham uma cena. Desse modo, o palco deve ser um local de extrema atenção por

ser o lugar em que se compõem um momento de reflexão para o público. Voltaire foi o

primeiro a remover os espectadores da arena, uma vez que, os espaços em que se

representam os espetáculos eram demasiadamente pequenos. Isto impede que os atos

sejam visualizados de maneira mais ampla. Os cenários não ficam de fora das reformas

propostas pelo filósofo. Antes eram tradicionais e feitos para ser utilizados várias vezes

e servindo às inúmeras representações. A partir das concepções de Diderot, as quais

devem ter uma nova configuração, trazendo para o teatro a arquitetura e o formato o

mais parecido com locais de circulação pública, tais como os salões.

O enciclopedista se preocupa com a unidade da peça, uma vez que deve sempre

estar ligada, a fim de favorecer a verossimilhança. Por isso, a mudança de cenários

também se faz necessária, assim como lapsos de tempo (quando houver a pausa entre

cada ato). Essas práticas foram muito utilizadas pelo realismo moderno, que seguiu

fielmente as concepções que o filósofo concebeu.

Outro ponto de grande relevância para Diderot era o formato dos diálogos

tradicionais, que ao invés de serem rítmicos, rimados e altamente autoconscientes,

devem ser como a língua cotidiana das ruas: o enciclopedista usa em suas próprias peças

frases que podem e devem ter efeitos diversos, truncados e irregulares.

Para Diderot a pantomima deve ser desenvolvida em detrimento das

declamações, assim como nas cenas em que as emoções estão afloradas. O autor deve

deixar por conta dos atores a livre iniciativa de compor a cena conforme as inspirações

lhes prouverem no momento da ação.

Ao se referir à movimentação que existe na forma tradicional do teatro, Diderot,

compreende que tal circulação em cena não parece ser algo perto da realidade: “os

atores permanecem equidistantes em semicírculos artificiais nunca ousando (...).

Diderot sugere um movimento fluido, natural, e arranjos casuais sugerindo os

agrupamentos na pintura. O coup de théatre [lance teatral] deve ser substituído pelo

tableau [cena].” (CARLSON, 1997, p. 148).

Além do mais, para o filósofo, o ensino para conduzir a uma formação moral

era de grande importância. De tal forma, “encarece também a instrução moral em

38

detrimento do prazer como o fim do drama, colocando assim seu argumento mais em

harmonia com as maneiras de ver gerais do Iluminismo. Desse modo, ele enfatiza não

tanto o prazer dado pela verossimilhança quanto sua eficácia em tal instrução”. (Idem,

Ibidem). Diderot compreende que as catástrofes domésticas ou assuntos que têm relação

com a vida diária afetam muito mais do que fabulosas mortes de tiranos ou sacrifícios

de crianças a deuses pagãos, uma vez que não mais essas histórias se conectam ao seu

tempo.

O argumento de que uma peça servirá como um exemplo melhor de virtude se estiver fundada na verossimilhança não era novo na crítica

francesa, naturalmente (...). La Mesnardière e outros mostraram-se

muito interessados por esse ponto. Tradicionalmente, contudo, essa linha de argumento tinha sido usada tanto por críticos franceses com

os italianos para justificar tipos de personagens e de situações

tradicionais e esperados. A passagem de Diderot da opinião popular

para a realidade observada como base da verossimilhança foi uma mudança significativa na estratégia desse argumento, e sem dúvida

está em débito, pelo menos parcialmente com os escritos ingleses

(Idem, p. 149).

Outro ponto de grande relevância nas reflexões de Diderot, é o que diz respeito à

moralidade e a verossimilhança. Dessa forma, o filósofo compreende que, é necessário

despertar sentimentos, os quais conduzem a plateia a vivenciar as paixões para

condução à verossimilhança. Sendo assim, sugere Diderot que, deve ser efetivado antes

de tudo, um novo gênero, que contém argumentos necessários a fim de conduzir o

público a uma real reflexão dos modos de vida manifestos. Para tanto, esse novo gênero,

que, na visão de Diderot, é o gênero sério, constituir-se-ia entre a comédia e a tragédia.

Este novo gênero tem a capacidade de retratar fatos, paixões e circunstâncias da vida

doméstica diária. Além disso, ele também necessita de assuntos novos: “suas peças se

baseariam, não nas peculiaridades de um personagem individual, mas em papéis sociais

e familiares – as preocupações da nova classe - a burguesia. O homem de negócios, o

político, o cidadão, o administrador público, o marido, o irmão ou a irmã e o pai de

família20

poderiam agora servir como centro do drama” (CARLSON, 1997, p.149).

20 Diderot empregou o último personagem sugerido em seu drama seguinte, Le père de famille (1758),

que apareceu com um “Discours sur la poèsie dramatique” [“Discurso sobre a poesia dramática”]. Nesta

peça se propõe um sistema mais formal de gêneros, criando uma espécie de espectro: num extremo, a

comédia tradicional ou alegre, “cujo objeto é ridículo e o vício”; depois, a comédie sérieuse, da qual Le

père de famille é um exemplo e “cujo objeto é a virtude e os deveres do homem”; em seguida, genre

sérieux, agora chamado drame, “cujo objeto são as nossas atribuições domésticas”; e, finalmente, a

tragédia tradicional, “cujo objeto são as catástrofes públicas e os infortúnios dos grandes. (CARLSON,

1997, p. 149)

39

A utilidade moral do drama é de extrema importância para Diderot, pois, “todas

as condições dos homens e toda instrução pública podem ser atacadas por seus abusos

da mesma forma, que Rousseau ataca atores e o drama”. (Idem, p.150). Diderot

compreende que o drama, assim como o teatro, em vez de enfatizar os erros do passado

considera a possibilidade de transformar o futuro. Por isso entende que qualquer povo

que precisa destruir preconceitos, e acabar com os vícios tem a “(...) necessidade do

drama e qualquer governo o verá como um meio eficaz de preparar para uma mudança

na lei ou extinção de um costume”. (Idem, Ibidem).

Portanto, Diderot compreende e aceita o pressuposto de Rousseau no que se

refere à bondade básica do homem, e ainda “por essa mesma razão sustenta que o teatro,

ao retratar as ações virtuosas, pode tirar o pecado do caminho em que se extraviou”.

(Idem, Ibidem).

O teatro para Diderot tem a finalidade de mexer com a plateia, despertar sua

sensibilidade. Por essa razão, o teatro tem o poder de, ao término de cada representação,

incitar os indivíduos à disposição de praticar o bem, ao contrário e mais eficiente do que

ter ouvido um rígido e severo orador proferindo regras e modos de ser que os condenam.

Neste sentido, os filósofos não devem se opor aos atores imitadores, “mas encorajá-los a

usar os dons dos céus para expressar o amor à virtude e o ódio ao vício”. (Idem, Ibidem).

40

2. TEATRO MODERNO: DA NATUREZA PARA A RAZÃO.

Denis Diderot enfatiza em seu pensamento os benefícios que a arte, mais

precisamente o teatro podem agregar ao homem, uma vez que, são meios pelos quais os

indivíduos devem ser ensinados e sensibilizados na constante busca da formação em ser

autônomo, justo, moral, ético e virtuoso. Partindo de Diderot, vemos como o teatro

representa também uma das maneiras de entender o que ocorre na sociedade francesa do

século XVIII.

Através desses argumentos o filósofo desenvolve uma reflexão do humano a

partir do teatro. Nosso intuito, portanto, pautar-se-á na reconstituição do pensamento a

respeito das relações estabelecidas por Diderot, para os modos de fazer teatro e como o

homem-ator encena no palco, assim como a formação de um público que vivencia por

meio da representação o que está presente em seu cotidiano; dito em outras palavras, o

que se vive nas esferas pública e privada – os problemas políticos, morais e familiares.

Utilizamos como base principal para nossa discussão e investigação O Paradoxo

sobre o Comediante21

, livro no qual Denis Diderot estabelece um embate entre a alma do

comediante e sua expressão, além de conduzir a uma teoria ampla de ação do ator. O

Paradoxo sobre o Comediante nos remete a inúmeras questões que dizem respeito à cena

teatral e à vida, esta no sentido de conduzir a uma ação virtuosa. No que tange ao atuar, a

natureza proporciona elementos para o comediante estudar formas, gestos e diálogos que

estabelecem um olhar crítico para a representação e também para as formas de interações

diante a constituição da civilidade, assim como o papel das artes e principalmente da

representação para o século XVIII.

O Paradoxo, também é visto por muitos comentadores e estudiosos – entre eles

Jacó Guinsburg – como uma obra que está além do plano teatral e estético porque trata

com profundidade, também de uma teoria geral da sensibilidade22

. Diderot de fato,

explicita essa análise para compreensão do homem de gênio23

: “Os seres sensíveis ou os

21 O termo comediante tem aqui a mesma conotação de ator. 22 Essa é uma das questões que está muito presente ao longo de todo Paradoxo. A teoria da sensibilidade

faz parte da formação do grande comediante. 23 O homem de gênio é aquele que tem a razão como fonte de seus estudos. Ele também é o admirador e

observador da natureza.

41

loucos se acham no palco, ele [o grande homem] está na plateia; ele é o sábio. ”

(DIDEROT, 1985c, p. 116).

Ao representar, o homem entra em contato com um mundo a partir das obras dos

autores, sem deixar de trazer suas vivências com seu meio e suas formas de relacionar-

se. Gera suas várias personagens sendo que, antes de tudo, segundo a teoria do

Paradoxo, necessitava da observação atenta para o mundo natural, já que só pela

natureza consegue retirar os modos de vida para a constituição de suas personagens.

Desta forma, a natureza oferece artifícios dos quais o ser humano se vale para

transformar, imitar, representar e agir em sociedade para formalizar uma virtude.

Para tanto, por meio do pensamento de Diderot abordamos as questões que

possibilitam compreender as indagações pertinentes ao teatro, à arte e aos modos de

lidar e entender as influências mútuas que o cidadão estava submetido em público, nos

seus espaços sociais e de socialização. Desta forma, refletimos também no que diz

respeito às técnicas, pelas quais os indivíduos devem ter enquanto atores, assim como a

possibilidade do contato com a arte dramática que pode conduzir o sujeito a ter ações

virtuosas, além de compreender o desenvolvimento das modificações no rumo do teatro

moderno francês.

2.1. Natureza e estudo.

O sentido só em parte está nas palavras,

toda sua força reside nos acentos.

(Ensaio sobre a origem das línguas – Rousseau, p. 192).

No Paradoxo sobre o Comediante, livro que se constitui de um diálogo entre o

“Primeiro Interlocutor” e o “Segundo Interlocutor”, sendo o primeiro a figura do próprio

Diderot. Ele problematiza a questão em torno do ator. O diálogo proposto pelo

enciclopedista começa por um preâmbulo retórico no qual se faz alguns questionamentos

42

aos homens que têm a função de elaborar críticas24

literárias para o cenário teatral do

iluminismo. Logo após essas observações, Diderot problematiza questões que vão de

encontro com a tese geral do ator25

. A discussão principia com a tese sobre como o ator

deve fazer uso da obra do poeta para sua representação. Quando o autor26

tem “a escrita

em estilo alambicado, obscuro, tortuoso, empolado, cheio de ideias comuns, o grande

ator27

não será melhor e um ator medíocre não será menos ruim”. (DIDEROT, 2000, p.

30). Com isso, o modo como o ator faz uso das palavras do poeta será percebida em sua

atuação, uma vez que deverá ser admirável na construção do modelo ideal. De tal maneira,

“(...) as palavras não são e não podem ser senão signos aproximados de um pensamento, de

um sentimento, de uma ideia; signos cujo valor o movimento, o gesto, o tom, a fisionomia,

os olhos, as circunstâncias dadas completam? ” (Idem, p. 31).

A natureza também deve contribuir para a formação e pode auxiliar o bom

comediante a exercitar seus estudos para dramatizar e ser o melhor, o mais fiel e

profundo provedor da interpretação, para germinar no público da plateia sensações, as

quais possam despertar a busca à virtude. Assim, “Compete ao estudo dos grandes

modelos, ao conhecimento do coração humano, à prática do mundo, ao trabalho

assíduo, à experiência e ao hábito do teatro aperfeiçoar o dom da natureza” (Idem, p.

30).

Chegamos assim, a uma das primeiras e importantes indagações levantadas por

Diderot no Paradoxo: a natureza; esta tem a finalidade de propiciar todas as qualidades

do indivíduo, para que ele possa agir em todos os meios que circular. Desta forma, o

enciclopedista afirma que a natureza tem (em sua pura essência), a capacidade de

oferecer “dons”, os quais todos os sujeitos podem usufruir. Tais “dons” podem ser as

qualidades de cada pessoa: a voz, o discernimento e a sutileza. No que diz respeito à

natureza e à sua essência propriamente dita, o filósofo inclui tanto o homem comum do

cotidiano, quanto o referido comediante, uma vez que, é por meio da natureza que as

24 A questão do crítico é um ponto de grande importância nos escritos de Diderot, e se encontra mais

elaborada no livro Discurso sobre a poesia dramática. 25 O ator ideal deve ser o que tiver observação atenta da natureza e por meio de sua análise racional, ou

seja, profundo estudo, isto é, junção necessária para conduzi-lo em ser o grande comediante. Amiúde

quem se utilizar apenas como modelos os grandes mestres, possui apenas técnica e está sujeitado aos

protocolos que variavelmente são alteráveis, eis outro tipo, o comediante imitador. Já o comediante por

natureza deve ser o que se apropria da sensibilidade e nunca consegue ser o mesmo, vai de um extremo ao

outro, este é o pior tipo na visão de Diderot. 26 Diderot desenvolve no livro Discurso sobre a poesia dramática (1986; 2005) questões sobre o crítico e

os autores e como estes podem ser aquilo que Diderot chamará “homem de gênio”. 27 Neste ponto o filósofo introduz e distingue a ideia dos tipos de atores/comediantes.

43

ações se realizam. Diz ele: “Compete à natureza dar as qualidades da pessoa, a figura, a

voz, o julgamento, a sutileza (...). O comediante imitador pode chegar a representar tudo

passavelmente; nada haverá a louvar, nem a repreender em seu desempenho. ” (Idem,

Ibidem).

O filósofo considera que a natureza só será cumprida efetivamente, se houver

concomitante a ela o estudo racional que agrega valores que são construídos por meio

da observação, assim aperfeiçoando os modos de compreender o mundo. Diderot

destaca essas ações, sobretudo, no que diz respeito ao comediante porque, dessa forma

tem o aparato que medeia às ações e o formato para que se possa chegar a exercer um

papel em cena, ou seja, encarnar uma persona28

com maior maestria, fazendo uso de

todos os atributos que a natureza pode proporcionar. Ainda vale ressaltar, que apenas

com os estudos necessários da natureza é que possibilita formalizar a construção de uma

personagem.

O filósofo aconselha que nem todos os comediantes fazem uso dos estudos para

ser grandiosos. Por isso, distingue os tipos de comediantes: de um lado está “o

comediante imitador, esse pode chegar a representar tudo passavelmente; nada haverá a

louvar, nem a repreender em seu desempenho. ” E de outro lado há “o comediante por

natureza; esse é amiúde detestável e às vezes excelente. Em qualquer gênero que seja,

desconfiai da mediocridade constante” (DIDEROT, 2000, p. 30).

