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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Programa de Pós-graduação em Letras Gustavo Miranda Guimarães A construção dos objetos discursivos Revolução e Antirrevolução em Preâmbulos de Atos Institucionais, na Nova Ordem Pós 64 Belo Horizonte 2016

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS

Programa de Pós-graduação em Letras

Gustavo Miranda Guimarães

A construção dos objetos discursivos Revolução e Antirrevolução em Preâmbulos de Atos Institucionais, na Nova Ordem Pós 64

Belo Horizonte

2016

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Gustavo Miranda Guimarães

A construção dos objetos discursivos Revolução e Antirrevolução em Preâmbulos de Atos Institucionais, na Nova Ordem Pós 64

Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor em Linguística e Língua Portuguesa.

Professora Orientadora: Doutora Juliana Alves Assis.

Área de Concentração: Linguística e Língua Portuguesa.

Belo Horizonte

2016

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FICHA CATALOGRÁFICA

Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Guimarães, Gustavo Miranda

G963c A construção dos objetos discursivos Revolução e Antirrevolução em

Preâmbulos de Atos Institucionais, na Nova Ordem Pós 64 / Gustavo Miranda

Guimarães. Belo Horizonte, 2016.

222 f.:il.

Orientadora: Juliana Alves Assis

Tese (Doutorado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.

Programa de Pós-Graduação em Letras.

1. Análise crítica do discurso. 2. Referência (Linguística). 3. Semiótica. 4.

Comunicação na política. 5. Decretos-leis – Brasil – Análise. 6. Brasil - História -

Revolução, 1964. 7. Brasil – Política e governo – 1964-1985. I. Assis, Juliana

Alves. II. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-

Graduação em Letras. III. Título.

CDU: 800.855

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Gustavo Miranda Guimarães

A construção dos objetos discursivos Revolução e Antirrevolução em Preâmbulos de Atos Institucionais, na Nova Ordem Pós 64

Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor em Linguística e Língua Portuguesa.

Área de Concentração: Linguística e Língua Portuguesa.

_______________________________________________________________

Profª. Drª. Juliana Alves Assis – Orientadora – PUC Minas _______________________________________________________________ Prof. Dr. Adilson Ribeiro de Oliveira – Instituto Federal de Educação, Ciência e

Tecnologia de Minas Gerais – IFMG/Ouro Branco

Profª. Drª Luciana Pereira Queiroz Pimenta Ferreira – Faculdade Mineira de Direito – PUC Minas

_______________________________________________________________

Profª. Drª. Daniella Lopes Dias Ignácio Rodrigues – PUC Minas

Profª. Drª. Maria Angela Paulino Teixeira Lopes – PUC Minas

Belo Horizonte, 17 de março de 2016.

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DEDICATÓRIA DA TESE E DA VIDA

À Alciene, que, embora já houvesse nascido, muito tardou a chegar.

Ao Renato Teixeira Miranda Guimarães, que, se tenho ideias para teses, tem ideias para

a vida.

DEDICATÓRIA METAFÓRICA DE UMA PAIXÃO INCONTIDA

Esta tese é dedicada a todos aqueles que torceram e torcem contra o vento; a todos

aqueles que acreditaram e acreditam; a todos aqueles que sabem que caiu no Horto, tá

morto.

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AGRADECIMENTOS

Ao Guimarães, pai e professor exemplares.

À Vania, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe.

À professora Márcia Marques de Morais, pela acolhida e pela disposição em ajudar.

Ao professor Audemaro Taranto Goulart, pelas perguntas sempre instigantes.

À professora Juliana Alves Assis, por ter me recebido de volta.

À Márcia Helena Amorim, que, tendo amor até no nome, é, para mim, grande exemplo

de luta e de determinação.

À Vanilda Carneiro de Melo Margarida, grande amiga e grande conselheira.

À Silvana Marchesani, pelos ouvidos e ombros sempre presentes e, principalmente, pela

imensa amizade.

À Helena Maria Braga Silva, que, a cada dia, vem se tornando uma grande amiga.

À Heloísa Batista de Oliveira, grande amiga, pelos conselhos espirituais.

À Denise Borille, pela amizade, pelas ideias fortes, pelos diálogos e pela gentil

tradução.

Ao Jorge Posada e à Alzira, pelo auxílio preciso, que veio na hora certa.

Ao teto do meu quarto, grande amigo e exímio conselheiro.

Às noites de insônia, pelas ideias que somente elas sabem incutir.

Ao leitor, que atribuirá o sentido que falta a este texto.

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RESUMO O presente trabalho tem por objetivo principal analisar o processo de referenciação (dialógico por natureza) desenvolvido nos preâmbulos dos Atos Institucionais números 1, 2 e 5, editados pelo grupo que assumiu o poder após o Movimento Armado de 1964. Uma das consequências desse processo é a atribuição, nesses instrumentos, dos rótulos “Revolução” e “Antirrevolução” aos grupos que disputavam o poder naquela ocasião. Tais rótulos serão aqui tomados como signos, como resultado de uma escolha ativa por parte de um locutor (que se movimenta no grupo categorizado como “Revolução”), que a realizou a partir de um processo interpretativo da realidade na qual se inseria, gerador de respostas ativas por parte de outros interlocutores. No que se refere ao aparato teórico construído para esta pesquisa, diga-se que seu foco consiste, basicamente, na aplicação dos estudos da referenciação (com maior foco), em profunda inter-relação com o princípio do dialogismo, e da teoria da enunciação aos textos selecionados para análise. Nesse sentido, noções como polifonia, locutor, enunciado, enunciador e gênero discursivo, entre outras, serão mobilizadas na construção desta tese. Assim, a abordagem aqui desenvolvida diz respeito à atividade de linguagem, à construção de objetos de discurso, ao dialogismo que ocorre na construção daqueles objetos. As análises preliminares realizadas para a elaboração deste trabalho mostraram riqueza de movimentos enunciativos presente, para o que interessa aos objetivos da tese, nos preâmbulos dos Atos Institucionais selecionados, através dos quais o locutor desenvolveu processo de referenciação a respeito da realidade referenciada. Nessa realidade estão incluídos, para o que interessa a esta tese, os fatos sociais então vivenciados e os sujeitos que ali transitam. No desenvolvimento deste trabalho, buscar-se-á, então, analisar o processo de (des)(re)construção dos objetos de discurso criados pelos locutores presentes nos textos selecionados, bem como mostrar os interesses ali presentes, que se encontram, em muitas ocasiões, em diálogo com diversas camadas sociais em ação no Brasil dos anos 1960 e, em outras, com elas entraram em confronto. As análises a serem desenvolvidas nesta tese buscarão relacionar os textos componentes do corpus, bem como os estudos da referenciação, com a visão bakhtiniana da linguagem como atividade discursiva dialógica, desenvolvida nos e influenciada pelos campos de comunicação humana, o que inclui a abordagem conjunta da polifonia e do consequente embate de vozes travado na construção de objetos de discurso. Essas vozes são postas em cena a partir de trabalho enunciativo do locutor presente nos preâmbulos. Tal trabalho permite constatar as lutas hegemônicas existentes no Brasil de então, bem como a busca pelo silenciamento de uma voz pelo relevo de outra. A importância desta tese pode ser, também, notada a partir da escolha dos textos a serem aqui trabalhados, ou seja, preâmbulos e considerações iniciais de Atos Institucionais editados nos anos iniciais do Regime Militar de 1964. Enfim, esse tipo de abordagem pode auxiliar na (re)construção de uma verdade histórica a respeito dos rótulos atribuídos aos grupos em disputa, na época analisada, uma vez que mostrará as marcas deixadas pelos locutores e pelas instituições às quais se ligam. Palavras-chave: Dialogismo. Referenciação. Atos Institucionais. Preâmbulos. 1964. Golpe Militar.

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ABSTRACT

The main objective of this work is to analyze the reference process (dialogic by nature) which took place under the preambles of the Institutional Acts numbers 1, 2, and 5, edited by the group that took over power in Brazil after the 1964 Armed Movement. One of the consequences of such process is the assignment of the the labels "revolution" and "counter-revolution" to the groups vying for power at that time. These labels will be here taken as signs, as a result of an active choice on the part of the speaker (who acts within the group categorized as "revolution") and made it possible from an interpretive process of the reality in which he was inserted, thus generating active responses by other parties. With regard to the theoretical framework built for this research, it is said that its primary focus is on the application of reference studies (main focus) and how the selected texts analysed are deeply connected with the principles of dialogism and enunciation theory. In that matter, notions such as polyphony, speaker, utterance, utterer, and gender discourse, among others, will operate as key concepts in the structure of this thesis. The approach developed here concerns the language activity, the construction of speech objects, and the dialogism that occurs in the construction of those objects. Preliminary analyzes for the preparation of this work revealed the presence of a broad range of enunciation movements, according to the goals contemplated by this thesis, under the preamble of the selected Institutional Acts, through which the speaker developed reference process regarding the referenced reality. Such reality comprises, for the purposes of this thesis, the social facts and the subjects who experienced them. In developing this work, it will be sought, then, to analyze the process of (de) (re) construction of the discourse objects created by the given speakers in the selected texts. It will also convey the interests involved back then, which were, in many occasions, either in dialogue with different social classes in Brazil in the 1960's, or in conflict with them. The analyses to be carried out within this thesis will seek to relate the selected texts in its corpus, as well as the reference studies, to Bakhtin's perspective of language as dialogic discursive activity, developed in and influenced by the areas of human communication. According to this view, polyphony and the resulting clash of voices caught in the construction of discourse objects may be addressed jointly. These voices come into play through the enunciative task, performed by the given speaker within the preamble. This work allows us to verify the existing hegemonic struggles in Brazil at the time, as well as their attempt to silence some voices by raising others. The importance of this thesis may also be noticed from the choice of texts to be analysed here, i.e., the preamble and initial considerations of Institutional Acts published in the early years of the 1964 military regime. Finally, such approach can help (re) constructing the historical truth about the labels ascribed to the groups in dispute, along the analyzed period, as it will show the traces left by speakers and the institutions they belong to.

Keywords: Dialogism. Reference. Institutional Acts. Preamble. 1964 Military Coup.

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RESUMEN

Este trabajo tiene como objetivo principal analizar el proceso de referencia (por naturaliza, dialógica) desarrollado bajo los preámbulos de las leyes orgánicas números 1, 2 y 5, editadas por el grupo que tomó el poder tras el Movimiento Armado de 1964. Una de las consecuencias de ese proceso es la asignación en estos instrumentos, de las etiquetas de "revolución" y "Antirrevolução" a los grupos que competían por el poder en aquel momento. Estas etiquetas se entienden aquí como signos, resultado de una elección activa por parte de un hablante (que se mueve dentro del grupo clasificado como "revolución"), que lo hizo desde un proceso interpretativo de la realidad en la cual se insertaba, generador de respuestas activas por parte de otros interocutores. Con respecto al aparato teórico construido para esta investigación, se dice que su atención se centra basicamente en la aplicación de los estudios de referenciación (más centrado) en profunda interrelación con el principio de dialogismo y la teoría de la enunciación a los textos seleccionados para análisis. En este sentido, las nociones tales como polifonía, enunciado locutor, enunciador y el género discursivo, entre otros, se movilizarán en la construcción de esta tesis. El enfoque desarrollado aquí se refiere a la actividad del lenguaje, a la construcción de objetos de discurso, al dialogismo que se produce en la construcción de esos objetos. Los análisis preliminares para la preparación de este trabajo mostraron una riqueza de movimentos de enunciación presentes, por lo que importa a los objetivos de la tesis bajo el preámbulo de los Actos Institucionales seleccionados a través de los cuales el locutor desarrolló el proceso de referencia con respecto a la realidad mencionada. En esta realidad están incluidos, por lo que interesa a esta tesis, los hechos sociales experimentados y los sujetos que por allí pasan. En el desarrollo de este trabajo, se buscará, entonces, analizar el proceso de construcción/desconstrucción de los objetos creados por los locutores presentes en los textos seleccionados, así como mostrar los intereses allí presentes, que se presentan, en muchas ocasiones, en diálogo con las diferentes clases sociales en acción en Brasil en los años 1960 y, en otras, con ellas se enfrentaron. Los análisis que deben realizarse en el ámbito de esta tesis tratarán de relacionar los textos componentes del corpus, así como los estudios de referenciación, con la visión de Bakhtín sobre el lenguaje como actividad discursiva dialógica, desarrollada e influenciada por los campos de comunicación humana, lo que incluye abordar polifonía de las articulaciones y el choque resultante de voces atrapadas en la construcción de objetos del discurso. Estas voces son puestas en escena a partir del trabajo enunciativo del locutor presente en ámbito de los preámbulos. Este trabajo nos permite verificar las luchas hegemónicas existentes en Brasil en aquel momento, así como la búsqueda por silenciar una voz por la relevancia de outra. La importancia de esta tesis puede ser también notada por la elección de los textos que se trabajaron aquí, es decir, el preámbulo ylas consideraciones iniciales de los Actos Institucionales publicados en los primeros años del régimen militar en 1964. Por último, este enfoque puede ayudar a la (re)construcción de una verdad histórica sobre las etiquetas asignadas a los grupos en disputa en el período analizado, ya que mostrará las marcas dejadas por los locutores y las instituciones a las que se unen.

Palabras clave: Dialogismo. Referenciación. Actos Institucionales. Preámbulo. 1964 Golpe de Estado.

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LISTA DE QUADROS

Quadro A – Ato Institucional Número 1: excertos............................................ 94 Quadro B – A Revolução para si e para o outro.................................................. 94 Quadro C – Características e Ações.................................................................... 95 Quadro D – Situação, Grupos, Contrariedade..................................................... 95 Quadro 1 – Ato Institucional Número 1: excertos............................................. 114 Quadro 2 – Ato Institucional Número 1: excertos.............................................. 118 Quadro 3 – Ato Institucional Número 1: excertos.............................................. 119 Quadro 4 – Ato Institucional Número 1: excertos.............................................. 125 Quadro 5 – Ato Institucional Número 1: excertos.............................................. 126 Quadro 6 – Ato Institucional Número 1: excertos.............................................. 127 Quadro 7 – Ato Institucional Número 2: excertos.............................................. 129 Quadro 8 – Ato Institucional Número 2: excertos.............................................. 132 Quadro 9 – Ato Institucional Número 2: excertos.............................................. 134 Quadro 10 – Ato Institucional Número 2: excertos............................................ 136 Quadro 11 – Ato Institucional Número 2: excertos............................................ 140 Quadro 12 – Ato Institucional Número 2: excertos............................................ 142 Quadro 13 – Ato Institucional Número 2: excertos............................................ 146 Quadro 14 – Ato Institucional Número 2: excertos............................................ 146 Quadro 15 – Ato Institucional Número 2: excertos............................................ 147 Quadro 16 – Ato Institucional Número 5: excertos............................................ 148 Quadro 17 – Ato Institucional Número 5: excertos............................................ 148 Quadro 18 – Ato Institucional Número 5: excertos............................................ 152 Quadro 19 – Ato Institucional Número 5: excertos............................................ 155 Quadro 20 – Ato Institucional Número 5: excertos............................................ 156 Quadro 21 – Ato Institucional Número 5: excertos............................................ 157 Quadro 22 – Ato Institucional Número 5: excertos............................................ 158 Quadro 23 – Revolução 1/Revolução 2............................................................... 164 Quadro 24 – Revolução....................................................................................... 165 Quadro 25 – Poder Constituinte.......................................................................... 165 Quadro 26 – Revolução para Si/Revolução para o Outro.................................... 168 Quadro 27 – A Revolução para a Situação.......................................................... 170 Quadro 28 – A Revolução para a Oposição......................................................... 170 Quadro 29 – Revolução....................................................................................... 171 Quadro 30 – Antirrevolução................................................................................ 171 Quadro 31 – Revolução....................................................................................... 172 Quadro 32 – Antirrevolução................................................................................ 172 Quadro 33 – Revolução....................................................................................... 176 Quadro 34 – Antirrevolução................................................................................ 176 Quadro 35 – Características dos Opositores/Ações dos Opositores.................... 178 Quadro 36 – Situação/Grupos/Contrariedade...................................................... 179

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LISTA DE DIAGRAMAS

Diagrama A – Revolução/Antirrevolução........................................................... 96 Diagrama 1 – Revolução/Antirrevolução............................................................ 174 Diagrama 2 – Revolução/Antirrevolução............................................................ 175 Diagrama 3 – Revolução/Antirrevolução............................................................ 176

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LISTA DE GRÁFICOS

Gráfico A – Visão Geral dos Atos Institucionais 1, 2 e 5................................... 97 Gráfico 1 – Visão Geral dos Atos Institucionais 1, 2 e 5.................................... 160 Gráfico 2 – Ato Institucional Número 1.............................................................. 181 Gráfico 3 – Ato Institucional Número 2.............................................................. 184 Gráfico 4 – Ato Institucional Número 5.............................................................. 186

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO................................................................................................ 25

1- O DIREITO PRESENTE NOS PREÂMBULOS..................................... 32

1.1 Teoria da Constituição........................................................................ 32

1.2 Cartografia Simbólica do Direito....................................................... 38

1.3 Doutrina de Segurança Nacional........................................................ 42

2- CONSTRUINDO O ARCABOUÇO TEÓRICO...................................... 46

2.1 Introdução............................................................................................... 46

2.2 O Dialogismo e a Linguagem: relações, implicações,

aprofundamentos.............................................................................................

48

2.2.1 O Dialogismo..................................................................................... 48

2.2.2 A Linguagem...................................................................................... 53

2.2.3 A Palavra............................................................................................ 55

2.2.4 A Interação Verbal............................................................................. 57

2.2.5 O Gênero Discursivo.......................................................................... 58

2.2.6 A Polifonia.......................................................................................... 73

2.3 Referenciação: a construção de objetos de discurso e a influência de

fatores sociais e ideológicos..............................................................................

76

3- METODOLOGIA........................................................................................ 90

4- O PODER NASCIDO EM ABRIL DE 1964............................................. 99 5- OS PREÂMBULOS DOS ATOS INSTITUCIONAIS E A NOVA ORDEM PÓS 64: uma visão dialógica dos processos de referenciação......................................................................................................

110

5.1- Introdução................................................................................................ 110

5.2- O Ato Institucional número 1................................................................. 114

5.3- O Ato Institucional número 2................................................................. 128

5.4- O Ato Institucional número 5................................................................. 147

5.5- Conclusão do capítulo............................................................................. 159

6- CONSTRUINDO O TODO DA OBRA: regularidades enunciativas...... 164

CONCLUSÃO.................................................................................................... 188

REFERÊNCIAS................................................................................................. 194

ANEXOS............................................................................................................. 198

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INTRODUÇÃO

Esse negócio de entender uma coisa, tem que amar.

Quando você ama, isso cria uma capacidade.

Você se interessa pela coisa, você começa a olhar.

(Tom Jobim)

A fim de se introduzir a abordagem do objeto de estudo selecionado que será

realizada, bem como do corpus levantado e sistematizado nesta tese; a fim de se buscar,

desde já, desenvolver um processo de justificativa dessa abordagem, tome-se a frase de

Tom Jobim, citada na epígrafe.

Trazendo esse pensamento para o contexto da pesquisa científica, pode-se

defender que, apesar de haver o risco de o estudioso se apaixonar pelo seu tema de

pesquisa, ou mesmo pelo corpus analisado, a posição do “Maestro Soberano” não pode

ser descartada, afinal de contas, o amor cria a capacidade de olhar para o objeto de

pesquisa com forte interesse, além de levar o pesquisador a buscar, de maneira mais

profunda, porém menos árdua, o conhecimento a respeito de seu objeto. Por fim, o amor

pela coisa estudada, mesmo no caso do processo de conhecimento científico, cria no

estudioso o interesse por buscar novas informações e novos ângulos de análise.

No caso da pesquisa aqui apresentada, pode-se dizer que se enquadra nos dizeres

de Jobim. É possível, assim, dizer que esse objeto e a temática relacionada ao corpus

selecionado são capazes de apaixonar quem se dedica ao seu estudo, tendo em vista sua

contemporaneidade.

A ideia surgida para ser trabalhada nesta tese consiste em pesquisar o processo

de referenciação desenvolvido nos preâmbulos dos Atos Institucionais1 editados pelo

grupo que assumiu o poder após o Movimento Armado de 1964. Esse pensamento

surgiu no momento em que a Constituição da República Federativa do Brasil

completava 25 anos e no qual se marcaram os 50 anos do mencionado Movimento então

vitorioso.

1 Deverá ficar claro, ao longo deste trabalho, que os Atos Institucionais se inscrevem no domínio dos

gêneros normativos, tais como Lei, Resolução, etc.. É característica da construção composicional dos gêneros normativos, via de regra, a presença de duas partes, ou seja, a parte introdutória (considerações iniciais/preâmbulos/exposições de motivos) e a parte normativa propriamente dita. Entendemos, também, que a parte introdutória tem por função apresentar as motivações da parte normativa, facilitando, assim, a interpretação por aquele que busca a aplicação do texto legal dali constante.

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As análises preliminares realizadas para a elaboração deste trabalho partiram da

indagação principal a respeito das influências da dinâmica social nos textos produzidos

no âmbito de uma dada sociedade e mostraram uma grande riqueza de movimentos

enunciativos presente nos Atos Institucionais, seja em sua parte introdutória (constituída

dos preâmbulos e demais considerações preliminares aos artigos e que será objeto das

análises nesta tese), seja em sua parte normativa (constituída dos artigos propriamente

ditos). Percebeu-se, através desses movimentos, que o locutor desenvolveu complexo

processo de referenciação a respeito da realidade referenciada e de vários sujeitos,

principalmente, de si mesmo e de seus opositores. É justamente essa riqueza de

movimentos enunciativos e a constatação desse complexo e dialógico processo de

referenciação que levaram à realização do recorte desenvolvido na elaboração deste

trabalho, o qual será mais bem explicitado no capítulo referente à Metodologia

(Capítulo 3).

Uma vez realizados esses apontamentos, surge a seguinte pergunta: qual seria a

importância de um estudo como o aqui realizado? Um primeiro aspecto a ser aqui

mencionado diz respeito à articulação teórica proposta, que relaciona os estudos sobre

referenciação, trazidos à cena através de autores como Mondada e Dubois (2003),

Marcuschi (2004), Marcuschi (2007), Koch (2013), com a visão bakhtiniana de que a

linguagem é atividade discursiva dialógica, desenvolvida nos e influenciada pelos

campos de comunicação humana. Assim, adiantando a hipótese a ser comprovada a

partir do desenvolvimento desta tese, diga-se que a construção de objetos discursivos, a

partir da prática dialógica da linguagem, é influenciada por fatores de ordem social, que

se verificam nos grupos sociais. Entendemos que essas influências serão sentidas

também na construção dos objetos de discurso aqui selecionados. Além disso, a

abordagem a ser desenvolvida ao longo desta tese permite realizar inserção na polifonia

e no consequente embate de vozes travado na construção de objetos de discurso. Esse

procedimento analítico possibilita a leitura dos mais diversos textos, dentre eles o legal,

ultrapassando, neste caso, uma visão mecânica, que, muitas vezes, perpassa seu estudo

até mesmo pelos especialistas em Direito (a visão de que o texto normativo deve,

simplesmente, ser aplicado ao caso concreto a que se refere), ou seja, o trabalho aqui

desenvolvido pode servir de elemento auxiliar no ensino e desenvolvimento das

atividades de leitura, principalmente, no caso do corpus selecionado para análise, dos

textos jurídicos, que, apesar de seu ar de aparente objetividade, ou mesmo de

neutralidade, são fortemente atravessados por vozes as mais diversas.

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No desenvolvimento deste trabalho, a partir da aplicação das abordagens teóricas

levantadas à análise dos preâmbulos dos Atos Institucionais selecionados, buscar-se-á

reconstruir os objetos de discurso criados pelos locutores presentes nos textos

selecionados, bem como mostrar os interesses ali presentes, que se encontram, em

muitas ocasiões, em diálogo com diversas camadas sociais em ação no Brasil dos anos

1960 e, em outras, com elas entraram em confronto.

Como se sabe, um texto normativo é um comando objetivo e obrigatório,

direcionado, regra geral, a todos os membros de uma sociedade, ou a determinados

grupos de sujeitos, em alguns casos específicos, ou mesmo àqueles sujeitos que se

enquadrarem na conduta ali tipificada, no caso, por exemplo, do Direito Penal. Se, por

um lado, essa caracterização do gênero discursivo texto normativo lato sensu, mais do

que de muitos outros textos, mascara a grande complexidade enunciativa presente nesse

texto, por outro lado, suas considerações iniciais (ou seja, preâmbulos, exposições de

motivos, considerações iniciais propriamente ditas) tendem a explicitar o que levou

dada instituição a elaborar aquela norma. Assim, a importância desta tese poderá ser,

também, notada quando se observar que a leitura aqui proposta para os textos

selecionados permite a identificação do diálogo ali desenvolvido e dos procedimentos

adotados pelo locutor na construção dos objetos discursivos ali apresentados. Esse tipo

de abordagem pode auxiliar na (re)construção histórica a respeito dos rótulos atribuídos

aos grupos em disputa, na época analisada, e também na leitura de outros rótulos

historicamente atribuídos e consolidados a outros referentes, uma vez que mostrará as

marcas deixadas pelos locutores e pelas instituições às quais se ligam; pode, também,

auxiliar na prática de leitura de textos como esse, uma vez que o pano de fundo reside

em teorias que veem a linguagem como atividade discursiva perpassada por fatores

sociais e ideológicos.

Uma vez realizados os apontamentos anteriores, pode-se passar à apresentação

dos objetivos a serem alcançados por esta tese, que são os seguintes:

1- Objetivo geral:

estudar o processo construção de objetos de discurso, com viés dialógico,

que se verifica nos preâmbulos dos Atos Institucionais editados durante o

Regime Militar de 1964.

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2- Objetivos Específicos:

2.1 analisar a relação da construção de objetos de discurso com a luta

hegemônica ocorrida entre os grupos políticos em disputa no

momento histórico aqui referido;

2.2 (re)construir, a partir da abordagem dos preâmbulos dos Atos

Institucionais selecionados, a realidade enunciativa criada com o

objetivo de legitimar ou mesmo de embasar as decisões político-

jurídicas tomadas e efetivadas pelo Alto Comando da Revolução,

principalmente as mais polêmicas e impopulares;

2.3 contribuir, tendo em vista os resultados da pesquisa desenvolvida,

com uma leitura do gênero discursivo texto normativo lato sensu que

permita ao leitor desse gênero discursivo travar contato com as

instâncias enunciativas ali presentes e em atuação, rompendo com

uma visão do Direito como mera aplicação do texto jurídico.

No que se refere ao aparato teórico construído para esta pesquisa, diga-se que

seu foco consiste, basicamente, na aplicação dos estudos da referenciação (com maior

foco), em profunda inter-relação com o princípio do dialogismo, e da teoria da

enunciação aos textos selecionados para análise. Sustentarão essa abordagem autores

como Mondada e Dubois (2003), Marcuschi (2004), Marcuschi (2007) e Koch (2013),

no caso dos estudos da referenciação. Quanto às abordagens enunciativas, são chamados

à cena autores como Volochinov (1997), Ducrot (1984) e Bakhtin (2003). Nesse

sentido, noções como polifonia, locutor, enunciado, enunciador e gênero discursivo,

entre outras, serão mobilizadas no desenvolvimento da pesquisa e da construção desta

tese.

Como se pode depreender a partir do que se apresentou até aqui, a abordagem

aqui desenvolvida diz respeito à atividade de linguagem, à construção de objetos de

discurso, ao complexo dialógico que ocorre na construção daqueles objetos. Assim, o

desenvolvimento deste trabalho, a partir da aplicação das abordagens teóricas

levantadas à análise da construção dos objetos discursivos mencionados, buscará

mostrar as vozes ali presentes e que foram enfatizadas ou silenciadas. Como se trata de

textos produzidos por locutor ligado ao Regime, o que se espera é a ênfase nas

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características positivas do Movimento, bem como nas negativas dos opositores, e a

busca pelo silenciamento das vozes que apresentam características positivas para

aqueles opositores.

Em relação à organização desta tese, buscou-se um encaminhamento que segue

de uma contextualização mais ampla para uma contextualização mais específica. Assim,

partiu-se da construção de um aparato teórico relativo ao Direito (Capítulo 1), cujo

objetivo foi a criação de um contexto teórico que facilite a leitura do que se abordou,

nesse sentido, nos capítulos destinados à análise do corpus. A seguir, no Capítulo 2,

buscou-se a construção do aparato teórico, relativo à linguística, a ser utilizado quando

da mencionada análise do corpus. A abordagem desse aparato seguiu o mesmo percurso

observado na elaboração da tese, ou seja, teve seu início em um ponto mais amplo (o

princípio do Dialogismo) e se direcionou para um ponto mais específico da teoria

selecionada (a referenciação propriamente dita). O Capítulo 3 foi dedicado à

apresentação da Metodologia utilizada na elaboração deste trabalho. O Capítulo 4 foi

dedicado à apresentação da história daquele momento do Regime Militar, a partir de

textos selecionados (Editorial do Jornal Correio da Manhã, Discurso do Deputado

Federal Moreira Alves, excertos do Preâmbulo do Ato Institucional número 1, discurso

do então Presidente da República em reunião do Conselho de Segurança Nacional). A

seguir, caminhou-se em direção à análise dos textos propriamente ditos dos preâmbulos

dos Atos Institucionais selecionados (Capítulo 5), com um viés mais amplo e

interpretativo. Já no Capítulo 6 foram realizados estudos mais específicos do corpus, a

partir de Quadros Demonstrativos, Diagramas e Gráficos.

No Capítulo 2, em que, como mencionado, serão apresentadas as noções teóricas

que fundamentam esta tese, inicialmente, será abordado o princípio do Dialogismo, uma

vez que fundamenta as demais noções linguísticas aqui apresentadas (signo,

enunciado/enunciação, gênero discursivo).

Na sequência do percurso seguido na elaboração do Capítulo 2, buscou-se

ressaltar que os textos componentes do corpus, como discursos que são, nasceram de

necessidades sociais e realizaram mudanças no grupo de onde surgiram. Essa leitura

está relacionada à abordagem de Volochinov (1997) a respeito da linguagem, o qual a

vê como atividade dialógica por meio da qual se dá a interação verbal. Ainda de acordo

com o autor mencionado, no processo interacional, a mencionada atividade linguageira

ocorre a partir da construção de enunciados, ou seja, o participante dessa atividade

coloca em cena enunciados e, através desse processo, interage com o outro participante.

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Esses enunciados, construídos e postos em cena na atividade linguageira de interação

verbal, seguem as determinações do gênero discursivo no qual são produzidos.

Perpassam esse processo as abordagens de Bakhtin (2003) e de Volochinov (1997) a

respeito da carga ideológica que recebe o enunciado. Dizendo de outra maneira: o

sujeito produtor do enunciado fala de um lugar determinado e, em seus enunciados,

deixa marcas dessa posição por ele ocupada. Por isso, trata-se de pressupostos teóricos

de relevância para os objetivos desta tese.

A abordagem da noção de dialogismo cria o terreno necessário ao estudo da

noção de polifonia, aqui abordada a partir de Ducrot (1984). Será, então, possível

perceber que as vozes em atuação nos textos selecionados para a composição do corpus

(e dos demais textos), por se inserirem na atividade de linguagem, sofrem influência do

aparato ideológico e das lutas travadas em dado grupo social. Esse conjunto,

obviamente, está relacionado, entre outros aspectos, à criação do gênero discursivo.

Assim, em rápida síntese, é criado um locutor, que lança mão de enunciadores e

constrói aqueles textos, a partir de um gênero discursivo, com objetivos próprios junto

aos interlocutores previstos nesse processo enunciativo.

A próxima seção desse capítulo tomará em consideração, a partir,

principalmente, de Mondada e Dubois (2003), bem como de Marcuschi (2004),

Marcuschi (2007) e Koch (2013), o processo de referenciação propriamente dito. Sua

abordagem, nesse momento, segue o critério adotado de percurso do mais amplo para o

mais específico. Veja-se, nesse sentido, que o processo de referenciação abarca todos os

demais pontos aqui abordados, uma vez que, como se verá, em um texto, o locutor lança

mão de enunciadores e reconstrói a realidade por ele vivenciada, a fim de alcançar seus

objetivos enunciativos. Essa realidade envolve tanto os objetos naturais, como os

demais sujeitos envolvidos no processo de enunciação que dá origem à construção do

referente.

Essa análise leva em consideração o que Volochinov (1997) classifica como

compreensão ativamente responsiva: as repetidas edições de atos institucionais pelo

Regime Militar podem ser entendidas como respostas (compreensão ativamente

responsiva) do locutor coletivo constituído pela “Revolução” às mudanças por que

passou o cenário político nacional, ou seja, a sociedade de então. Veja-se, nesse sentido,

que a Política consiste na constante luta pela tomada do e pela manutenção no poder e

que essa luta pode ocorrer pela força, mas também através da prática discursiva

(constantes respostas a discursos de grupos, no caso, adversários). Portanto, diga-se que

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os textos selecionados terão por finalidade a leitura do processo enunciativo de

construção de objetos discursivos, da posição ativamente responsiva e da luta travada

pelos grupos em disputa pelo poder.

Portanto, o que será realizado nesta tese é, a partir de textos verbais selecionados

para a aplicação do quadro teórico construído, uma leitura da construção dos aludidos

objetos discursivos.

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1- O DIREITO PRESENTE NOS PREÂMBULOS

1.1- Teoria da Constituição

Ponto que deve ser discutido, mesmo que de maneira preliminar, nesta tese, é a

parte da teoria da Constituição que aborda fatores como seu caráter democrático e seus

mecanismos de defesa e de modificação. Essa abordagem é necessária, tendo em vista

as várias menções feitas pelos preâmbulos dos Atos Institucionais a esses conceitos.

No que se refere à Constituição, a doutrina jurídica a vê como o instrumento

normativo de maior importância em uma dada sociedade. É regra geral dizer que a

mencionada norma é a responsável por constituir uma sociedade e por organizá-la

politicamente. Além do mais, é a partir de suas determinações que são elaboradas

normas hierarquicamente inferiores a ela.

A Constituição, dentro de sua função de constituir e organizar um Estado, tem

por finalidade principal oferecer a garantia dos direitos fundamentais de um povo e,

para isso, delimita o poder político daquele Estado, a fim de se evitar eventual abuso de

poder ou mesmo o autoritarismo de um governante.

É, portanto, a Constituição um sistema normativo, inserido no ordenamento

jurídico de um Estado, estando localizado no maior grau da hierarquia jurídica daquele

conjunto. Justamente por isso, é com base nela que se deve verificar a validade de uma

norma em vigor, ou mesmo de alguma que esteja em processo de elaboração.

A partir do exposto, pode-se dizer que a Constituição, regra geral, tem como

finalidades fundamentais estabelecer a forma de Estado, a forma de governo, o modo de

aquisição e de exercício do poder, instituir e organizar os órgãos responsáveis pela

administração de um Estado, bem como os limites da atuação de cada um desses órgãos.

Além do mais, é ela que trata dos direitos e garantias individuais dos membros do povo,

bem como de direitos e garantias sociais, coletivos e difusos daquela sociedade

organizada.

Tendo em vista as implicações dos Atos Institucionais na efetivação desses

direitos e dessas garantias quando de sua vigência, torna-se interessante, neste momento

desta tese, abordar, mesmo que de maneira bastante breve, o conceito que perpassa o até

aqui mencionado: “direitos fundamentais”.

De acordo com Silva (2003), Mendes e Branco (2011), doutrinadores

consultados para a elaboração deste capítulo, trata-se de conceito pleno de

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interpretações e de definições, o que, conforme ressaltam, reflete o caráter complexo

das diversas sociedades. Regra geral, tais direitos mudam de acordo com as sociedades

nas quais são introduzidos, o que dificulta o estabelecimento de uma linha comum

capaz de gerar um conceito genérico. Além do mais, recebem denominações as mais

diversas, como direitos fundamentais e direitos humanos.

Esses mesmos doutrinadores informam, também, que os direitos fundamentais

recebem tratamento diferenciado a partir da corrente jurídica que os aborda. Assim, para

o jusnaturalismo, os direitos fundamentais são provenientes das leis da natureza,

incorporadas pela cultura de um povo, ao passo que, para o positivismo jurídico, tais

direitos são aqueles escolhidos e positivados pelo legislador.

De toda a maneira, de acordo com a doutrina jurídica, esses direitos resultam de

transformações culturais, políticas e jurídicas por que passou a humanidade ao longo de

sua história. Tais transformações incluem fatores filosóficos, fatores jurídicos, bem

como provenientes do próprio cristianismo e do aludido jusnaturalismo, como informam

os doutrinadores aqui mencionados.

Em termos especificamente jurídicos, diga-se, com Silva (2003), que os direitos

fundamentais têm como uma de suas funções limitar a atuação do Estado, evitando que

este ultrapasse os poderes atribuídos pela soberania popular, protegendo o homem de

possíveis arbitrariedades decorrentes daquela atuação. Além disso, também é objetivo

dos direitos fundamentais levar o Estado a adotar medidas que melhorem as condições

de vida do homem naquela sociedade. Dentre essas medidas estão aquelas que visam a

assegurar a dignidade da pessoa humana, a liberdade, a igualdade, a propriedade, os

direitos sociais, econômicos e culturais, bem como aqueles relativos à preservação do

homem, os quais envolvem diretos relacionados à fraternidade e à solidariedade.

Enfim, para o que interessa aos objetivos desta tese, diga-se que, modernamente,

entende-se que os direitos fundamentais resultam da eleição, por parte de uma

sociedade, de determinados valores por ela vistos como básicos para aquele grupo. A

partir dessa escolha, tais valores são assumidos pela Constituição daquela sociedade, a

partir do fenômeno da positivação constitucional, quando um valor passa a fazer parte

do ordenamento jurídico daquele grupo. Como mencionado, atualmente, faz parte da

essência de uma Constituição a garantia desses direitos, os quais integram o que se

classifica como a parte orgânica daquela Constituição.

É importante, ainda, tratar de questões como origem de uma Constituição,

estabilidade do texto constitucional, bem como das formas de controle de suas normas.

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Diga-se, então, que, quanto à origem, uma Constituição pode ser promulgada

(também denominada Democrática) ou outorgada.

As Constituições Promulgadas, em síntese, são aquelas de cuja elaboração

participam representantes do povo, os quais são indicados a partir de processo eleitoral.

Isso, contudo, não ocorreu com a Constituição de 1967, haja vista que o Poder

Executivo enviou projeto de Constituição a Congresso já formado e devidamente

configurado a partir dos interesses do Regime.

As Constituições Outorgadas, ao contrário das primeiras, não contam, em sua

elaboração, com a manifestação popular, sendo, nesse sentido, impostas pelos

detentores do poder político. É o que acontece, por exemplo, com a mencionada

Constituição de 1967, quando o Congresso que foi convocado para aprová-la, como

mencionado, não contou com a eleição popular.

No que se refere às maneiras de se buscar preservar o texto constitucional, ao

menos naquilo que, em dada época, uma dada nação vê como mais importante, é o que

diz respeito aos procedimentos para se alterar o texto. Trata-se da estabilidade do texto

constitucional. Existem, nesse sentido, três modalidades de Constituição: as rígidas, as

semirrígidas e as flexíveis.

Assim, uma Constituição é rígida quando são previstos, para modificação de seu

texto, procedimentos mais complexos do que aqueles utilizados para a lei

infraconstitucional, o que não ocorre com as Constituições flexíveis, que seguem o

mesmo procedimento das leis infraconstitucionais, quando se busca a alteração do texto.

Já as Constituições semirrígidas são aquelas em que, em relação a determinadas

matérias, deve ser seguido procedimento de maior complexidade, ao passo que, em

outras, segue-se o procedimento comum às demais leis.

Dallari (2003) fala a respeito do papel que o Estado deve exercer na conciliação

entre ordem estabelecida e mutação social. De acordo com esse autor, o Estado deve

adotar uma postura de, embora preservando a ordem, permitir a ocorrência de criações

que não anulem resultados obtidos em outras ocasiões históricas naquela ordem. A

leitura que realizaremos a respeito dos preâmbulos dos Atos Institucionais selecionados

demonstrará que o Regime Militar não levou em consideração esse papel nos momentos

em que buscou responder às demandas sociais que buscavam alterações naquela

conjuntura.

É importante considerar, também, que, nesse processo de adaptação da

Constituição às mudanças por que passa uma dada sociedade, alguns cuidados devem

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ser observados, a fim de se evitar, por exemplo, que, no auge de uma crise política ou

em momento de forte comoção nacional, sejam feitas alterações na substância daquele

texto. Trata-se do que tem sido conceituado como cláusula impeditiva de retrocesso.

Dallari (2003) também aborda o que classifica como “contradição das ditaduras

constitucionais” (DALLARI, 2003, p. 139), o que deixa subentendido que Constituição,

por princípio, é instrumento jurídico democrático, ou contrário a ordens ditatoriais.

Contudo, como diz o autor, esse instrumento pode ser usado (como, realmente, o foi no

caso aqui analisado) para manter uma ordem contrária à democracia. Isso acontece

quando o Estado busca manter a todo custo uma ordem estabelecida, sem deixar espaço

para mutações legitimamente desejadas pelo grupo social. No próprio texto do

preâmbulo do Ato Institucional número 5, há menção ao fato de que a Constituição de

1967 deveria apresentar mecanismos que permitissem a manutenção dos ideais

revolucionários elencados e em vigor desde 1964.

Os textos dos Atos Institucionais, como ressaltado pelo próprio preâmbulo do

Ato Institucional número 1, por definição, tinham natureza constituinte, uma vez que,

através deles, o Movimento tratou de matérias de natureza constitucional. Esses atos,

em diversos momentos, falam em manutenção da ordem, em punição a quem com ela se

debate, em subversão, em instrumentos a serem utilizados contra os subversivos a fim

de manter a ordem social.

É possível dizer, tendo em vista os apontamentos do parágrafo anterior, que o

Movimento de 1964, embora implicitamente, visava a consolidar o que Dallari (2003)

classifica como ditadura constitucional:

E o próprio anacronismo dos valores oferece pretexto para a ação arbitrária, pois toda inovação é vista como ação destruidora de valores tradicionais e, dessa maneira, contraditoriamente, a preservação de uma ordem inadequada serve de fundamento para impedir que se atinja o ideal de atualização, que é o Estado adequado. (DALLARI, 2003, p.139)

Será, então, possível verificar um contraponto entre os Atos Institucionais e a

ordem democrática, ainda mais no que se refere aos princípios norteadores das

construções das duas ordens jurídicas, a ditatorial e a democrática. Se, por um lado, nos

anos de chumbo, através do ordenamento jurídico, buscava-se, nos dizeres de Dallari

(2003), preservar uma ordem inadequada que impediria a construção de um Estado

adequado, a partir de 1988, quando se construiu nova ordem jurídica, o que se viu foi,

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justamente, a construção desse novo modelo de Estado, adequado à teoria da

Constituição.

Como se pode perceber, há, no mínimo, duas formas de se pensar a atuação do

Estado quanto à manutenção da ordem. Esses dois modelos foram aplicados no Brasil a

partir dos anseios de grupos que estavam no poder, ou mesmo daqueles que buscavam

ali chegar ou mudar a ordem então estabelecida. Tais anseios, de um ou de outro grupo,

entraram em grande embate, tendo, ao final, vencido aquele que buscava o regime

democrático, segundo o modelo apontado por Dallari (2003) como “Estado adequado”.

Em termos de processo de enunciação, verifica-se que os preâmbulos dos Atos

Institucionais apresentam marcas desse processo, atuando de forma responsiva em

relação à realidade social observada. Será, então, possível verificar uma luta, inclusive,

de princípios, entre os enunciados produzidos durante o governo ditatorial, entre

Revolução e Antirrevolução.

O que se observará, então, é que a expressão das discordâncias era impedida,

mantendo-se, apenas, a possibilidade de o grupo dominante apresentar sua vontade e

suas opiniões. Essa ordem, como diz Dallari (2003), só pode ser mantida através da

força. Isso ficará muito claro a partir da leitura dos preâmbulos dos Atos Institucionais

iniciais, anteriores ao Ato Institucional número 5, e, principalmente, do Ato

Institucional número 1, através do qual se buscou legitimar o Movimento Vitorioso.

Somando-se a isso está o aludido Ato Institucional número 5, editado em momento no

qual as discordâncias tomavam as ruas e se expressavam frontalmente contra o Regime.

A partir daí, os enunciados dos preâmbulos dos Atos tornaram-se mais firmes, mais

duros, mais ameaçadores. Por outras palavras, à medida que a voz popular se tornava

mais forte contra a Revolução Vitoriosa, que buscava manter apenas a sua voz e

silenciar as demais, o uso da força, seja física, seja enunciativa, foi se intensificando.

O que se pode verificar aqui, através da leitura dos preâmbulos dos Atos

Institucionais, são as maneiras pelas quais se buscou a legitimação da nova ordem que

se buscava estabelecer. No caso dos mencionados preâmbulos, buscava-se legitimar

uma revolução surgida da vontade de pequeno grupo (embora apresentada como nascida

dos interesses nacionais), o qual buscava se impor e dar a si ares democráticos. Pode-se

verificar, também, ainda a partir da leitura dos preâmbulos selecionados, a atitude

responsiva do comando do Regime, através, principalmente, do Ato Institucional

número 5, a fim de buscar a manutenção da ordem dita revolucionária então criada.

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O Movimento, quando da tomada do poder, disse que a Revolução se investia no

Poder Constituinte. Nesse sentido, pode-se realizar breve comentário a respeito da

Teoria da Constituição, quanto às noções de Poder Constituinte originário e de Poder

Constituinte de reforma, o que permitirá elucidar esse ponto de vista.

De acordo com Mendes e Branco (2011), o Poder Constituinte originário

consiste em força política que estabelece uma Constituição e a mantém em vigor,

fundamentando a validez desse ato normativo. Essa força política não é retirada de

outros instrumentos normativos, “mas se firma pela vontade das forças determinantes da

sociedade, que a preside” (MENDES e BRANCO, 2011, p. 117). Veja-se que os

enunciados movimentados na elaboração do texto constitucional sofrem forte influência

da vontade popular.

Dois outros pontos que merecem consideração a respeito do Poder Constituinte

originário são a sua insubordinação a qualquer outro poder, paralelamente à sua

necessária submissão aos valores do grupo social em que se pretende implementar a

nova ordem.

Verifica-se, nesse sentido, principalmente em relação ao Ato Institucional

número 1, que, em vários momentos das considerações iniciais, há ênfase na

independência do novo poder constituinte em relação ao ordenamento a ele anterior. O

grupo que tomou o poder na ocasião defende essa característica do Movimento, mas o

faz a fim de atender aos seus objetivos.

De acordo com Mendes e Branco (2011), o Poder Constituinte originário deve

observar os valores éticos, religiosos e culturais de uma nação, sob pena de a

Constituição dali decorrente consistir meramente em uma “insurreição, a ser sancionada

como delito penal” (MENDES e BRANCO, 2011, p. 119):

Se o poder constituinte é a expressão da vontade política da nação, não pode ser entendido sem a referência aos valores éticos, religiosos, culturais que informam essa mesma nação e que motivam as suas ações. Por isso, um grupo que se arrogue a condição de representante do poder constituinte originário, se se dispuser a redigir uma Constituição que hostilize esses valores dominantes, não haverá de obter o acolhimento de suas regras pela população, não terá êxito no seu empreendimento revolucionário e não será reconhecido como poder constituinte originário. Afinal, só é dado falar em atuação do poder constituinte originário se o grupo que diz representá-lo colher a anuência do povo, ou seja, se vir ratificada a sua invocada representação popular. Do contrário, estará havendo apenas uma insurreição, a ser sancionada como delito penal. Quem tenta romper a ordem constitucional para instaurar outra e não obtém a adesão dos cidadãos não exerce poder constituinte originário, mas age como rebelde criminoso. (MENDES e BRANCO, 2011, p. 119)

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Outro ponto digno de nota reside no Poder Constituinte de reforma, que é posto

em ação quando se busca adequar o texto constitucional a alguma alteração substancial

na vontade popular, sem que isso altere a essência do texto.

O ponto de interesse nesse processo está na adequação dos enunciados de uma

Constituição à vontade popular. Some-se a isso o fato, mencionado em parágrafos

anteriores, de que uma Constituição deve, necessariamente, observar os valores

defendidos pela sociedade na qual é construída. Nesse ponto, pode-se mencionar o fato

histórico de que, em dado momento da história do Regime de 1964, o Congresso

Nacional, já grandemente alterado pelo Regime, foi convocado para “promulgar” a nova

Constituição. Esta, porém, o foi sem se observar a vontade popular, sem que os valores

sociais então vigentes fossem observados, sem se observar a ideologia dominante na

sociedade de então.

Mais um ponto a ser observado quanto ao Poder Constituinte de reforma é a

questão do conteúdo a ser atingido por essa alteração do texto. De acordo com Mendes e

Branco (2011), as reformas constitucionais podem acontecer, sempre que necessárias,

desde que não desvirtuem o que esses autores classificam como a identidade básica do

texto.

Porém, pode acontecer de não haver mudança formal no texto, mas alterações no

teor das palavras empregadas. Trata-se do que a doutrina jurídica denomina mutação

constitucional. Esse fenômeno refere-se ao fato de que as alterações na sociedade

acarretam mudanças nos enunciados, sendo a palavra fortemente influenciada por esse

processo.

