pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo. … · 2017-02-22 · amizades, pelas dicas...
TRANSCRIPT
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO.
PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM FILOSOFIA.
Carolina Ribeiro Paraíso Araujo.
A NATUREZA ARTIFICIAL DO TEATRO:
DIDEROT E OS PARADOXOS.
MESTRADO EM FILOSOFIA
SÃO PAULO
2016
2
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO.
PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM FILOSOFIA.
Carolina Ribeiro Paraíso Araujo.
A NATUREZA ARTIFICIAL DO TEATRO:
DIDEROT E OS PARADOXOS.
MESTRADO EM FILOSOFIA.
Dissertação apresentada por Carolina Ribeiro Paraíso
Araujo, à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (PUC-SP), como um dos requisitos
para obtenção do título de Mestre em Filosofia.
Orientadora: Profa Dra.: Maria Constança Peres Pissarra.
SÃO PAULO
2016
3
BANCA EXAMINADORA
______________________________________
______________________________________
______________________________________
4
Aos meus pais, pela presença, sustentação,
inspiração constante em minha vida. Leonardo pela
partilha, companheirismo e incentivo.
Graciela Deri de Codina em memória pelos
ensinamentos, sabedoria e constante incentivadora.
5
Agradecimentos.
Esta é a parte mais grandiosa para não dizer complexa, que fica ocultada, mas também
compõe esta imensa pesquisa. Aqui por meio dessas singelas palavras escorrem
emoções e vivências que jamais serão sentidas duas vezes da mesma maneira. Em cada
linha estão contidos as lembranças, memórias, caminhos, tropeços e recomeços que
constituem toda a trajetória dessa dissertação ora apresentada. Sendo assim, não posso
deixar de elevar o pensamento à magnitude do cosmos que me move, me sustenta, me
anima e fortalece a cada manhã.
Agradeço aos meus queridos e amados pais Izilda e Ubirácio pelas horas de conversas,
pelas discussões políticas, sociais, profissionais e pessoais, meus dois grandes exemplos
de vida, incentivadores e apoiadores intelectuais e emocionais, meu porto-seguro!
Ao meu irmão e melhor amigo Leonardo, o qual se faz presente em todos os momentos
de minha vida, pelo apoio, incentivo intelectual e zelo, além das muitas horas de
conversas “gastas”, discussões infinitas, risadas, brigas, intercâmbio de ideias e
amizades, pelas dicas culinárias, pelos conselhos, pelas piadas, por me ensinar tanta
coisa, com sua gana e leveza agrega sempre mais coisas, agradeço também a Bruna
(cunhada e amiga) pelas conversas, dicas e acolhidas sempre pontuais, que veio somar
para as interações e discussões familiares.
A minha família de longe e de perto, pela torcida e amorosidade, em especial à Camila e
Juliana pelas singelas e grandiosas contribuições.
A caríssima Profª e orientadora Dra. Maria Constança Peres Pissarra, que muito
auxiliou, incentivou e generosamente contribuiu para essa árdua e prazerosa pesquisa,
seja em aula, nas reuniões de grupo, nas conversas informais ou nas propriamente ditas
conversas acadêmicas, e até mesmo nas muitas dicas e referências, as quais colaboraram
e engrandeceram de forma eficaz na realização e conclusão desta dissertação. Assim
agradeço pela paciência, amizade e dedicação em todos esses anos, proporcionando uma
ampla discussão para minha pesquisa.
As Profas Dras: Sônia Campaner e Maria das Graças de Souza pelas valiosas e mui
criteriosas ressalvas, as quais ampliaram de maneira proveitosa as investigações ora
realizadas.
Aos professores do Programa de Pós Graduação em Filosofia da PUC-SP, em especial
às Profas Dras. Sônia Campaner, Yolanda Glória Gamboa, Jeanne-Marie Gagnebin,
Dulce Critelli e Rachel Gazola, as quais colaboraram de modo grandioso, com toda a
6
franqueza intelectual na ampliação dos meus interesses filosóficos, para um maior
aprofundamento e compreensão de muitas indagações ora adormecidas, ora ignoradas.
Agradeço ao Professor Coordenador Peter Pal Pelbart que sempre se demonstrou
disponível e atencioso para com as resoluções das questões acadêmicas.
A querida Graciela Deri de Codina em memória, professora e amiga, grande mentora,
alma generosa e com grande sapiência me conduziu nos primeiros passos da reflexão
filosófica, incentivou à pesquisa desde a graduação e contribuiu de modo pontual para a
minha formação acadêmica e continuidade da pesquisa, além de ajudar na retirada dos
véus da ignorância, contribuindo para eu vislumbrar esse mundo multifacetado e
necessitado de uma visão mais sensível e profunda.
Aos amigos que a vida me presenteou Cristian e Daryel que mesmo em terras distantes,
sempre estão por perto, com debates, risadas, intercâmbio intelectuais, culturais,
acadêmicos.
As amigas Sarah e Clarissa, pelas risadas, pelo apoio, compreensão do afastamento dos
encontros que já foram mais rotineiros, pelas dicas acadêmicas, pelas conversas de
muitos tipos, pela alegria, diversão e surpresas sempre presentes a cada encontro.
A amiga Polyana que se fez presente e alegre agregando inúmeras questões, interesses e
revoluções importantes à vida.
Ao Vinicius amigo de longa data, que contribuiu com a leitura e revisão.
A amiga Mariana pelo ânimo, pelo incentivo, pelas animadas horas de conversas,
danças e até mesmo pela tamanha compreensão das inúmeras recusadas de viagens,
festas, danças e exposições.
A amiga Aline Pereira que em uma aventura em terras longínquas, a fim de um grande
intercâmbio de ideias, pessoas e saberes, por forças do acaso a nossa rota foi um tanto
desviada e nos causou um grande choque emocional. Contudo em vez de nos causar um
grande afastamento e mal-entendidos, nos uniu ainda mais e o aprendizado não ficou
puramente acadêmico, mas sim de gestos e humanidade, a esta chamo de grande amiga-
irmã, a qual me fortaleceu e ajudou no meu reestabelecimento físico e emocional em um
momento tão delicado de minha vida.
A cada membro do Grupo Vocacional de Dança Contemporânea do Centro Cultural da
Penha, que me fez vivenciar na prática aquilo que pesquiso, em especial as mui queridas
Bianca e Daniela e ao orientador e amigo Frank Tavanti que amplia, dinamiza, acredita
e incentiva o apurar do olhar para a sensibilidade corpórea a todos os momentos. Desta
forma a alma dança em meio a profundeza de interações que proporcionadas tanto no
7
palco, em rua, nos exercícios, nos fazem refletir, enfim sentir...
Aos amigos de curso que a PUC-SP e a vida me ofertaram, em especial a Patrício
Nascimento grande encorajador, leitor crítico, compartilhador nas muitas trocas de
ideias e informações, João Bosco generoso, amável e questionador, Carla afável e
anfitriã – amigos que formaram a minha primeira turma, a qual me integrei de maneira
mais que excepcional tanto intelectualmente, quanto emocionalmente colaborando para
meu crescimento humano e intelectual, hoje grandes amigos. A Adriana e Valdir sempre
muito alegres e francos. A Pedro Ciucci e Helder Mariani meu grupo predileto,
sincronia intelectual e emocional de alta qualidade, risadas e conversas sempre
corroborando para inúmeras indagações, grandiosas pessoas. A Júlio Cesar pelo
compartilhar de gosto, livros, descobertas, cafés, bolos, risadas, problemas e soluções
que a vida acadêmica e rotineira nos apresenta. A Pedro Dotto e Flávio pelas partilhas
em aulas.
Ao pessoal do grupo de estudo, Bárbara, Laura, Emanuel pelas conversas e discussões
sempre importante na formação intelectual.
A todos meus alunos, pois esses deixam um pouco deles em mim e com toda certeza
carregam uma parte do que sou. A todos vocês que a cada ano me fazem aprender,
crescer, aprimorar, buscando sempre novos modos de atingir suas mentes maravilhosas
e demonstrar o quão importante a filosofia é no crescimento intelectual de vocês,
sempre curiosos e investigadores. A vocês que sempre se demonstraram compreensivos,
generosos, afetivos e questionadores na busca do saber e também aos mais
“intrometidos”: Victor Hugo, Bruna, Gabriel, Marjory, Mauricio e Danton que leram
um pequeno trecho e fizeram suas críticas, além de aconselharem, me fortaleceram com
seus incentivos e singelezas. Agradeço do fundo do meu coração, sem saber me dão
gana e me ensinam, me animam e me contam com alegrias suas desventuras, obrigada
por me motivar a entender que sempre podemos ser melhores, que a imaginação não
tem fim, que acreditar no humano é importante e o movimento do aprendizado é uma
troca constante, por me surpreenderem a cada dia com seus questionamentos, reflexões
e vontades, por me ensinar e fazer lutar, acreditar no potencial de cada um e afirmarem
em presença que o novo sempre vem.
Aos bibliotecários da PUC-SP que sempre se demonstraram muito solidários,
prestativos em me auxiliar. Aos funcionários da Secretaria Acadêmica e do Programa de
Pós-Graduação de Filosofia por sempre se mostrarem dispostos a ajudar.
Ao meu vizinho Wanderlei “que é um DJ” com suas músicas embalou todo o processo
8
desta dissertação, do início ao término, sempre animando minhas manhãs, tardes e
noites de estudos com suas músicas: dos clássicos, do jazz até o pop contemporâneo, do
brega ao chique.
A todos de perto, de longe, que contribuíram de alguma forma para constituir esta
dissertação.
E por último e não menos importante ao órgão de fomento CNPq, pelo apoio e
financiamento, ao qual foi de grande contribuição e importância para realização desta
pesquisa.
9
Não penses compreender a vida nos autores.
Nenhum disto é capaz.
Mas, à medida que vivendo fores,
Melhor os compreenderás.
(Poema: Da sabedoria dos livros, Mario Quintana)
O homem é apenas o ministro ou interprete da natureza:
ele só compreende e age na medida em que tem
conhecimento, experimental ou refletido dos seres que o
cercam.
(Da interpretação da natureza - Denis Diderot, p.149)
10
RESUMO
A presente dissertação tem como intuito analisar a importância do teatro no
pensamento de Denis Diderot. Portanto, buscamos como isso entender os propósitos,
aos quais o filósofo evidenciará a partir do ato representativo na França do século
XVIII. Diderot, não só propõe uma reforma no modo de fazer teatro como também nas
próprias representações teatrais. O filósofo irá formalizar uma teoria para que os atores
pudessem aprimorar suas atuações. Estas devem ser pautadas na observação da
natureza, com a finalidade de serem estudadas e representadas com a mais pura
racionalidade. Neste sentido, o enciclopedista enfatiza a artificialidade em detrimento da
natureza para existir a primazia em cena. O teatro para Diderot deveria ser e fazer o
papel de expurgar os vícios da sociedade, fazendo com que os indivíduos aprimorassem
a virtude. Além do mais as peças teatrais deveriam retratar a vida corriqueira das
pessoas e com isso propõe e inaugura um novo gênero, este seria o gênero sério ou
drama, o qual é intermediário, está entre a tragédia e a comédia.
Palavras chaves: Denis Diderot, Teatro, Ator, Natureza, Artifício,
Representação, século XVIII.
11
ABSTRACT
The purpose of this dissertation is to present the importance of the theatre
according to Denis Diderot point of view. Thus, based on his thoughts, try to understand
the purposes of which, the philosopher will demonstrate from the representative act, in
France during the 18th century. Diderot suggests an improvement in the way of making
theatre, as well as in its own theatrical representations. The philosopher will determine a
theory for the actors to improve their performances. The performances should be based
on nature observation, aiming to be studied and represented with pure rationality. In this
regard, he gives emphasis to artificiality in disadvantage of nature to create perfection in
a scene. In Diderot’s point of view, the theatre should be and do the job of remove
society’s addictions and make people work on their virtue. In addition, theater plays
should approach people’s busy lives and through that he suggests and introduces a new
genre called drama and it is a genre that can be classified as intermediate, being in
between tragedy and comedy.
Key words: Denis Diderot, Theatre, Actor, Nature, Processes, Representation,
18th
Century.
12
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO: OS MEANDROS DO TEATRO VIRTUOSO ............................13
1. 1º ATO: AS CONTROVÉRSIAS............................................................................20
1.1. Século XVIII: prenúncio de um novo modelo......................................................21
1.2. A defesa do teatro................................................................................................25
1.3. Os contrapontos...................................................................................................29
1.4. Teatro e teoria da representação.........................................................................35
2. O TEATRO MODERNO: DA NATUREZA PARA RAZÃO.............................40
2.1. Natureza e estudo.................................................................................................41
2.2. Sensibilidade, para quê?......................................................................................47
2.3. A identidade do homem-ator................................................................................49
2.4. Os imitadores da natureza...................................................................................52
2.5. Os paradoxos de Diderot.....................................................................................54
2.6. Homens e suas representações............................................................................55
3. A AMBIGUIDADE DO TEATRO.........................................................................57
3.1. O princípio...........................................................................................................58
3.2. O problema: teatro e cultura...............................................................................60
3.3. O pedagógico do teatro.......................................................................................65
3.4. O drama em Diderot...........................................................................................70
3.5. O gesto é a palavra.............................................................................................73
3.6. A constituição do gosto.......................................................................................76
Considerações Finais.....................................................................................................83
REFERÊNCIAIS.........................................................................................................88
13
INTRODUÇÃO: OS MEANDROS DO TEATRO VIRTUOSO
Ao perguntar-se: o que é o teatro? – ou o que diz respeito à atuação de um
indivíduo que se postulou chamar de ator –, o leigo poderá pensar em inúmeras respostas,
que a princípio seriam pertinentes ao ato de representação. Contudo, um aprofundamento
no assunto propicia vislumbrar muito além disto. Inúmeras épocas e horizontes podem
fazer pensar nas minúcias que tais atos representativos são capazes conter, desde tempos
mais remotos até a contemporaneidade. Isto porque o teatro se faz conhecer pela sua
importância e sua maneira de interagir em diferentes épocas. Ainda que, é uma arte
representativa, de imitação, de reprodução de formas, de caráter, em um tempo ou espaço
que pode ser algo conhecido ou desconhecido, vivenciado ou fantasiado pela mente,
primeiro dos autores e, em seguida, dos atores em suas atuações. Percebe-se ainda que o
homem, desde que precisou comunicar algo a alguém, necessitou também de utilizar e
apurar a memória e a observação a fim de reproduzir para o outro o que havia vivenciado.
Ao imitar, para fazer-se entendido, já estava se apropriando do que a natureza lhe
concedia para transformar em uma personagem e encenar.
A partir desses pressupostos, pretende-se, aqui, examinar: quais as finalidades e
os motivos necessários para que o teatro, o representar, a encenação e cada cena, e até
mesmo as peças, possam agir na formação moral da humanidade? Para estas indagações
inúmeros filósofos, pensadores e artistas (autores, dramaturgos e atores) interrogaram-se
e, vez por outra, entraram em grandes pelejas a fim de sanar tais questionamentos. No
entanto, sabe-se o quão árduo, vasto e extenso são os caminhos percorridos até aqui para
compreender as minúcias que a arte teatral agregou para a história da humanidade.
Assim foi, por meio de inúmeros homens e mulheres evidenciados ou ocultados da
cena, arena, palco e até mesmo primariamente dos ritos, que o teatro foi tomando forma
e constituindo sua importância para a interação entre os indivíduos.
Nesse sentido, a presente dissertação faz um recorte pontual dentro de um
período histórico específico, que é o século XVIII, firmando-se nos desdobramentos
teóricos do filósofo Denis Diderot. Portanto, nossas indagações têm como intuito
compreender: Como Diderot formula sua teoria de representação? Quais são as
técnicas propostas por ele para o ato representativo? O que a natureza e a razão
contribuem para o teatro? Para quais fins o teatro convém?
14
Para tanto, o primeiro capítulo se debruçará sobre as mudanças e as problemáticas
que estavam ocorrendo no âmbito sociocultural do século XVIII. Isto é importante na
medida em que auxiliará na compreensão diante do que sobrevinha ao teatro francês
naquele período. Neste cenário, busca-se abarcar os principais expoentes, os quais tiveram
maior contribuição e notoriedade para as modificações e transformações no que diz respeito
ao teatro francês no século XVIII, conjuntamente às questões filosóficas1. Portanto,
conjecturando as inferências que Voltaire, Rousseau e Diderot proporcionaram para a
época. Assim, vislumbrar-se-á alguns acontecimentos que dizem respeito tanto ao teatro
quanto a excertos dos pensamentos de cada um dos filósofos, ora relatados nesse capítulo.
Logo, Voltaire, como observa Matos (2001, p. 169),
(...) queria se tornar o Racine do século. Não chegou a tanto, mas, de
1718 (Édipo) a 1778 (Irene), impôs-se como o grande poeta trágico do
tempo. Os prefácios de suas peças e uns cem números de cartas revelam um completo homem de teatro: conhecia até mesmo a
delicada arte de usar as cabalas. Nos castelos em que morou, mantinha
salas privadas de espetáculo e sempre reservava para si um papel de
ator (...).
No século XVIII o gosto e a paixão pelo teatro era algo que estava em constante
evidência e abarcava desde as classes mais populares até a alta aristocracia – “dos tablados
de feira à Comédie Française”. Ressalta Matos (Idem, Ibidem): “Se consideramos ainda
que o século XVIII é um desses momentos privilegiados na história da filosofia, em que a
atividade do filósofo é medida pelo seu poder de intervenção na vida social, não é de
espantar que os maiores pensadores do tempo se dedicassem ao teatro e tivessem muitas
coisas a dizer sobre ele”.
Neste domínio, Rousseau entende que a exaltação das artes propiciava a formação
de uma sociedade corrompida. Fez, assim, críticas arrebatadoras aos modos de vivenciar as
coisas em seu tempo. De tal modo, contradisse os filósofos das luzes e seus pressupostos
de glorificação acerca da magnitude da racionalidade. Isto estava na contramão do projeto
das luzes sobre a questão do “progresso para a humanidade”. Sua contestação o afasta dos
iluministas.
1 Em suma, Voltaire pensa o teatro como a fonte para valorização dos princípios da civilização sendo, estes,
o refinamento do gosto e os bons modos em meio à sociedade. Já Rousseau, de maneira totalmente diversa,
reflete os problemas que a cultura francesa tinha, indo em sentido oposto ao êxito da virtude. Diderot, por
sua vez, compreende que o teatro moderno francês não mais condiz com o despertar das virtudes e propôs
uma reforma, teórica e estrutural, fazendo uma inferência para o modo de representar dos atores e até
mesmo às narrativas, que devem ser próximas à realidade da plateia, o que conduz para a formação moral e
à virtude.
15
Neste ponto o filósofo genebrino percebe que nesse tipo de sociedade, que foi
embrutecida pela civilidade, os indivíduos acabam por ignorar suas reais necessidades
naturais substituindo-as por um modelo artificial de vida. Isto contribuiu para fortalecer
as vaidades e orgulhos perante outrem. Por consequência de tal embrutecimento
esclarecido, “a bondade que convinha ao puro estado de natureza não era mais a que
convinha à sociedade nascente” (ROUSSEAU, 1973a, p. 270). Com isso, os bons
modos estabelecem o refinamento do gosto e, ao ver de Rousseau, também enfraquece a
moral, o que ocasiona às mazelas da humanidade.
A corrupção adivinha dos modos artificiais e da consignação do “tornar-se
sociável”. Para o genebrino, seria próprio das sociedades civilizadas refinar-se com a
finalidade de lapidar o gosto e os costumes e enxertar na coletividade ações que
promovem o vício. Portanto, verificou que tanto as ciências quanto as artes devem seu
nascimento aos vícios da sociedade civilizada.
Com todas essas críticas à sociedade francesa, assim como para seus costumes e
modos, Rousseau se depara com algo que lhe propicia mais uma crítica ao cenário francês
do século XVIII. Após tomar conhecimento da publicação do verbete “Genebra” escrito
por D’Alembert, o qual relatava coisas que a cidade não provia, entre elas companhias
teatrais e locais próprios para as encenações, Rousseau, indignado e em desacordo com o
que escrevera D’Alembert, refutá-lo-ia por meio da famosa Carta a D’Alembert. Nesta,
contestou a ideia da necessidade do teatro para fins morais e discordou em absoluto que o
teatro pode trazer benefícios à cidade, muito menos ter alguma função didática para
fortalecimento da virtude.
Por conseguinte a isso, far-se-ão algumas reflexões nas quais serão esclarecidas
como Diderot viu o teatro e suas funções em seu tempo. En passant, Diderot propôs
uma reforma para o teatro francês moderno do século XVIII. Franklin de Matos (2004,
p. 33) diz, acerca disso, que Diderot a partir de 1760, como homem de letras, interessou-
se ainda mais pelas formas narrativas. Por meio disso “compusera peças de teatro e
textos de poética, pretendendo renovar a cena francesa do tempo” (Idem, p. 41). Além
do mais, o filósofo francês ressalta os benefícios que a arte e o teatro podem agregar ao
homem, uma vez que seriam meios através dos quais os homens devem ser ensinados e
sensibilizados na constante busca da formação de um ser autônomo, justo, moral, ético e
virtuoso.
16
Esta teoria para o teatro, que diz respeito à formação do ator – em termo
diderotiano: comediante –, é destacada, nesta dissertação, no segundo capítulo. De tal
maneira, no Paradoxo sobre o Comediante, Diderot explicita a enorme importância que
suas reflexões concedem. Conforme Matos:
(...) sobre um dos dados “materiais” mais decisivos do espetáculo: o
desempenho do ator (...). O ator é gesto e voz – é corpo. Há em Diderot um motivo que quase sempre permanece subterrâneo e, às
vezes, aflora à superfície. Certamente tomando de Platão, é o tema
segundo o qual a energia do verbo depende da presença física de quem fala, enfraquecendo-se na obra escrita. Entre outras coisas, isso
explica o gosto do filósofo pela arte da conversação, cultivada nos
cafés e salões do século XVIII, forma refinada de sociabilidade, na qual ele sempre brilhava. (Idem, p.46).
No que diz respeito à “descoberta de técnicas” para a realização de certa arte –
neste caso, ao processo de constituição do ator em cena –, pode-se compreender que
Diderot postula uma teoria que, até então, “certa tradição que remonta à Poética de
Aristóteles pensava essa arte principalmente como poesia dramática, recusando-se a
reconhecer como essencial no trabalho do ator e do encenador” (Idem, p. 67). Mas é
com um olhar apurado para o teatro que o enciclopedista visava que ele fosse “resgatado
em sua materialidade e começa a ser visto propriamente como espetáculo” (Idem,
Ibidem).
Segundo o Paradoxo, o comediante deve mergulhar com profundeza nas coisas
da natureza. Somente por meio disto que o ator formula sua técnica, por estar atento ao
“modelo ideal”. Atuando sempre em consonância com sua memória e imaginação, ele
deve direcionar seus estudos em dois momentos. Matos (Idem, p. 72) complementa que,
(...) o primeiro jato, que é o surgimento da ideia diretriz, do esboço,
do ponto de partida. Enquanto esboço, esse produto do entusiasmo é
ainda informe, um “delírio”, mas, sem ele, nada começa. Mais: apenas graças a ele, “os traços característicos” do modelo ideal se
apresentam. Entretanto, cabe ao sangue frio temperar os delírios do
entusiasmo, afirma enfaticamente Diderot. Deste modo, num segundo momento, eis o gênio em presença de seu esboço: ele o compara à
natureza. Pousa alternativamente um olhar atento sobre um e outro.
Julga, deve manter-se frio para captar as insuficiências do esboço (...).
Além do mais, no Paradoxo o filósofo sustenta a teoria que para um ator ter
excelência ele precisa ser um homem de gênio, que seria aquele que tem a capacidade
de interferir no mundo a fim de cunhar a mais perfeita harmonia entre o que existe no
cotidiano e o seu apuramento racional. Desta maneira Diderot pretende que as cenas,
17
assim como o ator e seus gestos, fossem o mais próximo da natureza e de acordo com
ela.
Em poucas palavras, a um teatro da tirada, no qual as paixões se
exprimem mediadas pela razão e pelo discurso, o Filho Natural opõe
uma dramaturgia das inflexões e dos gestos, onde estes expressam diretamente uma energia primitiva, à qual a cena deve dar voz; contra
uma estética que pensa a arte como imitação das obras do passado,
Diderot insiste na concepção que tem a arte como um confronto
sempre renovado entre o artista e à arte maneiristas, Diderot opõe um ideal naturalista de arte (ou, no mínimo, deixa de tomar qualquer
precaução para não parecer naturalista). (Idem, p. 81).
Para tanto, Diderot pretende que o “grande comediante” combinasse natureza e
arte a fim de, garantir-lhe uma igualdade na formulação de todos os papéis por ele
representado. Neste âmbito, Matos (Idem, p. 82) afirma que “Se a natureza sem a arte
não pode fazer um grande comediante, inversamente a arte sem a natureza só formará
um comediante passável”. Em Pensamentos Soltos de 1767, Diderot (1799, p. 152-153)
diz o seguinte:
A natureza comum foi o primeiro modelo da arte. O êxito da imitação
de uma natureza menos comum fez sentir a vantagem da escolha; e a
escolha mais rigorosa conduziu à necessidade de embelezar ou de
juntar num só objeto as belezas que a natureza mostrava esparsas num grande número. Mas como estabeleceu-se a unidade entre tantas partes
emprestadas de diferentes modelos? Isto foi obra do tempo.2
No entanto, a arte e o ator não devem ser escravos da natureza, mas sim seus
discípulos. Assim como pretendia Diderot (Idem, p.166): “Iluminai vossos objetos
segundo vosso sol, que não é o da natureza; sede discípulo do arco-íris, mas não seu
escravo”. Contudo, Matos (2001a, p. 02) alerta para o seguinte: “Salão de 1767, os
Pensamentos soltos, o Sonho de D’Alembert e o Paradoxo sobre o comediante, as
ênfases já não serão as mesmas. Diderot abandona o elogio da sensibilidade e passa a
insistir no ‘fazer’ do artista: sua atividade será antes ‘sangue-frio’ que ‘entusiasmo’ e a
grande qualidade do homem de gênio já não será a ‘sensibilidade natural’, mas a
“observação”.
Não obstante, o terceiro e último capítulo tratará acerca de alguns pontos que
diferenciam, e de certa forma também unem, Rousseau e Diderot. As críticas que
Rousseau faz sobre o teatro moderno da França do século XVIII, especialmente a partir
2A tradução deste trecho de Pensamentos Soltos foi realizada por Franklin de Matos e está presente tanto
em A cadeia da guirlanda (2000, p. 03) quanto em O filósofo e o comediante (2001, p. 119).