28 “Ao contrário dos hindus e dos chineses, os romanos – os latinos, melhor dizendo – parecem ser

aqueles que estabeleceram parcialmente a noção à pessoa, cujo nome permaneceu exatamente o da

palavra latina. Bem no início, somos transportados aos mesmos sistemas de fatos que os anteriores, mas já

com uma forma nova: a "pessoa" é mais do que um elemento de organização, mais do que um nome ou o

direito a um personagem e a uma máscara ritual, ela é um fato fundamental do direito. Em direito, os

juristas dizem: há somente as personae, as rés e as actiones: esse princípio ainda governa as divisões de

nossos códigos. Mas trata-se aqui do resultado de uma evolução particular ao direito romano. Com

alguma ousadia, eis como posso conceber essa história. Tudo indica que o sentido original da palavra

fosse exclusivamente "máscara". Naturalmente, a explicação dos etimologistas latinos – persona vindo de

per/sonare, a máscara pela (per) qual ressoa a voz (do ator) – foi inventada logo em seguida. (Embora se

distinga entre persona e persona muta, o personagem mudo do drama e da pantomima.) Na verdade, a palavra não parece ser exatamente de origem latina, mas sim etrusca, como outros nomes em na

(Porsenna, Caecina etc.). Meillet e Ernout (Dictionnaire Etymologique) comparam-na à palavra mal

transmitida farsu, e Benveniste disse-me que ela pode vir de um empréstimo tomado pelos etruscos do

grego Ttpóawnov (perso). O fato é que, materialmente, mesmo. a instituição das máscaras, e em

particular das máscaras de ancestrais, parece ter tido por núcleo principal a Etrúria. Os etruscos tinham

uma civilização de máscaras. Não há comparação entre a quantidade de máscaras de madeira, de terracota

– as de cera desapareceram –, a quantidade de efígies de ancestrais adormecidos e sentados que se

encontraram nas escavações do vasto reino tirreno, e as encontradas em Roma, no Lácio ou na Magna

Grécia – aliás, em minha opinião, em sua maior parte de fatura etrusca. ” (MAUSS, 2003, p. 385-86).

44

Esse “ator por natureza” é o tipo que entende a arte de representar com a

máxima sensibilidade, e não faz uso dos artifícios29

necessários para compreender os

atributos que a natureza pode lhe ofertar. Desta forma, este é o ponto no qual o

enciclopedista percebe que esse tipo de ator é fraco e que consegue penetrar o público

apenas esporadicamente. Assim, é possível compreender que nem todos os atores se

encaixam no tipo ideal que o filósofo propõe e compreende no Paradoxo: “Qualquer

que seja o rigor com que um estreante seja tratado, é fácil pressentir seus triunfos

vindouros. As vaias sufocam apenas os ineptos. ” (Idem, p. 32).

Diderot ao postular a distinção entre o ator por natureza e o grande comediante,

evidencia como este último sabe representar com as devidas precisões, para que, a cena

atinja a plateia e, esta entre em um processo catártico30

, despertando para a mais pura

reflexão.

E como formaria a natureza sem a arte um grande comediante, já que

nada se passa exatamente no palco como na natureza, e que os poemas

dramáticos são todos compostos segundo um certo sistema de

princípios? E como seria um papel desempenhado da mesma maneira por dois atores diferentes, se no escritor mais claro, mais preciso, mais

enérgico, as palavras não são e não podem ser senão signos

aproximados de um pensamento, de um sentimento, de uma ideia; signos cujo valor o movimento, o gesto, o tom, a fisionomia, os olhos,

a circunstâncias dadas completam? (Idem, p. 31).

Assim sendo, é necessário para a formação do grande comediante a interação

entre a natureza e tudo que ela pode oferecer para sua percepção. Há uma boa

encenação se a estrutura psicológica do ator estiver contemplada com a sua forma de

interagir com o mundo que o circunda, ou seja, fazendo uso das suas faculdades

racionais. Todavia, como fazer uso dessa racionalidade? Como representar fazendo uso

da razão em uma cena teatral? Segundo Diderot: “(...) há na linguagem técnica do teatro

uma latitude, um espaço vago bastante considerável para que homens sensatos, de

29 É preciso agir com sangue frio, tranquilo, com a forma de estudo mais a razão se pode chegar ao tipo

ideal. 30 Na Poética, Aristóteles (1979, p. 245) diz que “É, pois, a tragédia imitação de uma ação de caráter elevado, completa e de certa extensão em linguagem ornamentada e com várias espécies de ornamentos

distribuídas pelas diversas partes [do drama], [imitação que se efetua] não por narrativa, mas mediante

atores, e que, suscitando terror e piedade, tem por efeito a purificação dessas emoções”. A catarse possui

uma relação direta com uma purificação das almas que ocorrerá através de uma grande expurgação de

sentimentos e emoções, as quais serão intrinsecamente provocadas pelas representações teatrais. Desta

forma, ao entrar em contato com a linguagem representativa do ator, e imbuído dos modos poéticos o

público se conecta as mais íntimas emoções e sentimentos, as quais emanavam dos atores no palco, até

atingir a plateia. Assim, cada um dos espectadores seria capaz de sentir juntamente com os personagens

que representavam.

45

opiniões diametralmente opostas, creiam reconhecer aí a luz da evidência. ” (Idem, p.

31-2).

Em primeiro lugar, é preciso saber contemplar a natureza, ter um olhar atento

aos modos de ser e agir das pessoas e suas interações em sociedade. Ao realizar essa

análise junto aos indivíduos em sociedade, o comediante deve conseguir retirar de cada

tipo: atitudes e gestos, para compreender a complexa totalidade de modos de ser e agir,

para depois ressaltar características específicas e exercer aquilo que já foi por ele

analisado e elaborado.

(...) as qualidades principais de um grande comediante (...) quero que

tenha muito discernimento; acho necessário que haja nesse homem um

espectador frio e tranquilo, exijo dele, por consequência, penetração e

nenhuma sensibilidade, a arte de tudo imitar, ou, o que dá no mesmo, uma igual aptidão para toda espécie de caracteres e papéis (Idem, p.

32).

Neste sentido todo o estudo para o filósofo é o principal mecanismo que o

grande comediante possui como trunfo, uma vez que, sua principal finalidade é a

constituição e elaboração de um personagem por meio da mimesis31

. O estudo deve

extrair ideias e conhecimentos do que há de mais prosaico no meio social. É pela

vivência cotidiana e observação de todas as minúcias, gestos, falas, fisionomia além da

compreensão do próprio ambiente em que esse tipo de indivíduo for encontrado, que

pode se constituir o bom ator. Este personagem é formado, a partir da ação bricolage32

,

por meio da reconstituição das partes que o homem-ator se atentar, ou se, por algum

motivo, houver um apelo da natureza para a percepção do comediante.

Se o comediante fosse sensível, ser-lhe-ia permitido, de boa-fé,

desempenhar duas vezes seguidas um mesmo papel com o mesmo

calor e o mesmo êxito? Muito ardente na primeira representação, estaria esgotado e frio como mármore na terceira. Ao passo que,

31 Conceito aristotélico cunhado na Poética (ARISTÓTELES, 1979, p. 243), também traduzido por

imitação. “O imitar é congênito do homem (e nisso difere dos outros viventes, pois, de todos, é ele o mais

imitador, e por imitação, aprende as primeiras noções), e os homens se comprazem no imitado.” Segundo

Carlson (1997, p. 36): “(...) o problema mais premente na harmonização de Aristóteles e Horácio tenha

surgido em conexão com a mimese. Vem de Aristóteles a ideia de mimese como fim em si mesmo (...) a imitação e o elogio dos homens virtuosos incitam à virtude; a representação e a condenação dos viciosos

reprimem o vício. Assim, as finalidades retóricas sobrepõem-se às finalidades estéticas de Aristóteles; o

público deve, em primeiro lugar, tirar não o prazer da unidade e qualidades formais da obra, mas sim a

instrução moral dos vários elementos didáticos. O enredo e os caracteres são sobretudo as ações ou traços

pessoais que levam à virtude ou ao vício”. 32 O bricoleur está apto a exercer um grande número de tarefas diversificadas. A regra do seu jogo é

sempre arranjar-se (...). Ele se define apenas por sua instrumentalidade e para empregar a própria

linguagem do bricoleur, porque os elementos recolhidos ou conservados em função do principio de que

‘isso sempre pode servir’. (LÉVI-STRAUSS, 2008, p. 32-3).

46

imitador atento e discípulo ponderado da natureza, na primeira vez

que se apresentar no palco sob o nome de Augusto, de Cina, de

Orosmano, de Agamenon, de Maomé, copista rigoroso de si próprio ou de seus estudos, e observador contínuo de nossas sensações, sua

interpretação, longe de enfraquecer-se, fortalecer-se-á com novas

reflexões que terá recolhido; ele se exaltará ou se moderará, e vós ficareis com isso cada vez mais satisfeito. Se ele é ele quando

representa, como deixará de ser ele? Se ele quer cessar de ser ele,

como perceberá o ponto justo em que deve colocar-se e deter-se?

(DIDEROT, 2000, p. 32-3).

Fica claro que para o filósofo, o grande ator é aquele que consegue fazer uso da

sua razão, já que sabe utilizar o discernimento para todas as ações que tiver no palco.

Este indivíduo ao nosso ver, é o homem próprio do iluminismo que saiu do estado de

menoridade e possui agora, o controle de seus atos e ações por intermédio das

faculdades da razão33

. Diderot, não obstante, demonstra como esse ator que também é

um ser social, deve fazer o uso de sua própria compreensão, para formalizar as ações

que seu ato de pensar racionalmente possibilitou. Isso se faz útil para se entender a

natureza em seus sentimentos e ações, já que deixa seus atos a cargo do entendimento

racional e não tem somente a sensibilidade como apoio central para suas ações no palco.

Portanto, o grande comediante é aquele que sabe agir de tal modo, que entende a

sua sensibilidade e os atributos que a natureza lhe serve. Tudo isso, deve ser medido e

examinado com sangue frio e discernimento para que, então, haja uma real exposição de

todos os seus sentimentos, que foram primordialmente estudados para formação de um

indivíduo que agora é personagem. Destarte, este podem sempre ser aprimorado e nunca

é escravo de uma emoção vinda apenas de um sentimentalismo, que a cena lhe confere

no momento. Logo, é minuciosamente estudado e elaborado para que se realize no

momento certo. Há nesta ocasião outro homem no palco, que consegue sair de cena e

“ser ele mesmo”, e quando quiser, volta ao personagem no tempo correto, porque tudo é

bem planejado, pensado e articulado.

33 Kant diz, em seu breve texto Resposta à pergunta: o que é o Esclarecimento?, “sapere aude” –

ousa/atreve-se a pensar –, como modo de entender que eticamente o homem precisa ser o senhor de suas

ações diante das escolhas e obrigações sociais que a civilização lhe impõe.

47

2.2. Sensibilidade, para quê?

Diderot estuda com mais profundidade a questão da gênese do ator, que se

relaciona diretamente com o trato e a análise que este indivíduo faz da sensibilidade.

Esta, por sua vez, deve ser entendida como artifício usado em cena pelo grande

comediante:

Nós sentimos; nós; eles; eles observam, estudam, pintam. Posso dizê-lo? Por que não? A sensibilidade não é quase a qualidade de um grande

gênio. Ele amará a justiça; mas exercerá essa virtude sem recolher sua

doçura. Não é o seu coração, mas sua cabeça que faz tudo. À menor circunstância imprevista, o homem sensível a perde; ele não será grande

rei, nem grande ministro, nem grande capitão, nem grande advogado,

nem grande médico. Enchei a sala de espetáculos desses chorões, mas

não coloqueis nenhum deles no palco. (DIDEROT, 2000, p. 35).

Diderot exalta a importância da constituição do grande ator, e sua teoria enaltece

que ele deve ter muita interação e nenhuma sensibilidade em suas ações. Se o

comediante dispor puramente de sensibilidade em suas representações, esgota em si toda

e qualquer forma de mostrar seu êxito nas demais apresentações34

. Faz-se necessário que

o ator não aja meramente por impulsos emocionais, mas sim, com uma contínua

observação de todos os fatos a que estão sendo submetido durante seu estudo. Com isto

pode compreender determinadas questões para uso em sua interpretação e principalmente

para o campo da imitação, na qual atua. Isto faz com que suas reflexões perante a

natureza e tudo que o cerca somem para uma melhor abrangência, desde as ações vividas

e observadas por ele até as minúcias gestuais, que cada indivíduo possui. Desta maneira,

ou seja, deve invadir o seu mundo, romper ou agregar qualquer forma, gênero e pessoa

que se queira representar. Neste âmbito, então,

(...) o comediante que representar com reflexão, com estudo da natureza humana, com imitação, com memória, será um e o mesmo

em todas as representações, sempre igualmente perfeito: tudo foi

medido, combinado, apreendido, ordenado em sua cabeça; não há em sua declamação nem monotonia, nem dissonância. (Idem, p. 33).

34 Como é o caso, por exemplo, daquilo que Diderot diz sobre o comediante por natureza: que é ardente e

uma lastima em outras apresentações. Ele não tem estudo, não utiliza de técnica, mas simplesmente

recorre as emoções do momento, as que lhe tocam a alma no ato da apresentação teatral, ou seja, quando

sobe no palco.

48

Neste sentido, cita o caso da Mlle. Clairon35

, que foi uma das mais notáveis

atrizes francesas da sua época (1723-1803). Ela, como adverte Diderot, tinha um

desempenho perfeito:

(...) ela sabe de cor todos os pormenores de sua interpretação, assim como todas as palavras de seu papel. Sem dúvida, ela fez para si um

modelo ao qual procurou de início conformar-se; sem dúvida,

concebeu esse modelo da maneira mais elevada, mais grandiosa e mais perfeita que lhe foi possível; mas tal modelo, que tomou da

história, ou que sua imaginação criou como um grande fantasma, não

é ela; se o modelo não ultrapassasse em altitude, como seria fraca e

reduzida sua ação! Quando, á força de trabalho, ela se aproxima dessa ideia o mais que pode, tudo ficou terminado; manter-se firme nele é

uma pura questão de exercício e memória. (DIDEROT, 2000, p. 33-4).

É por meio da memória segundo o enciclopedista, que o grande ator pode

desenvolver o uso de sua racionalidade. A memória possui importância vital para a

atuação do grande comediante. É ela que tem o potencial de conseguir associar a

natureza e as vivências no cotidiano, com as emoções estudadas e racionalmente

desenvolvidas pelo ator. Desse modo o estudo associado à memorização faz com que

exista um exímio imitador da natureza, porque esse ator sabe dominar a natureza das

suas emoções, além de utilizar a seu favor todas as formas e faculdades que estejam ao

seu dispor para aprimorar suas ações em cena.

Ele não será desigual: é um espelho sempre disposto a mostrar os

objetos e a mostrá-los com a mesma precisão, a mesma força e a mesma verdade. Assim como o poeta, ele vai incessantemente

abeberar-se no fundo inesgotável da natureza, ao passo que teria

assistido bem cedo ao termo de sua própria riqueza. (Idem, p. 33).

Ao representar o comediante tem que se utilizar sempre de reflexão com um

profundo olhar sobre as questões da natureza humana, imitando paciente e

ininterruptamente um modelo ideal; provido de constante memória e imaginação, será

singular e o mesmo em todas as representações. Assim, com maestria no ato de sua

recuperação de fatos mundanos transmite a quem assiste um real momento. Executa

com grande êxito seu papel, não ficando no campo de suas emoções vãs. O ator

incorpora a verdadeira essência das coisas por meio de artifícios, que são dados a partir

de sua reflexão perante a natureza, são os seus modelos ideais, os quais fortalecem sua

interpretação e seu trabalho de atuação. O artifício para Diderot se faz necessário, para

35 Guinsburg,(2000, p.33, nota 7) comenta, “Uma da mais notáveis atrizes francesas da época ( 1723-

1803), que pertenceu à Comédie e escreveu precioso testemunho da vida teatral no século XVIII, sob o

título de Memórias e Reflexões sobre a Arte Dramática.”

49

que o público compreenda a cena que o comediante quer representar. Somente desta

maneira, que o espectador será convencido.

O ator escutou-se durante muito tempo a si mesmo (...) todo seu talento

consiste não em sentir, como supondes, mas em expressar tão

escrupulosamente os sinais extremos do sentimento, que vós enganais a esse respeito. Os gritos de sua dor são notados em seu ouvido. Os gestos

de seu desespero são decorados, foram preparados diante de um espelho.

(Idem, p. 36).