Como se pode observar, já os conceitos de Constituição ou mesmo a existência

de mecanismos destinados a preservar a estabilidade de seu texto, ou mesmo a evitar

medidas que firam suas determinações permitem verificar o contexto sociopolítico

gerador desse instrumento normativo.

1.2- Cartografia Simbólica do Direito

Uma vez realizados os apontamentos a respeito de noções de Direito

Constitucional, pode-se abordar o pensamento de Santos (1988), que defende haver, em

uma sociedade, mais de uma forma de direito, ao contrário do que defende o que

classifica como filosofia política liberal. Defende o autor que o direito elaborado e

defendido pelos órgãos estatais é apenas uma dessas formas.

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Daquilo que o autor aborda em seu trabalho, o que mais chama a atenção é a

observação de que

essas diferentes formas variam quanto aos campos da ação social ou aos grupos sociais que regulam, quanto à sua durabilidade, que pode ir da longa duração da tradição imemorial até à efemeridade de um processo revolucionário, quanto ao modo como previnem os conflitos individuais ou sociais e os resolvem sempre que ocorram, quanto aos mecanismos de reprodução da legalidade, e distribuição ou sonegação do conhecimento jurídico. (SANTOS, 1988, p. 147)

O ponto relevante para esta tese reside na ligação das formas jurídicas, da pluralidade

jurídica, a fatores como o grupo responsável pela regulação, o grupo objeto da norma,

bem como à maneira de prevenção de conflitos, dentre outros. Pelo que se pode

depreender, como ocorre com os enunciados, a partir da leitura bakhtiniana, as formas

jurídicas são influenciadas pela dinâmica social e sobre ela exercem influência. Além

disso, podem dizer respeito ao momento em que se tornou vitoriosa uma revolução e ao

tempo em que permaneceu em ação, ou mesmo a um tempo imemorial.

Para o que interessa aos objetivos desta tese, são importantes os caracteres de

permanência e de efemeridade, tendo em vista que os Atos Institucionais, apesar de

também serem uma resposta a enunciados anteriores, podem ter observado uma vida

menor do que a dos enunciados de outros textos jurídicos, como, por exemplo, da

Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. De acordo com a doutrina

jurídica, a nova ordem constitucional pode manter determinações da ordem

constitucional anterior (fenômeno da recepção constitucional, que permite o

acolhimento de tudo aquilo que não fira os princípios estabelecidos pela nova ordem

(MENDES e BRANCO, 2011)), o que não ocorreu no caso dos Atos Institucionais, que

não foram abarcados pelo atual ordenamento jurídico. Assim, uma vez deposto o sujeito

que lhes dava sustentação, eles também o foram.

Outro ponto a ser analisado é o que Santos (1988) denomina cartografia

simbólica do Direito. De acordo com o autor, as formas do Direito, como todos os

enunciados, podem não apenas refletir uma realidade, mas também distorcê-la, ou, nos

termos de Volochinov (1997), refratá-la. Isso, certamente, ocorreu com os enunciados

dos preâmbulos dos Atos Institucionais, principalmente em momentos em que o

Movimento buscava sua legitimação junto ao povo e naqueles em que precisava

justificar atitudes mais ríspidas.

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O autor também aborda a noção de escala, dizendo respeito às diferentes ordens

jurídicas. Segundo ele, cada ordem jurídica interage com a realidade a partir de uma

escala diferente, o que interfere na percepção dos objetos abordados. Além disso, essas

diferentes escalas e as correspondentes percepções de objetos interagem entre si, o que,

certamente acarretará conflitos.

Possivelmente, quando se observam as realidades presentes nos Atos

Institucionais e aquelas vivenciadas pelos movimentos de luta contra a Revolução

ocorridos na época, verifica-se que tais percepções, ou mesmo a escala a partir da qual a

ordem jurídica foi vivenciada, podem ter sido conflituosas. A leitura dos preâmbulos

dos Atos Institucionais mostrará, dentro do viés do dialogismo, que se trata de escala

diversa em relação à anterior ordem democrática, que gerou atitudes responsivas

diversas.

Veja-se, mais uma vez, o que diz Santos (1988):

A interação e a interseção entre os diferentes espaços jurídicos é tão intensa que, ao nível da fenomenologia da vida sócio-jurídica, não se pode falar de direito e de legalidade mas antes de inter-direito e inter-legalidade. A este nível, é menos importante analisar os diferentes espaços jurídicos do que identificar as complexas e dinâmicas relações entre eles. (SANTOS, 1988, p. 151)

Se a interação e a interseção de que fala o autor forem levadas para o plano da

enunciação, muitas semelhanças há com a tese de Volochinov (1997). Veja-se que o

autor fala em espaços jurídicos que se encontram em interação, o que produz a

necessidade do interdireito e da interlegalidade, em lugar do direito e da legalidade. Tais

espaços estariam em complexo e dinâmico relacionamento.

Em relação ao corpus a ser analisado nesta tese, tanto o efeito de escala, quanto

a interação e a interseção entre espaços jurídicos estão presentes e interferem na

elaboração dos enunciados que serão ali estudados.

Uma das consequências relacionadas ao pensamento de Santos (1988) consiste

na ideia de pertencimento, presente na noção de escala. O autor refere-se a “patamares

de regulação”. É dentro desses patamares de regulação que se determina o que pertence

ao direito e o que deve dele ser excluído. Possivelmente, esses patamares determinam,

também, o que, sendo excluído do direito daquela escala, daquela ordem jurídica, deve

ser punido, a fim de se evitarem eventuais contaminações ou desvirtuamentos da ordem

estabelecida.

Novamente, cite-se Santos (1988), que diz que

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a projeção é o procedimento através do qual a ordem jurídica define suas fronteiras e organiza o espaço jurídico no interior delas. Tal como a escala, e pelas mesmas razões, a projeção não é um procedimento neutro. Tipos diferentes de projeção criam objetos jurídicos diferentes e cada objeto jurídico favorece uma certa formulação de interesses e uma concepção própria dos conflitos e dos modos de os resolver. (SANTOS, 1988, 155-156)

É interessante, ainda, abordar o que diz Santos (1988) a respeito da distinção

entre Revolução e Democracia, no que se refere à representação jurídica da realidade, o

que, evidentemente, considera as noções de projeção e de escala, bem como de ausência

de neutralidade na execução da atitude de projeção, mencionadas na citação anterior

desse autor.

Segundo o aludido autor, a “legalidade revolucionária” e a “legalidade

democrática” são distintas entre si tendo em vista a forma de representação jurídica da

realidade que desenvolvem:

A legalidade democrática procura isolar a representação jurídica da realidade da vivência convulsa e quotidiana da crise revolucionária e para isso sublinha a distinção entre direito e fatos e procede a uma descrição abstrata e formal da realidade em que domina o sistema de sinais próprio do estilo homérico de representação e simbolização. Ao contrário, a legalidade revolucionária procura integrar e até diluir a representação jurídica no contexto político e social em que tem lugar e para isso atenua ou apaga a distinção entre direito e fatos e privilegia uma descrição figurativa e informal da realidade, em suma, um estilo bíblico de representação e simbolização. (SANTOS, 1988, p. 163)

Assim, a segunda apaga a distinção entre direito e fatos, diluindo a representação

jurídica nos campos social e político. Já a legalidade democrática busca a separação

entre realidade e representação jurídica. Por outras palavras, para Santos (1988), a

legalidade democrática separa os mundos jurídico e político, na representação que faz

da realidade a que se refere. Pode-se dizer que, para a legalidade democrática, o direito

(o jurídico) é construído a partir da observação/interpretação dos fatos sociais

(políticos), mas, após a elaboração normativa, isola-se dessa realidade. O direito, então,

é algo posto para a sociedade, sendo aplicado nas ocasiões por ele previstas.

No que se refere à legalidade revolucionária, é possível verificar que, embora

com objetivos diversos, da mesma maneira que a democrática, também consiste em

legalidade. Porém, no caso da legalidade revolucionária, o político e o jurídico

encontram-se integrados ou mesmo diluídos. Isso, possivelmente, se deve à necessidade

revolucionária de construir para si um quadro de legitimação, uma vez que a nova

ordem jurídica ainda se encontra em processo de criação e implantação, estando,

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portanto, muito arraigada ao que Santos (1988, p. 163) denomina “vivência convulsa e

cotidiana da crise revolucionária”. Possivelmente, com o tempo, a distinção entre

política e representação jurídica da realidade tomará corpo e se fará presente.

A leitura do corpus, realizada no Capítulo 5 e no Capítulo 6 desta tese, permitirá

observar que, na construção, no caso que interessa a este trabalho, dos preâmbulos dos

Atos Institucionais (podendo-se mencionar, também, instrumentos normativos outros,

como os atos complementares e a própria Constituição de 1967, por exemplo), houve

respostas jurídicas quase imediatas ao que o Alto Comando da Revolução Vitoriosa

observava nas ruas, na política. Isso, como mencionado, a fim de legitimar o

Movimento político e, gradativamente, fortalecer as bases jurídicas da Revolução.

Assim, é possível perceber que, para o Regime, política e direito estavam mesclados e

fundidos, servindo o direito como garantia para o político, ou mesmo servindo esse

conjunto direito-político como garantia para a Revolução.

1.3- Doutrina de Segurança Nacional

Uma vez realizados os apontamentos a respeito da doutrina jurídica objeto de

interesse desta tese, torna-se necessário, a fim de criar uma ligação entre as diversas

partes deste trabalho e de apresentar uma ideologia que atravessa todos os Atos

Institucionais editados pelo Regime, abordar a Doutrina de Segurança Nacional, o que

será feito a partir dos apontamentos de Borges (2003), em seu artigo A Doutrina de

Segurança Nacional e os Governos Militares.

Esse autor, na abordagem do tema, correlaciona três conceitos principais:

Doutrina de Segurança Nacional, Geopolítica, Teoria da Ditadura Soberana. Como será

possível observar, tais conceitos estão profundamente inseridos, pincipalmente, nos

Atos Institucionais selecionados para compor o corpus desta tese.

A Doutrina de Segurança Nacional nasceu nos anos da Guerra Fria, tendo sido

formulada nos Estados Unidos da América e pulverizada para outros países,

principalmente, da América Latina. Seu objetivo maior é o combate ao comunismo e a

proteção do capitalismo.

De acordo com essa doutrina, que, como se sabe, forneceu as bases, no Brasil,

para a instalação do Regime Militar e para a sua manutenção, todos os problemas de um

Estado deságuam na guerra e na construção/execução de estratégias de guerra. Tudo

isso, como se pode depreender, no embate entre comunismo e capitalismo. Assim, no

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caso do Brasil, trata-se de guerra em que o capitalismo, já implementado, combate o

comunismo, visto como risco, como mal que ameaça a ordem estabelecida. Portanto,

nos dizeres de Borges (2003, p. 24), “obviamente, a Doutrina de Segurança Nacional é a

manifestação de uma ideologia que repousa sobre uma concepção de guerra permanente

e total entre o comunismo e os países ocidentais”. Ainda de acordo com o autor em tela,

tudo isso consiste em estratégia americana na luta contra o que também ali se

denominava os inimigos, os subversivos.

Abarcado pela Doutrina de Segurança Nacional está o que se convencionou

classificar como “conceito de guerra total”. Esse conceito, como será possível observar

no Capítulo 5 desta tese, também dialoga com os enunciados produzidos pelo locutor

em atuação nos Atos Institucionais. De acordo com esse conceito, o mundo encontra-se

em guerra, uma vez que há a luta entre os blocos comunista e capitalista. Assim, não é

possível haver neutralidade, mas apenas participação em um ou outro lado. A partir

desse conceito, ficam criados os inimigos, que podem ser externos ou estar no interior

das fronteiras de um país. Esse tipo de construção, como se verá, foi realizado já no

primeiro Ato Institucional editado. Assim, “é nesse quadro de conflito que a Doutrina

promoverá a submissão das atividades da Nação à sua política de segurança”

(BORGES, 2003, p. 25).

Decorrente das doutrinas de Segurança Nacional e da Ditadura Soberana é a

Teoria Geopolítica. Trata-se de noção que busca definir a segurança nacional a partir do

espaço político e da posição geográfica ocupados por um Estado. Seu fundamento está

na tese de que, para sobreviver, o Estado necessita de espaço e de se expandir. Essa

teoria, nesse sentido, vê o Estado como um organismo biológico. A partir do olhar dos

integrantes do Regime Militar, a Geopolítica preocupa-se com a manutenção da

segurança nacional nos âmbitos interno e externo, vista como estratégia ou mesmo

como política. Tudo isso mesclado com a percepção do espaço físico no qual o Estado

se encontra implementado e sempre buscando-se enfatizar o positivo e neutralizar o

negativo. Esse movimento enunciativo poderá ser percebido quando da análise dos

preâmbulos dos Atos Institucionais que compõem o corpus desta tese.

Em relação à Doutrina da Ditadura Soberana, pode-se dizer, sempre de acordo

com Borges (2003), que sua maior aplicação se dá em Estados com perfil militar. De

acordo com essa doutrina, o Estado absoluto é identificável com a figura de um líder

absoluto, com poder discricionário e limitado, apenas, por uma moderação autoimposta.

Esse Estado tem plenos poderes políticos e liberdade na criação do direito. Esse aspecto

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é perfeitamente observável já no preâmbulo do primeiro dos Atos Institucionais, no

momento em que declara manter a Constituição de 1946 e limitar seus poderes, bem

como no momento em que, para desconstruir uma imagem de radicalização do Regime,

manifesta seu poder constituinte originário.

É nesse sentido que se pode, novamente, citar Borges (2003), que se manifesta a

respeito do governo absoluto:

Dessa forma, o governo se afirmaria como órgão ou pessoa que decreta um estado de crise, suspendendo os direitos e instaurando as restrições à ação política. A ditadura soberana se fundamenta na capacidade de a revolução se legitimar por ela mesma e de substituir toda a jurisdição existente. (BORGES, 2003, p. 27)

A análise da construção de imagens pelo locutor coletivo em ação nos

preâmbulos dos Atos Institucionais permitirá observar a aplicação do que comenta o

autor acima mencionado. Além disso, permitirá verificar a busca de construção de

fronteiras ideológicas no Brasil pós 64, as quais separam em subversivos e cidadãos de

bem, respectivamente, os opositores e os apoiadores do Regime Militar em ação.

Será possível observar, também, que o locutor coletivo aqui mencionado

destaca, nos preâmbulos dos Atos Institucionais editados, o que, na Doutrina de

Segurança Nacional, se convencionou denominar “objetivos nacionais”. Trata-se, como

explica Borges (2003), de uma cristalização racional e dialogada de interesses,

aspirações, valores e regras em uma nação. Sua construção se dá ao longo de um

processo em que interagem povo e elite dirigente. Ocorre que tais objetivos nacionais

não são estanques e, certamente, são eleitos e cristalizados a partir da ótica de alguém

ou de algum grupo. Como será possível observar, no caso ocorrido no Brasil, tais

objetivos são aqueles eleitos pelas Forças Armadas, a partir da esfera social na qual

atuam. Contudo, a fim de legitimar suas ações presentes e futuras, o Regime enfatizou o

lado interacional, dialogado, da construção dessas metas.

Caminhando para o fechamento deste capítulo, cite-se, novamente, Borges

(2003), que apresenta a essência da Doutrina de Segurança Nacional e resume o até aqui

exposto:

A essência da Doutrina de Segurança Nacional reside no enquadramento da sociedade nas exigências de uma guerra interna, física e psicológica, de característica anti-subversiva contra o inimigo comum. A partir desse ponto de vista, a Doutrina converte o sistema social em sistema de guerra, ou seja o sistema social condicionado pelas perspectivas da violência, que contém diretamente ou indiretamente um grau real de repressão que serve de fundamento a estas perspectivas e que incorpora nos seus mitos e seu folclore uma cosmologia de guerra (REISMAN, 1973, p. 8). (BORGES, 2003, p. 29)

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Reitere-se, então, a partir da citação acima, a conexão entre fatores políticos,

ideológicos e psicológicos na construção do Regime Militar enquanto sujeito capaz de

libertar o país das garras do inimigo (interno/externo) e da oposição ao Regime como

sendo esse inimigo. Tudo isso, como se buscará demonstrar, pode ser verificado a partir

dos enunciados construídos pelo locutor coletivo em ação nos Atos Institucionais

analisados nesta tese.

O que se buscou, portanto, neste capítulo, foi a construção de um aparato teórico

que desse sustentação, a partir da doutrina jurídica, ao que será abordado, tanto no

capítulo teórico ligado à Linguística, quanto no capítulo destinado à análise do corpus

selecionado. Assim, julgamos necessário deixar claro para o leitor desta tese a visão

aqui seguida a respeito do Direito Constitucional e da Doutrina de Segurança Nacional,

as quais serão retomadas pelos próprios preâmbulos dos Atos Institucionais. Além

disso, como se pretende demonstrar, a visão de Santos (1998) a respeito da relação entre

direito-discurso-sociedade permitiu a construção de um elo entre este capítulo e os

demais elaborados nesta tese.

Uma vez tecidos estes apontamentos de ordem jurídica, pode-se passar ao

próximo capítulo desta tese, quando serão abordadas as noções linguístico-discursivas

que interessarão mais de perto aos objetivos deste trabalho.

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2 CONSTRUINDO O ARCABOUÇO TEÓRICO

2.1 Introdução

No presente capítulo, serão abordados, de maneira conjunta, os conceitos

basilares para o desenvolvimento desta tese.

Este capítulo foi organizado tendo em vista o entendimento de que o princípio

do dialogismo fundamenta os demais conceitos aqui trabalhados (linguagem, signo,

enunciado, gênero discursivo), devendo, portanto, ser apresentado em um momento

preliminar. O conceito de linguagem, como se verá, está fortemente ligado ao de

dialogismo e remete aos demais aqui apresentados, uma vez que a linguagem tem como

um de seus traços ser dialógica, além de ser constituída por signos. Estes, por sua vez,

entram na composição dos enunciados, os quais se organizam em gêneros discursivos

diversos, entre eles os Atos Institucionais, nos quais estão presentes os respectivos

preâmbulos.

A partir da abordagem do conceito de signo, noção que, como mencionado,

perpassa muitas das noções aqui trabalhadas, será possível perceber seu caráter

dialógico e sua atuação como componente da linguagem e do enunciado. Assim, o signo

deve ser estudado juntamente com os conceitos de interação verbal e de ideologia, os

quais são componentes daquele conceito. As noções de linguagem e de enunciado, por

seu turno, também remetem ao dialogismo e ao signo, uma vez que são por este

constituídos, além de consistirem no fundamento do conceito de gênero discursivo, o

qual, na prática, consiste no que será materialmente abordado quando da realização dos

estudos analíticos dos preâmbulos dos Atos Institucionais que comporão o corpus desta

tese.

A partir do exposto até aqui e antes de dar início à abordagem propriamente dita

do arcabouço teórico que dá sustentação a esta tese, torna-se necessário abordar, embora

de maneira preliminar e breve, a noção de ideologia, tendo em vista tratar-se de conceito

que, embora não consistindo no objeto maior desta tese, perpassa muitos de seus

momentos. Tomaremos, nesse sentido, como base, os apontamentos de Chauí (2000),

tendo em vista seu poder de síntese a respeito da matéria, o que não exclui, como se

verá, a menção a outros autores.

Citando, inicialmente, Volochinov (1997), que bebe nas águas de Marx, diga-se

que aponta para o caráter social e histórico da consciência humana e para o consequente

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fato de que as condições concretas da existência do sujeito a determinam. Esse jogo de

determinações é, como ressalta o autor russo, verificável a partir da linguagem, como se

verá em momento oportuno desta tese.

Van Dijk (1996), por seu turno, aponta para o caráter sociocognitivo das

ideologias. De acordo com esse autor, trata-se de representações mentais socialmente

compartilhadas em um grupo social. Essas representações têm força suficiente para

controlar representações outras, por assim dizer, dominadas, bem como as consequentes

atitudes dos membros de um dado grupo. É importante considerar, nesse cenário, que,

por serem representações compartilhadas socialmente e construídas através da

linguagem, as ideologias podem alcançar uma posição de hegemonia dentro desse

grupo, mas, com o tempo, perderem força e desaparecerem. Isso pode ocorrer, por

exemplo, quando o dado grupo, defensor de dada ideologia, perde força dentro daquela

sociedade. Veja-se, por exemplo, o que ocorreu com a Doutrina de Segurança Nacional,

ao longo dos anos, no Brasil e em países latino-americanos.

Diga-se, enfim, que as ideologias são ideias determinadas historicamente e

dominantes em dado momento da vida em sociedade. Tais ideias constroem explicações

para fatos sociais e acabam por, paulatinamente, se oferecerem não mais como meras

explicações, mas como a realidade propriamente dita. Essas explicações, obviamente,

são construídas a partir do ponto de vista e dos interesses do grupo que se encontra no

poder em dada ocasião histórica. A linguagem, como será possível perceber, tem papel

preponderante nessa construção e nessa difusão de explicações.

Tudo isso se dá, como defende Chauí (2000), a partir da transmissão de ideias

criadas pelos grupos dominantes. São grupos pensantes, que dominam a consciência

social, construindo representações e as transmitindo a partir da religião, da escola, das

ciências e, para o que nos interessa, das leis e da ciência jurídica. O resultado desse

processo é a uniformização do pensamento do grupo social em questão e a naturalização

das posições ocupadas pelos seus membros.

A ideologia, então, nasce em uma sociedade dividida em classes sociais, as quais

vivenciam uma posição de antagonismo. O papel da ideologia, nesse ambiente, é o da

criação e manutenção de imagem de grupo social unificado e identificado com uma

ideia central. É nesse cenário, para o que interessa a esta tese, que se criam e se

reforçam as noções de pátria e de Estado, de ideais comuns a serem defendidos pelos

habitantes de um país.

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Chauí (2000) defende, também, que a ideologia ocupa o lugar e desempenha o

papel que anteriormente cabiam aos mitos e às teologias. É, modernamente, à ideologia

que cabe a função (já aqui mencionada) de apresentar explicações para a origem dos

homens e das funções por estes exercidas. Nesse processo, a ideologia tem por

finalidade maior realizar o apagamento dos conflitos existentes nas relações entre

capital e trabalho, tornando naturais, por exemplo, as posições de patrão e de

empregado, os quais deixam de ser vistos como explorador e explorado. Paralelamente a

isso, fica criado um ambiente discursivo em que não mais há lutas entre classes, não há

desigualdades sociais e, por fim, de que os membros de uma sociedade, no caso,

capitalista, são livres e iguais, principalmente, na pactuação do trabalho. No contexto

que interessa a esta tese, a partir da Doutrina de Segurança Nacional, foram criadas

imagens para os grupos que tomaram o poder e para aqueles grupos que buscavam

evitar aquela situação. Foram, enfim, criadas explicações e justificativas de atitudes que

foram e que seriam tomadas pelo grupo que assumira o poder no país.

Tudo isso, como não poderia deixar de ser, ocorre a partir da utilização da

linguagem, a qual abarca a noção de signo, que, como se sabe, a partir do Círculo de

Bakhtin, é o componente do enunciado mais hábil a veicular ideologias, ou seja, a

refletir, mas também a refratar a realidade socialmente vivenciada.

Feitos esses apontamentos, pode-se passar à abordagem dos componentes

teóricos que mais de perto interessam a este trabalho, o que será feito a partir das seções

seguintes deste capítulo.

2.2 O Dialogismo e a Linguagem: relações, implicações, aprofundamentos

2.2.1 O Dialogismo

Tendo, então, em vista tratar-se de pressuposto de tudo aquilo que será

desenvolvido nesta tese, torna-se fundamental abordar, já neste momento, o dialogismo.

Trata-se, regra geral, das relações que um enunciado trava com os demais enunciados,

sejam eles anteriores, sejam eles posteriores ao que está sendo produzido em dado

momento. Para os objetivos desta tese, torna-se interessante apontar para a profunda

relação entre dialogismo e linguagem, esta vista a partir de autores como Volochinov

(1997), Bakhtin (2003) e Ducrot (1984), dentre outros.

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A abordagem do dialogismo em momento prévio desta seção se justifica em

razão de questões de clareza na apresentação desse princípio e de suas implicações,

apesar de se ter consciência de que consiste, como ressaltado, em noção implícita às

demais. Essas interconexões de princípio e conceitos serão sentidas, inclusive, no

desenvolvimento desta seção, tendo em vista que, para se falar em dialogismo, é

necessário abordar, quase conjuntamente, os demais conceitos aqui mencionados.

Com se percebe, o dialogismo se liga diretamente à noção de signo linguístico, o

qual é componente do enunciado. Tudo isso remete à noção de linguagem, que tem por

característica ser dialógica, multiforme e interacional. Tal caracterização decorre do fato

de o uso da linguagem se dar nos campos de atividade humana. São esses campos que

determinam o trabalho de criação ideológica, o qual se orienta para a realidade de uma

maneira específica. Essa constatação diz respeito ao fato de que a situação social

imediata (ou seja, as condições reais de enunciação) determina toda a enunciação. São,

portanto, essa situação e, além dela, o que Volochinov (1997) denomina “auditório”, no

qual a linguagem é utilizada, que determinam as dimensões e as formas da enunciação

desenvolvida, obrigando o locutor a construir seu discurso de uma dada maneira e,

consequentemente, os demais participantes da situação enunciativa a adotarem

determinada posição responsiva em relação àquela enunciação. Isso leva a pensar a

linguagem como uma atividade que emerge de amplo, complexo e infinito processo

enunciativo desenvolvido em um grupo social. Sendo fenômeno ideológico e inserindo-

se nos campos de atividade humana e de criatividade ideológica, na construção de

objetos de discurso, reflete e refrata a realidade.

Como será enfatizado ao longo desta tese, os enunciados encontram-se inseridos

no que Bakhtin (2003) denomina cadeia de comunicação discursiva de uma determinada

esfera de comunicação. Uma vez que se encontram nesse espaço, há um forte

relacionamento entre eles. É nesse sentido que se pode falar em dialogismo. Por outras

palavras, os enunciados estão em constante interação e refletem-se uns nos outros. É

através desse processo de reflexo mútuo que um enunciado complementa-se a si

mesmo, bem como aos demais com que se relaciona, havendo respostas de um em

relação aos outros, em uma esfera de comunicação discursiva. Assim, sempre seguindo

os apontamentos de Volochinov (1997) a respeito da noção de dialogismo, o enunciado

pode subentender outros enunciados, levá-los em consideração em sua composição, bem

como rejeitar, confirmar ou complementar os enunciados com que se relaciona, além de

poder se complementar a partir deles. Esse é um movimento que o aludido autor

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denomina “atitude responsiva” e que é um dos elementos constituintes do processo de

enunciação e, portanto, da atividade de linguagem.

Nesse processo enunciativo de interação, em que um enunciado responde aos

precedentes, o posicionamento de um enunciador somente pode ser definido a partir do

relacionamento com posicionamentos outros, tendo em vista o complexo processo

comunicacional que ocorre em dado grupo. É nesse sentido que Volochinov (1997)

defende a tese aqui mencionada de que os enunciados são elos de uma corrente

comunicacional, além de serem plenos de ecos de outros enunciados e de diversas

atitudes responsivas anteriores à sua produção.

Abordar, então, a noção de dialogismo significa considerar que o significado de

um enunciado é determinado pelos enunciados que com ele interagem, produzidos na

atividade de linguagem. Esta, tendo em vista as características aqui mencionadas,

produz efeitos verificáveis na experiência exterior ao sujeito. Sendo constituída de

enunciados (produtos da atividade de linguagem e construídos a partir da utilização de

signos), pode, como mencionado, ser vista como fenômeno ideológico. Essa

constatação leva a outras, como a de que a linguagem reflete e refrata uma realidade a

ela exterior (conclusão que muito interessa ao estudo a ser desenvolvido a respeito da

referenciação) e a de que possui significado que remete ao mundo a ela externo.

De acordo com Volochinov (1997), nesse sentido, a linguagem encontra-se

inserida em processo de compreensão, que necessita do signo para ter forma. Assim,

para haver a compreensão de um signo, é necessário que este seja relacionado,

responsivamente, a outro signo. Há, portanto, uma ininterrupta cadeia responsiva

(dialógica, portanto) de um signo em relação a outros signos, de um signo a ser

compreendido em relação a signos cuja compreensão já se deu. É nesse sentido que se

pode falar em dialogismo como elemento constitutivo da linguagem. É a partir dessa

noção que se pode perceber o caráter responsivo/polêmico da linguagem. Citando

Bakhtin (2003, p. 298), diga-se que “a expressão do enunciado, em maior ou menor

grau, responde, isto é, exprime a relação do falante com os enunciados do outro, e não

só a relação com os objetos do seu enunciado”. Dessa forma, percebe-se que todo

discurso é marcado pelo dialogismo, o que significa dizer que, seja de maneira

implícita, seja de maneira marcada, a voz do outro estará presente no texto produzido e

será acentuada diferentemente, a partir da esfera social na qual é introduzida e citada.

Assim, ainda no âmbito do dialogismo, pode-se falar em polifonia, o que conduz

a abrir parêntesis na abordagem aqui desenvolvida para passar à discussão a respeito das

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maneiras como os enunciados, na atividade de linguagem, podem ser introduzidos e,

também, acentuados. Voltar-se-á a esse tema ainda neste capítulo. Por enquanto, diga-se

tratar-se das diferentes formas de reação de vozes/enunciados na interação verbal.

Assim, a atividade responsiva, que se dá a partir da inserção do enunciado alheio

naquele construído pelo enunciador, ocorre quando o alheio é diretamente introduzido

no contexto enunciativo então elaborado ou mesmo quando palavras ou orações são ali

inseridas, o que leva a perceber tais itens como fragmentos representantes de outros

enunciados, estes, plenos. Nesses casos, as inserções tendem a ser assimiladas pelo

discurso incorporador. Pode ocorrer, ainda, de palavras isoladas e enunciados plenos, ao

serem inseridos no enunciado incorporador, conservarem seu caráter de incorporados,

sem maiores assimilações. Uma diferença que acontece quanto aos processos

mencionados é que, no caso da assimilação de palavras ou enunciados, pode ocorrer o

que Bakhtin (2003) conceitua como reacentuação (por exemplo, de ironia, indignação,

reverência) de enunciados alheios, o que já não ocorre no outro caso aqui mencionado.

Veja-se, nesse sentido, o que diz o autor a respeito da relação entre o discurso

citante e o discurso do outro, o que corrobora o até aqui trabalhado a respeito do

dialogismo:

O discurso do outro, desse modo, tem uma dupla expressão: a sua, isto é, a alheia, e a expressão do enunciado que acolheu esse discurso. Tudo isso se verifica, antes de tudo, onde o discurso do outro (ainda que seja uma palavra que aqui ganha força de um enunciado pleno) é citado textualmente e destacado com nitidez (entre aspas): os ecos da alternância dos sujeitos do discurso e das suas mútuas relações dialógicas aqui se ouvem nitidamente. Contudo, em qualquer enunciado, quando estudado com mais profundidade em situações concretas de comunicação discursiva, descobrimos toda uma série de palavras do outro semilatentes e latentes, de diferentes graus de alteridade. Por isso o enunciado é representado por ecos como que distantes e mal percebidos da alternância dos sujeitos do discurso e pelas tonalidades dialógicas, enfraquecidas ao extremo pelos limites dos enunciados, totalmente permeáveis à expressão do autor. (BAKHTIN, 2003, p. 299)

É interessante, nesse sentido, perceber que, tanto o sujeito enunciador não é o

primeiro a enunciar a respeito de um dado referente, quanto o objeto discursivo não é

tomado e construído pela primeira vez no discurso desse sujeito. O sujeito enunciador

entra na corrente discursiva existente no grupo social a partir do qual enuncia e, tendo

em vista os objetivos e demais conhecimentos por ele levados a esse ambiente

enunciativo, atua na reconstrução do objeto discursivo, que, por sua vez, já está

amplamente abordado, ponderado e reconstruído por enunciadores anteriores, os quais

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também levaram a esse objeto suas próprias visões de mundo e seus objetivos. Tudo

isso feito a partir da relação entre linguagem e mundo, o que se dá, na enunciação, por

meio dos signos, da palavra. Isso leva à conclusão, segundo Volochinov (1997), de que

o enunciado, mobilizado na atividade linguageira da enunciação, é apenas um dos

elementos ligados à ampla cadeia comunicacional na qual o enunciador atual constrói

seus enunciados. Esse elo enunciativo é determinado, interna e externamente, pelos

demais elos, que acarretam atitudes responsivas desse enunciado, o qual vai acarretar

outras, a partir de seu relacionamento com outros enunciados.

Voltando à abordagem da compreensão responsiva, fechando, portanto, os

parêntesis então abertos, um dado apresentado por Bakhtin (2003) é de grande

relevância para os objetivos desta tese. Trata-se da possibilidade de a compreensão

ativamente responsiva realizar-se logo após a ação, ou ter o que se classifica como

efeito retardado, bem como ser silenciosa. Isso, contudo, não deve levar ao

entendimento de que a compreensão responsiva pode não ocorrer. Na verdade, sempre

ocorrerá, mesmo a resposta demorando a ser externalizada ou ocorrendo apenas

internamente ao sujeito que compreende. De toda a forma, esse sujeito, em um dado

momento de sua vida, acabará por utilizar em seus enunciados muito de tudo aquilo que

ouviu. Essas maneiras de responder ao que foi ouvido, como será possível perceber

neste trabalho, podem ser verificadas no caso do discurso aqui analisado.

Um Ato Institucional (como um todo), que poderia ser considerado aqui como o

discurso a ser ativamente compreendido, é resultado da compreensão ativamente

responsiva de seu locutor, mas também gerará em seus interlocutores (no caso, aqueles

que tiverem acesso aos seus dizeres ou deles tomarem conhecimento de alguma forma

indireta, a partir de algum instrumento midiático, por exemplo) determinadas atitudes,

em um ininterrupto processo dialógico. Essa compreensão gerará processo enunciativo a

partir da atuação dos cidadãos favoráveis ou contrários ao Regime (para o que interessa

aos objetivos deste trabalho), o que pode ser reafirmado ou cair em desuso, a partir das

atitudes posteriores dos integrantes desse processo.

Ainda no que diz respeito à atitude responsiva do locutor, pode-se perceber que

ela está presente no próprio discurso, podendo ser verificada a partir da percepção dos

recursos linguísticos selecionados pelo enunciador, pela entonação utilizada, pelo

eventual destaque dado a um elemento em detrimento de outros, pelas repetições de

expressões, ou mesmo pela ausência de determinada expressão que poderia ali estar

presente, em dada situação discursiva.

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Outro fator de importância para os objetivos desta tese, presente também no que

se refere à atitude responsiva, é a questão do que Bakhtin (2003) classifica como “obra”,

esta vista a partir do conceito de réplica do diálogo. Segundo o autor, mesmo quanto a

uma obra discursiva, por assim dizer, acabada, é possível haver, por parte dos

interlocutores, uma atitude responsiva, pois há predisposição dessa obra para a atitude

responsiva de seus interlocutores. Isso, porque a obra, vista como discurso, como

enunciado, como resultado da atividade linguageira da enunciação, também é um elo na

cadeia da comunicação discursiva. Justamente por ser parte de um processo enunciativo,

a obra também determina o posicionamento dos sujeitos que com ela interagem.

No que se refere às formas que a compreensão responsiva da obra pode assumir,

diga-se que giram em torno de ações como influência educativa sobre leitores, respostas

críticas por parte dos leitores da obra, influência sobre seguidores e continuadores. Por

outras palavras, a obra é resultado de todo o processo de discussão anterior ocorrido a

respeito do referente por ela abordado na construção dos objetos de discurso. É,

portanto, uma resposta ao que foi até então discutido. Essa resposta pode levar o leitor a

adotar a postura social por ela sugerida, mas pode levá-lo a adotar uma postura de

questionamento, de crítica em relação ao que foi por ele interpretado e compreendido.

Há, ainda, a possibilidade de o sujeito ser influenciado pela obra compreendida e

ativamente respondida. Esse sujeito tenderá a seguir o que ali se disse, ou mesmo a

continuar essa obra. É esse terceiro aspecto, como se verá, que interessa mais de perto

aos objetivos desta tese. Diga-se, por hora, que há vínculos entre os enunciados das

diversas obras, que se respondem mutuamente, mas também há demarcações dos limites

desses enunciados, que, da mesma forma que ocorre com os gêneros discursivos, se dão

a partir da alternância de sujeitos do discurso, como é fortemente defendido por Bakhtin

(2003). Tudo isso, como mencionado em diversos momentos desta tese, se dá a partir da

linguagem.

2.2.2 A Linguagem

Neste momento desta tese, torna-se necessário tecer algumas considerações a

respeito do conjunto dos estudos realizados por Bakhtin sobre a linguagem, sobre a

conceituação de linguagem adotada neste trabalho.

Assim, para o autor russo, uma das características da linguagem é seu caráter de

situacionalidade, ou seja, de ser utilizada em situações social e histórica concretas, e não

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no vácuo. Esses fatores determinam o significado da palavra enunciada, uma vez que

este é construído no interdiscurso social, o qual tem características e formas variáveis,

mas que interferem na aludida produção de sentidos. A linguagem, então, vista como

atividade desenvolvida pelos sujeitos inseridos nos campos de atividade humana, é

influenciada pelas condições históricas, pelo tempo em que o enunciado foi produzido e

pelo lugar dessa produção. O sujeito enunciador, envolvido na prática de linguagem,

avalia o grupo social no qual enuncia e busca atualizar sua atividade de maneira a fazê-

la presente linguisticamente, mas também como fato social, o que corrobora a tese

bakhtiniana de que a atividade de linguagem, a enunciação, é factual e não meramente

um recurso gramatical mobilizado por alguém que fala ou escreve.

Cabe dizer, ainda, que a mencionada avaliação do grupo social, ou, mais

diretamente, avaliação social, interfere na organização dos enunciados pelo enunciador

e naqueles deixa marcas do processo enunciativo. Essa constatação, como visto em

outros momentos desta tese, insere na linguagem o caráter ideológico do signo

linguístico, bem como sua determinação por fatores sociais, como o lugar de onde o

sujeito enuncia ou mesmo os objetivos do enunciador ao enunciar.

Assim, a partir de Volochinov (1997), pode-se dizer que o signo linguístico é a

base para a manifestação da ideologia e que o dialogismo é constitutivo da linguagem.

Dessa forma, a linguagem, atividade realizada pelos sujeitos a partir da utilização de

signos, é ideológica e dialógica. Essa caracterização da linguagem leva, também, à

caracterização do sujeito como ideológico, haja vista que o sujeito utiliza a linguagem a

partir de um lugar e com determinados objetivos.

De acordo com o autor em tela e tendo em vista o que se defendeu no parágrafo

anterior, a linguagem é um fenômeno ideológico e possui significado, o qual remete a

uma realidade exterior a ela. Se se percebe a linguagem como fenômeno ideológico e se

se consegue vê-la como possuidora de um significado, pode-se entendê-la como um

produto que reflete ou refrata a realidade a ela exterior, como todo fenômeno

ideológico.

Entender a linguagem como fenômeno ideológico significa considerá-la como

sendo capaz, como mencionado, de refletir a realidade a que se refere, mas também de

distorcê-la ou mesmo de a ela se referir a partir de um ponto de vista específico, sempre

marcado pelo caráter ideológico do signo, uma vez que, nos dizeres de Volochinov

(1997), os signos, nos campos de atividade humana, são ideológicos e, a sua maneira, se

orientam para a realidade. Assim, o sujeito que utiliza a linguagem o faz a partir

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daqueles campos e, influenciado por eles, tende a deixar em seus enunciados marcas dos

valores adotados por tais campos.

Outra consequência do entendimento da linguagem como fenômeno ideológico é

a percepção de que a compreensão é perpassada pela ideologia da esfera de

comunicação na qual se dá. Essa constatação também direciona a abordagem para a

percepção da linguagem como fenômeno dialógico. Essa visão leva a perceber a

atividade de linguagem como o lugar em que surge a palavra, sendo esta vista como o

“fenômeno ideológico por excelência” (VOLOCHINOV, 1997, p. 36). Além disso, é

através da palavra que se dá o relacionamento entre indivíduos no grupo social, sendo

este multifacetado e dinâmico.

2.2.3 A Palavra

A palavra, constituinte da linguagem, é fator obrigatório quando se busca estudar

a ideologia de um grupo social, bem como suas leis de refração ideológica, uma vez que

os sujeitos realizam seus atos de compreensão da realidade e de interpretação a partir

desse signo linguístico. O sujeito, então, constrói seus enunciados, que apresentam os

objetos de discurso construídos, os quais são plenos de material ideológico.

É importante considerar, no estudo da palavra enquanto signo linguístico, o

caráter interacional que lhe é constitutivo. Ela é, sempre a partir de Volochinov (1997),

“o produto da interação do locutor e do ouvinte” e é utilizada pelo locutor a partir de

tudo aquilo que construiu a respeito do interlocutor por ele previsto ou detectado

naquela interação. É por meio da palavra que o locutor se expressa e se define em

relação ao seu ouvinte, que pode ser um sujeito concreto e em presença, bem como um

sujeito virtual, ou mesmo a coletividade. O autor mencionado (1997) aponta, nesse

sentido, para o fato de que a palavra consiste no “território comum do locutor e do

interlocutor”. Essa constatação permite reiterar o caráter dinâmico e multifacetado da

linguagem. Além disso, pela análise das palavras selecionadas pelo locutor, é possível

verificar as imagens construídas durante aquele processo, seja dos interlocutores, seja

dos referentes. Veja-se, nesse sentido, como Bakhtin (2003) se posiciona:

Os significados lexicográficos neutros das palavras da língua asseguram para ela a identidade e a compreensão mútua de todos os seus falantes, contudo o emprego das palavras na comunicação discursiva viva sempre é de índole individual-contextual. Por isso pode-se dizer que qualquer palavra existe para o falante em três aspectos: como palavra da língua neutra e não pertencente a

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ninguém; como palavra alheia dos outros, cheia de ecos de outros enunciados; e, por último, como a minha palavra, porque, uma vez que eu opero com ela em uma situação determinada, com uma intenção discursiva, ela já está compenetrada da minha expressão. Nos dois aspectos finais, a palavra é expressiva mas essa expressão, reiteramos, não pertence à própria palavra: ela nasce no ponto de contato da palavra com a realidade concreta e nas condições de uma situação real, contato esse que é realizado pelo enunciado individual. Neste caso, a palavra atua como expressão de certa posição valorativa do homem individual (de alguém dotado de autoridade, do escritor, cientista, pai, mãe, amigo, mestre, etc.) como abreviatura do enunciado. (BAKHTIN, 2003, p. 294)

Trata-se de importante ponderação, que se soma ao exposto no parágrafo anterior. De

acordo com o autor, as escolhas de itens lexicais não se baseiam apenas nas palavras em

estado de dicionário. Há dialogismo já nesse processo de escolha, uma vez que aqueles

itens são retirados de outros enunciados, os quais são produzidos em momentos

anteriores, em um gênero discursivo. Como se sabe, os gêneros discursivos são postos

em uso em uma situação típica de comunicação, transferindo aos enunciados de que são

compostos as influências das mencionadas circunstâncias. Todo esse processo é

determinante, como se disse, da escolha e da significação das palavras utilizadas pelo

locutor em um processo de interação verbal.

Tudo o que foi até aqui abordado a respeito da palavra aponta para o fato de que

ela possui (1) um aspecto de neutralidade, (2) um aspecto de alteridade e (3) um aspecto

de propriedade. O primeiro deles refere-se ao fato de que a palavra pode ser vista como

item lexical, pertencente à língua como sistema, e não à língua como enunciação.

Contudo, são os dois últimos aspectos que mais interessam a esta tese: alteridade (2) e

propriedade (3). Quanto a (2), diga-se que consiste no fato de que a palavra pode ser

vista pelo falante como pertencente ao outro, que a palavra traz em si os ecos de outros

enunciados, de outras situações comunicacionais, do debate anterior a respeito de um

referente. Já em relação a (3), pode-se dizer que a palavra é vista como pertencente ao

sujeito falante, mas já perpassada por toda a gama de enunciados anteriores, o qual, por

sua vez, nela inserirá suas intensões discursivas, sua ideologia, sua expressão de sujeito

do discurso. Assim, se o sujeito enunciador sabe que a palavra pertence a uma língua e,

em tese, possui um significado linguístico, também sabe que pode receber sentidos

outros, de outros sujeitos enunciadores e, além do mais, ser carregada por outros novos

sentidos, desta vez, levados pelo sujeito enunciador atual. É o próprio Bakhtin (2003)

que ressalta, nesse sentido, o fato de a expressão do pensamento do sujeito enunciador

refletir o processo de interação e luta do pensamento daquele sujeito com os

pensamentos alheios.

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2.2.4 A Interação Verbal

Tendo em vista o exposto, deve-se abordar o processo de interação verbal, uma

vez que, como mencionado, este se dá por meio da linguagem e se desenvolve a partir

da atuação de indivíduos socialmente organizados.

Interação verbal pressupõe comunicação. Para que esta ocorra (e para que haja a

necessária ativa compreensão responsiva), por meio da linguagem, é necessário haver,

mesmo que virtual, um interlocutor, ao qual a palavra utilizada pelo locutor irá se

dirigir. Tal palavra é selecionada a partir da percepção que o locutor tem de seu

interlocutor, mesmo que, como mencionado, não consista em interlocutor real e em

presença. Além disso, não é apenas o interlocutor que determina as escolhas lexicais

realizadas pelo locutor. As relações sociais que se dão em um grupo também são

determinantes nessas escolhas.

Se, sempre a partir do pensamento de Volochinov (1997), o meio social concreto

que engloba o locutor determina sua visão de mundo, a imagem que aquele tem a

respeito de seu interlocutor determina sua expressão. Se a visão de mundo do locutor

determina as escolhas de itens lexicais que realiza, seu relacionamento com o

interlocutor também o faz. É nesse sentido que o autor em tela defende que a palavra é o

produto da interação verbal entre locutor e ouvinte e que consiste em ponte, em

território comum entre ambos. É, também, nesse sentido que se pode perceber o caráter

interacional da linguagem e ressaltar o fato de que o gênero discursivo é fator relevante

em todo esse processo, pois é entidade de linguagem, sendo construído e influenciado

em uma dada sociedade, a qual interfere, a partir de sua complexa dinâmica, naquele.

Trata-se de uma relação em que a sociedade, a luta ideológica e a luta hegemônica

influenciam na escolha e na movimentação do gênero discursivo, o que coloca em cena

os diversos enunciadores. Tudo isso se volta para a sociedade e, em movimento de

retorno, influencia as relações que ali se desenvolvem.

Nesse contexto, pode-se considerar a noção bakhtiniana de enunciado, que

consiste na real unidade de comunicação discursiva, constituindo-se na relação com os

diversos interlocutores envolvidos no processo de enunciação. Por outras palavras,

trata-se de um elo que se relaciona com o autor e com os demais participantes do

processo de interação que lhe deu origem, sendo, por um lado, proveniente de um

sujeito e, por outro, provocando a resposta ativa do interlocutor (compreensão

responsiva).

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Nesse sentido, os enunciados, inseridos em campos de atividade humana e sendo

por estes determinados, refletem suas condições e finalidades. Trata-se, então, da real

unidade da comunicação discursiva, o que significa defender que o discurso somente

existirá na forma de enunciações concretas produzidas por sujeitos concretos. Assim,

gêneros discursivos e sujeitos estão em atuação durante o desenvolvimento de uma

atividade de linguagem, com os sujeitos mobilizando conhecimentos e visando a

determinados objetivos, o que se manifesta através das ações linguageiras

materializadas nos textos.

Na construção de enunciados, o sujeito considera as especificações advindas do

gênero discursivo para proceder à escolha de palavras e da forma de sua utilização. Ou

seja, na maioria das vezes, leva em consideração outros enunciados, congêneres quanto

a tema, composição e estilo.

2.2.5 O Gênero Discursivo

De acordo com Bakhtin (2003, p. 262), a quem seguimos, os gêneros discursivos

são “tipos relativamente estáveis de enunciados”, elaborados nos campos de utilização

da língua, estando vinculados à evolução histórica do grupo social no qual são

utilizados. Essa característica dos gêneros discursivos acarreta o que se tem classificado

como relativa estabilidade, haja vista a influência exercida pela mencionada

historicidade e pela ação valorativa dos membros do grupo social. São os gêneros

discursivos fórmulas linguísticas criadas a partir de práticas sociais, com o objetivo de

suprir necessidades comunicacionais. A evolução dessas formas ocorre a partir da

avaliação, realizada pelos interlocutores, de sua eficácia de uso.

O mencionado até aqui demonstra que o gênero discursivo molda os enunciados

dos interlocutores, fazendo com que aqueles não sejam combinações livres de formas da

língua, mas entidades enquadradas em um gênero discursivo e por ele determinadas. É

nesse sentido que se pode ressaltar, de acordo com Bakhtin (2003), que “falamos apenas

através de determinados gêneros do discurso, isto é, todos os nossos enunciados

possuem formas relativamente estáveis e típicas de construção do todo” (BAKHTIN,

2003, p. 282. Grifos do autor).