18
da Carta a D’Alembert, serão relevantes para um dos complementos da crítica intentada
nesta dissertação. Para que isso se faça possível, será preciso retomar a crítica de
Rousseau, em sua Carta, ao verbete “Genebra”, constante na Enciclopédia, de
D'Alembert. Segundo Franklin de Matos (2001, p. 187-188),
(...) a Natureza para Rousseau é uma ideia reguladora que jamais pode
ser apreendida absolutamente (...) a ideia reguladora de vontade, que está “para além de qualquer representante”, mas funda a escala que
mede as formas de governo e as situações políticas concretas segundo
o grau de aproximação ou afastamento em relação à vontade. (...) Se projetarmos o mesmo princípio formal sobre a Carta a D’Alembert,
compreenderemos melhor as nuances do seu juízo sobre os
espetáculos.
Para Rousseau, então, o teatro francês era ilusionista e separa de maneira
incisiva o público da plateia. Desse modo, subentende-se que no teatro existe um
afastamento brutal em relação à unidade da natureza. Porém, na festa cívica isso se faz
de outra forma, já que ela é agregadora, uma vez que, o espectador também é partícipe:
ator e ao mesmo tempo o próprio espetáculo. Neste âmbito, Prado Jr. (1975, p.9-10) diz
o seguinte:
(...) não é a estreiteza do moralismo de Rousseau que o opõe aos
Filósofos, e que estaria na origem de sua condenação do teatro: para
Diderot, colocar o teatro a serviço das Luzes corresponde a fazer dele a expressão de uma ética bem próxima à de Rousseau. (...). Esta
convergência transparece claramente no esquema da história do teatro,
tal como o reconstituem Rousseau e Diderot. Dando, com efeito, à natureza uma função paradigmática, reconhecendo no teatro antigo a
expressão mais “natural” da poesia dramática, Rousseau e Diderot se
encontram na crítica do teatro moderno. Este apenas guarda algumas
formas do teatro antigo, mas perdeu o essencial, longe da vida que o animava. Não é o “progressismo” de Diderot que o impedirá de assumir
por sua vez, e com Rousseau o tema da Idade de Ouro (...).
A compreensão de Diderot, ao que diz respeito a uma nova maneira de entender
o teatro, tinha relação direta com o modo em como se constitui e desenvolve o ato de
encenar, e também manter e lapidar o gosto e a moral da população. Isto somente pode
ser efetivado tendo em vista que, o teatro corrobora com a virtude além de auxiliar no
viés pedagógico, que visa à educação moral do público.
No Discurso sobre a poesia dramática, obra que problematiza e contribui para
destacar a constituição de um novo gênero defendido por Diderot. Desta forma o novo
gênero é intermediário, está entre a tragédia e a comédia: o drama. Acerca disso, Matos
(2004, p. 47) diz: “(...) com Diderot, a conversação deixa o espaço da corte e ganha
19
interiores burgueses. Se Voltaire evoca as diversas rodas aristocráticas às quais
pertenceu, Diderot familiariza o leitor com grupos cuja importância se funda apenas no
mérito intelectual ou moral.” Assim sendo Diderot afirma, como reitera Matos (Idem, p.
75), “que um autor deve ‘entrar furtivamente’ e não ‘de viva força’ na alma do leitor.”
Neste caso o drama fosse representado, ou sendo como obra literária, era uma ação
pedagógica que se postula no mais íntimo do humano.
Diderot pretende explicitar as distinções entre as “máximas morais” e a “ação”.
Esta última Diderot atribui a Richardson. Portanto, segundo Matos (Idem, p. 77) “A
máxima (...) é a regra de conduta abstrata e geral, e, por isso mesmo, cabe-nos fazer
aplicação (...) a ação imprime em nosso espírito uma ‘imagem sensível’ pondo-nos
diante de exemplos vivos, de carne e osso (...). Como se vê, neste caso não nos cabe
fazer aplicação alguma, feita pela ação de outrem: o romance pode-se dizer, é moral
‘aplicada’ ”. De tal modo, como almeja Diderot, os temas no drama devem ser
condizentes às realidades cotidianas dos indivíduos e fazer com que a imagem sensível
apresentada fosse tão realista que qualquer um pudesse se colocar em lugar, ou ao lado,
do fato ou pessoa.
Por fim, o filósofo, como distingue Matos no prefácio do Discurso sobre a poesia
dramática, “ensina a elaborar o plano de uma peça, ali a dominar o diálogo, o monólogo,
a exposição, o ato3, a cena e mesmo o entreato
4 (...) mostra como desenhar os caracteres e
por que razão se deve esquecer o espectador” (DIDEROT, 1986, p. 24). Todas estas
considerações do enciclopedista contribuem para “(...) firmar a aliança entre o romance e
a moral (...) é preciso se demorar nas minúcias e banalidades que as anunciam, sem as
quais não há identificação e ilusão; e ainda usar a forma sinfônica do romance epistolar
(...)” (MATOS, 2004, p. 94). Todos estes elementos têm relação direta com a reforma
teatral, a qual ambiciona Diderot.
Em suma, o universo de Denis Diderot, juntamente com seus paradoxos e
pretensões de inovação para seu tempo, faz perceber que é preciso manter-se em
constante vivacidade para o ato de indagar-se.
3 “Os atos são as partes do drama. As cenas, partes dos atos. O ato é uma porção da ação total do drama. ”
(DIDEROT, 1986, p. 88). 4 “Chama-se de entreato o espaço de tempo que separa um ato do seguinte. Tal espaço de tempo é variável; mas
já que a ação não se interrompe, é preciso que o cessar no palco, o movimento, continue nos bastidores. ”
(Idem, p. 90).
20
1. 1° ATO: AS CONTROVÉRSIAS.
Um certo tipo de atuação humana no século XVIII foi vista por alguns filósofos,
como é o caso de Jean-Jacques Rousseau, como um problema que o progresso5 causou,
por evidenciar os vícios e o luxo e esquecer os valores e hábitos virtuosos que mantem
uma sociedade em maior harmonia. Por outro lado, encontra-se outros filósofos, como
Voltaire, que enfatiza com veemência que o gosto apurado e o luxo são próprios da
nova ordem e necessários para a manutenção da polidez6 de um povo civilizado.
Queremos com isso ponderar sobre um grande pano de fundo, para as questões
pertinentes ao teatro e suas inovações para o ato representativo no século XVIII francês.
Desta maneira, intentamos compreender e analisar acerca de assuntos centrais que
proporcionam o engajamento de Denis Diderot na busca de uma reforma do teatro
francês “moderno”; assim como os modos de compor, fazer e atuar nos palcos.
De tal maneira, propõe-se reflexionar de modo amplo, sobre as contribuições e
críticas que alguns pensadores tiveram ao pensar o teatro. Voltaire, Rousseau e Diderot
são os expoentes que nos ajudam a compreender os fatos ocorridos, na França do século
XVIII, que dizem respeito à cena teatral, assim como seus efeitos em meio ao público,
inovações propostas pelos pensadores da época, além das mudanças que promovem
inúmeras discussões, tais como as modificações no rumo das formas, temas, as maneiras
de fazer e de representar dos atores. Destarte, o primeiro capítulo recria a atmosfera
histórica, social e cultural que valerá como base de contextualização para os capítulos
subsequentes. Neste âmbito, os demais capítulos têm como intuito compreender o que
diz respeito ao teatro, já que este era um tema corriqueiro e indissociável da filosofia no
séc. XVIII.
5 Termo que Rousseau utiliza para se referir ao ideal iluminista de civilização, segundo o qual se designa,
pelo progresso, a sociedade como algo superior – fato que Rousseau contesta. 6 Voltaire enfatiza o luxo e a polidez como algo essencial de uma sociedade melhor, uma vez que o
refinamento, os modos, gestos e gosto são próprios do homem esclarecido que sabe viver em sociedade.
21
1.1. Séculos XVIII: prenúncio de um novo modelo.
O poeta é imitador, como o pintor ou qualquer outro
imaginário; por isso, sua imitação incidirá num destes três
objetos: coisas quais eram ou quais são, quais os outros dizem
que são ou quais parecem, ou quais deveriam ser (...).
(Poética – Aristóteles)
O século XVIII foi o momento em que o teatro e a ópera se abre para o grande
público. Com a abertura pública, por meio da venda de entradas, os aristocratas e seus
convidados passam a não ter mais acesso exclusivo a esses eventos sociais. Do mesmo
modo, houve também uma maior visibilidade e circulação das pessoas em relação à
prática dos passeios em parques, que eram apenas costume das elites, tornando-se um
costume corriqueiro entre toda a população. Assim, a sociabilização torna-se maior e
visível, não mais restrita a pequenos grupos privilegiados. A ocupação do espaço
público pela população foi importante na medida em que acarreta para a transformação
dos modos de vida.
A vida pública postula a transparência; ela pretende transformar os
ânimos e os costumes, criar um homem novo em sua aparência,
linguagem e sentimentos, dentro de um tempo e de um espaço remodelados, através de uma pedagogia do signo e do gesto que
procede do exterior para o interior. (PERROT, 2009a, p. 14).
A imagem do homem público pode ser visualizada por analogia, no ator teatral,
isto por ser um ente público atuante em sociedade, fossem suas funções comerciais,
políticas ou culturais. Esta imagem, no século XVIII, era bem definida, por ser algo
declarado, aberto, comum e direto, visto que as condições materiais e ideológicas da vida
pública – separação entre vida pública e privada – passaram a se diferenciar após a queda
do Antigo Regime.
Mais que o bairro, é a rua que constitui o espaço de conhecimentos por onde passa a fronteira do secreto. Seu epicentro são as lojinhas,
com seus códigos de cortesia, seus presentes e retribuições. Alguns
personagens são essenciais, vigias, confidentes e testemunhas: a
22
padeira, e principalmente o merceeiro (...). O bairro, mais complexo, é
a introdução à cidade, onde se abrem outras práticas de privatização.
(PERROT, 2009, p. 161).
O homem portanto, passa a atuar em sociedade de maneira que, se reveste de
múltiplas personagens para adentrar e se incluir nas relações estabelecidas neste novo
tempo, do grande palco – o mundo. Segundo Sennett, o mundo como um palco era algo
prosaico de se ouvir em meados do século XVIII, e por meio das funções clássicas do
imaginário do theatrum mundi, que consiste em separar natureza humana da ação social,
fazendo uma divisão entre ator e ação. O fato é que, na visão do senso comum, o
homem como ator é um indivíduo que bastaria mudar de comportamento para não ser
julgado tão cruelmente por quaisquer que fossem seus atos: “ele não nasceu para o
pecado, ele incorre em pecado se acaso representar o vilão.” (SENNETT, 2001, p. 141).
Esse homem se liberta do fardo do pecado original, fazendo a separação entre sua
natureza e suas ações. Neste sentido, “diversão, tolerância cínica, prazer na companhia de
outros amigos, estes eram os timbres de sentimento contido na noção que se tinha na vida
diária sobre o homem como ator.” (Idem, p. 142). Isto faz com que o homem público
pudesse ser visto como ator. No entanto, esta imagem, ainda que evocasse no homem
público o ator, é incompleta, “uma vez que por detrás dela, conferindo-lhe substância, há
uma ideia mais fundamental: trata-se do conceito de expressão como apresentação de
emoções. A partir deste, chega-se à identidade do ator. O ator público é o homem que
apresenta emoções. ” (Idem, p. 138).
Desde a antiguidade7 mais remota o ato de representar tipos, jeitos, gestos e
formas se fez necessário entre os povos. Além disso, o teatro também teve como função
o desenvolvimento da comunicação8 entre todos os homens e suas sociedades. Após
7 “Como na pré-história não havia escrita, ninguém sabe exatamente como as coisas aconteciam, mas
podemos imaginar, por exemplo, que a princípio todos os membros da tribo executassem em conjunto
todo o ritual. Um dia, no entanto, aparece um indivíduo dotado de um talento muito especial e se mostra
capaz de expressar os anseios de toda a sua comunidade. Esse indivíduo, de início, representa ou imita
tudo o que é desconhecido, e com o passar do tempo se verá que, na verdade, ele é a semente da qual
nascerão o sacerdote, o filósofo, o médico, o poeta e ... o ator. Para esse indivíduo poder representar, de
forma convincente, o espírito ou o deus cultuado no ritual, aparece um elemento fundamental para o nascimento do teatro, que é a máscara. No caso do ritual (e muitos, bastante primários, ainda podem ser
vistos em tribos primitivas), a fim de os outros acreditarem que ele representa um deus, o indivíduo que o
realiza tem de perder sua individualidade. É por isso que ele usa uma máscara, ou, melhor ainda, cobre
todo o corpo, a fim de parecer à figura da força desconhecida a quem é dirigido o culto (...). Como o
espírito ou deus é apresentado, no ritual, por meio de sua suposta imagem, já temos aí o que no teatro será
um personagem, e o diálogo o apresentado falando em sua própria pessoa com outros deuses ou espíritos,
ou representantes da população. Com o tempo, o ritual adquire uma forma a ser sempre repetida, que vai
constituir a ação, a pedra fundamental do teatro”. (HELIODORA, 2008, p.10) 8 “Quando um homem mostra sinais de indignação ou cólera, os observadores, por via de regra, não se
23
muitas transformações e reformas sociais, políticas e de interesses diversos, chegamos
ao século XVIII, momento no qual acontece, entre outras coisas, a ascensão política da
burguesia. O século XVIII inicia-se com a monarquia francesa ainda em grande
esplendor e termina com a Revolução Francesa. Neste contexto de grandes ebulições, o
teatro adquire maior visibilidade e continua a ser alvo de inúmeras influências sociais,
políticas e morais. Como relata Barbara Heliodora, a primeira vez que o teatro reflete
que os tempos estavam em grande reforma foi em 1707, especialmente com peças
escritas por Alain-René Lesage. A peça Turcaret ou le Financier (1709), por exemplo, a
qual tem Tucaret9 por protagonista, denuncia as mazelas da sociedade da época.
Ao mesmo tempo, como relata Carlson (1997), o enfoque do teatro fora
direcionado para algo individual e não mais social, e os gêneros teatrais sofreram uma
modificação. Por conseguinte, o drama acabou substituindo a tragédia. No entanto, no
romantismo o teatro voltava-se para o ser humano, as peças falavam sobre emoção, e
surgia o melodrama10
. O teatro passa a ser frequentado pelo povo e aquela realidade – de
um teatro voltado para temas individuais – foi se modificando. A burguesia começou a ser
sentem encolerizados, se bem possam sentir-se divertidos ou amedrontados. Mas se um homem descreve ou representa, de certo modo, uma situação calculada para suscitar indignação (como, por exemplo, um
caso de flagrante injustiça0 e o faz de maneira a patentear o seu próprio sentimento de indignação, poderá
despertar indignação nos ouvintes. Este é o despertar da emoção por “infecção, para usarmos a expressão
de Tolstoi. Quase todas as teorias emocionais da arte giram em torno desse ponto. A ingênua concepção
da arte como instrumento do despertar emocional tem sido fundamental na maioria das discussões da arte
segundo pontos de vista educacionais ou sociológicos e foi a concepção que mais prevaleceu na
Antiguidade (...). Essas tórias põem ser classificadas de teorias de “contágio”: o artista expressa sua
própria emoção ou atitude emocional e o faz de maneira que evoca no público uma atitude emocional e o
faz de maneira que evoca no público uma atitude emocional idêntica em relação à situação que ele
apresenta. Mas a intenção de despertar emoção não é uma concomitância necessária da expressão. Seria
difícil dizer se, em Guernica, Picasso estava expressando, em primeiro lugar, o seu ódio e indignação contra as atrocidades da guerra ou se era seu propósito, primeiro que tudo, despertar nos outros essas
emoções. As teorias da cominação da arte devem ser classificadas, em geral, de teorias instrumentais,
porque presumem que a função central da arte é favorecer uma espécie de comunicação entre os homens
e porque, como padrão para avaliar obras de arte, aplicam o estalão da eficácia no comunicar a emoção ou
a experiência. Usa-se “comunicação” com um significado diferente em diferentes tipos de teorias da
comunicação. Presume-se, às vezes, que se trata de induzir o público ou o observador a experimentar
realmente a emoção, o sentimento ou estado de espírito com que se relaciona a obra de arte. E essas
teorias de induzimento emocional podem visualizar uma experiência efêmera e divertida de emoção, um
intervalo não muito sério entre uma influência permanente e importante sobre o caráter e a personalidade
das pessoas que entram em contato com a obra de arte. Nos dois tipos de teoria, mas, sobretudo no último,
o padrão de eficácia costuma ser completado por uma avaliação moral do efeito. (OSBORNE, 1968, p.224-5). 9 “A intriga ao mesmo tempo expressa e denuncia a importância do dinheiro para subir na vida, algumas
vezes por negócios escusos, outras por meio de casamentos interesseiros, ou mesmo por extorsão ou
suborno. A peça é bem armada e faz uma crítica severa aos hábitos da época, pecando apenas por ser um
tanto pesada.” (HELIODORA, 2008, p. 75). 10 “Outro indicador da busca de um novo público em um novo tom é o aparecimento da chamada comédie
larmoyante, ou ‘comédia lacrimejante’, criada por La Chausée, que atraía um público muito mais popular, de
comédia melodramáticas, de um tom semelhante aos das telenovelas brasileiras de hoje em dia.”
(HELIODORA, 2008, p. 76).
24
maioria nas plateias e o teatro passou a mostrar as realidades burguesas com temas como
a vida social, o casamento, o dinheiro, entre outros. As representações também
começaram a ser mais naturais, apresentando personagens que caracterizavam pessoas
comuns, mais próximas da vida real.
Em seu livro, Teorias do teatro, Carlson afirma que o teatro francês do começo
do século XVIII foi em grande parte semelhante ao modelo do final do século XVII,
quando a influência do classicismo ainda estava latente, no que diz respeito às suas
preocupações e enfoques. Ainda assim, as observações realizadas na primeira década do
século eram feitas majoritariamente, pelos dramaturgos profissionais que estavam
relutantes em se afastar de um modelo tradicional ou aos que foram propostos por seus
sucessores com Molière e Racine.
A tragédia é compreendida com um gênero superior à comédia, mesmo tendo
como principal expoente do gênero comédia o ilustre dramaturgo Molière. Carlson
enfatiza que para compreender algumas discussões realizadas sobre o teatro, as quais
foram de alcance amplo para a sociedade do século XVIII, Jean Dubos apresenta, em
Reflexões críticas sobre a poesia e a pintura, um entendimento com a mesma visão de
Descartes, compreendendo que a arte deve servir de estímulo às emoções. A tragédia
sendo superior à comédia, por ir mais fundo no que diz respeito às emoções, envolve-as
grandemente. Piedade e terror são emoções mais elevadas, segundo o autor, do que
aquelas que ele considera inferiores, como o divertimento e o escárnio.
Para sentir essas emoções, o espectador deve identificar-se até certo
ponto com o seu herói, que por isso mesmo nunca pode ser um homem mau, mas alguém estimável que seja excessivamente
castigado pelos seus erros. Certo distanciamento é também crucial
para impedir que essas emoções fortes provoquem a dor. Assim, as
tragédias devem decorrer em tempos e lugares remotos e envolver personagens um tanto separados de nós. Isso não apenas permite ao
espectador sentir as emoções trágicas de maneira segura como
contribui para outra emoção fundamental no gênero: a admiração. (CARLSON, 1997, p. 138).
Carlson afirma que Dubos é um dos principais pensadores que enfatiza a
importância da arte de representar, dedicando-se ao entendimento sobre a declamação, o
movimento e o gesto. De tal modo, remonta a um teatro clássico, contando com a
técnica dos atores no que diz respeito à tonalidade da voz, movimentos e interpretação
ritmada pela música. “Em notável antecipação a Wagner, Dubos preconiza uma
subordinação similar do ator à música no teatro moderno, para garantir que mesmo os
25
atores medíocres interpretem passavelmente e para unificar a obra de arte. ” (Idem, p.
139).
1.2. A defesa do teatro.
O século XVIII foi um momento de ênfase da civilização. O espaço público
permitia aos cidadãos uma presença mais ativa perante o outro. O aparecer diante da
sociedade e as luxurias se faziam presentes entre a burguesia que estava em constante
ascensão. Diante disso, Voltaire relatou, no cerne de suas discussões, a importância do
ato de parecer, do requinte, da constituição de uma polidez e dos modos de agir perante
o outro, nos quais todas as regras sociais e da etiqueta estão ligadas em conjunção à
moral. Segundo Voltaire, estas seriam as marcas do homem que tem “modos e
etiqueta”, uma vez que este só pode ser o sujeito que já faz parte de uma coletividade e
sabe conviver com as regras e costumes da civilização. Este homem para Voltaire, é o
sujeito próprio do progresso, que está distante das barbáries, da rudeza e dos maus
hábitos que somente atingem os povos sem um refinamento de cultura, tese que também
apresenta em O Mundano11
.
Os nativos dizem que eu tomo o partido dos burgueses; os burgueses
creem que eu tomo o partido dos nativos. Os nativos e os burgueses acham que eu tive muita deferência para com o conselho. O conselho
diz que eu tenho muita amizade com os nativos e os burgueses. Os
burgueses, os nativos e os conselheiros não sabem nem o que querem
nem o que fazem, nem o que dizem. (VOLTAIRE, 2011, p. 132).
Voltaire, no Ensaio sobre a moral e os costumes, atenta para o fato de que, ao
observar os costumes dos príncipes, também se podem julgar os costumes e ações da
população. Além disso, ao notar atentamente os príncipes, podem-se compreender suas
ações e costumes como reflexo de seu tempo e cultura.
Para Voltaire, luxuria não é algo pecaminoso ou que deve ser banido ou
desprezado, assim como queriam as ideologias firmadas pelos clérigos. O filósofo
11Segundo o que afirma Guislain e Tafanelli: “O Mundano (1736) é um poema didático que recebe o louvor do amor e da civilização expressa nas Cartas Inglesas de 1734. Voltaire opõe Fenelon, autor de
Telêmaco (1701), contrapondo Rousseau, assim glorifica as paixões e os bens materiais contra a opinião
dos moralistas do século anterior, como Pascal , La Rochefoucauld ou Bossuet. Ele ridiculariza a tentação
de Eva e a expulsão do Éden, reduzindo a Bíblia para alguns mitologia. A dimensão anti-clérica do texto,
em vez de ser apenas provoncante , causou um escândalo quando foi publicado”. (GUISLAIN;
TAFANELLI, 2005, p. 95). Condorcet escreve a “Vie de Voltaire” contido nas Obras Completas de
Voltaire, e reitera dizendo que, no poema O Mundano, “Voltaire queria mostrar como luxo suaviza as
maneiras, animando a indústria adverte alguns dos males decorrentes da desigualdade fortunas e a dureza
dos ricos”. (VOLTAIRE, 1817, p. 23).
26
defende que a civilização lapida o homem, e considera parte intrínseca do espírito deste
homem civilizado o refinamento do gosto, do gesto, do conhecimento e da razão. Tudo
isso se torna condição da plena harmonia social. Assim sendo, no poema O Mundano,
Voltaire segundo Guislain e Tafanelli (2005, p. 95) analisam que:
(...) Este poema argumentativo assim como livros didáticos,
polêmicos e satíricos, louva e alterna as necessidades do luxo, além de trazer novas ideias de progresso e crítica do passado, particularmente
ao que diz respeito ao Paraíso e virtude primitiva “o paraíso terrestre é
onde estou12
” para Voltaire, a felicidade não está na utopia rural(...)13
Para Voltaire é próprio do homem que saiu de um estado de rudeza, de
barbarismos, de brutalidade, ou seja, de um estado de natureza de ser o “bom
selvagem”14
, para formalizar uma transformação sociocultural, uma vez que é própria
dos pensadores iluministas que a sociabilidade seja uma representação; melhor dizendo:
seria uma tendência inevitável da natureza humana ser e constituir-se em sociedade.
Portanto, os modos de vida se fazem com o outro e a necessidade de saber se portar em
comunidade em função das regras sociais. No entanto, a civilização não fica satisfeita
apenas com as condições que a natureza oferta. Neste sentido, seria necessário um
refinamento dos hábitos, costumes e modos de interagir com o mundo natural. Por isso,
a civilidade traz consigo a apuração dos sentidos, do paladar e apreciação para todas as
coisas que irão exigir dos indivíduos conhecimento, gosto e requinte. De tal modo, “Ao
se ocupar da história, Voltaire investiga a religião, a ciência, a filosofia e a arte, ou seja,
o conhecimento que os homens elaboraram e que tornou possível a convivência entre
eles, ou seja, a formação de uma sociedade: suas instituições, crenças, filosofia, arte e
ciência” (LEAL; OLIVEIRA, 2004, p. 49).
Todas essas questões para Voltaire, só se tornam possíveis porque o indivíduo
adquire com o convívio social e juntamente com o progresso técnico cientifico um
querer e um gosto diferenciado. Desta maneira, é unicamente pelo conhecimento que se
torna provável realçar todos os modos de vida. Assim como em um belo quadro, ópera,
12 Final do Poema Le Mondain: “Du paradis ont recherché la place : Le paradis terrestre est où je suis”. 13 “Ce poéme argumentatif aux registres didactique, polémique et satirique, fait alterner l'éloge du luxe et
des besoins nouveaux avec l'idée de progrés et la critique du passé, en particulier du paradis terrestre et de
la vertu primitive "le paradis terrestre est où je suis" Pour Voltaire, le bonheur n'est pas dans l'utopie
rurale à la manière de Fénelon, pas plus que dans le passe.”( GUISLAIN E TAFANELLI,2005, p. 95). 14 A metáfora do “bom selvagem” demonstra a importância que está contida no pensamento de Rousseau,
onde as qualidades dos sujeitos que viviam em um estado de natureza são superiores aos da civilização que
tanto a filosofia iluminista quanto a política moderna visavam. Pode-se verificar mais sobre isto em O
Contrato Social, livro no qual Rousseau refletirá sobre como salvaguardar a justiça e a liberdade do estado
de natureza em sociedade.
27
música, teatro, festa, culinária, vestimentas ou arquitetura há uma total apreciação do
artista para a natureza a fim de modificá-la, transformá-la e aprimorá-la. O homem da
civilização deve ter o refinamento do gosto. Isso o faz um ser polido para que possa
saber apreciar devidamente os meandros que a técnica do artista obteve na
transformação da natureza apurando e constituindo um artifício.15
Com isso, não só o gosto, mas também o conhecimento só pode ter relação com
o homem do iluminismo, que sabe apreciar todas as coisas boas, belas e saborosas ao seu
redor, as quais foram concretizadas por meio do olhar apurado do homem do saber, o
único que alcança a possibilidade de modificar, construir e aprimorar a natureza.
Essa aparência artificial, cheia de pompas diante do outro é condenada por
Rousseau e enfatizada por Voltaire como algo que deve ser exaltada por todos. É
também a defesa, por este, de uma sociedade que busca o conhecimento, visa à técnica,
às ciências e às artes.