2.3. A identidade de homem do ator.

Diderot percebe que o imitador atento à natureza, pode atuar e representar

quaisquer que sejam as personagens, porque tem a reflexão a seu favor, isso também,

por ser um copista de si, da natureza, de seus estudos e observador da sensibilidade e de

sua própria interpretação. A somatória de todas essas “técnicas” faz com que o ator

tenha um exímio desempenho perante o que representa. Convence o público de suas

“reais” ações e discursos no palco, desta maneira é um grande ator: “O ator está cansado

e vós, triste; é que ele se agitou sem nada sentir, e vós sentistes sem vos agitar (...) ele

não é a personagem, ele a representa e a representa tão bem que vós a tomais como tal;

a ilusão só existe para vós; ele sabe muito bem que ele não a é.” (Idem, p. 37).

Com base nos referenciais teóricos do filósofo, pode-se compreender como

distinguir um grande ator, assim como refletir a respeito das ações, atos próprios da

representatividade, as quais são encenadas por todos (atores ou não), seja no campo da

vida pública ou vida privada, ou mesmo no palco. É preciso primeiramente, haver

entendimento e ter clareza perante a questão da necessidade de saber quem sou eu e de

quem o outro é. Deste modo, forma-se uma identidade em cada indivíduo indispensável

principalmente, para o ator do palco. Esta identidade necessita da perfectibilidade em

saber conduzir suas emoções, controlar toda e qualquer ação por meio do artifício para a

realização de sua técnica perante a natureza, sem se deixar envolver demais a ponto de

confundir o eu personagem com o eu indivíduo.

Não se trata mais (...) da criatura sensível, nem do gênio entusiástico.

A sua qualidade primeira tampouco é o gosto ou o bom senso.

Homem que domina e se domina, espectador incansável e ator incomparável, é uma confluência da espontaneidade da natureza com

a finalidade do homem, entre a visão profética e a previsão cientifica –

50

encarnação olímpica e terrena do Espírito e do Universo.

(GUINSBURG, 2001, p. 116-7).

Neste âmbito elucida Guinsburg em sua análise sobre a obra Paradoxo, o

homem é mais que um ator simplista que visa o entretenimento do público: ele é aquele

que tem uma função maior; pode conduzir sua plateia a atos morais e conquistar não só

o plano moral, mas também o pedagógico, como pretende Diderot. Para tanto com a

intenção de formar um ser melhor, que possa compreender suas ações e as interações,

sua finalidade requer uma amplitude para as coisas mundanas, o que possibilita a

condução das formas de atingir o público, o qual será tocado pela sensibilidade, a fim de

despertar tons mais elevados de reflexão. Sobre isto, diz Diderot:

Refleti um momento sobre o que se chama no teatro ser verdadeiro.

Será mostrar as coisas como elas são na natureza? De forma nenhuma. O verdadeiro neste sentido seria apenas o comum. O que é, pois, o

verdadeiro no palco? É a conformidade das ações, dos discursos, da

figura, da voz, do movimento, do gesto, com um modelo ideal imaginado pelo poeta, e muitas vezes exagerado pelo comediante. Eis

o maravilhoso. Esse modelo não influi somente no tom; modifica até o

passo, até a postura. Daí vem que o comediante na rua ou na cena são

dois personagens tão diferentes, que mal se consegue reconhecê-los. (DIDEROT, 2000, p. 39-40).

Com esta reflexão e sabedor de seus atos em meio a sociedade o ator é afinal, o

cidadão no espaço público, e propriamente como ator, faz um papel que direciona a uma

ação moral que reflete nas questões políticas e relações interpessoais. O ator tem uma

função de condução; ele é aquele homem que faz parte do todo, mas se destaca ao

analisar por meio de seus estudos, a mais comum das atitudes para torná-la uma

caricatura do mundo público.

Ocorre com o espetáculo o mesmo que com uma sociedade bem ordenada, onde cada um sacrifica parte de seus direitos para o bem do

conjunto e do todo. Quem apreciará melhor a medida desse sacrifício?

Será o entusiasta? O fanático? Não, por certo. Na sociedade, será o

homem justo; no teatro, o comediante que tiver a cabeça fria. Vossa cena da rua está para a cena dramática como uma horda de selvagens

para uma assembleia de homens civilizados. (Idem, p. 41).

Ao reforçar a afirmativa do enciclopedista, é por meio dos artifícios da natureza

e da observação, que se compreende o mundo ao redor para a realização de uma cena

perfeita. Então, o homem que é um ator tem como função capturar todas as

peculiaridades das cenas cotidianas, as quais a sociedade formada por indivíduos (atores

ou não) são submetidos. O comediante precisa encarnar uma personagem, sempre

estudando, analisando, examinando minuciosamente tudo e todos com grande poder de

51

abstração. Para tanto, deve também ser dotado de razão para impetrar a dominação da

natureza. Desse modo, deve ser o observador atento que aguça todas as suas percepções

na busca da contemplação do mundo que o circunda. Portanto, o ator precisa do outro

para saber distinguir quem ele é e quem são os que o cercam, sem que exista a perda de

sua identidade; antes haja uma somatória para a compreensão de si mesmo.

A recusa da sensibilidade e da identificação, no teatro, converte o

desempenho em mimese ou imitação intelectual de um modelo interno. A simples expressividade emotiva, por intensa que seja, não

pode moldar. É inútil apoiá-la no sistema dramático, na ação, no

discurso do poeta, pois não basta imitar a natureza, é preciso imitar a

“bela natureza”. Só esta produz verdadeira arte. No palco ou na plateia, o ideal artístico é de certo modo o homem do ator

(GUINSBURG, 2001, p. 117).

O bom ator tem o poder de penetrar no mundo para retirar argumentos, formas,

cores, jeitos, modos, cultura, sons e movimentos, sem deixar de ser ele próprio. Por

meio disso, tem o poder de moldar uma personagem, pois quem se deparar diante da

imagem construída por ele veja uma representação tão fidedigna do mundo, que

ninguém pode compreendê-lo de outro modo, uma vez que utiliza a persuasão e um

modelo ideal para transmitir algo por meio de quem representa. Além do mais, a

necessidade dos artifícios se faz de extrema importância para o homem realizar sua

interpretação para o mundo que o cinge. Ele retira da natureza argumentos infindos,

nunca pode deixar-se confundir com quem ele é realmente, pois aí que esta a sua real

aparência perante um mundo que precisa da arte da imitação36

: “O grande comediante

observa os fenômenos; o homem sensível serve-lhe de modelo, ele o medita, e encontra,

por reflexão, o que cumpre adicionar ou subtrair para o melhor. E, ainda assim, fatos

segundo razões. ” (DIDEROT, 2000, p. 52).

O distanciar-se de uma determinada sensibilidade pessoal é algo de suma

importância para a magnitude de uma representação e domínio da natureza. O ator se

vale de sentimentos subjetivos e de cunho meramente naturais, tem uma representação

que pode ser esplendorosa na primeira e, talvez na segunda apresentação, mas um

fracasso na terceira. Porque o homem que age com a sensibilidade não consegue

dominar a si mesmo e sua natureza, ficando antes, submetido a ela: “O homem sensível

36 Assim como, em termos aristotélicos, a tragédia grega tem caráter de levar o homem à catarse, para um

agir virtuoso, para Diderot, a representação, tanto no teatro, quanto no público, pelo “homem da rua”,

necessita da imitação para se compreender e entender os costumes e as regras impostas pela sociedade da

época, sendo que no teatro essa imitação deve ser apurada pela razão e formalizar uma ação a fim de

penetrar e conduzir a um ato moral.

52

obedece aos impulsos da natureza e não expressa precisamente senão o grito de seu

coração; no momento em que modera ou força esse grito, não é mais ele, é um

comediante que representa” (Idem, Ibidem).

Desta forma, quando o ator não tem domínio da ação e dos seus sentimentos não

consegue realizar a arte da imitação, a qual ele deve apreender e compreender, de modo

que a assimile e retire da natureza características importantes para o ato de fazer e

representar determinados aspectos necessários para aquele personagem, ato ou cena.

2.4. Os imitadores da natureza.

Diderot diz que existe na sociedade homens, os quais ele intitula de gênios, que

são aqueles que têm uma percepção diferente e ampliada diante das coisas que os

circundam e por isso retiram da natureza o que há de mais essencial. Assim conseguem

transpor para a arte37

o que esta lhes oferta. Entre esses gênios estão os pintores, poetas,

oradores, atores e músicos. O filósofo diz que os gênios surgem “em momentos

tranquilos e frios, em momentos totalmente inesperados. Não se sabe de onde

semelhantes traços provêm; eles se parecem com a inspiração. É quando, suspensos

entre a natureza e o esboço que fazem, esses gênios dirigem alternadamente um olhar

atento a um e outro.” (DIDEROT, 2000, p. 34). Aqui, vemos que esses gênios se

assemelham pelo olhar atento que direcionam às coisas da natureza e em seus

momentos de inspiração sabem controlar o delírio do entusiasmo e manter o sangue

frio. O enciclopedista reitera e diz que “os grandes poetas dramáticos, sobretudo, são

espectadores assíduos do que se passa em torno deles no mundo físico e no mundo

moral.” (Idem, p. 35).

Os grandes imitadores da natureza – atores, poetas, entre outros – são os menos

sensíveis dos seres, pois a sensibilidade não está incluída como uma qualidade dos

37 … quando se faz um poema, um quadro, uma comédia, uma história, um romance, uma tragédia, uma

obra para o povo, não se deve imitar os autores que escreveram tratados de educação. Em duas mil

crianças, há apenas duas que podem ser criadas segundo seus princípios. Se houvessem refletido sobre

isso, teriam concebido que uma águia não é o modelo comum de uma instituição geral. Uma composição,

que deve ser exposta aos olhos de uma multidão de todas as espécies de espectadores, será viciosa, se não

for inteligível para um homem de bom senso simplesmente. Que ela seja simples e clara. Por

consequência, que nenhuma figura seja ociosa, nenhum acessório supérfluo. Que o tema seja um só.

(DIDEROT, 2000a, p. 192)

53

gênios. Eles são imitadores constantes da natureza, dotados de muita imaginação,

julgamento, sendo seguros de seus atos, compreendendo-os, e estão sempre em uma

constante observação dos fatos ao seu redor. Necessitam deixar-se embriagar pelas

atitudes mundanas para que seu íntimo esteja inundado de vivências, as quais serão de

grande valia, desde que possam reproduzir com intensidade, veracidade e com a arte de

convencer quem quer que seja.

Apreendem tudo o que os impressiona; fazem coleção com isso. É

dessas coleções formadas neles, sem que o saibam, que tantos

fenômenos raros passam às suas obras. Os homens acalorados, violentos, sensíveis, encontram-se em cena; dão o espetáculo, mas não

o desfrutam. São eles que servem de modelo para o homem de gênio

fazer cópia. (Idem, Ibidem).

A sensibilidade é compreendida como algo funesto, porque nunca aparece sem

elementos de franqueza. E para o homem de gênio o que é o grande observador e

imitador da natureza, a sensibilidade deve ser apenas um elemento de estudos e nunca a

sua qualidade. Nesse sentido, “(...) o homem sensível, figura que o Paradoxo sobre o

Comediante deixa à mercê do ‘diafragma’ e da sensibilidade, em oposição ao homem de

gênio, cuja grande qualidade é o autodomínio. ” (MATOS, 2004, p. 76).

Para o enciclopedista não há nada mais medíocre em um ator que a sensibilidade

vinda à flor da pele. A concentração, a frieza e o estudo de cada minúcia nos atos

representados por este ator são as características que o permeiam. Tais atos devem ser

pautados no controle de todo e qualquer sentimento: “As lágrimas do comediante lhe

descem do cérebro; as do homem sensível lhe sobem do coração” (DIDEROT, 2000, p.

37).

Neste sentido o filósofo relata que, na comédia do mundo todas as almas

ocupam o teatro e os homens de gênio estão na plateia. Os primeiros são os loucos; os

segundos dedicam-se a entender e a copiar esta loucura, qualidade própria dos sábios. É

apenas o sábio que compreende o ridículo de todas as personagens, é ele quem pode

transmitir o infortúnio e o cômico da vida, seja em geral ou de um em específico,

porque só ele tem a sensatez de olhar e demonstrar com grande perfeição as facetas

dessa humanidade. Entretanto, na sociedade, o que mais se almeja é a virtude para a

salvação, mesmo que as virtudes sejam ações apenas de fachada para a realização dos

vícios privados.

54

O ator antes de qualquer coisa é aquele que deve escutar-se e entender-se. Então,

é preciso conhecer a si, saber lidar consigo mesmo, para não apenas sentir. Ser

personagem significa agir sem sentir nada, fazendo o espectador sentir sem que precise

entrar em ação. A ilusão só existe para a plateia, sendo que, é sabido por parte do ator

que ele não tenha relação alguma com quem a personagem é.

2.5. Os Paradoxos de Diderot.

No verbete paradoxe contido na Encyclopédie (1765, sem página) está

explicitado que “esta palavra é formada a partir do grego, contra, e de opinião”. E no

âmbito filosófico “é uma proposta absurda na aparência, porque é contrária aos

pareceres recebidos, e ainda assim é verdade, no fundo, ou menos pode receber um ar de

verdade”. No capítulo intitulado Moral e espécie, Souza (2002, p. 99) reitera que o

verbete “paradoxo”, contido na Enciclopédia, tem a definição de algo contrário às

opiniões comuns, aparentemente absurdas mas que no fundo, são verdadeiras.

Na obra de Diderot, o exemplo clássico do paradoxo é o do ator de teatro que se

expressa da seguinte maneira: aos olhos da plateia, um grande ator é aquele que, ao

representar um determinado papel em cena não apenas aparenta os sentimentos do

personagem, mas também os experimenta realmente. Sendo assim, aos olhos do crítico,

ou filósofo, passa-se exatamente o contrário: o grande ator é aquele que mantém seus

próprios sentimentos sob absoluto controle, para representar um papel que foi meditado

e construído.

O paradoxo se manifesta no fato de que, quanto mais os resultados forem dados

a partir da reflexão no silêncio das emoções, mais perfeitamente ele pode retratar diante

do público as emoções do personagem, sendo assim mais “verdadeiro”. No entanto, o

paradoxo são duas verdades distintas, que não se excluem, mas geram um amplo fio

condutor com a capacidade de fazer com que ambas facetas se reconciliem.

O tema do paradoxo, nas obras de Diderot, é algo quase que explicito no que se

refere à estética. Presente também, em outros aspectos de sua obra, no tocante à moral,

como na política do naturalismo materialista. Como exemplo disso, Maria das Graças

de Souza cita o paradoxo do homem virtuoso. Este homem virtuoso, apesar de

55

reconhecer que sua vontade é determinada, estabelece para si normas de conduta como

se fosse livre. Tais normas em si, são paradoxais, na medida que, consistem ao mesmo

tempo na busca do prazer e no domínio da razão sobre os sentimentos e paixões.

(SOUZA, 2002, p. 100).

O paradoxo do cidadão na visão de Denis Diderot, é aquele que age com o

imperativo de que, quanto mais o homem enquanto indivíduo buscar a sua felicidade

mais esta colaborando para o bem-estar da sociedade e para o bem da humanidade.

Há também o paradoxo do filósofo, o qual afirma que o curso da história é

determinado pela força das coisas e da natureza. Além disso, compreende que sua

atividade intelectiva tem poder de intervenção efetiva, sendo que, se não for para

transformar algo, ao menos tem poder de acelerar a sequência dos acontecimentos.

2.6. Homens e suas representações.

Em meio a todos esses pontos levantados até agora sobre o ator e a sensibilidade,

Diderot não se esquece de entender as questões contidas nos gêneros que os poetas

escrevem. A partir disso, inicia um discurso reflexivo sobre a questão da linguagem em

cena, e questiona-se frente a discursos cheios de pompas e inebriados de formas

poéticas. Essa linguagem só pode ser associada e proferida por seres poéticos, em tom

poético, já que na realidade social não tem nem a necessidade e muito menos os porquês

de serem proferidos de tal forma. Questiona-se mais uma vez sobre o teatro ser

verdadeiro, e o que deve mostrar; como são as coisas na natureza. Logo, compreende

que o verdadeiro no palco é demonstrar apenas o comum, em conformidade com

discursos, vozes, figuras, ações, movimentos e gestos, idealizados inteiramente pelo

imaginário, refletido pelo poeta e quem sabe também exagerado pelo comediante.