Nesse campo de análise, como os enunciados são construídos a partir da

especificação advinda do gênero discursivo, pode-se falar em formas típicas dos

enunciados, o que faz o gênero discursivo incluir expressão típica, que é passada às

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palavras que nele se inserem, o que faz os gêneros discursivos corresponderem a temas

e a situações típicas da comunicação discursiva.

Outra característica dos gêneros discursivos, trazida pelo autor em tela (2003),

reside no fato de que, a partir deles, é possível ao sujeito, tendo em vista seus objetivos

discursivos, utilizar estratégias textuais as mais diversas e selecionar formas

linguísticas, o que pode explicitar, discursivamente, a individualidade desse sujeito.

A partir dessas constatações é possível abordar mais de perto a enunciação, que

resulta da interação de indivíduos organizados socialmente. Essa interação se dá no que

Volochinov (1997, p. 112) denomina “horizonte social definido e estabelecido”, o qual

determina a criação ideológica do grupo no qual se insere o enunciador. Assim, nesse

horizonte social, o locutor escolhe as palavras que comporão seus enunciados, a partir

de um complexo conjunto de imagens construído a respeito de um eventual/real

interlocutor e do próprio referente sobre o qual construirá objetos discursivos em seus

enunciados.

Neste momento, pode-se citar o aludido autor, o qual ressalta que

qualquer que seja a enunciação considerada, (...) na sua totalidade, é socialmente dirigida. Antes de mais nada, ela é determinada da maneira mais imediata pelos participantes do ato de fala, explícitos ou implícitos, em ligação com uma situação bem precisa; a situação dá forma à enunciação, impondo-lhe esta ressonância em vez daquela, (...). A situação e os participantes mais imediatos determinam a forma e o estilo ocasionais da enunciação. Os estratos mais profundos da sua estrutura são determinados pelas pressões sociais mais substanciais e duráveis a que está submetido o locutor. (VOLOCHINOV, 1997, p. 113-114)

Seguindo o pensamento de Volochinov (1997), que corrobora o que se tem

defendido ao longo desta tese, diga-se que, antes mesmo de enunciar, o sujeito encontra-

se às voltas com as pressões sociais que ocorrem em diversos níveis e com forças

também diversas. É a partir dessa situação que o enunciador realiza suas atividades

linguageiras, as quais, certamente, como ressaltado, tendem a apresentar marcas do

ambiente discursivo em questão. Assim, a situação social mais imediata determina a

expressão linguística dos sujeitos, apesar de estes contarem com margem de manobra

através da qual podem realizar as mencionadas seleções de formas linguísticas e

construções de estratégias discursivas. Tudo isso ocorre por meio da enunciação,

realizada por sujeitos socialmente organizados, que atuam levando em consideração um

interlocutor, ser real ou criação de um representante médio do grupo social. Portanto, os

enunciados produzidos sofrerão influência daquele interlocutor e de tudo o que ele

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representa, como grupo social a que pertence, posição ocupada na hierarquia social,

laços que o ligam ao outro interlocutor. Assim, a seleção do gênero discursivo a ser

utilizado em dado momento deve levar em consideração o processo concreto de

interação, que é influenciado pela sociedade mais ampla e pela interação mais direta.

No processo de construção de enunciados, na atividade linguageira, como

ressaltado em vários momentos desta tese, o sujeito enunciador lança mão de palavras,

as quais, como se sabe, são embebidas de ampla carga ideológica e, também, de vozes

de outros enunciadores, que as utilizaram em dada situação discursiva. A escolha das

palavras a serem utilizadas ocorre a partir de enunciados outros, semelhantes, quanto ao

gênero discursivo, ao que está sendo elaborado. Essa semelhança, tendo em vista a

teoria dos gêneros discursivos, se dá em relação ao tema, à construção composicional e

ao estilo.

Vendo, a partir de Bakhtin (2003), o gênero discursivo como forma típica do

enunciado, pode-se, seguindo o autor, apontar para o fato de que a palavra recebe a

expressão típica do gênero discursivo, quando é utilizada em um enunciado. Essa

constatação leva a outra, do mesmo autor, segundo a qual tais expressões típicas podem

se sobrepor aos significados das palavras vistas fora da enunciação, uma vez que é no

gênero discursivo que se dá o contato entre a realidade concreta e os significados das

palavras. É, então, necessário ressaltar o fato de que a palavra possui expressividade, a

qual se dá na sua inserção em um enunciado, quando aquela entra em contato com a

realidade à qual faz referência. Esse contato ocorre a partir de uma situação

comunicativa concreta e a partir dos enunciados individuais ali produzidos. Isso leva à

constatação do caráter individual-contextual do emprego da palavra em uma situação

comunicacional.

A pergunta que se coloca neste momento, e que interessa de perto à

concretização dos objetivos desta tese, é: como o aludido caráter multiforme/dialógico e

o fenômeno ideológico se fazem notar na linguagem? A resposta vem de Bakhtin

(2003), que elenca o conteúdo temático, o estilo e a construção composicional,

componentes do gênero discursivo, como responsáveis por tal fato. É nesse sentido que

se entende que a linguagem, através da utilização realizada pelos sujeitos que enunciam,

constrói a realidade (constrói objetos de discurso, portanto), a partir do processo

enunciativo. Os enunciadores, então, ao realizarem esse processo, selecionam recursos

linguísticos (palavras, frases, outros recursos gramaticais, o estilo propriamente dito)

para construírem seus objetos de discurso (noção relativa à referenciação, na qual nos

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aprofundaremos em momento específico desta tese), nos enunciados. Pode-se, então,

dizer que os sujeitos que atuam na construção desses objetos, em uma enunciação, por

meio, portanto, da linguagem, o fazem a partir dos signos, que, além de serem um

reflexo da realidade, criado a partir de um ponto de vista específico, são fragmentos

dessa realidade.

Pode-se, então, tendo em vista o exposto, abordar o gênero discursivo Ato

Institucional, aqui visto como o somatório entre preâmbulo e parte normativa.

De acordo com doutrinadores do Direito, como, por exemplo, Nader (2015),

Mata-machado (2005), Bonavides (2003) e Freire (2001), para citar apenas os mais

tradicionais, as normas são classificadas a partir de vários critérios. Dentre esses

critérios podem ser citados a matéria abordada por essas normas e a instância que lhes

deu origem.

É possível perceber, a partir da leitura da maioria dos instrumentos normativos,

que são compostos, geralmente, por uma seção na qual são apresentados os objetivos e

justificativas maiores da elaboração desse instrumento. São os preâmbulos, as

considerações iniciais, as exposições de motivos. Trata-se, como mencionado em

momento anterior desta tese, de parte do gênero discursivo texto normativo lato sensu

que apresenta justificativas para a edição da norma e as diretrizes interpretativas

iniciais. Na sequência, são apresentados os dispositivos normativos, os quais são

construídos como descrição da conduta a ser evitada e a respectiva sanção (no caso de

textos normativos do Direito Penal), ou mesmo como descrição da conduta a ser tomada

(no caso, por exemplo, de textos normativos do Direito Administrativo).

Os textos que compõem a parte normativa são construídos na forma de

enunciados curtos, denominados caput, parágrafo, inciso e alínea, sendo o primeiro

responsável por apresentar a norma geral e os demais, quando for o caso, por apresentar

especificações. Essa é, em tese, a configuração geral de um texto normativo lato sensu,

no que não nos aprofundaremos aqui, por não ser o objetivo desta tese.

O que nos interessa mais de perto é aquilo que difere o Ato Institucional dos

demais instrumentos normativos então existentes: a matéria tratada e a instância de

elaboração.

Esse instrumento normativo teve vida curta no país, contando com 17 edições, as

quais se restringiram aos anos iniciais do Regime. Em linhas gerais, a matéria ali tratada

é de natureza constitucional, uma vez que se buscava organizar o Estado como um todo,

principalmente em questões relativas à segurança nacional e organização dos Poderes da

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República. Em relação à origem, trata-se de instrumento proveniente do Executivo

federal, que o edita sem a necessidade de submetê-lo à apreciação do Legislativo e sem

a correspondente avaliação do Judiciário, conforme, neste caso, fica ressaltado em

diversos momentos do texto jurídico. Essa característica aproxima o Ato Institucional,

enquanto gênero discursivo, dos Decretos-lei, que eram previstos pela Constituição de

1967 e que não foram alcançados pela Constituição de 1988. A diferença entre esses

dois instrumentos normativos reside na matéria a ser ali discutida, sendo o Ato

Institucional mais amplo do que o Decreto-lei. Assim, de acordo com Art. 58 da

Constituição de 1967, é da iniciativa do Presidente da República a expedição de

decretos com força de lei, os quais podem ter como matéria questões de segurança

nacional e questões relativas à ordem financeira. Essa expedição deve respeitar os casos

de urgência e de interesse público relevante. Outro fator que diferencia esses

instrumentos é a previsão, para o Decreto-lei, de submissão à aprovação do Congresso

Nacional, o que não ocorre no caso dos Atos Institucionais.

Tendo em vista as características acima, o Ato Institucional, visto em

comparação com o ordenamento jurídico atual, tem uma configuração bastante

semelhante à da Medida Provisória, atualmente adotada pelo Executivo federal e

disciplinada pela Constituição de 1988. A diferença maior reside no fato de que tais

Medidas devem ser submetidas à apreciação do Congresso Nacional em prazo

estipulado pela Constituição da República, sob pena de serem automaticamente

revogadas. Além do mais, de acordo com a Constituição, é necessário que os assuntos

regulamentados a partir dessas Medidas observem o caráter de urgência, sendo que as

matérias não urgentes devem ser regulamentadas por outros instrumentos, como a lei

ordinária, por exemplo.

Os Atos Institucionais, como se pode observar a partir da leitura da História

nacional, com natureza claramente autoritária, foram utilizados apenas no Regime

Militar. Sua natureza ditatorial e seu alardeado caráter constitucional permitem ao Chefe

do Executivo tomar atitudes que ultrapassam e se sobrepõem a qualquer outra norma

então vigente e limitadora de poderes. Esse instrumento foi utilizado para criar uma

atmosfera de legalidade/legitimidade para o que se implantava no país naqueles anos.

É interessante tratar, também, da maneira como os Atos Institucionais são

escritos, ou seja, de sua construção composicional. Veja-se, então, nas páginas

seguintes, cópia digitalizada da íntegra do Ato Institucional número 5:

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Em linhas gerais, estruturalmente, esses Atos seguem a organização em

introdução (preâmbulo, considerações iniciais) e parte normativa. Na primeira parte,

regra geral, busca-se apresentar a justificativa para a edição daquele Ato e a

fundamentação das medidas tomadas nos dispositivos normativos daquele instrumento.

Já a segunda parte apresenta as determinações a serem seguidas pela sociedade a partir

da entrada em vigor do texto legal.

Como se abordará, nesta tese, mais detidamente, a construção dos

preâmbulos/considerações iniciais dos Atos, remete-se o leitor ao capítulo

correspondente (Capítulo 5). Diga-se, preliminarmente, que aqueles textos normativos

seguem uma estrutura de defesa de ponto de vista (estrutura argumentativa) e o fazem a

partir da divisão em dois grupos temáticos, ou seja, “Revolução” e “Antirrevolução”.

No caso da “Antirrevolução” trata-se de grupos contrários à “Revolução”. Essa

estruturação será caracterizada a partir da seleção de itens lexicais postos em cena pelo

locutor.

No que se refere à parte normativa dos Atos, como mencionado, segue a

organização característica de um texto normativo convencional, ou seja, são divididos

em caput, parágrafos, incisos e alíneas, cada um com sua função na organização da

informação.

Olhando esses dispositivos a partir de sua organização linguística, ou seja, do

estilo, o que salta aos olhos é a escolha dos verbos postos em cena. Regra geral, nos

textos analisados, o que predomina é a presença do futuro do presente e do presente do

indicativo. Encontra-se, ainda, a utilização de locuções verbais, muitas vezes no uso

condicional. O futuro do presente é utilizado a fim de estabelecer procedimentos a

serem adotados pelos destinatários dos artigos nas situações ali mencionadas. Há,

contudo, como dito, a possibilidade, nesse caso, da construção de locução verbal, dando

ao texto ares de possibilidade e não de determinação. No que se refere ao uso do verbo

no presente do indicativo, a tendência maior é de surgirem em momentos de retiradas de

direitos ou mesmo de apresentação de restrições a dados grupos, o que não exclui a

possibilidade de utilização para ações, por exemplo, de criação de órgãos e de

atribuições.

Outra característica de estilo do texto normativo dos Atos Institucionais é a

topicalização de determinados elementos discursivos. A organização básica, contudo, é

a presença do sujeito como primeiro elemento das orações, em estruturação prototípica

de sujeito e predicado. Porém, de acordo com os interesses do locutor, pode ser dada

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ênfase a algum aspecto, como, por exemplo, a construção de uma condição para alguma

ação a ser praticada ou vetada de acordo com o artigo em questão, ou mesmo a

marcação de um agente ou de uma ação para o que ali se menciona.

2.2.6 A Polifonia

Tendo em vista o até aqui exposto, pode-se passar à abordagem do conceito de

polifonia, trazido por Ducrot (1984). Esse conceito, como se defendeu em outros

momentos desta tese, tem por fundamento a noção de dialogismo, trazida por

Volochinov (1997). Trata-se, como se disse, de noções teóricas centrais para os

interesses desta tese. Dentro da noção de polifonia estão presentes os conceitos de

locutor e de enunciador, bem como de diálogo de vozes, que muito serão trabalhados no

corpo da tese e que se ligam diretamente às noções até aqui apresentadas.

A noção de polifonia leva a considerar o que se tem classificado como divisão

do sujeito na enunciação, bem como presença ou ausência do sujeito nos enunciados

produzidos ao longo desse processo. O que se observa é a existência de relação entre

falante, locutor e enunciador. Quanto ao locutor, Ducrot (1984) aponta para a

característica de sua subdivisão entre um locutor visto 1) como ser no mundo, 2) como

ser completo, 3) como origem do enunciado. Há, também, subdivisão do locutor que o

vê como ser enunciativo responsável pela enunciação e considerado apenas nesta.

Ressalte-se que esses seres somente fazem sentido em uma situação enunciativa

específica que lhes atribui papéis e demais características.

A constatação apresentada acima remete ao fato de que, em dados textos, pode

haver a atuação de várias vozes, sem ocorrer predomínio de umas sobre outras. Trata-se

da noção de polifonia. Assim, em um texto, pode haver pontos de vista diversos dos do

autor empírico do enunciado. Isso leva à distinção entre o autor do enunciado (o locutor,

ser da enunciação que deixa marcas no enunciado) e o produtor empírico do enunciado

(ser real). A polifonia, então, consiste na presença de várias vozes, de vários pontos de

vista, em um texto, verificáveis através de marcas linguísticas, no nível do enunciado,

deixadas pelos protagonistas. Tais marcas podem ser elementos como pronomes,

adjetivos, modalizadores, entre outros. Isso leva à conclusão de que há mais pontos de

vista no enunciado do que apenas os dos interlocutores. Assim, a polifonia consiste na

possibilidade de realização de diálogos no texto, no enunciado formulado pelos sujeitos,

sendo, então, possível a um texto veicular vozes diversas, além da própria voz de seu

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locutor. Essa noção permite considerar que o locutor pode, no texto, trabalhar tais

vozes, seja pelo seu reforço, seja pela sua negação, seja pelo seu apagamento, entre

outras operações.

Essa presença de várias vozes em um texto, como ressaltado por Ducrot (1984),

entre outros, pode ocorrer de maneira implícita ou mesmo de forma explícita, o que não

exclui a possibilidade de coexistência entre ambas. A análise do corpus permite

verificar a presença dessas possibilidades, uma vez que os locutores, em vários

momentos, marcam essa presença de vozes, mas também as inserem em seu discurso

sem maiores marcações.

A polifonia consiste, então, em indicações a respeito do autor do enunciado, as

quais ocorrem no próprio sentido daquele, o que resulta na necessidade de se distinguir

os sujeitos que ali se movimentam: enunciadores e locutores. Trata-se, portanto, dos

sujeitos que seriam a origem de uma enunciação, termos relacionados ao que se

conceitua como cisão do sujeito falante. Como se pode perceber, o locutor consiste no

ser linguístico, enunciativo, que assume a responsabilidade pela enunciação, deixando

suas marcas no enunciado por ele elaborado. Já os enunciadores são seres postos em

cena pelo locutor e que apresentam pontos de vista diversos.

Seguindo os apontamentos de Ducrot (1984), diga-se que o locutor é

considerado sujeito, diverso dos demais, responsável pelo ato de linguagem, sendo,

contudo, exterior a tal ato. O reflexo desse sujeito externo é outro, também externo,

denominado alocutário. O locutor, então, é um dos parceiros desse processo

comunicacional e, neste, toma a palavra, podendo, deixar marcas de sua posição e dos

enunciadores de que lança mão. Como se pode observar, esse sujeito é também distinto

do enunciador, o qual, conforme ressaltado em outros momentos, é interno à encenação

enunciativa. Regra geral, o locutor é o responsável pelo enunciado, podendo, ou não, ser

distinto de seu autor empírico. Há, ainda, em um enunciado, a possibilidade de

ocorrerem dois locutores como responsáveis por ele, ao que Ducrot (1984) denomina

desdobramento do locutor.

Esse desdobramento do locutor, que permite o desenvolvimento de ações

discursivas como, dentre outras, construção de porta-vozes de discursos de outros

locutores, ou, ainda, de diálogo e hierarquia de falas em um enunciado, acarreta,

também, diferenciação entre locutor enquanto ser no mundo e locutor enquanto tal. Se

aquele é uma pessoa completa, este é visto como responsável pela enunciação. De

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qualquer maneira, essa diferenciação não impossibilita a presença simultânea desses

dois locutores no enunciado produzido.

Outra noção que merece ser retomada nesta tese, em razão de se ter verificado

essa incidência nos textos selecionados para compor o corpus do trabalho, é a noção de

locutor coletivo. Criado por pelos Analistas do Discurso da Escola Francesa, designa os

indivíduos em atuação na elaboração de obra discursiva comum à instituição na qual

atuam. Essa noção está muito ligada ao discurso produzido em grupos organizados,

como partidos políticos e sindicatos. Pode-se dizer que esses textos, como ocorre com

os textos produzidos pelo aludido locutor, tendem a ser representativos da opinião do

grupo do qual provém. É possível, também, que esses textos sejam produzidos por

apenas um locutor, desde que o contexto de produção ofereça condições de se

determinar que esse locutor representa a voz de todo o grupo de onde fala.

O estudo dessa noção nos textos é possível, justamente, porque esse locutor

coletivo deixa, também, marcas que o individualizam e o apresentam como

pertencente/representante do grupo. É esse fato que permite atribuir rótulos aos

discursos advindos de instâncias coletivas.

Como se pode observar a partir da própria noção de locutor coletivo, há espaço

propício para relacioná-la com a noção de polifonia, haja vista que o discurso do locutor

coletivo abarca o conjunto de vozes da instância/grupo por ele representada.

Uma vez tecidos os diversos apontamentos apresentados acima, pode-se passar a

considerar, a partir de Ducrot (1984), a noção de enunciador, a qual é bastante cara aos

objetivos deste trabalho e que, em outros momentos, será retomada a partir de Bakhtin

(2003). Regra geral, trata-se de voz sem as propriedades que se atribuem ao locutor

enquanto tal.

É desse conjunto que se pode dizer, a partir de Ducrot (1984), que a noção de

enunciador refere-se, como ressaltado, a seres enunciativos, que se exprimem a partir de

uma dada enunciação. Nesse processo expressivo, não é possível, contudo, atribuir-lhes

palavras precisas, mas apenas pontos de vista.

Os enunciadores, então, podem ser conceituados como seres que, na enunciação,

expressam seu ponto de vista, mesmo que, na prática, não falem. São, portanto, vozes

diversas da voz do locutor e surgem a partir do sentido do enunciado. Assim, se o

locutor é responsável pelo material linguístico utilizado no enunciado, ao enunciador

não se pode atribuir tal papel. Na verdade, o enunciador surge através de ações

enunciativas do locutor e é por este organizado no plano do enunciado. Através da

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movimentação de enunciadores, o locutor vai organizando pontos de vista e atitudes, o

que varia da manifestação da própria posição do locutor, ou mesmo de sua assimilação a

algum ou a alguns enunciadores, ou, ainda, da aparição significativa de algum outro

ponto de vista, que pode, inclusive, ser contrário ao do locutor.

Assim, mesmo o enunciador, que já consiste em entidade escalada pelo locutor

de um enunciado, pode não se responsabilizar por um ponto de vista de um dado

enunciado. É em casos como esse que se pode falar em ironia. Há, ainda, quanto ao

enunciador, casos em que as palavras postas em cena são atribuídas a instância diversa

daquela que está com a palavra, mas há, também, casos em que somente o ponto de

vista é atribuído a instância diversa da do enunciador em questão.

De acordo com o conjunto da visão aqui apresentada nos parágrafos anteriores,

na análise do processo de enunciação, a situação de comunicação (também denominada

cena de enunciação), em toda sua complexidade, deve ser levada em consideração

quando se tem por objetivo considerar os sujeitos enunciadores, uma vez que interfere

no papel ali desempenhado pelos sujeitos. É, portanto, necessário ressaltar que diversas

instâncias devem ser levadas em consideração nesse processo de análise. Assim,

situação de enunciação e gênero discursivo devem ser considerados, já que o gênero

discursivo utilizado atribui papéis a quem o utiliza, e essa utilização institui uma cena

enunciativa.

2.3 Referenciação: a construção de objetos de discurso e a influência de fatores

sociais e ideológicos

Antes de se realizar abordagem, de maneira mais direta, da noção de

referenciação, deve-se relembrar o que se disse, nesta tese, a respeito do signo/palavra

(estudo este que remete diretamente aos apontamentos realizados em seções anteriores

deste capítulo), a partir do viés bakhtiniano, segundo o qual “a palavra é o modo mais

puro e sensível de relação social” (VOLOCHINOV, 1997, p. 36), além de ser um

fenômeno ideológico por excelência. É, portanto, através dele que objetos sociais são

transformados em objetos discursivos, a partir do desenvolvimento da referenciação, na

produção de enunciados. Essa ligação permite relacionar os estudos da referenciação ao

dialogismo, haja vista que, na construção de objetos de discurso, a linguagem

(multifacetada, dialógica, composta por signos linguísticos) é utilizada pelo locutor.

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Um signo é um fragmento material da realidade social e, dessa forma, também

acarreta efeitos nessa realidade. Dentre esses efeitos estão ações, reações, novos signos

criados a partir de signos anteriores. Refletindo ou refratando a realidade social, o signo

se submete a critérios de avaliação ideológica. Essa avaliação diz respeito, entre outras,

a noções de verdadeiro, falso, correto, justo. Os próprios textos são resultado de uma

leitura dialógica da realidade social de então e, portanto, de uma busca por responder a

ela, a partir da construção de enunciados. Reitera-se, portanto, o caráter dialógico

verificável na construção de objetos de discurso, uma vez que, como mencionado no

parágrafo anterior, se o signo possui as características aqui apresentadas, sendo ele o

elemento principal da composição dos enunciados e, portanto, da linguagem, também

aquela construção discursiva absorve tais caracteres.

Consiste, então, em objeto de interesse desta tese analisar como ocorreram esses

movimentos ideológicos/dialógicos de construção de objetos de discurso, no corpus

selecionado para análise e melhor explicitado no capítulo desta tese destinado à

apresentação da Metodologia de trabalho, tomando-se por pressuposto que “cada campo

de criatividade ideológica tem seu próprio modo de orientação para a realidade e refrata

a realidade à sua própria maneira”. (VOLOCHINOV, 1997, p. 33). Além disso,

pressões sociais determinam a atuação do locutor voltado para a produção de seu

discurso. Essas pressões sociais dizem respeito à atuação dos participantes imediatos e à

situação em que se dá a interação verbal, o que faz a enunciação ser socialmente

dirigida, determinada pelo trabalho dos sujeitos ali envolvidos e, como ressaltado, pela

situação social mais imediata.

Do exposto, pode-se dizer que Volochinov (1997) tem por veio central de suas

análises a heterogeneidade constitutiva da linguagem, a qual se marca por uma forte

dimensão histórico-ideológica, pelo fato de a palavra ser marcada por uma dimensão

interdiscursiva, social e interativa, entre outros aspectos, como as noções de gênero

discursivo e de interdiscursividade na linguagem. Assim, os sujeitos sociais utilizam a

língua em eventos específicos, onde atuam mobilizando percepções e saberes de

diversas ordens, entre eles os discursivos e os sociocognitivos.

Feitos esses breves apontamentos relacionados à visão de Volochinov (1997) a

respeito do signo linguístico, os quais muito se relacionam à referenciação como um

todo, pode-se passar ao ponto central das análises a serem desenvolvidas nesta tese: o

processo de referenciação, pensado sempre a partir de seu relacionamento com o

princípio dialógico. O ponto de partida da abordagem a ser realizada nesta seção

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consiste na defesa de que seria possível conhecer, através dos signos linguísticos, a

realidade a que o texto faz referência. Porém, essa realidade que seria conhecida não

seria aquela a que se poderia chamar “a realidade”, mas “uma realidade”, perpassada

pelo complexo ideológico/dialógico presente nos signos. Assim, na interação verbal, a

produção de objetos discursivos ocorre e é influenciada pelas representações (pela ativa

compreensão responsiva) que o sujeito tem de uma determinada realidade.

É importante, aqui, lembrar que a referência não consiste em fotografar a

realidade e inserir essa foto em um discurso. Na verdade, trata-se de criar uma realidade

discursiva, a partir da realidade que se deseja apresentar. Nesse processo, obviamente,

uma vez que consiste na criação de enunciados, há grande espaço para a presença de

conteúdo ideológico, sempre pensando na visão bakhtiniana de enunciado e de

enunciação. Por outras palavras, a referenciação consiste em processo de construção e

de reconstrução do real, a partir da ativa compreensão responsiva e dos objetivos que o

locutor tem ao produzir seus enunciados, durante um processo de interação verbal.

Veja-se, então, que as condições reais da enunciação, a situação social mais imediata,

portanto, determinam a enunciação e, consequentemente, a construção de objetos de

discurso.

Lopes (2004), nesse sentido, lembra que o sujeito age sobre o objeto quando se

volta à tarefa de produzir sentido. Isso, de acordo com a autora, a partir de Volochinov

(1997), levou a se pensar que o sentido é produzido em uma prática intersubjetiva, a

qual envolve sujeitos históricos e objetos naturais. Como a atribuição de sentidos

depende da atuação responsiva de sujeitos historicamente situados, há, portanto, o

reforço da tese da instabilidade do sentido, bem como da ação do sujeito como

determinante do objeto discursivo. Essa constatação permite ver a noção de referência,

não como dizendo respeito ao objeto real, mas a sua designação em circunstâncias

objetivas. A referência, então, consiste no isolamento do objeto referenciado, o que é

feito por asserções descritivas. O referente, visto dessa forma, interpela objetos e os

reporta como fatos de linguagem. Essa visão é encontrada no pensamento de autores

como Mondada e Dubois (2003), Marcuschi (2004), Marcuschi (2007) e Koch (2013),

entre outros, aos quais nos referiremos ao longo desta tese.

Trata-se, assim, da flexibilidade, da instabilidade da construção de categorias (da

categorização), em um processo de construção de sentidos, do fato de que aquelas são

grandemente influenciadas por mudanças contextuais. Nesse contexto, de acordo com

Koch (2013), pode-se apontar, também, para a existência de processo de de-

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categorização, levando à mencionada instabilidade de uma categoria, por exemplo, a

partir de uma mudança contextual ou de ponto de vista.

A visão da categorização como algo motivado social e culturalmente permite a

abordagem da referenciação, vendo nesta uma caracterização como atividade discursiva,

resultante do caráter não referencial da língua e da linguagem e que permite concluir,

como ressaltado em outros momentos deste trabalho, pela instabilidade da relação entre

palavras e coisas. Haveria, então, um mundo real e um mundo com realidade própria,

diferente daquele. A palavra, nesse contexto, com todo o seu caráter dialógico já aqui

abordado em diversas ocasiões, seria posta em confronto com essa realidade criada,

diversa daquela a que se poderia conceituar como realidade, por assim dizer,

propriamente dita. Haveria, então, um dilema presente na relação entre o referente e a

palavra. Esta, ao mesmo tempo em que se relaciona com o mundo a ela exterior, faz

com que deste seja criada imagem diferente da por ela construída. Além disso, a

realidade precisa do discurso para ser refletida, porém, ao ser refletida pelo discurso,

que tem característica acima mencionada de fazer com que a realidade criada lhe seja

idêntica, acaba sendo obrigada a refletir esse mesmo discurso. Isso leva à reflexão, já

realizada nesta tese, sobre a noção de “significado”, na visão de Volochinov (1997), e a

apontar para sua importância em relação às análises sobre o referente.

De acordo com o autor russo, o significado resulta da compreensão que se tem a

respeito do signo, a qual é ideologicamente motivada. Essa compreensão influi no

processo de referenciação, uma vez que o locutor construirá seu objeto discursivo a

partir de sua visão (de sua compreensão, portanto) acerca do referente. Esse dado

permite defender que o referente (de estatuto ambíguo) é elemento exterior ao discurso,

uma vez que o significado consiste no intermediário entre a coisa referida pela

expressão e a expressão, já que, como mencionado, resulta do processo de compreensão

acerca do referente, o qual, como se sabe, é discursivamente construído. Trata-se do

pensamento que se liga à expressão e que se responsabiliza pela designação da coisa por

aquela referida. Assim, de acordo com Mondada e Dubois (2003), o referente é a

realidade criada pelo ato de fala, a partir de todo aquele processo intersubjetivo de

criação do discurso. Por possuir, como mencionado, estatuto ambíguo, sendo exterior ao

discurso, lança nele suas marcas, pois, no processo de interação verbal, o discurso evoca

o referente e o reconstrói a partir da situação de interação. O referente deve, então, ser

considerado como o ser que surge na descrição apresentada pelo discurso. A construção

do referente, como se verá nesta tese, pensando a partir de Mondada e Dubois (2003),

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ou seja, a referência, se dá em um processo complexo e dialógico que leva à

instabilidade na manutenção do objeto discursivo construído.

Outra noção que pode ser bastante útil aos objetivos desta tese, trazida, agora,

por Lopes (2004), decorrente do que se disse a respeito de referente/referenciação,

consiste no que se tem denominado “mundos possíveis”. Esse conceito decorre da

constatação de que a percepção dos sujeitos envolvidos em processo interacional

interfere na produção de sentidos, na construção do referente, como mencionado em

outros momentos deste trabalho. É essa intervenção do sujeito e de sua percepção da

realidade na qual e com a qual interage que permite a criação dos aludidos mundos. O

referente, a partir desse viés de leitura, seria considerado como condição de acesso a

uma realidade, um “mundo possível”, sendo o entendimento da realidade uma criação

discursiva a partir de um processo interpretativo. Esse pensamento permite resumir a

questão da construção da referência, uma vez que as relações entre enunciador e

enunciatário, as quais ocorrem em situações que envolvem o mundo físico (o espacial),

o temporal, bem como o discursivo, suscitam ações discursivas, e estas determinam a

forma como se dará a referenciação. Há um trabalho de correferenciação, em que

locutor e alocutário atuam em conjunto para, respectivamente, construir e reconstruir a

referência. Isso se dá em instâncias discursivas, em que estão presentes, como se sabe,

locutor, alocutário e referente. A enunciação ali produzida é resultado dessa interação de

instâncias, o que leva a relacionar esse pensamento, de origem benvenistiana, com a

leitura de Bakhtin sobre a polifonia (a qual foi abordada em momento anterior deste

trabalho), segundo a qual o texto sempre será polifônico, pois é constituído por mais de

um enunciador (por exemplo, locutor e alocutário, cada qual com sua voz), os quais

mobilizam lugares e tempos discursivos, bem como o aparelho enunciativo de que

dispõem.

Uma das ponderações realizadas por Lopes (2004), a respeito desse quadro

teórico, é a de que o alocutário consiste em balizador da forma de dizer do locutor, na

atividade de interlocução realizada por eles, no interior da qual se dá a construção de

objetos de discurso. Nessas atividades, quando são produzidos os enunciados, há a

consideração recíproca de fatores como posição social ocupada e papel desempenhado

pelos interlocutores. Tudo isso pode constar dos enunciados produzidos, ou mesmo ser

mascarado pelo enunciador, mas o fato é que tais fatores são levados em conta no

momento da produção enunciativa. Veja-se, nesse sentido, que, na construção de

objetos de discurso, que se dá por meio da atividade linguageira, em processo de

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interação verbal, o locutor molda seus objetos a partir de suas concepções a respeito

daqueles, bem como a partir das imagens que constrói de seus interlocutores, das

crenças e dos conhecimentos destes. Isso remete ao pensamento de Volochinov (1997)

a respeito da noção de autoria. Assim, os autores de um texto têm um projeto discursivo

e procuram executá-lo no processo de interação realizado. Esses objetivos e sua

execução tendem a deixar marcas nos enunciados produzidos, mostrando a

intencionalidade do sujeito enunciador. Assim, um dos procedimentos realizados pelo

locutor, na produção de seus enunciados, consiste na seleção de traços do referente que

julga ser relevantes para a construção de seu discurso, bem como para a consecução de

seus objetivos naquela interação. Essa visão está relacionada à percepção de que,

quando enuncia, o locutor o faz tendo em vista uma audiência e uma opinião particular.

Esse fato remete à visão da linguagem como atividade, que deve ser analisada a partir

daquilo que o locutor busca realizar quando enuncia. Tudo isso pensado a partir da

situação comunicativa em curso.

Os apontamentos introdutórios sobre a referência e a referenciação, até aqui

realizados, construíram o embasamento necessário para que se possa proceder à leitura a

respeito da construção de objetos de discurso e da categorização, no pensamento de

Mondada e Dubois (2003), noções aquelas intimamente ligadas à referenciação

propriamente dita.

Em seu estudo, as autoras partem do pressuposto de que as categorias

linguísticas e cognitivas têm por característica a instabilidade constitutiva. Apontam,

também, para a mesma instabilidade nos processos de estabilização dos referentes.

Mondada e Dubois (2003), nesse sentido, ressaltam a necessidade de se alterar o

questionamento a ser feito quanto à relação entre língua e mundo, no que são seguidas

por nós e por autores de renome, como Marcuschi, cujo pensamento será abordado de

maneira mais detida em momento posterior deste trabalho. Torna-se, para elas,

necessário deixar de lado questões relativas à transmissão de informação ou à

representação do mundo, abordando, então, a estruturação e a construção do mundo a

partir das atividades humanas. Esse processo é denominado “processo de referenciação”

e está relacionado com práticas simbólicas desenvolvidas em um grupo social, em que

sujeitos negociam significações, mas também as ratificam ou modificam, a fim de

construírem visões do mundo comuns a esse grupo. Tais visões decorrem das atividades

sociais realizadas pelos sujeitos e são (precariamente) estabilizadas a partir da criação

de categoriais discursivas.

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Relacionada a esse ponto de vista teórico está o que se convencionou denominar

“ilusão de um mundo objetivo”, ou ilusão da objetividade do mundo. Essa ilusão é

produzida a partir das atividades linguísticas e cognitivas dos sujeitos, as quais,

necessariamente, são intersubjetivas. Portanto, a realidade é construída em um processo

de referenciação, em uma dada sociedade.

A característica da intersubjetividade, apresentada pelas autoras em discussão,

leva à historicidade da descrição do mundo. Assim, há controvérsia e inconstância nesse

processo de atribuição de categorias ao mundo. Há, portanto, mudança, e não

estabilidade, nos discursos, sejam estes de senso comum ou da ciência. Considerar as

categorias como relacionadas a discursos que evoluem sócio-historicamente implica

apontar sua instabilidade. Assim, a partir de uma mudança de contexto ou mesmo de

ponto de vista do locutor, um objeto, seja ele natural ou social, tende a ser

decategorizado e a evoluir.

É nesse sentido que se ressalta a necessidade de se desconfiar de descrições de

mundo com aparência de unicidade, universalidade e atemporalidade. Isso ressalta a

tese da influência histórico-contextual na construção de categorias, bem como de não

serem instâncias permanentes ou evidentes. Trata-se, portanto, de categorias de

processos vistos como complexos, que envolvem discussões e controvérsias, até que se

chegue a um acordo, sempre provisório.

A partir desse viés de leitura, o que se deve tomar em consideração no processo

de referenciação e no de categorização são os procedimentos que os sujeitos adotam no

sentido de atribuir rótulos àquilo a que fazem referência. Trata-se de analisar como se

dá a escolha, pelos sujeitos, em dado contexto, dos rótulos que utilizam. Do exposto,

pode-se perceber que se trata de operações que utilizam procedimentos da ordem do

linguístico e do sociocognitivo.

O fato de a categorização e a referenciação estarem relacionadas ao contexto

sociocognitivo em que são realizadas gera, como consequência, a possibilidade de se

analisar uma cena sob pontos de vista os mais diversos. Estes podem sofrer alteração ao

longo do tempo e mudar conforme os sujeitos, o que leva a mudanças no objeto

referenciado ou categorizado, permitindo aos sujeitos utilizar os diversos recursos

linguísticos, no processo em que atuam, a fim de, por exemplo, atrair a atenção do leitor

ou mesmo de levá-lo a tomar determinada atitude. Tudo isso está relacionado ao fato de

que os contextos, uma vez modificados, podem ocasionar modificações também nos

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discursos, o que pode ser percebido no léxico e na estruturação de categorias cognitivas,

já que também elas sofrem tais alterações.

Levando em consideração que as ocorrências de uma categoria geram sua

instabilidade, tendo em vista sua ligação às práticas sociais dependentes de processos de

enunciação, de atividades cognitivas, envolvendo sujeitos e interação entre eles com a

correspondente negociação de sentidos, pode-se dizer que, no processo de

referenciação, até mesmo o fato de um dos sujeitos, em sua enunciação, buscar corrigir

o que considera erro pode se afigurar como a busca de recursos interacionais adequados

à elaboração do sentido ou do efeito de sentido buscado. Trata-se do que Mondada e

Dubois (2003) denominam construção de caminho entre denominações aproximadas, as

quais podem ser retomadas mesmo se não escolhidas em um primeiro momento.

Esses apontamentos levam à discussão de questões relacionadas ao léxico, as

quais têm relevância para os objetivos desta tese. Nesse sentido, constata-se que uma

categoria lexical é utilizada em confronto com outras, sendo a partir dessa concorrência

que se produz sentido. Tudo isso ocorrendo na enunciação, a qual se dá em um contexto

e o representa. Some-se a esses dados o distanciamento entre palavras e coisas, sempre

ressaltado em um discurso, o que faz surgir o processo de referenciação e a inadequação

de categorias lexicais. Há, de acordo com Mondada e Dubois (2003), processo de

ajustamento de palavras, que ocorre no contexto discursivo em que são utilizadas e

permite a construção de objetos discursivos.

Como mencionado em outros momentos deste trabalho, no processo de

construção de categorias, há negociação entre os sujeitos ali envolvidos, o que acarreta a

necessidade de se analisar esse processo tendo em vista que a representação cognitiva

da realidade é socialmente compartilhada, além de ser complexamente negociada. Essa

constatação, como será possível perceber, também, a partir da leitura de Mondada e

Dubois (2003), de Koch (2013) e de Marcuschi (2004) e Marcuschi (2007), leva a se

deixar de lado a visão de referenciação como etiquetagem da realidade para posterior

aplicação a uma situação dada.

Aqui também cabe a abordagem de termo que muito se relaciona com o exposto

até o presente e que já foi abordado em momento anterior deste trabalho, ou seja, a

noção de categoria, por também ser importante para os objetivos desta tese, haja vista

que muitas das atitudes dos grupos em questão partem de categorias partilhadas

internamente por tais grupos. Veja-se, assim, que as categorias não são fenômenos

estanques, mas dinâmicos, alterando-se sincrônica e diacronicamente. Dessa forma, em

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cada época, cada grupo tende a categorizar, a rotular, pessoas, fatos, fenômenos de

diversas maneiras, dependendo de seus objetivos e da ideologia dominante. Assim, a

categorização deve ser estudada na interação verbal, tendo-se como foco principal os

procedimentos utilizados pelos sujeitos envolvidos na tarefa da construção dos objetos

de discurso. Isso a partir do pressuposto de que o pertencimento a uma categoria não é

algo rígido. Na verdade, o que se verifica é a existência, em uma categoria, de grupos

centrais e grupos periféricos.

Como se pode depreender do até aqui exposto, a noção de objetos de discurso

encontra-se relacionada à noção até aqui trabalhada de referenciação, ou seja, se os

mencionados objetos são as designações e sugestões realizadas pelos sujeitos quando da

utilização de uma expressão ou da criação enunciativa com o objetivo de referir, sendo

construídos na prática discursiva e somente nesta tendo existência, podendo, também

dentro daquela, ser modificados a partir do processo de interação ali desenvolvido, a

referenciação consiste na construção de objetos de discurso a partir de processo

intersubjetivo desenvolvido em um contexto situacional específico.

Marcuschi (2004), que segue Mondada e Dubois (2003) realiza abordagem

bastante profunda a respeito da noção de objetos de discurso. O autor ressalta que esses

objetos devem ser vistos como o centro das atividades discursivas, estando relacionados

àquilo que os sujeitos realizam quando constroem expressões referenciais. São,

portanto, entidades referenciais que surgem em uma atividade interativa. Isso leva à

conclusão de que o sujeito, em uma ação social situada, além de enunciar, também cria,

instaurando e dizendo o mundo a que faz referência. Esse processo, como ressaltado em

vários pontos desta tese, é situado social e historicamente, ocorrendo nos contextos das

ações linguísticas.

A percepção do conceito de objetos de discurso da maneira até aqui apresentada

permite-nos defender a tese, já trazida por autores como Mondada e Dubois (2003) e

Marcuschi (2004) e Marcuschi (2007), de que os estudos sobre a referenciação devem

se voltar para as maneiras como o referente é percebido, construído, comunicado e

utilizado. De acordo com esse raciocínio, o mundo é construído historicamente, em um

processo sociointerativo. A consequência desse ponto de vista é o que se poderia

classificar como descompasso entre o mundo e a forma como os sujeitos a ele se

referem. Assim, atuação intersubjetiva e inserção sociocognitiva do sujeito no mundo

determinam a maneira como o mundo aparece nos discursos. Isso permite apontar para a

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intersubjetividade como fonte da objetividade. Assim, é a partir da relação entre

indivíduos e mundo que se acarreta a construção do conhecimento objetivo.

Sintetizando o até aqui trabalhado, pode-se retomar o pensamento de Koch

(2013), a qual apresenta questionamentos fundamentais a respeito do processo de

referenciação, embasadores da temática apresentada até aqui e que darão sustentação às

discussões seguintes. Questiona, então, a relação entre língua, conhecimento e realidade

e a coincidência (ou não) entre realidade extralinguística e os signos linguísticos. Faz

parte de seus questionamentos a forma de, a partir da utilização de signos linguísticos,

conhecer-se a realidade, bem como até onde iria o alcance da língua sobre o

pensamento. Seguindo a partir desses questionamentos, pode-se concluir que a visão do

sujeito em relação à situação social na qual se encontra influi no trabalho enunciativo do

sujeito envolvido em uma interação verbal. É nesse contexto que língua, pensamento,

conhecimento e realidade se relacionam na construção de uma realidade discursiva, o

que leva à constatação de que o discurso é, por excelência, o lugar no qual o mundo é

designado, mundo discursivo e, portanto, sociocognitivamente produzido. Nesse

sentido, percebemos que, se os objetos de discurso dependem do sujeito em sua

construção, a qual, em um dado grupo social, é discursiva e intersubjetiva, o mundo

extralinguístico independe do sujeito e do discurso. Trata-se de uma visão interacionista

da língua, em que os interlocutores utilizam recursos linguísticos para instaurar relações

sociais, constroem versões públicas do mundo de maneira negociada, podendo essas

passar por complexo processo de produção de acordos e ajustes, sem que haja garantias

de que ocorrerão efetivamente.

Assim, de acordo com Koch (2013), “é na dimensão da percepção que se

fabricam os referentes, os quais, embora destituídos de estatuto linguístico, vão

condicionar o evento semântico” (KOCH, 2013, p.52). Essa percepção é influenciada

por todo o complexo social e interacional no qual se envolve o sujeito.

Por outras palavras, uma das características do processo de referenciação reside

no fato de que a interpretação, a percepção humana, transforma o “real” em referente.

Evidentemente, essa percepção é condicionada por fatores como a ideologia do grupo

social no qual o “sujeito que percebe” encontra-se inserido. Pode-se, assim, defender a

tese de que as representações socialmente construídas são influenciadas pelo complexo

ideológico do grupo em questão, além de realimentarem-no, em um constante

movimento de retroalimentação, o que impossibilita ver mente e mundo como

instâncias previamente construídas, que atribuiriam ao sujeito simplesmente a tarefa

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classificatória. A defesa desse ponto de vista leva Marcuschi (2007) a defender que se

deve falar em objetos de discurso quando se faz referência a objetos de conhecimento,

uma vez que o mundo é construído como objeto de discurso a partir do diálogo entre os

componentes de uma sociedade, em interlocução. Isso ocorre devido ao fato de que a

língua não é um instrumental transparente e pronto para ser utilizado em processo de

representação do mundo. Antes, sofre influência de todo o complexo social no qual é

posta em movimento, o que permite ressaltar não haver, no mundo e na linguagem, de

forma apriorística, uma estabilidade, o que leva o trabalho dos indivíduos em interação

a construir uma estabilização e uma discretização no plano discursivo. Evidentemente,

essa estabilidade é relativa e historicamente mutável, o que dialoga com a visão, dentre

outros, de Bakhtin (2003), apresentada nesta tese.

No que se refere à constituição de categorias, o que também recebe o viés da

intersubjetividade, em visão que retoma a de Mondada e Dubois (2003), Marcuschi

(2007) e de Koch (2013), pode-se ressaltar que, nesse processo, há convergência de

mentes na busca pela melhor forma, em relação ao mundo real, de se elaborar uma

proposição. É nesse sentido que se pode defender o caráter de atividade sociocognitiva

para a produção de categorias, bem como a instabilidade das categorias linguísticas, e

apontar para o fato de que sofrem influência da cultura da sociedade em que são

utilizadas, o que acarreta a necessidade de se analisar nomeação e referenciação na

interação social.

Nesse sentido, defendemos, juntamente com os autores até aqui mencionados, a

necessidade de alteração de ponto de vista no que se refere à relação entre língua e

mundo, de se abandonar o conceito de “relação” e de se adotar o de “ação”. A língua, de

acordo com Marcuschi (2007), deixaria de ser pensada como instrumento de

representação do mundo, bem como este deixaria de ser visto como algo pronto e

mobiliado. Isso remete à constatação, já abordada nesta tese, de que a relação entre

linguagem e realidade resulta de uma ação desenvolvida por sujeitos históricos e,

portanto, instável, perpassada pela historicidade, pelo social e resultado de complexo

processo de negociação entre sujeitos em interação. Esse ponto de vista, contudo, não

acarreta a defesa de um mundo exclusivamente produzido pelas atividades cognitivas

dos sujeitos, embora a abordagem do processo de referenciação deva levar em

consideração a maneira como se processa, na interação social, a atividade de cognição,

o que muito se aproxima do pensamento de Mondada e Dubois (2003) e de Marcuschi

(2004) e Marcuschi (2007). Isso porque a visão atualmente defendida a respeito da

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linguagem, à qual nos referimos em momento anterior desta tese, é de que consiste em

uma atividade social historicamente motivada, devendo, portanto, ser analisada a

presença de marcas de tais atividades nos enunciados produzidos. Como consequência

desse enfoque, pode-se enfatizar que o objeto de análise linguística deve passar a ser

atividades e processos envolvidos na referenciação. Tudo isso a partir da noção de que o

mundo não é entidade a ser etiquetada e de que o léxico não consiste em listagem a ser

utilizada em processo de etiquetagem do mundo. Pode-se, então, defender que um

trabalho social e histórico é o responsável pela estabilização e discretização do mundo,

o qual, por definição, é instável e não dado de maneira apriorística. É, portanto, esse

trabalho que torna, embora temporariamente, estável o que, originalmente, é instável.

Dessa forma, é possível ponderar que o processo que se convencionou

denominar “construção do mundo” deve ser visto como situado, ocorrendo a partir da

criação de sistema simbólico a ser posto em ação pelos sujeitos. É esse mundo

simbólico o responsável pela relação entre linguagem e mundo, sendo tudo isso

construído, como ressaltado, a partir de complexo trabalho social. A linguagem também

sofre influência desse trabalho social, com todas as relações ali desenvolvidas, tornando

opacas a língua e as palavras, que são perpassadas pela ambiguidade quando postas em

uso em situações concretas de interação verbal.

Assim, está construído o campo para se defender a tese de que o estudo do

léxico deve voltar seus olhos para seu funcionamento discursivo e seu uso nos gêneros

discursivos, o que levou Marcuschi (2004) a defender que os procedimentos de

operação com o léxico na produção de sentido devem ser levados em consideração em

análises com esse foco, o que decorre da constatação da volatilidade lexical, resultante

de sua constante renovação através dos usos realizados pelos sujeitos falantes, que,

como ressaltado em vários momentos deste trabalho, atuam de maneira interativa e

influenciada por fatores sociais os mais diversos.