Nesse sentido, se pode afirmar que a educação é a base da formação da
sociedade, ou seja, é a partir da educação que se estruturam as
instituições sociais. Daí a preocupação de Voltaire com a necessidade de esclarecimento dos homens, para que sejam possíveis as
transformações que já se vislumbram na sociedade francesa no século
XVIII. (LEAL; OLIVEIRA, 2004, p. 49).
Contudo, Voltaire aparece no cenário francês e assume uma postura menos
rígida em relação à prática dramática tradicional que ocorria naquele cenário no século
XVIII. Carlson relata que Voltaire, ao retornar de sua viagem à Inglaterra após dois
longos anos, sofreu diretamente uma influência no seu modo de pensar e também em
seus escritos. Com isso, “Voltaire sustentaria que a rima se fazia necessária na França,
repetindo o argumento de que a língua menos flexível a exige e, curiosamente, usando
um dos arrazoados de La Motte, o de que os ouvidos franceses estão acostumados a
ela”. (CARLSON, 1997, p.141). Além do mais, o pensador também deseja equilibrar as
forças e as fraquezas relativas do drama francês e inglês16
.
Voltaire, tanto em sua “peça Bruto (1731), como o seu prefácio, o “Discours sur
la tragédie” [“Discurso sobre a tragédia”], desafiavam implícita e explicitamente certos
15 Diderot abordará a questão da natureza em meio ao artifício no Paradoxo sobre o Comediante.
Trataremos desse tema no Capítulo 2. 16 “As peças inglesas, embora quase sempre monstruosas, têm vigor e cenas admiráveis. Demonstram que
os artistas de gênio podem romper eficazmente com certas práticas tradicionais – como limitar o número
de atores falando a três ou banir toda ação brutal –, desde que as “leis fundamentais do teatro”, como as
três unidades, sejam observadas.” (CARLSON, 1997, p. 141).
28
pressupostos do teatro” (Idem, Ibidem). Também defende que a introdução do elemento,
ou melhor dizendo, do sentimento de amor, deve existir na peça Bruto (1731), o que não
foi bem visto pelos neoclássicos estritos. Compreendia que “como todo teatro seja esse
trágico ou cômico é “a pintura viva das paixões humanas”, o amor deve ser mostrado na
tragédia se for essencial à ação central, se for realmente uma paixão trágica e
conformar-se aos requisitos morais do gênero, “seja levando a sofrimentos e crimes,
para demonstrar quão perigosos ele é, seja cedendo à virtude, para mostrar que não é
invencível” (Idem, Ibidem).
Em dois ensaios contidos nas Cartas filosóficas (1974), Voltaire se refere tanto à
tragédia quanto à comédia. Nos ensaios o pensador fornece um desenvolvimento mais
pleno sobre as ideias pretendidas para cada um dos gêneros. Portanto, terá os ingleses
como base para críticas e comparações. De tal maneira, compreende que a tragédia escrita
por Addison é a primeira tragédia inglesa considerada a melhor entre tantas outras,
mesmo sendo uma obra fria e sem vida. Ainda, diz que os autores ingleses respeitam as
regras francesas, mas não conseguem desabrochá-las para a vida. Voltaire também louva
Shakespeare, uma vez que, este cria obras tão poderosas que, mesmo as suas falhas, são
altamente respeitadas e muitas vezes imitadas.
Ao pensar a comédia inglesa, Voltaire as considera fieis às regras, com inúmeros
personagens sutis e espirituosos, próximos ao modelo natural. Logo, tanto a comédia
quanto a tragédia possuem a finalidade, para ele, de conduzir os indivíduos a atos
moralizantes e de caráter didático.
O filósofo percebe que as lições morais necessárias à população estavam no
cerne do pensamento iluminista, nas questões da civilização, monarquismo benevolente
e religião esclarecida. Desse modo, Voltaire compreende que a verdadeira tragédia pode
ser a escola da virtude, sendo que as diferenças do “teatro purificado” e dos livros
moralistas estão na instrução, que no teatro se encontra no ato em cena, que serve de
esclarecimento para ensinar. Entretanto, a teoria dramática de Voltaire, segundo
Carlson, ainda continha um forte conservadorismo:
Um interesse algo maior no espetáculo visual (especialmente o exótico), embora não a ponto de desafiar a unidade de lugar; uma
liberdade algo maior na expressão. Embora não o bastante para erodir
a forma poética francesa tradicional; uma liberdade algo maior no assunto, permitindo que figuras da história francesa se juntem aos
gregos e romanos como temas possíveis; e uma nova ênfase no
29
emocional, especialmente o sentimental – isso, essencialmente, exaure
as suas inovações. (CARLSON, 1997, p. 143).
1.3. Os contrapontos.
Enquanto Voltaire elogia a França de Luís XIV, segundo Giani (2002), como o
momento da história em que o espírito humano mais se aproxima da “perfeição”, em
Rousseau via-se o contrário, uma vez que questiona a relação entre o renascimento das
ciências e das artes (ROUSSEAU, 1973b, p. 234; ROUSSEAU, 1973a)17
e a condição
da vida humana. Rousseau entreviu de modo crítico o progresso e todas as questões de
“civilidades”. Presumiu que as glórias que faziam com que Le Roi Soleil fosse venerado
e aclamado por seus projetos de protetor das letras, das artes e das ciências eram apenas
uma exaltação corrompida para uma sociedade que visa apenas uma falsa moralidade do
homem civilizado. Assim, combate aquela sociedade desigual, não vendo o menor
sentido e nenhuma validade em todo o esplendor que a Academia Francesa e as
inúmeras outras academias de belas-artes, de música, de arquitetura e de ciências
fundadas e patrocinadas pelo "Rei Sol” promoveram, uma vez que de nada vale a
exaltação das artes se o homem fosse corrompido por toda aquela artificialidade do
mundo civilizado.
Por tais questionamentos Rousseau começa a realizar estudos que irão
“contradizer” o século das luzes com todo pressuposto de maravilhas, as quais Voltaire
e outros filósofos ilustrados enfatizam e assumem como de grande importância.
Contesta, então, o grande projeto das luzes que propicia o progresso da humanidade,
haja vista que entre Rousseau e Voltaire existiram inúmeras correspondências em que
ambos trocaram além de informações, pensamentos e elogios. Além destes, também
teceram comentários, alguns ásperos em relação às suas divergências de pensamentos,
bem como em relação ao “tal estado de natureza”, sobre o qual Voltaire não concordava
o que tornam as cartas um divertido jogo de conhecimento e reflexões sobre este
momento.
A passagem do estado de natureza para o estado civil determina no
homem uma mudança muito notável, substituindo na sua conduta o
17 Referimo-nos aqui, especialmente, ao “Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade
entre os homens”: “(...) todos os progressos da espécie humana distanciando-a incessantemente de seu
estado primitivo, quanto mais acumulamos novos conhecimentos, tanto mais afastamos os meios de
adquirir o mais importante de todos: é que, num certo sentido, à força de estudar o homem, tornamo-nos
incapazes de conhecê-lo. ” (ROUSSEAU, 1973b, p. 234).
30
instinto pela justiça e dando às suas ações a moralidade que antes lhes
faltava. É só então que, tomando a voz do dever o lugar do impulso
físico, e o direito o lugar do apetite, o homem, até aí levando em consideração apenas sua pessoa, vê-se forçado a agir baseando-se em
outros princípios e a consultar a razão antes de ouvir suas inclinações.
Embora nesse estado se prive de muitas vantagens que frui da natureza, ganha outras de igual monta (ROUSSEAU, 1973, p. 42).
Há de se compreender, antes de tudo, como aponta o próprio Rousseau em suas
reflexões, que o estado de natureza era apenas uma forma hipotética para uma
aproximação um tanto mais pedagógica para se tratar o assunto. Sendo hipotético, não
cabe afirmar, com certeza, a existência do estado natural que pressupunha. Assim, a
condição natural primitiva, o sentimento de autopreservação que inclui o sentimento de
existência, a fome, o sexo e o instinto de defesa, conduz o homem natural a recorrer em
ações agressivas. Deste modo, mais forte que o sentimento de autopreservação, no
estado de natureza, era o sentimento de piedade, essencialmente natural, que seria
anterior à reflexão, ou até mesmo à consciência. A consciência, por sua vez, engendra o
amor-próprio, o luxo, a vaidade, a ociosidade e toda a falsa moral. Ela engendrou a
maldade e a corrupção, desde seu estado de origem, o estado de vida social em seus
primórdios.
(...) errando pelas florestas, sem indústrias, sem palavra, sem domicílio,
sem guerra e sem ligação, sem qualquer necessidade de seus
semelhantes, bem como sem qualquer desejo de prejudicá-los, talvez sem sequer reconhecer alguns deles individualmente, o homem
selvagem, sujeito a poucas paixões e bastando-se a si mesmo, não
possuía senão os sentimentos e as luzes próprias desse estado, no qual
só sentia suas verdadeiras necessidades, só olhava aquilo que acreditava ter interesse de ver, não fazendo sua inteligência maiores progressos do
que a vaidade (ROUSSEAU, 1973b, p. 262).
Rousseau18
não deixa de enfatizar as questões voltadas à educação, como uma
nova forma de um mundo engajado contrariamente em um processo histórico de
deslocamento.
Enquanto seus contemporâneos mais ativos, também tocados pela “graça educacional”, ocupam-se de “fabricar a educação”; e os
mestres do pensamento se esforçam, por meio da educação, de
remodelar o homem, tornando-o senão um humanista, um bom cristão,
um cavalheiro, um bom cidadão, Rousseau deixa de lado o conjunto das técnicas. Rompendo com todos os modelos e proclamando que a
18 Na obra Emílio ou da Educação (2004), Rousseau propõe um projeto para a formação do homem para
uma nova sociedade, a qual não seria a da França do século XVIII. Com isso quer que a educação deva
ser de acordo com a natureza, valorizando a Liberdade, bem como todo o desenvolvimento das faculdades
da criança, formando-se um cidadão pleno e feliz agindo em conformidade com a natureza.
31
criança não tem que se tornar outra coisa senão naquilo que ela deve
ser. (SOËTARD, 2010, p. 14).
Streck, refletindo sobre a questão da educação a partir do pensamento de
Rousseau, dará ênfase ao fato de que, em um sentido amplo, educar faz parte da própria
vida. Assim podemos compreender que sempre se ensinou e sempre se aprendeu uma
vez que, pode-se dizer: o aprender e o ensinar são parte intrínseca da natureza de
qualquer ser vivo. Levando em conta exemplos do próprio Rousseau, Streck nos faz
lembrar que é pela natureza que as aves aprendem a fazer ninhos, os vegetais aprendem
a se virar para o lado da luz; a vida aprende, enfim, porque ela quer ser, simplesmente, a
vida. Rousseau, então,
(...) reconhecia que, se quiséssemos identificar uma característica humana
por excelência, esta não poderia ser procurada no fato de que pesamos, porque, à sua maneira e em seu nível, também os animais pensam. O que
distingue o ser humano é o fato de ele ter a possibilidade de ser um agente
livre, e a meta da educação seria formar esse agente. Mas o que nos faz crer na própria possibilidade de educar alguém para qualquer coisa? É a
pergunta pela educabilidade que se coloca para a pedagogia no momento
em que nem o mundo nem homens e mulheres podem ser vistos como
prontos. (...) (STRECK, 2008, p. 21-2).
Rousseau compreende a natureza como a manifestação primordial da humanidade,
o estado primeiro, ou seja, o estado de natureza, isto é, entende que neste momento tudo que
existe é espontaneidade, uma liberdade que não se relaciona jamais com o que vier a ser
antinatural ou uma artificialidade. “A natureza (...) torna fortes e robustos aqueles que são
bem constituídos e leva todos os outros a perecerem.” (ROUSSEAU, 1973a, p. 244).
Segundo o filósofo, a natureza é um instrumento de salvação e organização de todos os
homens, algo que provém do estado de natureza: “A natureza manda em todos os animais, e
a besta obedece. O homem sofre a mesma influência, mas considera-se livre para concordar
ou resistir, e é, sobretudo na consciência dessa liberdade, que se mostra a espiritualidade de
sua alma” (Idem, p. 249).
O homem, no estado de natureza, vive segundo Rousseau de acordo com suas
necessidades mais legítimas, e assim é mais feliz. Autossuficiente, ele satisfaz suas
necessidades sem grandes sacrifícios, não sente grandes angústias, porque por meio do
sentimento inato da piedade ele evita fazer o mal desnecessariamente aos demais.
O homem selvagem, abandonado pela natureza unicamente ao instinto, ou ainda, talvez, compensado do que lhe falta por faculdades capazes de
a princípio supri-lo e depois elevá-lo muito acima disso, começará, pois,
pelas funções puramente animais. Perceber e sentir serão seu primeiro
32
estado, que terá em comum com todos os outros animais; querer e não
querer, desejar e temer, serão as primeiras e quase únicas operações de
sua alma, até que novas circunstâncias nela determinem novos desenvolvimentos (...). (Idem, p. 249-50).
Rousseau, no entanto, observa que a sociedade impõe ao homem uma forma
artificial de comportamento, induzindo-o a ignorar suas necessidades naturais e os
deveres humanos, tornando-o vaidoso e orgulhoso. Deste modo, o homem precisa
buscar uma maneira de conviver com os outros, além de ter uma nova forma de interagir
com a natureza. Assim, seria de suma importância entender que os homens devem agir
em grupo para a manutenção da vida. Rousseau, diz que o homem primeiramente teve
que aprender a lidar com o que a natureza lhe servia para que, assim, pudesse fazer uso
de seus bens, aprimorando-os e também os modificando a seu bel prazer. O homem,
nesse âmbito,
(...) aprendeu a dominar os obstáculos da natureza, a combater,
quando necessário, os outros animais, a disputar sua subsistência com
os próprios homens ou a compensar-se daquilo que era preciso ceder ao mais forte. A medida que aumentou o gênero humano, os trabalhos
se multiplicaram com os homens. A diferença das terras, dos climas,
das estações, (...) tudo que consomem, exigiram deles uma nova indústria (Idem, p. 266).
Nesse ponto o homem teve que compreender os mecanismos necessários para
haver uma primeira relação a fim de interagir com a natureza, dominá-la para que assim
pudesse transformá-la. Na medida em que seu desenvolvimento e observação foram
aprimorados, sua forma de domínio e superioridade perante outras espécies se faz de
maneira muito mais ampla e com consciência de seus feitos, afastando o homem da
natureza, da produção e extração de recursos naturais apenas para sua sobrevivência e
de sua família ou de um pequeno grupo. Para tanto, já se compreende uma civilização
muito mais elaborada, esclarecida, a qual via nessa produtividade a vanglória do
advento da razão.
As novas luzes, que resultaram desse desenvolvimento, aumentaram sua superioridade sobre os demais animais, dando-lhe consciência dela.
Aplicou-se a preparar-lhe armadilhas, revidou-lhes os ataques mil
maneiras e, embora inúmeros deles sobrepassassem em força no combate ou em rapidez na corrida, daqueles que poderiam servi-lo ou nutri-lo veio
a tornar-se com o tempo, o senhor de uns e o flagelo de outros. Assim, o
primeiro olhar que lançou sobre si mesmo produzir-lhe o primeiro
movimento de orgulho; assim, apenas distinguindo as categorias por considerar-se o primeiro por sua espécie, dispôs-se desde logo a
considerar-se o primeiro como indivíduo. (...) (Idem, p. 266-67).
33
De tal forma, o modo de produzir e extrair da natureza foram cada vez mais
aprimorados e tudo que era retirado seria revertido em recursos para uma maior
comodidade de vida. Assim o homem se entende em um processo civilizatório
avançado: “Quanto mais esclarecidos os espíritos, mais se aperfeiçoava a indústria”
(Idem, p. 268).
Logo após esse primeiro momento de construção de um poder diante de todas as
formas naturais, o homem, para Rousseau embrutece de um modo esclarecido. Assim
sendo, Rousseau esclarece que:
(...) as relações já estabelecidas entre os homens exigiam deles
qualidades diversas daquelas que deviam à sua constituição primitiva;
que começando a moralidade a introduzir-se nas ações humanas, e
constituindo cada um perante as leis o único juiz e vingador das ofensas que recebia, a bondade que convinha ao estado puro de
natureza não era mais a que convinha à sociedade nascente; que as
punições se tornavam mais severas à medida que as ocasiões de ofensa se tornavam mais frequentes e que caberia ao terror das
vinganças ocupar o lugar de freio das leis. (Idem, p. 270).
As ações, tanto do homem em particular quanto em sua coletividade, agora
seriam apenas possíveis ser realizadas pelo estabelecimento de regras que devem ser
cumpridas por todos, a fim de conservar e obter a manutenção da vida harmoniosa do
grupo.
Podemos, com isso, compreender que, ao se relacionar com outros homens e
obter o domínio das espécies, da natureza e se agruparem em sociedade, o homem se
aprimora, sai da sua mera experiência bruta, para se tornar o fazedor e constituinte de
coisa, interferindo em todos os locais em que houvesse necessidade de transformação,
seja em um ambiente a fim de torná-lo mais sociável, seja para seu puro prazer e deleite.
Nas críticas realizadas por Rousseau, essa forma de agir no mundo se constitui
no momento em que o homem sai do seu estado de natureza para formar a sociedade.
Assim o artifício é uma das causas que corrompe a sociedade e a torna hipócrita a tal
ponto, que não pode mais reconhecer quem realmente é o homem de bem: “as suspeitas,
os receios, os medos, a frieza, a reserva, o ódio, a traição esconder-se-ão todo o tempo
sob esse véu uniforme e pérfido da polidez” (ROUSSEAU, 1973b, p. 344). Isso se dá
porque o filósofo compreende que o refinamento dos costumes era próprio da sociedade
civilizada e próspera, a qual rompe com qualquer tipo de “ignorância” e faz nascer os
vícios sob nome de modernidade, civilidade ou sociedade próspera: “(...) as ciências e
34
as artes devem, portanto, seu nascimento a nossos vícios (...). Se nossas ciências são
inúteis no objeto que se propõem, são ainda mais perigosas pelos efeitos que produzem”
(Idem, p. 351).
Para tanto, o sujeito que se constituía a partir de todas as formas de
esclarecimento, precisa de um disfarce. Utilizando artifícios como a lisonja, a hipocrisia
e a adulação, age tal qual um bom ator, valendo-se de vários artifícios para poder
persuadir e convencer os que o cercam, normalmente demonstrando suas virtudes em
sociedade, mesmo que não fossem reais. O aparentar ser tem mais importância e maior
prestígio em relação a qualquer que fosse a real virtude do cidadão:
Para proveito próprio, foi preciso mostrar-se diferente do que na realidade se era. Ser e parecer tornaram-se duas coisas totalmente
diferentes. Dessa distinção resultaram o fausto e majestoso, a astúcia
enganadora e todos os vícios que lhes foram cortejo. Por outro lado, o
homem, de livre e independente que era, devido a uma multidão de novas necessidades passou a estar sujeito, por assim dizer, a toda a
natureza e, sobretudo, a seus semelhantes dos quais num certo sentido
se torna escravo, mesmo quando se torna senhor (ROUSSEAU, 1973a, p. 273).
Neste contexto, a partir do verbete contido no sétimo volume da Enciclopédia
(1957), o artigo sobre a cidade de Genebra, escrito por D’Alembert, provoca discórdia e
uma série de disputas e contestações, as quais desencadeam na realização da resposta de
Rousseau para D’Alembert. Deste modo, Jean-Jacques Rousseau rompe definitivamente
com os iluministas e, indignado com a pretensão dos filósofos – Voltaire e D’Alembert,
especialmente – que contrariam as leis, costumes e regras de Genebra, Rousseau escreve
a Carta a D’Alembert. Esta Carta é um ensaio que enfatizar os interesses de Rousseau e
que, segundo Carlson, foi chamada de “Enciclopédia de Rousseau”. O teatro será o tema
unificador da Carta, em especial ao que diz respeito aos efeitos que as peças causam em
seus espectadores.
Para Rousseau, como assegura Carlson, “não se pode falar em divertimentos
públicos bons ou maus em si mesmos (...) já que o homem é tão modificado pela
religião, governo, leis, costumes, predisposições e clima que não cabe perguntar o que é
bom para os homens em geral” (CARLSON, 1997, p. 146). O filósofo não compreende
quais benefícios o teatro traz para Genebra, a não ser enfatizar a corrupção, a luxúria e o
vício. Por conta de tais malefícios, Rousseau contesta e nega que a instrução fosse seu
35
grande objetivo. Por isso, no mínimo serve apenas para a diversão, opinião pública e
adulação da mesma.
(...)Rousseau nega inteiramente a doutrina da catarse, insistindo em
que o despertar das emoções não pode de modo algum remover essas
mesmas emoções (...). De fato, se quisermos aprender a amar a virtude e a odiar o vício, os melhores mestres são a razão e a natureza. O
teatro não é necessário para ensinar isso, mesmo que fosse capaz de
fazê-lo. (Idem, Ibidem).
Carlson explica que, no que diz respeito às peças representadas pelos artistas no
palco, Rousseau relaciona com a tradição moralista cristã, uma vez que entende o ator
como aquele que pratica a arte de mentir, representa falsas aparências, e isso
necessariamente cai nas amarras da corrupção. Assim, na Carta, Rousseau interroga
D’Alembert sobre as regras que são caras ao teatro, e porque os atores devem seguí-las,
se não fosse por receio da corrupção que o teatro pode causar. Por esse motivo,
Rousseau reforça que Genebra já tinha leis e regras seguras e fortes, as quais proíbe
qualquer tipo de atuação e de atores. Desta maneira, a vida social da cidade fica sã e
salva, não estando a mercê dos vícios que o teatro pode incutir nos cidadãos.
Mesmo com tantas ressalvas, Rousseau ainda pensa em um tipo de teatro que
possa existir em Genebra. Este deve “ser um teatro adequado a uma pequena república
ainda perto da natureza e da virtude – espetáculo ao ar livre com dança, ginástica e
celebração inocente por toda a população” (CARLSON, 1997, p. 147). Neste sentido
como explicita Carlson, Rousseau, concede apenas as festas populares o lugar do
“verdadeiro teatro”, por este ter em si, a expressão viva do agir popular juntamente com
a arte. Para tanto, os líderes da Revolução Francesa entrevem nos pressupostos de
Rousseau uma forma de promover grandes festivais19
para a população.
1.4. Teatro e a teoria da representação.
As críticas realizadas sobre o teatro no verbete “Genebra”, feitas por D’Alembert,
resultou na refutação de Rousseau contida na Carta a D’Alembert supracitada. Isto de nada
contribui para que a Enciclopédia continuasse a valorizar o trabalho de Diderot, o que
19 “Um século depois, Rolland e outros reviveram de novo na França esse ideal propugnado por Rousseau
de um teatro comunal populista totalmente oposto à tradição maior, que tornou a florescer no Proletcult
russo e nas teorias teatrais populistas de meados do século XX.” (CARLSON, 1997, p. 147).
36
começa a afetar o processo e a continuidade do projeto. Logo a “defecção de Rousseau ex-
colaborador do projeto de Diderot, foi um novo golpe. D’Alembert se retira, e no começo
de 1759 a Encyclopédie foi suprimida por decreto régio” (CARLSON, 1997, p. 147).
Naquele período Diderot começa a desenvolver um novo interesse, que seria a
dramaturgia. A partir de então o filósofo se dedica a desenvolver duas obras, as quais
foram notavelmente originais para época, acompanhadas de ensaios de grande
significância: O filho natural (1757) e O pai de família (1758). Ambas as obras sugerem
reformas para o teatro muito mais revolucionárias do que as propostas por Voltaire.
Diderot considera que as reformas propostas para o teatro são necessárias e se
faz urgentes, mas por conta das controvérsias entorno da Enciclopédia, além das críticas
feitas por Rousseau, a concretização das reformas que o enciclopedista tanto almejava
foram impedidas. “O impacto último de suas ideias foi enorme, mas o efeito imediato
sobre o teatro e o drama de sua própria época revelou-se insignificante.” (Idem,
Ibidem).
A teoria dramática de Diderot, pode ser encontrada no romance As joias
indiscretas (1748), um tanto licencioso, e cujos capítulos 34 e 35 trazem observações
referentes ao teatro. Por conseguinte, o prazer é tema presente nesta obra. A prevalência
sobre as regras, e a fonte de todo o prazer está contida na ilusão da realidade.
Entretanto, Diderot afirma que apesar de haver uma consciência que estivesse presente
no teatro, a representação quando se faz mais próxima à natureza sempre agradará de
modo muito mais profundo. Com isso, o teatro moderno na teoria do enciclopedista
deve ter novos pressupostos, os quais tinham muito mais relação e proximidade com o
público da época. O prazer no divertimento, nos exageros e nas luxurias não mais
seriam a essência das representações, a qual Diderot acredita.
Os interesses do enciclopedista sobre o realismo estão contidos em
Conversações (1757), em três diálogos que se dão entre “Dorval” e “Eu”, que
acompanham o filho natural. Sendo que “estes atacavam quase todos os aspectos do
teatro francês coevo como uma ofensa à verossimilhança” (CARLSON, 1997, p. 148).
As questões pertinentes à composição de uma peça teatral não foram discutidas
apenas no âmbito do texto (autor/poeta) e representação (ator), mas também no que diz
respeito à forma do fazer e aos espaços nos quais uma peça deve ser representada.
37
Também tinha grande importância, neste momento para Diderot, as minúcias que
compunham uma cena. Desse modo, o palco deve ser um local de extrema atenção por
ser o lugar em que se compõem um momento de reflexão para o público. Voltaire foi o
primeiro a remover os espectadores da arena, uma vez que, os espaços em que se
representam os espetáculos eram demasiadamente pequenos. Isto impede que os atos
sejam visualizados de maneira mais ampla. Os cenários não ficam de fora das reformas
propostas pelo filósofo. Antes eram tradicionais e feitos para ser utilizados várias vezes
e servindo às inúmeras representações. A partir das concepções de Diderot, as quais
devem ter uma nova configuração, trazendo para o teatro a arquitetura e o formato o
mais parecido com locais de circulação pública, tais como os salões.
O enciclopedista se preocupa com a unidade da peça, uma vez que deve sempre
estar ligada, a fim de favorecer a verossimilhança. Por isso, a mudança de cenários
também se faz necessária, assim como lapsos de tempo (quando houver a pausa entre
cada ato). Essas práticas foram muito utilizadas pelo realismo moderno, que seguiu
fielmente as concepções que o filósofo concebeu.
Outro ponto de grande relevância para Diderot era o formato dos diálogos
tradicionais, que ao invés de serem rítmicos, rimados e altamente autoconscientes,
devem ser como a língua cotidiana das ruas: o enciclopedista usa em suas próprias peças
frases que podem e devem ter efeitos diversos, truncados e irregulares.
Para Diderot a pantomima deve ser desenvolvida em detrimento das
declamações, assim como nas cenas em que as emoções estão afloradas. O autor deve
deixar por conta dos atores a livre iniciativa de compor a cena conforme as inspirações
lhes prouverem no momento da ação.
Ao se referir à movimentação que existe na forma tradicional do teatro, Diderot,
compreende que tal circulação em cena não parece ser algo perto da realidade: “os
atores permanecem equidistantes em semicírculos artificiais nunca ousando (...).
Diderot sugere um movimento fluido, natural, e arranjos casuais sugerindo os
agrupamentos na pintura. O coup de théatre [lance teatral] deve ser substituído pelo
tableau [cena].” (CARLSON, 1997, p. 148).