Outrossim, o ator da rua ou na cena são dois personagens tão diferentes que mal se

consegue reconhecê-los.

Ocorre com o espetáculo o mesmo que com uma sociedade bem

ordenada, onde cada um sacrifica parte de seus direitos para o bem do

conjunto e do todo. Quem apreciará melhor a medida desse sacrifício?

Será o entusiasta? O fanático? Não, por certo. Na sociedade, será o homem justo; no teatro, o comediante que tiver a cabeça mais fria.

56

Vossa cena de rua está para a cena dramática como uma horda de

selvagens para a assembleia de homens civilizados. (DIDEROT, 2000,

p. 41).

No entanto, o homem que está em sociedade pode até representar em meio às

pessoas que circulam em seu cotidiano e também não prioriza elementos essenciais, que

são fundamentais para a arte da real representação. Ao serem colocados inteiramente a

sós, os sujeitos do mundo não sabem o que fazer, e caso se agrupem em duplas ou em

trios agem sem a mínima noção e razão. Porém, se forem ofertados elementos para que

possam ensaiar e exercer alguma função, não mais permanecem tão ao natural38

. Sendo

assim, é necessário o direcionamento para haver algum tipo de atuação representativa.

O homem que está em sociedade tem primazia em simular várias situações, não

havendo a mínima necessidade de que haja nele um sentimento qualquer. Essa atitude,

ou seja, esse papel que o homem tende a representar é de tremenda dificuldade tanto

quanto o trabalho do ator. Ainda, o homem que está presente nos meios de socialização

da vida, necessita compreender-se em suas diversas faces. Ele, muitas vezes, encontra-

se em várias situações dentro da sociedade, as quais o obriga a desempenhar um papel

para cada situação que esteja submetido: ele também é uma persona.

O indivíduo que se faz poeta em uma determinada sociedade tem a necessidade

das aparências estabelecidas por meio do convívio social. Ele visualiza de forma muito

mais minuciosa e atenta as ocorrências de todo um contexto histórico ou social. Isso lhe

serve de base argumentativa para suas abstrações e relatos, que diversas vezes se valem

de vivências percebidas. Sendo declamadas, vão se tornar imortais pelas palavras e pelo

olhar atencioso do poeta.

38 O homem em sociedade rompe com a natureza ou com o modo natural de ser. A sua função junto à

natureza é de domínio. Ao se valer de leis, costumes e regras para se portar ante outrem, torna-se um

“indivíduo artificial”.

57

3. A AMBIGUIDADE DO TEATRO.

Intentamos responder algumas questões pertinentes aos pontos relevantes que

foram proporcionados ao longo de nossas pesquisas. Para isso buscamos analisar alguns

temas que relacionam Diderot e Rousseau no que tangem às seguintes indagações: O

que difere Diderot de Rousseau? Quais são os pontos de discordância entre ambos os

filósofos? Como pensam a natureza, a imitação e o teatro? O teatro é algo bom para a

sociedade? O teatro pode ser instrumento de melhoria ao caráter humano? O teatro é

pedagógico? No que diz respeito aos pontos pertinentes a Rousseau, nos detemos

brevemente posto que não é o mote desta pesquisa. Mesmo assim de antemão, sabemos

que essas questões são extremamente complexas para o século das luzes e também para

ambos os filósofos. Assim, valemo-nos da compreensão das críticas que Rousseau fez

ao teatro moderno da França do século XVIII. Neste sentido, nosso referencial teórico

foi realizado a partir da famosa Carta a D’Alembert escrita por Rousseau em resposta

ao verbete da Enciclopédia feita por D’Alembert.

Diderot ao contrário de Rousseau compreende o teatro como uma fonte

inesgotável de contribuição para aprimorar e ensinar a virtude. Ele vislumbra no teatro

uma importância seminal, e propõe uma renovação da cena teatral. Tais reflexões estão

expostas tanto no livro Paradoxo sobre o Comediante quanto no Discurso sobre a

poesia dramática.

Para tanto há de ser reforçado, como demonstra Franklin de Matos (2009), que

no século XVIII39

, filosofia e teatro para os pensadores da ilustração nunca foram

separados. O espetáculo teatral nesse contexto tornou-se um dos maiores paradigmas

por ser o teatro constituído de elementos que permitem uma constante inquietação e

inflamadas disputas intelectuais. Assim, “não é de admirar que as discussões sobre ele

39 Segundo Cassirer (1994, p. 09) no século XVIII, juntamente com o Iluminismo, “(...) temos não é outra coisa senão uma visão nova e um novo destino do movimento universal do pensamento filosófico. Na

Inglaterra e na França, o Iluminismo começa por quebrar o molde obsoleto do conhecimento filosófico, a

forma do sistema metafísico. Não acredita mais no privilégio nem na fecundidade do ‘espírito de

sistema’: vê neste não a força mas o obstáculo e o freio da razão filosófica. Entretanto, ao abandonar o

spirit de système, ao bater-se contra ele, nem por isso, o Iluminismo renuncia ao spirit systématique, ao

qual pretende, pelo contrario, incutir mais valor e eficácia. Em vez de se fechar nos limites de um edifício

doutrinal definitivo, em vez de restringir-se à tarefa de deduzir verdades da cadeia de tomar livremente o

seu impulso e assumir em seu movimento imanente a forma fundamental da realidade, forma de toda a

existência, tanto natural quanto espiritual.”

58

tenham dividido o próprio partido da filosofia, lançando autores como Voltaire,

Rousseau e Diderot em campos diversos.” (MATOS, 2009, p. 8).

Diderot, como descreve Matos atribui ao espetáculo um objetivo moral e

pedagógico. O enciclopedista compreende o teatro como um objeto de estudo para uma

maior reflexão dos fatos ocorridos na vida social, assim como a filosofia quer combater

os preconceitos, também o teatro deveria esclarecer aos homens, ensinando-os a amar a

virtude e detestar o vício.

As questões pertinentes aos autores e aos críticos estão contidas no Discurso

sobre a poesia dramática. Nesta parte Diderot demonstra as facetas que cada um exerce

– autores e críticos – e suas importâncias no que diz respeito à civilização e também às

problemáticas que ambos enfrentam ao produzir ou interagir com uma obra de arte.

Tratamos também sobre a questão do gosto. A arte deve ser feita por quem tem

um verdadeiro caráter moral bom, caso contrário pode passar uma imagem não virtuosa,

por não estar comprometido com a virtude. Assim sendo, facilmente podem contribuir

para a corrupção do gosto, já que é sempre necessário ser levado em conta quem faz ou

direciona o olhar para o belo e o bom na sociedade. Se o sistema moral está corrompido,

é inevitável que o gosto seja falso.

Diderot nos conduz a pensar sobre como formar o gosto e quais são os meios

para compreensão do que pode ser verdadeiro, bom e belo, uma vez que se deve levar

em conta que os homens são múltiplos e as formas de interações sociais também são.

3.1. O princípio.

Desconfia da tristeza de certos poetas. É uma tristeza profissional

e tão suspeita como a exuberante alegria das coristas.

(Poema: Os Farsantes – Mario Quintana, 2008, p. 119).

As críticas que Rousseau faz acerca do teatro moderno da França do século

XVIII, essencialmente expostas na famosa Carta a D’Alembert40

escrita pelo filósofo

40 A partir daqui, referiremo-nos à Carta a D’Alembert simplesmente como Carta.

59

suíço em resposta ao verbete da Enciclopédia produzido por D’Alembert, afastam

Rousseau e Diderot. Segundo Franklin de Matos (2009, p. 15), a Carta teve como anseio

maior contestar a pretensão de atribuir ao teatro uma missão salvadora, tal como querem

os filósofos das Luzes. Além disso, a Carta foi um dos motivos principais da ruptura

entre Rousseau e os iluministas, como já discutido anteriormente.

Conforme diz Trousson (2007), Rousseau ao ler o artigo Genebra escrito pelo

codiretor da Enciclopédia, D’Alembert, discordou com veemência ao que se refere aos

benefícios, os quais o teatro traz à cidade e resolve responder às críticas por meio de

análise – Carta a D’Alembert – que se consagra como sendo a sua crítica ao teatro.

Neste contexto, lembra Franklin de Matos (1993, p.7), o verbete dizia sobre a

importância do teatro, uma vez que, na acepção dos pensadores das Luzes, tem uma

grande funcionalidade no que diz respeito ao aperfeiçoamento do gosto e dos costumes

de todos os povos. Todavia, em Genebra não havia teatros e a proibição dos espetáculos

se devia porque tanto as companhias quanto as encenações exaltavam o luxo e a

libertinagem, o que acarreta em prejuízos morais à juventude da cidade. Ainda segundo

Franklin de Matos (Idem, Ibidem), D’Alembert adverte que tal temor dos governantes

da cidade podem muito bem ser contornadas com leis que coíbem os abusos os quais

presumem impertinentes porque o teatro além de contribuir com os costumes pode

colaborar com o ofício de comediante. Desse modo os genebrinos podem formar sua

própria companhia teatral, com um modelo diferenciado ou específico.

O verbete que deu abertura para Rousseau romper com os iluministas foi

incitado também por Voltaire que, segundo Matos, quando estava com sua troupe, nos

arredores de Genebra, ameaça invadir a cidade para realizar seu espetáculo. A Carta, foi

também uma maneira do filósofo expor suas indignações tanto para a atitude de

Voltaire, como para a intromissão de D’Alembert nas leis locais, além da grande crítica

ao modo de compreender e fazer teatro na França do século XVIII.

60

3.2. Um problema: relações entre teatro e cultura.

Bento Prado Junior (1975, p. 07) diz que devemos ter um olhar sempre atento às

leituras que são realizadas para o entendimento da Carta, para não nos induzir em uma

visão simplista ou falaciosa de presumir que se trata de um mero espírito antiteatral e

então perder o essencial do texto do filósofo genebrino. Entender a ruptura de Rousseau

com os outros filósofos como uma negação abstrata ou externa, é ignorar como sua

crítica atravessa o campo conceitual aberto pela Filosofia das Luzes. Para refletir acerca

das querelas entre Rousseau e Diderot se faz necessário elucidar sobre as questões do

teatro, como uma crítica à forma e não somente uma “briga moral” – ou moralizante –

entre filósofos. Assim sendo: “A Carta prolongava o Discurso sobre as ciências e as

artes (1750), que atacava a mitologia das Luzes em seu mais caro postulado, negando

que o progresso do conhecimento e da técnica tivesse levado ao aperfeiçoamento moral

do homem.” (MATOS, 2009, p. 16).

A crítica que Rousseau faz ao teatro moderno é essencial para saber os ideais que

vão afasta-lo e diferencia-lo de Diderot. Vale ressaltar, que a intenção da Carta é uma

crítica com uma declara acusação ao teatro francês da época. Neste âmbito, o filósofo

(1993, p. 47) diz: “Quanto mais eu penso, mais acho que tudo o que se representa no

teatro não se aproxima de nós, mas se afasta (...). O teatro tem suas regras, suas máximas,

sua moral à parte, assim como sua linguagem e seus trajes”.

Por conseguinte, pode-se perceber o quão duvidoso no ponto de vista de

Rousseau, o teatro é no século XVIII. O filósofo genebrino compreende que a forma dos

espetáculos realizados na França, evidenciam mais o vício41

, o luxo42

, do que a virtude.

41 “Antes que a arte polisse nossas maneiras e ensinasse nossas paixões a falarem a linguagem apurada,

nossos costumes eram rústicos, mas naturais, e a diferença dos procedimentos denunciava, à primeira

vista, a dos caracteres. No fundo, a natureza humana não era melhor, mas os homens encontravam sua

segurança na facilidade para se penetrarem reciprocamente, e essa vantagem, de cujo valor não temos

mais noção, poupava-lhes muitos vícios. Atualmente, quando buscas mais sutis e um gosto mais fino reduziram a princípios a arte de agradar, reina entre nossos costumes uma uniformidade desprezível

enganosa, parece que todos os espíritos se fundiram nem mesmo molde: incessantemente a polidez

impõe, o decoro ordena; incessantemente seguem-se os usos e nunca o próprio gênio. Não se ousa mais

parecer tal como se é e, sob tal coerção perpétua, os homens que formam o rebanho chamado sociedade,

nas mesmas circunstâncias, farão todos as mesmas coisas desde que motivos mais poderosos não os

desviem. Nunca se saberá, pois, com quem se trata: será preciso, portanto, para conhecer o amigo, esperar

que não haja mais tempo para tanto, porquanto para essas ocasiões é que teria sido essencial conhecê-lo.”

(ROUSSEAU, 1978b, p. 344). 42 “Eis como o luxo, a dissolução e a escravidão foram, em todos os tempos, o castigo dos esforços

61

Ao dizer que o teatro tem suas regras e máximas, sua moral a parte, o filósofo está

escancarando o lado negativo da coisa, dizendo para tomar cuidado com os espetáculos.

De forma que, o teatro age em desconexão com o mundo, não serve para nada de bom, a

não ser evidenciar os vícios de um povo que vive das aparências e das regras do ter, ou

seja, do luxo. Além disso, o que se apresenta no palco não pode ser transferido ou

ensinado para uma melhoria nas relações e conduta do povo. Rousseau demonstra,

consequentemente, o quão desassociado do mundo e da virtude o teatro se faz. Dito de

outro modo é um espaço onde somente se evidencia o pior nos homens. Além de ser

fantasioso, o teatro pode ser também um ataque à verdadeira virtude proporcionado pelo

esclarecimento.

Dizemos a nós mesmos que nada daquilo nos convém, e nos

acreditaríamos tão ridículos adotando as virtudes de seus heróis quanto

falando em versos e nos vestindo à romana. Eis, portanto, mais ou menos para que servem todos esses grandes sentimentos e todas essas brilhantes

máximas que se elogiam com tanta ênfase; para relegá-los para sempre ao

palco, e para nos mostrar a virtude como um jogo de teatro, bom para

divertir o público, mas que seria loucura querer transportar seriamente para a sociedade (ROUSSEAU, 1993, p. 47).

Os iluministas entrevem no teatro não só uma forma de compreender seu próprio

tempo, mas também, um modo de trazer à tona as vertentes morais da época e, não

obstante, visa despertar as virtudes de cada sujeito. Todavia, as críticas de Rousseau

especialmente a Diderot dão-se na medida que, este tinha como principal ideário que o

teatro deve ser a maneira pela qual se pode unir e aproximar o homem de um modelo

moral virtuoso; isto é, o teatro é um modo pedagógico de ensinar à sociedade as atitudes

para as ações virtuosas.

É importante ressaltar como a tradição aristotélica teve forte influência nos

modos de compreender e também de fazer com que a arte, a poesia e o teatro tem um

caráter de aprimoramento do homem, no que diz respeito as suas ações sociais. No

orgulhosos que fizeram para sair da ignorância feliz na qual nos colocara a sabedoria eterna”

(ROUSSEAU, 1978b, p. 349). “(…) as ciências e as artes devem, portanto, seu nascimento a nossos

vícios: teríamos menor dúvida quanto às vantagens, se o devessem a nossas virtudes. (...). Que faríamos das artes sem o luxo que as nutre?” (Idem, p. 351). “(...) o luxo raramente apresenta-se sem as ciências e

as artes, e estas jamais andam sem ele. Eu sei que nossa filosofia sempre pretende, contra a experiência de

todos os séculos, a que o luxo seja o esplendor dos Estados; depois, porém, de ter esquecido a necessidade

das leis suntuárias, ousaria ela também negar que sejam os bons costumes essências à duração dos

impérios e o luxo diametralmente oposto aos bons costumes? Que seja o luxo um indício certo de

riquezas; que sirva até, caso se queira, para multiplicá-las; que se deveria concluir desse paradoxo tão

digno de ter nascido em nossos dias? E que se tornará a virtude, desde que seja preciso enriquecer a

qualquer preço: os antigos políticos falavam constantemente de costumes e de virtudes, os nossos só

falam de comércio e de dinheiro.” (Idem, p. 352).