Pode-se pensar, então, no caráter sociocognitivo da construção daqueles mundos

e defender que são organizados nos discursos. Essa organização resulta de condições

internalizadas pelos sujeitos envolvidos por dada cultura. Tudo isso deve ser levado em

consideração quando se busca conhecer uma dada realidade. Vendo esse processo de

construção de mundos discursivos como envolvido na atividade de referenciação, pode-

se defender que a análise dessa atividade deve estar relacionada aos processos ali

envolvidos e que se fazem notar a partir da linguagem. São, então, os sujeitos, vistos

coletivamente e em processo de interação social, que, em complexo processo,

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estabilizam o mundo em seu discurso. São, portanto, esses sujeitos assim vistos e assim

em atuação que constroem objetos de discurso.

Tendo em vista o exposto neste capítulo, torna-se importante ponderar que o

objetivo que norteou o percurso aqui seguido foi o de construir o arcabouço teórico

necessário e suficiente para fundamentar as análises desenvolvidas nos capítulos

específicos.

Como mencionado em vários momentos desta tese, vemos a íntima relação

existente entre os estudos da referenciação e o princípio do dialogismo. Entendemos,

nesse contexto, que as escolhas de itens lexicais e demais elementos linguísticos

realizadas no processo de construção de objetos de discurso são o resultado da ativa

compreensão responsiva de quem elabora dado texto, além de gerar respostas no

interlocutor, que, em algum momento, irá se manifestar linguisticamente. Além disso, é

importante comentar que os objetos de discurso são construídos e postos em circulação

por meio da linguagem, a qual, por essência, é dialógica e, principalmente, ideológica,

haja vista ser construída com os signos linguísticos, que, como se sabe, a partir de

Volochinov (1997), são o espaço próprio da manifestação da ideologia. Assim, ao

analisar a construção de objetos de discurso em um texto, devem ser considerados como

determinantes dessa construção os elementos aqui mencionados: dialogismo, ideologia,

signos, linguagem. Além disso, tendo em vista o fato de que os enunciados se

organizam nos gêneros discursivos (que também são enunciados, os tipos relativamente

estáveis de enunciados, nos dizeres de Bakhtin (2003)), os quais organizam a linguagem

e têm, a partir de sua composição pelos signos linguísticos, o dialogismo como princípio

fundamental e a permeabilidade à ideologia como característica, também os gêneros

discursivos, enquanto aparato conceitual, precisaram ser aqui apresentados.

Decorrência do mencionado caráter dialógico perceptível também na construção

de objetos de discurso está a polifonia, ou, para o que interessa aos objetivos desta tese,

o jogo de vozes dos grupos em disputa na ocasião aqui enfocada. Assim, o locutor

constrói seus objetos de discurso lançando mão de enunciadores vários, que podem

mesmo dialogar entre si, de maneira a defender o ponto de vista do locutor, ou mesmo

entrar em confronto com ele e serem silenciados. É possível, também, observar o

diálogo polifônico do locutor de um texto com o de textos anteriores ou posteriores.

Percebem-se, no gênero discursivo (tipos de enunciados) selecionado, as conexões entre

construção de objetos de discurso (referenciação), dialogismo, ideologia, signo e

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linguagem, o que nos permite caminhar de maneira bastante coesa nas análises do

corpus a serem realizadas no capítulo correspondente.

Como mencionado em diversos momentos desta tese, o país passava por

momento de profundas mudanças sociais e de disputa pelo poder. É possível detectar,

nos primeiros momentos do golpe militar, pelo menos dois grupos em disputa: o

encabeçado por João Goulart e o capitaneado pelas Forças Armadas e que tinha a Classe

Média como principal aliada. Cada um desses grupos era, respectivamente, partidário,

como se dizia então, do Comunismo e do Capitalismo, os quais eram vistos como

vertentes econômicas e ideológicas. Posteriormente, com a eliminação de João Goulart,

o que se passou a combater foi o comunismo propriamente dito. De toda a maneira, a

luta ali verificada era pela conquista e manutenção do poder.

Tentamos demonstrar ao longo deste capítulo que os autores aqui trazidos

trataram de influências do social no discurso e do discurso no social. Isso permite

verificar a existência de conexão dessas influências com as lutas pelo poder político.

Assim, em complexo processo interacional ocorrido na disputa pelo poder, o locutor

coletivo criado pelo Movimento lança mão de enunciadores diversos e atua na

construção de objetos de discurso também diversos.

Fechando, então, este capítulo, entendemos ser pertinente a adoção dos

elementos teóricos aqui apresentados, tendo em vista, em primeiro lugar, a construção

de um todo teórico com a densidade necessária ao que será desenvolvido quanto ao

corpus selecionado e, em segundo lugar, tendo-se em vista as conexões que se pode

perceber entre tais elementos teóricos e destes com os procedimentos adotados pelo

locutor construído pelo Movimento civil e militar que assumiu o poder em 01 de abril

de 1964.

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3- METODOLOGIA

Como se ressaltou em diversos momentos desta tese, o objetivo maior das

análises aqui realizadas é estudar o processo de referenciação/construção de objetos

discursivos, com viés dialógico, que se verifica nos enunciados selecionados, ou seja, os

preâmbulos/considerações iniciais dos Atos Institucionais editados durante o Regime

Militar de 1964. A fim de se alcançar esse objetivo geral, bem como os objetivos

específicos elencados nesta tese, adotou-se o percurso metodológico que será descrito a

seguir.

Diga-se, de antemão, que, para além do exame de elementos da superfície

textual, o qual se deu a partir de uma visão quantitativa, no desenvolvimento das

análises do corpus selecionado para esta tese, as quais seguiram um viés discursivo e

enunciativo, seguiu-se abordagem metodológica de naturezas qualitativa e

interpretativista.

O presente trabalho volta-se para o estudo de enunciados produzidos no discurso

jurídico, ou seja, no gênero discursivo texto normativo lato sensu e, mais precisamente,

nos preâmbulos/considerações iniciais dos Atos Institucionais selecionados, os quais

são elaborados a fim de fundamentarem as determinações estabelecidas na parte

normativa desse gênero discursivo. Esses enunciados foram selecionados a partir dos

seguintes critérios gerais: 1) período em que foram formulados, 2) relação com

enunciados produzidos em períodos anteriores e posteriores.

Quanto a 1), percebendo a ocorrência de dois períodos mais marcantes durante o

Regime, ou seja, o período de implantação e o período de seu endurecimento,

selecionamos os atos que marcaram cada uma dessas épocas, ou seja, os Atos

Institucionais 1 e 5. No primeiro caso (Ato Institucional número 1), o grupo que

acabava de assumir o poder buscava se legitimar e criar a base legal para suas ações

posteriores. No segundo caso (Ato Institucional número 5), quando o Regime constatou

a ocorrência de movimentos a ele contrários, que o contestavam e buscavam retirar os

militares do comando, editou o aludido Ato Institucional número 5, que pode ser

interpretado como um exemplo da ativa compreensão responsiva frente àquela

realidade. O fato a ser observado é que o Regime, durante esse período, buscava sempre

se apresentar como o defensor da Nação e como sujeito que adotava medidas mais duras

somente para garantir a segurança nacional e a ordem econômica. Ao lado disso, esses

enunciadores desqualificavam a oposição ao Regime, a partir de mecanismos como a

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rotulagem negativa desses grupos. Essa configuração nos levou a adotar esse período

como o foco da seleção de textos.

Quanto ao critério 2), também se levou em conta o fator período temporal,

contudo, a partir do caráter dialógico da linguagem e considerando o fato de que um

enunciado é um elo na cadeia comunicacional, recebendo ecos de outras épocas. Foram,

com base nesse critério, selecionados textos dos preâmbulos dos Atos Institucionais

que, marcadamente, dialogavam com textos de outros preâmbulos, seja anteriores, seja

posteriores a eles. Na seleção desses textos, o que se observou foi que vários dos demais

preâmbulos (estudados durante a seleção dos textos a serem mais detidamente

analisados nesta tese) se referiam ao preâmbulo do Ato Institucional número 2

(selecionado para, juntamente com o primeiro, ser mais detidamente estudado), nele

buscando enunciados ou temas, bem como que o aludido ato fazia referências explícitas

ao Ato Institucional número 1. Por isso, tendo em vista a forte presença dialógica

verificável a partir da leitura do Ato Institucional número 2, este foi selecionado para se

juntar aos dois anteriormente mencionados na composição do corpus desta tese.

A fusão dos critérios 1) e 2) na seleção dos textos permite construir, como

mencionado, a cadeia enunciativa que acarretou a construção dos objetos discursivos

Revolução Vitoriosa e Antirrevolução da maneira apresentada pelo Regime Militar.

Será possível, ainda, perceber que, embora houvesse sido mantida, nos Atos

Institucionais, a configuração, aqui abordada, para os objetos discursivos em questão,

essa característica não consiste em uma constante, quanto aos objetos do mundo real,

tendo em vista o que a história demonstrou e poderá ser verificado em capítulo

específico desta tese.

Para a realização da contextualização histórica, foi desenvolvida pesquisa em

textos e sites que abordaram a temática do Golpe Militar de 1964. A partir de uma

pesquisa preliminar, em que se buscaram autores diversos, chegou-se à conclusão de

que alguns textos/sites constantes daquele corpus preliminar teriam maior utilidade para

esta tese do que outros, tendo em vista a leitura que se pretendia fazer do material

resultante do recorte final. Entendeu-se que a leitura de certos textos, por assim dizer,

fundadores dos momentos de maior importância do Regime teria maior relevo, para os

objetivos desta tese, do que a leitura de textos históricos propriamente ditos (textos

esses aqui entendidos como produzidos por historiadores e que seguem os moldes da

Ciência Histórica). Por outras palavras, a partir de textos selecionados (editorial do

jornal Correio da Manhã, preâmbulo do Ato Institucional número 1, discurso do

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Deputado Federal Márcio Moreira Alves, transcrição da reunião do Conselho de

Segurança Nacional em que se debateu o Ato Institucional número 5), foi construída a

leitura do contexto político nacional, com vistas a criar o embasamento contextual para

a abordagem analítica. Como será possível perceber, os textos selecionados permitirão a

abordagem mais ampla do que estava acontecendo no período, tendo em vista a luta

hegemônica e as maneiras como a Revolução buscava, como objetos de discurso,

apresentar-se a si e aos grupos em disputa. Essa leitura, como mencionado, ocorrerá em

capítulo específico desta tese.

Neste momento, torna-se, então, necessário abordar os critérios que levaram à

seleção dos Atos Institucionais números 1, 2 e 5 bem como das categorias de análise, ou

seja, verbos e nomes (substantivos, em sua maioria). Explique-se melhor tudo isso.

Quando da leitura exploratória dos textos que poderiam compor o corpus da

tese, constatou-se, inicialmente, a necessidade de realizar recortes. Apesar de todos os

17 Atos Institucionais editados pelo Regime Militar apresentarem elementos que os

credenciam a compor o aludido corpus, a análise de todos eles, obviamente,

ultrapassaria os limites de espaço de uma tese. Optou-se, então, como será mais bem

explicado neste trabalho, por escolher o Ato que institucionalizou aquela nova ordem

(Ato Institucional número 1) e o Ato que, como se dizia então, criou uma nova ordem

dentro daquela ordem (Ato Institucional número 5). Para alguns, na verdade, esse Ato

institucionalizou um golpe dentro do golpe. Para outros, foi uma revolução dentro da

Revolução. Além desses dois, observou-se que o Ato Institucional número 2 apresenta-

se como texto pleno de intertextualidades marcadas, tanto retomando enfaticamente o

Ato Institucional número 1, quanto sendo retomado por outros Atos.

Uma vez selecionados os Atos Institucionais a serem trabalhados, outro

problema foi apresentado pelo corpus: trabalhar todo o Ato Institucional ou debruçar

em uma de suas partes, ou seja, nos textos introdutórios (preâmbulos e considerações

iniciais) ou em sua parte normativa? Percebeu-se que trabalhar o Ato Institucional como

um todo criaria o mesmo problema percebido em relação a trabalhar os 17 Atos

Institucionais: faltaria espaço para tanta riqueza. Essa percepção levou a optar por um

novo recorte. Como esta consiste em uma tese referente à linguística, embora em vários

momentos beba das águas do Direito, optou-se por selecionar a parte dos Atos

Institucionais cujo texto contenha o maior número de recursos argumentativos e, assim,

ofereça maiores possibilidades de análise. Os preâmbulos/considerações iniciais se

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prestaram mais a esse objetivo, muito embora também a parte normativa desses Atos

apresente boas entradas analíticas.

Após realizadas as escolhas dos Atos Institucionais e das partes desses

instrumentos a serem estudadas, resta apresentar as categorias de análise escolhidas:

verbos e nomes (substantivos, em sua maioria). Tais categorias estão inseridas em duas

outras, maiores: os rótulos “Revolução” e “Antirrevolução”. Chegou-se a esse recorte

também a partir da leitura exploratória dos Atos Institucionais.

Ao se estudar esses preâmbulos/considerações iniciais, muitas vezes, pensando

na Doutrina de Segurança Nacional, sentiu-se a existência de uma espécie de

polarização, embora, no primeiro momento, não tenha sido possível perceber quais

seriam, na prática, esses dois polos. A sequência das análises mostrou tratar-se de uma

polarização entre o “bem” e o “mal”, no cenário político nacional. Percebeu-se, por fim,

na construção dessa polarização, a utilização dos signos mencionados (“Revolução” e

similares; “Antirrevolução” e similares). Isso levou a escolher tais signos para rotular o

que se denominou os dois grandes grupos temáticos presentes nos textos analisados.

Feito isso, passou-se a buscar os elementos textuais que nos permitiriam trabalhar a

referenciação nesses textos.

Essa busca, sempre, inicialmente, a partir da leitura exploratória, fez perceber

duas classes de palavras que se sobressaíam: verbos e substantivos. Evidentemente que

outras classes também se faziam muito presentes, porém, essas duas chamaram mais a

atenção, principalmente, em razão da carga semântica que traziam. Portanto, sem

desprezar os demais recursos gramaticais utilizados na construção dos

preâmbulos/considerações iniciais selecionados para análise, sem, também, desprezar os

demais componentes do signo linguístico, o que se trabalhou nesta tese foram os signos

selecionados na composição desses textos. Enfim, como mencionado, dentre os signos,

escolheram-se substantivos e verbos. Dentre ambos, a seleção se deu a partir do que se

conceituou como carga semântica positiva/negativa, na construção da Revolução e da

Antirrevolução como objetos discursivos. Tudo isso denunciando o locutor responsável

pela construção dos textos aqui estudados.

No que se refere à organização do corpus a ser analisado nesta tese, diga-se que

os textos dos Atos Institucionais selecionados serão apresentados, em sua totalidade, em

anexo. Essa organização se justifica em razão da necessidade de contextualização dos

textos selecionados. Assim, acreditamos que esse procedimento pode lançar luz ao

conjunto dos textos e auxiliar na construção de sentido pelo leitor.

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Além disso, no corpo da tese, nas partes correspondentes às análises, serão

apresentados Quadros Demonstrativos, Diagramas e Gráficos, todos eles numerados e

nomeados. Isso, em nosso entendimento, facilitará a leitura do material apresentado.

Assim, o conjunto dos Quadros Demonstrativos abarcará os parágrafos dos

preâmbulos dos Atos Institucionais selecionados. Nesse momento, serão realizadas

leituras desses excertos, tendo em vista a significação do conjunto de cada Quadro, o

que dará o embasamento necessário à abordagem dos Diagramas e dos Gráficos. Veja-

se, então, um exemplo de Quadro Demonstrativo:

Quadro A – Ato Institucional Número 1: excertos 01 02 03 04 05

À NAÇAO É indispensável fixar o conceito do movimento civil e militar que acaba de abrir ao Brasil uma nova perspectiva sobre o seu futuro. O que houve e continuará a haver neste momento, não só no espírito e no comportamento das classes armadas, como na opinião pública nacional, é uma autêntica revolução.

Fonte: elaborado pelo autor.

A análise (qualitativa) realizada a partir desses Quadros demonstrativos tomará

por base o conjunto dos parágrafos dos preâmbulos dos atos institucionais selecionados.

É nesse momento que será apresentado e analisado o resultado imagético a que se

chegou a partir do percurso até aqui descrito. Segue, abaixo, novo exemplo de Quadro a

ser analisado neste trabalho:

Quadro B – A Revolução para si e para o outro REVOLUÇÃO PARA SI REVOLUÇÃO PARA O OUTRO

Autolimitação de poderes Autonegação de si mesma

Fonte: elaborado pelo autor.

A análise (qualitativa) desses Quadros também tomará em consideração a

imagem que o locutor buscou construir a respeito dos opositores ao Regime. Além dos

modelos de Quadros apresentados em “Quadro A” e em “Quadro B”, são construídos

dois outros Quadros, quando, também, serão realizadas análises qualitativas do corpus

constituído para esta tese. O primeiro deles, dividido em duas colunas (“Características

dos Opositores” e “Ações dos Opositores”). O segundo deles é dividido em três colunas

(“Situação”, “Grupos”, “Contrariedade”). No primeiro desses Quadros, na coluna

denominada “Características dos Opositores”, são distribuídos signos nominais que

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fazem referência aos mencionados opositores do Regime, ao passo que, na segunda

coluna, “Ações dos Opositores”, o que se apresenta são verbos, em sua maioria,

relacionados às ações que o locutor atribuiu aos opositores do Regime. Já no segundo

desses Quadros, o que se tem é a distribuição, nas correspondentes colunas, de signos

relacionados à situação vivida no país, naquelas ocasiões, bem como aos grupos ali em

atuação e ao caráter de contrariedade dessas ações em relação à ordem que se tentava

estabelecer. Tudo isso, sempre a partir do conjunto dos preâmbulos dos Atos

Institucionais. A título de exemplos, vejam-se os mencionados Quadros:

Quadro C – Características e Ações

CARACTERÍSTICAS DOS OPOSITORES

AÇÕES DOS OPOSITORES

Elementos Pessoas Grupo Setores políticos e culturais Agitadores Subversivos Antirrevolucionários Contrários aos ideais e à consolidação Corrupção (corruptos)

Afundavam Ajam Ameaçam Bolchevizar Combatê-la Desafiam Destruí-la Frustração (impedir) Trabalhem Tramem

Fonte: elaborado pelo autor.

Quadro D – Situação, Grupos, Contrariedade

SITUAÇÃO GRUPOS CONTRARIEDADE Eliminada Bolsão comunista Purulência Fatos perturbadores Graves e urgentes problemas Guerra revolucionária Subversivos (processos)

Movimento (armado) Movimentos (armados)

Contra Ideologias contrárias Situação anterior (contra) Governo anterior Normatividade anterior Normatividade anterior a sua vitória

Fonte: elaborado pelo autor.

Serão, também, compostos e analisados diagramas. O objetivo dessa composição

e dessa análise é apresentar, de forma qualitativa, a visão geral de dados, relativamente

ao conjunto dos Atos Institucionais estudados ao longo desta tese. Como será possível

observar, esses diagramas, em sua maioria, são divididos em três momentos. O primeiro

desses momentos apresenta o grupo temático objeto de análise (por exemplo,

Revolução). O segundo desses momentos apresenta os itens lexicais levantados a partir

do conjunto dos Atos Institucionais e que dizem respeito à temática em questão. Por

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fim, o terceiro desses momentos apresenta o grupo temático que é tomado como fator de

comparação, ou mesmo de polarização (por exemplo, Antirrevolução, em comparação

com Revolução). Como será possível observar, são lançadas linhas, a partir dos grupos

temáticos, em direção aos correspondentes itens lexicais. Em vários momentos, o que se

perceberá é que os dois grupos temáticos utilizam os mesmos itens lexicais. Contudo,

haverá momentos em que tais itens lexicais são desprezados por um dos grupos

temáticos, o que acarreta o não lançamento de uma linha nesse item. O Diagrama

apresentado abaixo é um bom exemplo do que se mencionou neste parágrafo:

Diagrama A- Revolução/Antirrevolução Instrumentos jurídicos (legalidade) Vitoriosa Nação Defesa (da Nação) Revolução Desenvolvimento Antirrevolução Bem-estar Combate Destruição Subversão Setores políticos e culturais Fonte: elaborado pelo autor.

A seguir, em momento específico desta tese, quando será realizada análise

quantitativa do corpus, serão apresentados e analisados quatro gráficos, construídos

estes em colunas, a partir dos quais serão tecidos maiores comentários a respeito do

número de incidências de substantivos ao longo dos preâmbulos a que se referem.

Assim, o primeiro desses gráficos (apresentado no final do Capítulo 5) diz respeito à

visão geral das incidências, levantada a partir do somatório das incidências verificadas

em cada um dos preâmbulos selecionados. Os demais gráficos (apresentados no

Capítulo 6) dizem respeito aos preâmbulos dos Atos Institucionais números 1, 2 e 5,

respectivamente.

Na abordagem a partir dos gráficos, a fim de se reiterar o caráter dialógico da

referenciação (marco teórico desta tese), também serão desenvolvidas análises

comparativas, tendo em vista que tais gráficos dialogam fortemente entre si.

É importante, também, informar, neste Capítulo, o procedimento geral utilizado

para a composição desses gráficos. Inicialmente, foi realizado levantamento dos

substantivos utilizados pelo locutor na construção de imagem do Regime Militar. Após

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o levantamento dos substantivos utilizados ao longo daqueles textos, procedeu-se à

contagem geral do número de incidências, bem como à contagem dessas incidências em

cada um dos preâmbulos. Após essa primeira contagem, procedeu-se à classificação (do

maior número para o menor número de incidências) desses signos. Foi estabelecida,

então, uma linha de corte, relativamente às incidências de substantivos nos textos dos

preâmbulos, exclusivamente para a composição dos gráficos, sem excluir da leitura aqui

realizada os signos cortados. Por outras palavras, embora vários signos não tenham sido

utilizados na composição dos gráficos, foram considerados no desenvolvimento das

análises dos preâmbulos. Dessa forma, a linha de corte estabelecida para o primeiro

gráfico foi de 4 incidências; para os demais, essa linha desceu para 2 incidências. A

título de exemplo, veja-se o gráfico abaixo, que apresenta a visão geral dos dados:

GRÁFICO A- VISÃO GERAL DOS DADOS – ATOS INSTITUCION AIS 1, 2 e 5

Fonte: elaborado pelo autor.

Como ficará mais bem demonstrado oportunamente, quando da realização das

análises propriamente ditas do corpus, serão dois os momentos principais da abordagem

dos textos mencionados: I) a configuração do Regime Militar a partir de enunciados

produzidos por seus representantes, o que acaba por construir visão positiva a respeito

de si; II) a configuração da Antirrevolução a partir de enunciados produzidos pelos

representantes do Regime Militar, o que acabará por construir imagem negativa a

respeito daquele grupo.

0

5

10

15

20

25

30

35

40

Revolução

Vitória

Poder

Ordem

Movimento

Institucionalização

Legitimação

Nação

Governo

Objetivos

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Como mencionado na Introdução desta tese, durante a leitura preliminar dos

textos selecionados para análise, constatou-se que o locutor ali presente, a todo instante,

referia-se ao movimento que tomou o poder e à situação por que passava o país. Essa

leitura inicial mostrou, como era de se esperar, que o locutor (que falava como

partidário do Movimento) dava ao que se buscava implementar ares de solução dos

problemas nacionais. Nesse caso, percebeu-se uma construção mais clara dessa imagem.

Já em relação ao outro grupo em disputa, percebeu-se que, muitas vezes, o locutor o

construía a partir de implícitos, ou seja, de referências indiretas, verificáveis a partir da

leitura de signos postos em cena e que se referiam à construção de imagem positiva para

o Regime. Essa constatação levou à busca pelos itens lexicais postos em cena pelo

locutor nessa construção. Foi a partir daí que se percebeu, como se demonstrará, a

construção de vários subgrupos temáticos nessa primeira divisão realizada. É nesses

subgrupos que se pode observar a maneira como os itens lexicais foram postos em cena

na construção dos referentes pelo locutor.

Esses subgrupos temáticos podem ser assim distribuídos: 1) movimento, 2)

revolução, 3) poder constituinte, 4) vitória, 5) comando, 6) objetivos, 7)

institucionalização, 8) legalidade, 9) permanência, 10) unanimidade, 11) (não)

radicalização, 12) autoridade, 13) tranquilidade, 14) defesa. Essa subdivisão, criada,

como mencionado, a partir da verificação das recorrências de itens lexicais, em sua

maioria, pode ser realizada também em relação ao outro grupo temático, ou seja, a

Antirrevolução. A diferença reside no fato de que, no caso deste grupo, ocorre grande

número de implícitos, constatados a partir dos ditos sobre o Regime, tudo posto em cena

a partir do locutor criado pelo aludido Regime. É em cada um desses grupos que será

possível realizar as análises a respeito dos rótulos atribuídos, principalmente, à

Revolução e à Antirrevolução.

Esse conjunto de recorrências em relação aos dois grupos aqui mencionados nos

permitiu constatar as imagens construídas, sempre pelo locutor presente nos Atos

Institucionais, a respeito de um e de outro grupo.

O percurso aqui apresentado serve de base para a distribuição do capítulo

destinado à análise dos textos. Assim, serão trabalhados, basicamente, itens lexicais

utilizados na construção da imagem do Regime pelo Regime, bem como da imagem da

oposição pelo Regime; serão analisados itens lexicais mobilizados pelo locutor, tendo

em vista o levantamento de implícitos, seja quanto à situação, seja quanto à

Antirrevolução.

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4- O PODER NASCIDO EM ABRIL DE 1964

A fim de se construir a contextualização necessária ao desenvolvimento das

análises realizadas no Capítulo 5 e no Capítulo 6 desta tese, realizar-se-á, neste capítulo,

a breve leitura de fragmentos de textos de grande importância para o que se vivenciava

no período selecionado: 1) o Ato Institucional Número 1, em seu Preâmbulo; 2) o

editorial “Basta!”, veiculado pelo Jornal Correio da Manhã, em 31 de março de 1964; 3)

discurso do Deputado Federal Márcio Moreira Alves, proferido em reunião do

Congresso Nacional realizada em setembro de 1968; 4) discurso do General Arthur da

Costa e Silva, realizado na reunião do Conselho de Segurança Nacional em que se

apresentou o texto do Ato Institucional número 5.

A justificativa para a abordagem desses elementos gira em torno do fato de que

os textos mencionados nos itens 2 e 3 antecederam e, até, motivaram a edição dos Atos

Institucionais número 1 (texto 2) e número 5 (texto 3), ao passo que o texto 4 consiste

na leitura que o Regime fazia a respeito da situação vivida pelo país e, principalmente,

de que o Congresso Nacional se recusava a permitir o julgamento do Deputado pelo

Alto Comando Militar.

Antes de darmos início à leitura proposta para este Capítulo, deve-se esclarecer

que não se trata, neste momento, da abordagem aprofundada e sistematizada do corpus

selecionado, embora haja texto (o Ato Institucional número 1) a ser trabalhado aqui e no

Capítulo 5.

Veja-se, então, o fragmento abaixo, do Ato Institucional número 1:

É indispensável fixar o conceito do movimento civil e militar que acaba de abrir ao Brasil uma nova perspectiva sobre o seu futuro. O que houve e continuará a haver neste momento, não só no espírito e no comportamento das classes armadas, como na opinião pública nacional, é uma autêntica revolução. Ato Institucional Número 1 – 09 de abril de 1964 – excerto

No fragmento acima, é possível verificar, embora indiretamente e a partir da

percepção do locutor, que o grupo que, em 31 de março de 1964, assumiu o poder

recebera o apoio de diversos setores da sociedade de então, entre eles setores da

imprensa, da classe política e muitas das camadas populares, ou seja, da “opinião

pública nacional”.

O primeiro aspecto a ser observado no excerto apresentado acima é a maneira

como se dá a caracterização do aludido Movimento. Através dessa caracterização, que

se dá no primeiro momento do texto fundador daquela ordem, observa-se uma busca por

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aproximação entre o civil e o militar, explicitada no próprio texto. Além do mais, é

interessante perceber a carga semântica do rótulo atribuído, bem como daquele que foi

preterido. Trata-se da oposição entre “revolução” e “golpe”, este, silenciado, no texto, a

partir da menção àquela.

Nesse momento inicial, em que se constrói discursivamente uma aproximação de

anseios, como a derrubada de João Goulart e a considerada salvação nacional, tornou-se

necessário ao Movimento, portanto, buscar sua legitimação perante o grupo que lhe deu

sustentação inicial.

Assim, tornou-se, naquele momento, “indispensável” a fixação do rótulo daquele

movimento que acabava de assumir o poder. Esse rótulo, contudo, não poderia ser o do

golpe, tendo em vista sua grande carga negativa e sua alta rejeição já declarada pela

sociedade de então. Buscou-se, assim, a atribuição de outro rótulo, agora com carga

semântica mais aceitável, embora veiculadora de riscos à democracia, que tanto se

defendia: a Revolução.

O grupo que assume o poder rotula o Movimento como Revolução e a qualifica

como autêntica. Além disso, qualifica o Movimento como civil e militar. Vê-se, então,

uma sequência de rótulos afixados no que ocorria na época: trata-se de movimento e

esse movimento consiste em Revolução. O movimento é civil e também militar. A

Revolução é autêntica. Assim, o Movimento civil e militar é uma autêntica Revolução.

Cria-se, portanto, o campo para a legitimação da atuação das forças armadas a partir

daquele momento.

O Editorial veiculado no Jornal Correio da Manhã, de 31 de março de 1964,

mostra o diálogo existente entre a Nação e a Revolução, nesses momentos iniciais do

Movimento que ocorria no Brasil. Aqui, o Jornal se posiciona frontalmente contra a

presença e a atuação de João Goulart na Presidência da República. Além do mais,

mostra-se favorável a uma intervenção militar, a fim de provocar a saída do então

Presidente. Sua posição é de que uma revolução acarretaria menos danos ao Brasil do

que a permanência de João Goulart no poder.

A título de exemplo, veja-se essa passagem, extraída do Editorial:

Até que ponto contribuirá para preservar o clima de intranqüilidade e insegurança que se verifica presente na classe produtora? Até que ponto deseja levar ao desespero, por meio da inflação e do aumento do custo de vida, a classe média e a classe operária? Até que ponto quer desagregar as Forças Armadas, por meio da indisciplina que se torna cada vez mais incontrolável? Editorial Basta! – Correio da Manhã, 31 de março de 1964 – excerto

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Como se percebe, o Jornal, através de seu Editorial, filia-se aos sentimentos de

algumas classes em ação no País, entre elas a classe média e a classe operária. Além

disso, rotula tais sentimentos: intranquilidade, insegurança, desespero (provocado pela

inflação, pelo aumento do custo de vida). Ainda no excerto acima, cite-se o seguinte

ponto: “até que ponto quer desagregar as Forças Armadas, por meio da indisciplina que

se torna cada vez mais incontrolável?”. Percebe-se, aqui, um alinhamento entre o Jornal

e algum setor das Forças Armadas. Veja-se que o então Presidente da República é

descrito como aquele que bate de frente com aquilo que, para o senso comum,

caracteriza tais Forças: a rígida hierarquia. Portanto, a partir dessa passagem, pode-se

verificar uma coesão entre os discursos da Nação e das Forças Armadas, no sentido de

conseguir um objetivo comum: a queda de João Goulart, cuja presidência era

construída, nesse discurso, como prejudicial ao País.

O excerto abaixo, presente em momento posterior do Editorial, reforça o

sentimento de desacordo da sociedade em relação ao então Presidente:

Não é tolerável esta situação calamitosa, provocada artificialmente pelo governo, que estabeleceu a desordem generalizada, desordem esta que cresce em ritmo acelerado e ameaça sufocar todas as forças vivas do país. Não contente de intranqüilizar o campo com o decreto da Supra, agitando igualmente os proprietários e camponeses, de desvirtuar a finalidade dos sindicatos, cuja missão é a das reivindicações de classe, agora estende a sua ação deformadora às Forças Armadas. Destruindo de cima a baixo a hierarquia e a disciplina, o que põe em perigo o regime e a segurança nacional. Editorial Basta! Correio da Manhã, 31 de março de 1964 – excerto

Novamente, é enfatizado o lado negativo daquilo que se vivenciava (o governo

“estabeleceu a desordem generalizada”, está a “intranquilizar o campo com o decreto da

Supra”, está a “desvirtuar a finalidade dos sindicatos”, “estende sua ação deformadora

às Forças Armadas”) e, ao final do parágrafo, fala-se a respeito das Forças Armadas a

partir do viés da destruição da hierarquia e da disciplina (“Destruindo de cima para

baixo a hierarquia e a disciplina, o que põe em perigo o regime e a segurança

nacional”). Reforça-se, portanto, o clima de intranquilidade que, de acordo com o

Jornal, se buscava construir para o Brasil de então, tendo como elemento chefe a figura

do Presidente.

O excerto abaixo também será de leitura bastante útil, tendo em vista o diálogo

que permite verificar com o preâmbulo do Ato Institucional Número 1.

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A Nação não admite golpe nem contragolpe, quer consolidar o processo democrático para a concretização das reformas essenciais de sua estrutura econômica. Mas não admite que seja o próprio Executivo, por interesses inconfessáveis, que desencadeie a luta contra o Congresso, censure o rádio, ameace a imprensa e com ela todos os meios de manifestação do pensamento, abrindo caminho à ditadura. Os Poderes Legislativo e Judiciário, as classes armadas, as forças democráticas devem estar alertas e vigilantes e prontos para combater todos aqueles que atentem contra o regime. Editorial Basta! Correio da Manhã, 31 de março de 1964 – excerto

Veja-se que, da mesma forma realizada pelo preâmbulo do Ato Institucional, a

referência que se faz é à Nação. No caso do Editorial, ela é apresentada como instância

com vontade própria e que se posiciona contrariamente à situação que se verificava (“A

Nação não admite”; a Nação “quer consolidar o processo”; a Nação “não admite”). No

caso, a Nação é mostrada como contrária ao golpe, fosse ele realizado por qualquer ala.

Além disso, é também apresentada como sujeito que busca a consolidação da

democracia e a concretização de reformas. Ainda, de acordo com o Editorial, a própria

Nação posiciona-se contrariamente a ações do Executivo que visem a interesses

rotulados como inconfessáveis.

Além do mais, também no fragmento acima, há nova menção às Forças Armadas,

desta vez rotuladas como “classes armadas”. São colocados no mesmo nível o

Legislativo, o Judiciário, as referidas Classes Armadas, as forças democráticas, todas

elas construídas como entidades capazes de “combater todos aqueles que atentem contra

o regime”, no caso mais direto, o grupo de João Goulart, apesar de, como se sabe, não

ser o único que se encontrava em atuação para tomar o poder e implantar um regime

ditatorial no Brasil.

Por fim, veja-se o fragmento abaixo, que reforça o diálogo existente entre

Revolução Vitoriosa e opinião pública:

A opinião pública recusa uma política de natureza equívoca, que se volta contra as instituições cuja guarda deveria caber ao próprio Governo Federal. Queremos o respeito à Constituição, queremos as reformas de base votadas pelo Congresso, queremos a intocabilidade das liberdades democráticas, queremos a realização das eleições em 1965. Editorial Basta! Correio da Manhã, 31 de março de 1964 – excerto

Veja-se que, no fragmento acima, há uma fusão entre opinião pública e o Jornal:

“a opinião pública recusa (...). Queremos o respeito”. Fica, então, construído o Jornal

como integrante (e não como representante) da opinião pública. Assumindo esse status,

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constrói alguns rótulos e se posiciona em relação a alguns dos acontecimentos que

menciona. Assim, rotula como equívoca a política que se realizava; além disso,

apresenta as características dessa política, rotulando-a como contrária às instituições que

deveria guardar. Por fim, utilizando o “nós”, como sujeito desinencial, tendo, dessa

forma, se inserido no conceito de “opinião pública”, apresenta relação de seus desejos e,

portanto, dos desejos da mencionada opinião pública.

Do exposto, será possível verificar como se deu o diálogo entre os mencionados

dois setores: a opinião pública e a Revolução Vitoriosa, que acabava de assumir o

poder, pela derrubada de João Goulart.

Retomando o excerto trazido na abertura destas leituras, pode-se passar a uma

breve relação com o que se acabou de dizer a respeito do Jornal.

É indispensável fixar o conceito do movimento civil e militar que acaba de abrir ao Brasil uma nova perspectiva sobre o seu futuro. O que houve e continuará a haver neste momento, não só no espírito e no comportamento das classes armadas, como na opinião pública nacional, é uma autêntica revolução. Ato Institucional Número 1 – 09 de abril de 1964 – excerto Como se pode perceber, o Jornal e o preâmbulo do Ato Institucional, nesse

momento, promovem uma aproximação entre o civil e o militar. No caso do Jornal, a

constante menção às Forças Armadas ou mesmo às Classes Armadas e o alerta que se

faz a elas acusam essa aproximação.

Outro fator que permite defender essa tese é o rótulo atribuído ao Movimento

pelo próprio Movimento: “Revolução”. Veja-se que o Jornal coloca-se como a opinião

pública e declara não aceitar golpes ou contragolpes. Dessa forma, fica claro o objetivo

do Movimento de se aproximar da opinião pública.

A passagem seguinte, presente no preâmbulo do Ato Institucional Número 1,

permite reforçar a tese do diálogo inicial entre as Forças Armadas e a opinião pública:

A revolução se distingue de outros movimentos armados pelo fato de que nela se traduz, não o interesse e a vontade de um grupo, mas o interesse e a vontade da Nação. Ato Institucional Número 1 – 09 de abril de 1964 – excerto

Tanto a opinião pública quanto o Movimento mencionam em seus discursos a

presença de grupos que não representariam os interesses e a vontade da Nação. O Jornal

é mais direto, citando João Goulart, ao passo que o preâmbulo o faz por vias

transversais. Nos dois casos, porém, o que se declara defender é a Nação.

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Há, no excerto seguinte, nova aproximação entre a Revolução Vitoriosa e a

opinião pública, esta recuperada a partir de termos como “nação” e “povo”:

A revolução vitoriosa se investe no exercício do Poder Constituinte. Este se manifesta pela eleição popular ou pela revolução. Esta é a forma mais expressiva e mais radical do Poder Constituinte. Assim, a revolução vitoriosa, como Poder Constituinte, se legitima por si mesma. Ela destitui o governo anterior e tem a capacidade de constituir o novo governo. Nela se contém a força normativa, inerente ao Poder Constituinte. Ela edita normas jurídicas sem que nisto seja limitada pela normatividade anterior à sua vitória. Os Chefes da revolução vitoriosa, graças à ação das Forças Armadas e ao apoio inequívoco da Nação, representam o Povo e em seu nome exercem o Poder Constituinte, de que o Povo é o único titular. Ato Institucional Número 1 – 09 de abril de 1964 – excerto

No excerto acima, ao mesmo tempo em que o Movimento busca uma

aproximação com aqueles setores da sociedade que lhes deram sustentação para

conseguir a vitória, começa a buscar a construção de uma autonomia em relação a esses

setores.

Veja-se que se fala que o poder constituinte se manifesta pela eleição popular ou

pela revolução. Assim, apesar de se reconhecer a importância do apoio popular na

derrubada do então Presidente, após ter explicado que a constituinte é estabelecida pela

vontade popular “ou” pela revolução, cria-se o contexto de que foi a Revolução

Vitoriosa a responsável pela manifestação daquele poder. Nesse sentido, a conjunção

“ou” é de suma importância. Afinal, poderia ser utilizada “e”, deixando claro para todos

que a Constituinte seria construída juntamente com o povo, através da eleição popular.

Veja-se, então, que a Revolução Vitoriosa busca a delimitação de espaços entre a

opinião pública e o novo comando nacional, uma vez que, como dito, reconhece a

atuação popular, mas, ao se constituir como representante do povo no processo

constituinte, retira-lhe o poder de participação na elaboração da nova ordem que se

implantaria.

Aqui, embora de maneira bastante sutil, o Movimento acaba por expressar uma

vontade oposta à daquela expressa pelo editorial do jornal Correio da Manhã, que exigia

o respeito à Constituição e repudiava a existência de golpes ou de contragolpes. Ao que

tudo indica, a elaboração do preâmbulo do Ato Institucional número 1 da maneira aqui

apresentada consistiu em uma atitude responsiva em relação ao que se sentia a respeito

da opinião pública. Via-se que o povo manifestava-se pela manutenção da Constituição

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e contra a realização de golpes pelo Executivo. A solução encontrada foi propor uma

Constituinte através de uma revolução apoiada pela vontade popular, pela Nação.

Outra maneira que o Movimento vitorioso encontrou para travar um diálogo

positivo com a opinião pública nacional foi o reforço aos anseios por esta apresentados

em seus movimentos populares, como se pode verificar da passagem a seguir:

O Ato Institucional que é hoje editado pelos Comandantes-em-Chefe do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, em nome da revolução que se tornou vitoriosa com o apoio da Nação na sua quase totalidade, se destina a assegurar ao novo governo a ser instituído, os meios indispensáveis à obra de reconstrução econômica, financeira, política e moral do Brasil, de maneira a poder enfrentar, de modo direto e imediato, os graves e urgentes problemas de que depende a restauração da ordem interna e do prestígio internacional da nossa Pátria. Ato Institucional Número 1 – 09 de abril de 1964 – excerto

Veja-se que se retoma passagem defendida pelo Editorial aqui apresentado,

quando se questiona o estado de intranquilidade econômica então observado no país. Se

no Editorial se fala em intranquilidade e a relaciona mais de perto com os problemas

econômicos vivenciados, no preâmbulo do Ato Institucional, essa intranquilidade é

retomada, e o novo governo é apresentado como o antídoto para aquele quadro.

O excerto abaixo apresenta novos momentos que explicitam o debate travado

entre os componentes da Revolução Vitoriosa e a opinião pública, representada, em

grande medida, pelo Jornal Correio da Manhã.

O presente Ato institucional só poderia ser editado pela revolução vitoriosa, representada pelos Comandos em Chefe das três Armas que respondem, no momento, pela realização dos objetivos revolucionários, cuja frustração estão decididas a impedir. Os processos constitucionais não funcionaram para destituir o governo, que deliberadamente se dispunha a bolchevizar o País. Destituído pela revolução, só a esta cabe ditar as normas e os processos de constituição do novo governo e atribuir-lhe os poderes ou os instrumentos jurídicos que lhe assegurem o exercício do Poder no exclusivo interesse do País. Para demonstrar que não pretendemos radicalizar o processo revolucionário, decidimos manter a Constituição de 1946, limitando-nos a modificá-la, apenas, na parte relativa aos poderes do Presidente da República, a fim de que este possa cumprir a missão de restaurar no Brasil a ordem econômica e financeira e tomar as urgentes medidas destinadas a drenar o bolsão comunista, cuja purulência já se havia infiltrado não só na cúpula do governo como nas suas dependências administrativas. Para reduzir ainda mais os plenos poderes de que se acha investida a revolução vitoriosa, resolvemos, igualmente, manter o Congresso Nacional, com as reservas relativas aos seus poderes, constantes do presente Ato Institucional. Ato Institucional Número 1 – 09 de abril de 1964 – excerto

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Três são os temas recorrentes nos preâmbulos dos Atos Institucionais, que

reaparecem no excerto acima: tranquilização da Nação a respeito de um possível golpe

de estado, a luta contra o comunismo e a defesa contra a volta do governo anterior, ou

mesmo contra a frustração dos objetivos revolucionários.

É interessante perceber que esses temas são permeados pela ambiguidade quanto

ao direcionamento, ao seu destinatário: quando se declara a defesa dos ideais

revolucionários, não fica claro se essa defesa é contra o governo anterior ou contra

qualquer classe que se oponha ao Regime. Ao mesmo tempo, porém, possivelmente

para ressaltar que a defesa é contra a ordem anterior, reforça-se a busca pela

relativização do poder proporcionado pela Revolução. Veja-se, nesse sentido, que, pelo

menos em dois momentos, essa busca é ressaltada: “para demonstrar que não

pretendemos radicalizar o processo revolucionário, decidimos manter a Constituição de

1946” e “resolvemos, igualmente, manter o Congresso Nacional, com as reservas

relativas aos seus poderes, constantes do presente Ato Institucional”. Aqui, dialoga-se

com fragmento do Jornal Correio da Manhã em que se defendem a Constituição de

1946 e as instituições ali estabelecidas. A Revolução, por sua vez, em movimento de

aproximação com os desejos populares, diz manter a Constituição, embora com

ressalvas, além de manter o Congresso, também com ressalvas, deixando claro quem dá

legitimidade a quem, no caso, a Revolução ao Congresso Nacional.

A sequência da história relativa aos anos do Regime Militar iniciado em 1964,

como se sabe, foi de contestações provenientes da oposição e de repressão por parte do

comando militar. Embora, até certo momento, tenha havido alguma flexibilização por

parte da repressão, alguns fatos sociais levaram ao que se classificou como

“endurecimento do regime”, o que foi consubstanciado no Ato Institucional número 5,

que faz parte do corpus a ser analisado nesta tese.

No comando do Regime, a história apresenta a existência de duas alas, uma mais

liberal e uma mais rigorosa, esta denominada “linha dura”. A primeira, apesar de buscar

a disciplina e a ordem, estava mais aberta ao diálogo do que a segunda, que defendia a

repressão pura e simples de atos contrários à “ordem revolucionária”. O General Arthur

da Costa e Silva, então Presidente, pertencia ao segundo grupo, ao passo que o General

Castello Branco era partidário da primeira corrente.

De toda a maneira, o que se observou nos momentos anteriores à edição do Ato

Institucional número 5 foi o agravamento da disputa pelo poder (internamente ao

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Regime), com a correspondente luta armada (externamente ao Regime, nas ruas). Esta

se dava a partir de atentados diversos à ordem e à segurança, como se dizia então.

O então Presidente da República, que assumira o poder com a promessa de

respeitar o poder legislativo, acabou se curvando às pressões internas que buscavam

abolir a legalidade.

Se, externamente, havia revoltas populares contra a permanência do Regime

Militar, internamente também houve movimentos com caráter revoltoso, os quais

realizavam o que se convencionou denominar “atentados de direita”, cujo objetivo era

atribuir à resistência ao Regime ações violentas e, assim, trazer para o Comando Militar

a legitimidade necessária à sua atuação e à sua permanência no comando.

Acontece que, entre passeatas e atentados, nas ruas, ocorreu, no Congresso

Nacional, um fato que levou o Regime Militar a editar o Ato Institucional número 5. O

Deputado Federal Márcio Moreira Alves toma a palavra para relatar casos de tortura

proporcionados pelos militares e conclamar a sociedade ao que classificou como boicote

ao desfile do dia 7 de setembro:

As cúpulas militaristas procuram explorar o sentimento profundo de patriotismo do povo e pedirão aos colégios que desfilem junto com os algozes dos estudantes. Seria necessário que cada pai, cada mãe, se compenetrasse de que a presença dos seus filhos nesse desfile é o auxílio aos carrascos que os espancam e os metralham nas ruas. Portanto, que cada um boicote esse desfile. Discurso do Deputado Federal Márcio Moreira Alves – setembro de 1968 – excerto

Como se pode perceber, o Deputado, além de conclamar a sociedade a não

participar dos desfiles, classifica os militares como “algozes”, “carrascos” e como

espancadores dos estudantes.

Além disso, conclamou as mulheres a participarem desse boicote, negando-se ao

contato com namorados e maridos militares. Menciona fato proporcionado pelas

esposas de Deputados da ARENA, que, conforme declarou, estabeleceu “boicote ao

militarismo”, e conclama as moças a se portarem de maneira semelhante, conforme se

pode perceber a partir do excerto abaixo:

Esse boicote pode passar também, sempre falando de mulheres, às moças. Aquelas que dançam com cadetes e namoram jovens oficiais. Seria preciso fazer hoje, no Brasil, que as mulheres de 1968 repetissem as paulistas da Guerra dos Emboabas e recusassem a entrada à porta de sua casa àqueles que vilipendiam-nas. Discurso do Deputado Federal Márcio Moreira Alves – setembro de 1968 – excerto

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Conclama, então, o que classifica como “os silenciosos” a se posicionarem contra

o Regime e aponta para a presença de grupo, no interior das Forças Armadas, que,

embora falando e agindo em seu nome, não as representava.

Esses fatos levaram o Executivo federal a se dirigir ao Legislativo e solicitar a

licença para julgar o aludido político. Esse pedido estava coerente com a posição até

então adotada pelo Regime, de respeito às determinações constitucionais, as quais

estabeleciam aquela solicitação. Porém, o Congresso não concedeu aquela permissão, o

que levou à edição do mencionado Ato.

O General Arthur da Costa e Silva, então, convoca reunião do Conselho de

Segurança Nacional para a discussão do projeto do Ato Institucional número 5, como

foi mencionado em momentos daquela reunião.