Além do mais, para o filósofo, o ensino para conduzir a uma formação moral
era de grande importância. De tal forma, “encarece também a instrução moral em
38
detrimento do prazer como o fim do drama, colocando assim seu argumento mais em
harmonia com as maneiras de ver gerais do Iluminismo. Desse modo, ele enfatiza não
tanto o prazer dado pela verossimilhança quanto sua eficácia em tal instrução”. (Idem,
Ibidem). Diderot compreende que as catástrofes domésticas ou assuntos que têm relação
com a vida diária afetam muito mais do que fabulosas mortes de tiranos ou sacrifícios
de crianças a deuses pagãos, uma vez que não mais essas histórias se conectam ao seu
tempo.
O argumento de que uma peça servirá como um exemplo melhor de virtude se estiver fundada na verossimilhança não era novo na crítica
francesa, naturalmente (...). La Mesnardière e outros mostraram-se
muito interessados por esse ponto. Tradicionalmente, contudo, essa linha de argumento tinha sido usada tanto por críticos franceses com
os italianos para justificar tipos de personagens e de situações
tradicionais e esperados. A passagem de Diderot da opinião popular
para a realidade observada como base da verossimilhança foi uma mudança significativa na estratégia desse argumento, e sem dúvida
está em débito, pelo menos parcialmente com os escritos ingleses
(Idem, p. 149).
Outro ponto de grande relevância nas reflexões de Diderot, é o que diz respeito à
moralidade e a verossimilhança. Dessa forma, o filósofo compreende que, é necessário
despertar sentimentos, os quais conduzem a plateia a vivenciar as paixões para
condução à verossimilhança. Sendo assim, sugere Diderot que, deve ser efetivado antes
de tudo, um novo gênero, que contém argumentos necessários a fim de conduzir o
público a uma real reflexão dos modos de vida manifestos. Para tanto, esse novo gênero,
que, na visão de Diderot, é o gênero sério, constituir-se-ia entre a comédia e a tragédia.
Este novo gênero tem a capacidade de retratar fatos, paixões e circunstâncias da vida
doméstica diária. Além disso, ele também necessita de assuntos novos: “suas peças se
baseariam, não nas peculiaridades de um personagem individual, mas em papéis sociais
e familiares – as preocupações da nova classe - a burguesia. O homem de negócios, o
político, o cidadão, o administrador público, o marido, o irmão ou a irmã e o pai de
família20
poderiam agora servir como centro do drama” (CARLSON, 1997, p.149).
20 Diderot empregou o último personagem sugerido em seu drama seguinte, Le père de famille (1758),
que apareceu com um “Discours sur la poèsie dramatique” [“Discurso sobre a poesia dramática”]. Nesta
peça se propõe um sistema mais formal de gêneros, criando uma espécie de espectro: num extremo, a
comédia tradicional ou alegre, “cujo objeto é ridículo e o vício”; depois, a comédie sérieuse, da qual Le
père de famille é um exemplo e “cujo objeto é a virtude e os deveres do homem”; em seguida, genre
sérieux, agora chamado drame, “cujo objeto são as nossas atribuições domésticas”; e, finalmente, a
tragédia tradicional, “cujo objeto são as catástrofes públicas e os infortúnios dos grandes. (CARLSON,
1997, p. 149)
39
A utilidade moral do drama é de extrema importância para Diderot, pois, “todas
as condições dos homens e toda instrução pública podem ser atacadas por seus abusos
da mesma forma, que Rousseau ataca atores e o drama”. (Idem, p.150). Diderot
compreende que o drama, assim como o teatro, em vez de enfatizar os erros do passado
considera a possibilidade de transformar o futuro. Por isso entende que qualquer povo
que precisa destruir preconceitos, e acabar com os vícios tem a “(...) necessidade do
drama e qualquer governo o verá como um meio eficaz de preparar para uma mudança
na lei ou extinção de um costume”. (Idem, Ibidem).
Portanto, Diderot compreende e aceita o pressuposto de Rousseau no que se
refere à bondade básica do homem, e ainda “por essa mesma razão sustenta que o teatro,
ao retratar as ações virtuosas, pode tirar o pecado do caminho em que se extraviou”.
(Idem, Ibidem).
O teatro para Diderot tem a finalidade de mexer com a plateia, despertar sua
sensibilidade. Por essa razão, o teatro tem o poder de, ao término de cada representação,
incitar os indivíduos à disposição de praticar o bem, ao contrário e mais eficiente do que
ter ouvido um rígido e severo orador proferindo regras e modos de ser que os condenam.
Neste sentido, os filósofos não devem se opor aos atores imitadores, “mas encorajá-los a
usar os dons dos céus para expressar o amor à virtude e o ódio ao vício”. (Idem, Ibidem).
40
2. TEATRO MODERNO: DA NATUREZA PARA A RAZÃO.
Denis Diderot enfatiza em seu pensamento os benefícios que a arte, mais
precisamente o teatro podem agregar ao homem, uma vez que, são meios pelos quais os
indivíduos devem ser ensinados e sensibilizados na constante busca da formação em ser
autônomo, justo, moral, ético e virtuoso. Partindo de Diderot, vemos como o teatro
representa também uma das maneiras de entender o que ocorre na sociedade francesa do
século XVIII.
Através desses argumentos o filósofo desenvolve uma reflexão do humano a
partir do teatro. Nosso intuito, portanto, pautar-se-á na reconstituição do pensamento a
respeito das relações estabelecidas por Diderot, para os modos de fazer teatro e como o
homem-ator encena no palco, assim como a formação de um público que vivencia por
meio da representação o que está presente em seu cotidiano; dito em outras palavras, o
que se vive nas esferas pública e privada – os problemas políticos, morais e familiares.
Utilizamos como base principal para nossa discussão e investigação O Paradoxo
sobre o Comediante21
, livro no qual Denis Diderot estabelece um embate entre a alma do
comediante e sua expressão, além de conduzir a uma teoria ampla de ação do ator. O
Paradoxo sobre o Comediante nos remete a inúmeras questões que dizem respeito à cena
teatral e à vida, esta no sentido de conduzir a uma ação virtuosa. No que tange ao atuar, a
natureza proporciona elementos para o comediante estudar formas, gestos e diálogos que
estabelecem um olhar crítico para a representação e também para as formas de interações
diante a constituição da civilidade, assim como o papel das artes e principalmente da
representação para o século XVIII.
O Paradoxo, também é visto por muitos comentadores e estudiosos – entre eles
Jacó Guinsburg – como uma obra que está além do plano teatral e estético porque trata
com profundidade, também de uma teoria geral da sensibilidade22
. Diderot de fato,
explicita essa análise para compreensão do homem de gênio23
: “Os seres sensíveis ou os
21 O termo comediante tem aqui a mesma conotação de ator. 22 Essa é uma das questões que está muito presente ao longo de todo Paradoxo. A teoria da sensibilidade
faz parte da formação do grande comediante. 23 O homem de gênio é aquele que tem a razão como fonte de seus estudos. Ele também é o admirador e
observador da natureza.
41
loucos se acham no palco, ele [o grande homem] está na plateia; ele é o sábio. ”
(DIDEROT, 1985c, p. 116).
Ao representar, o homem entra em contato com um mundo a partir das obras dos
autores, sem deixar de trazer suas vivências com seu meio e suas formas de relacionar-
se. Gera suas várias personagens sendo que, antes de tudo, segundo a teoria do
Paradoxo, necessitava da observação atenta para o mundo natural, já que só pela
natureza consegue retirar os modos de vida para a constituição de suas personagens.
Desta forma, a natureza oferece artifícios dos quais o ser humano se vale para
transformar, imitar, representar e agir em sociedade para formalizar uma virtude.
Para tanto, por meio do pensamento de Diderot abordamos as questões que
possibilitam compreender as indagações pertinentes ao teatro, à arte e aos modos de
lidar e entender as influências mútuas que o cidadão estava submetido em público, nos
seus espaços sociais e de socialização. Desta forma, refletimos também no que diz
respeito às técnicas, pelas quais os indivíduos devem ter enquanto atores, assim como a
possibilidade do contato com a arte dramática que pode conduzir o sujeito a ter ações
virtuosas, além de compreender o desenvolvimento das modificações no rumo do teatro
moderno francês.
2.1. Natureza e estudo.
O sentido só em parte está nas palavras,
toda sua força reside nos acentos.
(Ensaio sobre a origem das línguas – Rousseau, p. 192).
No Paradoxo sobre o Comediante, livro que se constitui de um diálogo entre o
“Primeiro Interlocutor” e o “Segundo Interlocutor”, sendo o primeiro a figura do próprio
Diderot. Ele problematiza a questão em torno do ator. O diálogo proposto pelo
enciclopedista começa por um preâmbulo retórico no qual se faz alguns questionamentos
42
aos homens que têm a função de elaborar críticas24
literárias para o cenário teatral do
iluminismo. Logo após essas observações, Diderot problematiza questões que vão de
encontro com a tese geral do ator25
. A discussão principia com a tese sobre como o ator
deve fazer uso da obra do poeta para sua representação. Quando o autor26
tem “a escrita
em estilo alambicado, obscuro, tortuoso, empolado, cheio de ideias comuns, o grande
ator27
não será melhor e um ator medíocre não será menos ruim”. (DIDEROT, 2000, p.
30). Com isso, o modo como o ator faz uso das palavras do poeta será percebida em sua
atuação, uma vez que deverá ser admirável na construção do modelo ideal. De tal maneira,
“(...) as palavras não são e não podem ser senão signos aproximados de um pensamento, de
um sentimento, de uma ideia; signos cujo valor o movimento, o gesto, o tom, a fisionomia,
os olhos, as circunstâncias dadas completam? ” (Idem, p. 31).
A natureza também deve contribuir para a formação e pode auxiliar o bom
comediante a exercitar seus estudos para dramatizar e ser o melhor, o mais fiel e
profundo provedor da interpretação, para germinar no público da plateia sensações, as
quais possam despertar a busca à virtude. Assim, “Compete ao estudo dos grandes
modelos, ao conhecimento do coração humano, à prática do mundo, ao trabalho
assíduo, à experiência e ao hábito do teatro aperfeiçoar o dom da natureza” (Idem, p.
30).
Chegamos assim, a uma das primeiras e importantes indagações levantadas por
Diderot no Paradoxo: a natureza; esta tem a finalidade de propiciar todas as qualidades
do indivíduo, para que ele possa agir em todos os meios que circular. Desta forma, o
enciclopedista afirma que a natureza tem (em sua pura essência), a capacidade de
oferecer “dons”, os quais todos os sujeitos podem usufruir. Tais “dons” podem ser as
qualidades de cada pessoa: a voz, o discernimento e a sutileza. No que diz respeito à
natureza e à sua essência propriamente dita, o filósofo inclui tanto o homem comum do
cotidiano, quanto o referido comediante, uma vez que, é por meio da natureza que as
24 A questão do crítico é um ponto de grande importância nos escritos de Diderot, e se encontra mais
elaborada no livro Discurso sobre a poesia dramática. 25 O ator ideal deve ser o que tiver observação atenta da natureza e por meio de sua análise racional, ou
seja, profundo estudo, isto é, junção necessária para conduzi-lo em ser o grande comediante. Amiúde
quem se utilizar apenas como modelos os grandes mestres, possui apenas técnica e está sujeitado aos
protocolos que variavelmente são alteráveis, eis outro tipo, o comediante imitador. Já o comediante por
natureza deve ser o que se apropria da sensibilidade e nunca consegue ser o mesmo, vai de um extremo ao
outro, este é o pior tipo na visão de Diderot. 26 Diderot desenvolve no livro Discurso sobre a poesia dramática (1986; 2005) questões sobre o crítico e
os autores e como estes podem ser aquilo que Diderot chamará “homem de gênio”. 27 Neste ponto o filósofo introduz e distingue a ideia dos tipos de atores/comediantes.
43
ações se realizam. Diz ele: “Compete à natureza dar as qualidades da pessoa, a figura, a
voz, o julgamento, a sutileza (...). O comediante imitador pode chegar a representar tudo
passavelmente; nada haverá a louvar, nem a repreender em seu desempenho. ” (Idem,
Ibidem).
O filósofo considera que a natureza só será cumprida efetivamente, se houver
concomitante a ela o estudo racional que agrega valores que são construídos por meio
da observação, assim aperfeiçoando os modos de compreender o mundo. Diderot
destaca essas ações, sobretudo, no que diz respeito ao comediante porque, dessa forma
tem o aparato que medeia às ações e o formato para que se possa chegar a exercer um
papel em cena, ou seja, encarnar uma persona28
com maior maestria, fazendo uso de
todos os atributos que a natureza pode proporcionar. Ainda vale ressaltar, que apenas
com os estudos necessários da natureza é que possibilita formalizar a construção de uma
personagem.
O filósofo aconselha que nem todos os comediantes fazem uso dos estudos para
ser grandiosos. Por isso, distingue os tipos de comediantes: de um lado está “o
comediante imitador, esse pode chegar a representar tudo passavelmente; nada haverá a
louvar, nem a repreender em seu desempenho. ” E de outro lado há “o comediante por
natureza; esse é amiúde detestável e às vezes excelente. Em qualquer gênero que seja,
desconfiai da mediocridade constante” (DIDEROT, 2000, p. 30).
28 “Ao contrário dos hindus e dos chineses, os romanos – os latinos, melhor dizendo – parecem ser
aqueles que estabeleceram parcialmente a noção à pessoa, cujo nome permaneceu exatamente o da
palavra latina. Bem no início, somos transportados aos mesmos sistemas de fatos que os anteriores, mas já
com uma forma nova: a "pessoa" é mais do que um elemento de organização, mais do que um nome ou o
direito a um personagem e a uma máscara ritual, ela é um fato fundamental do direito. Em direito, os
juristas dizem: há somente as personae, as rés e as actiones: esse princípio ainda governa as divisões de
nossos códigos. Mas trata-se aqui do resultado de uma evolução particular ao direito romano. Com
alguma ousadia, eis como posso conceber essa história. Tudo indica que o sentido original da palavra
fosse exclusivamente "máscara". Naturalmente, a explicação dos etimologistas latinos – persona vindo de
per/sonare, a máscara pela (per) qual ressoa a voz (do ator) – foi inventada logo em seguida. (Embora se
distinga entre persona e persona muta, o personagem mudo do drama e da pantomima.) Na verdade, a palavra não parece ser exatamente de origem latina, mas sim etrusca, como outros nomes em na
(Porsenna, Caecina etc.). Meillet e Ernout (Dictionnaire Etymologique) comparam-na à palavra mal
transmitida farsu, e Benveniste disse-me que ela pode vir de um empréstimo tomado pelos etruscos do
grego Ttpóawnov (perso). O fato é que, materialmente, mesmo. a instituição das máscaras, e em
particular das máscaras de ancestrais, parece ter tido por núcleo principal a Etrúria. Os etruscos tinham
uma civilização de máscaras. Não há comparação entre a quantidade de máscaras de madeira, de terracota
– as de cera desapareceram –, a quantidade de efígies de ancestrais adormecidos e sentados que se
encontraram nas escavações do vasto reino tirreno, e as encontradas em Roma, no Lácio ou na Magna
Grécia – aliás, em minha opinião, em sua maior parte de fatura etrusca. ” (MAUSS, 2003, p. 385-86).
44
Esse “ator por natureza” é o tipo que entende a arte de representar com a
máxima sensibilidade, e não faz uso dos artifícios29
necessários para compreender os
atributos que a natureza pode lhe ofertar. Desta forma, este é o ponto no qual o
enciclopedista percebe que esse tipo de ator é fraco e que consegue penetrar o público
apenas esporadicamente. Assim, é possível compreender que nem todos os atores se
encaixam no tipo ideal que o filósofo propõe e compreende no Paradoxo: “Qualquer
que seja o rigor com que um estreante seja tratado, é fácil pressentir seus triunfos
vindouros. As vaias sufocam apenas os ineptos. ” (Idem, p. 32).
Diderot ao postular a distinção entre o ator por natureza e o grande comediante,
evidencia como este último sabe representar com as devidas precisões, para que, a cena
atinja a plateia e, esta entre em um processo catártico30
, despertando para a mais pura
reflexão.
E como formaria a natureza sem a arte um grande comediante, já que
nada se passa exatamente no palco como na natureza, e que os poemas
dramáticos são todos compostos segundo um certo sistema de
princípios? E como seria um papel desempenhado da mesma maneira por dois atores diferentes, se no escritor mais claro, mais preciso, mais
enérgico, as palavras não são e não podem ser senão signos
aproximados de um pensamento, de um sentimento, de uma ideia; signos cujo valor o movimento, o gesto, o tom, a fisionomia, os olhos,
a circunstâncias dadas completam? (Idem, p. 31).
Assim sendo, é necessário para a formação do grande comediante a interação
entre a natureza e tudo que ela pode oferecer para sua percepção. Há uma boa
encenação se a estrutura psicológica do ator estiver contemplada com a sua forma de
interagir com o mundo que o circunda, ou seja, fazendo uso das suas faculdades
racionais. Todavia, como fazer uso dessa racionalidade? Como representar fazendo uso
da razão em uma cena teatral? Segundo Diderot: “(...) há na linguagem técnica do teatro
uma latitude, um espaço vago bastante considerável para que homens sensatos, de
29 É preciso agir com sangue frio, tranquilo, com a forma de estudo mais a razão se pode chegar ao tipo
ideal. 30 Na Poética, Aristóteles (1979, p. 245) diz que “É, pois, a tragédia imitação de uma ação de caráter elevado, completa e de certa extensão em linguagem ornamentada e com várias espécies de ornamentos
distribuídas pelas diversas partes [do drama], [imitação que se efetua] não por narrativa, mas mediante
atores, e que, suscitando terror e piedade, tem por efeito a purificação dessas emoções”. A catarse possui
uma relação direta com uma purificação das almas que ocorrerá através de uma grande expurgação de
sentimentos e emoções, as quais serão intrinsecamente provocadas pelas representações teatrais. Desta
forma, ao entrar em contato com a linguagem representativa do ator, e imbuído dos modos poéticos o
público se conecta as mais íntimas emoções e sentimentos, as quais emanavam dos atores no palco, até
atingir a plateia. Assim, cada um dos espectadores seria capaz de sentir juntamente com os personagens
que representavam.
45
opiniões diametralmente opostas, creiam reconhecer aí a luz da evidência. ” (Idem, p.
31-2).
Em primeiro lugar, é preciso saber contemplar a natureza, ter um olhar atento
aos modos de ser e agir das pessoas e suas interações em sociedade. Ao realizar essa
análise junto aos indivíduos em sociedade, o comediante deve conseguir retirar de cada
tipo: atitudes e gestos, para compreender a complexa totalidade de modos de ser e agir,
para depois ressaltar características específicas e exercer aquilo que já foi por ele
analisado e elaborado.
(...) as qualidades principais de um grande comediante (...) quero que
tenha muito discernimento; acho necessário que haja nesse homem um
espectador frio e tranquilo, exijo dele, por consequência, penetração e
nenhuma sensibilidade, a arte de tudo imitar, ou, o que dá no mesmo, uma igual aptidão para toda espécie de caracteres e papéis (Idem, p.
32).
Neste sentido todo o estudo para o filósofo é o principal mecanismo que o
grande comediante possui como trunfo, uma vez que, sua principal finalidade é a
constituição e elaboração de um personagem por meio da mimesis31
. O estudo deve
extrair ideias e conhecimentos do que há de mais prosaico no meio social. É pela
vivência cotidiana e observação de todas as minúcias, gestos, falas, fisionomia além da
compreensão do próprio ambiente em que esse tipo de indivíduo for encontrado, que
pode se constituir o bom ator. Este personagem é formado, a partir da ação bricolage32
,
por meio da reconstituição das partes que o homem-ator se atentar, ou se, por algum
motivo, houver um apelo da natureza para a percepção do comediante.
Se o comediante fosse sensível, ser-lhe-ia permitido, de boa-fé,
desempenhar duas vezes seguidas um mesmo papel com o mesmo
calor e o mesmo êxito? Muito ardente na primeira representação, estaria esgotado e frio como mármore na terceira. Ao passo que,
31 Conceito aristotélico cunhado na Poética (ARISTÓTELES, 1979, p. 243), também traduzido por
imitação. “O imitar é congênito do homem (e nisso difere dos outros viventes, pois, de todos, é ele o mais
imitador, e por imitação, aprende as primeiras noções), e os homens se comprazem no imitado.” Segundo
Carlson (1997, p. 36): “(...) o problema mais premente na harmonização de Aristóteles e Horácio tenha
surgido em conexão com a mimese. Vem de Aristóteles a ideia de mimese como fim em si mesmo (...) a imitação e o elogio dos homens virtuosos incitam à virtude; a representação e a condenação dos viciosos
reprimem o vício. Assim, as finalidades retóricas sobrepõem-se às finalidades estéticas de Aristóteles; o
público deve, em primeiro lugar, tirar não o prazer da unidade e qualidades formais da obra, mas sim a
instrução moral dos vários elementos didáticos. O enredo e os caracteres são sobretudo as ações ou traços
pessoais que levam à virtude ou ao vício”. 32 O bricoleur está apto a exercer um grande número de tarefas diversificadas. A regra do seu jogo é
sempre arranjar-se (...). Ele se define apenas por sua instrumentalidade e para empregar a própria
linguagem do bricoleur, porque os elementos recolhidos ou conservados em função do principio de que
‘isso sempre pode servir’. (LÉVI-STRAUSS, 2008, p. 32-3).
46
imitador atento e discípulo ponderado da natureza, na primeira vez
que se apresentar no palco sob o nome de Augusto, de Cina, de
Orosmano, de Agamenon, de Maomé, copista rigoroso de si próprio ou de seus estudos, e observador contínuo de nossas sensações, sua
interpretação, longe de enfraquecer-se, fortalecer-se-á com novas
reflexões que terá recolhido; ele se exaltará ou se moderará, e vós ficareis com isso cada vez mais satisfeito. Se ele é ele quando
representa, como deixará de ser ele? Se ele quer cessar de ser ele,
como perceberá o ponto justo em que deve colocar-se e deter-se?
(DIDEROT, 2000, p. 32-3).
Fica claro que para o filósofo, o grande ator é aquele que consegue fazer uso da
sua razão, já que sabe utilizar o discernimento para todas as ações que tiver no palco.
Este indivíduo ao nosso ver, é o homem próprio do iluminismo que saiu do estado de
menoridade e possui agora, o controle de seus atos e ações por intermédio das
faculdades da razão33
. Diderot, não obstante, demonstra como esse ator que também é
um ser social, deve fazer o uso de sua própria compreensão, para formalizar as ações
que seu ato de pensar racionalmente possibilitou. Isso se faz útil para se entender a
natureza em seus sentimentos e ações, já que deixa seus atos a cargo do entendimento
racional e não tem somente a sensibilidade como apoio central para suas ações no palco.
Portanto, o grande comediante é aquele que sabe agir de tal modo, que entende a
sua sensibilidade e os atributos que a natureza lhe serve. Tudo isso, deve ser medido e
examinado com sangue frio e discernimento para que, então, haja uma real exposição de
todos os seus sentimentos, que foram primordialmente estudados para formação de um
indivíduo que agora é personagem. Destarte, este podem sempre ser aprimorado e nunca
é escravo de uma emoção vinda apenas de um sentimentalismo, que a cena lhe confere
no momento. Logo, é minuciosamente estudado e elaborado para que se realize no
momento certo. Há nesta ocasião outro homem no palco, que consegue sair de cena e
“ser ele mesmo”, e quando quiser, volta ao personagem no tempo correto, porque tudo é
bem planejado, pensado e articulado.
33 Kant diz, em seu breve texto Resposta à pergunta: o que é o Esclarecimento?, “sapere aude” –
ousa/atreve-se a pensar –, como modo de entender que eticamente o homem precisa ser o senhor de suas
ações diante das escolhas e obrigações sociais que a civilização lhe impõe.
47
2.2. Sensibilidade, para quê?
Diderot estuda com mais profundidade a questão da gênese do ator, que se
relaciona diretamente com o trato e a análise que este indivíduo faz da sensibilidade.
Esta, por sua vez, deve ser entendida como artifício usado em cena pelo grande
comediante:
Nós sentimos; nós; eles; eles observam, estudam, pintam. Posso dizê-lo? Por que não? A sensibilidade não é quase a qualidade de um grande
gênio. Ele amará a justiça; mas exercerá essa virtude sem recolher sua
doçura. Não é o seu coração, mas sua cabeça que faz tudo. À menor circunstância imprevista, o homem sensível a perde; ele não será grande
rei, nem grande ministro, nem grande capitão, nem grande advogado,
nem grande médico. Enchei a sala de espetáculos desses chorões, mas
não coloqueis nenhum deles no palco. (DIDEROT, 2000, p. 35).
Diderot exalta a importância da constituição do grande ator, e sua teoria enaltece
que ele deve ter muita interação e nenhuma sensibilidade em suas ações. Se o
comediante dispor puramente de sensibilidade em suas representações, esgota em si toda
e qualquer forma de mostrar seu êxito nas demais apresentações34
. Faz-se necessário que
o ator não aja meramente por impulsos emocionais, mas sim, com uma contínua
observação de todos os fatos a que estão sendo submetido durante seu estudo. Com isto
pode compreender determinadas questões para uso em sua interpretação e principalmente
para o campo da imitação, na qual atua. Isto faz com que suas reflexões perante a
natureza e tudo que o cerca somem para uma melhor abrangência, desde as ações vividas
e observadas por ele até as minúcias gestuais, que cada indivíduo possui. Desta maneira,
ou seja, deve invadir o seu mundo, romper ou agregar qualquer forma, gênero e pessoa
que se queira representar. Neste âmbito, então,
(...) o comediante que representar com reflexão, com estudo da natureza humana, com imitação, com memória, será um e o mesmo
em todas as representações, sempre igualmente perfeito: tudo foi
medido, combinado, apreendido, ordenado em sua cabeça; não há em sua declamação nem monotonia, nem dissonância. (Idem, p. 33).
34 Como é o caso, por exemplo, daquilo que Diderot diz sobre o comediante por natureza: que é ardente e
uma lastima em outras apresentações. Ele não tem estudo, não utiliza de técnica, mas simplesmente
recorre as emoções do momento, as que lhe tocam a alma no ato da apresentação teatral, ou seja, quando
sobe no palco.
48
Neste sentido, cita o caso da Mlle. Clairon35
, que foi uma das mais notáveis
atrizes francesas da sua época (1723-1803). Ela, como adverte Diderot, tinha um
desempenho perfeito:
(...) ela sabe de cor todos os pormenores de sua interpretação, assim como todas as palavras de seu papel. Sem dúvida, ela fez para si um
modelo ao qual procurou de início conformar-se; sem dúvida,
concebeu esse modelo da maneira mais elevada, mais grandiosa e mais perfeita que lhe foi possível; mas tal modelo, que tomou da
história, ou que sua imaginação criou como um grande fantasma, não
é ela; se o modelo não ultrapassasse em altitude, como seria fraca e
reduzida sua ação! Quando, á força de trabalho, ela se aproxima dessa ideia o mais que pode, tudo ficou terminado; manter-se firme nele é
uma pura questão de exercício e memória. (DIDEROT, 2000, p. 33-4).