62

mundo moderno, as análises e reflexões da Poética, de Aristóteles, são de grande valia

para acréscimo da compreensão das artes como uma maneira pedagógica, com a

finalidade de conduzir uma sociedade que, por meio dos sentimentos de expurgação e

ações que levam a verossimilhança, torna o sujeito mais virtuoso. Desse modo, a arte da

imitação é a forma de aproximar os indivíduos às ações morais virtuosas, uma vez que,

retira do mundo em uma cisão proposital, os costumes, cenas de cunho familiar, formas

e gestos vindos da natureza e do cotidiano a fim de atingir os corações de todos os

homens partícipes da plateia.

Contudo, para Rousseau algo de muito perverso existe em uma civilização que está

pautada em interesses particulares. Apesar do filósofo louvar que o homem é capaz de

avançar e superar as dificuldades que a própria natureza lhe impõe e constituir assim sua

própria história e até mesmo domesticar a natureza, vê na sociedade vigente um problema

que diz respeito ao indivíduo: ele não consegue compreender sua natureza, seus deveres e

propósitos.

É um espetáculo grandioso e belo ver o homem sair, por seu próprio

esforço, a bem dizer do nada; dissipar, por meio das luzes sua razão, as trevas nas quais o envolveu a natureza: elevar-se acima de si

mesmo; lançar-se, pelo espírito, às regiões celestes; percorrer com

passos de gigante, como o sol, a vasta extensão do universo; e, o que é ainda maior e mais difícil, penetrar em si mesmo para estudar o

homem e conhecer sua natureza, seus deveres e seu fim.

(ROUSSEAU, 1973b, p. 341-42).

Assim, conforme explícito no Discurso sobre a desigualdade, o filósofo entende

que o progresso do conhecimento só faz aprofundar a servidão humana. Pode-se

associar tal perspectiva ao caso particular do teatro moderno. Este, para o genebrino, é

estranho à virtude, e não se pode atribuir a ele um papel tão fundamental quanto o

pedagógico.

(...) o efeito geral do espetáculo é reforçar o caráter nacional, acentuar

as inclinações naturais e dar nova energia a todas as paixões. Neste

sentido, poderia parecer que, como esse efeito se limita a reforçar e não a mudar os costumes estabelecidos, a comédia seria boa para os

bons e má para os maus. Mesmo no primeiro caso, sempre restaria

saber se as paixões excitadas demais não degeneram em vícios. (ROUSSEAU, 1993, p. 42).

A Carta condena o suposto etnocentrismo da Filosofia, pois esta tinha

pretensões de querer determinar o que deve ser bom para o homem em geral, impondo

em toda parte certo modelo de espetáculo, o qual deve ser seguido. Rousseau argumenta

63

na Carta, então, que em Londres um drama interessa quando faz odiar os franceses; já

em Túnis seria a bela paixão sobre a pirataria; em Messina, uma vingança bem

saborosa. Sabendo dessas diferenças entre as regiões e países, também se conhece o

gosto e o que pensar sobre cada costume. Com isso, se um autor desrespeitar essas

máximas, pode até fazer uma excelente peça, mas não tem público algum. Assim: “E

então deveremos acusar esse autor de ignorância, por ter faltado à primeira lei de sua

arte, que serve de base a todas as outras e que consiste em fazer sucesso. Assim, o teatro

purga as paixões que não temos e fomenta as que temos. Eis um remédio bem

administrado!” (Idem, p. 44).

Segundo Matos (2009, p. 16), Rousseau “vê que os filósofos dão demasiada

importância às ideias de natureza humana e espetáculo em geral, ignorando as

singularidades de cada lugar e as várias figuras históricas do teatro”. Para o filósofo, é

por meio do que foi esquecido ou ignorado que o homem é uno; no entanto, a história o

torna múltiplo, e essa diversidade também multiplica os tipos de espetáculo. Desse

modo, cada povo, cada cultura, possui uma paixão dominante, que vai divergir das

demais. Portanto, cada autor ou espetáculo deve procurar justamente satisfazer essa

paixão para melhor compreensão do público.

Ao considerar as causas gerais e particulares dos povos e seus costumes,

Rousseau opta pelo ato o qual, possa impedir os espetáculos em creditarem a forma

perfeita de suscitar o aprimoramento de quaisquer que sejam os valores, aos quais,

queiram enfatizar em um meio social. Esse ato, aparentemente radical, se deve ao fato

de que, o filósofo leva em conta que nada adianta direcionar a um suposto

aperfeiçoamento, mesmo crendo que o povo ao se mostrar disposto e aberto às possíveis

intervenções de outros em seus costumes. Seus efeitos em uma determinada sociedade

se tornam vãos e nada acrescentam para a transformação de quaisquer coisas, tal como

queiram os defensores do teatro.

Jean-Jacques Rousseau acredita, que só existem três tipos de meios que podem

agir sobre os costumes de um povo: a força das leis, o império da opinião e a atração pelo

prazer. Diz ele: “as leis não tem nenhum acesso ao teatro, cujo menor constrangimento

seria um sofrimento e não uma diversão. A opinião não depende do teatro, já que em vez

de ditar a lei ao público, o teatro a recebe dele; e quanto ao prazer que ali podemos obter,

64

todo seu efeito consiste em nos fazer voltar ao espetáculo com maior frequência. ”

(ROUSSEAU, 1993, p. 44).

Rousseau questiona a máxima de Diderot (1986, p. 44), segundo a qual “as artes

de imitação” fazem os homens a “amar a virtude e odiar o vício”. Interroga-se então por

perceber que, antes da existência da comédia as populações não amavam o bem e não

odiavam o mal, e isso significa então, que, esses sentimentos são mais fracos nos

lugares onde não hajam espetáculos?

Quanto a isso Franklin de Matos nos conduz à reflexão de que para Rousseau os

espetáculos só têm este juízo de valor: bons ou maus, diante das paixões boas ou más, do

público em geral. E para obter sucesso seria necessário, antes de tudo, satisfazer tais

paixões. Caso contrário, o público não se sente agradado e desaparece. Com isso, os

espetáculos estariam apenas comprometidos com as paixões do espectador, e não com a

virtude. A cena é, por sua vez, uma regra, uma reprodução minuciosa das paixões

vivenciadas pela plateia,

(...) cujo original está no coração do público, de tal modo que existe uma relação de cumplicidade entre um e outro. Se quiser sobreviver, o

teatro deve adular as paixões prezadas pela plateia, tornando

detestáveis aquelas que são odiadas de antemão. Ele não tem, portanto, nenhum poder de mudar os costumes. Se quiser agradar, terá

de segui-los, abdicando de qualquer objetivo pedagógico; se quiser

corrigi-los, aborrecerá o público, renunciando à diversão e arriscando

a própria sobrevivência. (MATOS, 2009, p. 16).

No mais, Jean Jacques Rousseau continua a pensar qual é o poder que a arte em

geral teria para moldar o caráter do homem, para que engendrem nele inclinações

necessárias e ele, por sua vez, queira seguir o bem, o belo, conduzindo-se para a virtude.

Assim, o filósofo retoma sua máxima, na qual afirma que os homens nascem bons por

natureza (ROUSSEAU, 1973b). Neste sentido, não é necessário nenhum outro artifício

para que o homem possa amar e querer o bem. A arte de nada adianta, uma vez que o

“ser bom” e o “querer o bem” são intrínsecos à humanidade, são naturais.

Ah, se a beleza da virtude fosse obra da arte, há muito a arte a teria

desfigurado! Quanto a mim, ainda que me chamem de malvado por

ousar afirmar que o homem nasceu bom, eu acho que isso e creio tê-lo provado; está em nós e não nas peças a fonte do interesse que nos

prende ao que é honesto e nos inspira a versão pelo mal. Não há arte

que produza esse interesse, mas apenas as artes que se valem dele. O amor do belo é um sentimento tão natural no coração humano quanto

o amor de si mesmo; ele não nasce de um arranjo de cenas; o autor

não leva para lá, mas o encontra ali; e desse puro sentimento que ele

65

favorece nascem as doces lágrimas que faz correr. (ROUSSEAU,

1993, p. 44-5).

3.3. O pedagógico do teatro.

A questão a respeito do poder do teatro sobre a condução dos costumes de um

povo, para que, possam ser aperfeiçoados a partir do espetáculo, é algo que se torna alvo

de vários debates entre os filósofos das luzes, sendo partidários favoráveis ou não ao

teatro. O tema foi retomado inúmeras vezes por Rousseau, Diderot e Voltaire. Por isso,

as apologias e disputas travadas entre os filósofos durante o século XVIII, tem o intuito

principal de entender, criticar ou defender um teatro que tenha caráter de contribuição

aos costumes e aprimoramento do gosto.

Para Denis Diderot, como já supramencionado, a questão do teatro como modo

didático direciona a uma formação moral melhor à época. Conforme afirma Matos

(2009, p. 12), para o pensador, aquilo que é,

explicitado em 1757 e 1758 nos Diálogos sobre o filho natural e no

Discurso sobre a poesia dramática, é o seguinte: a fim de restituir ao

teatro o poder de melhorar os homens, é preciso “abalar” (...) os espíritos, levando “tumulto” e “pavor” à alma do espectador, a

exemplo da tragédia grega. Para isso, deve-se resgatar a energia da

linguagem, a energia da natureza de que a linguagem é portadora, o

que se supõe que libere a cena das regras e “conveniências” clássicas (...).

Apesar disso, Rousseau não admite que o teatro fosse tratado como um aparato

para as sociedades se espelharem; não compreende que era um mecanismo pedagógico.

Em um sentido oposto a esse pensamento, o enciclopedista defende que uma das

maneiras mais eficazes para entender e formar a virtude no indivíduo se faz através do

teatro: “Considerei por vezes que as mais importantes questões de moral poderiam ser

debatidas no teatro, nem por isso prejudicando o ritmo violento e rápido da ação

dramática. ” (DIDEROT, 1986, p. 44).

Diderot não só enfatiza que o teatro possua caráter pedagógico, mas também que

deve ser modificado, ou seja, é preciso rever o modo como se apresenta o teatro

moderno. Assim contribui para fundar outro gênero, já que nem só de elogios, em

relação à cena francesa e o teatro moderno, vive a crítica do filósofo: “O enciclopedista

contesta com veemência que a cena francesa moderna, dominada pela tragédia e pela

66

comédia clássica, e tão repleta de regras e convenções, ainda tenha poder para tanto.”

(MATOS, 2009, p. 12). Desse modo, propôs o gênero intermediário que é o meio termo

entre a tragédia e a comédia. Este novo gênero é o drama.

De tal maneira, Diderot atribuí ao espetáculo, cabe ressaltar, um objetivo moral e

pedagógico. O drama, enquanto gênero, não se limita à questão de estilo. Para além

disto, o enciclopedista compreende o teatro como um objeto de estudo para uma maior

reflexão dos fatos ocorridos na vida social. “A impregnação moral da arte é tão

profunda, que não podemos sequer falar de imposição de limites à representação: a

moral não impõe limites à imitação como uma instância superior que se projeta sobre

outra recortando-a, ela é coextensiva à imitação, enquanto imitação da bela natureza.”

(PRADO Jr., 1975, p. 09). Portanto, assim como a filosofia quer combater os

preconceitos, também o teatro deve esclarecer aos homens, ensinando-os a amar a

virtude e detestar o vício. Assim sendo:

Oh, quanto bem não se faria aos homens se as artes de imitação tivessem um objetivo comum, colaborando um dia com as leis para nos fazer amar

a virtude e odiar o vício! Cabe ao filosofo convocá-las, cabe a ele dirigir-

se ao poeta, ao pintor, ao músico e gritar-lhe fortemente: Homens de

gênio, para que fostes dotados pelos céus? Se ele for ouvido, logo as imagens do deboche já não cobrirão as paredes de nossos palácios e

nossas vozes já não serão instrumentos do crime, beneficiando assim o

gosto e os costumes. (DIDEROT, 1986, p. 44).

O filósofo entreve ainda que de forma hipotética, como é necessário que o teatro

interfira de modo crítico e reflexivo na contribuição para fomentar inúmeros feitos na

sociedade. Assim, por meio dos elementos da imitação da bela natureza, fundamentado

na razão, o teatro é o ponto de partida para atingir assuntos profundos em auxílio à

manutenção da sociedade, de suas leis, costumes e do gosto, sempre visando o primor

da moral para atingir a finalidade maior que é chegar à virtude43

.

A questão da virtude, segundo Guinsburg (1987, p. 44) constitui-se como a

pedra de toque no universo moral do enciclopedista, sendo que “é despida de sua estoica

soberba antifísica, a fim de que possa integrar o humano.” Para tanto, o homem perfeito,

43 “No Discurso sobre a poesia dramática, Diderot aconselha aos que se interessam pelo teatro que, ‘ao

escrever, deve-se sempre ter em vista a virtude e as pessoas virtuosas’. O teatro deve ter uma função moral

de exortação à virtude e, após um espetáculo, o ideal seria que o perverso deixasse o camarote ‘menos

inclinado a praticar o mal, como se um orador severo e duro tivesse ralhado com ele’. Aliás, segundo

Diderot, todas as artes de imitação deveriam ter o objetivo comum de fazer os homens amarem a virtude e

odiarem o vício, e cabe filósofo fazer uma convocação geral para que todos se unam nesse empreendimento

pedagógico-moral.” (SOUZA, 2002, p. 104).

67

na visão do filósofo, não deve ser uma marionete ou uma estátua, mas sim aquele que

está intimamente ligado à natureza. Dessa forma: “precisa aliar-se ao homem natural,

Zenão e Epicuro, a razão ao instinto, a alma ao corpo”. (Idem, Ibidem).

A reconciliação do homem consigo mesmo, é aquela que diz respeito ao que

incide neste homem natural com o social. A libertação das paixões naturais e das

necessidades do corpo – caso do homem natural – e a utilização racional dos sentimentos

– que pode ser feita pelo homem social, é condição imprescindível para que ambos, ser

natural e social, associem-se em igualdade de condições, deixando a natureza falar,

contanto que não se sobreponha à racionalidade.

Conforme Guinsburg, a felicidade depende da virtude. No entanto, o homem

livre e o sábio “podem dar-se tanto ao prazer quanto à abnegação, no exercício de uma

existência virtuosa” (Idem, p. 45). Nesse âmbito, a moral e as ciências são vistas de

outra perspectiva por Diderot. Isto acontece porque o filósofo compreende o mundo

secularizado e, nele a única e real presença positiva é a do homem. O fundamento

principal no homem é de seguir a ordem natural e os preceitos da virtude, já que são

inerentes à razão. Contudo, o homem não é tão somente razão. Antes disso, “ser animal,

de complexa organização, é o produto da mistura de germes e, fisiologicamente, gravita

em torno de dois sistemas: o cérebro, centro do sensório, que classifica os dados dos

sentidos e dirige a atividade racional; e o diafragma, centro nervoso autônomo que

governa a sensibilidade e as emoções. ” (Idem, Ibidem).

O teatro, para Diderot, é fundado nos princípios racionais sempre com o

engajamento de contribuição para uma vida social mais justa que busque a verdade, o

bem e o belo.

Para Diderot, a vocação utilitária ou pedagógica do teatro é justificada

pelo axioma que liga substancialmente o verdadeiro, o bom e o belo,

subordinando-os à maneira de uma processão, onde a beleza aparece

como termo derradeiro, derivação última das duas primeiras instâncias: ‘o verdadeiro, que é o pai que engendra, o bom, que é o

filho, donde procede o belo que é o Espírito Santo’. Exclui-se,

portanto, desde início, que uma forma qualquer de arte possa guardar seu valor, se entrar em conflito com a virtude: a imitação da bela

natureza é por assim dizer espontaneamente moral, mesmo quando se

choca com a decência e com as ‘bienséances’- não há valores puramente estéticos. (PRADO Jr., 1975, p. 08-09).