O excerto abaixo, constante do mencionado discurso, apresenta alguns pontos de

interessante comentário:

Apresenta-se, portanto, um fato novo, com características típicas de provocação para que não continuemos nesse processo evolutivo da Revolução, para a consecução da ordem democrática ou do regime democrático completo. Disse eu e repito, disse perante homens do Congresso que era mais fácil, para mim, adotar medidas de prepotência e de força, do que manter a continuidade do regime dentro da Constituição, porque eu não estava com a, não estava tendo a compreensão necessária e nem o denodo daqueles que deviam me ajudar a defender essa ordem democrática. Meus senhores, naquela hora, eu nem sabia o que se estava preparando e o que ainda ia acontecer. E o que aconteceu foi muito pior do que se podia esperar. Porque como vamos tomar, em que sentido vamos tomar a manifestação do Congresso? Da Câmara dos Deputados? No sentido meramente de solidariedade a um membro do Congresso? Vamos tomar no sentido de uma manifestação ou uma expansão ou uma extrapolação de recalques, que porventura tenha sido pela hostilidade, causado pela hostilidade do poder público em relação à área política? Não creio. Porque eu não creio que a área política tenha merecido, de qualquer governo, de qualquer chefe de Estado, as considerações que eu tenho dispensado a essa área. Discurso do Presidente Arthur da Costa e Silva – dezembro de 1968 – excerto

Pode-se perceber dessa fala a tentativa de rotular não somente o pronunciamento

do Deputado, que ocorrera em setembro de 1968, mas também a postura da Câmara

(ocorrida no mês de dezembro daquele ano), que se negou a cassar o mandato

parlamentar de Márcio Moreira Alves, após determinação do Supremo Tribunal Federal,

o qual solicitava àquela Casa que se pronunciasse a respeito daquele assunto.

Para o Presidente da República, aquele fato consistia em provocação do

Congresso e não meramente em ato de solidariedade a um deputado. Por outro lado,

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Costa e Silva acaba por externar sua estranheza quanto à reação daquela Casa, dizendo-

se o governante que mais considerou as manifestações da área política do país.

Após discussões, em que apenas o Vice-presidente da República se posicionara

contrariamente, o Conselho de Segurança Nacional apoiou a edição do Ato Institucional

número 5. Com isso, se o Congresso não permitiu o julgamento do Deputado, o

Executivo decidiu declarar aquela Casa em recesso por tempo indeterminado, além de

suspender a concessão de habeas corpus para crimes políticos e implementar a censura

no país. Ficava, portanto, iniciado o período em que a oposição era considerada ilegal e

no qual ações de resistência eram vistas como crimes de guerra revolucionária.

Uma vez realizados esses breves apontamentos históricos, a partir de textos em

circulação nas respectivas épocas, pode-se passar aos momentos seguintes desta tese.

Assim, no Capítulo 5, será realizada leitura analítica dos parágrafos dos preâmbulos dos

Atos Institucionais selecionados, o que construirá o embasamento necessário à leitura,

no Capítulo 6, das regularidades enunciativas verificadas naqueles instrumentos

normativos.

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5- PREÂMBULOS DOS ATOS INSTITUCIONAIS E A NOVA ORDE M PÓS 64:

uma visão dialógica dos processos de referenciação

5.1- Introdução

A partir das análises a serem realizadas neste capítulo, quando serão tomados os

preâmbulos dos Atos Institucionais vistos por nós como os mais importantes da

Revolução de 1964 (Ato Institucional Número 1, Ato Institucional Número 2 e Ato

Institucional Número 5), buscaremos estudar, como ressaltado em outros momentos

deste trabalho, o processo dialógico de referenciação desenvolvido pelo mencionado

Movimento. Será tomada como fator norteador das análises aqui aludidas a atuação do

locutor presente nesses instrumentos normativos ao selecionar, na construção de objetos

discursivos, os itens lexicais por ele colocados em cena.

Dissemos que os Atos Institucionais acima elencados são os mais importantes,

dentre os 17 editados, da Revolução, no que diz respeito aos objetivos desta tese, pois

entendemos que o primeiro consistiu no Ato fundador da nova realidade, além de ter

dado as linhas gerais do Movimento. Já o Ato Institucional número 2 apresenta

movimentos enunciativos recorrentes nos demais atos e, por isso, em nosso

entendimento, tem grande importância. Por fim, o Ato Institucional número 5 tem sua

importância em razão do fato de que, se o Ato Institucional número 1 criou uma nova

ordem, o de número 5 cria, nessa nova ordem, uma ordem outra, com peculiaridades

que a diferem daquela criada pelo primeiro Ato. Tanto é assim que chegou a ser

chamada, pelos próprios membros do Conselho de Segurança Nacional, de “revolução

dentro da Revolução”. Entendemos, em vista disso, que esses fatos influenciaram na

construção dos objetos discursivos aqui estudados, ou seja, a Revolução e a

Antirrevolução.

Pretendemos demonstrar como se deu a atuação enunciativa do locutor no

sentido de construir uma imagem positiva da Revolução e uma imagem negativa dos

movimentos a ela contrários, ou seja, como se deu a atuação enunciativa do locutor na

construção desses objetos discursivos. Assim, serão buscadas a construção de sentido

para o texto e as estratégias utilizadas pelo locutor para alcançar seus objetivos

discursivos.

O processo mencionado no parágrafo anterior leva a abordar, também neste

capítulo, a noção de gênero discursivo, afinal, o que será analisado nas seções seguintes

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são os procedimentos discursivos utilizados pelo locutor na elaboração de texto

pertencente ao gênero discursivo Ato Institucional, mais especificamente, em seu

preâmbulo/considerações iniciais. Portanto, antes de se dar início à abordagem mais

detida de cada um dos parágrafos dos preâmbulos/considerações iniciais selecionados,

torna-se necessário tecer maiores comentários a respeito da teoria do gênero discursivo,

desta vez em relação aos textos selecionados para análise nesta tese.

Como discutido no capítulo específico desta tese, durante (e depois desse

momento) o desenvolvimento das ações que levaram à deflagração do Movimento que

resultou no Golpe Militar de 1964, de um lado e de outro do campo de batalha que se

formou no Brasil de então, os sujeitos ali envolvidos utilizaram recursos linguísticos os

mais diversos, desde palavras de ordem em manifestações de rua, até a edição de textos

escritos oficiais. Para o que interessa aos objetivos desta tese, a Revolução utilizou o

gênero discursivo texto normativo lato sensu, ao qual pertence o Ato Institucional,

visando, inicialmente, ao objetivo de institucionalizar aquele Movimento Vitorioso e,

posteriormente, a coibir atitudes que viessem a abalar o Regime então instalado.

Perceberemos que os enunciados produzidos pela Revolução respondiam ao que se

observava nas ruas e permitem verificar a responsividade dos enunciados postos em

cena por aquele locutor, uma vez que, à medida que a atuação da oposição ao Regime se

tornava mais forte, também os termos selecionados pelo locutor dos Atos Institucionais

veiculavam carga semântica mais dura.

Buscamos demonstrar, também, nas seções deste capítulo, que o locutor

movimentado pela Revolução observou as determinações do gênero discursivo Ato

Institucional, em seu preâmbulo/considerações iniciais, para elaborar seus enunciados, o

que o levou a dar aos enunciados por ele postos em cena uma determinada carga

semântica e, ainda, uma dada formalidade ao texto produzido, sem excluir uma certa

dose de autoritarismo, quando julgou necessário. A abordagem dos itens lexicais ali

utilizados e das variações quanto à incidência ao longo dos Atos editados permitirá

verificar essa observância por parte desse sujeito.

É importante, também, perceber que o gênero discursivo Ato Institucional foi

elaborado no campo político de utilização da língua. Além disso, essa elaboração se deu

em complexo momento da história nacional, em que a Revolução precisava se

apresentar como sujeito sabedor dos problemas do país e esconder algum objetivo

relativo à mera tomada e manutenção do poder. Contudo, com a evolução da história, a

partir do surgimento de movimentos contrários ao Regime, a Revolução adaptou os

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enunciados e os signos postos em cena à evolução histórica do grupo social. Esse fato

poderá ser verificado ao longo deste capítulo e também do Capítulo 6, quando será

realizada tabulação dos dados coletados. Além disso, será possível perceber que a

evolução dessas formas ocorre a partir da avaliação de sua eficácia de uso realizada

pelos interlocutores, ou seja, à medida que a situação das ruas tornou-se mais complexa

e, uma vez constatada pela Revolução essa complexidade e a ineficácia normativa,

buscou realizar alterações nos instrumentos por ela utilizados, a fim de solucionar os

problemas por ela detectados.

A leitura dos capítulos seguintes desta tese permitirá verificar a maneira como os

enunciados do locutor movimentado pela Revolução são moldados pelos Atos

Institucionais, bem como pelos preâmbulos/considerações iniciais desses Atos. O

locutor, como mencionado, age discursivamente na construção, para o que interessa aos

objetivos desta tese, dessas considerações iniciais, tendo em vista sua função

sociocomunicativa, ou seja, a apresentação das causas que levaram à edição daquela

norma e a apresentação dos esclarecimentos sobre as possibilidades de interpretação do

correspondente texto normativo. Tudo isso, como mencionado, foi determinado pelos

acontecimentos observados nas ruas e nos bastidores do Regime Militar, que assumiu o

poder em 1964. Além disso, será possível verificar como, a partir da seleção e da

utilização de itens lexicais pelo locutor, sempre no gênero discursivo em discussão,

explicita-se a individualidade do Regime e a coloca em relação com a individualidade

dos grupos que lhe fazem oposição. Tais construções fazem parte das possibilidades que

o gênero discursivo em análise dá aos seus usuários, os quais, reitere-se, atuam

inseridos em esferas de comunicação discursiva.

Nesse sentido, será possível perceber que a Revolução Vitoriosa atua a partir de

pressões sociais por ela sofridas em diversos níveis e das respostas que busca provocar

nos grupos a que se direciona. Assim, a partir das determinações do gênero discursivo

Ato Institucional, o locutor realiza atividades linguageiras, as quais apresentam marcas

do ambiente discursivo em questão. Exemplo disso são as alterações no número de

incidências de itens lexicais entre os Atos Institucionais selecionados para análise, ou

mesmo o endurecimento do tom dado pelo locutor aos seus enunciados ao longo da

história do Regime. Tudo isso ocorre por meio da enunciação realizada pelo locutor

criado pelo Regime, considerando, no caso tomado para análise nesta tese,

interlocutores diversos, como, por exemplo, a população e os órgãos de imprensa que

apoiavam o Movimento Militar que ocasionou a queda de João Goulart, bem como a

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política internacional, que via em uma eventual implementação do comunismo no país

uma ameaça para os interesses da comunidade capitalista externa, ou seja, levando em

consideração um interlocutor, ser real ou criação de um representante médio do grupo

social.

Assim, como mencionado e como será possível verificar ao longo das análises a

serem realizadas, os enunciados produzidos pelo locutor presente nos Atos

Institucionais selecionados (para o que interessa aos objetivos desta tese) sofrerão

influência daqueles interlocutores e de tudo o que eles representam, como grupo social a

que pertencem (por exemplo, nos Atos Institucionais é possível verificar momentos em

que os locutores se dirigem ao Jornal Correio da Manhã, à oposição ou mesmo à

comunidade política internacional, o que se dá a partir de itens lexicais ou mesmo de

expressões mais complexas), posição ocupada na hierarquia social (será possível

perceber que o locutor escolhe itens lexicais diferentes quando se dirige a ações de

grupos armados da oposição e quando se dirige aos apoiadores do Regime), laços que o

ligam ao outro interlocutor.

Acreditamos, também, que a elaboração, naquele momento histórico, do Ato

Institucional e, mais precisamente, de seus preâmbulos/considerações iniciais deveu-se

à sua flexibilidade e à adaptabilidade a uma forma argumentativa para o discurso

construído. Assim, a utilização, naquele momento, de um gênero discursivo que

apresenta em sua estrutura composicional a possibilidade de inserção de argumentação

(presente nos preâmbulos/considerações iniciais) quanto ao que se propunha na outra

parte (a parte normativa, portanto), levou em consideração o processo concreto de

interação, que é influenciado pela sociedade mais ampla e pela interação mais direta.

Consequência lógica do que se disse até aqui é o fato de que, no processo de

construção dos enunciados que compõem os preâmbulos dos Atos Institucionais

selecionados, a Revolução lançou mão de palavras, embebidas de ampla carga

ideológica e, também, de vozes de outros enunciadores, que as utilizaram em dada

situação discursiva. Essa utilização do discurso do outro pode ser percebida, por

exemplo, a partir da construção do que Ducrot (1984) classifica como negação, ou seja,

negando-se o discurso construído pelo locutor, alcança-se aquilo que foi silenciado do

discurso da oposição. Tudo isso poderá ser percebido ao longo das análises a serem

realizadas neste capítulo e no Capítulo 6 desta tese.

Retomando o que se disse quando da construção do arcabouço teórico desta tese,

o caráter multiforme/dialógico e o fenômeno ideológico se fazem notar, na linguagem, a

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partir do conteúdo temático, do estilo e da construção composicional, componentes do

gênero discursivo. É nesse sentido que se entende que a linguagem, através da utilização

realizada pelos sujeitos que enunciam, constrói a realidade (constrói objetos discursivos,

portanto), a partir do processo enunciativo. Os enunciadores, então, ao realizarem esse

processo, selecionam recursos linguísticos (palavras, frases, outros recursos gramaticais,

o estilo propriamente dito) para construírem seus objetos discursivos (noção relativa à

referenciação, na qual nos aprofundamos em momento específico desta tese), nos

enunciados. Pode-se, então, dizer que os sujeitos que atuam na construção desses

objetos, em uma enunciação, por meio, portanto, da linguagem, o fazem a partir dos

signos, que, além de serem um reflexo da realidade, criado a partir de um ponto de vista

específico, são fragmentos dessa realidade.

O percurso que se busca seguir ao longo deste capítulo consiste em partir de uma

leitura, por assim dizer, de ordem descritivo-interpretativa de cada um dos parágrafos

dos preâmbulos dos Atos Institucionais selecionados e, uma vez tecidos esses

comentários, passar-se à leitura do conjunto, a ser desenvolvida no Capítulo 6. Essa

metodologia se justifica em razão da necessidade de se criar, previamente, para os dados

coletados, o aprofundamento e a contextualização suficientes para a abordagem que se

buscou realizar, ou seja, a leitura dos textos a partir da interconexão entre os estudos da

referenciação e dialogismo.

5.2- Ato Institucional Número 1

O texto constante do Quadro 1 consiste no primeiro parágrafo do preâmbulo do

Ato Institucional que deu início, oficialmente, à chamada Revolução de 1964. A partir

desse momento, o locutor toma a palavra para informar a Nação sobre, entre outros

aspectos, os objetivos daquele Movimento.

Quadro 01 – Ato Institucional Número 1: excertos 01 02 03 04 05

À NAÇAO É indispensável fixar o conceito do movimento civil e militar que acaba de abrir ao Brasil uma nova perspectiva sobre o seu futuro. O que houve e continuará a haver neste momento, não só no espírito e no comportamento das classes armadas, como na opinião pública nacional, é uma autêntica revolução.

Fonte: elaborado pelo autor.

No excerto constante do Quadro acima, o locutor utiliza expressões que

ressaltam o caráter fundador de uma nova ordem (por exemplo, “acaba de abrir”, “nova

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perspectiva sobre o seu futuro”) dado pelo Movimento então deflagrado e a busca pela

eternização daquela “nova perspectiva” sobre o futuro do Brasil (“o que houve e

continuará a haver”, por exemplo). Essa escolha de formas linguísticas caracterizará a

Revolução como objeto discursivo marcado pela força e pela determinação (a presença

do item lexical “continuará” é indício dessa marcação de força dada ao Movimento),

bem como pela proximidade com o povo e com os interesses da Nação (veja-se que a

“autêntica revolução” ocorreu e continuaria a ocorrer tanto no espírito e no

comportamento das Classes Armadas, quanto nos da Nação).

Essa imagem de força e de determinação é reforçada pela menção ao apoio da

Nação, como ressaltado pelo locutor em “não só no espírito e no comportamento das

classes armadas, como na opinião pública nacional”. Aqui, o locutor ressalta que a

opinião pública nacional apoiava o espírito e o comportamento das Classes Armadas, o

que constrói, como objetos discursivos, a Revolução com viés de instituição

democrática ou de instituição que defenderá a redemocratização do país, e a

Antirrevolução como instituição ameaçadora à democracia. Discursivamente, aproximar

forças armadas e opinião pública permite ao locutor construir bases que legitimem as

ações que seriam tomadas a partir do ato em estudo.

Outro ponto interessante no fragmento aqui analisado consiste na passagem “o

que houve e continuará a haver neste momento, não só no espírito e no comportamento

das classes armadas, como na opinião pública nacional, é uma autêntica revolução”.

Após a reorganização sintática do fragmento transcrito acima, é possível chegar ao

seguinte resultado: “uma autêntica revolução ocorreu (houve) e continuará a ocorrer (a

haver) [a partir] desse momento, no espírito e no comportamento das classes armadas e

n [o espírito e no comportamento d] a opinião pública nacional”. O locutor ressalta,

dessa forma, que a revolução ocorrida atingia espíritos e comportamentos. Dizendo

dessa maneira, constrói-se discursivamente a Revolução como entidade que não teria

nascido meramente das ruas ou de algumas instituições, mas das almas dos sujeitos que

compunham tais instituições e a própria Nação. Houve, enfim, uma revolução nessas

almas, nesses sujeitos.

Agindo dessa forma, em uma atitude que permite verificar o dialogismo presente

nos textos em discussão, o locutor ressalta sua posição de sujeito sabedor dos fatos que

ocorriam, tanto nas ruas quanto nas almas, bem como da necessidade de, de antemão,

estabelecer teoricamente, através da fixação do correspondente conceito, o que

acontecia no Brasil. Mostra-se, também, consciente da necessidade de construir a

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aproximação entre os componentes do Movimento e o povo, a Nação, a opinião pública

nacional. Tudo isso, sempre de maneira dialógica, a fim de prestar satisfações aos

grupos que lhe dariam sustentação.

Paralelamente a isso, como será possível perceber, itens lexicais/expressões

utilizados montam, enquanto objeto discursivo, se não conceitualmente, ao menos

contextualmente, a Revolução como instância capaz de realizar a conclusão de uma

fase/fixação de um movimento (vejam-se, nesse sentido, os verbos “é”, “fixar”, “é”

presentes, nessa ordem, no fragmento constante do Quadro 1), bem como a mudança

(presente na expressão “acaba de abrir”) e a permanência (expressão “houve e

continuará a haver”). Fica, dessa forma, construído um quadro em que a Revolução é

apresentada como já fixada, como já “sendo” e como permanente, tendo, conforme será

construído em momento posterior, força suficiente para tal.

Veja-se, então, que o Movimento civil e militar (a Revolução) é quem acaba de

abrir tais perspectivas. Fica criada a imagem de imediatismo para o que a Revolução

acabou de realizar, ou seja, esse Movimento civil e militar nem bem eclodiu e já foi

capaz de mudar a realidade nacional. Assim, fica criado, também, o objeto discursivo

Revolução como Movimento possuidor da força necessária para, imediatamente, mudar

os rumos da Nação. Essa maneira de construir o Movimento é recorrente nesse e em

preâmbulos de outros Atos Institucionais editados.

Na primeira incidência, o verbo “é” se liga a “indispensável”, construindo um

posicionamento do locutor em relação àquilo de que falará. A expressão “é

indispensável” mostra, então, um locutor ciente daquilo que enunciará (o conceito do

Movimento civil e militar) e sabedor da necessidade de, naquele momento, enunciar

daquela forma, bem como da urgência de fixar tal conceito.

Ao final do parágrafo, recorrendo, novamente, ao verbo “é”, apresenta o tópico

de seu discurso: “é uma autêntica revolução”, em uma construção de predicativo do

sujeito. Essa construção predicativa ocorre após terem sido dadas as características

resumidas por esse rótulo (Revolução).

Em relação aos outros verbos utilizados nesse parágrafo, diga-se que o locutor

utiliza “fixar” em relação a “conceito”; “acaba de abrir”, em relação a “movimento civil

e militar”; “houve e continuará a haver”, em relação a “autêntica revolução”.

Evidentemente que “acaba de abrir” tem como complemento a menção à nova

perspectiva prometida quanto ao futuro do Brasil. O que se observa, de imediato, é que

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o tópico em questão quanto a todos esses verbos é “Revolução”. Assim, é a Revolução

que abriu nova perspectiva ao Brasil, que houve e continuará a haver e que é autêntica.

Já em “houve e continuará a haver” há um reforço, recorrente nos preâmbulos

dos Atos Institucionais, dos objetivos de permanência da Revolução. De imediato, já no

primeiro parágrafo do primeiro preâmbulo de Ato Institucional, portanto, o locutor

ressalta o caráter de permanência daquele Movimento. Esse caráter será reforçado,

principalmente, no preâmbulo do Ato Institucional número 2 e no do Ato Institucional

número 5, neste, de maneira proeminente.

Por outro lado, como se pode perceber, enquanto objetos discursivos, os grupos

opositores à Revolução são construídos com uma imagem oposta à criada para ela.

Assim, a partir de “nova perspectiva”, que se refere à Revolução, o locutor coloca a

ação de grupos a ela contrários na condição de sujeitos que manteriam a velha ordem (a

qual é classificada, em diversos momentos, como prejudicial ao país). Além disso,

quando o locutor diz “autêntica revolução” e utiliza esse termo para se referir ao que

acabava de ocorrer a partir da ação das Forças Armadas, além de silenciar qualquer voz

que, possivelmente, surgisse e o rotulasse como “golpe militar”, antecipa-se a esse

enunciador e constrói a oposição com carga negativa: “se o meu movimento é uma

autêntica revolução, tudo o que a ele se opõe é inautêntico, ou mesmo é um golpe”.

É, ainda, possível verificar que o locutor, de imediato, ressalta o caráter de

permanência e de continuidade para o Regime em ação. Ao fazer isso, acaba por

silenciar o enunciador que venha a se levantar e apontar para o caráter provisório

daquelas ações. Além disso, lança para o grupo contrário ao Regime o rótulo da

provisoriedade.

Fica, também, estabelecido o paralelo entre unanimidade (ou quase

unanimidade), criado para o Movimento, e não unanimidade, proposto para a

Antirrevolução. No caso referente a esta, é construída a aludida imagem, quando o

locutor, ao se referir a espírito e comportamento, bem como à opinião pública nacional,

constrói a unanimidade para o Movimento civil e militar e, em paralelo, cria o caráter de

não unanimidade para o outro campo.

Assim, no Quadro 1, é possível perceber, como construção de objeto discursivo,

a oposição bem/mal para os dois grupos que nos interessam mais de perto nesta tese.

Essa construção vai sendo, gradualmente, construída ao longo dos Atos Institucionais

editados pela Revolução.

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Passando-se à análise do Quadro 2, o que se observa é a busca, após a

conceituação realizada, de uma distinção entre a Revolução e outros movimentos

armados. Nesse caso, o locutor constrói uma oposição entre distinção/tradução quanto a

“Revolução” e “outros movimentos armados”. A Revolução, ao mesmo tempo que “se

distingue”, também “traduz em si”. Ela se distingue daqueles movimentos que traduzem

o interesse e a vontade de um grupo. Ela, dessa forma, se constrói como Movimento

diverso em relação àqueles que se centram em pequenos grupos. Há, portanto, uma

distinção entre eles. Essa distinção se dá, então, em relação àquilo que cada um desses

movimentos traduz: interesses de pequeno grupo/interesse da Nação.

Quadro 02 – Ato Institucional Número 1: excertos 01 02 03

A revolução se distingue de outros movimentos armados pelo fato de que nela se traduz, não o interesse e a vontade de um grupo, mas o interesse e a vontade da Nação.

Fonte: elaborado pelo autor.

O que se observa nesse Quadro é uma construção que tem em “nela” o seu ponto

chave para as análises a serem realizadas. O mencionado termo, como será possível

perceber, nesse excerto, introduz uma oração que poderia ser reconstruída por “na

revolução se traduz...”. O que seria traduzido, então, é “o interesse e a vontade da

Nação” (em reconstrução, tem-se “o interesse e a vontade da Nação é traduzido na

revolução”). Assim, uma leitura para esse excerto seria de que a Revolução é

construída, como objeto discursivo, como um vetor dos desejos da Nação. Sendo vetor,

é ela que tem a legitimidade necessária para, como será construído em outros parágrafos

do Ato em análise, agir em nome dessa mesma Nação.

Se a Revolução se apresenta, discursivamente, dessa maneira, ela cria, através de

procedimentos semelhantes, uma imagem discursiva oposta para “os outros grupos

armados” em ação no país. Isso se dá a partir da utilização da negação, mesmo aquela

construída de maneira indireta, como ocorre em “não... mas”. Seria, também, possível

dizer, no concernente a essa construção da negação, que a utilização de “distingue”

traria em si o “y-não-x”, ou seja, “a Revolução-não-a Antirrevolução”, ou outros grupos

armados. O que vale para a Revolução (a tradução do interesse e da vontade da Nação)

não vale para a Antirrevolução (esta seria a não tradução do interesse e da vontade da

Nação, ou mesmo a negação desse interesse e dessa vontade).

Agindo dessa maneira, o locutor busca construir, então, a Revolução, de forma

distinta dos grupos ditos minoritários, como tradutora de interesses do grupo dito

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majoritário, rotulado aqui como “Nação”. Essa imagem se soma a de uma Revolução

então categorizada como autêntica.

Do exposto até aqui, percebe-se que o locutor reitera o objeto discursivo

Revolução como Movimento. Além disso, qualifica esse Movimento como armado, mas

o faz de modo a diferenciar (“distingue”) de “outros movimentos armados”. Assim,

tanto um quanto o outro recebe o rótulo de “movimento”, mas as qualificações são

diversas, o que se dá a partir das noções de “interesse” e de “vontade”: a Revolução

refere-se à Nação, ao passo que a oposição refere-se a um grupo. Fica reforçada,

portanto, a oposição unanimidade/não unanimidade, entre bem/mal.

Há, nesse caso, menção explícita às características negativas desse “outros”, a

partir de “grupo” e de “movimentos armados”. Na rotulagem realizada nesse momento

do preâmbulo do Ato Institucional número 1, o locutor se arrisca, quando utiliza o

termo “armados”. Porém, apressa-se em dizer, embora a partir do implícito, que consiste

em uso da força (ou das armas) em favor do grupo maior: a Nação.

É, assim, reforçada a imagem positiva para o Movimento deflagrado pelas forças

armadas, além de enfatizada a imagem negativa para a oposição.

Passando-se à análise do excerto constante do Quadro 3, verifica-se a presença

de fragmento que ressalta, na construção de objeto discursivo, a força da Revolução,

bem como os objetivos desta. Há, no primeiro momento, quando se aproxima

Revolução e Poder Constituinte, uma busca pelo reforço da imagem de poder (força) do

Movimento, ao mesmo tempo em que se caracteriza o Poder Constituinte em si.

Quadro 03 – Ato Institucional Número 1: excertos 01 02 03 04 05 06 07 08 09 11 12 13 14 15 16 17 18

A revolução vitoriosa se investe no exercício do Poder Constituinte. Este se manifesta pela eleição popular ou pela revolução. Esta é a forma mais expressiva e mais radical do Poder Constituinte. Assim, a revolução vitoriosa, como Poder Constituinte, se legitima por si mesma. Ela destitui o governo anterior e tem a capacidade de constituir o novo governo. Nela se contém a força normativa, inerente ao Poder Constituinte. Ela edita normas jurídicas sem que nisto seja limitada pela normatividade anterior à sua vitória. Os Chefes da revolução vitoriosa, graças à ação das Forças Armadas e ao apoio inequívoco da Nação, representam o Povo e em seu nome exercem o Poder Constituinte, de que o Povo é o único titular. O Ato Institucional que é hoje editado pelos Comandantes-em-Chefe do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, em nome da revolução que se tornou vitoriosa com o apoio da Nação na sua quase totalidade, se destina a assegurar ao novo governo a ser instituído, os meios indispensáveis à obra de reconstrução econômica, financeira, política e moral do Brasil, de maneira a poder enfrentar, de modo direto e imediato, os graves e urgentes problemas de que depende a restauração da ordem interna e do prestígio internacional da nossa Pátria. A revolução vitoriosa necessita de se institucionalizar e se apressa pela sua

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19 institucionalização a limitar os plenos poderes de que efetivamente dispõe. Fonte: elaborado pelo autor.

Já no início desse parágrafo, o locutor constrói, discursivamente, a Revolução

como instância com força suficiente para investir a si própria no Poder maior de um

Estado, ou seja, o Poder Constituinte. Assim, quando o locutor diz que a Revolução “se

investe no exercício do Poder Constituinte”, mostra que, por si só, a Revolução se torna

um Poder que se manifesta pela eleição ou pela revolução.

Ainda nesse caso, o locutor, na construção da Revolução como objeto

discursivo, ressalta a força do Movimento então caracterizado, dizendo, em construção

de predicativo do sujeito, que a Revolução “é a forma mais expressiva e mais radical do

Poder Constituinte”. Dizendo dessa forma, através do uso de “mais” em relação a

“expressiva” e “radical”, somados à predicação de “revolução”, o locutor dá ênfase ao

caráter constitucional do Movimento, buscando, assim, legitimar sua atuação e sua

implantação.

No que se refere à construção de imagem de “força/poder” para a Revolução

vitoriosa, o locutor utiliza “se legitima por si mesma”, “destitui”, “constitui”, “contém”,

“edita”, “seja limitada”. É, então, montada para a Revolução, através das ações

veiculadas pelos verbos mencionados, uma imagem de um sujeito que, além de ter força

suficiente para destituir governos, também tem capacidade de constituir novo governo,

de editar normas sem quaisquer limitações.

Por outro lado, há, também, nesse parágrafo, a busca pela construção do objeto

discursivo em tela a partir do reforço de imagem de não radicalismo. Assim, se na

primeira parte desse parágrafo (iniciada em “a revolução vitoriosa” e finda em “anterior

à sua vitória”) são utilizados verbos que indiciam o imediatismo e a inevitabilidade das

ações por eles veiculadas, na segunda parte (iniciada em “os Chefes da revolução

vitoriosa” e finda em “prestígio internacional de nossa Pátria”), verifica-se uma primeira

alteração no tom dos enunciados ali construídos. O que demonstra essa mudança de

maneira mais pronunciada é a explicitação do caráter de representação do povo exercido

pelos “Chefes da revolução vitoriosa” (“os Chefes da revolução vitoriosa (...)

representam o povo”), do reconhecimento do apoio popular (“graças (...) ao apoio

inequívoco da Nação”; “em nome da revolução que se tornou vitoriosa com o apoio da

Nação em sua quase totalidade”), da titularidade do Poder Constituinte exercida pelo

povo (“representam o Povo e em seu nome exercem o Poder Constituinte, de que o

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Povo é o único titular”). Tudo isso desemboca na última frase do excerto acima, que

explicita a imagem buscada para a construção da Revolução com as características a ela

atribuídas: “e se apressa pela sua institucionalização a limitar os plenos poderes de que

efetivamente dispõe”. Assim, embora ressaltando o fato de que dispõe de poderes

ilimitados (“efetivamente dispõe”), o locutor sugere que a institucionalização do

Movimento necessita de limitações ao poder desse sujeito tão poderoso, a “Revolução

Vitoriosa”. É possível pensar que, em termos de implícitos, há algum enunciador outro

se pronunciando nesse fragmento. Tal enunciador estaria veiculando a voz de grupo de

característica moderada, porventura em atuação no grupo que assumia o poder.

Quanto aos verbos utilizados, o que se percebe nesse fragmento é que, em sua

maioria, estão no presente do indicativo e criam um ambiente discursivo de verdade

pronta e acabada, com ares de verdade científica. Assim, em um contexto em que é

apresentado o conceito de Revolução adotado pelo Movimento, em que, também

conceitualmente, se busca uma distinção entre os dois grupos em disputa, a utilização

desse tempo/modo verbal permite a criação, no aludido contexto, de uma quase

explicação conceitual a respeito de outras características da Revolução e do Poder

Constituinte.

Na aludida segunda parte do fragmento constante do Quadro 03, pode-se

verificar a incidência dos verbos “exercem”, “representa” e “tornou”. Esses verbos

abrem fragmento do texto em que se enfatiza um pouco mais que o comando da

Revolução atua em representação ao povo, agindo como se o próprio povo estivesse em

ação. Isso está veiculado pelo uso de “representam”. Essa representação se dá no

exercício do Poder Constituinte. Ao redor desses verbos há a busca por uma

aproximação entre Forças Armadas e Nação (principalmente, quando o locutor

reconhece a importância da participação popular e da Nação para o Movimento). Ainda

nesse fragmento, o uso do verbo “tornou” insere um elemento novo do discurso até ali

desenvolvido. Nos fragmentos anteriores, as menções à Revolução referem-se a ela

como vitoriosa: ou se diz “Revolução”, ou se diz “Revolução vitoriosa”, o que constrói

uma imagem de que a vitória do Movimento já se fizera. Porém, o uso do verbo

“tornou” junto de “vitoriosa”, no contexto em que se faz presente, “com o apoio da

Nação em sua quase totalidade”, reforça a criação de imagem de proximidade entre

Nação e Forças Armadas. Essa Revolução, então vitoriosa e agora “que se tornou

vitoriosa”, só o foi em razão do apoio da Nação. Fica, então, criado o ambiente

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discursivo da representação e da proximidade no exercício dos Poderes provenientes

daquele Movimento.

Ainda nesse ambiente de busca pela construção da Revolução como objeto

discursivo que tem como características a aproximação com o povo e a não

radicalidade, verifica-se, no último fragmento do Quadro 03, já aqui transcrito e

analisado sob outro ponto de vista, a presença dos verbos “necessita”,

“institucionalizar”, “apressa”, “limitar”, “dispõe”.

Como acontece em outros momentos dos Atos Institucionais analisados, a leitura

dos verbos utilizados pelo locutor, dentro do contexto de produção verificado, mostra

muito dos seus objetivos de construção da Revolução enquanto objeto discursivo. No

caso em discussão, pode-se dizer que o foco consiste na institucionalização do

Movimento, marcada pelo verbo “institucionalizar”. Essa institucionalização é

apresentada como uma necessidade, muito embora, até então, não tenha sido dado o

motivo dessa necessidade. Outro ponto de interesse relacionado a esse verbo é o reforço

da imagem de uma Revolução que, com suas próprias forças, por si só, se

institucionaliza. Tudo isso com o fim de atender a uma necessidade do Movimento

Vitorioso, como se percebe com o uso de “necessita”.

Por outro lado, o conjunto “apressa”, “limitar” e “dispõe”, somado ao conjunto

anterior, reforça ainda mais a construção do objeto discursivo Revolução como

veiculador da imagem de Movimento próximo aos anseios populares e aos ideais do

Estado Democrático de Direito. Como visto, a Revolução declara que necessitava se

institucionalizar e, como se pode perceber das análises relativas à primeira parte do

Quadro 03, teria a força suficiente para fazê-lo por si só. Porém, optou por reforçar a

imagem de sujeito próximo do povo e dos anseios nacionais. Nessa busca pela

institucionalização/legitimação da Revolução, provavelmente, dirigindo-se às classes

populares que deram apoio ao Movimento, o locutor enfatizou a autolimitação dos

amplos poderes de que dispunha.

A partir da leitura do Quadro 03, é possível, então, perceber a construção da

Revolução como um Movimento possuidor de força suficiente para, como se disse,

destituir governos, constituir novo governo, editar normas constitucionais, mas que,

sabendo de seus compromissos com a Nação e do apoio popular, optou por limitar seus

poderes. Essa imagem vai sendo reforçada ao longo dos preâmbulos dos Atos

Institucionais analisados, mesmo naquele do Ato Institucional Número 5, em que há um

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reforço a essa construção, o que acabou por não ser confirmado na prática vivenciada no

país naqueles tempos.

A sequência das análises do fragmento constante do Quadro 3 tornará possível

perceber outros dois movimentos realizados pelo locutor: a caracterização da Revolução

de maneira positiva, o que pode ser percebido a partir da materialidade do texto; a

caracterização da Antirrevolução de maneira negativa, o que poderá ser percebido

quando da realização de inferências a partir da mencionada materialidade.

O locutor, então, volta sua atenção para a apresentação do Poder Constituinte,

quase como um conceito, e dos Chefes da Revolução, além de categorizar o grupo

opositor de maneira negativa.

Se olharmos a construção realizada pelo locutor, veremos que, no caso de

“Poder Constituinte”, há uma espécie de divisão em sua caracterização entre

manifestação, revolução e institucionalização.

Quanto à “manifestação”, a qual é construída discursivamente como ligada a

“Poder Constituinte”, o que o locutor ressalta é sua caracterização como “eleição

popular” ou como “revolução”. Após apresentar este termo, passa a utilizar itens

lexicais como “expressiva”, “radical”, “legitima por si mesma”, “capacidade”, “destitui

governo”, “constitui governo”, “força normativa”, para caracterizar aquele objeto

discursivo. Assim, como mencionado em outros momentos desta tese, a Revolução é

construída como possuindo força constitucional e, por isso, apresenta as características

mencionadas a partir dos itens lexicais e expressões utilizados.

Quanto aos chefes da Revolução, em sua construção, são levantados itens e

expressões como “Forças Armadas”, “Apoio da Nação”, “Representam o Povo”,

“exercem Poder Constituinte”, “povo único titular”, “Comandantes-em-chefe”,

“Exército”, “Marinha”, “Aeronáutica”. Os vínculos criados pelas expressões acima

mencionadas ligam a representação popular, o apoio da Nação e o Poder Constituinte à

chefia da Revolução e às Forças Armadas, as quais são subdividas em Exército,

Marinha e Aeronáutica, colocando-os praticamente no mesmo plano. Há, portanto,

nesse momento do Ato Institucional número 1, reiteração da imagem de Revolução,

enquanto objeto discursivo, como Movimento popular e de viés democrático.

Se, por um lado, a Revolução se apresenta, discursivamente, como vitoriosa, por

outro, ao assim proceder, coloca o adversário como “não vitorioso”, ou, mais

precisamente, como derrotado. Dessa maneira, há uma revolução vitoriosa e uma

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revolução derrotada. Isso, portanto, pode ser observado a partir da própria presença do

termo “revolução vitoriosa” presente no parágrafo em análise.

Há, também, a distinção entre os objetos discursivos governo atual, que tomava

posse a partir da concretização do Movimento armado, e governo destituído pela

Revolução. Esse paralelismo pode ser verificado a partir de “governo anterior”. De toda

a forma, ao utilizar essa expressão, o locutor criado pelo Movimento ressalta que ele foi

“destituído pela revolução vitoriosa”. Assim, gradativamente, vai sendo construída a

imagem de derrota de um e de vitória de outro; de anterioridade de um e de posteridade

de outro; de sucesso de um sobre o outro.

Há, também, a ênfase e reiteração do apoio dado à Revolução pela Nação, ao

lado do reforço de uma não unanimidade para o movimento derrotado. Isso se dá, a

partir de “apoio inequívoco da nação”. Se, então, o Movimento vitorioso recebeu esse

apoio em sua vitória, o movimento derrotado não o recebeu e, por isso, não suportou a

marcha de seu adversário. Essa leitura é possível a partir da realização de inferências a

partir de expressões diversas, dentre as quais a acima mencionada.

O locutor também faz referência à reconstrução de diversas instâncias da vida da

Nação, entre elas, a econômica, a política, a financeira e a moral. A fim de a elas dizer

respeito, introduz o termo “reconstrução”. Dessa maneira, se diz “reconstrução”, algo

foi destruído e deveria ser reconstruído. Tudo isso se dá vinculado ao grupo que deixava

o poder, ou seja, o governo anterior. Além disso, o locutor revolucionário fala também

em “restauração” e a liga à ordem interna e ao prestígio internacional. Da mesma forma

que em relação a “reconstrução”, a análise desse terno deve ser realizada a partir de

inferências relativamente a “restauração”, demonstrando que quem promoveu a

destruição ou a falência daqueles pontos foi o governo anterior e, agora, cabia ao novo

governo a tarefa de reconstruir e de restaurar. Tudo isso, portanto, reitera a construção,

enquanto objetos discursivos, da Antirrevolução como instância danosa ao país e da

Revolução como responsável pela destruição daquele mal e pela recuperação nacional.

O fragmento constante do Quadro 04 vem, no texto original, logo depois dos

fragmentos analisados no Quadro 03. Após a realização de movimento enunciativo

através da utilização de itens lexicais com carga semântica indicativa da força do

Movimento, somada à daqueles com sentido de relativização dos poderes da Revolução,

numa construção discursiva em que se afirmava, enquanto caracterização de objeto

discursivo, a força, mas que, também, se demonstrava, da mesma forma, a opção

democrática do Movimento, surgem itens lexicais outros com relevante carga

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semântica, tendo em vista os objetivos desta tese. Trata-se de “bolchevizar”,

“radicalizar”, “restaurar”, “drenar”.

Quadro 04 – Ato Institucional Número 1: excertos 01 02 03 04 05 06 07 08 09 10 11 12 13 14 15 16 17

O presente Ato institucional só poderia ser editado pela revolução vitoriosa, representada pelos Comandos em Chefe das três Armas que respondem, no momento, pela realização dos objetivos revolucionários, cuja frustração estão decididas a impedir. Os processos constitucionais não funcionaram para destituir o governo, que deliberadamente se dispunha a bolchevizar o País. Destituído pela revolução, só a esta cabe ditar as normas e os processos de constituição do novo governo e atribuir-lhe os poderes ou os instrumentos jurídicos que lhe assegurem o exercício do Poder no exclusivo interesse do País. Para demonstrar que não pretendemos radicalizar o processo revolucionário, decidimos manter a Constituição de 1946, limitando-nos a modificá-la, apenas, na parte relativa aos poderes do Presidente da República, a fim de que este possa cumprir a missão de restaurar no Brasil a ordem econômica e financeira e tomar as urgentes medidas destinadas a drenar o bolsão comunista, cuja purulência já se havia infiltrado não só na cúpula do governo como nas suas dependências administrativas. Para reduzir ainda mais os plenos poderes de que se acha investida a revolução vitoriosa, resolvemos, igualmente, manter o Congresso Nacional, com as reservas relativas aos seus poderes, constantes do presente Ato Institucional.

Fonte: elaborado pelo autor.

No caso do verbo “bolchevizar”, o que se percebe é a construção de derivação de

“bolchevique”, em associação com um grupo em atuação no sistema comunista da

União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Esse verbo encontra-se associado ao

governo destituído, o qual é discursivamente construído como responsável por

implantar um “bolsão comunista” eivado de “purulência”. Fica, de alguma forma,

através dessa construção discursiva, justificada a ação do Movimento: a luta entre

capitalismo (dito implicitamente) e o comunismo (explicitamente mencionado), sendo

necessário preservar o primeiro sistema econômico.

Essa luta pela preservação do capitalismo é mencionada a partir, neste caso, de

“restaurar” e de “drenar”. Como se pode perceber, “restaurar” refere-se à ordem

econômico-financeira. Assim, fica construída a imagem de uma ordem que precisa ser

extinta, no caso, a referente ao comunismo (drenar o bolsão comunista, marcado pela

purulência) e uma que precisava ser restaurada, no caso, o capitalismo. Este sistema

econômico é construído como aquele que vinha, então, juntamente com a Revolução,

lutar contra aquela ordem que buscava se instalar no país.

Quanto a “drenar”, da maneira como se associa a “bolsão comunista”, bem como

a “purulência”, fica claro o interesse do Movimento em relacionar comunismo e

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infecção, construindo uma imagem de mal que precisava ser drenado para que o país

sobrevivesse. Pelo conjunto da obra até aqui analisado, o Movimento vai se

construindo, discursivamente, como aquela instância que se levanta para combater um

grave mal que colocaria em risco os interesses da Nação.

Ainda no Quadro 4, percebe-se movimento de legitimação da Revolução

realizado pelo locutor. Assim, através do uso de “não pretendemos radicalizar”, ou

mesmo de “reduzir” os plenos poderes de que se acha investida e, também, pela

declaração da manutenção do Congresso Nacional, vai sendo construída, enquanto

objeto discursivo, como se disse, a Revolução como instituição próxima ao povo e aos

seus anseios democráticos. Vai sendo, então, criada a legitimação do Movimento.

Dito isso, pode-se passar à leitura do Quadro 5, transcrito abaixo.

Quadro 05 – Ato Institucional Número 1: excertos 01 02 03

Fica, assim, bem claro que a revolução não procura legitimar-se através do Congresso. Este é que recebe deste Ato Institucional, resultante do exercício do Poder Constituinte, inerente a todas as revoluções, a sua legitimação.

Fonte: elaborado pelo autor.

No Quadro 05, surge o paralelo legitimar/legitimação. Aqui, fica construída uma

pressuposição da legitimação do Movimento. Ao dizer que “a revolução não procura

legitimar-se através do Congresso” e que “este é que recebe deste Ato Institucional (...)

sua legitimação”, o locutor reitera a imagem de Revolução como instância capaz de se

autodeterminar, da mesma forma que, de maneira mais marcada, procedeu no Quadro

03 esse locutor. Aqui, a Revolução é construída, enquanto objeto discursivo, como

aquela que editou o Ato Institucional que a institucionalizou e a legitimou, tendo em

vista o que o mesmo locutor declarou a respeito do conceito de Revolução, como aquela

que assume o Poder Constituinte. Uma vez legitimada dessa maneira, ou seja, uma vez

que se autolegitimou, a Revolução já teria condições para legitimar a existência do

Congresso Nacional através da edição daquele Ato.

Esse paralelo pode ser mais bem trabalhado a partir da menção a “não procura

legitimar-se”, referente à Revolução, e “recebe”, referente ao Congresso Nacional. No

caso, a Revolução declara que ela já estaria legitimada, portanto, não mais procurava

sua legitimação. Afinal de contas, como reiterado, ela mesma, pelos poderes que tinha,

declarou-se legitimada, numa demonstração de domínio das próprias ações, ao contrário

do que ocorre em relação ao Congresso, conforme se pode depreender do verbo

“receber”. Veja-se que o sentido do verbo em questão é de que o sujeito não possuía

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dada coisa ou dado poder, mas passou a ter, depois da ação de outra instância. No caso

em questão, a partir da eclosão do “movimento civil e militar”, o Congresso havia

deixado de ter legitimação dentro da nova ordem, porém, quando esta se instalou,

repassou ao Congresso a legitimação então perdida. Aquele órgão, passivamente,

recebeu de volta sua legitimidade. Obviamente que, agindo dessa maneira, o locutor

coloca a Revolução em uma posição de superioridade em relação ao Congresso

Nacional, afinal de contas, é a Revolução que tinha a prerrogativa de dar (ou não) ao

Congresso aquilo que ele “recebeu”.

Para além dos usos de itens lexicais, um dado chama a atenção no fragmento

constante do Quadro 06: a hierarquização construída a respeito das designações de

representantes dos diversos setores envolvidos no Movimento então institucionalizado.

Quadro 06 – Ato Institucional Número 1: excertos 01 02 03 04 05

Em nome da revolução vitoriosa, e no intuito de consolidar a sua vitória, de maneira a assegurar a realização dos seus objetivos e garantir ao País um governo capaz de atender aos anseios do povo brasileiro, o Comando Supremo da Revolução, representado pelos Comandantes-em-Chefe do Exército, da Marinha e da Aeronáutica resolve editar o seguinte.

Fonte: elaborado pelo autor.

Como se pode perceber, os “Comandantes-em-Chefe” mencionados declaram

representar o “Comando Supremo da Revolução”. Este Comando fala “em nome da

revolução vitoriosa”, portanto, diz representá-la. Já a Revolução, como declarado em

outros momentos do Ato Institucional, constrói-se como representante dos mais

legítimos anseios do povo. Esse quadro de representações, além disso, permite verificar

quem é o locutor que fala por meio desse Ato. Trata-se, em nosso entendimento, em

última instância, dos Comandantes-em-Chefe, que, da maneira até aqui mencionada,

constroem as diversas imagens com que trabalham e trabalharão nos demais atos.

Outro ponto digno de menção no excerto apresentado acima consiste na

declaração dos objetivos da Revolução Vitoriosa ao editar o Ato Institucional número 1.

É de se observar, também, que a Revolução reitera seu caráter de vitoriosa (através da

retomada de “revolução vitoriosa”, presente em “em nome da revolução vitoriosa”) e o

coloca como pressuposto do que abordará a seguir. Assim, sendo vitoriosa, seu próximo

objetivo deverá ser a consolidação dessa vitória, ou seja, tem o “intuito de consolidar

sua vitória”. O Comando Supremo da Revolução, que se apresenta como representante

da Revolução Vitoriosa, em termos discursivos, consiste em locutor que fala a partir da

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mencionada Revolução. Trata-se, em última instância, da manifestação discursiva

daquele sujeito maior. Cria-se, nesse momento, a seguinte ambiguidade: ao mesmo

tempo em que o Comando Supremo da Revolução fala em nome dela, ele se constrói

como tendo o objetivo (o “intuito”) de consolidar a vitória daquele Movimento civil e

militar. Não fica claro, da maneira como elaborada a passagem, se a Revolução também

tem aquele objetivo/intuito.

Na linha de raciocínio seguida pelo locutor em ação no excerto constante do

Quadro 6, surge outra figura, posta lado a lado com a Revolução Vitoriosa e com o

Comando Supremo da Revolução: o governo. Este seria garantido pelo Comando

Supremo (“garantir ao País um governo capaz de atender aos anseios do povo

brasileiro”) e deveria atender os anseios do povo.