É por meio da memória segundo o enciclopedista, que o grande ator pode
desenvolver o uso de sua racionalidade. A memória possui importância vital para a
atuação do grande comediante. É ela que tem o potencial de conseguir associar a
natureza e as vivências no cotidiano, com as emoções estudadas e racionalmente
desenvolvidas pelo ator. Desse modo o estudo associado à memorização faz com que
exista um exímio imitador da natureza, porque esse ator sabe dominar a natureza das
suas emoções, além de utilizar a seu favor todas as formas e faculdades que estejam ao
seu dispor para aprimorar suas ações em cena.
Ele não será desigual: é um espelho sempre disposto a mostrar os
objetos e a mostrá-los com a mesma precisão, a mesma força e a mesma verdade. Assim como o poeta, ele vai incessantemente
abeberar-se no fundo inesgotável da natureza, ao passo que teria
assistido bem cedo ao termo de sua própria riqueza. (Idem, p. 33).
Ao representar o comediante tem que se utilizar sempre de reflexão com um
profundo olhar sobre as questões da natureza humana, imitando paciente e
ininterruptamente um modelo ideal; provido de constante memória e imaginação, será
singular e o mesmo em todas as representações. Assim, com maestria no ato de sua
recuperação de fatos mundanos transmite a quem assiste um real momento. Executa
com grande êxito seu papel, não ficando no campo de suas emoções vãs. O ator
incorpora a verdadeira essência das coisas por meio de artifícios, que são dados a partir
de sua reflexão perante a natureza, são os seus modelos ideais, os quais fortalecem sua
interpretação e seu trabalho de atuação. O artifício para Diderot se faz necessário, para
35 Guinsburg,(2000, p.33, nota 7) comenta, “Uma da mais notáveis atrizes francesas da época ( 1723-
1803), que pertenceu à Comédie e escreveu precioso testemunho da vida teatral no século XVIII, sob o
título de Memórias e Reflexões sobre a Arte Dramática.”
49
que o público compreenda a cena que o comediante quer representar. Somente desta
maneira, que o espectador será convencido.
O ator escutou-se durante muito tempo a si mesmo (...) todo seu talento
consiste não em sentir, como supondes, mas em expressar tão
escrupulosamente os sinais extremos do sentimento, que vós enganais a esse respeito. Os gritos de sua dor são notados em seu ouvido. Os gestos
de seu desespero são decorados, foram preparados diante de um espelho.
(Idem, p. 36).
2.3. A identidade de homem do ator.
Diderot percebe que o imitador atento à natureza, pode atuar e representar
quaisquer que sejam as personagens, porque tem a reflexão a seu favor, isso também,
por ser um copista de si, da natureza, de seus estudos e observador da sensibilidade e de
sua própria interpretação. A somatória de todas essas “técnicas” faz com que o ator
tenha um exímio desempenho perante o que representa. Convence o público de suas
“reais” ações e discursos no palco, desta maneira é um grande ator: “O ator está cansado
e vós, triste; é que ele se agitou sem nada sentir, e vós sentistes sem vos agitar (...) ele
não é a personagem, ele a representa e a representa tão bem que vós a tomais como tal;
a ilusão só existe para vós; ele sabe muito bem que ele não a é.” (Idem, p. 37).
Com base nos referenciais teóricos do filósofo, pode-se compreender como
distinguir um grande ator, assim como refletir a respeito das ações, atos próprios da
representatividade, as quais são encenadas por todos (atores ou não), seja no campo da
vida pública ou vida privada, ou mesmo no palco. É preciso primeiramente, haver
entendimento e ter clareza perante a questão da necessidade de saber quem sou eu e de
quem o outro é. Deste modo, forma-se uma identidade em cada indivíduo indispensável
principalmente, para o ator do palco. Esta identidade necessita da perfectibilidade em
saber conduzir suas emoções, controlar toda e qualquer ação por meio do artifício para a
realização de sua técnica perante a natureza, sem se deixar envolver demais a ponto de
confundir o eu personagem com o eu indivíduo.
Não se trata mais (...) da criatura sensível, nem do gênio entusiástico.
A sua qualidade primeira tampouco é o gosto ou o bom senso.
Homem que domina e se domina, espectador incansável e ator incomparável, é uma confluência da espontaneidade da natureza com
a finalidade do homem, entre a visão profética e a previsão cientifica –
50
encarnação olímpica e terrena do Espírito e do Universo.
(GUINSBURG, 2001, p. 116-7).
Neste âmbito elucida Guinsburg em sua análise sobre a obra Paradoxo, o
homem é mais que um ator simplista que visa o entretenimento do público: ele é aquele
que tem uma função maior; pode conduzir sua plateia a atos morais e conquistar não só
o plano moral, mas também o pedagógico, como pretende Diderot. Para tanto com a
intenção de formar um ser melhor, que possa compreender suas ações e as interações,
sua finalidade requer uma amplitude para as coisas mundanas, o que possibilita a
condução das formas de atingir o público, o qual será tocado pela sensibilidade, a fim de
despertar tons mais elevados de reflexão. Sobre isto, diz Diderot:
Refleti um momento sobre o que se chama no teatro ser verdadeiro.
Será mostrar as coisas como elas são na natureza? De forma nenhuma. O verdadeiro neste sentido seria apenas o comum. O que é, pois, o
verdadeiro no palco? É a conformidade das ações, dos discursos, da
figura, da voz, do movimento, do gesto, com um modelo ideal imaginado pelo poeta, e muitas vezes exagerado pelo comediante. Eis
o maravilhoso. Esse modelo não influi somente no tom; modifica até o
passo, até a postura. Daí vem que o comediante na rua ou na cena são
dois personagens tão diferentes, que mal se consegue reconhecê-los. (DIDEROT, 2000, p. 39-40).
Com esta reflexão e sabedor de seus atos em meio a sociedade o ator é afinal, o
cidadão no espaço público, e propriamente como ator, faz um papel que direciona a uma
ação moral que reflete nas questões políticas e relações interpessoais. O ator tem uma
função de condução; ele é aquele homem que faz parte do todo, mas se destaca ao
analisar por meio de seus estudos, a mais comum das atitudes para torná-la uma
caricatura do mundo público.
Ocorre com o espetáculo o mesmo que com uma sociedade bem ordenada, onde cada um sacrifica parte de seus direitos para o bem do
conjunto e do todo. Quem apreciará melhor a medida desse sacrifício?
Será o entusiasta? O fanático? Não, por certo. Na sociedade, será o
homem justo; no teatro, o comediante que tiver a cabeça fria. Vossa cena da rua está para a cena dramática como uma horda de selvagens
para uma assembleia de homens civilizados. (Idem, p. 41).
Ao reforçar a afirmativa do enciclopedista, é por meio dos artifícios da natureza
e da observação, que se compreende o mundo ao redor para a realização de uma cena
perfeita. Então, o homem que é um ator tem como função capturar todas as
peculiaridades das cenas cotidianas, as quais a sociedade formada por indivíduos (atores
ou não) são submetidos. O comediante precisa encarnar uma personagem, sempre
estudando, analisando, examinando minuciosamente tudo e todos com grande poder de
51
abstração. Para tanto, deve também ser dotado de razão para impetrar a dominação da
natureza. Desse modo, deve ser o observador atento que aguça todas as suas percepções
na busca da contemplação do mundo que o circunda. Portanto, o ator precisa do outro
para saber distinguir quem ele é e quem são os que o cercam, sem que exista a perda de
sua identidade; antes haja uma somatória para a compreensão de si mesmo.
A recusa da sensibilidade e da identificação, no teatro, converte o
desempenho em mimese ou imitação intelectual de um modelo interno. A simples expressividade emotiva, por intensa que seja, não
pode moldar. É inútil apoiá-la no sistema dramático, na ação, no
discurso do poeta, pois não basta imitar a natureza, é preciso imitar a
“bela natureza”. Só esta produz verdadeira arte. No palco ou na plateia, o ideal artístico é de certo modo o homem do ator
(GUINSBURG, 2001, p. 117).
O bom ator tem o poder de penetrar no mundo para retirar argumentos, formas,
cores, jeitos, modos, cultura, sons e movimentos, sem deixar de ser ele próprio. Por
meio disso, tem o poder de moldar uma personagem, pois quem se deparar diante da
imagem construída por ele veja uma representação tão fidedigna do mundo, que
ninguém pode compreendê-lo de outro modo, uma vez que utiliza a persuasão e um
modelo ideal para transmitir algo por meio de quem representa. Além do mais, a
necessidade dos artifícios se faz de extrema importância para o homem realizar sua
interpretação para o mundo que o cinge. Ele retira da natureza argumentos infindos,
nunca pode deixar-se confundir com quem ele é realmente, pois aí que esta a sua real
aparência perante um mundo que precisa da arte da imitação36
: “O grande comediante
observa os fenômenos; o homem sensível serve-lhe de modelo, ele o medita, e encontra,
por reflexão, o que cumpre adicionar ou subtrair para o melhor. E, ainda assim, fatos
segundo razões. ” (DIDEROT, 2000, p. 52).
O distanciar-se de uma determinada sensibilidade pessoal é algo de suma
importância para a magnitude de uma representação e domínio da natureza. O ator se
vale de sentimentos subjetivos e de cunho meramente naturais, tem uma representação
que pode ser esplendorosa na primeira e, talvez na segunda apresentação, mas um
fracasso na terceira. Porque o homem que age com a sensibilidade não consegue
dominar a si mesmo e sua natureza, ficando antes, submetido a ela: “O homem sensível
36 Assim como, em termos aristotélicos, a tragédia grega tem caráter de levar o homem à catarse, para um
agir virtuoso, para Diderot, a representação, tanto no teatro, quanto no público, pelo “homem da rua”,
necessita da imitação para se compreender e entender os costumes e as regras impostas pela sociedade da
época, sendo que no teatro essa imitação deve ser apurada pela razão e formalizar uma ação a fim de
penetrar e conduzir a um ato moral.
52
obedece aos impulsos da natureza e não expressa precisamente senão o grito de seu
coração; no momento em que modera ou força esse grito, não é mais ele, é um
comediante que representa” (Idem, Ibidem).
Desta forma, quando o ator não tem domínio da ação e dos seus sentimentos não
consegue realizar a arte da imitação, a qual ele deve apreender e compreender, de modo
que a assimile e retire da natureza características importantes para o ato de fazer e
representar determinados aspectos necessários para aquele personagem, ato ou cena.
2.4. Os imitadores da natureza.
Diderot diz que existe na sociedade homens, os quais ele intitula de gênios, que
são aqueles que têm uma percepção diferente e ampliada diante das coisas que os
circundam e por isso retiram da natureza o que há de mais essencial. Assim conseguem
transpor para a arte37
o que esta lhes oferta. Entre esses gênios estão os pintores, poetas,
oradores, atores e músicos. O filósofo diz que os gênios surgem “em momentos
tranquilos e frios, em momentos totalmente inesperados. Não se sabe de onde
semelhantes traços provêm; eles se parecem com a inspiração. É quando, suspensos
entre a natureza e o esboço que fazem, esses gênios dirigem alternadamente um olhar
atento a um e outro.” (DIDEROT, 2000, p. 34). Aqui, vemos que esses gênios se
assemelham pelo olhar atento que direcionam às coisas da natureza e em seus
momentos de inspiração sabem controlar o delírio do entusiasmo e manter o sangue
frio. O enciclopedista reitera e diz que “os grandes poetas dramáticos, sobretudo, são
espectadores assíduos do que se passa em torno deles no mundo físico e no mundo
moral.” (Idem, p. 35).
Os grandes imitadores da natureza – atores, poetas, entre outros – são os menos
sensíveis dos seres, pois a sensibilidade não está incluída como uma qualidade dos
37 … quando se faz um poema, um quadro, uma comédia, uma história, um romance, uma tragédia, uma
obra para o povo, não se deve imitar os autores que escreveram tratados de educação. Em duas mil
crianças, há apenas duas que podem ser criadas segundo seus princípios. Se houvessem refletido sobre
isso, teriam concebido que uma águia não é o modelo comum de uma instituição geral. Uma composição,
que deve ser exposta aos olhos de uma multidão de todas as espécies de espectadores, será viciosa, se não
for inteligível para um homem de bom senso simplesmente. Que ela seja simples e clara. Por
consequência, que nenhuma figura seja ociosa, nenhum acessório supérfluo. Que o tema seja um só.
(DIDEROT, 2000a, p. 192)
53
gênios. Eles são imitadores constantes da natureza, dotados de muita imaginação,
julgamento, sendo seguros de seus atos, compreendendo-os, e estão sempre em uma
constante observação dos fatos ao seu redor. Necessitam deixar-se embriagar pelas
atitudes mundanas para que seu íntimo esteja inundado de vivências, as quais serão de
grande valia, desde que possam reproduzir com intensidade, veracidade e com a arte de
convencer quem quer que seja.
Apreendem tudo o que os impressiona; fazem coleção com isso. É
dessas coleções formadas neles, sem que o saibam, que tantos
fenômenos raros passam às suas obras. Os homens acalorados, violentos, sensíveis, encontram-se em cena; dão o espetáculo, mas não
o desfrutam. São eles que servem de modelo para o homem de gênio
fazer cópia. (Idem, Ibidem).
A sensibilidade é compreendida como algo funesto, porque nunca aparece sem
elementos de franqueza. E para o homem de gênio o que é o grande observador e
imitador da natureza, a sensibilidade deve ser apenas um elemento de estudos e nunca a
sua qualidade. Nesse sentido, “(...) o homem sensível, figura que o Paradoxo sobre o
Comediante deixa à mercê do ‘diafragma’ e da sensibilidade, em oposição ao homem de
gênio, cuja grande qualidade é o autodomínio. ” (MATOS, 2004, p. 76).
Para o enciclopedista não há nada mais medíocre em um ator que a sensibilidade
vinda à flor da pele. A concentração, a frieza e o estudo de cada minúcia nos atos
representados por este ator são as características que o permeiam. Tais atos devem ser
pautados no controle de todo e qualquer sentimento: “As lágrimas do comediante lhe
descem do cérebro; as do homem sensível lhe sobem do coração” (DIDEROT, 2000, p.
37).
Neste sentido o filósofo relata que, na comédia do mundo todas as almas
ocupam o teatro e os homens de gênio estão na plateia. Os primeiros são os loucos; os
segundos dedicam-se a entender e a copiar esta loucura, qualidade própria dos sábios. É
apenas o sábio que compreende o ridículo de todas as personagens, é ele quem pode
transmitir o infortúnio e o cômico da vida, seja em geral ou de um em específico,
porque só ele tem a sensatez de olhar e demonstrar com grande perfeição as facetas
dessa humanidade. Entretanto, na sociedade, o que mais se almeja é a virtude para a
salvação, mesmo que as virtudes sejam ações apenas de fachada para a realização dos
vícios privados.
54
O ator antes de qualquer coisa é aquele que deve escutar-se e entender-se. Então,
é preciso conhecer a si, saber lidar consigo mesmo, para não apenas sentir. Ser
personagem significa agir sem sentir nada, fazendo o espectador sentir sem que precise
entrar em ação. A ilusão só existe para a plateia, sendo que, é sabido por parte do ator
que ele não tenha relação alguma com quem a personagem é.
2.5. Os Paradoxos de Diderot.
No verbete paradoxe contido na Encyclopédie (1765, sem página) está
explicitado que “esta palavra é formada a partir do grego, contra, e de opinião”. E no
âmbito filosófico “é uma proposta absurda na aparência, porque é contrária aos
pareceres recebidos, e ainda assim é verdade, no fundo, ou menos pode receber um ar de
verdade”. No capítulo intitulado Moral e espécie, Souza (2002, p. 99) reitera que o
verbete “paradoxo”, contido na Enciclopédia, tem a definição de algo contrário às
opiniões comuns, aparentemente absurdas mas que no fundo, são verdadeiras.
Na obra de Diderot, o exemplo clássico do paradoxo é o do ator de teatro que se
expressa da seguinte maneira: aos olhos da plateia, um grande ator é aquele que, ao
representar um determinado papel em cena não apenas aparenta os sentimentos do
personagem, mas também os experimenta realmente. Sendo assim, aos olhos do crítico,
ou filósofo, passa-se exatamente o contrário: o grande ator é aquele que mantém seus
próprios sentimentos sob absoluto controle, para representar um papel que foi meditado
e construído.
O paradoxo se manifesta no fato de que, quanto mais os resultados forem dados
a partir da reflexão no silêncio das emoções, mais perfeitamente ele pode retratar diante
do público as emoções do personagem, sendo assim mais “verdadeiro”. No entanto, o
paradoxo são duas verdades distintas, que não se excluem, mas geram um amplo fio
condutor com a capacidade de fazer com que ambas facetas se reconciliem.
O tema do paradoxo, nas obras de Diderot, é algo quase que explicito no que se
refere à estética. Presente também, em outros aspectos de sua obra, no tocante à moral,
como na política do naturalismo materialista. Como exemplo disso, Maria das Graças
de Souza cita o paradoxo do homem virtuoso. Este homem virtuoso, apesar de
55
reconhecer que sua vontade é determinada, estabelece para si normas de conduta como
se fosse livre. Tais normas em si, são paradoxais, na medida que, consistem ao mesmo
tempo na busca do prazer e no domínio da razão sobre os sentimentos e paixões.
(SOUZA, 2002, p. 100).
O paradoxo do cidadão na visão de Denis Diderot, é aquele que age com o
imperativo de que, quanto mais o homem enquanto indivíduo buscar a sua felicidade
mais esta colaborando para o bem-estar da sociedade e para o bem da humanidade.
Há também o paradoxo do filósofo, o qual afirma que o curso da história é
determinado pela força das coisas e da natureza. Além disso, compreende que sua
atividade intelectiva tem poder de intervenção efetiva, sendo que, se não for para
transformar algo, ao menos tem poder de acelerar a sequência dos acontecimentos.
2.6. Homens e suas representações.
Em meio a todos esses pontos levantados até agora sobre o ator e a sensibilidade,
Diderot não se esquece de entender as questões contidas nos gêneros que os poetas
escrevem. A partir disso, inicia um discurso reflexivo sobre a questão da linguagem em
cena, e questiona-se frente a discursos cheios de pompas e inebriados de formas
poéticas. Essa linguagem só pode ser associada e proferida por seres poéticos, em tom
poético, já que na realidade social não tem nem a necessidade e muito menos os porquês
de serem proferidos de tal forma. Questiona-se mais uma vez sobre o teatro ser
verdadeiro, e o que deve mostrar; como são as coisas na natureza. Logo, compreende
que o verdadeiro no palco é demonstrar apenas o comum, em conformidade com
discursos, vozes, figuras, ações, movimentos e gestos, idealizados inteiramente pelo
imaginário, refletido pelo poeta e quem sabe também exagerado pelo comediante.
Outrossim, o ator da rua ou na cena são dois personagens tão diferentes que mal se
consegue reconhecê-los.
Ocorre com o espetáculo o mesmo que com uma sociedade bem
ordenada, onde cada um sacrifica parte de seus direitos para o bem do
conjunto e do todo. Quem apreciará melhor a medida desse sacrifício?
Será o entusiasta? O fanático? Não, por certo. Na sociedade, será o homem justo; no teatro, o comediante que tiver a cabeça mais fria.
56
Vossa cena de rua está para a cena dramática como uma horda de
selvagens para a assembleia de homens civilizados. (DIDEROT, 2000,
p. 41).
No entanto, o homem que está em sociedade pode até representar em meio às
pessoas que circulam em seu cotidiano e também não prioriza elementos essenciais, que
são fundamentais para a arte da real representação. Ao serem colocados inteiramente a
sós, os sujeitos do mundo não sabem o que fazer, e caso se agrupem em duplas ou em
trios agem sem a mínima noção e razão. Porém, se forem ofertados elementos para que
possam ensaiar e exercer alguma função, não mais permanecem tão ao natural38
. Sendo
assim, é necessário o direcionamento para haver algum tipo de atuação representativa.
O homem que está em sociedade tem primazia em simular várias situações, não
havendo a mínima necessidade de que haja nele um sentimento qualquer. Essa atitude,
ou seja, esse papel que o homem tende a representar é de tremenda dificuldade tanto
quanto o trabalho do ator. Ainda, o homem que está presente nos meios de socialização
da vida, necessita compreender-se em suas diversas faces. Ele, muitas vezes, encontra-
se em várias situações dentro da sociedade, as quais o obriga a desempenhar um papel
para cada situação que esteja submetido: ele também é uma persona.
O indivíduo que se faz poeta em uma determinada sociedade tem a necessidade
das aparências estabelecidas por meio do convívio social. Ele visualiza de forma muito
mais minuciosa e atenta as ocorrências de todo um contexto histórico ou social. Isso lhe
serve de base argumentativa para suas abstrações e relatos, que diversas vezes se valem
de vivências percebidas. Sendo declamadas, vão se tornar imortais pelas palavras e pelo
olhar atencioso do poeta.
38 O homem em sociedade rompe com a natureza ou com o modo natural de ser. A sua função junto à
natureza é de domínio. Ao se valer de leis, costumes e regras para se portar ante outrem, torna-se um
“indivíduo artificial”.
57
3. A AMBIGUIDADE DO TEATRO.
Intentamos responder algumas questões pertinentes aos pontos relevantes que
foram proporcionados ao longo de nossas pesquisas. Para isso buscamos analisar alguns
temas que relacionam Diderot e Rousseau no que tangem às seguintes indagações: O
que difere Diderot de Rousseau? Quais são os pontos de discordância entre ambos os
filósofos? Como pensam a natureza, a imitação e o teatro? O teatro é algo bom para a
sociedade? O teatro pode ser instrumento de melhoria ao caráter humano? O teatro é
pedagógico? No que diz respeito aos pontos pertinentes a Rousseau, nos detemos
brevemente posto que não é o mote desta pesquisa. Mesmo assim de antemão, sabemos
que essas questões são extremamente complexas para o século das luzes e também para
ambos os filósofos. Assim, valemo-nos da compreensão das críticas que Rousseau fez
ao teatro moderno da França do século XVIII. Neste sentido, nosso referencial teórico
foi realizado a partir da famosa Carta a D’Alembert escrita por Rousseau em resposta
ao verbete da Enciclopédia feita por D’Alembert.
Diderot ao contrário de Rousseau compreende o teatro como uma fonte
inesgotável de contribuição para aprimorar e ensinar a virtude. Ele vislumbra no teatro
uma importância seminal, e propõe uma renovação da cena teatral. Tais reflexões estão
expostas tanto no livro Paradoxo sobre o Comediante quanto no Discurso sobre a
poesia dramática.
Para tanto há de ser reforçado, como demonstra Franklin de Matos (2009), que
no século XVIII39
, filosofia e teatro para os pensadores da ilustração nunca foram
separados. O espetáculo teatral nesse contexto tornou-se um dos maiores paradigmas
por ser o teatro constituído de elementos que permitem uma constante inquietação e
inflamadas disputas intelectuais. Assim, “não é de admirar que as discussões sobre ele
39 Segundo Cassirer (1994, p. 09) no século XVIII, juntamente com o Iluminismo, “(...) temos não é outra coisa senão uma visão nova e um novo destino do movimento universal do pensamento filosófico. Na
Inglaterra e na França, o Iluminismo começa por quebrar o molde obsoleto do conhecimento filosófico, a
forma do sistema metafísico. Não acredita mais no privilégio nem na fecundidade do ‘espírito de
sistema’: vê neste não a força mas o obstáculo e o freio da razão filosófica. Entretanto, ao abandonar o
spirit de système, ao bater-se contra ele, nem por isso, o Iluminismo renuncia ao spirit systématique, ao
qual pretende, pelo contrario, incutir mais valor e eficácia. Em vez de se fechar nos limites de um edifício
doutrinal definitivo, em vez de restringir-se à tarefa de deduzir verdades da cadeia de tomar livremente o
seu impulso e assumir em seu movimento imanente a forma fundamental da realidade, forma de toda a
existência, tanto natural quanto espiritual.”
58
tenham dividido o próprio partido da filosofia, lançando autores como Voltaire,
Rousseau e Diderot em campos diversos.” (MATOS, 2009, p. 8).
Diderot, como descreve Matos atribui ao espetáculo um objetivo moral e
pedagógico. O enciclopedista compreende o teatro como um objeto de estudo para uma
maior reflexão dos fatos ocorridos na vida social, assim como a filosofia quer combater
os preconceitos, também o teatro deveria esclarecer aos homens, ensinando-os a amar a
virtude e detestar o vício.
As questões pertinentes aos autores e aos críticos estão contidas no Discurso
sobre a poesia dramática. Nesta parte Diderot demonstra as facetas que cada um exerce
– autores e críticos – e suas importâncias no que diz respeito à civilização e também às
problemáticas que ambos enfrentam ao produzir ou interagir com uma obra de arte.
Tratamos também sobre a questão do gosto. A arte deve ser feita por quem tem
um verdadeiro caráter moral bom, caso contrário pode passar uma imagem não virtuosa,
por não estar comprometido com a virtude. Assim sendo, facilmente podem contribuir
para a corrupção do gosto, já que é sempre necessário ser levado em conta quem faz ou
direciona o olhar para o belo e o bom na sociedade. Se o sistema moral está corrompido,
é inevitável que o gosto seja falso.
Diderot nos conduz a pensar sobre como formar o gosto e quais são os meios
para compreensão do que pode ser verdadeiro, bom e belo, uma vez que se deve levar
em conta que os homens são múltiplos e as formas de interações sociais também são.
3.1. O princípio.
Desconfia da tristeza de certos poetas. É uma tristeza profissional
e tão suspeita como a exuberante alegria das coristas.
(Poema: Os Farsantes – Mario Quintana, 2008, p. 119).
As críticas que Rousseau faz acerca do teatro moderno da França do século
XVIII, essencialmente expostas na famosa Carta a D’Alembert40
escrita pelo filósofo
40 A partir daqui, referiremo-nos à Carta a D’Alembert simplesmente como Carta.
59
suíço em resposta ao verbete da Enciclopédia produzido por D’Alembert, afastam
Rousseau e Diderot. Segundo Franklin de Matos (2009, p. 15), a Carta teve como anseio
maior contestar a pretensão de atribuir ao teatro uma missão salvadora, tal como querem
os filósofos das Luzes. Além disso, a Carta foi um dos motivos principais da ruptura
entre Rousseau e os iluministas, como já discutido anteriormente.
Conforme diz Trousson (2007), Rousseau ao ler o artigo Genebra escrito pelo
codiretor da Enciclopédia, D’Alembert, discordou com veemência ao que se refere aos
benefícios, os quais o teatro traz à cidade e resolve responder às críticas por meio de
análise – Carta a D’Alembert – que se consagra como sendo a sua crítica ao teatro.