Para Bento Prado Jr., o valor da imitação da bela natureza é de suma importância

para o filósofo, porque também existe em igual estima uma grande preocupação, que é o

68

intuito da imitação da virtude. Assim, “a moral é o objeto próprio da arte, sua matéria e

o éter em que circula.” (Idem, Ibidem). Neste mesmo sentido, Diderot diz o que segue:

A plateia da comédia é o único lugar onde se confundem as lágrimas

do homem virtuoso e do perverso. Lá, o perverso se irrita frente às

injustiças que cometeria, sente compaixão pelos males que causaria, indignando-se diante de um homem de seu próprio caráter. Mas uma

vez recebida a impressão, ela em nós permanece, a despeito de nós

mesmos: e o perverso deixa o camarote menos inclinado a praticar o

mal, como se um orador severo e duro tivesse ralhado com ele. (DIDEROT, 1986, p. 43).

Na visão do enciclopedista, as coisas em sociedade são materializadas a partir do

momento em que haja uma intervenção, que pode ser por meio de uma astúcia da razão,

pela saciedade de leis e por regras, assim aperfeiçoar, consecutivamente, para a

manutenção da moral. Entrementes, a moral precisa ser bem definida e estabelecida por

todos aqueles que interagem em uma determinada civilização. Nesse sentido a natureza

se interpõe e penetra no seio da vida em sociedade, e por diferentes modos e normas a

humanidade tem tendência a investigar e agir conforme instintos naturais aprimorados

pelo convívio em sociedade.

Assim, um poeta debateria a questão do suicido, da honra, do duelo,

da fortuna, das dignidades e muitas outras. Nossos poemas ganharam

desse modo uma gravidade que não tem. Se tal seja for necessária, se provier do fundo, se for anunciada e o espectador a desejar, este lhe

dará toda a atenção, comovendo-se muito mais do que com essas

sentençazinhas alambicadas que compõem nossas obras modernas. (Idem, p. 44).

Para Diderot, o homem não é só razão: é um ser animal de complexa

organização. Guinsburg estabelece que para o enciclopedista, o indivíduo resulta de

uma bipolaridade, em que as diferentes gradações humanas formam a multiplicidade de

indivíduos, do sábio ao medíocre sensível, que podem variar conforme a constituição

fisiológica. Nessa perspectiva, os fatores fisiológicos são “determinantes quanto as suas

[do homem] predisposições inatas e contra elas nada pode a educação” (GUINSBURG,

2001, p. 101).

Por conseguinte, ao nascer, o sujeito tem algumas aptidões – que podem ser

inclinações mais intelectuais ou mais emotivas. Cada um forma para si, mediado por

tais aptidões particulares, um modo de agir no mundo e, dessa maneira, distinguir-se

dos demais. Essa visão materialista44

de Diderot evidencia uma forma para se

44 Segundo Guyot (1973, p. 45): “(...) o materialismo de Diderot se fundamenta desde cedo e temos

69

compreender a atuação do ser racional na natureza45

. Por isso, “a educação só poderá

moldar, refinar, cultivar o que já é em semente”46

(Idem, p. 102).

Segundo Guinsburg, o gênio47

, figura recorrente no pensamento diderotiano,

supracitado é aquele que proporciona à sociedade poder se tornar melhor e mais

instruída. Ele tem em suas mãos o papel de desempenhar e nortear a vida social para um

progresso humano, tanto no âmbito dos costumes, quanto ao que diz respeito às leis. O

gênio não pode medir esforços para ampliar a visão de mundo dos mais sensíveis dos

homens, mesmo que sua ação tenha que ultrapassar os limites legais ou normais48

.

Guinsburg diz que Diderot distingue esse homem dos demais não pelo poder de uma

mera intuição, mas pelo fato de ele saber utilizar a razão: “Ele não está acima, mas

dentro da sociedade.” (Idem, Ibidem). Ele não age de modo tirânico; antes, com o

propósito de uma instrução e esclarecimento para o bem coletivo. Ainda, entende os

princípios que lhe guiam e demonstram seus verdadeiros interesses. É sábio, portanto,

sempre agirá em função do interesse geral. Logo:

Diderot (...) prefere alternadamente a alma razoável à alma sensível, o

estoicismo ao epicurismo, o sacrifício do grande homem ao egoísmo do comum dos mortais, a moral aristocrática à democracia. Mas, ainda

assim, é possível divisar, igualmente, a contínua aspiração de superar

as tendências contrastantes, de chegar a um “justo meio”, a um fiel de balança graduado segundo os princípios de uma moral universal

(Idem, p. 102-03).

advertido nos resultados das investigações cientificas contemporâneas; mas, impulsionado por suas

investigações, o filósofo sobrepõe o universo real cuja organização pretende explicar um universo

infinitamente mais vasto, uma região de mistério e maravilhas, onde ela se manifesta em fluxo e

transforma incessantemente os seres, isso seria, portanto, a imanência divina da vida”. 45 No Paradoxo, Diderot explicita a importância da razão interagindo com e sobre a natureza para

formação de um ator verdadeiro e digno de intervir, compor e ajudar na manutenção da virtude. 46 Parece haver uma espécie de visão inatista de ser humano em Diderot, tal como em John Locke. Ainda

que não seja o mote desta dissertação, é importante frisar este ponto. 47 A genialidade, segundo Diderot (1964, p. 355), “é consequência de uma ‘fibra tirânica’, mais vigorosa

no gênio do que nos outros seres da mesma espécie; ela corresponde ao instinto nos animais, no sentido em que predomina sobre todo o resto do corpo (...). O gênio e o instinto se tocam”. O verbete “gênio”, da

Enciclopédia, “estabelece um interessante comparação entre o gênio e o filósofo. A filosofia exige certas

qualidades, como a atenção, a reflexão, a disciplina, que não se conciliam com o calor da imaginação do

gênio. O filósofo trabalha com paciência, o gênio é levado pelo turbilhão das ideias. Na política, um

homem de gênio é mais apropriado para fundar ou derrubar um Estado do que para governá-lo e mantê-

lo. (SOUZA, 2002, p. 115, nota. 66) 48 Vale lembrar, a partir dessa análise de Guinsburg, sobre o caso que deu início ao debate promovido por

Rousseau na Carta: a questão era exatamente a do homem gênio, ou que se considera gênio, intervindo

nos costumes e leis do povo genebrino.

70

3.4. O Drama para Diderot.

Diderot inicia o Discurso sobre a poesia dramática com a seguinte questão: “Se

um povo não conhecesse senão um gênero de espetáculo prazeroso e alegre, e se lhe

fosse proposto um outro sério e comovente, sabeis, meu amigo, o que pensaria ele a

respeito?” (DIDEROT, 1986, p. 35). A partir deste questionamento, o filósofo enfatiza e

entreve em seus ideários para o teatro “um exemplo doméstico e comum”, possível de

ser observado na natureza e pela razão ser imitado nos palcos do teatro.

É contra as reservas do velho patriarca que ele prefere os antigos, e

Shakespeare a Racine, afirmando que se deve repensar o sistema

clássico e inventar um gênero intermediário, capaz de imitar “as ações mais comuns” da vida, no qual melhor se exprime a natureza humana

tal qual ela é, e não como a fizeram as convenções. A igual distância

da comédia e da tragédia clássicas, esse gênero se divide em comédia séria, cujo objeto é pintar os deveres do homem, e tragédia doméstica,

cuja finalidade é mostrar nossas desventuras privadas (MATOS, 2009,

p. 15).

Segundo Trousson (2007, p. 133), o enciclopedista compreende no Discurso da

poesia dramática que os gêneros que existem para o teatro, no mundo moderno, não

mais condizem com a realidade de seu tempo e é preciso reformular e pensar em outro

modo de dizer e fazer as cenas teatrais. Acaba por eleger um gênero que chamou de

intermediário. Este gênero, estando entre a comédia e a tragédia, é a comédia séria ou o

drama moral. Desta forma, são pautados em problemas do cotidiano em tom mais

familiar, seus diálogos e formas devem ser direcionados a incentivar e apoiar uma nova

visão sobre os interesses privados. Assim também, para os personagens o tom está mais

próximo aos costumes. Esse modo de compreender a realidade é para o filósofo,

superior por haver uma aproximação à ação pedagógica. Com isso também se fazia

necessário que exista a pantomima, a linguagem corporal, que muitas vezes se torna

mais eloquente do que palavras. E na encenação no palco os atores devem ficar muito

mais livres em suas expressões do que no modelo clássico com todas as marcações que

imobiliza o ato explosivo do ator.

O hábito nos torna cativo. Surgiu um homem com uma centelha de

gênio? Produziu alguma obra? A princípio, ele surpreende e divide os

espíritos; pouco a pouco, os reúne; logo é seguido por uma multidão de imitadores: os modelos se multiplicam, as observações se

acumulam, colocam-se regras, a arte nasce e seus limites são fixados.

71

Proclamam-se que é extravagante e ruim tudo o que cabe no estreito

recinto traçado. (DIDEROT, 1986, p. 36).

Todo esse trabalho de revisar o modo de compreender e fazer os espetáculos é,

para Denis Diderot, de suma importância. Ele entende que é preciso reforçar e modificar

o gosto do público, que a princípio não está empenhado em compreender o que está em

cena. Este fato advém porque, na concepção de Diderot, o público sempre foi

acostumado e conduzido a ir aos espetáculos como uma ação de mero encontro de

conveniência com os outros membros da sociedade, a fim de terem um divertimento

risonho. “Se existe um gênero, é difícil introduzir um novo. É este introduzido? Outro

preconceito: logo se imagina que os dois gêneros adotados são vizinhos e se tocam.”

(Idem, p. 37).

Seu modo de pensar o teatro está inteiramente ligado aos homens de gênio. Estes

devem realizar as tramas para os espetáculos. Ainda que, não mais os homens,

necessariamente, devem assistir às representações apenas para alegrar suas almas, sendo

que ao seu término tenham em sua memória apenas o riso jocoso do simples

divertimento que as cenas lhes causam. O que é apenas um divertimento tem que se

tornar também um modo de entrar em contato com outros sentimentos que até então não

tenham sido tocados por mais ninguém. Cabe, ao filósofo despertar esses interesses nos

homens de gênios e consequentemente nas plateias.

Mas quem nos pintará com vigor os deveres dos homens? Quais serão as qualidades do poeta a se propor a essa tarefa? Que ele seja o filósofo, que

tenha mergulhado em si mesmo, vendo desse modo à natureza humana,

que se instrua profundamente sobre os estados em que se divide a

sociedade, conhecendo-lhes bem as funções e o peso, os inconvenientes e as vantagens. (Idem, p. 38).

O teatro moderno até então é visto como uma forma de mero divertimento. Não

toca em temas como a tristeza, a angústia e as diferenças que abatem a sociedade

privada e problemas que são caros ao convívio e modos de vida dos indivíduos do

século XVIII; ou seja, não tocam em temas concernentes ao espaço público. Ao

observar e criticar o teatro moderno, Diderot propõe temas mais familiares aos

indivíduos de sua época, os quais devem estar sempre visitando a memória e o

imaginário popular. Para atingir os costumes de todos, de uma melhor maneira, isto

deve ser feito por poetas e autores, até por conta da facilidade que dispoem. Afinal, tais

temas estão impregnados na natureza. De tal modo, o filósofo explicita o quão

72

importante é o fato dos espetáculos, e junto a eles poetas e autores, tratam de temas que

buscavam sempre o lapidar da virtude.

Tentei dar, em O Filho Natural, a ideia de um drama situado entre a

comedia e a tragédia. / O Pai de Família então prometi, e que foi

retardado por continuas distrações, situa-se entre o gênero sério de O Filho Natural e a comédia. / E se algum dia tiver tempo e coragem,

espero compor um drama que se ache entre o gênero sério e a tragédia.

(Idem, p. 37).

As dores também são sem dúvida, modos de se chegar ao coração mais bruto e

aos mais hipócritas dos indivíduos. Uma cena que apenas despertasse as alegrias não faz

ninguém refletir sobre suas ações em seu meio social, ao passo que uma cena que

desperte os instintos ou dores e medos mais latentes dos seres humanos são

direcionados à reflexão e, em consequência disso, também é um modo de trabalhar o

olhar moral para as atitudes que tenha e que se espera dos outros.

Para o poeta dramático, os deveres dos homens constituem um filão

tão rico quanto seus vícios e ridículos. As peças honestas e sérias

sempre alcançarão êxito, mas certamente ainda mais entre povos corrompidos do que em outra parte. Indo ao teatro eles se esquivarão

da companhia dos perversos que os cercam; e lá que encontrarão

aqueles com quem gostariam de viver; é lá que verão a espécie

humana tal qual é, reconciliando-se com ela. (Idem, p. 39).

Portanto, a forma de condução do teatro que Diderot sugere é a que visa à

formação integral dos indivíduos. Ela deixa transparecer, através de si, o que está nas

ruas, no convívio, nos salões, nas conversas. Com isso, a imitação da natureza se faz

novamente necessária para a compreensão de quem o homem é, para que possa formar

uma moral, um novo jeito de se ver e existir.

As pessoas boas são bem raras, mas existem. Aquele que assim não pensa

acusa-se a si próprio, mostrando como é infeliz junto da mulher, dos pais, dos amigos, dos conhecidos que tem (...)./ Ao escrever, deve-se sempre

ter em vista a virtude e as pessoas virtuosas. Quando tomo da pena, sois

vós, meu amigo que evoco e quando ajo, sois vós que tenho diante dos olhos (Idem, p. 40).

Deste modo, o drama que é evidenciado pelo filósofo tem um caráter

inteiramente ligado às vivências e rotinas das pessoas em seus ambientes comuns, com

seus pares, sempre mirando ambientes e situações as mais corriqueiras possíveis. O

drama burguês, para Diderot, é um dos gêneros mais apropriados para a condução do

público a uma reflexão sobre as questões existentes em seu tempo. Muitos

comentadores relatam que este drama que pretende o enciclopedista, cabe ressaltar

73

novamente, é também aquele pedagógico, sempre em busca da virtude, porque o

filósofo entende que a natureza do homem é boa, e sendo boa deve ser enaltecida e

estimulada.

“A natureza humana é, portanto, boa? ”/ Sim, meu amigo, e muito boa. A água, a terra, o fogo, tudo é bom na natureza; o furacão que se ergue

no fim do outono sacode as florestas, lançando as árvores umas contra as

outras, quebrando e separando os galhos mortos; a tempestade que castiga as águas do mar purifica-as; e o vulcão, que derrama de seu

flanco entreaberto ondas de matérias incandescentes, elevando aos ares o

vapor que os depura./ Não se deve acusar a natureza humana, mas

miseráveis convenções que a pervertem. Com efeito, o que nos comove tanto quanto a narrativa de uma ação generosa? E que desgraçado

ouviria friamente as lamurias de um homem de bem? (Idem, p. 43).

Assim sendo, Diderot concorda com Rousseau, apesar das querelas no que diz

respeito à questão da civilização e os luxos que iniciam um processo de degradação dos

costumes, fazendo com que os vícios sejam a fonte de prazer dos homens civilizados.

Desde que é preciso reverter essa deterioração dos valores por meio do teatro, visando

evidenciar o lado bom e virtuoso que todos naturalmente têm. Logo, essa mesma

civilização que destruiu o lado bom do homem pode auxiliar a restituir os bons costumes,

sempre fixados e pautados na natureza em parceira com os homens de gênio, que sabem

utilizar a razão de modo eloquente.