Como se pode perceber, da maneira como se encontra elaborado o parágrafo

transcrito no Quadro 6, o Comando Supremo da Revolução desempenha papel

fundamental no cenário construído, afinal de contas, é esse Comando o responsável por

falar pela Revolução, bem como por consolidar sua vitória e garantir a concretização de

seus objetivos. Esse Comando, como se encontra explicitado no excerto transcrito no

Quadro 6, é composto por representantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica.

Como é possível perceber, o Comando Supremo da Revolução é composto por

integrantes das três Armas Nacionais. Apesar de se ressaltar, a todo o instante, a

proximidade com o povo e com a Nação, nesse momento, estes não são apresentados

como integrantes do mencionado Alto Comando. Portanto, no momento de constituir o

governo e de garantir a realização dos objetivos do então denominado “movimento civil

e militar”, os civis não são apresentados como representantes daquele grupo que

assumira o poder. Fica, dessa forma, construída, embora de maneira sutil, a figura do

militarismo como aquele que iria dar as cartas no governo a ser instituído.

5.3 Ato Institucional número 2

Uma vez realizadas as análises relativas ao preâmbulo do Ato Institucional

número 1, pode-se passar à leitura do Ato Institucional número 2, em seu preâmbulo, o

que será feito a partir dos Quadros 07 a 15.

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Quadro 07 – Ato Institucional número 2: excertos 01 02 03 04 05

ATO INSTITUCIONAL Nº 2 À NAÇÃO

A Revolução é um movimento que veio da inspiração do povo brasileiro para atender às suas aspirações mais legítimas: erradicar uma situação e um Governo que afundavam o País na corrupção e na subversão.

Fonte: elaborado pelo autor.

No Quadro 07, que consiste no primeiro parágrafo do preâmbulo do Ato

Institucional número 2, o locutor dá início a um trabalho de predicação a respeito da

Revolução. Constrói, assim, uma estrutura de predicativo do sujeito, a qual conta com o

verbo “ser”, flexionado (“é” um Movimento). Esse verbo, como se sabe, tem um sentido

de essência, de permanência, de presente e não de transitoriedade: “A Revolução é um

movimento que veio da inspiração do povo brasileiro”. Atuando dessa maneira, o

locutor acrescenta nova característica às anteriores, como “autêntica revolução”,

“movimento civil e militar”, “revolução vitoriosa”.

A presença do verbo “ser”, nesse contexto, para indicar a permanência do

Movimento revolucionário, parece ser mais eficaz do que uma possível inserção do

verbo “permanecer”, também, gramaticalmente classificado como verbo de ligação e,

também, introdutor de predicativo. Veja-se que o verbo utilizado constrói para o

enunciado uma característica de conceito, de essência, muito mais forte que uma

construção com “permanecer”, que poderia acarretar a noção de Movimento, embora

indiretamente: se permanece, é porque pode ser alterado, o que não ocorreria com “é”,

usado no fragmento em análise, o qual constrói a noção de essência desse Movimento.

Assim, ao dizer “A Revolução é um movimento”, o locutor reforça a construção

do objeto discursivo Revolução, desenvolvida já no primeiro Ato Institucional, e apaga

outra noção, a partir do implícito, a de golpe de estado. Juntamente a isso, o locutor

reitera a noção de “movimento”, ligando, através do aludido verbo de ligação, esse

termo a Revolução. Dessa forma, essa Revolução é apresentada discursivamente como

algo que já se efetivou e, portanto, permanecerá (“é”) e não como algo transitório, como

“estar”, por exemplo.

No excerto seguinte do texto em análise, “veio da inspiração do povo brasileiro”,

há dois pontos que merecem maior comentário: 1) a presença do verbo “vir”; 2)

gramaticalmente, trata-se de uma oração adjetiva restritiva.

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Como se pode perceber, o verbo “vir” indica uma movimentação de algo que

está em um lugar e se direciona a outro lugar, próximo (ou na direção) ao locutor. Da

maneira como se construiu, a Revolução é apresentada, discursivamente, como algo que

“veio” para as Forças Armadas, ou para o grupo que decretou o golpe de estado

efetivado. Nos dizeres do locutor, o Movimento surgiu de uma inspiração, a qual é

apresentada como proveniente do povo, e não de outro grupo (ou de “outros

movimentos armados”, “interesse e vontade de um grupo”, como consta do segundo

parágrafo do Ato Institucional número 1). Dessa forma, o povo é discursivamente

construído como o responsável pela criação da ideia de revolução, a qual foi efetivada

pelas Forças Armadas. Essa ideia, essa inspiração, uma vez nascida da inspiração do

povo, direcionou-se às Forças Armadas (como aparece, embora implicitamente, no

Quadro 03, quando o locutor menciona Comandantes-em-Chefe das Forças Armadas,

por exemplo), que a efetivaram.

No que se refere à construção gramatical do excerto mencionado, ressalte-se que

tem grande importância na construção do objeto discursivo pelo locutor e reforça, a

partir de uma retomada, algo dito já no Ato Institucional número 1: o fato de a

Revolução ser um Movimento armado diferente de “outros movimentos armados”. Se,

no primeiro Ato Institucional, o locutor busca construir objetos discursivos distintos

entre si, em relação aos Movimentos armados então mencionados, dizendo, por

exemplo, que a Revolução representava o interesse e a vontade da Nação e não de

outros grupos, já na passagem em estudo o que há é a retomada dessa característica e o

seu reforço, uma vez que, além de se dizer que se representa interesse e vontade

nacionais, agora diz que foi inspirada pelo povo. O locutor, através de uma oração

adjetiva restritiva que se relaciona com a restrição apresentada no primeiro Ato

Institucional, busca a criação da legitimidade para o Movimento em desenvolvimento,

diferenciando-o de outros movimentos eventualmente existentes.

Essa construção discursiva da Revolução como Movimento e, ainda mais, como

Movimento surgido da inspiração do povo e entregue às Classes Armadas reforça, como

defendido até aqui, a imagem de Movimento popular e, principalmente, de revolução, e

não de golpe.

Em “para atender suas aspirações mais legítimas”, o locutor constrói uma oração

com configuração de “objetivos”, de finalidades. A Revolução, portanto, é apresentada,

enquanto objeto discursivo, como Movimento, vindo do povo, possuidor de objetivo

claro, ou seja, atender aspirações do próprio povo, de onde ela veio. Além disso,

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reforçando ainda mais a seriedade então construída para o Movimento, o locutor

delimita as aspirações populares a que se refere: apenas as “mais legítimas”. Embora

não esteja construída explicitamente, trata-se de nova expressão com sentido de oração

adjetiva restritiva: não seriam quaisquer aspirações, mas apenas as mais legítimas. Esse

movimento enunciativo realizado pelo locutor também consiste em retomada de algo

realizado no primeiro Ato Institucional. Já ali o locutor, abordando interesses e vontades

nacionais, também ressalta que o objetivo do Movimento civil e militar deflagrado era

atendê-los. Naquele caso, falava-se no combate à contaminação pelo comunismo, entre

outros aspectos. Aqui, o que se tem é a erradicação de situação e governo (já) anteriores.

O locutor, assim, busca explicitar quais são aquelas aspirações, o que se encontra

de maneira mais clara a partir dos verbos que utiliza: “erradicar” e “afundavam”.

O primeiro desses verbos utilizados pelo locutor, “erradicar”, tem como

complemento “situação e governo que afundavam o País na corrupção e na subversão”.

Já “afundar” tem como complemento “o País”, que é, também, complementado em seu

sentido com o adjunto adverbial de lugar: “na corrupção e na subversão”.

Por outro lado, da maneira como tem sido utilizado ainda nos dias atuais,

“erradicar” refere-se a situações de crise sanitária, econômica ou mesmo infecciosa.

Fala-se muito em erradicar pobreza, erradicar a fome, erradicar a malária, etc. No caso

em análise, essa erradicação refere-se a uma situação e a um governo. Cria-se um

campo semântico de crise, de doença, para esses termos, o que é reforçado com

“afundavam”.

Da forma como está construído o fragmento, coloca-se “situação” e “governo”

como sujeitos do verbo afundar. Esse sujeito, complemento do verbo “erradicar”, então,

liga-se ao campo semântico de doença, de problemas sanitários, etc., o que já foi

construído no Ato Institucional número 1, com a utilização de “drenar”, “bolsão”,

“purulência”.

O que se buscou demonstrar a partir da leitura do Quadro 07 é o trabalho do

locutor no sentido de construir a Revolução, enquanto objeto discursivo, com uma

imagem de instância proveniente do povo e de suas manifestações. Ao lado disso, como

deve ter ficado claro a partir dos parágrafos anteriores, a partir do uso de verbos como

“erradicar”, constrói-se uma imagem para o governo (situação) deposto, esta com forte

carga negativa. Tudo isso, como se demonstrou, muitas vezes, é realizado a partir de

retomadas de temas abordados no Ato Institucional número 1. A análise preliminar para

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a elaboração deste trabalho permitiu verificar que tal retomada consiste em estratégia

recorrente na maioria dos preâmbulos dos Atos Institucionais.

De toda a maneira, o que se percebe é a reiteração de itens lexicais e de

movimentos enunciativos, principalmente, quanto ao silenciamento e ao relevo dados às

vozes atribuídas à Revolução e à Antirrevolução.

O excerto constante do Quadro 8 permite a análise de nova retomada realizada

pelo locutor.

Quadro 08 – Ato Institucional número 2: excertos 01 02 03 04

No preâmbulo do Ato que iniciou a institucionalização, do movimento de 31 de março de 1964 foi dito que o que houve e continuará a haver, não só no espírito e no comportamento das classes armadas, mas também na opinião pública nacional, é uma autêntica revolução. E frisou-se que:

Fonte: elaborado pelo autor.

Dentre os Quadros relacionados ao preâmbulo do Ato Institucional número 2, o

Quadro 08 se sobressai, em razão dos verbos dali constantes, presentes em “foi dito que

o que houve e continuará a haver”. Como se pode depreender das análises dos Quadros

anteriores, esse trecho foi utilizado no Ato Institucional número 1 e, como se verá,

aparecerá em outros atos posteriores. Trata-se de uma ação intertextual marcada,

praticada pelo locutor do Ato Institucional número 2, com a clara finalidade de enfatizar

os objetivos e a força do grupo então no poder. A leitura desse fragmento permite,

através dos implícitos, perceber a existência de questionamentos provenientes de grupos

outros, em ação no país. Essa ocorrência poderá ser verificada em momentos

posteriores, muitas vezes, a partir de negativas explícitas ou implícitas.

Ao lado desse grupo de verbos estão presentes “iniciou”, “é” e “frisou-se”. A

título de contextualização das demais análises referentes ao Quadro 08, cabem alguns

comentários sobre esses verbos.

O locutor em ação aqui utiliza o verbo “iniciou” e constitui “Ato” como sujeito

sintático desse verbo, remetendo, além disso, ao preâmbulo desse instrumento

normativo. O Ato, então, é constituído como instrumento iniciador daquele Movimento,

já caracterizado como “movimento de 31 de março de 1964”. A menção a esse Ato, da

maneira como ocorre, leva a ele o veio ideológico que deu origem ao Movimento

mencionado.

Em relação ao conjunto orquestrado pelo verbo “é”, percebe-se que esse verbo

introduz um predicativo para tudo aquilo que foi dito antes dele. Porém, de uma

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maneira mais específica, tematicamente falando, há uma retomada a “movimento civil e

militar que acaba de abrir ao Brasil uma nova ordem”, constante do Ato Institucional

número 1. Esse movimento de retomada é ressaltado, também, a partir de “frisou-se”,

que introduz no texto do Ato Institucional número 2, textualmente, fragmentos do Ato

anterior.

Há, portanto, no segundo parágrafo do Ato em discussão (Quadro 08), retomada

de pontos importantes do Ato anterior. Uma leitura (hipotética) desse fragmento

permitiria dizer que o locutor estaria buscando reforçar à Nação a memória da imagem

construída no Ato anterior, dando as bases para se dizer e regulamentar o que seria feito

no Ato em questão.

Ponto, também, de importância, como mencionado, nesse Quadro está em “foi

dito que o que houve e continuará a haver”. Atentando diretamente para os tempos

verbais utilizados pelo locutor, percebe-se que há uma alternância entre o pretérito e o

futuro. Essa alternância ocorre em dois momentos: no verbo introdutor da fala retomada

(foi dito), em relação à construção verbal presente na fala citada (continuará a haver), e

no interior da fala citada (continuará a haver) em relação a essa própria fala (houve). Se,

por um lado, o uso natural do verbo introdutor de opinião é no passado, por outro lado,

na própria opinião introduzida há uma alternância temporal, que pode ser bastante

significativa na análise dos interesses do locutor na construção de seu texto.

O locutor, em “houve e continuará a haver”, associando essa construção a “é

uma autêntica revolução”, conduz a leitura a uma imagem de Revolução, já classificada

como “autêntica” e que, além disso, já se encontrava implementada (houve), mas que,

com toda a ênfase dada a partir dessa e de outras retomadas, permaneceria (continuará a

haver). Fica, portanto, construída e reforçada, como objeto discursivo, uma imagem de

Revolução decidida a se manter em ação no Brasil e, como será possível verificar em

outros momentos, com força suficiente para tal.

Do exposto até aqui, a respeito do Quadro 8, como mencionado, o que pode ser

percebido é a ênfase dada pelo Movimento ao caráter de permanência construído para o

que acontecera em 1964. Trata-se de atuação muito presente na fala do locutor

construído pela Revolução. Assim, nessa construção discursiva e na apresentação do

objetivo de lutar contra a oposição, o locutor permanece buscando colocar em cena e

silenciar enunciadores criados pela oposição ao Regime então no poder.

Como se pode perceber, há reiteração do caráter de não permanência, de não

unanimidade e de inautenticidade na construção discursiva relativa ao grupo que

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buscava barrar a Revolução em atuação. Também aqui isso se dá a partir de implícitos

em expressões como “houve e continuará a haver”, “opinião pública nacional”,

“autêntica revolução”.

Esse movimento de retomada enfática de fragmentos do Ato Institucional

número 1 pode ser observado no Quadro 9, que consiste no elenco daquilo que se frisou

em março de 1964, a partir do primeiro Ato.

Quadro 09 – Ato Institucional número 2: excertos 01 02 03 04 05 06 07 08

a) ela se distingue de outros movimentos armados pelo fato de que traduz, não o interesse e a vontade de um grupo, mas o interesse e a vontade da Nação;

b) a revolução investe-se, por isso, no exercício do Poder Constituinte, legitimando-se por si mesma; c) edita normas jurídicas sem que nisto seja limitada pela normatividade anterior à sua vitória, pois graças à ação das forças armadas e ao apoio inequívoco da Nação, representa o povo e em seu nome exerce o Poder Constituinte de que o povo é o único titular.

Fonte: elaborado pelo autor.

No fragmento “ela se distingue de outros movimentos armados pelo fato de que

traduz, não o interesse e a vontade de um grupo, mas o interesse e a vontade da Nação”,

a abordagem relacionada aos verbos “distingue” e “traduz” já foi realizada em momento

anterior deste trabalho, quando se abordou o Ato Institucional número 1. O que

interessa, neste momento é a utilização da negação pelo locutor.

Ao utilizar “distingue de outros movimentos armados”, o locutor já cria um

ambiente de comparação entre dois referentes, ou seja, entre dois (ou mais) movimentos

armados. Ao agir dessa forma, a Revolução coloca-se, automaticamente, no campo

semântico dos “movimentos armados”, afinal de contas, a partir de “outros”, declara-se

como um desses movimentos, embora com características que a distinguem dos demais.

Fica, então, criado o ambiente discursivo propício ao aprofundamento que será feito e

ao confronto de vozes que será realizado pelo locutor.

O locutor, então, na construção de objetos discursivos, criou o grupo dos

movimentos armados e o dividiu (distinguiu), aparentemente, em dois subgrupos. No

primeiro deles (a Revolução), há a tradução do interesse e da vontade da Nação; no

segundo (outros movimentos armados), há a tradução do “interesse e da vontade de um

grupo”. Repare-se que tanto a Revolução quanto os outros movimentos armados são

colocados, mesmo que implicitamente (afinal, não é a Nação como um todo que foi à

rua naquele momento, mas representantes (como é ressaltado pelos Atos

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Institucionais)), como grupos, como se pode perceber a partir da expressão “distingue

de outros grupos armados”. Dessa forma, o locutor liga os outros movimentos armados,

linguisticamente, a “grupo”, dando a essa ligação um viés negativo, ou seja, de grupo

minoritário. Nesse caso, esses “outros movimentos armados”, traduzem interesses que,

nos dizeres do locutor em ação, deveriam ser combatidos e eliminados. Contudo, a

Revolução, mesmo formada, como se sabe historicamente, por setores das Forças

Armadas, mesmo também sendo um grupo, constrói-se discursivamente como

representante legítimo do povo brasileiro, como se pode perceber, por exemplo, em “A

Revolução (...) representa o povo”.

Já em “edita normas jurídicas sem que nisto seja limitada pela normatividade

anterior à sua vitória, pois graças à ação das forças armadas e ao apoio inequívoco da

Nação, representa o povo e em seu nome exerce o Poder Constituinte de que o povo é o

único titular”, há reforço, na construção do objeto discursivo Revolução, da imagem de

independência criada para o grupo que assumira o poder em março de 1964. Isso ocorre,

entre outros pontos, a partir da uma negação (“sem que”), que também é o elemento

sintático responsável por realizar a conexão entre os dois grupos temáticos presentes no

mencionado excerto (“edita normas jurídicas” x “limitada pela normatividade anterior à

sua vitória”). O locutor, então, diz, por um lado, que a Revolução “edita normas

jurídicas”, “representa o povo” e “exerce o Poder Constituinte”; por outro, diz também

que, ao editar tais normas, não é “limitada pela normatividade anterior à sua vitória”.

Ao lado da utilização da negação está a presença de “pois”, de forma explicativa,

formando o conjunto “edita normas jurídicas sem que nisso seja limitada (...), pois

representa o povo e em seu nome exerce o Poder Constituinte”. Assim, fica ressaltada a

imagem de Revolução como instância com poder suficiente para editar normas

livremente, o que é legitimado por seu poder constituinte e pelo fato de representar o

povo.

A expressão “sem que”, com função negativa, como mencionado, liga esses dois

grupos, a partir da expressão “sem que nisto seja limitada pela normatividade anterior à

sua vitória”. Dizendo dessa forma, o locutor cala a voz que poderia defender a

observância, pela Revolução, da normatividade anterior, principalmente, a Constituição

de 1946. Fica, dessa forma, ressaltada a imagem de legalidade do Movimento,

responsável pela legitimidade que se buscava dar à Revolução já em curso.

A passagem constante do Quadro 9 consiste em uma citação de passagem

constante do Ato Institucional número 1. O locutor utiliza verbo introdutor de opinião

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que sinaliza o caráter de seu dizer, ou seja, “frisou-se”. O uso desse verbo tem por

finalidade, além de introduzir uma citação, dar a ela uma força de relevo, de ênfase.

Portanto, o locutor dá ênfase aos fatos por ele mencionados e, evidentemente, também

enfatiza todo um conjunto de implícitos.

Percebe-se, então, no processo de construção dos objetos discursivos Revolução

e Antirrevolução, além do caráter de ênfase dado pelo locutor ao que menciona, a

reiteração enfática de pontos como a distinção entre Revolução e Antirrevolução, do

caráter quase unânime do apoio conquistado pelo Movimento, do seu poder constituinte

e da consequente força normativa de que o Movimento se investe. Ao assim proceder, o

locutor criado pelo Movimento silencia uma outra voz, atribuível à oposição, que

poderia estar a dizer a respeito do próprio Movimento o oposto do que este estaria

dizendo a respeito de si mesmo. Além do mais, esse locutor estaria a construir um

enunciador, como várias vezes mencionado ao longo deste trabalho, que constrói

imagem negativa da oposição, o que se dá a partir de, por exemplo, “outros movimentos

armados”, a introduzir um quadro de comparações entre as duas instâncias.

É interessante, também, perceber que as três passagens constantes do Quadro 09

são introduzidas por “e frisou-se que”, presente no Quadro 08. Há, nesse caso, a

retomada do discurso alheio, construindo, aqui, uma modalização de Revolução.

Em utilização semelhante à do Quadro 08, o Quadro 10 permite uma leitura

interessante a respeito das retomadas e das ênfases realizadas pelo locutor do Ato

Institucional número 2.

Quadro 10 – Ato Institucional número 2: excertos 01 02 03 04 05 06

Não se disse que a revolução foi, mas que é e continuará. Assim o seu Poder Constituinte não se exauriu, tanto é ele próprio do processo revolucionário, que tem de ser dinâmico para atingir os seus objetivos. Acentuou-se, por isso, no esquema daqueles conceitos, traduzindo uma realidade incontestável de Direito Público, o poder institucionalizante de que a revolução é dotada para fazer vingar os princípios em nome dos quais a Nação se levantou contra a situação anterior.

Fonte: elaborado pelo autor.

Inicialmente, torna-se interessante analisar a presença da partícula “se” em dois

momentos do Quadro 10: “se disse”, “acentuou-se”. Nos dois casos, há uma retomada

de características da Revolução traçadas no Ato Institucional número 1. Assim, o

locutor retoma vozes sem deixar claro quem é seu enunciador. O efeito que se percebe a

partir desse procedimento é o da constituição de um sujeito, por assim dizer, universal.

Em decorrência de não se saber o responsável por “dizer” e o responsável por

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“acentuar”, embora se saiba que alguém realizou tais ações, visualiza-se um sujeito

externo a esse processo, construído para se apresentar como não sendo o mesmo sujeito

empírico do Ato Institucional anterior. Constrói-se, assim, um enunciador distinto do

enunciador daquele ato.

Na primeira linha do Quadro 10, “não se disse que a revolução foi, mas que é e

continuará”, como mencionado, há movimento de retomada, o qual tem a ênfase como

efeito. Assim, o locutor retoma fragmento do Ato Institucional número 1, e essa

retomada gera efeito de ênfase ao que será dito a seguir.

Em se tratando de movimento enunciativo, a presença da partícula “não” nessa

frase assinala a presença de duas vozes em disputa: a voz do Movimento e a voz da

oposição. O enunciador que apresenta a voz da oposição estaria a dizer que “a revolução

foi”, que deveria, por exemplo, ser enfraquecida para voltar a dar espaço para

movimentos democráticos. Essa voz é negada pelo enunciador da Revolução, que

destaca, novamente, o caráter de permanência do Movimento, com a utilização de “é” e

de “continuará”. O embate desses dois enunciadores é discursivamente marcado pela

partícula “mas”, a qual se soma a “não”. Portanto, o enunciador da oposição, colocado

no texto a partir da fala do locutor, que é ligado ao Movimento Armado, embora tenha

sua voz veiculada pelo enunciado, é duplamente negado, seja pela partícula de negação,

seja pela partícula adversativa.

A frase seguinte, constante do Quadro 10, “assim o seu Poder Constituinte não

se exauriu, tanto é ele próprio do processo revolucionário, que tem de ser dinâmico para

atingir os seus objetivos”, também permite ver processo de retomada enfática realizado

pelo locutor. Uma vez tendo dito que a Revolução permanecia em vigor com toda sua

força, utiliza “assim”, que tem carga semântica de conclusão, e apresenta o que se

poderia concluir, ou seja, o caráter constitucional do Movimento que permanecia. Nessa

passagem, três expressões chamam a atenção mais de perto: 1) “seu”; 2) “não se

exauriu”; 3) “próprio”. Essas passagens, como se pode verificar, possuem como tópico

“Poder Constituinte”, o qual, por seu turno, relaciona-se a “Revolução”.

Ao utilizar “seu”, mesmo que, fisicamente, esteja ao lado de “Poder

Constituinte”, o locutor, através daquele termo, refere-se a “Revolução”. Assim, usando

o pronome possessivo em questão, constrói aquele Movimento civil e militar, como

objeto discursivo, como possuidor de caráter Constituinte, com toda a carga a ele dada

em momentos anteriores dos Atos Institucionais. É esse raciocínio reforçado pela

presença de “próprio”, aqui diretamente ligado a “processo revolucionário”. Portanto, o

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locutor, após negar as vozes que defendiam o final do Movimento, aponta para sua

permanência e para sua força constituinte. O reforço a esta, paralelamente, reitera,

discursivamente, a ampla liberdade dada pelo Movimento ao governo para legislar da

maneira que bem entendesse, apesar da menção, realizada no primeiro Ato Institucional,

a limitações autoimpostas.

Por outro lado, o caráter de permanência criado para o objeto discursivo

Revolução é reforçado, nesse enunciado, através de “não se exauriu”, o que demonstra,

novamente, os interesses aqui mencionados do grupo em atuação.

A frase seguinte, constante do mesmo Quadro 10, “acentuou-se, por isso, no

esquema daqueles conceitos, traduzindo uma realidade incontestável de Direito Público,

o poder institucionalizante de que a revolução é dotada para fazer vingar os princípios

em nome dos quais a Nação se levantou contra a situação anterior”, também apresenta

retomadas enfáticas, além de outros movimentos enunciativos realizados pelo locutor.

De imediato, chama a atenção a presença de “acentuou-se”, que surge, no

enunciado, lado a lado com “não se disse”, constante da abertura do parágrafo em

análise. Se, no primeiro momento, para negar a voz trazida por enunciador contrário ao

Movimento, o termo utilizado foi o verbo “dizer”, por outro lado, para reiterar imagens

favoráveis ao Movimento, utiliza-se “acentuou-se”, o que, por si só, dá um viés de

ênfase ao que fora dito e, principalmente, à retomada realizada. O que se reacentua,

nesse Ato Institucional, é o “poder institucionalizante de que a revolução é dotada”. O

locutor, portanto, utilizando, no pretérito perfeito do indicativo, o verbo “acentuar” para

realizar retomada de característica da Revolução, enfatiza, na construção desse objeto

discursivo, a importância dada àquela característica do movimento, ou seja, seu poder

institucionalizante, o qual está fortemente relacionado ao caráter constitucional

atribuído à Revolução.

Outro ponto que merece ser analisado neste trabalho consiste nos fragmentos

que circundam o analisado no parágrafo anterior. Com um viés de termos intercalados,

ou mesmo de termos que, por assim dizer, gravitam em torno de uma ideia principal,

tais passagens apresentam fortes características ao Movimento em atuação: 1) “por

isso”; 2) “no esquema daqueles conceitos”; 3) “traduzindo uma realidade incontestável

de Direito Público”; 4) “para fazer vingar os princípios em nome dos quais a Nação se

levantou contra a situação anterior”.

Quando o locutor em atuação nesse Ato Institucional utiliza a expressão “por

isso”, produz o efeito de relacionar, com um tom explicativo, o caráter

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institucionalizante, dado ao Ato Institucional, com o caráter constituinte do mesmo

instrumento normativo. Assim, no trabalho de construção do objeto discursivo

Revolução, o poder institucionalizante desta estava, naquele momento, reacentuado, a

partir da retomada realizada pelo locutor. Reforçava-se, também, o caráter

constitucional desse Movimento.

Já em 2), analisado conjuntamente com 3), retoma-se, sempre no sentido de

enfatizar o já dito, o discurso de autoridade, marcado pela cientificidade, o que se dá a

partir de “conceitos” e de “Direito Público”. Nesses termos, surge também

“incontestável”, o que dá para o discurso ali construído, bem como para o objeto

discursivo Revolução, um viés de teorema científico: não se pode questionar o caráter

constituinte/institucionalizante da Revolução. Dessa forma, o locutor abre espaço para

outro ponto, embora implícito: as ações tomadas pela Revolução não podem ser

contestadas, tendo em vista todo esse caráter por ela ressaltado na construção de sua

imagem.

Já o fragmento transcrito no item 4), somado aos anteriores, retoma movimento

de busca pela legitimidade do Movimento Militar. Assim, mesmo com todo o tom de

força e de determinação dado pelo locutor à imagem de Revolução, na construção desse

objeto discursivo, mesmo com todo o discurso (implícito), cujas vozes são silenciadas

em diversos momentos dos textos aqui trabalhados, a Revolução está sempre,

discursivamente, disposta a “fazer vingar os princípios em nome dos quais a Nação se

levantou contra a situação anterior”. Esse fragmento acaba por retomar “seus objetivos”,

presente no mesmo Quadro em discussão. Assim, se a partir de “seus objetivos”, não

fica muito claro a que se refere a Revolução, o fragmento acima transcrito o relativiza e

esclarece: o objetivo maior da Revolução é o mesmo da Nação, a qual se levantara

contra o quadro anterior. O locutor em ação, portanto, declara que tomará todas as ações

necessárias para alcançar tais finalidades, sem, contudo, abrir mão do objetivo de

permanência no poder do grupo que ali se encontrava, afinal de contas, como se pode

depreender de seu discurso, é justamente essa permanência que levará o país a superar

toda a crise na qual se encontra afundado.

Como se pode observar a partir da leitura do Quadro 10, o locutor, em novo

processo de retomada enfática, acaba por ressaltar, discursivamente, características da

própria Revolução, como objeto discursivo, dando, neste caso, pouco relevo à voz

antirrevolucionária. Assim, mantém sua atuação em que cita vozes contrárias ao Regime

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para, a seguir, silenciá-las. No caso do Quadro 10, como mencionado, esse

procedimento é marcado por expressões como “não se disse” e “mas”.

Ao lado de todo o movimento de retomada realizado pelo locutor, verifica-se a

presença do que a Análise do Discurso classifica como discurso de autoridade. Apesar

de esse procedimento poder ser verificado em momentos nos quais o locutor cita o grito

das ruas, bem como quando apresenta o Poder Constituinte como integrante do processo

revolucionário, aqui o locutor aponta para o Direito Público, ou seja, um ramo do

Direito, e ressalta que o processo institucionalizante da Revolução traduzia vários

conceitos, dentre eles aqueles provenientes do Direito Público, ou seja, um ramo da

ciência jurídica.

Vale, ainda, mencionar a presença de “incontestável” em relação a essa tradução.

Vindo de um enunciador criado por um locutor vinculado às Forças Armadas, esse

termo pode estar a sinalizar que não serão admitidas contestações ao Regime. Isso

reforça para a Revolução, enquanto construção de objeto discursivo, a imagem de força

e determinação, como demonstrado em momentos outros desta tese.

No Quadro 11, há novas retomadas, com o mesmo objetivo das anteriores,

porém, também se verifica o reforço ao caráter de permanência desse Movimento.

Quadro 11 – Ato Institucional número 2: excertos 01 02 03 04 05 06 07 08 09

A autolimitação que a revolução se impôs no Ato institucional, de 9 de abril de 1964 não significa, portanto, que tendo poderes para limitar-se, se tenha negado a si mesma por essa limitação, ou se tenha despojado da carga de poder que lhe é inerente como movimento. Por isso se declarou, textualmente, que "os processos constitucionais não funcionaram para destituir o Governo que deliberadamente se dispunha a bolchevizar o País", mas se acrescentou, desde logo, que "destituído pela revolução, só a esta cabe ditar as normas e os processos de constituição do novo Governo e atribuir-lhe os poderes ou os instrumentos jurídicos que lhe assegurem o exercício do poder no exclusivo interesse do País".

Fonte: elaborado pelo autor.

Como se pode verificar, o Quadro 11 é aberto com menção explícita ao primeiro

dos Atos Institucionais editados pelo Movimento Militar. Essa citação vai diretamente

ao momento no qual se aborda, no primeiro ato, a limitação aos amplos poderes de que

uma revolução, conceitualmente, dispõe. De imediato, verifica-se essa retomada em

itens como “se impôs”, a menção explícita à data do ato em questão, bem como a

“autolimitação”. Contudo, nesse mesmo fragmento, o que mais chama a atenção é,

novamente, a negação explicitamente marcada pela presença de “não”, em “não

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significa”, dali constante. Essa negação, como se sabe, demarca a presença de vozes

outras no texto em análise.

A presença da mencionada expressão em um contexto no qual se apresenta a

autolimitação anteriormente realizada pelo Movimento mostra um enunciador que

defende a autonegação da Revolução, o que, como ocorreu em outros momentos, é

silenciado pelo locutor. Mais uma vez, aqui, explicita-se uma voz para, em seguida,

silenciá-la. Essa atuação, mesmo através da reiteração de negações, paradoxalmente,

ressalta o desejo de permanência e a força institucionalizante do Movimento. Isso pode

ser verificado a partir de termos como “não significa”, relacionado ao termo anterior,

que trata da autolimitação aqui muito mencionada; “tendo poderes para limitar-se”, em

que se pode ressaltar a presença de “poderes”, marcando a força do grupo em atuação

no governo nacional; “se tenha despojado da carga de poder que lhe é inerente como

movimento”, aqui, novamente o termo “poder”, em relação a “tenha despojado” desse

mesmo poder, deixando muito claro, a partir da leitura do fragmento seguinte (“lhe é

inerente como movimento”), sua marca essencial, ou seja, a titularidade do poder

constituinte, bem como do poder visto como força inerente a tal Movimento. Portanto, a

voz do locutor oficial do Movimento nega aquela, por ele também posta em cena, que

insinuava o despojamento, pelo próprio poder revolucionário, da aludida carga de poder.

Por outras palavras, o que o locutor em atuação busca ressaltar, na construção do objeto

discursivo Revolução, é que o Movimento permanece com toda a sua força e com todas

as suas prerrogativas de Movimento que assumira o poder e nele se mantinha.

A passagem seguinte, constante do Quadro 11, traz em seu bojo dois verbos que

podem ser de interessante análise, tendo em vista os objetivos desta tese: “declarou” e

“acrescentou”. Em relação ao primeiro dos verbos, há o acréscimo de “textualmente”, o

que ressalta o fato de que a citação do discurso será feita da mesma forma como

apareceu no primeiro Ato Institucional. Portanto, nesse momento, o locutor busca

construir uma imagem, para sua citação, de mera retransmissão de palavras, sem

qualquer outra carga que não a informação. Contudo, essa retomada, no contexto

linguístico em que se encontra realizada, quando se ressaltaram o caráter de

permanência do Movimento e o empenho na manutenção dos objetivos revolucionários,

altera esse caráter inicial. Assim, a retomada, mesmo que “textualmente”, de “os

processos constitucionais não funcionaram para destituir o Governo que

deliberadamente se dispunha a bolchevizar o País”, além de reiterar o dito e, dessa

forma, dar-lhe ênfase a partir da repetição, também reforça, embora indiretamente, a

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imagem de legalidade que o locutor buscava dar ao Movimento. É de se reparar,

também, a presença de itens lexicais como “funcionaram” e “destituir”, constantes desse

fragmento. O locutor cita os “processos constitucionais” e atribui a eles a função de

destituir governos inadequados, ou seja, no caso, aqueles governos que bolchevizavam

o país. Essa menção reitera o caráter prejudicial do governo anterior e cria o campo

necessário para a declaração que seria apresentada na frase seguinte do texto, quando,

também a partir de uma citação de passagem do primeiro Ato Institucional, reitera a

força normativa de que se valia o Movimento: “destituído pela revolução, só a esta cabe

ditar as normas e os processos de constituição do novo Governo e atribuir-lhe os

poderes ou os instrumentos jurídicos que lhe assegurem o exercício do poder no

exclusivo interesse do País”. Essa passagem, como se pode perceber do texto integral, é

introduzida por meio do mencionado verbo “acrescentou”. Assim, acrescentou-se, desde

logo, àquele dito o que seria apresentado logo a seguir. Dos itens lexicais ali presentes,

o que mais salta aos olhos é “ditar”, presente em “só a esta cabe ditar”. Essa menção

remeteria, sem maiores esforços, a “ditadura”.

O Quadro 12, apresentado abaixo, tem peculiar interesse para os objetivos desta

tese, uma vez que reitera os objetivos da Revolução, a partir de recursos linguísticos os

mais diversos. Aqui é possível verificar o forte embate de vozes presente na fala do

locutor.

Quadro 12 – Ato Institucional número 2: excertos 01 02 03 04 05 06 07 08 09 10 11 12

A revolução está viva e não retrocede. Tem promovido reformas e vai continuar a empreendê-las, insistindo patrioticamente em seus propósitos de recuperação econômica, financeira, política e moral do Brasil. Para isto precisa de tranqüilidade. Agitadores de vários matizes e elementos da situação eliminada teimam, entretanto, em se valer do fato de haver ela reduzido a curto tempo o seu período de indispensável restrição a certas garantias constitucionais, e já ameaçam e desafiam a própria ordem revolucionária, precisamente no momento em que esta, atenta aos problemas administrativos, procura colocar o povo na prática e na disciplina do exercício democrático. Democracia supõe liberdade, mas não exclui responsabilidade nem importa em licença para contrariar a própria vocação política da Nação. Não se pode desconstituir a revolução, implantada para restabelecer a paz, promover o bem-estar do povo e preservar a honra nacional.

Fonte: elaborado pelo autor.

Já nas duas primeiras orações do Quadro 12, o locutor explicita a presença de

vozes opostas ao Regime, o que se dá, como se verá, a partir de negações e também de

afirmações.

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Em “a revolução está viva e não retrocede”, é possível verificar a voz de um

enunciador que estaria a defender o enfraquecimento ou mesmo a morte da Revolução,

o que é negado pelo que o locutor apresenta em seu texto, ou seja, a afirmação da

manutenção do Movimento. A presença de “não retrocede”, além de calar a voz do

enunciador que estaria a defender retrocessão do Movimento, ressalta, na construção do

objeto discursivo Revolução a partir dos interesses do locutor movimentado no Ato

Institucional em discussão, o caráter de força e de permanência construído e sempre

reiterado ao longo dos Atos Institucionais editados pelo Movimento.

A frase seguinte do texto em análise também aponta, na construção do objeto

discursivo em questão, para o caráter de permanência dado ao Movimento: “tem

promovido reformas e vai continuar a empreendê-las, insistindo patrioticamente em

seus propósitos de recuperação econômica, financeira, política e moral do Brasil”. Ao

utilizar “tem promovido”, reitera a ação reformadora do Movimento, o que se soma à

afirmação anterior relativa à vida da Revolução, em movimento enunciativo de

retomada e avanço. Assim, declara-se que o Movimento está vivo (retomada) e não

retrocede (avanço), também tem promovido reformas (retomada) e vai continuar a

promovê-las (avanço). Tudo isso ressalta a imagem até aqui construída pelo Regime.

Esse movimento enunciativo pode ser sintetizado pelo verbo “insistindo”, o que marca,

nos enunciados anteriores, o caráter de insistência das ações praticadas pelo enunciador

movimentado pelo locutor.

É interessante perceber a presença de “patrioticamente”, como modificador de

“insistindo”. Assim, o locutor classifica como patriótica sua ação de insistir naquilo que

menciona, ou seja, seus propósitos. A utilização do mencionado advérbio remete esse

trecho a diversos outros momentos dos Atos Institucionais editados durante o Regime.

Por outras palavras, o locutor reitera a observação dos anseios nacionais na tomada de

atitudes, o que, por si só, também remete ao povo e, quem sabe, à democracia. Assim, a

Revolução é construída, enquanto objeto discursivo, como instância que mantém seu

caráter patriótico em tudo o que faz, o que também justificaria ações mais firmes, ou

mesmo, impopulares por ela tomadas.

Após explicitar os objetivos maiores da insistência patriótica, os quais se

relacionam com o que classifica como “recuperação”, o locutor passa a defender a

necessidade de tranquilidade para que o governo consiga implementar tais objetivos.

Uma vez feito isso, passa a qualificar, de maneira mais explícita, os grupos que

formavam a oposição ao Regime.

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O locutor, então, vale-se da seguinte expressão: “agitadores de vários matizes e

elementos da situação eliminada teimam”. Assim, após ter, seja no Ato Institucional

número 1, seja no Ato Institucional número 2, construído sua própria imagem discursiva

de sujeito cujo objetivo é a derrubada da situação anterior (classificada como

prejudicial) e a implementação de uma situação ideal (a implantada pela Revolução), o

locutor se refere a “elementos da situação eliminada” para dizer respeito ao grupo que

fora destituído do poder. Se tomarmos em consideração o discurso policial ainda hoje

em vigor, veremos que o termo “elemento” é frequentemente utilizado para se referir ao

sujeito infrator, ao criminoso. É, contudo, possível pensar, também, no discurso da

matemática e ler “elemento” como a unidade pertencente a um grupo. Essas leituras não

são excludentes e podem, mesmo, se somar: esses elementos mencionados podem ser

revestidos da marginalidade, da criminalidade. De qualquer maneira, o locutor busca

construir, discursivamente, para tais elementos a imagem de sujeitos prejudiciais à

ordem implantada.

Ao lado desses “elementos” o locutor insere em seu enunciado “agitadores de

vários matizes”. Aqueles elementos, como ressaltado pelo próprio locutor, pertencem à

“situação eliminada”. Como se pode perceber, os itens lexicais utilizados pelo locutor,

nessa construção, são veiculadores, nesse contexto, de carga semântica negativa:

“elementos”, “agitadores”, “eliminada”. Além desses termos, merece destaque o verbo a

eles associado: “teimam”.

Uma rápida comparação com verbo utilizado ainda no Quadro 12, em análise,

permite verificar a diferença na criação de imagens discursivas para a Revolução e para

a oposição. Se as ações tomadas pela Revolução consistem em insistência, a oposição é

teimosa e suas ações consistem em mera teimosia. Se as ações do primeiro grupo

consistem em insistência democrática, as do segundo são apenas teimosia de elementos

inconformados com a nova situação vivida pelo país. Tudo isso, gradativamente, vai

sedimentando, na construção de objetos discursivos realizada pelo locutor em ação, a

diferenciação entre imagens criadas.

Paralelamente a todos esses elementos de ordem lexical postos em cena pelo

locutor, paralelamente a todo esse embate de vozes até aqui analisado, uma passagem

chama bastante a atenção, na voz do locutor construído pela Revolução: “precisamente

no momento em que esta, atenta aos problemas administrativos, procura colocar o povo

na prática e na disciplina do exercício democrático”. Utilizando essa construção, o

locutor, embora, como geralmente ocorre, de maneira indireta, reitera, na elaboração da

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imagem de Revolução, sua força e sua determinação. Ao lado dessa construção, é

possível perceber, também, nova ênfase no caráter democrático que esse locutor busca

atribuir ao Movimento Militar então no poder.

Veja-se, então, que o Movimento declara que tem por objetivo “colocar o povo

na prática e na disciplina do exercício democrático”. Se, por um lado, fala em exercício

da democracia, por outro lado, menciona prática e disciplina e os atribui a tal exercício.

Mais à frente, no mesmo Quadro, o locutor aponta para a responsabilidade que se deve

ter nesse exercício. Paralelamente a tudo isso, como se pode perceber a partir de

“procura colocar”, fica construída a imagem de um Regime que também objetiva o

exercício da democracia, contudo, a partir da mencionada expressão, fica construído um

paradoxo: o povo brasileiro estava sendo colocado no exercício democrático, não

estaria, ele próprio, caminhando para a construção e o aperfeiçoamento daquele

exercício. Assim, mesmo o Regime tendo buscado o reforço dessa imagem, essa mesma

busca, no discurso, causou o desmascaramento: através da força (afinal, é Movimento

também militar), obriga o povo a praticar a liberdade, a democracia.

Fechando o parágrafo transcrito no Quadro 12, o locutor busca a construção,

embora indireta, de um conceito para o termo “democracia”. Também nesse fragmento

é possível verificar a presença de embate de vozes, em que, novamente, o locutor

apresenta a voz contrária e a silencia: “democracia supõe liberdade, mas não exclui

responsabilidade nem importa em licença para contrariar a própria vocação política da

Nação”. O enunciador posto em cena pelo locutor apresenta como pressuposto da

democracia a liberdade e aponta para a necessidade, no exercício da democracia, de se

observar a vocação política nacional. Isso é feito a partir da construção de um

pressuposto (democracia supõe liberdade) e de uma negação (não importa em licença

para contrariar a própria vocação política da Nação). Através do pressuposto

movimentado, o locutor compartilha a mesma voz posta em cena pelo enunciador

contrário ao Movimento, porém, a partir da negação introduzida por “não exclui... nem

importa”, consta a voz proveniente daquele mesmo enunciador com quem compartilhara

pontos de vista. Dessa maneira, novamente, constrói a imagem de Antirrevolução como

um grupo que atua de forma contrária à vocação política nacional. A partir dessa

construção da oposição, a Revolução reitera sua imagem discursiva de sujeito defensor

da ordem e da vocação política nacional. Além do mais, fica enfatizada sua imagem de

sujeito conhecedor de seu papel na preservação daquilo a que se propõe preservar.

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Por fim, ainda nesse movimento de construir, discursivamente, a Revolução

como instância conhecedora de suas atribuições, é elaborada a seguinte passagem, ainda

no Quadro 12: “Não se pode desconstituir a revolução, implantada para restabelecer a

paz, promover o bem-estar do povo e preservar a honra nacional”. O locutor, após tudo

o que foi por ele enfatizado, de maneira conclusiva, ressalta a inviolabilidade da

Revolução e apresenta os motivos que o levaram a assim se posicionar.

Rebatendo, novamente, aquele enunciador que apresenta o ponto de vista de que

a Revolução estaria enfraquecida, o locutor constituído pelo Movimento revolucionário,

novamente a partir da negação, ressalta a impossibilidade de se desconstituir aquele

Movimento. A seguir, na reiteração da aproximação entre os objetivos revolucionários e

os nacionais, aponta para as finalidades estabelecidas para a atuação daquele grupo:

“restabelecer a paz, promover o bem-estar do povo e preservar a honra nacional”.

Embora, nesse fragmento, o locutor não diga claramente que se refere aos grupos

contrários àquele Regime, ou mesmo ao grupo deposto, aponta, a partir do implícito,

para o fato de que a paz então presente no país fora liquidada (restabelecer a paz), para a

inexistência do bem-estar do povo (promover) e para a ameaça da honra nacional

(preservar), tudo isso, possivelmente, causado pelos grupos opositores ao Movimento.

Quadro 13 – Ato Institucional número 2: excertos 01 02 03

Assim, o Presidente da República, na condição de Chefe do Governo revolucionário e comandante supremo das forças armadas, coesas na manutenção dos ideais revolucionários,

Fonte: elaborado pelo autor.

No Quadro 13, o que se observa é a ênfase dada pelo locutor à figura do

Presidente da República, o qual é construído discursivamente como chefe do governo

revolucionário e como comandante supremo das Forças Armadas. Fica, assim, criada

uma figura humana e a ela se atribui a responsabilidade por comandar a Revolução e as

Forças Armadas. Além disso, estas são construídas discursivamente como marcadas

pela coesão de objetivos, ou seja, a manutenção dos ideais revolucionários.

Quadro 14 – Ato Institucional número 2: excertos 01 02 03

CONSIDERANDO que o País precisa de tranqüilidade para o trabalho em prol do seu desenvolvimento econômico e do bem-estar do povo, e que não pode haver paz sem autoridade, que é também condição essencial da ordem;

Fonte: elaborado pelo autor.

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Já no Quadro 14 observa-se a realização de algumas reiterações de afirmações

ocorridas no próprio Ato Institucional número 2, ou seja, a necessidade de se dar

tranquilidade ao governo para sua adequada atuação, a constante busca pelo

desenvolvimento econômico e pelo bem-estar do povo. Por outro lado, é enfatizada a

figura da autoridade, a qual é associada à preservação da ordem.

Quadro 15 – Ato Institucional número 2: excertos 01 02 03

CONSIDERANDO que o Poder Constituinte da Revolução lhe é intrínseco, não apenas para institucionalizá-la, mas para assegurar a continuidade da obra a que se propôs,

Fonte: elaborado pelo autor.

Por fim, no Quadro 15, o locutor reitera o Poder Constituinte que caracteriza a

Revolução desde o primeiro momento, a institucionalização e a continuidade deste.

Esses três Quadros acabam por sintetizar as imagens e os objetivos construídos

pelo locutor em ação nesse Ato Institucional. Além disso, dentre outros aspectos, ficam

reforçadas as características peculiares das Forças Armadas: a preservação da ordem, a

hierarquia e a responsabilidade. Portanto, seja através de reiterações, seja através do

embate entre enunciadores, seja por meio da utilização de itens lexicais os mais

diversos, vão sendo gradativamente construídas, enquanto objetos discursivos, a

Revolução e a Antirrevolução. Tais objetos discursivos serão reforçados, ainda mais,

pelo que se verá a partir da leitura do Ato Institucional número 5, o que será feito na

seção seguinte deste trabalho.

5.4 Ato Institucional número 5

A partir deste momento, passar-se-á à análise de fragmentos constantes do

preâmbulo do Ato Institucional número 5. Como ressaltado em momentos anteriores

desta tese, a opção pela leitura desse instrumento normativo foi motivada pelo fato de

que consiste, como a história nacional demonstrou, em marcação da criação de uma

nova ordem dentro do que se vivia no país naquele período.

O Quadro 16 consiste no primeiro parágrafo do aludido preâmbulo. Através dele,

pela utilização de formalidades exigidas pelo gênero discursivo texto normativo lato

sensu, o locutor apresenta o responsável pela edição daquele instrumento. Trata-se de

passagem digna de nota, tendo em vista a atuação do locutor e o fato de que não foi

adotada nos dois preâmbulos anteriormente analisados nesta tese.