Neste contexto, lembra Franklin de Matos (1993, p.7), o verbete dizia sobre a
importância do teatro, uma vez que, na acepção dos pensadores das Luzes, tem uma
grande funcionalidade no que diz respeito ao aperfeiçoamento do gosto e dos costumes
de todos os povos. Todavia, em Genebra não havia teatros e a proibição dos espetáculos
se devia porque tanto as companhias quanto as encenações exaltavam o luxo e a
libertinagem, o que acarreta em prejuízos morais à juventude da cidade. Ainda segundo
Franklin de Matos (Idem, Ibidem), D’Alembert adverte que tal temor dos governantes
da cidade podem muito bem ser contornadas com leis que coíbem os abusos os quais
presumem impertinentes porque o teatro além de contribuir com os costumes pode
colaborar com o ofício de comediante. Desse modo os genebrinos podem formar sua
própria companhia teatral, com um modelo diferenciado ou específico.
O verbete que deu abertura para Rousseau romper com os iluministas foi
incitado também por Voltaire que, segundo Matos, quando estava com sua troupe, nos
arredores de Genebra, ameaça invadir a cidade para realizar seu espetáculo. A Carta, foi
também uma maneira do filósofo expor suas indignações tanto para a atitude de
Voltaire, como para a intromissão de D’Alembert nas leis locais, além da grande crítica
ao modo de compreender e fazer teatro na França do século XVIII.
60
3.2. Um problema: relações entre teatro e cultura.
Bento Prado Junior (1975, p. 07) diz que devemos ter um olhar sempre atento às
leituras que são realizadas para o entendimento da Carta, para não nos induzir em uma
visão simplista ou falaciosa de presumir que se trata de um mero espírito antiteatral e
então perder o essencial do texto do filósofo genebrino. Entender a ruptura de Rousseau
com os outros filósofos como uma negação abstrata ou externa, é ignorar como sua
crítica atravessa o campo conceitual aberto pela Filosofia das Luzes. Para refletir acerca
das querelas entre Rousseau e Diderot se faz necessário elucidar sobre as questões do
teatro, como uma crítica à forma e não somente uma “briga moral” – ou moralizante –
entre filósofos. Assim sendo: “A Carta prolongava o Discurso sobre as ciências e as
artes (1750), que atacava a mitologia das Luzes em seu mais caro postulado, negando
que o progresso do conhecimento e da técnica tivesse levado ao aperfeiçoamento moral
do homem.” (MATOS, 2009, p. 16).
A crítica que Rousseau faz ao teatro moderno é essencial para saber os ideais que
vão afasta-lo e diferencia-lo de Diderot. Vale ressaltar, que a intenção da Carta é uma
crítica com uma declara acusação ao teatro francês da época. Neste âmbito, o filósofo
(1993, p. 47) diz: “Quanto mais eu penso, mais acho que tudo o que se representa no
teatro não se aproxima de nós, mas se afasta (...). O teatro tem suas regras, suas máximas,
sua moral à parte, assim como sua linguagem e seus trajes”.
Por conseguinte, pode-se perceber o quão duvidoso no ponto de vista de
Rousseau, o teatro é no século XVIII. O filósofo genebrino compreende que a forma dos
espetáculos realizados na França, evidenciam mais o vício41
, o luxo42
, do que a virtude.
41 “Antes que a arte polisse nossas maneiras e ensinasse nossas paixões a falarem a linguagem apurada,
nossos costumes eram rústicos, mas naturais, e a diferença dos procedimentos denunciava, à primeira
vista, a dos caracteres. No fundo, a natureza humana não era melhor, mas os homens encontravam sua
segurança na facilidade para se penetrarem reciprocamente, e essa vantagem, de cujo valor não temos
mais noção, poupava-lhes muitos vícios. Atualmente, quando buscas mais sutis e um gosto mais fino reduziram a princípios a arte de agradar, reina entre nossos costumes uma uniformidade desprezível
enganosa, parece que todos os espíritos se fundiram nem mesmo molde: incessantemente a polidez
impõe, o decoro ordena; incessantemente seguem-se os usos e nunca o próprio gênio. Não se ousa mais
parecer tal como se é e, sob tal coerção perpétua, os homens que formam o rebanho chamado sociedade,
nas mesmas circunstâncias, farão todos as mesmas coisas desde que motivos mais poderosos não os
desviem. Nunca se saberá, pois, com quem se trata: será preciso, portanto, para conhecer o amigo, esperar
que não haja mais tempo para tanto, porquanto para essas ocasiões é que teria sido essencial conhecê-lo.”
(ROUSSEAU, 1978b, p. 344). 42 “Eis como o luxo, a dissolução e a escravidão foram, em todos os tempos, o castigo dos esforços
61
Ao dizer que o teatro tem suas regras e máximas, sua moral a parte, o filósofo está
escancarando o lado negativo da coisa, dizendo para tomar cuidado com os espetáculos.
De forma que, o teatro age em desconexão com o mundo, não serve para nada de bom, a
não ser evidenciar os vícios de um povo que vive das aparências e das regras do ter, ou
seja, do luxo. Além disso, o que se apresenta no palco não pode ser transferido ou
ensinado para uma melhoria nas relações e conduta do povo. Rousseau demonstra,
consequentemente, o quão desassociado do mundo e da virtude o teatro se faz. Dito de
outro modo é um espaço onde somente se evidencia o pior nos homens. Além de ser
fantasioso, o teatro pode ser também um ataque à verdadeira virtude proporcionado pelo
esclarecimento.
Dizemos a nós mesmos que nada daquilo nos convém, e nos
acreditaríamos tão ridículos adotando as virtudes de seus heróis quanto
falando em versos e nos vestindo à romana. Eis, portanto, mais ou menos para que servem todos esses grandes sentimentos e todas essas brilhantes
máximas que se elogiam com tanta ênfase; para relegá-los para sempre ao
palco, e para nos mostrar a virtude como um jogo de teatro, bom para
divertir o público, mas que seria loucura querer transportar seriamente para a sociedade (ROUSSEAU, 1993, p. 47).
Os iluministas entrevem no teatro não só uma forma de compreender seu próprio
tempo, mas também, um modo de trazer à tona as vertentes morais da época e, não
obstante, visa despertar as virtudes de cada sujeito. Todavia, as críticas de Rousseau
especialmente a Diderot dão-se na medida que, este tinha como principal ideário que o
teatro deve ser a maneira pela qual se pode unir e aproximar o homem de um modelo
moral virtuoso; isto é, o teatro é um modo pedagógico de ensinar à sociedade as atitudes
para as ações virtuosas.
É importante ressaltar como a tradição aristotélica teve forte influência nos
modos de compreender e também de fazer com que a arte, a poesia e o teatro tem um
caráter de aprimoramento do homem, no que diz respeito as suas ações sociais. No
orgulhosos que fizeram para sair da ignorância feliz na qual nos colocara a sabedoria eterna”
(ROUSSEAU, 1978b, p. 349). “(…) as ciências e as artes devem, portanto, seu nascimento a nossos
vícios: teríamos menor dúvida quanto às vantagens, se o devessem a nossas virtudes. (...). Que faríamos das artes sem o luxo que as nutre?” (Idem, p. 351). “(...) o luxo raramente apresenta-se sem as ciências e
as artes, e estas jamais andam sem ele. Eu sei que nossa filosofia sempre pretende, contra a experiência de
todos os séculos, a que o luxo seja o esplendor dos Estados; depois, porém, de ter esquecido a necessidade
das leis suntuárias, ousaria ela também negar que sejam os bons costumes essências à duração dos
impérios e o luxo diametralmente oposto aos bons costumes? Que seja o luxo um indício certo de
riquezas; que sirva até, caso se queira, para multiplicá-las; que se deveria concluir desse paradoxo tão
digno de ter nascido em nossos dias? E que se tornará a virtude, desde que seja preciso enriquecer a
qualquer preço: os antigos políticos falavam constantemente de costumes e de virtudes, os nossos só
falam de comércio e de dinheiro.” (Idem, p. 352).
62
mundo moderno, as análises e reflexões da Poética, de Aristóteles, são de grande valia
para acréscimo da compreensão das artes como uma maneira pedagógica, com a
finalidade de conduzir uma sociedade que, por meio dos sentimentos de expurgação e
ações que levam a verossimilhança, torna o sujeito mais virtuoso. Desse modo, a arte da
imitação é a forma de aproximar os indivíduos às ações morais virtuosas, uma vez que,
retira do mundo em uma cisão proposital, os costumes, cenas de cunho familiar, formas
e gestos vindos da natureza e do cotidiano a fim de atingir os corações de todos os
homens partícipes da plateia.
Contudo, para Rousseau algo de muito perverso existe em uma civilização que está
pautada em interesses particulares. Apesar do filósofo louvar que o homem é capaz de
avançar e superar as dificuldades que a própria natureza lhe impõe e constituir assim sua
própria história e até mesmo domesticar a natureza, vê na sociedade vigente um problema
que diz respeito ao indivíduo: ele não consegue compreender sua natureza, seus deveres e
propósitos.
É um espetáculo grandioso e belo ver o homem sair, por seu próprio
esforço, a bem dizer do nada; dissipar, por meio das luzes sua razão, as trevas nas quais o envolveu a natureza: elevar-se acima de si
mesmo; lançar-se, pelo espírito, às regiões celestes; percorrer com
passos de gigante, como o sol, a vasta extensão do universo; e, o que é ainda maior e mais difícil, penetrar em si mesmo para estudar o
homem e conhecer sua natureza, seus deveres e seu fim.
(ROUSSEAU, 1973b, p. 341-42).
Assim, conforme explícito no Discurso sobre a desigualdade, o filósofo entende
que o progresso do conhecimento só faz aprofundar a servidão humana. Pode-se
associar tal perspectiva ao caso particular do teatro moderno. Este, para o genebrino, é
estranho à virtude, e não se pode atribuir a ele um papel tão fundamental quanto o
pedagógico.
(...) o efeito geral do espetáculo é reforçar o caráter nacional, acentuar
as inclinações naturais e dar nova energia a todas as paixões. Neste
sentido, poderia parecer que, como esse efeito se limita a reforçar e não a mudar os costumes estabelecidos, a comédia seria boa para os
bons e má para os maus. Mesmo no primeiro caso, sempre restaria
saber se as paixões excitadas demais não degeneram em vícios. (ROUSSEAU, 1993, p. 42).
A Carta condena o suposto etnocentrismo da Filosofia, pois esta tinha
pretensões de querer determinar o que deve ser bom para o homem em geral, impondo
em toda parte certo modelo de espetáculo, o qual deve ser seguido. Rousseau argumenta
63
na Carta, então, que em Londres um drama interessa quando faz odiar os franceses; já
em Túnis seria a bela paixão sobre a pirataria; em Messina, uma vingança bem
saborosa. Sabendo dessas diferenças entre as regiões e países, também se conhece o
gosto e o que pensar sobre cada costume. Com isso, se um autor desrespeitar essas
máximas, pode até fazer uma excelente peça, mas não tem público algum. Assim: “E
então deveremos acusar esse autor de ignorância, por ter faltado à primeira lei de sua
arte, que serve de base a todas as outras e que consiste em fazer sucesso. Assim, o teatro
purga as paixões que não temos e fomenta as que temos. Eis um remédio bem
administrado!” (Idem, p. 44).
Segundo Matos (2009, p. 16), Rousseau “vê que os filósofos dão demasiada
importância às ideias de natureza humana e espetáculo em geral, ignorando as
singularidades de cada lugar e as várias figuras históricas do teatro”. Para o filósofo, é
por meio do que foi esquecido ou ignorado que o homem é uno; no entanto, a história o
torna múltiplo, e essa diversidade também multiplica os tipos de espetáculo. Desse
modo, cada povo, cada cultura, possui uma paixão dominante, que vai divergir das
demais. Portanto, cada autor ou espetáculo deve procurar justamente satisfazer essa
paixão para melhor compreensão do público.
Ao considerar as causas gerais e particulares dos povos e seus costumes,
Rousseau opta pelo ato o qual, possa impedir os espetáculos em creditarem a forma
perfeita de suscitar o aprimoramento de quaisquer que sejam os valores, aos quais,
queiram enfatizar em um meio social. Esse ato, aparentemente radical, se deve ao fato
de que, o filósofo leva em conta que nada adianta direcionar a um suposto
aperfeiçoamento, mesmo crendo que o povo ao se mostrar disposto e aberto às possíveis
intervenções de outros em seus costumes. Seus efeitos em uma determinada sociedade
se tornam vãos e nada acrescentam para a transformação de quaisquer coisas, tal como
queiram os defensores do teatro.
Jean-Jacques Rousseau acredita, que só existem três tipos de meios que podem
agir sobre os costumes de um povo: a força das leis, o império da opinião e a atração pelo
prazer. Diz ele: “as leis não tem nenhum acesso ao teatro, cujo menor constrangimento
seria um sofrimento e não uma diversão. A opinião não depende do teatro, já que em vez
de ditar a lei ao público, o teatro a recebe dele; e quanto ao prazer que ali podemos obter,
64
todo seu efeito consiste em nos fazer voltar ao espetáculo com maior frequência. ”
(ROUSSEAU, 1993, p. 44).
Rousseau questiona a máxima de Diderot (1986, p. 44), segundo a qual “as artes
de imitação” fazem os homens a “amar a virtude e odiar o vício”. Interroga-se então por
perceber que, antes da existência da comédia as populações não amavam o bem e não
odiavam o mal, e isso significa então, que, esses sentimentos são mais fracos nos
lugares onde não hajam espetáculos?
Quanto a isso Franklin de Matos nos conduz à reflexão de que para Rousseau os
espetáculos só têm este juízo de valor: bons ou maus, diante das paixões boas ou más, do
público em geral. E para obter sucesso seria necessário, antes de tudo, satisfazer tais
paixões. Caso contrário, o público não se sente agradado e desaparece. Com isso, os
espetáculos estariam apenas comprometidos com as paixões do espectador, e não com a
virtude. A cena é, por sua vez, uma regra, uma reprodução minuciosa das paixões
vivenciadas pela plateia,
(...) cujo original está no coração do público, de tal modo que existe uma relação de cumplicidade entre um e outro. Se quiser sobreviver, o
teatro deve adular as paixões prezadas pela plateia, tornando
detestáveis aquelas que são odiadas de antemão. Ele não tem, portanto, nenhum poder de mudar os costumes. Se quiser agradar, terá
de segui-los, abdicando de qualquer objetivo pedagógico; se quiser
corrigi-los, aborrecerá o público, renunciando à diversão e arriscando
a própria sobrevivência. (MATOS, 2009, p. 16).
No mais, Jean Jacques Rousseau continua a pensar qual é o poder que a arte em
geral teria para moldar o caráter do homem, para que engendrem nele inclinações
necessárias e ele, por sua vez, queira seguir o bem, o belo, conduzindo-se para a virtude.
Assim, o filósofo retoma sua máxima, na qual afirma que os homens nascem bons por
natureza (ROUSSEAU, 1973b). Neste sentido, não é necessário nenhum outro artifício
para que o homem possa amar e querer o bem. A arte de nada adianta, uma vez que o
“ser bom” e o “querer o bem” são intrínsecos à humanidade, são naturais.
Ah, se a beleza da virtude fosse obra da arte, há muito a arte a teria
desfigurado! Quanto a mim, ainda que me chamem de malvado por
ousar afirmar que o homem nasceu bom, eu acho que isso e creio tê-lo provado; está em nós e não nas peças a fonte do interesse que nos
prende ao que é honesto e nos inspira a versão pelo mal. Não há arte
que produza esse interesse, mas apenas as artes que se valem dele. O amor do belo é um sentimento tão natural no coração humano quanto
o amor de si mesmo; ele não nasce de um arranjo de cenas; o autor
não leva para lá, mas o encontra ali; e desse puro sentimento que ele
65
favorece nascem as doces lágrimas que faz correr. (ROUSSEAU,
1993, p. 44-5).
3.3. O pedagógico do teatro.
A questão a respeito do poder do teatro sobre a condução dos costumes de um
povo, para que, possam ser aperfeiçoados a partir do espetáculo, é algo que se torna alvo
de vários debates entre os filósofos das luzes, sendo partidários favoráveis ou não ao
teatro. O tema foi retomado inúmeras vezes por Rousseau, Diderot e Voltaire. Por isso,
as apologias e disputas travadas entre os filósofos durante o século XVIII, tem o intuito
principal de entender, criticar ou defender um teatro que tenha caráter de contribuição
aos costumes e aprimoramento do gosto.
Para Denis Diderot, como já supramencionado, a questão do teatro como modo
didático direciona a uma formação moral melhor à época. Conforme afirma Matos
(2009, p. 12), para o pensador, aquilo que é,
explicitado em 1757 e 1758 nos Diálogos sobre o filho natural e no
Discurso sobre a poesia dramática, é o seguinte: a fim de restituir ao
teatro o poder de melhorar os homens, é preciso “abalar” (...) os espíritos, levando “tumulto” e “pavor” à alma do espectador, a
exemplo da tragédia grega. Para isso, deve-se resgatar a energia da
linguagem, a energia da natureza de que a linguagem é portadora, o
que se supõe que libere a cena das regras e “conveniências” clássicas (...).
Apesar disso, Rousseau não admite que o teatro fosse tratado como um aparato
para as sociedades se espelharem; não compreende que era um mecanismo pedagógico.
Em um sentido oposto a esse pensamento, o enciclopedista defende que uma das
maneiras mais eficazes para entender e formar a virtude no indivíduo se faz através do
teatro: “Considerei por vezes que as mais importantes questões de moral poderiam ser
debatidas no teatro, nem por isso prejudicando o ritmo violento e rápido da ação
dramática. ” (DIDEROT, 1986, p. 44).
Diderot não só enfatiza que o teatro possua caráter pedagógico, mas também que
deve ser modificado, ou seja, é preciso rever o modo como se apresenta o teatro
moderno. Assim contribui para fundar outro gênero, já que nem só de elogios, em
relação à cena francesa e o teatro moderno, vive a crítica do filósofo: “O enciclopedista
contesta com veemência que a cena francesa moderna, dominada pela tragédia e pela
66
comédia clássica, e tão repleta de regras e convenções, ainda tenha poder para tanto.”
(MATOS, 2009, p. 12). Desse modo, propôs o gênero intermediário que é o meio termo
entre a tragédia e a comédia. Este novo gênero é o drama.
De tal maneira, Diderot atribuí ao espetáculo, cabe ressaltar, um objetivo moral e
pedagógico. O drama, enquanto gênero, não se limita à questão de estilo. Para além
disto, o enciclopedista compreende o teatro como um objeto de estudo para uma maior
reflexão dos fatos ocorridos na vida social. “A impregnação moral da arte é tão
profunda, que não podemos sequer falar de imposição de limites à representação: a
moral não impõe limites à imitação como uma instância superior que se projeta sobre
outra recortando-a, ela é coextensiva à imitação, enquanto imitação da bela natureza.”
(PRADO Jr., 1975, p. 09). Portanto, assim como a filosofia quer combater os
preconceitos, também o teatro deve esclarecer aos homens, ensinando-os a amar a
virtude e detestar o vício. Assim sendo:
Oh, quanto bem não se faria aos homens se as artes de imitação tivessem um objetivo comum, colaborando um dia com as leis para nos fazer amar
a virtude e odiar o vício! Cabe ao filosofo convocá-las, cabe a ele dirigir-
se ao poeta, ao pintor, ao músico e gritar-lhe fortemente: Homens de
gênio, para que fostes dotados pelos céus? Se ele for ouvido, logo as imagens do deboche já não cobrirão as paredes de nossos palácios e
nossas vozes já não serão instrumentos do crime, beneficiando assim o
gosto e os costumes. (DIDEROT, 1986, p. 44).
O filósofo entreve ainda que de forma hipotética, como é necessário que o teatro
interfira de modo crítico e reflexivo na contribuição para fomentar inúmeros feitos na
sociedade. Assim, por meio dos elementos da imitação da bela natureza, fundamentado
na razão, o teatro é o ponto de partida para atingir assuntos profundos em auxílio à
manutenção da sociedade, de suas leis, costumes e do gosto, sempre visando o primor
da moral para atingir a finalidade maior que é chegar à virtude43
.
A questão da virtude, segundo Guinsburg (1987, p. 44) constitui-se como a
pedra de toque no universo moral do enciclopedista, sendo que “é despida de sua estoica
soberba antifísica, a fim de que possa integrar o humano.” Para tanto, o homem perfeito,
43 “No Discurso sobre a poesia dramática, Diderot aconselha aos que se interessam pelo teatro que, ‘ao
escrever, deve-se sempre ter em vista a virtude e as pessoas virtuosas’. O teatro deve ter uma função moral
de exortação à virtude e, após um espetáculo, o ideal seria que o perverso deixasse o camarote ‘menos
inclinado a praticar o mal, como se um orador severo e duro tivesse ralhado com ele’. Aliás, segundo
Diderot, todas as artes de imitação deveriam ter o objetivo comum de fazer os homens amarem a virtude e
odiarem o vício, e cabe filósofo fazer uma convocação geral para que todos se unam nesse empreendimento
pedagógico-moral.” (SOUZA, 2002, p. 104).
67
na visão do filósofo, não deve ser uma marionete ou uma estátua, mas sim aquele que
está intimamente ligado à natureza. Dessa forma: “precisa aliar-se ao homem natural,
Zenão e Epicuro, a razão ao instinto, a alma ao corpo”. (Idem, Ibidem).
A reconciliação do homem consigo mesmo, é aquela que diz respeito ao que
incide neste homem natural com o social. A libertação das paixões naturais e das
necessidades do corpo – caso do homem natural – e a utilização racional dos sentimentos
– que pode ser feita pelo homem social, é condição imprescindível para que ambos, ser
natural e social, associem-se em igualdade de condições, deixando a natureza falar,
contanto que não se sobreponha à racionalidade.
Conforme Guinsburg, a felicidade depende da virtude. No entanto, o homem
livre e o sábio “podem dar-se tanto ao prazer quanto à abnegação, no exercício de uma
existência virtuosa” (Idem, p. 45). Nesse âmbito, a moral e as ciências são vistas de
outra perspectiva por Diderot. Isto acontece porque o filósofo compreende o mundo
secularizado e, nele a única e real presença positiva é a do homem. O fundamento
principal no homem é de seguir a ordem natural e os preceitos da virtude, já que são
inerentes à razão. Contudo, o homem não é tão somente razão. Antes disso, “ser animal,
de complexa organização, é o produto da mistura de germes e, fisiologicamente, gravita
em torno de dois sistemas: o cérebro, centro do sensório, que classifica os dados dos
sentidos e dirige a atividade racional; e o diafragma, centro nervoso autônomo que
governa a sensibilidade e as emoções. ” (Idem, Ibidem).
O teatro, para Diderot, é fundado nos princípios racionais sempre com o
engajamento de contribuição para uma vida social mais justa que busque a verdade, o
bem e o belo.
Para Diderot, a vocação utilitária ou pedagógica do teatro é justificada
pelo axioma que liga substancialmente o verdadeiro, o bom e o belo,
subordinando-os à maneira de uma processão, onde a beleza aparece
como termo derradeiro, derivação última das duas primeiras instâncias: ‘o verdadeiro, que é o pai que engendra, o bom, que é o
filho, donde procede o belo que é o Espírito Santo’. Exclui-se,
portanto, desde início, que uma forma qualquer de arte possa guardar seu valor, se entrar em conflito com a virtude: a imitação da bela
natureza é por assim dizer espontaneamente moral, mesmo quando se
choca com a decência e com as ‘bienséances’- não há valores puramente estéticos. (PRADO Jr., 1975, p. 08-09).
Para Bento Prado Jr., o valor da imitação da bela natureza é de suma importância
para o filósofo, porque também existe em igual estima uma grande preocupação, que é o
68
intuito da imitação da virtude. Assim, “a moral é o objeto próprio da arte, sua matéria e
o éter em que circula.” (Idem, Ibidem). Neste mesmo sentido, Diderot diz o que segue:
A plateia da comédia é o único lugar onde se confundem as lágrimas
do homem virtuoso e do perverso. Lá, o perverso se irrita frente às
injustiças que cometeria, sente compaixão pelos males que causaria, indignando-se diante de um homem de seu próprio caráter. Mas uma
vez recebida a impressão, ela em nós permanece, a despeito de nós
mesmos: e o perverso deixa o camarote menos inclinado a praticar o
mal, como se um orador severo e duro tivesse ralhado com ele. (DIDEROT, 1986, p. 43).
Na visão do enciclopedista, as coisas em sociedade são materializadas a partir do
momento em que haja uma intervenção, que pode ser por meio de uma astúcia da razão,
pela saciedade de leis e por regras, assim aperfeiçoar, consecutivamente, para a
manutenção da moral. Entrementes, a moral precisa ser bem definida e estabelecida por
todos aqueles que interagem em uma determinada civilização. Nesse sentido a natureza
se interpõe e penetra no seio da vida em sociedade, e por diferentes modos e normas a
humanidade tem tendência a investigar e agir conforme instintos naturais aprimorados
pelo convívio em sociedade.
Assim, um poeta debateria a questão do suicido, da honra, do duelo,
da fortuna, das dignidades e muitas outras. Nossos poemas ganharam
desse modo uma gravidade que não tem. Se tal seja for necessária, se provier do fundo, se for anunciada e o espectador a desejar, este lhe
dará toda a atenção, comovendo-se muito mais do que com essas
sentençazinhas alambicadas que compõem nossas obras modernas. (Idem, p. 44).
Para Diderot, o homem não é só razão: é um ser animal de complexa
organização. Guinsburg estabelece que para o enciclopedista, o indivíduo resulta de
uma bipolaridade, em que as diferentes gradações humanas formam a multiplicidade de
indivíduos, do sábio ao medíocre sensível, que podem variar conforme a constituição
fisiológica. Nessa perspectiva, os fatores fisiológicos são “determinantes quanto as suas
[do homem] predisposições inatas e contra elas nada pode a educação” (GUINSBURG,
2001, p. 101).
Por conseguinte, ao nascer, o sujeito tem algumas aptidões – que podem ser
inclinações mais intelectuais ou mais emotivas. Cada um forma para si, mediado por
tais aptidões particulares, um modo de agir no mundo e, dessa maneira, distinguir-se
dos demais. Essa visão materialista44
de Diderot evidencia uma forma para se
44 Segundo Guyot (1973, p. 45): “(...) o materialismo de Diderot se fundamenta desde cedo e temos
69
compreender a atuação do ser racional na natureza45
. Por isso, “a educação só poderá
moldar, refinar, cultivar o que já é em semente”46
(Idem, p. 102).
Segundo Guinsburg, o gênio47
, figura recorrente no pensamento diderotiano,
supracitado é aquele que proporciona à sociedade poder se tornar melhor e mais
instruída. Ele tem em suas mãos o papel de desempenhar e nortear a vida social para um
progresso humano, tanto no âmbito dos costumes, quanto ao que diz respeito às leis. O
gênio não pode medir esforços para ampliar a visão de mundo dos mais sensíveis dos
homens, mesmo que sua ação tenha que ultrapassar os limites legais ou normais48
.