O poeta, o romancista, o comediante chegam ao coração de uma forma

enviesada e atingem tão mais segura e fortemente a alma, quanto ela própria se estende e se oferece ao golpe. Os males que me enternecem

são imaginários, admito-o: mas me enternecem (...) arte mais preciosa

que a que me liga imperceptivelmente à sorte do homem de bem; que me subtrai da situação tranquila e doce de que usufruo, para me fazer

caminhar ao lado dele; mergulhar nas cavernas onde se refugia e me

associar a todos os reveses pelos quais o poeta se deleita em por à prova

sua constância? (Idem, p. 43-4).

3.5. O gesto é a palavra.

Com os ideais do filósofo para as modificações sobre o teatro moderno francês,

sugere que estas mudanças se aproximem da plateia, sendo mais articulado com a

sociedade burguesa do século XVIII. Diderot enfatiza o gênero dramático como o mais

74

próximo à realidade do público. Isto não quer dizer que o espectador tem que ser o

centro das atenções e que tudo deve ser conduzido do modo que este imagine ou queira.

O espectador é um membro importante na plateia, assim como quaisquer outros

elementos contidos no palco, seja atores ou a história desenvolvida pelo poeta.

Se se tivesse entendido que, apesar de uma obra dramática ser feita

para a representação, seria necessário, entretanto, que autor e ator esquecessem o espectador, e que todo o interesse dissesse respeito às

personagens, não se leria tão frequentemente nas poéticas: fazemos

isto ou aquilo, exercereis tal ou qual impressão sobre vosso espectador. Ao contrário, se leria: fazemos isto ou aquilo, eis o que

resultará para vossos personagens (Idem, p. 77).

Denis Diderot insiste que para existir um novo gênero é preciso também que os

discursos se modifiquem. Segundo Franklin de Matos (2009, p. 15), o discurso

ordenado “não é o melhor meio de expressar as paixões, ao contrário dos gritos não

articulados, das expressões faciais, dos gestos”. Para tanto, é preciso, além da

valorização da pantomima do ator, que exista um realismo que recomende que os textos

dramáticos sejam escritos em prosa, como um romance. Também se faz relevante que

sejam evidenciados e destacados os cenários e os figurinos. Neste ponto, é importante

que se resgate a simplicidade da natureza para “restabelecer a dimensão propriamente

espetacular da cena, trazê-la da corte para o quotidiano doméstico – eis, enfim, os

significados maiores da reflexão de Diderot sobre o teatro.” (Idem, Ibidem). Diderot

(1986, p. 45) foi enfático nesta questão: “Não quero sair do teatro levando palavras, mas

impressões. Raramente se enganará aquele que declara obra medíocre um drama ao qual

serão citados muitos pensamentos soltos poeta excelente é aquele cujo efeito permanece

muito tempo em mim”.

Franklin de Matos destaca ainda, o quão importante é levar para o centro da

discussão um dos traços que possui grande relevância no pensamento do filósofo e está

em contradição com as longas tiradas do teatro clássico. Isso ocorre porque nos

argumentos teatrais que Diderot elabora a cena não está organizada em torno da palavra.

O drama é nada mais que diálogos, simples e econômicos, sendo fortemente

pontuados por olhares, gestos, silêncios e ruídos, igualmente convocados a falar, ou

seja, todo o corpo também diz. A pantomima é um processo de grande valia para o

“dizer”. Assim sendo:

75

A exemplo da passagem de Ésquilo que serve de modelo a Diderot, é o

mínimo de discurso que lhe dá o máximo de força e energia. Conduz a

princípio a dois quadros, preenchidos por gritos dolorosos e lágrimas: os quadros do pai desesperado e da mãe piedosa. Este último é mudo, pois a

força da religião contém, por enquanto, as “verdadeiras vozes” da

natureza, que falarão a seu tempo. O outro é contundente, preenchido pelos gritos aflitos do pai, que não hesita em lançar-se ao chão. Ele

desafia corajosamente os códigos tradicionais de decoro e procura deixar

que as paixões se exprimam da maneira mais forte. O protagonista “faz e

diz tudo aquilo que o desespero sugere a um pai que perde o filho”: na verdade, sua ousadia não apela propriamente para nossa imaginação de

leitores, mas para “aquilo que ninguém ouvirá sem logo reconhecê-lo em

si mesmo”. (MATOS, 2009, p. 13).

Ida Hisashi (1999) explicita que Diderot compreende a existência de um paralelo

entre linguagem falada e linguagem do gesto, e que ambas são parte da ordem natural

para a formação da linguagem. Para tanto, faz a comparação de uma pessoa que é surda

de nascença e aquela que se torna surda ao longo da vida. Para o enciclopedista, esses

dois indivíduos se formam diferentes em relação ao uso dos sentidos. Diz ele:

A unidade pura e simples é um símbolo demasiado vago e demasiado

geral para nós. Nossos sentidos nos reconduzem a signos mais análogos à extensão de nosso espírito e à conformação de nossos órgãos. Fizemos

mesmo as coisas de maneira que esses signos pudessem ser comuns

entre nós, e que servissem, por assim dizer, de entreposto ao comércio mútuo de nossas ideias. Instituímos alguns para os olhos, são caracteres;

para o ouvido, são articulados; mas não possuímos nenhum deles para o

tato, embora haja maneira peculiar de falar a esse sentido, e obter dele

respostas. (DIDEROT, 1985, p. 11).

De acordo com Diderot, a falta da linguagem impossibilita a comunicação

mesmo aos que nascem sem nenhuma deficiência. Ao passo que tanto os surdos e cegos

quanto os que são dotados de todos os sentidos, precisam de sucessivas ideias fixadas

por hábitos e costumes para se comunicarem entre si. Com isso, não é necessário voltar

para a gênese após a criação do mundo, nem à origem da linguagem, para compreender

a importância do gesto e dos sentidos para se fazer compreensível.

O conhecimento tem três portas para entrar em nossa alma, e nós

mantemos uma trancada por falta de sinais. Se se houvesse negligenciado as duas outras, estaríamos reduzidos à condição dos

animais. Do mesmo modo que só dispomos do apertar para nos fazer

entender pelo sentido do tato (...) é preciso carecer de um sentido a

fim de conhecer as vantagens dos símbolos destinados aos que restam (Idem, Ibidem).

Os acordos silenciosos engendram inconscientemente nas culturas, por meio de

gestos como modos de se comunicar. Estes interferem intimamente nas maneiras como

cada sujeito age, assim como em suas expressões de ideias; também se pode verter,

76

apesar de não necessariamente, para a linguagem articulada. Desta forma, pode-se

“traduzir” a maioria dos gestos, articulando e dando significados com palavras. No

entanto, há gestos intraduzíveis em palavras. A exemplo disso temos o teatro que

apresenta frequentemente gestos sublimes à eloquência da oratória, o que nem sempre

pode ser traduzido.

Afirmei que a pantomima é uma parcela do drama; que o autor deve

dedicar-se a ela seriamente; que se a pantomima não for algo familiar e presente para ele, não será capaz de começar, desenvolver ou terminar a

cena com alguma verdade; e que muitas vezes deve-se escrever o gesto

no lugar do discurso. (DIDEROT, 1986, p. 117).

A expressão por movimentos corporais postula, para Diderot, a qualidade da

cena, uma vez que em ato, no palco, existe um jogo entre atores que só a pantomima

pode dar conta, por ser essa “facilitadora das impressões” que chega até o coração dos

espectadores. Assim, o filósofo afirma que “há cenas inteiras em que é infinitamente

mais natural que os personagens se movam do que falem” (Idem, Ibidem).

Diderot insiste sobre a importância de uma observação atenta às ações naturais

do mundo, para que assim os caracteres expressos pelos comediantes se tornem e

tenham a devida compreensão do significado de uma imagem. O filósofo entende que

no teatro, a partir da força do sentido e pelas cenas patéticas, as ações conseguem afetar

muito mais que os discursos. De tal modo: “Uma das principais diferenças entre o

romance doméstico e o drama é que o romance segue o gesto e a pantomima em todos

os detalhes, e o autor se dedica principalmente a pintar os movimentos e impressões;

enquanto o poeta dramático lança a respeito apenas uma palavra, de passagem.” (Idem,

p. 124).

3.6. A constituição do gosto.

No capítulo final intitulado “Dos autores e dos críticos”, contido no Discurso

sobre a poesia dramática, Diderot faz uma observação sobre o papel que exerce o

crítico e o autor, demonstrando suas importâncias e problemáticas e etc...

Diderot inicia escrevendo o que terceiros dizem sobre os críticos: “Os viajantes

falam de uma espécie de homens selvagens, que sopram nos passantes agulhas

77

envenenadas. É a imagem de nossos críticos” (DIDEROT, 1985a, p. 195). Para ele, essa

afirmação parece exagerada. Com isso, diz sobre os críticos de seu tempo: “eles se

assemelham bastante a um solitário que vivia no fundo de um vale cercado de colinas.

Esse espaço limitado para ele era o universo” (Idem, Ibidem). Como para eles tudo se

conhece através daquele ponto de vista, acham que já sabem e já viram tudo. Ao saírem

de seu “mundo particular” e percorrerem caminhos, os quais nunca antes haviam visto,

espantam-se, admiram-se e mudam de discurso; agora, não sabem de nada, não viram

nada.

O crítico faz o papel de quem se espanta diante do que não conhece, ao mesmo

tempo em que é aquele ser que se julga sábio. Ele está no posto da ignorância. Aqui o

enciclopedista faz uma crítica aos que se colocam em um patamar acima dos outros,

sem ao menos saber se posicionar diante do mundo que o cerca. Segundo o

enciclopedista, a posição dos críticos de seu tempo assemelhava-se a indivíduos que

nunca saem de suas choupanas, nunca perdem a elevada opinião de si próprios. Isso os

levam a uma análise um tanto que rasa das coisas, sendo muitas vezes irrelevante ou até

mesmo desconexa com a realidade na qual se viviam.

No tocante aos autores, seus contemporâneos, Denis Diderot diz que o autor em

sua função tem um papel vão, uma vez que ele próprio se julga em plena condição de

dar lições ao público. Mais vão ainda é o papel do crítico, pois é quem se julga com o

dever de dar lições para os autores, os quais também se julgam os únicos capazes de

direcionar o público. De tal modo, autor e crítico usam de artimanhas para atraírem

adeptos e seguidores entre o público.

O autor diz: “Senhores, escutai-me; pois sou vosso mestre”. E o crítico: “É a mim, senhores, que cumpre escutar; pois sou o mestre de

vossos mestres”. Quanto ao público, toma o seu próprio partido. Se a

obra do autor é má, zomba dela, assim como das observações do crítico, caso sejam falsas. O crítico brada depois disso: “Ó tempo! Ó

costume! O gosto está perdido!” e ei-lo consolado. (Idem, Ibidem).

Contudo, o público age de modo imparcial: ora se encontra favorável ao crítico,

ora ao autor. Se a obra for má, zombam e maldizem a obra. Igualmente fazem com as

observações dos críticos e, se acham falsa suas censuras, nem as ouvem e muito menos

as seguem.

Diderot observa que a crítica age de modo distinto quando se trata da análise de

uma obra de um autor que está vivo e de outro que está morto. Quando morto, a crítica

78

realça as suas qualidades e disfarça as imperfeições e defeitos. Se está vivo,

evidenciam-se apenas os defeitos, esquecendo-se de quaisquer qualidades. A explicação

para isto é que, ao passo que os vivos podem ser corrigidos, os mortos não mais terão

recurso para realizar e aprimorar tal feito.

No entanto, demonstra que a mais severa crítica de uma obra é a que é feita pelo

próprio autor, uma vez que ele conhece os seus vícios secretos, aqueles que quase nunca

são encontrados e notados pelos críticos. Isso recorda a frase de um filósofo: “Eles falam

de mim? Ah! Se me conhecessem, como eu me conheço!” (EPICTETO apud DIDEROT,

1985a, p. 195).

O Enciclopedista, após demonstrar as facetas dos autores e críticos de seu tempo,

recorre aos autores e críticos antigos e comenta que principiam por se instruir e nunca

entram na carreira das letras antes de sair das escolas de filosofia. Diderot explica que no

século XVIII, todos estão apressados para aparecer, dizer algo, deixar sua marca no

mundo, e não são, talvez, os homens de gênio, nem esclarecidos o bastante e, tampouco,

são pessoas de bem49

. De tal maneira, compreende que isso corrompe o gosto por não se

levar em conta quem faz ou direciona o belo e o bom em meio à sociedade. Se o sistema

moral está corrompido, é inevitável que o gosto seja falso.

A verdade e a virtude são amigas das belas-artes. Quereis ser autor?

Quereis ser críticos? Começai por ser homem de bem. Que esperar de

quem não pode afligir-se profundamente? E de que me afligirei eu profundamente, senão da verdade e da virtude, as duas coisas mais

poderosas da natureza? (DIDEROT, 1985a, p. 196).

Por conseguinte, Diderot exemplifica a formação do caráter de um indivíduo,

através da interação de três figuras comuns em qualquer coletividade: o avaro, o

supersticioso e o hipócrita. Ainda, detém-se mais no primeiro tipo. Assim, diz que o

homem avaro é pouco confiável e não se pode esperar dele algo grande: “esse vício

apouca o espírito e estreita o coração” (Idem, Ibidem). O avaro não se sensibiliza com a

dor alheia; é duro, não conseguindo por isso, atingir o sublime por estar sempre

preocupado com seu cofre, com seu pedaço de metal amarelo. Além de se concentrar em

si mesmo, desconhece que o tempo e a vida são breves e, para ele, a felicidade do outro

não faz sentido. Desse modo, o enciclopedista diz o que segue: “Jamais conheceu o prazer

de dar a quem carece, de aliviar quem sofre, e de chorar com quem chora. É mau pai, mau

49 Neste ponto compreende-se que o vício pode tomar conta da sociedade, uma vez que ela valoriza

apenas o saber sem analisar as questões virtuosas dos indivíduos.

79

filho, mau amigo, mau cidadão. Na necessidade de escusar-se de seu vício, formou para si

um sistema que imola todos os deveres à sua paixão.” (Idem, Ibidem).

Por sua vez, o homem supersticioso é outro tipo que não é tocado pelo que é

belo e bom: possui a vista perturbada. O hipócrita, por fim, possui o coração falso.

(Idem, Ibidem).

Ao pensar esses tipos que a sociedade esclarecida produz, carregados de vícios

problemáticos para a formação íntegra de um homem que busca a virtude, Diderot

aconselha o autor no ato da escrita para seu público. Deve-se sempre buscar a máxima

da virtude e as pessoas que têm práticas virtuosas. Desse mesmo modo, também o teatro

deve ter a função moral de exaltar à virtude. Tal como Maria das Graças de Souza

(2002, p. 103-4) afirma:

(...) após um espetáculo, o ideal seria que o perverso deixasse o

camarote menos inclinado a praticar o mal, como se um orador severo e duro tivesse ralhado com ele. Aliás, segundo Diderot, todas as artes

de imitação deveriam ter o objetivo comum de fazer uma convocação

geral para que todos se unam nesse empreendimento pedagógico-moral.

Neste ponto da discussão, Diderot, na figura de Aristo50

, nos conduz a pensar

sobre como se dá a formação do gosto e quais são os meios para compreensão do que

pode ser verdadeiro, bom e belo, uma vez que se deve levar em conta que os homens são

múltiplos e as formas de interações sociais também são: “Estudei muito: chamam-me o

Filósofo. Se, entretanto, se apresentasse aqui alguém que me dissesse: ‘Aristo, o que é o

verdadeiro, o bom e o belo?’ Teria eu minha resposta pronta? Não. Como, Aristo, não

sabeis o que é o verdadeiro, o bom, o belo; e suportais que vos chamem de filósofo!”

(DIDEROT, 1985a, p. 196).

Aristo esclarece o quão difícil é responder à pergunta do que é verdadeiro, bom e

belo, por compreender que não há em toda a espécie humana dois indivíduos que

disponham de alguma semelhança. Compreende que tudo tem uma vasta diversidade,

desde a organização geral das coisas até os sentidos, a figura externa, as vísceras. Tudo

que existe tem uma grande diferença e é preciso saber distinguir com atenção e criticidade

as multiplicidades do mundo.