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Quadro 16 – Ato Institucional número 5: excertos 01 02 03

ATO INSTITUCIONAL Nº 5, DE 13 DE DEZEMBRO DE 1968. O PRESIDENTE DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL , ouvido o Conselho de Segurança Nacional, e

Fonte: elaborado pelo autor.

A leitura do capítulo desta tese destinado à construção do quadro histórico

mostra que, na reunião do Conselho de Segurança Nacional, cuja transcrição consta dos

anexos deste trabalho, a minuta daquele instrumento normativo foi apresentada ao

Conselho, porém, essa apresentação, na prática, não consistiu em oitiva destinada à

apresentação de sugestões ou mesmo para se aprovar ou rejeitar uma possível edição do

ato. O que se verificou naquela sessão foi mais uma comunicação do Presidente da

República aos membros daquele colegiado quanto à edição do aludido ato. Portanto, o

“ouvido” remete a uma mera oitiva, a uma simples comunicação e não a tomada de

sugestões ou de posicionamentos.

Novamente, a partir do termo “ouvido”, o qual remete a um órgão colegiado,

que, como se sabe, era composto por militares, mas também por civis, acaba-se, na

formulação do objeto discursivo Revolução, por construir uma imagem discursiva de

instituição democrática para aquele que editava o documento, ou seja, o Presidente da

República Federativa do Brasil.

Os parágrafos seguintes do Ato Institucional em discussão visam a construir uma

imagem de inevitabilidade para a sua edição, a qual é vinculada à imagem que os líderes

da Revolução buscavam construir para o momento político vivenciado no país. É de se

observar também a presença de referências ao que se convencionou denominar

“legalidade” das ações desse Movimento.

Veja-se, nesse sentido, inicialmente, o Quadro 17.

Quadro 17 – Ato Institucional número 5: excertos 01 02 03 04 05 06 07 08 09 10 11

CONSIDERANDO que a Revolução Brasileira de 31 de março de 1964 teve, conforme decorre dos Atos com os quais se institucionalizou, fundamentos e propósitos que visavam a dar ao País um regime que, atendendo às exigências de um sistema jurídico e político, assegurasse autêntica ordem democrática, baseada na liberdade, no respeito à dignidade da pessoa humana, no combate à subversão e às ideologias contrárias às tradições de nosso povo, na luta contra a corrupção, buscando, deste modo, "os meios indispensáveis à obra de reconstrução econômica, financeira, política e moral do Brasil, de maneira a poder enfrentar, de modo direito e imediato, os graves e urgentes problemas de que depende a restauração da ordem interna e do prestígio internacional da nossa pátria" (Preâmbulo do Ato Institucional nº 1, de 9 de abril de 1964);

Fonte: elaborado pelo autor.

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Antes de se passar à análise mais detida dos elementos que interessam mais de

perto a este trabalho, torna-se interessante verificar a ocorrência da expressão “a

Revolução Brasileira de 31 de março de 1964”. Até então, esse Movimento, que

recebera diversas denominações (dentre elas, “revolução” e “revolução vitoriosa”, ou

mesmo “revolução que se tornou vitoriosa”), não havia recebido a qualificação que se

apresenta no excerto transcrito acima. O Movimento é, então, rotulado como

“Revolução Brasileira”, com as iniciais maiúsculas, o que lhe dá um ar de substantivo

próprio. Essa Revolução, que, anteriormente, ocorrera no espírito e no comportamento

do povo brasileiro e de instituições nacionais, agora é apresentada como uma ação que

revolucionou o país. Além disso, passou à categoria de sujeito específico, entidade, a

partir do processo de substantivação por que o termo passou. É um Movimento que,

agora, recebera nome e sobrenome, além da correspondente individuação. Por fim, se

essa é a Revolução que pode ser classificada como “Brasileira”, os demais movimentos

“que ainda teimam” não são merecedores daquele rótulo.

Ainda no Quadro 17 é possível verificar a presença dos seguintes itens lexicais,

que contribuem para a construção do objeto discursivo Revolução Brasileira:

“institucionalizou”, “fundamentos e propósitos”. Esses termos reiteram o caráter de

permanência muitas vezes retomado pelos locutores em ação nos diversos Atos editados

pela Revolução. Assim, a presença de “institucionalizou”, no pretérito perfeito do

indicativo, o qual tem como sujeito “A Revolução Brasileira”, além de fazer referência

aos Atos Institucionais anteriores, ressalta, como se defendeu até aqui, o caráter de fato

consumado dado ao Movimento civil e militar. Assim, a Revolução se construía

discursivamente como Movimento já institucionalizado e, paralelamente, como

Movimento devidamente implementado no país.

Por outro lado, na construção de objetos discursivos realizada pelo locutor em

ação no Ato Institucional número 5, a presença de “fundamentos e propósitos”,

complementos do verbo “teve”, o qual apresenta, também, “A Revolução Brasileira”

como sujeito, busca construir para o aludido Movimento a imagem de instituição com

embasamento e com objetivos, o que apaga a imagem de instância surgida do acaso e

que a nada objetivava. Dessa forma, o enunciador que veicula o ponto de vista do

locutor construído pelo Movimento também busca desconstruir o enunciador a ele

contrário, que buscava construir a Revolução como movimento sem propósitos ou

mesmo fundamentos.

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Citando, portanto, “teve, conforme decorre dos Atos com os quais se

institucionalizou, fundamentos e propósitos”, é ressaltado o ponto de vista acima

mencionado e silenciado o de alguma oposição eventualmente construída: não há

institucionalização, nem fundamentos e propósitos que embasem as ações tomadas pelo

golpe militar de 1964. Vê-se, portanto, um embate de vozes entre os dois enunciadores

aqui mencionados.

A sequência do texto constante do Quadro 17 complementa “fundamentos e

propósitos”: “visavam a dar ao País um regime que, (...) assegurasse autêntica ordem

democrática”. Essa passagem é complementada por “baseada na liberdade, no respeito à

dignidade da pessoa humana, no combate à subversão e às ideologias contrárias às

tradições de nosso povo, na luta contra a corrupção”.

No primeiro fragmento, a presença do verbo “dar”, em “dar ao país”, o qual se

liga aos objetivos da Revolução Brasileira, permite a construção daquele Movimento

civil e militar como objeto discursivo veiculador de uma imagem de força tal, que lhe

permite passar de sua titularidade para a do país todo um Regime, no caso,

declaradamente democrático. Contudo, novamente é possível verificar a presença de

“ordem”, embora desta vez ligada a “democrática”. Dessa forma, mesmo apresentando

o anseio democrático para o Movimento, o enunciador a ele ligado deixa fazer-se

presente o anseio de ordem, o que pertence ao discurso militar, como ficou claro ao

longo da história desse período.

A segunda passagem transcrita no parágrafo acima apresenta a visão do locutor a

respeito do que ele rotula como “ordem democrática”, ou seja, algo que toma por base a

liberdade e o respeito à dignidade da pessoa humana, bem como o que classifica como

combate à subversão e como luta ideológica. Da maneira como o locutor apresenta a

construção acima, coloca em um mesmo nível (o da ordem democrática) os diversos

itens por ele mencionados. Porém, a inserção desses itens no contexto histórico em que

foram utilizados permite a verificação de três patamares diversos: 1) liberdade e respeito

à dignidade da pessoa humana; 2) combate à subversão e às ideologias contrárias às

tradições de nosso povo; 3) luta contra a corrupção (menção esta presente no fragmento

seguinte do Quadro em análise). De toda a forma, a ordem democrática alardeada pelo

Regime estava embasada nesses dois pilares principais (1 e 2) e no terceiro pilar ali

apresentado.

A análise, portanto, do contexto histórico vivenciado no momento da edição

desse Ato Institucional (a qual pode ser recuperada a partir do pronunciamento do então

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Presidente da República em reunião do Conselho de Segurança Nacional) permite

verificar que, embora aqueles três pontos fossem objetivos da ordem democrática que se

buscava implementar, o combate à subversão e às ideologias contrárias às tradições

nacionais acabou se tornando o fim maior. O próprio texto constante do Quadro 17

permite, como se verá, realizar a confirmação desse fato.

Trata-se de inserção, no texto do preâmbulo do Ato Institucional número 5, de

citação de fragmento constante do Ato Institucional número 1: “buscando, deste modo,

‘os meios indispensáveis à obra de reconstrução econômica, financeira, política e moral

do Brasil, de maneira a poder enfrentar, de modo direito e imediato, os graves e

urgentes problemas de que depende a restauração da ordem interna e do prestígio

internacional da nossa pátria’”. Esse fragmento consiste em momento de transição entre

o Quadro 17 e o que se dirá, no Quadro 18, a respeito do cenário discursivo que se

construía a fim de embasar as atitudes repressoras tomadas pelo Movimento. O

fragmento que mais interessa, neste momento desta tese é “poder enfrentar, de modo

direto e imediato, os graves e urgentes problemas”, de onde constam “enfrentar”, “modo

direto e imediato”, “graves e urgentes”, presentes no trecho acima.

Em nosso entendimento, “enfrentar” pode estar a sinalizar a intenção do locutor

de demonstrar que liberdade e respeito à dignidade humana podem necessitar ser

preteridos em favor da ordem democrática. Esse enfrentamento a que se refere o locutor

e que diz respeito à subversão e às ideologias mencionadas, o que se dá através de

“graves e urgentes problemas”, pode pressupor o desrespeito ao humano por parte do

Movimento.

Por outro lado, nesse contexto, “modo direto e imediato” reitera o caráter de

imediatismo ressaltado em diversos momentos pelo Movimento. Essa atuação estaria a

reiterar a imagem de força dada, na construção do objeto discursivo em questão, ao

Movimento, uma vez que, por meio de um subentendido, somente quem tem força e

domínio de uma situação pode enfrentar e solucionar problemas graves e urgentes de

maneira direta e imediata.

Como mencionado, o Quadro 18 consiste em avanço na construção discursiva

pretendida pelo locutor a respeito do cenário que se buscava construir para o que se

vivenciava no país. Além do mais, é possível perceber que essa construção se dá, muitas

vezes, a partir de retomadas diretas ou mesmo indiretas de momentos outros dos Atos

Institucionais então editados.

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Quadro 18 – Ato Institucional número 5: excertos 01 02 03 04 05 06 07

CONSIDERANDO que o Governo da República, responsável pela execução daqueles objetivos e pela ordem e segurança internas, não só não pode permitir que pessoas ou grupos anti-revolucionários contra ela trabalhem, tramem ou ajam, sob pena de estar faltando a compromissos que assumiu com o povo brasileiro, bem como porque o Poder Revolucionário, ao editar o Ato Institucional nº 2, afirmou, categoricamente, que "não se disse que a Revolução foi, mas que é e continuará" e, portanto, o processo revolucionário em desenvolvimento não pode ser detido;

Fonte: elaborado pelo autor.

Logo no início do que se apresenta no Quadro 18, o locutor constrói o objeto

discursivo “Governo da República” como instância responsável pela manutenção do

cenário construído. Nesse momento, não mais fala em Revolução ou em alguma de suas

formas anteriormente apresentadas. Agora, quem recebe papéis e responsabilidades é o

Governo da República.

No campo da responsabilidade elencada por esse locutor estão a retomada dos

objetivos da Revolução (“execução daqueles objetivos”) e a manutenção da “ordem e

segurança internas”. Juntamente a esses pontos está a menção a “pessoas ou grupos anti-

revolucionários”. Esse conjunto de dados, além de reiterar a imagem de força e de

legitimidade que o locutor busca construir para o Movimento, também realiza uma

espécie de justificativa para ações que, como mencionado quando da análise do Quadro

17, possam ferir direitos humanos e liberdades individuais. As finalidades de manter a

ordem e de coibir ações antirrevolucionárias, sempre a favor dos “compromissos que [a

Revolução] assumiu com o povo brasileiro”, levaram (ou quase obrigaram) a Revolução

a tomar a atitude de editar o Ato em discussão.

Ainda no Quadro acima, quando de menção às ações dos grupos

antirrevolucionários, alguns comentários podem ser tecidos, tendo em vista a construção

daquele objeto discursivo (grupos antirrevolucionários) visada pelo locutor em ação.

Veja-se, inicialmente, a presença do próprio termo “antirrevolucionário”, o qual remete

àquilo que é contrário à Revolução. Sendo, então, a ela contrário, também é contrário

aos objetivos da República, da Nação e, portanto, do povo brasileiro. Dessa forma, a

Revolução (agora, Governo da República) deve coibir ações dessas “pessoas e grupos”.

Tais pessoas e tais grupos tiveram suas ações descritas de diversas maneiras, dentre

elas, teimosia. Agora, o que se vê quanto a tal rotulagem está presente em “trabalhem,

tramem ou ajam”, o que é acompanhado de “contra ela”, ou seja, a construção é “contra

ela trabalhem, tramem ou ajam”.

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153

O ponto que, para nós, chama mais atenção no excerto transcrito acima está em

“ela”, da expressão “contra ela”. Como será possível perceber, no Quadro 18, o

elemento que funciona como sujeito é “Governo da República”. Como mencionado em

momento anterior, no aludido Quadro, não há referência explícita à Revolução ou a

qualquer de seus qualificativos anteriormente construídos. Assim, o primeiro elemento

que, sintaticamente, surge como sendo referido por “ela” é “República”, apesar de ser

possível dizer que, implicitamente, a referência é a “Revolução”, tendo em vista as

diversas menções anteriores e um possível subentendimento desse termo. De qualquer

maneira, sendo “República” ou “Revolução”, o locutor aponta para a presença de

pessoas e grupos que tramam/trabalham/agem contra esse “ela”.

Ao dizer que pessoas e grupos antirrevolucionários visam a destruir a República,

o locutor ultrapassa a defesa da Revolução e surge discursivamente como defensor de

algo, em tese, ainda maior: a própria República. Portanto, quem se volta contra aquele

estado de coisas se volta também contra a República. Esse cenário permite a construção

da Antirrevolução como inimiga da Nação, tendo em vista que, no contexto acima

mencionado, os grupos antirrevolucionários atuavam de forma a destruir República ou

Revolução. Além do mais, fica construída e reforçada para o Governo da República (o

qual foi implementado pela Revolução) a imagem de defensor desta. Fica, ainda,

construída para a Revolução a justificativa para a adoção de ações mais firmes contra

tais inimigos.

Paralelamente a isso, como mencionado, a carga semântica de “trabalhem”,

“tramem” e “ajam”, ligados a “contra ela”, demonstra e reforça a imagem negativa

criada pelo locutor revolucionário para o que aqui classificamos como Antirrevolução.

Veja-se, nesse sentido, que a própria preposição “contra” já demonstra o lado negativo

do grupo, principalmente, porque essa contrariedade de ações tem por alvo a República.

Além disso, em relação aos verbos em tela, é possível perceber que “tramar”, embora

possua também sentido positivo, apresenta maior viés negativo, principalmente no

contexto em que está sendo utilizado, ou seja, “tramar contra”. Há, assim, um viés de

clandestinidade para esse grupo que trama. São, portanto, vistos como perigosos aqueles

que tramam contra a República. O mesmo acontece com trabalhar e agir, estes, com

maior carga semântica positiva (quando em comparação com tramar), mas com viés

negativo acrescentado por “contra”. Assim, em movimento enunciativo muitas vezes

reiterado, o locutor ressalta o lado negativo desses grupos e apresenta a Revolução

como o agente responsável por combater esses grupos, na defesa do Regime e do país.

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154

É possível, ainda no excerto presente no Quadro 18, perceber que esse parágrafo

foi elaborado de forma a apresentar duas partes. A primeira delas começando em

“considerando que o Governo da República” e terminando em “trabalhem, tramem ou

ajam”. Essa primeira parte acaba de ser aqui analisada. A segunda parte, por outro lado,

tem seu início em “sob pena de estar faltando” e segue até o final do parágrafo.

Chamam a atenção, nesse segundo momento, a reiteração do compromisso

assumido pela Revolução junto ao povo brasileiro e a ênfase dada ao caráter de

inevitabilidade construído para o Movimento. Esses dois rótulos construídos pelo

locutor estão ligados à primeira parte do parágrafo, principalmente, a partir da expressão

“sob pena de estar faltando”. Veja-se que o locutor enfatiza, no primeiro momento, a

presença e a atuação de pessoas e grupos antirrevolucionários e constrói o Governo da

República, enquanto objeto discursivo, com uma imagem de instância responsável. Esse

cenário, agora reforçado pela menção ao “compromisso” assumido pela Revolução, vai

direcionando a argumentação realizada para a justificação do que será apresentado na

parte normativa desse Ato Institucional. Por outras palavras, o locutor estaria a dizer

que tudo o que vier a fazer, mesmo que acabe por, em algum momento, violar direitos

subjetivos de algumas pessoas (estas, de imediato, apresentadas como contrárias ao

Regime), é para atender ao compromisso assumido junto ao povo, na defesa nacional e,

também, do Regime. Tudo isso reforça a construção do objeto discursivo Revolução (ou

mesmo Governo da República) como instância sabedora de suas responsabilidades e de

sua importância naquele momento da história nacional.

Essa defesa relativa ao Regime surge, a partir de uma retomada explícita, em

“não se disse que a Revolução foi, mas que é e continuará”. Como esse fragmento já foi

analisado em outros momentos desta tese, não nos deteremos, aqui, em sua análise.

Diremos apenas que, como ocorre, muitas vezes, com o movimento de retomada, aqui o

locutor realiza uma citação com o objetivo de ênfase. Fica, portanto, ainda mais a partir

da presença de “afirmou categoricamente”, ressaltado o caráter de permanência

construído para o Regime em atuação no país.

O Quadro 19 apresenta excerto no qual o locutor busca construir o objeto

discursivo Revolução marcado pelo caráter de legalidade, bem como justificar,

novamente, as ações a serem aplicadas a partir do Ato Institucional número 5. Vai

sendo, gradativamente, construída a imagem de que tudo o que está sendo realizado tem

embasamento legal e, principalmente, democrático, sendo, portanto legítimo.

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Quadro 19 – Ato Institucional número 5: excertos 01 02 03 04 05 06

CONSIDERANDO que esse mesmo Poder Revolucionário, exercido pelo Presidente da República, ao convocar o Congresso Nacional para discutir, votar e promulgar a nova Constituição, estabeleceu que esta, além de representar "a institucionalização dos ideais e princípios da Revolução", deveria "assegurar a continuidade da obra revolucionária" (Ato Institucional nº 4, de 7 de dezembro de 1966);

Fonte: elaborado pelo autor.

Chamam a atenção os seguintes termos: “Congresso Nacional”, “discutir, votar e

promulgar”, “Constituição”.

Como mencionado em capítulo anterior desta tese, quando foram apresentadas

noções básicas de Direito Constitucional, em rigor, uma Constituição é, por definição,

democrática, sendo, então, contraditória uma constituição ditatorial. O locutor, portanto,

ao agir dessa maneira, ou seja, ressaltando a presença de uma constituição e dando a ela

a função de realizar a institucionalização da Revolução, dá mais um passo no sentido de

construir, discursivamente, a legitimidade para o Regime. Por outras palavras, todas as

ações do Regime são reguladas pela lei e, ainda mais, pela Constituição. Há, portanto,

ênfase na imagem de democracia e de legalidade para o Regime.

Essa construção do objeto discursivo Revolução a partir do reforço da imagem

de instância democrática se dá, também, pela presença do Congresso Nacional e pela

menção a discussão, voto e promulgação da Constituição. Tecnicamente, como

mencionado no capítulo teórico, a constituição efetivamente democrática é aquela que

passou por todo um processo de elaboração e de discussão, o que resulta na

promulgação. Uma constituição que não se enquadra nesse rótulo é meramente

apresentada pelo interessado (no caso, por exemplo, o Poder Executivo) e outorgada,

sem, portanto, passar por processo de discussão em órgão colegiado eleito

especificamente para essa ação. O locutor posto em cena pelo Regime Militar instalado

no país busca, portanto, nesse preâmbulo, através dos termos em análise, silenciar o

enunciador que poderia classificar como ditatorial o Regime.

Pode-se dizer que o Quadro 20, a ser analisado a partir de agora, consiste em

uma espécie de contraponto em relação, principalmente, ao que consta do Quadro 19. É

a partir do excerto a ser analisado a seguir que o locutor passa a relativizar, ou mesmo

desconstruir a voz que vinha sustentando até o presente momento.

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Quadro 20 – Ato Institucional número 5: excertos 01 02 03 04 05

CONSIDERANDO, no entanto, que atos nitidamente subversivos, oriundos dos mais distintos setores políticos e culturais, comprovam que os instrumentos jurídicos, que a Revolução vitoriosa outorgou à Nação para sua defesa, desenvolvimento e bem-estar de seu povo, estão servindo de meios para combatê-la e destruí-la;

Fonte: elaborado pelo autor.

Se no Quadro 19 o locutor ressalta o enunciador que defende a permanência da

Revolução a partir da manutenção de instrumentos democráticos, a partir de agora, o

locutor lança mão de uma outra voz, que passa a defender uma atuação mais firme, ou

mesmo antidemocrática do Regime. Tudo isso, como será possível perceber, tendo

como finalidade o combate à subversão, aos inimigos do Regime.

O locutor, então, a partir de “atos nitidamente subversivos, oriundos dos mais

distintos setores políticos e culturais”, bem como de “estão servindo de meios para

combatê-la e destruí-la”, coloca como sujeitos de ações antirrevolucionárias setores

políticos e setores culturais. A presença de “dos mais distintos” ligada a esses setores,

parece estar a construir, como objeto discursivo, um movimento de generalização de um

cenário de desordem ameaçadora do Regime e da República como um todo. O locutor,

então, liga aqueles dois setores à subversão (“atos nitidamente subversivos”) e, a partir

desse conjunto, passa a relacionar esse cenário à legalidade então construída e defendida

pelo Regime.

Veja-se, nesse sentido, que a passagem “os instrumentos jurídicos, que a

Revolução vitoriosa outorgou à Nação para sua defesa, desenvolvimento e bem-estar de

seu povo” realiza retomadas de enunciados muitas vezes enfatizados pelo locutor

proveniente do Movimento civil e militar então no poder. Assim, a partir de

“instrumentos jurídicos”, reitera, na construção discursiva que vem desenvolvendo, a

constante busca pela legalidade, bem como (e, quem sabe, principalmente) a edição de

uma Constituição (a Constituição de 1967); a menção a “revolução vitoriosa” estaria

remetendo ao Movimento como um todo e aos atos institucionais e complementares,

editados desde o momento da vitória daquele Movimento. Essa menção a termo

constante de todos os Atos poderia indicar a retomada de todo o processo revolucionário

vivido no país a partir de então. O locutor, também, a partir de “desenvolvimento e

bem-estar”, o que está relacionado a “instrumentos jurídicos”, reitera a intenção inicial

do Movimento de proporcionar ao povo, além da já alardeada vitória sobre uma situação

prejudicial ao país, também o desenvolvimento nacional e o bem-estar da população.

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Fica, portanto, construída e reiterada para o Regime Militar, enquanto objeto discursivo,

uma imagem de guardião dos interesses populares e nacionais, bem como de sujeito que

buscou, de todas as formas, a preservação do Regime, mas, principalmente, da ordem e

da democracia, como foi analisado em diversos momentos desta tese. Mencione-se,

ainda, que, em seu discurso em reunião do Conselho de Segurança Nacional, o General

Arthur da Costa e Silva ressaltou esse aspecto.

Ocorre, contudo, que, do excerto constante do Quadro 20, consta que aqueles

instrumentos jurídicos estavam servindo, na verdade, como instrumentos de combate

àquele sistema, pois estavam sendo (mal) utilizados pelos grupos políticos e culturais

construídos discursivamente como grupos eivados de subversão: “estão servindo de

meios para combatê-la e destruí-la”. Fica, então, construído o cenário discursivo capaz

de legitimar ações outras a serem adotadas pelo Regime, através do Ato Institucional

número 5, então editado.

O Quadro 21, como será possível perceber a partir das análises a serem aqui

desenvolvidas, consiste em declaração mais explícita de que o Movimento tomaria

medidas mais rígidas para sua defesa. Diz, ainda, o locutor que tais medidas tinham por

finalidade a manutenção da ordem e da tranquilidade para o povo e para o desempenho

adequado das atividades do Regime. Novamente, aqui, o locutor, embora

implicitamente, aponta para o fato de que os fins justificam os meios, ou seja, a adoção

de atitudes cada vez mais antidemocráticas justifica a finalidade de (alardeada) proteção

do Regime e do povo.

Quadro 21 – Ato Institucional número 5: excertos 01 02 03 04 05

CONSIDERANDO que, assim, se torna imperiosa a adoção de medidas que impeçam sejam frustrados os ideais superiores da Revolução, preservando a ordem, a segurança, a tranqüilidade, o desenvolvimento econômico e cultural e a harmonia política e social do País comprometidos por processos subversivos e de guerra revolucionária;

Fonte: elaborado pelo autor.

O primeiro dos elementos que chamam a atenção no Quadro 21 é o item

“assim”, o qual realiza a ligação do que se apresentou no Quadro 20 com a defesa de

ações a serem tomadas, as quais passam a ser construídas como necessárias, ou, nos

termos do locutor em ação “imperiosas”.

A presença do termo “assim” explicita a construção causa-consequência, ou

mesmo de finalidades que justificam os meios adotados. Dessa forma, a Revolução é

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158

construída discursivamente como instância que somente optou por adotar aquelas

medidas como consequência das ações por ela mencionadas, advindas de grupos

construídos nesse discurso como contrários ao Regime.

O locutor, nesse momento, deixa explícito o rótulo que atribui aos sujeitos

apresentados como contrários ao Regime, que atuavam com o objetivo de destruir o

Regime: são os “subversivos”. Além disso, menciona a existência, no país, do que foi

construído discursivamente como guerra, a qual é ainda determinada como

“revolucionária”. Esse conjunto (“processos subversivos” e “guerra revolucionária”) é

introduzido por “comprometidos”, o que constrói para aqueles processos e para aquela

guerra um rótulo de antirrevolucionário, ou seja, quem estava em guerra não era a

Revolução, mas os sujeitos a ela contrários; quem praticava ações de subversão não era

a Revolução, mas os sujeitos a ela contrários. Portanto, novamente, fica silenciado

qualquer enunciador que, porventura, esteja a apresentar o ponto de vista de que

subversivo e guerrilheiro é o Regime, e não o aludido antirrevolucionário.

O Quadro 22, além de consistir no último parágrafo do preâmbulo do Ato

Institucional número 5, apresenta explicitações maiores, cujo objetivo é justificar ainda

mais as ações constantes da parte normativa daquele instrumento.

Tendo em vista todas as análises desenvolvidas nesta tese, no Quadro 22

analisaremos apenas dois pontos que nos chamaram mais a atenção e que servem mais

de perto aos objetivos desta tese, ou seja, a imagem criada para os chefes da Revolução

e a ênfase dada aos objetivos do Ato Institucional número 5.

Quadro 22 – Ato Institucional número 5: excertos 01 02 03 04 05

CONSIDERANDO que todos esses fatos perturbadores da ordem são contrários aos ideais e à consolidação do Movimento de março de 1964, obrigando os que por ele se responsabilizaram e juraram defendê-lo, a adotarem as providências necessárias, que evitem sua destruição, Resolve editar o seguinte

Fonte: elaborado pelo autor.

Após reiterar a presença de “fatos perturbadores da ordem”, bem como a

existência de ideais contrários aos do Movimento, o locutor passa a mencionar os

sujeitos defensores do Regime, o que se dá a partir de “os que por ele se

responsabilizaram e juraram defendê-lo”. Trata-se, então, de sujeitos que não apenas se

comprometeram a defender o Regime, mas juraram assim atuar. Trata-se, portanto, de

sujeitos que, além de terem se responsabilizado (o que já é uma reiteração), juraram agir

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em sua defesa. Há, assim, a construção de sujeitos que estariam se colocando em uma

posição de quem adota “providências necessárias”. Além disso, são sujeitos que assim

atuam por se verem obrigados por uma situação de perigo. Enfim, os chefes do Regime,

que, inicialmente, se apresentavam como defensores da democracia e da legalidade, não

desconstroem essa imagem, antes, buscam reforçá-la, uma vez que suas ações visavam a

defender o que classificavam como ordem democrática. Faziam tudo isso, como

mencionado, não por vontade própria, mas obrigados por um cenário de desordem e de

riscos à ordem então estabelecida.

Merecem, ainda, destaque os termos “perturbadores da ordem”, “consolidação

do movimento”, “evitem sua destruição”, os quais reforçam a imagem de Regime criada

pelo locutor em ação.

Novamente, a partir de “perturbadores da ordem”, o locutor ressalta o discurso

militar, o qual enfatiza a ordem e a disciplina em sua prática. Assim, para um Regime

que é comandado pelos militares, tudo aquilo que possa colocar em risco tais pontos

deve ser combatido e eliminado. É, portanto, esse fator que, no discurso construído está

levando o Regime a adotar medidas mais drásticas.

A passagem “consolidação do movimento”, presente na sequência do parágrafo

em análise, parece fazer um destaque em relação ao aludido “Movimento”, colocando-o

como instância diversa em relação a “Nação”, ou mesmo a “Povo”, tão ressaltados em

diversos momentos dos Atos Institucionais editados. Parece, então, haver uma espécie

de contradição neste momento, uma vez que o locutor parece dar relevo ao Movimento

em si, como fim em si mesmo. Tudo o que o locutor diz a partir daí é relacionado ao

Movimento, e não à Nação ou mesmo à democracia.

Isso se dá, ainda, com “evitem sua destruição”. A referência construída para

“sua”, nessa passagem, não é a nenhuma outra instância, mas ao Movimento. Nesse

cenário, é ele que está em risco, é ele que deve ser defendido. E mais, é essa defesa que

motivou, tendo em vista o construído no Quadro 22, a adoção das medidas estabelecidas

pelo Ato então outorgado à Nação.

5.5- Conclusão do capítulo

Neste capítulo, procedeu-se à abordagem analítica dos dados selecionados, ou

seja, os textos dos preâmbulos/considerações iniciais dos Atos Institucionais números 1,

2 e 5, conforme detalhado no capítulo referente à Metodologia. Essa análise foi feita

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tomando-se em consideração, inicialmente, as maneiras como o locutor faz uso da

linguagem para apresentar discursivamente, ou seja, para construir objetos de discurso,

a Revolução e a Antirrevolução.

O primeiro passo dado nessas análises foi buscar elementos qualificadores do

Movimento instaurado em 1964, ou seja, os procedimentos adotados pelo locutor na

construção positiva do objeto discursivo Revolução. Além disso, foram analisados os

procedimentos discursivos adotados pelo locutor para construir o outro, ou seja, a

Antirrevolução, de maneira negativa, bem como os procedimentos através dos quais o

locutor respondeu, a partir de suas construções enunciativas, à realidade por ele

vivenciada, o que, também, interferiu na construção da Revolução como objeto

discursivo.

Com o objetivo de realizar relação entre este capítulo e o seguinte, no qual será

desenvolvida análise do corpus a partir de Gráficos, Diagramas e Quadros que

apresentam os itens lexicais propriamente ditos, veja-se o gráfico abaixo, que traz

sumarização de dados a serem a seguir trabalhados de forma mais profunda. Esse

gráfico corresponde aos números gerais relativos aos três atos que compõem o corpus

desta tese. Ele permite verificar, em uma visão ampla, como o locutor atuou na

construção do objeto discursivo Revolução. Até mesmo a classificação desses dados

mostrou-se bastante significativa nessa construção imagética, como será possível

perceber a seguir.

GRÁFICO 1- VISÃO GERAL DOS DADOS – ATOS INSTITUCION AIS 1, 2 e 5

Fonte: elaborado pelo autor.

0

5

10

15

20

25

30

35

40

Revolução

Vitória

Poder

Ordem

Movimento

Institucionalização

Legitimação

Nação

Governo

Objetivos

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Como mostra o gráfico agora em discussão, a incidência do signo linguístico

“revolução” é, disparadamente, a maior, em relação a todos os demais nomes que

compõem esse gráfico. Isso estaria demonstrando, numericamente, o que foi possível

perceber, tematicamente, quando da leitura realizada nas primeiras seções deste

capítulo, ou seja, a todo instante, o locutor busca ressaltar, enquanto construção de

objeto discursivo, o caráter revolucionário do Movimento encabeçado pelas Forças

Armadas nacionais.

Além disso, como foi possível observar ao longo deste capítulo, o signo em

análise liga-se a outros, que vão reforçando a construção de uma imagem positiva para o

que vinha acontecendo. É o caso de “revolução vitoriosa”, de “revolução que se tornou

vitoriosa”, entre outros. Tudo isso, como reiterado, constrói discursivamente para esse

Movimento a imagem de vitória, mas, ao mesmo tempo, lança para os adversários o

rótulo de não-vitoriosos, de derrotados.

A sequência da leitura do gráfico em análise permite verificar que “vitória” e

“poder” encontram-se com o mesmo número de incidências, sempre tendo em vista o

caráter macro desses dados.

Uma leitura interpretativa (do ponto de vista bakhtiniano de ativa compreensão

responsiva) desses três signos (“revolução”, “vitória” e “poder”) leva a reiterar o que foi

sentido ao longo deste capítulo: o locutor mais amplo buscou construir o objeto

discursivo Revolução como possuidor de caráter de revolução vitoriosa e detentora do

poder. É, também, possível perceber que esses signos (“vitória” e “poder”), em muitas

ocasiões, encontram-se como modificadores de “revolução” e de “constituinte”, por

exemplo. Assim, se a leitura isolada desses signos mostra o até aqui mencionado, a

leitura enquanto determinantes permite verificar, além da reiteração, de ênfases nos

signos enquanto tais, também a reiteração de vitória e de sua ligação com o processo

constitucional. Tudo isso, como se demonstrou, vai dando, na aludida construção do

objeto discursivo em questão, os traços de legitimidade democrática para aqueles fatos e

para a própria Revolução.

Em relação ao signo “ordem”, que tem a quarta maior incidência ao longo dos

três atos institucionais aqui analisados, pode-se dizer que consiste em termo de

interessante análise, tendo em vista, como se verá mais detidamente no Capítulo 6, os

momentos de sua utilização e a associação com outros signos utilizados pelo locutor. Na

verdade, sua aparição como o quarto mais utilizado decorre do fato de ter sido utilizado

no Ato Institucional número 5, o que, como se verá oportunamente, demonstra bem o

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que acontecia em 1968. Por isso, remetemos o leitor desta tese às análises do gráfico

correspondente ao preâmbulo desse Ato.

Até aqui, a partir do número de incidências dos signos ao longo dos Atos

Institucionais selecionados, foi possível perceber a categorização realizada pelo locutor

a respeito do Movimento e do Regime como um todo: revolucionário, vitorioso,

detentor do poder e garantidor da ordem interna. Paralelamente, também vai sendo

construído um viés de legitimação e de institucionalização. Isso pode ser percebido a

partir do número de incidências desses signos.

Tem-se, então, no gráfico analisado, nessa ordem, as presenças de “movimento”,

“institucionalização” e “legitimação”. A leitura que fazemos desses dados é que o

locutor busca a construção de uma imagem paralela para o que acontecia então, ou seja,

juntamente com o caráter revolucionário daqueles fatos, há a busca por construí-los

discursivamente como Movimento, como algo proveniente da Nação como um todo e

não de um pequeno grupo. Vemos essa possibilidade interpretativa a partir do fato de

que, nesse segundo grupo de signos (movimento, institucionalização, legitimação), é,

justamente, “movimento” o item encabeçador. Vemos, portanto, essa incidência como

uma transição entre o caráter revolucionário e o caráter legítimo-institucional construído

para o Movimento.

Os últimos três itens constantes do gráfico em análise mostram uma outra ênfase

dada pelo locutor em ação ao longo dos três atos aqui estudados: construir, enquanto

objeto discursivo, aquele Movimento com uma imagem de instância que tem objetivos

claros e caráter nacional. Apesar de serem os signos que contam com o menor número

de incidências, a partir dos critérios estabelecidos para a linha de corte, é forte a sua

presença como tópico do discurso do locutor, pois, sempre que necessário, o locutor

ressalta os objetivos do Movimento, a constituição do novo governo e seu ideal de

permanência. Tudo isso somado ao fato de que busca o engrandecimento nacional.

Esse gráfico, portanto, demonstra bem o que se poderia classificar como

“conjunto da obra” imagética, do objeto de discurso Revolução, buscado pelo locutor

em ação nos atos institucionais estudados nesta tese. Vê-se, assim, a busca pela

construção daquele estado de coisas a partir de três grupos temáticos, ou seja,

Revolução, institucionalização, governo. Sendo Revolução, é Movimento vitorioso que

toma o poder e busca a ordem; ainda como Movimento, atuou em sua legitimação e em

sua institucionalização, a fim de alcançar os objetivos por ela traçados; sendo, então,

Movimento revolucionário, buscou estabelecer e dar sustentação ao governo por ela

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apoiado, o qual visava, principalmente, ao engrandecimento nacional. Essa construção

pode ser percebida quando se faz o cruzamento do gráfico aqui analisado com o que

disse quando da leitura interpretativa dos preâmbulos dos Atos Institucionais.

Uma vez tecidos todos esses comentários e realizadas todas essas análises, pode-

se passar ao Capítulo 6, no qual, como mencionado, será desenvolvida análise, com viés

quantitativo, dos dados selecionados, a partir de Diagramas, Quadros Demonstrativos e

Gráficos.

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6- CONSTRUINDO O TODO DA OBRA: regularidades enunciativas

Como pretendemos demonstrar a partir do Quadro abaixo, o locutor funde, sob o

rótulo “autêntica revolução”, dois referentes: movimento civil e movimento militar.

Essa operação discursiva se repete em outros momentos dos Atos Institucionais

analisados, mas aparece de maneira bastante forte no primeiro deles. É de se esperar que

esse procedimento se deva à necessidade de o locutor contemplar grupos que lhe dariam

sustentação, ou seja, as Classes Armadas e a opinião pública nacional.

Veja-se, portanto, o Quadro mencionado2:

Quadro 23 – Revolução 1/Revolução 2

REVOLUÇÃO 1 REVOLUÇÃO 2 Movimento Movimento Movimento Civil Movimento Militar Grupo favorável: Opinião Pública Nacional

Grupo favorável: Classes Armadas

Fonte: elaborado pelo autor.

Assim, a leitura do Quadro 23 mostra a presença do termo “revolução”,

classificada esta como autêntica pelo locutor, desdobrando-se em, por um lado,

Movimento civil, opinião pública nacional; por outro lado, Movimento militar, Classes

Armadas.

A leitura do Capítulo 4 desta tese, quando se analisou o contexto histórico então

vivenciado, mostra que setores da mídia (por exemplo, o jornal Correio da Manhã)

defendiam a derrubada do então Presidente da República, mesmo que essa se desse a

partir de um movimento militar. Além disso, a história mostra que havia setores das

Forças Armadas que eram ligados a João Goulart e, portanto, eram contrários à

revolução pretendida pelo outro grupo. Esse contexto explicaria a forma de atuação do

locutor construído pelo Regime na elaboração do mencionado parágrafo. Assim, o

locutor construía um discurso de que havia dois movimentos em ação no país e que a

Revolução era o Movimento que contemplaria os reais desejos nacionais.

Em movimento similar está aquele relacionado à construção de imagem de

legalidade para o grupo que assumiu o poder a partir daquele Movimento civil e militar.

2 Utilizamos “Revolução 1” e “Revolução 2”, nesse quadro, a fim de visualizar a fusão realizada pelo

locutor, o qual apresenta a Revolução como uma fusão entre movimento civil e movimento militar; como uma fusão entre movimento apoiado pela opinião pública nacional e pelas classes armadas.

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Esse momento pode ser percebido a partir da leitura do terceiro parágrafo do Ato

Institucional número 1. Trata-se da aproximação entre “revolução vitoriosa” e “Poder

Constituinte”. Os Quadros abaixo, lidos em conjunto, mostram a realização de dois

movimentos enunciativos pelo locutor: um distanciamento entre os dois conceitos; uma

fusão entre eles. No contexto político que se observava no país, mencionado em

parágrafos anteriores desta tese, era necessário construir para a Revolução, enquanto

objeto discursivo, o caráter de legalidade democrática. Por isso, o locutor se valeu do

procedimento a ser apresentado a seguir, ressaltando, sempre, a legalidade, buscando,

sempre, legitimar-se junto aos seus grupos de apoio.

Quadro 24 – Revolução

REVOLUÇÃO Investe-se Vitoriosa

Autolegitimação Destitui governo Constitui governo Força normativa

Edita normas ilimitadamente Fonte: elaborado pelo autor.

Quadro 25 - Poder Constituinte PODER CONSTITUINTE

Manifesta-se Destitui governo Constitui governo Força normativa

Edita normas ilimitadamente Fonte: elaborado pelo autor.

No primeiro momento, como mencionado, há uma separação entre “revolução

vitoriosa” e “Poder Constituinte”. Essa separação pode ser percebida a partir de “se

investe”. Assim, a Revolução, que, enquanto objeto discursivo, inicialmente, não tinha

caráter de poder constituinte, passa a tê-lo assim que se realizou. Passa, então, a receber

tal poder e a exercitá-lo. Foi, por si mesma, investida nesse poder, dele tomando posse.

O Poder Constituinte, até então distinto da Revolução, é apresentado discursivamente

como um poder que se “manifesta”. Assim, o Poder Constituinte existe em uma

sociedade e, em dado momento, manifesta-se a partir de algum instrumento. Trata-se,

no caso, do Poder Constituinte originário, que dá origem a uma nova ordem social,

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como foi devidamente abordado no Capítulo 1 desta tese. O instrumento a que se refere

o locutor é a eleição popular ou uma revolução. Até este momento, Revolução e Poder

Constituinte surgem, no discurso do locutor, como instâncias distintas e autônomas.

Apenas a Revolução surgindo como forma de manifestação daquele.

De acordo com o próprio locutor, a Revolução foi investida nesse poder e

consistiu na “forma mais expressiva e radical do Poder Constituinte”. A partir desse

momento, passa a ser apresentada, enquanto construção de objetos discursivos, a fusão

entre as duas instâncias, o que é marcado, no texto, com “a revolução vitoriosa, como

Poder Constituinte”. O locutor, portanto, em sua busca por legitimar o Movimento que

ocorria e manter sua base de sustentação, funde em um rótulo (revolução vitoriosa) o

“movimento civil e militar” e o “Poder Constituinte” originário. Assim, o Movimento,

enquanto objeto discursivo construído, permanece militar, permanece fortemente ligado

ao viés de movimento armado, mas também permanece como força que busca a

democracia e a recolocação do país nos trilhos.

Assim, mantendo, nesse ambiente de busca por legitimidade junto a suas bases, a

ênfase em sua vitória, funde os aludidos rótulos e se apresenta discursivamente como a

instância capaz de se autolegitimar, capaz de destituir e constituir governos (o que fizera

e o que faria), com poderes legitimamente constituídos para criar uma legalidade

própria (força normativa). Tudo isso é construído para a Revolução a partir do momento

em que se aproxima, conceitualmente, do Poder Constituinte. É interessante, contudo,

retomar ponderação de Paulo Bonavides, apresentada no Capítulo 1 desta tese, a

respeito das constituições ditatoriais, as quais, conforme pondera o autor, revestem-se

de uma capa democrática e legalista, quando, em essência, visam a consolidar e dar

sustentação a uma ordem ditatorial. Tudo isso é possível observar a partir do momento

em que o locutor aproxima aqueles conceitos. É interessante, ainda, perceber que,

provavelmente para criar uma imagem aceitável junto à opinião pública nacional e junto

às Classes Armadas, o locutor ressalta a “força normativa” e o poder de editar normas

sem limitação pela realidade político-jurídica anterior. Por outras palavras, a partir da

aproximação revolução-constituinte, a fim de legitimar o primeiro item do grupo,

declara a seus interlocutores ter conhecimento do que se passava e da força política que

possuía naquele momento. Assim, na construção do objeto discursivo Revolução, sem

negar a força revolucionária (militar, classes armadas) do Movimento, sinaliza para o

caráter constitucional ou mesmo democrático da Revolução (opinião pública nacional,

civil).

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Os Quadros em discussão são corroborados pela seguinte passagem do

preâmbulo do Ato Institucional número 1: “para demonstrar que não pretendemos

radicalizar o processo revolucionário, decidimos manter a Constituição de 1946”.

Assim, constrói-se, enquanto objeto discursivo, explicitamente, como Movimento que

preservará uma ordem constitucional reconhecidamente democrática, ou seja, a

Constituição de 1946. Por outro lado, reitera o caráter revolucionário do Movimento e

lhe acrescenta ares processuais, o que reforça a tese da continuidade para a Revolução.

É interessante, também, pensar, a partir do fragmento transcrito no parágrafo

anterior, a respeito do interlocutor previsto pelo locutor a partir da utilização de

“demonstrar”, no Ato Institucional em análise. Inicialmente, cumpre recordar que o

locutor, nesse momento do Movimento Armado, buscava se legitimar perante a opinião

pública nacional e perante as Classes Armadas, como ficou demonstrado. As perguntas,

neste momento, são: demonstrar a quem? Que resposta o locutor busca criar nesse

interlocutor? A resposta a essas perguntas permitirá corroborar o movimento discursivo

desenvolvido pelo locutor logo no primeiro parágrafo.

Tendo em vista que o locutor visa a demonstrar o não radicalismo do

Movimento e que o faz a partir da declaração da manutenção do instrumento normativo

maior da ordem política anterior (a Constituição de 1946), pode-se concluir que essa

demonstração é direcionada à opinião pública nacional, que, através da imprensa,

posicionara-se contra o radicalismo e contra eventuais golpes. Evidentemente, essa

demonstração do não radicalismo não se dá de maneira isolada, antes, associa-se à

reiteração do processo revolucionário e da vitória do Movimento. Novamente, portanto,

o locutor constrói fusões entre posições. No caso, entre uma posição que, em tese, teria

um viés radical (o Movimento revolucionário) e outra, não radical e democrática

(Constituição de 1946).

Outro procedimento discursivo que o locutor utilizou para construir a

legitimação necessária ao Movimento, provavelmente em razão dos interlocutores

previstos para aquele texto, é a permanente repulsa ao uso do termo “golpe”, seja para

as próprias ações, seja para as ações de seus opositores, ou seja, é nula a presença do

aludido termo ao longo dos 17 Atos Institucionais. Enfim, o locutor constrói a

Revolução, enquanto objeto discursivo, como instância que luta pela reconstrução

nacional, ou mesmo contra grupos minoritários, mas não contra grupos golpistas.

Nesse sentido, o que se observa a partir da leitura dos Quadros apresentados

acima, formulados a partir do quarto parágrafo do preâmbulo do Ato Institucional

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número 2, cotejado com o texto do Ato Institucional número 2, é que o locutor mantém-

se firme na utilização de termos diversos de “golpe” para menções a quaisquer

movimentos em ação naquele período. Neste caso, o que o locutor utiliza é “revolução”,

que surge por três vezes, e “movimento”, que aparece por apenas uma vez no parágrafo

em análise, mas que é de grande recorrência ao longo dos textos dos Atos Institucionais

selecionados para esta tese. Juntamente a esse procedimento, é possível perceber a

reiteração do item “poder”, que, como se pode verificar, ocorreu por quatro vezes em

um parágrafo relativamente pequeno.

Paralelamente a essa utilização, está a menção a “limitação”, que se dá por três

vezes. É, então, interessante ponderar, neste momento, a partir do Ato Institucional

número 2, de que o parágrafo em discussão é um importante excerto, que o locutor,

quantitativamente, ressalta o poder daquele Movimento. Essa ênfase estaria ocorrendo

em momento histórico (outubro de 1965) no qual a Revolução já havia se

institucionalizado e se encontrava em atuação, mas no qual era contestada, inclusive,

por grupos que lhe deram apoio quando da tomada do poder. Sintomático, nesse mesmo

sentido, é o fato de que referências à limitação do Movimento tenham ocorrido por três

vezes, uma a menos que “poder”. Essa constatação se soma ao fato de que aquela

referência se dá em associação a “impôs” e a “negado”. Em nosso entendimento, isso

ocorre em razão de uma busca, por parte do locutor, de ressaltar, discursivamente, a

força daquele Movimento, mostrando que seus poderes eram de tal ordem, que somente

ela poderia impor limitações a si mesma. O Quadro abaixo, nesse sentido, mostra que o

locutor constrói do objeto discursivo Revolução a imagem de um sujeito que limita seus

próprios poderes, provavelmente, a fim de evitar eventuais abusos. Mostra, também,

que a oposição defendia que a Revolução não estaria apenas limitando seus poderes,

mas negando a si mesma.

Quadro 26- Revolução para Si/Revolução para o Outro REVOLUÇÃO PARA SI REVOLUÇÃO PARA O OUTRO Autolimitação de poderes Autonegação de si mesma

Fonte: elaborado pelo autor.

Diante do até aqui exposto, o que se observa da atuação do locutor ao longo dos

preâmbulos analisados neste capítulo e no Capítulo 5, embora ocorra de maneira mais

pronunciada no do Ato Institucional número 1, é a ênfase na vitória do Movimento

Armado, o que é apresentado, principalmente, a partir da reiteração do item lexical

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“vitória/vitoriosa”, em associação com “revolução”. Aliada a essa ênfase está a

declaração de que aquele Movimento nascera de anseios populares e que tinha objetivos

bastante caracterizados. O locutor também se esforça por apresentar a Revolução,

enquanto objeto discursivo, como Movimento vitorioso e que não se extinguiria

imediatamente após a sua implementação. Para tal, ressalta a consolidação da vitória e

do próprio Movimento.