Guinsburg diz que Diderot distingue esse homem dos demais não pelo poder de uma
mera intuição, mas pelo fato de ele saber utilizar a razão: “Ele não está acima, mas
dentro da sociedade.” (Idem, Ibidem). Ele não age de modo tirânico; antes, com o
propósito de uma instrução e esclarecimento para o bem coletivo. Ainda, entende os
princípios que lhe guiam e demonstram seus verdadeiros interesses. É sábio, portanto,
sempre agirá em função do interesse geral. Logo:
Diderot (...) prefere alternadamente a alma razoável à alma sensível, o
estoicismo ao epicurismo, o sacrifício do grande homem ao egoísmo do comum dos mortais, a moral aristocrática à democracia. Mas, ainda
assim, é possível divisar, igualmente, a contínua aspiração de superar
as tendências contrastantes, de chegar a um “justo meio”, a um fiel de balança graduado segundo os princípios de uma moral universal
(Idem, p. 102-03).
advertido nos resultados das investigações cientificas contemporâneas; mas, impulsionado por suas
investigações, o filósofo sobrepõe o universo real cuja organização pretende explicar um universo
infinitamente mais vasto, uma região de mistério e maravilhas, onde ela se manifesta em fluxo e
transforma incessantemente os seres, isso seria, portanto, a imanência divina da vida”. 45 No Paradoxo, Diderot explicita a importância da razão interagindo com e sobre a natureza para
formação de um ator verdadeiro e digno de intervir, compor e ajudar na manutenção da virtude. 46 Parece haver uma espécie de visão inatista de ser humano em Diderot, tal como em John Locke. Ainda
que não seja o mote desta dissertação, é importante frisar este ponto. 47 A genialidade, segundo Diderot (1964, p. 355), “é consequência de uma ‘fibra tirânica’, mais vigorosa
no gênio do que nos outros seres da mesma espécie; ela corresponde ao instinto nos animais, no sentido em que predomina sobre todo o resto do corpo (...). O gênio e o instinto se tocam”. O verbete “gênio”, da
Enciclopédia, “estabelece um interessante comparação entre o gênio e o filósofo. A filosofia exige certas
qualidades, como a atenção, a reflexão, a disciplina, que não se conciliam com o calor da imaginação do
gênio. O filósofo trabalha com paciência, o gênio é levado pelo turbilhão das ideias. Na política, um
homem de gênio é mais apropriado para fundar ou derrubar um Estado do que para governá-lo e mantê-
lo. (SOUZA, 2002, p. 115, nota. 66) 48 Vale lembrar, a partir dessa análise de Guinsburg, sobre o caso que deu início ao debate promovido por
Rousseau na Carta: a questão era exatamente a do homem gênio, ou que se considera gênio, intervindo
nos costumes e leis do povo genebrino.
70
3.4. O Drama para Diderot.
Diderot inicia o Discurso sobre a poesia dramática com a seguinte questão: “Se
um povo não conhecesse senão um gênero de espetáculo prazeroso e alegre, e se lhe
fosse proposto um outro sério e comovente, sabeis, meu amigo, o que pensaria ele a
respeito?” (DIDEROT, 1986, p. 35). A partir deste questionamento, o filósofo enfatiza e
entreve em seus ideários para o teatro “um exemplo doméstico e comum”, possível de
ser observado na natureza e pela razão ser imitado nos palcos do teatro.
É contra as reservas do velho patriarca que ele prefere os antigos, e
Shakespeare a Racine, afirmando que se deve repensar o sistema
clássico e inventar um gênero intermediário, capaz de imitar “as ações mais comuns” da vida, no qual melhor se exprime a natureza humana
tal qual ela é, e não como a fizeram as convenções. A igual distância
da comédia e da tragédia clássicas, esse gênero se divide em comédia séria, cujo objeto é pintar os deveres do homem, e tragédia doméstica,
cuja finalidade é mostrar nossas desventuras privadas (MATOS, 2009,
p. 15).
Segundo Trousson (2007, p. 133), o enciclopedista compreende no Discurso da
poesia dramática que os gêneros que existem para o teatro, no mundo moderno, não
mais condizem com a realidade de seu tempo e é preciso reformular e pensar em outro
modo de dizer e fazer as cenas teatrais. Acaba por eleger um gênero que chamou de
intermediário. Este gênero, estando entre a comédia e a tragédia, é a comédia séria ou o
drama moral. Desta forma, são pautados em problemas do cotidiano em tom mais
familiar, seus diálogos e formas devem ser direcionados a incentivar e apoiar uma nova
visão sobre os interesses privados. Assim também, para os personagens o tom está mais
próximo aos costumes. Esse modo de compreender a realidade é para o filósofo,
superior por haver uma aproximação à ação pedagógica. Com isso também se fazia
necessário que exista a pantomima, a linguagem corporal, que muitas vezes se torna
mais eloquente do que palavras. E na encenação no palco os atores devem ficar muito
mais livres em suas expressões do que no modelo clássico com todas as marcações que
imobiliza o ato explosivo do ator.
O hábito nos torna cativo. Surgiu um homem com uma centelha de
gênio? Produziu alguma obra? A princípio, ele surpreende e divide os
espíritos; pouco a pouco, os reúne; logo é seguido por uma multidão de imitadores: os modelos se multiplicam, as observações se
acumulam, colocam-se regras, a arte nasce e seus limites são fixados.
71
Proclamam-se que é extravagante e ruim tudo o que cabe no estreito
recinto traçado. (DIDEROT, 1986, p. 36).
Todo esse trabalho de revisar o modo de compreender e fazer os espetáculos é,
para Denis Diderot, de suma importância. Ele entende que é preciso reforçar e modificar
o gosto do público, que a princípio não está empenhado em compreender o que está em
cena. Este fato advém porque, na concepção de Diderot, o público sempre foi
acostumado e conduzido a ir aos espetáculos como uma ação de mero encontro de
conveniência com os outros membros da sociedade, a fim de terem um divertimento
risonho. “Se existe um gênero, é difícil introduzir um novo. É este introduzido? Outro
preconceito: logo se imagina que os dois gêneros adotados são vizinhos e se tocam.”
(Idem, p. 37).
Seu modo de pensar o teatro está inteiramente ligado aos homens de gênio. Estes
devem realizar as tramas para os espetáculos. Ainda que, não mais os homens,
necessariamente, devem assistir às representações apenas para alegrar suas almas, sendo
que ao seu término tenham em sua memória apenas o riso jocoso do simples
divertimento que as cenas lhes causam. O que é apenas um divertimento tem que se
tornar também um modo de entrar em contato com outros sentimentos que até então não
tenham sido tocados por mais ninguém. Cabe, ao filósofo despertar esses interesses nos
homens de gênios e consequentemente nas plateias.
Mas quem nos pintará com vigor os deveres dos homens? Quais serão as qualidades do poeta a se propor a essa tarefa? Que ele seja o filósofo, que
tenha mergulhado em si mesmo, vendo desse modo à natureza humana,
que se instrua profundamente sobre os estados em que se divide a
sociedade, conhecendo-lhes bem as funções e o peso, os inconvenientes e as vantagens. (Idem, p. 38).
O teatro moderno até então é visto como uma forma de mero divertimento. Não
toca em temas como a tristeza, a angústia e as diferenças que abatem a sociedade
privada e problemas que são caros ao convívio e modos de vida dos indivíduos do
século XVIII; ou seja, não tocam em temas concernentes ao espaço público. Ao
observar e criticar o teatro moderno, Diderot propõe temas mais familiares aos
indivíduos de sua época, os quais devem estar sempre visitando a memória e o
imaginário popular. Para atingir os costumes de todos, de uma melhor maneira, isto
deve ser feito por poetas e autores, até por conta da facilidade que dispoem. Afinal, tais
temas estão impregnados na natureza. De tal modo, o filósofo explicita o quão
72
importante é o fato dos espetáculos, e junto a eles poetas e autores, tratam de temas que
buscavam sempre o lapidar da virtude.
Tentei dar, em O Filho Natural, a ideia de um drama situado entre a
comedia e a tragédia. / O Pai de Família então prometi, e que foi
retardado por continuas distrações, situa-se entre o gênero sério de O Filho Natural e a comédia. / E se algum dia tiver tempo e coragem,
espero compor um drama que se ache entre o gênero sério e a tragédia.
(Idem, p. 37).
As dores também são sem dúvida, modos de se chegar ao coração mais bruto e
aos mais hipócritas dos indivíduos. Uma cena que apenas despertasse as alegrias não faz
ninguém refletir sobre suas ações em seu meio social, ao passo que uma cena que
desperte os instintos ou dores e medos mais latentes dos seres humanos são
direcionados à reflexão e, em consequência disso, também é um modo de trabalhar o
olhar moral para as atitudes que tenha e que se espera dos outros.
Para o poeta dramático, os deveres dos homens constituem um filão
tão rico quanto seus vícios e ridículos. As peças honestas e sérias
sempre alcançarão êxito, mas certamente ainda mais entre povos corrompidos do que em outra parte. Indo ao teatro eles se esquivarão
da companhia dos perversos que os cercam; e lá que encontrarão
aqueles com quem gostariam de viver; é lá que verão a espécie
humana tal qual é, reconciliando-se com ela. (Idem, p. 39).
Portanto, a forma de condução do teatro que Diderot sugere é a que visa à
formação integral dos indivíduos. Ela deixa transparecer, através de si, o que está nas
ruas, no convívio, nos salões, nas conversas. Com isso, a imitação da natureza se faz
novamente necessária para a compreensão de quem o homem é, para que possa formar
uma moral, um novo jeito de se ver e existir.
As pessoas boas são bem raras, mas existem. Aquele que assim não pensa
acusa-se a si próprio, mostrando como é infeliz junto da mulher, dos pais, dos amigos, dos conhecidos que tem (...)./ Ao escrever, deve-se sempre
ter em vista a virtude e as pessoas virtuosas. Quando tomo da pena, sois
vós, meu amigo que evoco e quando ajo, sois vós que tenho diante dos olhos (Idem, p. 40).
Deste modo, o drama que é evidenciado pelo filósofo tem um caráter
inteiramente ligado às vivências e rotinas das pessoas em seus ambientes comuns, com
seus pares, sempre mirando ambientes e situações as mais corriqueiras possíveis. O
drama burguês, para Diderot, é um dos gêneros mais apropriados para a condução do
público a uma reflexão sobre as questões existentes em seu tempo. Muitos
comentadores relatam que este drama que pretende o enciclopedista, cabe ressaltar
73
novamente, é também aquele pedagógico, sempre em busca da virtude, porque o
filósofo entende que a natureza do homem é boa, e sendo boa deve ser enaltecida e
estimulada.
“A natureza humana é, portanto, boa? ”/ Sim, meu amigo, e muito boa. A água, a terra, o fogo, tudo é bom na natureza; o furacão que se ergue
no fim do outono sacode as florestas, lançando as árvores umas contra as
outras, quebrando e separando os galhos mortos; a tempestade que castiga as águas do mar purifica-as; e o vulcão, que derrama de seu
flanco entreaberto ondas de matérias incandescentes, elevando aos ares o
vapor que os depura./ Não se deve acusar a natureza humana, mas
miseráveis convenções que a pervertem. Com efeito, o que nos comove tanto quanto a narrativa de uma ação generosa? E que desgraçado
ouviria friamente as lamurias de um homem de bem? (Idem, p. 43).
Assim sendo, Diderot concorda com Rousseau, apesar das querelas no que diz
respeito à questão da civilização e os luxos que iniciam um processo de degradação dos
costumes, fazendo com que os vícios sejam a fonte de prazer dos homens civilizados.
Desde que é preciso reverter essa deterioração dos valores por meio do teatro, visando
evidenciar o lado bom e virtuoso que todos naturalmente têm. Logo, essa mesma
civilização que destruiu o lado bom do homem pode auxiliar a restituir os bons costumes,
sempre fixados e pautados na natureza em parceira com os homens de gênio, que sabem
utilizar a razão de modo eloquente.
O poeta, o romancista, o comediante chegam ao coração de uma forma
enviesada e atingem tão mais segura e fortemente a alma, quanto ela própria se estende e se oferece ao golpe. Os males que me enternecem
são imaginários, admito-o: mas me enternecem (...) arte mais preciosa
que a que me liga imperceptivelmente à sorte do homem de bem; que me subtrai da situação tranquila e doce de que usufruo, para me fazer
caminhar ao lado dele; mergulhar nas cavernas onde se refugia e me
associar a todos os reveses pelos quais o poeta se deleita em por à prova
sua constância? (Idem, p. 43-4).
3.5. O gesto é a palavra.
Com os ideais do filósofo para as modificações sobre o teatro moderno francês,
sugere que estas mudanças se aproximem da plateia, sendo mais articulado com a
sociedade burguesa do século XVIII. Diderot enfatiza o gênero dramático como o mais
74
próximo à realidade do público. Isto não quer dizer que o espectador tem que ser o
centro das atenções e que tudo deve ser conduzido do modo que este imagine ou queira.
O espectador é um membro importante na plateia, assim como quaisquer outros
elementos contidos no palco, seja atores ou a história desenvolvida pelo poeta.
Se se tivesse entendido que, apesar de uma obra dramática ser feita
para a representação, seria necessário, entretanto, que autor e ator esquecessem o espectador, e que todo o interesse dissesse respeito às
personagens, não se leria tão frequentemente nas poéticas: fazemos
isto ou aquilo, exercereis tal ou qual impressão sobre vosso espectador. Ao contrário, se leria: fazemos isto ou aquilo, eis o que
resultará para vossos personagens (Idem, p. 77).
Denis Diderot insiste que para existir um novo gênero é preciso também que os
discursos se modifiquem. Segundo Franklin de Matos (2009, p. 15), o discurso
ordenado “não é o melhor meio de expressar as paixões, ao contrário dos gritos não
articulados, das expressões faciais, dos gestos”. Para tanto, é preciso, além da
valorização da pantomima do ator, que exista um realismo que recomende que os textos
dramáticos sejam escritos em prosa, como um romance. Também se faz relevante que
sejam evidenciados e destacados os cenários e os figurinos. Neste ponto, é importante
que se resgate a simplicidade da natureza para “restabelecer a dimensão propriamente
espetacular da cena, trazê-la da corte para o quotidiano doméstico – eis, enfim, os
significados maiores da reflexão de Diderot sobre o teatro.” (Idem, Ibidem). Diderot
(1986, p. 45) foi enfático nesta questão: “Não quero sair do teatro levando palavras, mas
impressões. Raramente se enganará aquele que declara obra medíocre um drama ao qual
serão citados muitos pensamentos soltos poeta excelente é aquele cujo efeito permanece
muito tempo em mim”.
Franklin de Matos destaca ainda, o quão importante é levar para o centro da
discussão um dos traços que possui grande relevância no pensamento do filósofo e está
em contradição com as longas tiradas do teatro clássico. Isso ocorre porque nos
argumentos teatrais que Diderot elabora a cena não está organizada em torno da palavra.
O drama é nada mais que diálogos, simples e econômicos, sendo fortemente
pontuados por olhares, gestos, silêncios e ruídos, igualmente convocados a falar, ou
seja, todo o corpo também diz. A pantomima é um processo de grande valia para o
“dizer”. Assim sendo:
75
A exemplo da passagem de Ésquilo que serve de modelo a Diderot, é o
mínimo de discurso que lhe dá o máximo de força e energia. Conduz a
princípio a dois quadros, preenchidos por gritos dolorosos e lágrimas: os quadros do pai desesperado e da mãe piedosa. Este último é mudo, pois a
força da religião contém, por enquanto, as “verdadeiras vozes” da
natureza, que falarão a seu tempo. O outro é contundente, preenchido pelos gritos aflitos do pai, que não hesita em lançar-se ao chão. Ele
desafia corajosamente os códigos tradicionais de decoro e procura deixar
que as paixões se exprimam da maneira mais forte. O protagonista “faz e
diz tudo aquilo que o desespero sugere a um pai que perde o filho”: na verdade, sua ousadia não apela propriamente para nossa imaginação de
leitores, mas para “aquilo que ninguém ouvirá sem logo reconhecê-lo em
si mesmo”. (MATOS, 2009, p. 13).
Ida Hisashi (1999) explicita que Diderot compreende a existência de um paralelo
entre linguagem falada e linguagem do gesto, e que ambas são parte da ordem natural
para a formação da linguagem. Para tanto, faz a comparação de uma pessoa que é surda
de nascença e aquela que se torna surda ao longo da vida. Para o enciclopedista, esses
dois indivíduos se formam diferentes em relação ao uso dos sentidos. Diz ele:
A unidade pura e simples é um símbolo demasiado vago e demasiado
geral para nós. Nossos sentidos nos reconduzem a signos mais análogos à extensão de nosso espírito e à conformação de nossos órgãos. Fizemos
mesmo as coisas de maneira que esses signos pudessem ser comuns
entre nós, e que servissem, por assim dizer, de entreposto ao comércio mútuo de nossas ideias. Instituímos alguns para os olhos, são caracteres;
para o ouvido, são articulados; mas não possuímos nenhum deles para o
tato, embora haja maneira peculiar de falar a esse sentido, e obter dele
respostas. (DIDEROT, 1985, p. 11).
De acordo com Diderot, a falta da linguagem impossibilita a comunicação
mesmo aos que nascem sem nenhuma deficiência. Ao passo que tanto os surdos e cegos
quanto os que são dotados de todos os sentidos, precisam de sucessivas ideias fixadas
por hábitos e costumes para se comunicarem entre si. Com isso, não é necessário voltar
para a gênese após a criação do mundo, nem à origem da linguagem, para compreender
a importância do gesto e dos sentidos para se fazer compreensível.
O conhecimento tem três portas para entrar em nossa alma, e nós
mantemos uma trancada por falta de sinais. Se se houvesse negligenciado as duas outras, estaríamos reduzidos à condição dos
animais. Do mesmo modo que só dispomos do apertar para nos fazer
entender pelo sentido do tato (...) é preciso carecer de um sentido a
fim de conhecer as vantagens dos símbolos destinados aos que restam (Idem, Ibidem).
Os acordos silenciosos engendram inconscientemente nas culturas, por meio de
gestos como modos de se comunicar. Estes interferem intimamente nas maneiras como
cada sujeito age, assim como em suas expressões de ideias; também se pode verter,
76
apesar de não necessariamente, para a linguagem articulada. Desta forma, pode-se
“traduzir” a maioria dos gestos, articulando e dando significados com palavras. No
entanto, há gestos intraduzíveis em palavras. A exemplo disso temos o teatro que
apresenta frequentemente gestos sublimes à eloquência da oratória, o que nem sempre
pode ser traduzido.
Afirmei que a pantomima é uma parcela do drama; que o autor deve
dedicar-se a ela seriamente; que se a pantomima não for algo familiar e presente para ele, não será capaz de começar, desenvolver ou terminar a
cena com alguma verdade; e que muitas vezes deve-se escrever o gesto
no lugar do discurso. (DIDEROT, 1986, p. 117).
A expressão por movimentos corporais postula, para Diderot, a qualidade da
cena, uma vez que em ato, no palco, existe um jogo entre atores que só a pantomima
pode dar conta, por ser essa “facilitadora das impressões” que chega até o coração dos
espectadores. Assim, o filósofo afirma que “há cenas inteiras em que é infinitamente
mais natural que os personagens se movam do que falem” (Idem, Ibidem).
Diderot insiste sobre a importância de uma observação atenta às ações naturais
do mundo, para que assim os caracteres expressos pelos comediantes se tornem e
tenham a devida compreensão do significado de uma imagem. O filósofo entende que
no teatro, a partir da força do sentido e pelas cenas patéticas, as ações conseguem afetar
muito mais que os discursos. De tal modo: “Uma das principais diferenças entre o
romance doméstico e o drama é que o romance segue o gesto e a pantomima em todos
os detalhes, e o autor se dedica principalmente a pintar os movimentos e impressões;
enquanto o poeta dramático lança a respeito apenas uma palavra, de passagem.” (Idem,
p. 124).
3.6. A constituição do gosto.
No capítulo final intitulado “Dos autores e dos críticos”, contido no Discurso
sobre a poesia dramática, Diderot faz uma observação sobre o papel que exerce o
crítico e o autor, demonstrando suas importâncias e problemáticas e etc...
Diderot inicia escrevendo o que terceiros dizem sobre os críticos: “Os viajantes
falam de uma espécie de homens selvagens, que sopram nos passantes agulhas
77
envenenadas. É a imagem de nossos críticos” (DIDEROT, 1985a, p. 195). Para ele, essa
afirmação parece exagerada. Com isso, diz sobre os críticos de seu tempo: “eles se
assemelham bastante a um solitário que vivia no fundo de um vale cercado de colinas.
Esse espaço limitado para ele era o universo” (Idem, Ibidem). Como para eles tudo se
conhece através daquele ponto de vista, acham que já sabem e já viram tudo. Ao saírem
de seu “mundo particular” e percorrerem caminhos, os quais nunca antes haviam visto,
espantam-se, admiram-se e mudam de discurso; agora, não sabem de nada, não viram
nada.
O crítico faz o papel de quem se espanta diante do que não conhece, ao mesmo
tempo em que é aquele ser que se julga sábio. Ele está no posto da ignorância. Aqui o
enciclopedista faz uma crítica aos que se colocam em um patamar acima dos outros,
sem ao menos saber se posicionar diante do mundo que o cerca. Segundo o
enciclopedista, a posição dos críticos de seu tempo assemelhava-se a indivíduos que
nunca saem de suas choupanas, nunca perdem a elevada opinião de si próprios. Isso os
levam a uma análise um tanto que rasa das coisas, sendo muitas vezes irrelevante ou até
mesmo desconexa com a realidade na qual se viviam.
No tocante aos autores, seus contemporâneos, Denis Diderot diz que o autor em
sua função tem um papel vão, uma vez que ele próprio se julga em plena condição de
dar lições ao público. Mais vão ainda é o papel do crítico, pois é quem se julga com o
dever de dar lições para os autores, os quais também se julgam os únicos capazes de
direcionar o público. De tal modo, autor e crítico usam de artimanhas para atraírem
adeptos e seguidores entre o público.
O autor diz: “Senhores, escutai-me; pois sou vosso mestre”. E o crítico: “É a mim, senhores, que cumpre escutar; pois sou o mestre de
vossos mestres”. Quanto ao público, toma o seu próprio partido. Se a
obra do autor é má, zomba dela, assim como das observações do crítico, caso sejam falsas. O crítico brada depois disso: “Ó tempo! Ó
costume! O gosto está perdido!” e ei-lo consolado. (Idem, Ibidem).
Contudo, o público age de modo imparcial: ora se encontra favorável ao crítico,
ora ao autor. Se a obra for má, zombam e maldizem a obra. Igualmente fazem com as
observações dos críticos e, se acham falsa suas censuras, nem as ouvem e muito menos
as seguem.
Diderot observa que a crítica age de modo distinto quando se trata da análise de
uma obra de um autor que está vivo e de outro que está morto. Quando morto, a crítica
78
realça as suas qualidades e disfarça as imperfeições e defeitos. Se está vivo,
evidenciam-se apenas os defeitos, esquecendo-se de quaisquer qualidades. A explicação
para isto é que, ao passo que os vivos podem ser corrigidos, os mortos não mais terão
recurso para realizar e aprimorar tal feito.
No entanto, demonstra que a mais severa crítica de uma obra é a que é feita pelo
próprio autor, uma vez que ele conhece os seus vícios secretos, aqueles que quase nunca
são encontrados e notados pelos críticos. Isso recorda a frase de um filósofo: “Eles falam
de mim? Ah! Se me conhecessem, como eu me conheço!” (EPICTETO apud DIDEROT,
1985a, p. 195).
O Enciclopedista, após demonstrar as facetas dos autores e críticos de seu tempo,
recorre aos autores e críticos antigos e comenta que principiam por se instruir e nunca
entram na carreira das letras antes de sair das escolas de filosofia. Diderot explica que no
século XVIII, todos estão apressados para aparecer, dizer algo, deixar sua marca no
mundo, e não são, talvez, os homens de gênio, nem esclarecidos o bastante e, tampouco,
são pessoas de bem49
. De tal maneira, compreende que isso corrompe o gosto por não se
levar em conta quem faz ou direciona o belo e o bom em meio à sociedade. Se o sistema
moral está corrompido, é inevitável que o gosto seja falso.
A verdade e a virtude são amigas das belas-artes. Quereis ser autor?
Quereis ser críticos? Começai por ser homem de bem. Que esperar de
quem não pode afligir-se profundamente? E de que me afligirei eu profundamente, senão da verdade e da virtude, as duas coisas mais
poderosas da natureza? (DIDEROT, 1985a, p. 196).
Por conseguinte, Diderot exemplifica a formação do caráter de um indivíduo,
através da interação de três figuras comuns em qualquer coletividade: o avaro, o
supersticioso e o hipócrita. Ainda, detém-se mais no primeiro tipo. Assim, diz que o
homem avaro é pouco confiável e não se pode esperar dele algo grande: “esse vício
apouca o espírito e estreita o coração” (Idem, Ibidem). O avaro não se sensibiliza com a
dor alheia; é duro, não conseguindo por isso, atingir o sublime por estar sempre
preocupado com seu cofre, com seu pedaço de metal amarelo. Além de se concentrar em
si mesmo, desconhece que o tempo e a vida são breves e, para ele, a felicidade do outro
não faz sentido. Desse modo, o enciclopedista diz o que segue: “Jamais conheceu o prazer
de dar a quem carece, de aliviar quem sofre, e de chorar com quem chora. É mau pai, mau
49 Neste ponto compreende-se que o vício pode tomar conta da sociedade, uma vez que ela valoriza
apenas o saber sem analisar as questões virtuosas dos indivíduos.
79
filho, mau amigo, mau cidadão. Na necessidade de escusar-se de seu vício, formou para si
um sistema que imola todos os deveres à sua paixão.” (Idem, Ibidem).
Por sua vez, o homem supersticioso é outro tipo que não é tocado pelo que é
belo e bom: possui a vista perturbada. O hipócrita, por fim, possui o coração falso.
(Idem, Ibidem).
Ao pensar esses tipos que a sociedade esclarecida produz, carregados de vícios
problemáticos para a formação íntegra de um homem que busca a virtude, Diderot
aconselha o autor no ato da escrita para seu público. Deve-se sempre buscar a máxima
da virtude e as pessoas que têm práticas virtuosas. Desse mesmo modo, também o teatro
deve ter a função moral de exaltar à virtude. Tal como Maria das Graças de Souza
(2002, p. 103-4) afirma:
(...) após um espetáculo, o ideal seria que o perverso deixasse o
camarote menos inclinado a praticar o mal, como se um orador severo e duro tivesse ralhado com ele. Aliás, segundo Diderot, todas as artes
de imitação deveriam ter o objetivo comum de fazer uma convocação
geral para que todos se unam nesse empreendimento pedagógico-moral.