50 O próprio Diderot.

80

As figuras, os músculos, os sólidos, os fluidos, tem sua variedade. O

espírito, a imaginação, a memória, as ideias, as verdades, os prejuízos,

os alimentos, os exercícios, os conhecimentos, as condições, a educação, os gostos, a fortuna, os talentos, tem sua variedade. Os

objetos, os climas, os costumes, as leis, os usos, as práticas, os

governos, as religiões, tem sua variedade. Como seria, portanto, possível que dois homens possuíssem precisamente o mesmo gosto,

ou as mesmas noções do verdadeiro, do bom e do belo? A diferença

da vida e a variedade dos acontecimentos bastariam por si para

estabelecê-la no julgamento. (Idem, p. 197).

Contudo, as reflexões não param por aqui e os questionamentos do gosto, do

verdadeiro, do bom e do belo estão sempre em voga, porque o homem está condenado a

uma instabilidade perpétua, seja no âmbito físico, seja no moral. Somente por meio da

memória que se pode entender quem se é, e o que é o coletivo; assim como também se

pode entender que este indivíduo, se faz presente para si e para o outro. Mesmo assim,

ao longo do tempo tudo muda: o corpo já não é o mesmo e nem os quereres

permanecem iguais. Portanto, como é possível que haja um só entre nós que conserva

durante toda a existência o mesmo gosto, e que profere os mesmos julgamentos sobre o

verdadeiro, o bom e o belo? As revoluções, causadas pela aflição e pela perversidade

dos homens, bastam por si para alterar seus julgamentos. (Idem, Ibidem).

O personagem mais uma vez se interroga na tentativa de encontrar respostas, de

forma mais coerente: como pode com tantas multiplicidades se configurar no homem

um único modelo a que esse pode seguir? Então, examina e conclui que cada sujeito

nunca pode ter um olhar único para as questões do gosto. Assim, enquanto todos tomam

a si mesmos como modelo e como juízes nunca há um acordo entre as coisas. Afinal,

existem infindas medidas quanto infinitos sujeitos. Desse modo, é necessário buscar a

justa medida fora do indivíduo, pois este tem invariavelmente, “julgamentos que podem

ser falsos e todos incertos. ” (Idem, Ibidem).

Outrossim, é imprescindível a busca de um modelo ideal, de um homem ideal

que se constitua por elementos constantes – sendo estes elevados, observados, estudados

a todo o momento e que devem ser encontrados na natureza. Deve ser então, um

composto de elementos, tal como fazem os antigos escultores.

(...) sendo o homem ideal que procuro um composto como eu, os

antigos escultores, ao determinarem as proporções que lhes pareceram

mais belas, fizeram uma parte de meu modelo... Sim. Tomemos esta estátua, e animemo-la (...). Concedamos-lhe os órgãos mais perfeitos

que o homem possa ter. Dotemo-la de todas as qualidades que são

81

dadas a um mortal possuir, e nosso modelo ideal estará feito. (Idem,

Ibidem).

Ainda assim o filósofo compreende que, para a constituição desse indivíduo, é

preciso haver conhecimentos e agregações de tipos físicos, naturais e morais. Aristo sem

embargo, se coloca em dúvida e reflete que mesmo com todo esse aparato e saber, seja

pela arte ou ciência, o estudo deve ser constantemente aprofundado, analisado e revisto.

Mesmo assim, o “modelo geral ideal é impossível de formar, a menos que os deuses me

concedam sua inteligência e me prometam sua eternidade: ‘eis-me, portanto, recaído nas

incertezas, de onde me propusera sair’” (Idem, Ibidem).

A ética para Diderot, conforme Guinsburg (2001, p. 104) elucida, é o nervo

motor de tudo quanto diz respeito ao humano. Desta maneira, tanto em política quanto

em estética a chave será sempre a busca da verdade e da virtude, porque são amigas das

belas artes. Sendo que, o valor da arte não está em seu aspecto formal, a técnica em si

sem ideias, é insuficiente e estéril.

O oficiante do ritual é o artista, mediador entre seus modelos ideias e o estado de natureza. E quanto mais frio e deliberado o entusiasmo de

sua invocação, mais clara e precisa será a sua execução e maior o seu

poder de sensibilização, o sopro que universaliza a obra e inspira o seu caráter exemplar, demiurgo da virtude edificante da arte. (Idem, p.

105-6).

O personagem infere com pesar, algumas ideias sobre o modelo ideal de homem.

Nesta forma, ao analisar com maior profundidade tanto o escultor, quanto o homem de

letras percebe que também utilizam do mesmo artifício da imitação, para a formação de

um tipo ideal. Portanto, o modelo ideal tem mais minúcias cada vez que, o

conhecimento e o estudo se ampliam não havendo com isso, nenhum indivíduo que

julgue de forma mais igual que outro. Neste âmbito, ao compreender o que é um homem

de gosto, observa que se este modelo ideal existe e junto a ele todas as perfeições para a

formação da virtude, na certa se trata de uma quimera.

Aristo se interroga quanto ao que faz com o título de filósofo que lhe atribuem, e

se existe tal modelo ideal. Ainda, percebe que deve agir da mesma maneira que os

pintores e escultores, os quais podem modificar as suas obras segundo as circunstâncias

que lhes foram atribuídas ou, na qual estão envoltos. Assim sendo: “É o estudo das

paixões, dos costumes, dos caracteres, dos usos, que ensinará ao pintor do homem a

82

alterar seu modelo e a reduzi-lo do estado de homem ao estado de homem bom ou mau,

tranquilo ou colérico. ” (DIDEROT, 1985a, p. 198).

Com isso, Aristo aprende e se dedica à busca do modelo ideal, em uma profunda

dedicação aos estudos da história, da filosofia, da moral, das ciências e das artes. Deste

modo, entende e pode ensinar, por meio da virtude, o que é ser um homem de gosto,

porque ele próprio se torna esse homem superior, o qual pretende e se preocupa Diderot.

Aristo agora é um homem de bem, instruído, de gosto, grande autor e crítico excelente.

(Idem, Ibidem).

83

Considerações Finais

No século XVIII francês, com as muitas modificações na sociedade (ascensão da

burguesia, Revolução Francesa e etc.), os modos de vida transformaram-se fortemente. O

sujeito político – cidadão – foi uma “invenção” histórico-humana da época para propor

acordos sociais. Concomitantemente, fez-se necessário engendrar novos costumes, moral

e leis para compreender e constituir todas as ações dentro da sociedade. Junto a isso,

houve desenvolvimento das ciências, valorizando a razão como agente do processo social

e cultural. A razão como dominadora da natureza e de todas as formas materiais da vida

se contrapôs aos ideais clérigos, ainda vigentes à época, que estavam pautados em

dogmas.

As relações estabelecidas em sociedade estavam pautadas em códigos

constituídos por leis que, firmadas na moral da “boa sociedade”, precisavam do outro –

indivíduo – para que fossem possíveis as trocas materiais, política, econômica, social e

de ideias, consolidadas em interesses particulares com possibilidade de vir a ser

universalizada.

Além disso, as formas de vida se davam pela separação entre espaço público e

espaço privado. Isto possibilitara o reconhecimento dos direitos e dos deveres do povo –

poder político, autonomia, liberdade de expressar anseios – por conta do século XVIII ser

o período de exaltação da razão. O indivíduo era o centro do conhecimento e da cultura.

Assim se fez necessário recorrer, para compreender aquela separação e as formas de vida

e suas transformações, vigentes no século às reflexões sobre o teatro na concepção de

Denis Diderot.

As questões, que abordamos por meio do pensamento de Diderot, possibilitou

compreender os problemas e a importância que constitui a arte, em especial no tocante ao

teatro, no pensamento do filósofo. Assim, vislumbramos os novos rumos que o

enciclopedista possibilitou para a cena do teatro moderno, o gênero sério ou drama, o qual

inovou o modo de retratar a vida no século XVIII. Também no que diz respeito aos

modos de lidar e entender as interações, que o cidadão realiza em público, com a

natureza, em seus espaços sociais de convívio, além de aprofundar acerca das técnicas e

teorias que dizem respeito aos atores, suas formas de atuação e a constituição de uma

84

personagem que deve sempre estar em consonância com a natureza pela apuração da

razão.

Nesse sentido, ao representar, o sujeito toma contato com as obras dos poetas,

com seu meio e suas formas de se relacionar. Por meio disso, engendra suas várias

personagens. Não obstante, segundo a teoria do Paradoxo, necessitava em primeiro

lugar, da observação atenta para o mundo natural, uma vez que era pela natureza como

fundamento essencial de sua prática, que o ator consegue retirar os modos de vida para a

constituição de suas personagens. Desta forma, a natureza oferece artifícios, dos quais o

ser humano se vale para transformar, imitar, representar e agir em sociedade para

formalizar uma virtude.

A teoria da formação do bom ator, contida no Paradoxo possibilitou um novo

olhar para a arte de dramatizar uma cena. Vimos com isso como o indivíduo, que era o

comediante, deve exercer um olhar profundo para a natureza, por ser aquele que tem o

poder de penetrar no mundo para retirar argumentos, formas, cores, jeitos, modos,

cultura, sons e movimentos, sem deixar de ser ele próprio. Através disso, molda uma

personagem, pois quem se deparar diante da imagem construída pelo comediante verá

uma representação tão fidedigna do mundo que ninguém poderá compreendê-lo de

outro modo, uma vez que utiliza a persuasão e um modelo ideal para transmitir algo por

quem representa. Portanto, a necessidade dos artifícios se faz de extrema necessidade

para o ator realizar sua interpretação para o mundo que o circunda.

Diderot exige do ator um distanciamento da sensibilidade pessoal. A sensibilidade

de nada vale para o atuar e se vir à tona no ato da representação, seu esplendor poderá ser

efêmero, fazendo cair, quase que inevitavelmente, em um grande fracasso. Por este motivo

o filósofo alerta que o grande ator deve estudar a natureza a fim de transmiti-la com

racionalidade, porque se não tiver o domínio da ação e dos seus sentimentos, não

conseguirá realizar a arte da boa imitação e muito menos despertar na plateia uma ação

verossímil. Desta maneira, não corroboraria, de modo pedagógico, para ações virtuosas.

Este didatismo pedagógico é imprescindível para o teatro e de suma importância para

apurar a moral e a virtude, uma vez que a plateia, ao sair do espetáculo, estará muito mais

inclinada a praticar o bem.

O ser que está em sociedade poderá até representar em seu cotidiano, no entanto

não priorizará elementos essenciais para a arte da real representação. Estes não são atores,

85

são cidadãos. Ao serem colocados inteiramente sós não saberão o que fazer; caso se

agrupem em duplas ou em trios agirão sem a mínima noção e razão. Mas se fossem dados

elementos para que pudessem ensaiar e exercer alguma função, não mais estarão tão

naturais51

. Sendo assim, para haver algum tipo de atuação representativa, é necessário o

direcionamento do olhar, da sensibilidade e, por fim, o estudo apoiado na racionalidade.

O homem que está em sociedade, portanto, pode simular várias situações, não

havendo a mínima necessidade de que haja nele um sentimento qualquer. Mas essa

atitude, esse papel que o homem tende a representar, é de tremenda dificuldade, muito

maior que o trabalho do ator. Mesmo assim, o homem que está presente nos meios de

socialização da vida necessita compreender-se em suas diversas faces. Muitas vezes

encontra-se em várias situações dentro da sociedade que o obriga a desempenhar um

papel para cada uma a que seja submetido.

Podemos, com isso, concluir que, em sociedade, a utilização de artifícios como

lisonja, hipocrisia e adulação, constitui caráter na maneira de ser em sociedade. Dessa

forma, alguns podem se valer de uma aparência, mesmo que essa nada tenha em relação

com a verdade ou a virtude. Por sua vez, o sujeito pode agir como um ator se

aproveitando de artifícios para persuadir e convencer quem o cerca, normalmente

demonstrando suas virtudes em sociedade. O aparentar ser tem, mais importância e

maior prestigio.

Em um trecho de O Sobrinho de Rameau, Diderot deixa clara a hipocrisia e

crítica à sociedade de sua época: “Elogiamos a virtude, mas odiamo-la, dela fugimos,

mas ela gela de frio, e nesse mundo precisamos ter pés quentes”. A virtude é sempre

louvável e almejada, mas não diverte. O adulador precisa alegrar seus patrões. “Ora, o

ridículo e a loucura é quem fazem rir, é preciso, portanto, que eu seja ridículo e louco”

(DIDEROT, 1962a, p. 33).

Segundo Piva, Diderot aconselha que se deve ser compreensivo com os indivíduos

que tenham uma inclinação à prática do mal, mas não se deve, contudo, ser permissivo e

deixá-los impunes: “por ser um homem um ser modificável, resta ao celerado a esperança

de se corrigir mediante a educação, a arte ou pelo exemplo da execução pública de

51 O homem em sociedade rompe com a natureza ou o modo natural de ser. A sua função junto à natureza

é de domínio. Ao se valer de leis, costumes e regras para se portar ante outros, torna-se um ser artificial.

86

celerados irrecuperáveis” (PIVA, 2003, p. 348). No entanto, é preciso compreender que se

não houver liberdade não existirá vício, muito menos virtude.

Eu: Uma sociedade não deveria ter em absoluto leis más; e se tivesse

apenas boas, jamais seria compelida a perseguir um homem de gênio.

Eu não vos disse que o gênio estava indivisivelmente ligado à maldade, nem a maldade ao gênio. Um tolo será com mais frequência

um malvado do que um homem de espírito. Ainda que um homem de

gênio fosse comumente de duro trato, difícil, espinhoso, ainda que

fosse um malvado, o que ireis concluir daí?Ele: Que era bom para ser afogado. (DIDEROT, 2006, p. 48-9).

A moral em Diderot é paradoxal52

. Nesse âmbito, aparece não só na estética do

filósofo, mas também em outros temas, sobretudo na moral e política. Assim, comenta

Maria das Graças de Souza (2002, p. 100):

(...) paradoxo do homem virtuoso que, embora reconhecendo que sua

vontade é sempre determinada, estabelece para si mesmo normas de conduta como se ele fosse livre. Além disso, num primeiro momento,

essas normas em si mesmas são paradoxais na medida em que

consistem ao mesmo tempo na busca do prazer e no domínio da razão

sobre os sentimentos e as paixões.

Muitos comentadores concordam que no pensamento de Diderot nada é linear.

Assim, de acordo, com Piva (2003, p. 349-50),

sua moral materialista justifica-se paradoxalmente (...) o sábio

materialista é aquele que, por intermédio da sua razão, empenha-se em

conter, sacrificar ou superar determinadas inclinações da sua organização, ou melhor, de sua natureza humana, procurando

combinar, pela justiça, a sua felicidade individual com seus atos.

Por fim, como acrescenta Fontenay as preocupações com a verdade e a justiça

nunca deixaram de ser refletidas e aprofundadas no pensamento de Diderot. Por este

motivo, suas ideias sempre estão em movimento, fazendo com que o leitor também se

movimente. Os interlocutores conseguem atravessar como veteranos e pioneiros todos

os domínios do conhecimento. Diderot nunca deixa de agitar o leitor, mesmo que

suavemente com algo que é da ordem do desejo.

Sedução, o ato de partilha e confronto, que formam o espírito da

conversa, então proposto como regras para o escritor; não tem “como

um guia ao invés de uma impetuosidade natural.” Diderot nunca negou

a confissão que ele fez para Naigeon: “eu componho, eu não sou o autor. Leio ou converso, interrogado ou respondo Eu não sou o autor...”

Mas aqueles muito numerosos, que tenham retornado tais contra dita

52 “Entendia-se por paradoxo no século XVIII tudo aquilo que disse aparentemente absurdo, embora no

fundo, fosse verdadeiro.” (PIVA, 2003, p. 348).

87

confidência não tenham entendido que esse gosto do plágio e essa

aceitação do anonimato dependia de um projeto de escrita: a realização

indistinções de vozes. (FONTENAY, 1988, p. 314).

88

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