Neste ponto da discussão, Diderot, na figura de Aristo50
, nos conduz a pensar
sobre como se dá a formação do gosto e quais são os meios para compreensão do que
pode ser verdadeiro, bom e belo, uma vez que se deve levar em conta que os homens são
múltiplos e as formas de interações sociais também são: “Estudei muito: chamam-me o
Filósofo. Se, entretanto, se apresentasse aqui alguém que me dissesse: ‘Aristo, o que é o
verdadeiro, o bom e o belo?’ Teria eu minha resposta pronta? Não. Como, Aristo, não
sabeis o que é o verdadeiro, o bom, o belo; e suportais que vos chamem de filósofo!”
(DIDEROT, 1985a, p. 196).
Aristo esclarece o quão difícil é responder à pergunta do que é verdadeiro, bom e
belo, por compreender que não há em toda a espécie humana dois indivíduos que
disponham de alguma semelhança. Compreende que tudo tem uma vasta diversidade,
desde a organização geral das coisas até os sentidos, a figura externa, as vísceras. Tudo
que existe tem uma grande diferença e é preciso saber distinguir com atenção e criticidade
as multiplicidades do mundo.
50 O próprio Diderot.
80
As figuras, os músculos, os sólidos, os fluidos, tem sua variedade. O
espírito, a imaginação, a memória, as ideias, as verdades, os prejuízos,
os alimentos, os exercícios, os conhecimentos, as condições, a educação, os gostos, a fortuna, os talentos, tem sua variedade. Os
objetos, os climas, os costumes, as leis, os usos, as práticas, os
governos, as religiões, tem sua variedade. Como seria, portanto, possível que dois homens possuíssem precisamente o mesmo gosto,
ou as mesmas noções do verdadeiro, do bom e do belo? A diferença
da vida e a variedade dos acontecimentos bastariam por si para
estabelecê-la no julgamento. (Idem, p. 197).
Contudo, as reflexões não param por aqui e os questionamentos do gosto, do
verdadeiro, do bom e do belo estão sempre em voga, porque o homem está condenado a
uma instabilidade perpétua, seja no âmbito físico, seja no moral. Somente por meio da
memória que se pode entender quem se é, e o que é o coletivo; assim como também se
pode entender que este indivíduo, se faz presente para si e para o outro. Mesmo assim,
ao longo do tempo tudo muda: o corpo já não é o mesmo e nem os quereres
permanecem iguais. Portanto, como é possível que haja um só entre nós que conserva
durante toda a existência o mesmo gosto, e que profere os mesmos julgamentos sobre o
verdadeiro, o bom e o belo? As revoluções, causadas pela aflição e pela perversidade
dos homens, bastam por si para alterar seus julgamentos. (Idem, Ibidem).
O personagem mais uma vez se interroga na tentativa de encontrar respostas, de
forma mais coerente: como pode com tantas multiplicidades se configurar no homem
um único modelo a que esse pode seguir? Então, examina e conclui que cada sujeito
nunca pode ter um olhar único para as questões do gosto. Assim, enquanto todos tomam
a si mesmos como modelo e como juízes nunca há um acordo entre as coisas. Afinal,
existem infindas medidas quanto infinitos sujeitos. Desse modo, é necessário buscar a
justa medida fora do indivíduo, pois este tem invariavelmente, “julgamentos que podem
ser falsos e todos incertos. ” (Idem, Ibidem).
Outrossim, é imprescindível a busca de um modelo ideal, de um homem ideal
que se constitua por elementos constantes – sendo estes elevados, observados, estudados
a todo o momento e que devem ser encontrados na natureza. Deve ser então, um
composto de elementos, tal como fazem os antigos escultores.
(...) sendo o homem ideal que procuro um composto como eu, os
antigos escultores, ao determinarem as proporções que lhes pareceram
mais belas, fizeram uma parte de meu modelo... Sim. Tomemos esta estátua, e animemo-la (...). Concedamos-lhe os órgãos mais perfeitos
que o homem possa ter. Dotemo-la de todas as qualidades que são
81
dadas a um mortal possuir, e nosso modelo ideal estará feito. (Idem,
Ibidem).
Ainda assim o filósofo compreende que, para a constituição desse indivíduo, é
preciso haver conhecimentos e agregações de tipos físicos, naturais e morais. Aristo sem
embargo, se coloca em dúvida e reflete que mesmo com todo esse aparato e saber, seja
pela arte ou ciência, o estudo deve ser constantemente aprofundado, analisado e revisto.
Mesmo assim, o “modelo geral ideal é impossível de formar, a menos que os deuses me
concedam sua inteligência e me prometam sua eternidade: ‘eis-me, portanto, recaído nas
incertezas, de onde me propusera sair’” (Idem, Ibidem).
A ética para Diderot, conforme Guinsburg (2001, p. 104) elucida, é o nervo
motor de tudo quanto diz respeito ao humano. Desta maneira, tanto em política quanto
em estética a chave será sempre a busca da verdade e da virtude, porque são amigas das
belas artes. Sendo que, o valor da arte não está em seu aspecto formal, a técnica em si
sem ideias, é insuficiente e estéril.
O oficiante do ritual é o artista, mediador entre seus modelos ideias e o estado de natureza. E quanto mais frio e deliberado o entusiasmo de
sua invocação, mais clara e precisa será a sua execução e maior o seu
poder de sensibilização, o sopro que universaliza a obra e inspira o seu caráter exemplar, demiurgo da virtude edificante da arte. (Idem, p.
105-6).
O personagem infere com pesar, algumas ideias sobre o modelo ideal de homem.
Nesta forma, ao analisar com maior profundidade tanto o escultor, quanto o homem de
letras percebe que também utilizam do mesmo artifício da imitação, para a formação de
um tipo ideal. Portanto, o modelo ideal tem mais minúcias cada vez que, o
conhecimento e o estudo se ampliam não havendo com isso, nenhum indivíduo que
julgue de forma mais igual que outro. Neste âmbito, ao compreender o que é um homem
de gosto, observa que se este modelo ideal existe e junto a ele todas as perfeições para a
formação da virtude, na certa se trata de uma quimera.
Aristo se interroga quanto ao que faz com o título de filósofo que lhe atribuem, e
se existe tal modelo ideal. Ainda, percebe que deve agir da mesma maneira que os
pintores e escultores, os quais podem modificar as suas obras segundo as circunstâncias
que lhes foram atribuídas ou, na qual estão envoltos. Assim sendo: “É o estudo das
paixões, dos costumes, dos caracteres, dos usos, que ensinará ao pintor do homem a
82
alterar seu modelo e a reduzi-lo do estado de homem ao estado de homem bom ou mau,
tranquilo ou colérico. ” (DIDEROT, 1985a, p. 198).
Com isso, Aristo aprende e se dedica à busca do modelo ideal, em uma profunda
dedicação aos estudos da história, da filosofia, da moral, das ciências e das artes. Deste
modo, entende e pode ensinar, por meio da virtude, o que é ser um homem de gosto,
porque ele próprio se torna esse homem superior, o qual pretende e se preocupa Diderot.
Aristo agora é um homem de bem, instruído, de gosto, grande autor e crítico excelente.
(Idem, Ibidem).
83
Considerações Finais
No século XVIII francês, com as muitas modificações na sociedade (ascensão da
burguesia, Revolução Francesa e etc.), os modos de vida transformaram-se fortemente. O
sujeito político – cidadão – foi uma “invenção” histórico-humana da época para propor
acordos sociais. Concomitantemente, fez-se necessário engendrar novos costumes, moral
e leis para compreender e constituir todas as ações dentro da sociedade. Junto a isso,
houve desenvolvimento das ciências, valorizando a razão como agente do processo social
e cultural. A razão como dominadora da natureza e de todas as formas materiais da vida
se contrapôs aos ideais clérigos, ainda vigentes à época, que estavam pautados em
dogmas.
As relações estabelecidas em sociedade estavam pautadas em códigos
constituídos por leis que, firmadas na moral da “boa sociedade”, precisavam do outro –
indivíduo – para que fossem possíveis as trocas materiais, política, econômica, social e
de ideias, consolidadas em interesses particulares com possibilidade de vir a ser
universalizada.
Além disso, as formas de vida se davam pela separação entre espaço público e
espaço privado. Isto possibilitara o reconhecimento dos direitos e dos deveres do povo –
poder político, autonomia, liberdade de expressar anseios – por conta do século XVIII ser
o período de exaltação da razão. O indivíduo era o centro do conhecimento e da cultura.
Assim se fez necessário recorrer, para compreender aquela separação e as formas de vida
e suas transformações, vigentes no século às reflexões sobre o teatro na concepção de
Denis Diderot.
As questões, que abordamos por meio do pensamento de Diderot, possibilitou
compreender os problemas e a importância que constitui a arte, em especial no tocante ao
teatro, no pensamento do filósofo. Assim, vislumbramos os novos rumos que o
enciclopedista possibilitou para a cena do teatro moderno, o gênero sério ou drama, o qual
inovou o modo de retratar a vida no século XVIII. Também no que diz respeito aos
modos de lidar e entender as interações, que o cidadão realiza em público, com a
natureza, em seus espaços sociais de convívio, além de aprofundar acerca das técnicas e
teorias que dizem respeito aos atores, suas formas de atuação e a constituição de uma
84
personagem que deve sempre estar em consonância com a natureza pela apuração da
razão.
Nesse sentido, ao representar, o sujeito toma contato com as obras dos poetas,
com seu meio e suas formas de se relacionar. Por meio disso, engendra suas várias
personagens. Não obstante, segundo a teoria do Paradoxo, necessitava em primeiro
lugar, da observação atenta para o mundo natural, uma vez que era pela natureza como
fundamento essencial de sua prática, que o ator consegue retirar os modos de vida para a
constituição de suas personagens. Desta forma, a natureza oferece artifícios, dos quais o
ser humano se vale para transformar, imitar, representar e agir em sociedade para
formalizar uma virtude.
A teoria da formação do bom ator, contida no Paradoxo possibilitou um novo
olhar para a arte de dramatizar uma cena. Vimos com isso como o indivíduo, que era o
comediante, deve exercer um olhar profundo para a natureza, por ser aquele que tem o
poder de penetrar no mundo para retirar argumentos, formas, cores, jeitos, modos,
cultura, sons e movimentos, sem deixar de ser ele próprio. Através disso, molda uma
personagem, pois quem se deparar diante da imagem construída pelo comediante verá
uma representação tão fidedigna do mundo que ninguém poderá compreendê-lo de
outro modo, uma vez que utiliza a persuasão e um modelo ideal para transmitir algo por
quem representa. Portanto, a necessidade dos artifícios se faz de extrema necessidade
para o ator realizar sua interpretação para o mundo que o circunda.
Diderot exige do ator um distanciamento da sensibilidade pessoal. A sensibilidade
de nada vale para o atuar e se vir à tona no ato da representação, seu esplendor poderá ser
efêmero, fazendo cair, quase que inevitavelmente, em um grande fracasso. Por este motivo
o filósofo alerta que o grande ator deve estudar a natureza a fim de transmiti-la com
racionalidade, porque se não tiver o domínio da ação e dos seus sentimentos, não
conseguirá realizar a arte da boa imitação e muito menos despertar na plateia uma ação
verossímil. Desta maneira, não corroboraria, de modo pedagógico, para ações virtuosas.
Este didatismo pedagógico é imprescindível para o teatro e de suma importância para
apurar a moral e a virtude, uma vez que a plateia, ao sair do espetáculo, estará muito mais
inclinada a praticar o bem.
O ser que está em sociedade poderá até representar em seu cotidiano, no entanto
não priorizará elementos essenciais para a arte da real representação. Estes não são atores,
85
são cidadãos. Ao serem colocados inteiramente sós não saberão o que fazer; caso se
agrupem em duplas ou em trios agirão sem a mínima noção e razão. Mas se fossem dados
elementos para que pudessem ensaiar e exercer alguma função, não mais estarão tão
naturais51
. Sendo assim, para haver algum tipo de atuação representativa, é necessário o
direcionamento do olhar, da sensibilidade e, por fim, o estudo apoiado na racionalidade.
O homem que está em sociedade, portanto, pode simular várias situações, não
havendo a mínima necessidade de que haja nele um sentimento qualquer. Mas essa
atitude, esse papel que o homem tende a representar, é de tremenda dificuldade, muito
maior que o trabalho do ator. Mesmo assim, o homem que está presente nos meios de
socialização da vida necessita compreender-se em suas diversas faces. Muitas vezes
encontra-se em várias situações dentro da sociedade que o obriga a desempenhar um
papel para cada uma a que seja submetido.
Podemos, com isso, concluir que, em sociedade, a utilização de artifícios como
lisonja, hipocrisia e adulação, constitui caráter na maneira de ser em sociedade. Dessa
forma, alguns podem se valer de uma aparência, mesmo que essa nada tenha em relação
com a verdade ou a virtude. Por sua vez, o sujeito pode agir como um ator se
aproveitando de artifícios para persuadir e convencer quem o cerca, normalmente
demonstrando suas virtudes em sociedade. O aparentar ser tem, mais importância e
maior prestigio.
Em um trecho de O Sobrinho de Rameau, Diderot deixa clara a hipocrisia e
crítica à sociedade de sua época: “Elogiamos a virtude, mas odiamo-la, dela fugimos,
mas ela gela de frio, e nesse mundo precisamos ter pés quentes”. A virtude é sempre
louvável e almejada, mas não diverte. O adulador precisa alegrar seus patrões. “Ora, o
ridículo e a loucura é quem fazem rir, é preciso, portanto, que eu seja ridículo e louco”
(DIDEROT, 1962a, p. 33).
Segundo Piva, Diderot aconselha que se deve ser compreensivo com os indivíduos
que tenham uma inclinação à prática do mal, mas não se deve, contudo, ser permissivo e
deixá-los impunes: “por ser um homem um ser modificável, resta ao celerado a esperança
de se corrigir mediante a educação, a arte ou pelo exemplo da execução pública de
51 O homem em sociedade rompe com a natureza ou o modo natural de ser. A sua função junto à natureza
é de domínio. Ao se valer de leis, costumes e regras para se portar ante outros, torna-se um ser artificial.
86
celerados irrecuperáveis” (PIVA, 2003, p. 348). No entanto, é preciso compreender que se
não houver liberdade não existirá vício, muito menos virtude.
Eu: Uma sociedade não deveria ter em absoluto leis más; e se tivesse
apenas boas, jamais seria compelida a perseguir um homem de gênio.
Eu não vos disse que o gênio estava indivisivelmente ligado à maldade, nem a maldade ao gênio. Um tolo será com mais frequência
um malvado do que um homem de espírito. Ainda que um homem de
gênio fosse comumente de duro trato, difícil, espinhoso, ainda que
fosse um malvado, o que ireis concluir daí?Ele: Que era bom para ser afogado. (DIDEROT, 2006, p. 48-9).
A moral em Diderot é paradoxal52
. Nesse âmbito, aparece não só na estética do
filósofo, mas também em outros temas, sobretudo na moral e política. Assim, comenta
Maria das Graças de Souza (2002, p. 100):
(...) paradoxo do homem virtuoso que, embora reconhecendo que sua
vontade é sempre determinada, estabelece para si mesmo normas de conduta como se ele fosse livre. Além disso, num primeiro momento,
essas normas em si mesmas são paradoxais na medida em que
consistem ao mesmo tempo na busca do prazer e no domínio da razão
sobre os sentimentos e as paixões.
Muitos comentadores concordam que no pensamento de Diderot nada é linear.
Assim, de acordo, com Piva (2003, p. 349-50),
sua moral materialista justifica-se paradoxalmente (...) o sábio
materialista é aquele que, por intermédio da sua razão, empenha-se em
conter, sacrificar ou superar determinadas inclinações da sua organização, ou melhor, de sua natureza humana, procurando
combinar, pela justiça, a sua felicidade individual com seus atos.
Por fim, como acrescenta Fontenay as preocupações com a verdade e a justiça
nunca deixaram de ser refletidas e aprofundadas no pensamento de Diderot. Por este
motivo, suas ideias sempre estão em movimento, fazendo com que o leitor também se
movimente. Os interlocutores conseguem atravessar como veteranos e pioneiros todos
os domínios do conhecimento. Diderot nunca deixa de agitar o leitor, mesmo que
suavemente com algo que é da ordem do desejo.
Sedução, o ato de partilha e confronto, que formam o espírito da
conversa, então proposto como regras para o escritor; não tem “como
um guia ao invés de uma impetuosidade natural.” Diderot nunca negou
a confissão que ele fez para Naigeon: “eu componho, eu não sou o autor. Leio ou converso, interrogado ou respondo Eu não sou o autor...”
Mas aqueles muito numerosos, que tenham retornado tais contra dita
52 “Entendia-se por paradoxo no século XVIII tudo aquilo que disse aparentemente absurdo, embora no
fundo, fosse verdadeiro.” (PIVA, 2003, p. 348).
87
confidência não tenham entendido que esse gosto do plágio e essa
aceitação do anonimato dependia de um projeto de escrita: a realização
indistinções de vozes. (FONTENAY, 1988, p. 314).
88
REFERÊNCIAS
ARISTÓTELES. “Poética. Livro II”. In: Col. Os pensadores. Seleção de textos de José
Américo Motta Pessanha; trad. Vicenzo Cocco. São Paulo: Abril Cultural, 1979, p. 237-
270.
BIANCHI, Lorenzo. “Voltaire, Genebra e as ideias republicanas.” In: Revista Dois
Pontos. Curitiba-PR; São Carlos-SP, vol. 9, n. 3, p.45-67, dezembro, 2012.
CARLSON, Marvin. Teorias do teatro: estudo histórico-crítico dos gregos à atualidade.
Trad. Gilson César Cardoso de Souza. São Paulo: UNESP, 1997.
CASSIRER, Ernest. A filosofia do Iluminismo. Campinas: Ed. Unicamp, 1997.
CONDORCET, M. Le Marquis de. Vie de Voltaire. Tome Premier. Londres, 1840.
Disponível em:
https://books.google.com.br/books?id=eWNvVj2_o58C&pg=PA14&dq=vie+de+voltair
e+condorcet&hl=ptBR&sa=X&ved=0ahUKEwjIyJmDifHNAhXHOiYKHae5BUEQ6A
EIKzAC#v=onepage&q=vie%20de%20voltaire&f=false. Acesso em: maio de 2016
DIDEROT, Denis. Le Salon de 1767 [suivi de: Pensées détachées sur la peinture, la
sculpture, l'architecture et la poésie]: Volume 1. Paris, 1799.
___. Jacques: o fatalista. São Paulo: DIFEL, 1962.
___. O sobrinho de Rameau. Trad. Antônio Bulhões e Miécio Tati. São Paulo: Difusão
Européia do Livro, 1962a.
___. Oeuvres philosophiques. Paris: Garnier, 1964.
___. “Carta sobre os Cegos”. In: Col. Os Pensadores. 2ª ed.. Trad. Marilena de Souza
Chauí; Jacó Guinsburg. São Paulo: Abril Cultural, 1985, p.1-37.
___. “Dos Autores e dos Críticos”. In: Col. Os Pensadores. 2ª ed.. Trad. Marilena de
Souza Chauí; Jacó Guinsburg. São Paulo: Abril Cultural, 1985a, p. 193-198.
___. “O Sombrio de Rameau”. In: Col. Os Pensadores. 2ª ed.. Trad. Marilena de Souza
Chauí; Jacó Guinsburg. São Paulo: Abril Cultural, 1985b, p. 39-82.
89
___. “Sonho de D’Alembert”. In: Col. Os Pensadores. 2ª ed.. Trad. Marilena de Souza
Chauí; Jacó Guinsburg. São Paulo: Abril Cultural, 1985c, p. 93-121.
___. Discurso sobre a poesia dramática. Trad. L. F. Franklin de Mattos. São Paulo:
Editora Brasiliense, 1986.
___. Da interpretação da natureza e outros escritos. Trad. Magnólia Costa Santos. São
Paulo: Iluminuras, 1989.
___. ”Paradoxo Sobre o Comediante”. In: Obras II: Estética, Poética e Contos.
Trad.(org. e notas) J. Guinsburg. São Paulo: Editora Perspectiva, 2000, p.28-82.
___. “Ensaio sobre a pintura”. In: Obras II: Estética, Poética e Contos. Trad. (org e
notas) J. Guinsburg. São Paulo: Editora Perspectiva, 2000a, p.161-213.
___. Discurso sobre a poesia dramática. 2. ed.. Trad. Franklin de Matos. São Paulo:
Cosac Naify, 2005.
___. Obra III: O sobrinho de Rameau. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva,
2006.
DIDEROT, Denis; D’ALEMBERT, Jean le Rond. Discurso Preliminar e outros textos.
São Paulo: UNESP, 1989.
___. Verbetes políticos da enciclopédia. Trad. Maria das Graças de Souza. São Paulo:
Discurso Editorial; UNESP, 2006.
___. Encyclopédie. Disponível em: http://xn--encyclopdie-ibb.eu/. Acesso em: maio de
2016.
FONTENAY, Elisabeth de. Diderot o el materialismo encantado. México: Fondo de
cultura econômica, 1988.
GIANI, Luiz A.. “Rousseau: o enciclopedista e compositor, contra a razão”. In: Revista
Espaço Acadêmico. Ano II, nº 18, novembro de 2002. Disponível em:
http://www.espacoacademico.com.br/018/18cgiani.htm. Acesso em: nov. de 2014.
GUINSBURG, Jacó. “Denis Diderot”. In: DIDEROT – Colóquio realizado pela
Sociedade Portuguesa de Estudos do século XVIII. Lisboa: Universitária Editora, 1987.
90
___. Dennis Diderot: o espírito das “luzes”. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001.
GUISLAIN, Gilbert; TAFANELLI, Charles. VOLTAIRE: la collection “Panorama d’un
auteur”. Studyrama. França, 2005. Disponivel em:
https://books.google.com.br/books?id=UStt_qd5UeAC&printsec=frontcover&hl=ptBR
&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=onepage&q&f=false. Acesso em: maio de
2016.
GUYOT, Charly. Diderot según Diderot. Barcelona: Editoral Laia, 1973.
HELIODORA, Barbara. O teatro: explicando aos meus filhos. São Paulo: Editora Agir,
1997.
HISASHI, Ida. “La ‘pantomime’ selon Diderot. Le geste et la démonstration morale”.
In: Recherches sur Diderot et sur l'Encyclopédie, nº 27, octobre, 1999. Disponível em:
http://rde.revues.org/871. Acesso em: fev. de 2016.
LEAL, Djaci Preira; OLIVEIRA, Terezina. “A educação na França Iluminista: Voltaire
e o ensaio sobre a moral e os costumes dos povos”. In: Revista HISTEDBR On-line, n.
25, Campinas, mar. 2007, p.44 –53. Disponível em:
http://www.histedbr.fae.unicamp.br/revista/edicoes/25/art04_25.pdf. Acesso em: julho
de 2014.
LÉVIS-STRAUSS, Claude. O Pensamento Selvagem. Trad. Tânia Pellegrini. Campinas:
Papirus, 2008.
MATOS, L. F. B. Franklin de. “O espetáculo teatral segundo Diderot”. In: Discurso.
Departamento de Filosofia da FFLCH da USP, São Paulo, v. 17, p. 89-117, 1988.
___. “Apresentação e Introdução: Teatro e Amor-Próprio”. In: Carta a D’Alembert.
Trad. Roberto Leal Ferreira. Campinas: Editora da UNICAMP, 1993, p.7 -23.
___. O filósofo e o comediante: ensaios sobre literatura e filosofia na Ilustração. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2001.
___. A cadeia e a guirlanda: Diderot e a arte de seu tempo. In: Revista Olhar, ano: 2, n°
5-6. São Carlos – UFSCar, 2000. Disponível em:
http://www.ufscar.br/~revistaolhar/pdf/olhar5-6/fanto%20matos.pdf. Acesso em:
junho/2016.
91
___. A cadeia secreta: Diderot e o romance filosófico. São Paulo: Cosac Naify, 2004.
___. “A querela do teatro no século no século XVIII: Voltaire, Diderot, Rousseau”. In:
O Que nos Faz Pensar, PUC-RJ, v. 25, p. 7-22, 2009.
MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. Trad. Paulo Neves. São Paulo: Cosac Naify,
2003.
OSBORNE, Harold. Estética e Teoria da Arte: Uma introdução histórica. 3ª ed. Trad.
Octavio Mendes Cajado. São Paulo: Editora Cultrix, 1978.
PRADO Jr., Bento. “Gênese e estrutura dos espetáculos”. In: Estudos Cebrap, nº 14.
São Paulo: Brasiliense, 1975, p. 06-34.
PERROT, Michelle. “A vida em família”. In: ___ (Org.). História da vida privada: da
revolução francesa à primeira guerra mundial. São Paulo: Companhia das letras. 2009,
p. 169-175.
___. “Outrora, em outro lugar”. In: ___ (Org.). História da vida privada: da revolução
francesa à primeira guerra mundial. São Paulo: Companhia das letras. 2009a, p. 14-17.
PIVA, Paulo Jonas de Lima. O ateu virtuoso: materialismo e moral em Diderot. São
Paulo: Discurso Editorial; Fapesp, 2003.
ROMANO, Roberto. Silêncio e Ruído: A sátira em Denis Diderot. Campinas: Editora
da Unicamp, 1996.
ROUSSEAU. Jean-Jacques. “Do contrato social”. In: Col. Os Pensadores. Trad.
Lourdes Santos Machado. São Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 7-152.
___. “Discurso do sobre as ciências e as artes”. In: Col. Os Pensadores. Trad. Lourdes
Santos Machado. São Paulo: Abril Cultural, 1973a, p. 329-360.
___. “Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens”. In:
Col. Os Pensadores. Trad. Lourdes Santos Machado. São Paulo: Abril Cultural, 1973b,
p. 207-328.
___. “Ensaio sobre a origem das línguas”. In: Col. Os Pensadores. Trad. Lourdes
Santos Machado. São Paulo: Abril Cultural, 1973c, p. 153-206.
92
___. Carta a D’Alembert. Trad. Roberto Leal Ferreira. Campinas: Editora da
UNICAMP, 1993.
___. Emílio ou da educação. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
SENETT, Richard. O declínio do homem público: as tiranias da intimidade. São Paulo:
Companhia das Letras, 2001.
SOËTARD, Michel. Jean-Jacques Rousseau. Recife: Fundação Joaquim Nabuco;
Editora Massagana, 2010.
SOUZA, Maria das Graças de. Natureza e Ilustração: sobre o materialismo de Diderot.
São Paulo: UNESP, 2002.
STRECK, Danilo R.. Rousseau & a educação. 2ª ed.. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.
TROUSSON, Raymond. Diderot. Paris: Editions Gallimard, 2007.
VOLTAIRE. Le Mondain (1736). Disponível em: http://www.cndp.fr/archive-
musagora/agedor/textes /francais/Voltaire.pdf. Acesso em: maio de 2016.
___.Oeuvres complètes. Tome I (1817). Disponível em:
https://play.google.com/books/reader?id=lxcAAAAYAAJ&printsec=frontcover&output
=reader&hl=pt_BR&pg=GBS.PP7. Acesso em: maio de 2016.
___. Cartas iluministas: correspondência selecionada e anotada. Trad. André Telles e
Jorge Barros. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.