Outro procedimento muito utilizado pelo locutor construído pelo Regime Militar

na elaboração dos Atos Institucionais é o da construção de diálogos com outros Atos

Institucionais e com vozes atribuídas à oposição. Embora seja possível verificar essa

atuação em diversos preâmbulos de Atos Institucionais, no do Ato Institucional número

2 ela é mais nitidamente verificável.

Se, no primeiro Ato Institucional, o locutor constrói o objeto discursivo

Revolução a partir de uma separação somada a uma mescla de conceitos, no segundo

Ato, o que ocorre é a separação entre “sim” e “não”, ou seja, entre a afirmação daquilo

que a Revolução é (sim) e daquilo que a Revolução não é (não); entre a afirmação

daquilo que, aos olhos da Revolução (sim), ocorreu e daquilo que, também aos seus

olhos (não), não teria ocorrido.

Como mencionado em outros momentos desta tese, o preâmbulo do Ato

Institucional número 2 pode ser visto como um texto de ligação entre a filosofia

presente no primeiro dos Atos e aquela constante dos demais. Por outras palavras: muito

do que foi defendido e ressaltado nos demais Atos começou a ser desenhado no segundo

deles. Esse momento na história do Movimento Armado explicaria os procedimentos

discursivos aqui descritos.

O locutor, então, reitera a ocorrência de uma autolimitação de poderes, mas

descarta a ocorrência de uma autonegação ou mesmo de uma extinção do movimento

classificado como revolucionário.

Os Quadros apresentados abaixo, vistos em seu conjunto, mostram bem esse

procedimento realizado pelo locutor. Percebe-se, aqui, um embate entre a voz que

defende o Movimento e aquela a ele contrária. Tais vozes encontram-se movimentadas

pelo locutor, que é, como se disse, construído pelo Movimento. O locutor, então,

colocando em cena essas duas vozes, trabalha para negar a que lhe fazia oposição.

Assim, mesmo no momento em que afirma estar viva a Revolução, retoma a voz que

afirma o contrário e lhe nega; no momento em que declara que a Revolução não

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retrocede, está a negar aquela voz que defende o contrário; no momento em que afirma

a promoção de reformas, retoma implicitamente a voz que diz terem terminado.

Quadro 27- A Revolução para a Situação REVOLUÇÃO

Viva/não retrocede Reformas (promover) Prática e disciplina democrática

Fonte: elaborado pelo autor.

Quadro 28 – A Revolução para a Oposição REVOLUÇÃO

Retrocede Desconstituição

Fonte: elaborado pelo autor.

Se, no preâmbulo do Ato Institucional número 2, verifica-se o grande número de

retomadas dialógicas de vozes contrárias ao Movimento Armado, para quase imediata

negação dessas vozes, no do Ato Institucional número 1, o movimento dialógico ocorre

de maneira diferente. No caso desse Ato, as retomadas têm por objetivo a

caracterização, enquanto objeto discursivo, e a legitimação do Movimento Civil e

Militar. Embora haja a negação de outras vozes, como, por exemplo, aquelas que

poderiam se referir à Revolução como tradutora de interesses de grupos minoritários, é à

construção de imagem discursiva do Movimento que o locutor visa. O que pode

explicar essa modificação por parte do locutor é, como mencionado, a alteração

histórica, ou seja, a alteração do contexto político vivenciado pela Revolução. Se, em

1964, havia apoio de boa parte da classe média e de grupos políticos importantes, essa

base de sustentação ao Movimento começa a enfraquecer e a cobrar o enfraquecimento

do Processo Revolucionário. O grupo que estava no poder percebe isso e, através do

Ato Institucional número 2, em seu preâmbulo, passa a responder àquele grupo agora

opositor.

Os Quadros apresentados a seguir, elaborados a partir do Ato Institucional

número 5, permitem verificar o que vimos classificando como polarização entre

Revolução e Antirrevolução. Em nosso entendimento, nesse Ato, a polarização é mais

fortemente marcada, uma vez que o momento político nacional exigia uma rígida

demarcação de território entre o Regime e seus inimigos, numa aplicação prática

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daquilo que estabelece a Doutrina de Segurança Nacional, abordada em capítulo

específico desta tese.

Nesse trabalho de polarização desenvolvido pelo locutor, percebe-se, no

primeiro parágrafo do preâmbulo do Ato Institucional número 5, uma demarcação a

respeito de dois temas mais específicos: uma construção de uma visão mais geral do

Movimento e a noção de ordem democrática.

A Revolução, então, se apresenta, enquanto objeto discursivo, como já estando

institucionalizada e como garantidora da legalidade, do Regime democrático, da ordem

interna e do prestígio internacional do país. Além disso, demonstra estar atenta à

necessidade de reconstrução do Brasil em diversos setores, entre eles, a moral.

O que chama a atenção nesse contexto é a maneira como o locutor passa a

construir a imagem discursiva dos movimentos contrários à Revolução: predomina a

categorização da Antirrevolução a partir de menções indiretas, verificáveis em

enunciados relacionados à própria Revolução e a seus objetivos.

Quadro 29- Revolução REVOLUÇÃO

Brasileira Institucionalizada Fundamentos e Propósitos Legalidade Regime Democrático Reconstrução econômica, financeira, política, moral Ordem interna Prestígio internacional Pátria

Fonte: elaborado pelo autor.

Quadro 30- Antirrevolução ANTIRREVOLUÇÃO

(Destruição econômica, financeira, política, moral)

(Desordem interna) (Desprestígio internacional)

(Contrariedade à Pátria) Fonte: elaborado pelo autor.

Como se pode observar, reiterando o que se disse em momento anterior desta

tese, ao falar em “reconstrução”, em “prestígio internacional” e em “pátria”,

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relativamente às ações e características da Revolução, o locutor abre uma possibilidade

interpretativa que pode permitir ao leitor ver na Antirrevolução “destruição”,

“desprestígio internacional” e “contrariedade à pátria”. Esses signos poderiam ser

somados à noção de “graves e urgentes problemas”, que, embora enfrentados pela

Revolução, são colocados em cena pelo locutor, em referência à Antirrevolução.

Atuação bastante semelhante, mormente no que tange à polarização entre

Revolução e Antirrevolução, pode ser encontrada quando o locutor tematiza “ordem

democrática”, o que buscaremos demonstrar a partir dos Quadros abaixo.

Quadro 31- Revolução

REVOLUÇÃO Ordem democrática Liberdade Dignidade de pessoa humana Combate à subversão Combate às ideologias contrárias às tradições Combate à corrupção

Fonte: elaborado pelo autor.

Quadro 32- Antirrevolução

ANTIRREVOLUÇÃO (Desordem democrática)

(Subversão) (Defesa de ideologias contrárias às

tradições) Fonte: elaborado pelo autor.

O que se observa, então, a partir desses Quadros, vistos conjuntamente, é a

reiteração da polarização imagética entre os dois polos acima mencionados. Se o objeto

discursivo Revolução é construído como de instância que busca a todo o momento

construir e preservar a ordem democrática, a Antirrevolução é discursivamente

construída como entidade que atua na construção da desordem e da antidemocracia. Se a

Revolução é apresentada discursivamente como atuando de maneira firme a fim de

combater ideologias contrárias às tradições nacionais, o inimigo é apresentado como

sujeito que busca implementar o que é contrário à cultura do Brasil. O mesmo ocorre

com a corrupção e com a subversão: se a Revolução busca combatê-las, é justamente a

Antirrevolução o vetor de tais ameaças à ordem nacional.

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Como se pode observar, a partir dos termos constantes entre parênteses no

Quadro 32, tais menções, em sua maioria, são depreendidas de enunciados

explicitamente utilizados em ligação à Revolução.

A partir dos Quadros 33 e 34, apresentados abaixo, é possível observar a

reiteração da polarização entre Revolução e grupos antirrevolucionários, novamente

construída pelo locutor presente no preâmbulo do Ato Institucional número 5. Essa

polarização é construída a fim de reforçar uma imagem discursiva positiva para a

Revolução e negativa para aqueles grupos opositores.

Assim, estão ligados à Revolução temas como governo, responsabilidade,

execução, compromisso, permanência, continuidade. Dessa forma, de acordo com essa

categorização, somente a Revolução teria um governo, sendo que somente este atuaria

em observação aos compromissos assumidos quando da tomada do poder. Somente a

Revolução busca atuar de maneira a preservar a ordem e a segurança internas. Essa

imagem, como reiterado ao longo desta tese, constrói para a Revolução o caminho

necessário para a adoção de medidas mais drásticas, a fim de eliminar o já classificado

inimigo da ordem nacional, ou seja, os grupos contrários à continuidade e à

permanência da obra revolucionária.

Quadro 33- Revolução REVOLUÇÃO

Governo da República Responsável Execução Ordem e segurança internas Compromissos Continuará Não pode ser detida

Fonte: elaborado pelo autor.

Quadro 34- Antirrevolução

ANTIRREVOLUÇÃO Grupos

Deter revolução Trabalhem/tramem/ajam

Fonte: elaborado pelo autor.

Em relação à Antirrevolução, como se pode observar a partir do Quadro 34,

aquele mesmo locutor que construiu para a Revolução uma imagem positiva, passa a

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construir, agora para a oposição, uma imagem negativa. Assim, depois de apontar,

reiteradamente, o lado positivo da Revolução e a consequente necessidade de sua

permanência, passa a utilizar termos com carga semântica negativa para fazer referência

à oposição. Isso se nota a partir da utilização de “trabalhem”, “tramem”, “ajam”. No

ambiente discursivo em que esses verbos são utilizados, recebem um tom de

conspiração, de atuação contra a ordem buscada pelo Regime. Isso demonstra uma

atuação já bastante reiterada pelo locutor, ou seja, a categorização negativa para o grupo

antirrevolucionário, o que, como se tem observado, se dá a partir da utilização de

recursos linguísticos os mais diversos, entre eles, a seleção de verbos e nomes com

carga semântica negativa. O Diagrama apresentado abaixo, construído a partir do

terceiro parágrafo do preâmbulo do Ato Institucional numero 5, dá uma boa dimensão

do até aqui mencionado:

Diagrama 1- Revolução/Antirrevolução

Poder Revolucionário Presidente da República Congresso Nacional Revolução Constituição Antirrevolução Obra Revolucionária Continuidade (Descontinuidade) Fonte: elaborado pelo autor.

Como se pode observar, esse Diagrama é composto por duas entradas, cujo

objetivo é demonstrar a polarização ocorrida entre situação (Revolução) e oposição

(Antirrevolução) durante os anos do Regime Militar. Os itens que se encontram fora dos

parêntesis dizem respeito a termos efetivamente escritos pelo locutor posto em cena

pelo Regime, ao passo que os itens presentes dentro de parênteses dizem respeito a

implícitos verificáveis na fala do aludido locutor. No caso do Diagrama em questão, a

partir de “continuidade”, pode-se constatar “descontinuidade”.

Assim, se a Revolução é apresentada discursivamente como garantida por um

poder revolucionário e se encontra ligada à Presidência da República, ao Congresso

Nacional e à Constituição, a Antirrevolução, enquanto objeto discursivo, embora de

uma maneira detectável apenas a partir das falas positivas do locutor a respeito da

própria Revolução, é construída como Movimento contrário a tudo aquilo. Trata-se,

como se vem buscando demonstrar até aqui, de reiteração do locutor na construção dos

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dois objetos discursivos. Tudo isso, repita-se, com o objetivo de construir junto à

opinião pública nacional, um cenário discursivo que permitisse à Revolução adotar

medidas que desrespeitassem, inclusive, a dignidade da pessoa humana.

No Diagrama abaixo, sempre construído a partir do preâmbulo do Ato

Institucional número 5, ao lado da já muitas vezes aqui analisada polarização entre

Revolução e Antirrevolução, encontra-se nova vinculação entre a Antirrevolução e

signos com carga semântica negativa. Porém, essa atuação do locutor toma uma direção

relativamente diversa da que vinha sendo seguida. Nesse momento, o locutor, que já

havia mencionado o elemento subversivo, apresenta setores que compunham esse

grupo: “setores políticos e culturais”. O inimigo, então, passa a ser nomeado.

Entendemos que esse processo de nomeação do inimigo permitiria à Revolução

estigmatizá-lo, inclusive, junto à opinião pública nacional, que, assim, passaria a rejeitar

ou mesmo a denunciar seus componentes, uma vez que passariam a ser vistos como

subversivos, como pessoas contrárias à ordem e à segurança nacionais.

Diagrama 2- Revolução/Antirrevolução Instrumentos jurídicos (legalidade) Vitoriosa Nação Defesa (da Nação) Revolução Desenvolvimento Antirrevolução Bem-estar Combate Destruição Subversão Setores políticos e culturais Fonte: elaborado pelo autor.

De mais a mais, o Diagrama apresentado acima demonstra, também, na

construção de objetos discursivos Revolução e Antirrevolução, a reiteração de

movimentos enunciativos por parte do locutor, ou seja, a todo instante, busca ressaltar a

legalidade do movimento político (instrumentos jurídicos), o fato de que o objetivo

maior do Regime Militar era a preservação da ordem nacional e a defesa da Nação.

Reitera, em termos de conjunto da obra, a luta contra o inimigo nacional, ou seja, contra

esses, agora nomeados, setores subversivos da política e da cultura, os quais são

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discursivamente construídos como sujeitos que combatem e querem destruir a

Revolução.

Enfim, o Diagrama abaixo permite construir uma síntese maior da categorização

realizada pelo locutor em ação no preâmbulo do Ato Institucional número 5 e, também,

dos demais Atos Institucionais aqui analisados.

Diagrama 3- Revolução/Antirrevolução

Adoção de medidas Impedimento Ideais Superiores Preservação da ordem Segurança

Revolução Tranquilidade Antirrevolução Desenvolvimento econômico e cultural Harmonia política e social (Desarmonia política e social) Processos Subversivos Guerra Revolucionária Frustração

Fonte: elaborado pelo autor.

Novamente, o locutor polariza o bem e o mal, ou seja, a Revolução e a

Antirrevolução, o amigo e o inimigo, sempre respectivamente. Novamente, o locutor

constrói para a Antirrevolução uma categorização negativa e uma positiva para a

Revolução. O que se nota de acréscimo ao até aqui realizado por esse locutor é a

presença de “guerra revolucionária”, a qual se encontra vinculada à atuação do inimigo.

Assim, é o inimigo que utiliza ações de guerra e que busca frustrar ou mesmo destruir a

permanência de uma ordem construída discursivamente como ideal à Nação. É esse

inimigo que busca desconstruir a harmonia social defendida pela Revolução e que busca

criar um clima de intranquilidade e de insegurança para o cidadão brasileiro. É,

justamente, a fim de impedir a atuação desse grupo minoritário e tão prejudicial ao país

que a Revolução se levanta e passa a “adotar medidas”. Essas medidas são apresentadas

na parte normativa do Ato Institucional número 5 e, como se sabe, consistiram em duros

golpes contra a democracia e a dignidade da pessoa humana, dando margem a

arbitrariedades as mais diversas contra essa mesma ordem democrática e contra essa

mesma segurança nacional.

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Uma vez construída uma breve visão do conjunto enunciativo da obra

revolucionária, quando se enfatizou a atuação do locutor na construção de um objeto

discursivo veiculador de uma imagem positiva, pode-se, nos momentos seguintes dessa

tese, a partir da análise de dois Quadros demonstrativos, passar à leitura da construção

discursiva realizada pelo mesmo locutor a respeito desses grupos antirrevolucionários.

Tudo isso será feito a partir da análise de signos levantados a partir dos estudos

desenvolvidos a respeito dos preâmbulos dos Atos Institucionais, em seu conjunto, que

constituem o corpus desta tese.

Veja-se, em primeiro lugar, a divisão de itens lexicais, referentes à

Antirrevolução, em “características dos opositores” e “ações dos opositores”. Esses

“opositores” são aqueles relacionados à oposição ao Regime Militar. É importante,

ainda, ponderar que se trata de signos levantados a partir da leitura dos preâmbulos dos

Atos Institucionais analisados nesta tese e que essa leitura tem a síntese como objetivo

maior.

A leitura da primeira coluna do Quadro abaixo permite perceber que a

categorização desses “opositores” se dá de forma a distribuí-los em subgrupos. No

primeiro desses grupos, há a rotulagem como “elementos” e como “pessoas”. No

segundo desses grupos, são rotulados como “grupo” e como “setores políticos e

culturais”. A partir do terceiro grupo, o que se observa são adjetivações como

“agitadores”, como “subversivos”, como “antirrevolucionários” e como “corruptos” e a

expressão “contrários aos ideais e à consolidação” do Movimento.

Como mencionado em momentos anteriores desta tese, o termo “elementos”

atribuído a essas “pessoas” veicula forte carga negativa aos opositores da Revolução.

Não se trata, portanto, de sujeitos ou mesmo de cidadãos, mas de pessoas ou de

elementos. Se o primeiro desses signos traz certa carga de neutralidade, o segundo deles

está muito relacionado ao senso comum do discurso criminal, em que as pessoas presas

ou em ação criminosa são rotuladas como elementos, como bandidos, entre outras

categorias. Esses rótulos estão bastante vinculados ao terceiro grupo aqui mencionado,

ou seja, o dos agitadores, dos subversivos, dos antirrevolucionários. Assim, além de

serem pessoas com características que as ligam ao submundo, ao mundo do crime,

também possuem as características de seres envolvidos em ações contrárias à ordem

revolucionária e à harmonia nacional. Diga-se, ainda, que se trata de pessoas corruptas.

Assim, além de tudo, recebem uma categorização que, por si só, dispensaria as demais

quando se trata construir uma imagem negativa para o inimigo: o corrupto. Por outras

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palavras, além de tudo, além de inimigo nacional, de instância a ser destruída, por tudo

o que foi dito e construído pelo locutor em ação, além de tudo isso, é elemento corrupto.

Essa construção imagética permite, como reiterado em diversos momentos desta tese, ao

Regime Militar em ação adotar as medidas de força que, gradativamente foi adotando ao

longo de sua existência.

Quadro 35- Características dos Opositores/Ações dos Opositores

CARACTERÍSTICAS DOS OPOSITORES

AÇÕES DOS OPOSITORES

Elementos Pessoas Grupo Setores políticos e culturais Agitadores Subversivos Antirrevolucionários Contrários aos ideais e à consolidação Corrupção (corruptos)

Afundavam Ajam Ameaçam Bolchevizar Combatê-la Desafiam Destruí-la Frustração (impedir) Sejam frustrados Trabalhem Tramem

Fonte: elaborado pelo autor.

Ainda em relação ao Quadro até aqui analisado, passe-se à segunda coluna, ou

seja, àquela na qual são descritas as ações dos opositores. Da mesma forma que ocorre

na primeira coluna do Quadro acima, aqui também se observa uma subdivisão nos

signos utilizados. Assim, observa-se a presença de “ajam”, “trabalhem” e “tramem”,

compondo um primeiro grupo; de “ameaçam”, “desafiam” e “combatê-la”, formando

um segundo grupo; “destruí-la”, “afundavam” e “bolchevizar”, formando um terceiro

grupo. Por fim, “frustração” e “sejam frustrados” compõem o quarto grupo de ações

atribuídas à Antirrevolução enquanto objeto discursivo. É possível, então, observar uma

espécie de gradação a partir da divisão dos signos acima, passando de um momento

inicial em que aqueles elementos apenas trabalham em uma causa contrária ao Regime,

mas que, posteriormente, partem para a ameaça/desafio/combate, chegando, então, à

destruição, ao afundamento e, no auge, à bolchevização do país. Paralelamente a todas

essas ações, fica construída a imagem discursiva de grupo que busca, por tudo isso,

frustrar os ideais supremos na defesa dos quais a Revolução se levantou.

Assim, a Revolução vai, paulatinamente, construindo um cenário discursivo que

lhe permitiria adotar medidas mais e mais duras contra tais elementos.

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Uma vez realizada essa breve síntese a respeito das reiterações de categorizações

a respeito do grupo antirrevolucionário e de suas ações, pode-se, a partir do Quadro

abaixo, passar à abordagem do que o locutor construía a respeito da situação então

vivenciada no país. Trata-se de uma situação, da caracterização de grupos e da

construção de rótulo de contrariedade para tudo o que vinha acontecendo até então.

Quadro 36- Situação/Grupos/Contrariedade

SITUAÇÃO GRUPOS CONTRARIEDADE Eliminada Bolsão comunista Purulência Fatos perturbadores Graves e urgentes problemas Guerra revolucionária Subversivos (processos)

Movimento (armado) Movimentos (armados)

Contra Ideologias contrárias Situação anterior (contra) Governo anterior Normatividade anterior Normatividade anterior a sua vitória

Fonte: elaborado pelo autor.

Preliminarmente, é possível observar que, da mesma maneira que vinha

ocorrendo em outros momentos, também em relação ao Quadro acima os grupos se

relacionam. Assim, situação, grupos e contrariedade possuem categorização que

ultrapassa cada uma dessas colunas. Vê-se, então, que esses grupos contrários à

Revolução trazem em si a situação eliminada e o governo anterior, também destituído

pela nova situação, a qual é apresentada no bojo da Revolução vitoriosa.

Observa-se, então, da primeira coluna, que o locutor constrói discursivamente a

situação relacionada à Antirrevolução como veiculadora de graves e urgentes

problemas. Entre esses problemas está a situação de guerra revolucionária, a qual é

colocada na conta do inimigo e não da própria Revolução vitoriosa. Além disso, estão

também nesse conjunto os processos subversivos e demais fatos classificados como

perturbadores da ordem estabelecida.

Paralelamente a esse canário discursivo está presente a referência a bolsão

comunista, bem como a purulência e a situação eliminada. Tais signos formam um

conjunto com características que resumem o inimigo construído, enquanto objeto

discursivo, pela Revolução: a situação eliminada ameaçava o país com o comunismo

internacional, o qual é infecção a ser eliminada de qualquer maneira, sob pena de se

espalhar e aniquilar o país. Cabia, então, nesse cenário discursivo, ao Regime Militar

realizar esse processo de limpeza, mesmo que a duras penas e a duros golpes. Mesmo

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que, para tal, os direitos humanos necessitassem ser, mesmo que momentaneamente,

sacrificados.

A leitura da segunda coluna, em conjunto com a terceira, permite contextualizar

ainda mais a descrição realizada pelo locutor a respeito da situação por ele categorizada.

Estavam, então, em atuação grupos categorizados como armados, contrários às

ideologias históricas nacionais e que tinham interesses bastante próprios. Tais grupos

foram categorizados como ligados ao governo anterior à Revolução e que defendiam

uma normatividade que, por ser veiculadora de valores contrários àquelas ideologias,

eram prejudiciais à nova ordem estabelecida e, portanto, deveriam ser eliminados da

mesma forma que o deveria ser aquela situação já rotulada como anterior e prejudicial.

Uma vez repassados alguns aspectos, vistos por nós como mais relevantes, a

respeito da categorização da Revolução e dos grupos a ela contrários, o que foi

desenvolvido a partir dos Diagramas e Quadros acima analisados, pode-se passar, a

seguir, à análise de recorrências de itens lexicais.

Como se sabe e como se buscou demonstrar ao longo deste trabalho, o Ato

Institucional número 1 consiste no documento fundador daquela nova ordem. É

interessante lembrar que, no momento em que foi editado aquele Ato, havia forte apoio

popular ao Movimento que então se levantava.

A leitura do Gráfico referente ao Ato Institucional número 1 mostra, entre outros

aspectos, a ênfase dada pelo locutor ao caráter revolucionário daquele momento do

Movimento, o que, como mencionado, é uma recorrência no trabalho do locutor ali em

atuação.

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GRÁFICO 2- ATO INSTITUCIONAL NÚMERO 1

Fonte: elaborado pelo autor.

Dado que chama a atenção é a presença do signo “vitória” nesse Gráfico. A

análise comparativa desse Gráfico com os outros dois, referentes aos Atos Institucionais

números 2 e 5, mostra que somente no primeiro deles há incidência daquela palavra. A

explicação para esse fato pode ser encontrada quando se percebe que, naquele momento,

o Movimento sagrou-se vitorioso e buscava se apresentar dessa maneira junto a seus

apoiadores, mas também a seus opositores. Isso se soma ao caráter de “fato consumado”

que o locutor, em várias oportunidades, buscava dar para o que aconteceu em 1964.

Mantendo a tendência apresentada no primeiro Gráfico aqui analisado, está a

palavra “poder”, presente como o nome de terceira maior incidência também no Ato

Institucional número 1.

Da mesma forma que ocorre e que se pode constatar a partir do Gráfico anterior,

essa palavra, além de ser a de terceira maior incidência dentro dos critérios de análise

estabelecidos, também aqui surge atrás de “revolução” e de “vitória”. É possível

perceber, então, que, já no primeiro momento da Revolução, o locutor tem por objetivo

construí-la como detentora do poder, por ter sido vitoriosa no processo de derrubada do

então Presidente da República.

Também digna de menção é a presença do signo “norma” no Ato Institucional

número 1. Essa palavra, que surge como a de quarta maior incidência nesse Ato, não

aparece com incidência significativa nos outros dois componentes do corpus. De toda a

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Categoria 1

Revolução

Vitória

Poder

Norma

Governo

Legitimação

Restauração

Congresso

Movimento

Objetivos

Ordem

Povo

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maneira, o que se observa é que, embora com incidência muito menor que a dos três

primeiros itens do Gráfico em discussão, “norma” encontra-se destacada do grupo

composto por “governo”, “legitimação” e “reconstrução”. Esse primeiro grupo,

composto por “revolução”, “poder”, “vitória” e “norma”, quanto a uma possível

interpretação, forma um conjunto que apresenta a Revolução como vitoriosa e detentora

do poder e que agiria dentro da normatividade a ser aprimorada, mas que já se

encontrava implementada a partir daquele Ato Institucional e da Constituição por este

modificada.

Como mencionado no parágrafo anterior, “governo”, “legitimação” e

“restauração”, também tendo em vista o igual número de incidências, formam um

conjunto cujo sentido corrobora o que foi dito em momentos anteriores desta tese. Além

disso, esse conjunto encontra-se constituído já no primeiro momento da Revolução,

quando, como ressaltado, se busca a aproximação do Regime com seus apoiadores.

Veja-se, então, que esse novo “governo” tinha como um de seus objetivos a

“restauração” do país. Justamente por se apresentar como possuidor desses ideais,

buscava sua “legitimação” junto ao povo.

Fazendo uma leitura comparativa do que consta do Gráfico em estudo com o que

pode ser detectado no Gráfico referente ao conjunto da Revolução (Gráfico 1), pode-se

perceber que “restauração” não apresenta número de incidências significativo, tendo em

vista o critério de corte para a composição do primeiro Gráfico. Apesar de surgir,

quanto ao segundo Gráfico, com uma incidência que a credencia para formar o segundo

grupo temático, não consta do primeiro deles, apesar de que, por assim dizer, de

maneira implícita, o tema da reconstrução se faz presente em todos os momentos dos

Atos aqui analisados.

Entendemos, quanto a esse signo, que o momento vivenciado no país, naquela

ocasião, levou o locutor do Ato Institucional número 1 a recorrer a ele a fim de marcar

claramente um dos objetivos do Movimento, ou seja, restaurar o que havia sido

destruído pelo governo anterior.

Passando ao próximo grupo de signos movimentados pelo locutor, percebe-se a

presença, com o mesmo número de incidências, de “congresso”, “movimento”,

“objetivos”, “ordem” e “povo”. Desse grupo, observa-se que “congresso” e “povo” não

apresentam incidência significativa que os credencie para compor o quadro geral do

Movimento. Da mesma forma que ocorre no Gráfico geral, o signo “movimento”

poderia se somar a “revolução”, ressaltando ainda mais o caráter revolucionário e

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popular do que ocorria naquela época. É interessante perceber que esse item

(“movimento”) tem incidência significativa também no Ato Institucional número 2, mas

não no Ato Institucional número 5.

Quanto a “congresso” e “povo”, que, como mencionado, não contam com

incidência significativa nos demais Atos Institucionais, compõem o Gráfico referente ao

primeiro deles. Assim, “congresso” é utilizado pelo locutor no momento em que este

ressalta que a Revolução dera àquele Colégio a legitimidade de que necessitava, o que

reforça o poder da própria Revolução e retira os poderes anteriores do Congresso.

Quanto à incidência de “povo”, é somente no primeiro dos Atos Institucionais que se

nota sua menção explícita. Analisando esse fato do ponto de vista do sentido gerado

pela atuação do locutor ao selecionar esses signos, pode-se concluir que esse jogo de

utilização e de não utilização marca bem os objetivos do Movimento: aproximar-se do

povo e se legitimar. As menções diretas e indiretas ao povo e a referência ao Congresso

criam um ambiente democrático para as ações do Movimento, como se buscou

demonstrar ao longo deste capítulo.

Os demais componentes desse grupo de signos (“movimento”, “ordem” e

“objetivos”), ainda mais por contarem com o mesmo número de incidências no Ato

Institucional número 1, constroem para a Revolução um rótulo de Movimento que tem

como um de seus objetivos o restabelecimento da ordem no país. Esses itens, como se

pode perceber ao longo deste capítulo, possuem alguns desdobramentos semânticos e

mesmo se aproximam de outros signos que os qualificam, como é o caso, por exemplo,

de “outros movimentos armados”, expressão já analisada em outro momento deste

capítulo. Além disso, “objetivos” não possui incidência significativa nos Atos

Institucionais número 2 e número 5, o que, em nosso entendimento, reforça, para o

primeiro dos Atos, a imagem de instrumento fundador de uma nova ordem, ou seja, por

ter essa característica, busca deixar claro para os interlocutores o fato de que tem

objetivos claros a serem seguidos. Como se observou, tais objetivos giram em torno da

“reconstrução” e da “restauração”, os quais se ligam a “segurança”, “ordem”,

“prestígio” e “economia”, por exemplo. Por fim, se “ordem” é citado em poucos

momentos do primeiro Ato Institucional, no quinto desses Atos a situação se inverte,

sendo o signo de segunda maior incidência, como se verá ainda neste capítulo.

Portanto, o que se pode observar a partir do preâmbulo do Ato Institucional

número 1 é que seu locutor busca categorizar a Revolução como fato já vitorioso e

possuidor do poder político necessário a tomar para si as rédeas do Congresso Nacional,

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mas também com poder normativo, o que lhe permite governar em prol do povo e da

Nação. É, além disso, um locutor que busca a legitimação daquele Movimento e se

mostra atento ao restabelecimento da ordem e à necessidade de reconstrução do país

como um todo. Essa categorização, percebida a partir da abordagem do Gráfico acima,

corrobora o que se disse quando da análise do preâmbulo do Ato Institucional número 1,

em momento anterior deste capítulo e do Capítulo 5.

Como será possível observar, essa categorização é recorrente nos demais Atos

Institucionais, apesar de se poder observar algumas alterações pontuais, quando se

analisa comparativamente um Ato Institucional em relação ao outro. Essa constatação

abre caminho para que se possa passar à abordagem do preâmbulo do Ato Institucional

número 2, a partir do Gráfico apresentado abaixo.

GRÁFICO 3- ATO INSTITUCIONAL NÚMERO 2

Fonte: elaborado pelo autor.

Da mesma forma que ocorre em relação aos outros Gráficos aqui analisados,

também no que se refere ao preâmbulo do Ato Institucional número 2 é possível

verificar três grupos de incidência de nomes.

No primeiro desses grupos há “revolução”, “poder” e “movimento”. No segundo

desses grupos é possível observar “nação” e “institucionalização”. Por fim, no terceiro

grupo estão presentes “tranquilidade”, “paz”, “forças armadas”, “legitimação”, “bem-

estar”, “recuperação”.

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Categoria 1

Revolução

Poder

Movimento

Nação

Institucionalização

Tranquilidade

Paz

Forças Armadas

Legitimação

Bem-estar

Recuperação

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Em relação ao primeiro e ao segundo grupos não há muito mais a ser

acrescentado, tendo em vista o que já foi dito em diversos momentos desta tese. O que

se ressalta, contudo, como mencionado no momento em que se analisou cada um dos

parágrafos do Ato Institucional número 2, é a reiteração desses itens lexicais realizada

pelo locutor. Essa atuação visa a reforçar a imagem construída para aqueles fatos, ou

seja, no preâmbulo em estudo, o locutor reitera o caráter revolucionário do Movimento

e o fato de ser o detentor do poder nacional desde 1964, quando derrubou a situação

política anterior.

O que salta aos olhos nesse momento das análises do Gráfico acima é a

tematização de “ordem” dada pelo locutor. Apesar de não menção explícita significativa

desse signo no preâmbulo do Ato Institucional número 2, o locutor parece desmembrar

esse item em outros, que lhe dão maior qualificação, que explicitam de maneira mais

clara o entendimento do locutor a respeito da noção de “ordem”. Isso pode ser

observado a partir de “tranquilidade”, “paz”, “forças armadas” e “bem-estar”. Em nosso

entendimento, esses signos estariam alcançados pelo campo semântico de “ordem”.

Assim, em um ambiente de ordem, há tranquilidade, paz e bem-estar do povo. Além

disso, essa paz e essa tranquilidade poderiam ser garantidas pela atuação ou pela mera

presença das Forças Armadas. Apesar de se tratar de signos com incidência individual

relativamente pequena nesse preâmbulo, o somatório desses itens faz a noção de

“ordem” ultrapassar a de “poder”, ficando, assim, tal item com a segunda maior

incidência nesse texto.

Assim, ficaria reiterada a categorização do Movimento como revolucionário e

como garantidor da ordem, ultrapassando o viés de Movimento titular do poder político.

Como destacado em diversos momentos desta tese, tal processo de categorização é

recorrente na atuação do locutor em ação nos Atos aqui estudados.

Por fim, passe-se à abordagem do Gráfico relacionado ao preâmbulo do Ato

Institucional número 5, que, como se sabe, foi o instrumento normativo que, no

contexto da nova ordem criada, em 1964, pelo Regime Militar, abriu uma nova ordem,

chegando a ser classificado como o instrumento que marcou a “revolução dentro da

Revolução”.

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GRÁFICO 4- ATO INSTITUCIONAL NÚMERO 5

Fonte: elaborado pelo autor.

A leitura do Gráfico relativo ao preâmbulo do Ato Institucional número 5

permite verificar muito do que acontecia naquele momento da história do Brasil. Como

se sabe, a convulsão social que se observava naquela ocasião levou ao que se classificou

como “endurecimento do Regime”.

Ao lado da reiteração de vários signos presentes em momentos outros dos Atos

Institucionais editados, um fato chama a atenção na leitura do Gráfico acima, o que se

soma ao ocorrido em relação a “ordem”, ainda no preâmbulo do Ato Institucional

número 2. Pela primeira vez, um signo é utilizado mais vezes do que “revolução”. É o

que acontece com “ordem” e seus desdobramentos.

Da mesma forma que aconteceu no preâmbulo do Ato Institucional número 2, há

menções indiretas ao tema “ordem”, o que ocorre a partir da utilização de “defesa” e

“segurança”. Se, no mencionado preâmbulo, as incidências somadas não ultrapassam

“revolução”, aqui esse fenômeno ocorre, ou seja, o somatório das incidências de

“ordem”, “defesa” e “segurança” ultrapassa o número de incidências de “revolução”.

Acreditamos que esse fato se deve ao contexto político nacional da época, em que a

Revolução, que já se encontrava implementada, embora já muito contestada, deparava

com sérios problemas de segurança pública, com uma luta armada bastante

pronunciada. Assim, de acordo com as indicações do Gráfico acima, a manutenção da

ordem (e, paralelamente, da segurança) teria tomado uma importância ainda maior do

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Categoria 1

Revolução

Ordem

Ideais

Segurança

Presidente

Institucionalização

Desenvolvimento

Defesa

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que a Revolução propriamente dita. Essa percepção ainda é corroborada pela presença

de “defesa” na composição desse grupo semântico, ou seja, o momento era de

preservação da ordem, de defesa dessa mesma ordem, de garantia da segurança

nacional, a fim de se preservar o Regime então instalado no país.

Evidentemente que, como mencionado quando da análise interpretativa do

preâmbulo do Ato Institucional número 5, permanecia na mira do locutor a

categorização do Movimento como revolucionário, como regido pelo Presidente da

República, como institucionalizado e perseguidor ferrenho de seus objetivos, tudo isso

em prol do desenvolvimento da Nação. Porém, esses rótulos ficaram em segundo plano,

em razão da luta revolucionária em busca de sua preservação e da eliminação do

inimigo, do subversivo.

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CONCLUSÃO

Analisar o corpus construído para esta tese tendo em vista a construção

referencial, sendo esta vista a partir da teoria bakhtiniana do dialogismo, permitiu

perceber interessantes interações, seja entre o locutor construído pela Revolução e

aquele construído pelo grupo que lhe fazia oposição, seja entre os diversos Atos

Institucionais editados durante aquele período do Regime Militar. Foi possível, nesse

sentido, perceber que é a partir de antecipações de atitudes responsivas que o locutor ali

presente realiza a seleção de recursos linguísticos a fim de construir a imagem da

Revolução. Foi, também, possível verificar que esse locutor também atua

responsivamente quando edita seus Atos Institucionais, haja vista que, nesses

documentos, dialoga com a visão por ele construída a respeito da realidade que o

circunda. Por fim, a partir dos Diagramas, Quadros e Gráficos construídos para a análise

aqui desenvolvida, foi possível perceber que, nos próprios textos dos preâmbulos, o

locutor realiza uma organização dialógica das informações e teses ali apresentadas.

Vê-se, então, a prática discursiva como responsável por transformar e por

reproduzir a sociedade. Tal consideração, como se defendeu até aqui, remete a pensar o

discurso nas diversas estruturas sociais e nas lutas pelo poder, em relacionamento

complexo, variável e contraditório. Tudo isso torna temporárias, parciais e

contraditórias as relações entre o discurso e as aludidas estruturas sociais, haja vista o

fato de que os locutores buscam a criação de uma determinada realidade, a partir de seus

objetivos. Ocorre que, no processo analisado nesta tese, em que o Movimento Vitorioso

busca criar e manter a realidade à sua maneira e com seus objetivos, surgiu uma luta,

que durou mais de vinte anos. Os enunciados provenientes dos grupos em disputa

demonstram que estes buscam manter na sociedade aquilo que lhes convém e

transformá-la a partir da exclusão daquilo visto como prejudicial.

Sendo o discurso uma prática social, refere-se às relações de poder e às

entidades coletivas; sendo uma prática ideológica, refere-se aos significados de mundo,

construídos naquelas relações. Essa visão do discurso como práticas social e ideológica

levou a considerar, na leitura desenvolvida ao longo deste trabalho, o estabelecimento, a

manutenção e a transformação de relações de poder, bem como a constituição,

naturalização, manutenção e transformação de significados nas mesmas relações. É,

então, através do discurso que relações de poder, ideologias e convenções se articulam.

Nesse sentido, observa-se que, na esfera política, surgiu, no Brasil, com o aparecimento

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de um grupo interessado em assumir o poder, uma rearticulação entre as forças. Se,

inicialmente, o que havia era uma tentativa de deposição de uma ordem vista como

prejudicial ao país, embora democrática, por uma ordem inicialmente autoritária, mas

construída como inevitável e provisória, com a concretização desta e sua luta pela

permanência a qualquer custo, houve nova distribuição de poder, o que rearticulou o

discurso político nacional. Evidentemente, houve incidência de modificações nos

discursos produzidos e também na construção de objetos discursivos, como buscamos

demonstrar ao longo desta tese.

O desenvolvimento das leituras dos Atos Institucionais selecionados para a

composição do corpus desta tese não perdeu de vista o fato de que o texto/discurso é

influenciado por questões de ordem social, o que tornou possível abordar as

combinações entre signos/textos e significados, sendo que os textos possuem

significados potenciais, que podem ser selecionados a partir de processo de

interpretação. A análise do corpus demonstrou, então, serem as escolhas interpretativas

do locutor, em atuação nos preâmbulos dos Atos Institucionais, a respeito do que

ocorria no País, na construção, dentre outros, do objeto discursivo Revolução Vitoriosa,

que fazem uma imagem prevalecer sobre a outra, ou seja, a imagem positiva da atuação

do Regime e a negativa da atuação da oposição ao Regime.

Tais escolhas, mencionadas no parágrafo anterior, como buscamos demonstrar

ao longo desta tese, dizem respeito, também, à construção de objetos discursivos. Além

disso, variam entre os tipos de discurso, que, evidentemente, também são influenciados

por questões de ordem social. Por outras palavras, as mencionadas escolhas resultam de

convenções sociais em atuação em um dado grupo social. Ler um texto sob esse ponto

de vista pode levar a conhecer relações e identidades sociais ali embutidas, uma vez que

os sujeitos envolvidos na atividade de linguagem, quando atuam, são influenciados por

fatores sociais e deixam marcas dessa influência nos enunciados que produzem, as quais

aparecem também na construção de objetos discursivos, no processo de referenciação.

Tendo em vista os apontamentos realizados ao longo desta tese, foi possível

considerar o texto como traços do processo de produção ou como pistas para o processo

de interpretação (como marcado pela atividade interacional, dialógica e multifacetada

que é a linguagem). Na análise dos preâmbulos dos Atos Institucionais, percebeu-se a

ocorrência de diálogos entre os três textos selecionados, bem como de referências,

menos ou mais diretas, do locutor desses textos aos adversários do Regime. Nessa

leitura foi possível perceber, a partir das aludidas pistas, que o Regime busca se

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construir como o defensor da Nação e reduzir o adversário à condição de inimigo.

Nesses dois processos, como se buscou demonstrar nos capítulos destinados à análise do

corpus selecionado, foram colocados em cena os recursos trazidos pelos sujeitos

participantes do discurso, movimentados na produção/processamento textual, os quais

observaram influência de ordem social, provenientes das estruturas sociais, normas,

convenções, ordens de discurso, da busca por elementos do discurso e da maneira como

são buscados esses elementos.

No que se refere à abordagem do corpus estudado nesta tese, sua análise

mostrou, dentre outros dados, a distribuição do texto em “Revolução” e

“Antirrevolução”, enquanto grupos temáticos.

Abordar tais textos no plano da mencionada divisão em dois temas maiores

permitiu seguir a estruturação dada pelo locutor ao seu texto, tendo em vista, entre

outros aspectos, a distribuição de itens lexicais ao longo dos textos, nas aludidas

subdivisões em temas, bem como a articulação desses temas entre si. Esse processo

permitiu a articulação de diversos rótulos na construção dos rótulos maiores

“Revolução” e “Antirrevolução”.

No que ainda se refere ao corpus construído para a análise nesta tese, diga-se

que, a partir daqueles textos, foram tomadas as referências feitas a Revolução e a

Antirrevolução, enquanto temas, pelo locutor dos aludidos textos. O locutor, nesse

sentido, na elaboração desses preâmbulos, realizou uma divisão entre EU e OUTRO,

dotando o primeiro grupo de carga positiva e o segundo, de carga negativa. Ao primeiro

grupo, como mencionado em momentos anteriores deste trabalho, tendo em vista os

objetivos desta tese, chamamos Revolução; ao segundo, Antirrevolução.

Evidentemente, o locutor fala (e se apresenta dessa maneira) a partir do primeiro grupo,

constrói-se como capaz de não somente reorganizar, mas também salvar o país e

constrói o outro (especificamente, visto como o opositor), com toda a carga negativa, no

segundo grupo, apresentando-o como ameaça nacional. Observou-se, nesse sentido, um

diálogo com ramo da Ciência Política que defende a tese de que, em situações políticas

como a vivenciada no Brasil de então, aquele que se opunha ao que se convencionou

denominar “situação” não é apenas um adversário, mas um inimigo a ser eliminado.

Diga-se, então, que os rótulos atribuídos à Revolução e à Antirrevolução foram aqui

tomados como signos, resultado de uma escolha ativa por parte de um locutor, que

realizou essa escolha a partir de um processo interpretativo da realidade na qual se

inseria e gerador de respostas ativas por parte de outros interlocutores. Foi, assim,

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realizada abordagem discursiva mais profunda, a partir da leitura de termos postos em

uso pelos locutores presentes nos preâmbulos dos Atos Institucionais selecionados, os

quais foram analisados a partir de sua relação com a disputa política que ocorria e tendo

em vista a construção de objetos discursivos. Essa leitura fez referência, mesmo

implícita, em diversos momentos, à construção histórica realizada em capítulo

específico desta tese. Assim, buscou-se realizar contraponto entre as imagens

construídas a respeito dos dois grupos e os momentos nos quais foram criadas. Diga-se,

por outras palavras, que o objeto discursivo Revolução foi criado como grupo capaz de

desmobilizar uma ordem então constituída, vista como entidade a ser eliminada. Esse

fato, como mencionado em diversos momentos desta tese, demonstra haver lutas

hegemônicas, bem como a busca pelo silenciamento da Antirrevolução e pelo relevo da

Revolução.

No que se refere ao preâmbulo do Ato Institucional número 1, percebeu-se que o

locutor ali construído busca se legitimar e legitimar a nova ordem junto àqueles que lhe

davam sustentação, bem como àqueles que, ou lhe eram indiferentes, ou lhe eram

opositores. Foi possível perceber uma postura mais conciliadora desse locutor até

mesmo na seleção de recursos linguísticos para a formulação do texto. Já no preâmbulo

do Ato Institucional número 2, observa-se uma leve mudança na postura desse locutor,

provavelmente em razão do aumento das pressões exercidas por aqueles que se

posicionavam contra a nova ordem estabelecida. Ali, o locutor busca enfatizar o caráter

de permanência do Regime e, para tal, desenvolve um processo de diálogo entre o

preâmbulo do Ato Institucional número 2 e o de número 1, bem como do Regime com a

opinião pública nacional. Nesse contexto, foram ressaltados, nesse preâmbulo, a

imagem de força do Regime e seu objetivo de permanência. Por fim, no preâmbulo do

Ato Institucional número 5, por assim dizer, no auge da crise política, o discurso do

locutor construído pelo Regime se torna mais duro, havendo, inclusive, referências

diretas aos opositores ao Regime.

Outro ponto que foi possível verificar a partir da leitura dos textos selecionados

para constituir o corpus desta tese foi o forte diálogo desses enunciados com aqueles

movimentados na construção da Doutrina de Segurança Nacional. Como buscamos

demonstrar, acreditamos ser esse o ponto chave para a compreensão do processo

dialógico de referenciação desenvolvido pelo locutor em atuação nesses textos editados

nos anos iniciais do Regime Militar. Basta que se observe, como mencionado no

Capítulo 1 desta tese, que a essência ideológica da mencionada doutrina é a criação de

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um ambiente de guerra, no qual aqueles sujeitos/instituições que são opositores ao

Regime implementado, ou mesmo aqueles sujeitos/instituições que não tomaram

partido, são considerados inimigos da ordem nacional. Assim, devem ser eliminados

praticamente a qualquer custo. Essa filosofia pode ser percebida mais claramente no Ato

Institucional número 5, quando o locutor cria e nomeia os aludidos inimigos. Porém,

também no primeiro dos Atos Institucionais editados, o locutor cria inimigos e aponta

para a necessidade de seu aniquilamento: são os integrantes e os parceiros de um

“governo, que deliberadamente se dispunha a bolchevizar o País”. Enfim, no que tange

à construção de imagens e ao diálogo referencial travado na construção dessas imagens,

em linhas gerais, foram esses os pontos de maior relevância ao longo do

desenvolvimento desta tese.

De tudo isso, um outro elemento também deve ser aqui considerado: a

contribuição deste texto com as atividades de leitura de textos os mais diversos, dentre

eles, o texto normativo. Como foi possível perceber, em um enunciado, há várias vozes

em atuação, as quais se apoiam e se enfrentam, se complementam e se eliminam. Nos

enunciados aqui estudados, foi possível observar tais movimentos enunciativos de

forma relativamente clara. Não foi, contudo, tão nítido o diálogo dos Atos com a

Doutrina de Segurança Nacional, haja vista estar esta bem camuflada nesses Atos. Isso,

por si só, demonstra, em relação às atividades de leitura, o seu complexo caráter,

proveniente, principalmente, do fato de ser a linguagem dialógica, multifacetada,

veiculadora de ideologias. Assim, um dos pontos que se buscou abordar aqui, embora

paralelamente à abordagem principal, foi a demonstração de habilidades que o leitor

deve ter quando depara com as atividades de leitura.

Assim, dentre as tantas habilidades, o leitor precisa ter a consciência de que os

textos são produzidos por sujeitos inseridos em esferas de comunicação, sendo tais

sujeitos influenciados por fatores os mais diversos, como, principalmente, os fatores

ideológicos. O principal a se observar, nesse cenário de habilidades, é que o produtor

textual atua observando seus interesses e o auditório no qual interage. Dessa forma,

também coloca em cena diversos mecanismos, a fim de alcançar seus objetivos pessoais

e os de seu grupo. Tudo isso precisa ser observado pelo leitor, a fim de produzir para

um texto lido o sentido, bem como de não se deixar enganar por manobras ardilosas

desse locutor.

A leitura dos preâmbulos dos Atos Institucionais, a partir desse enfoque, levou a

observar objetivos, interesses e ideologias do produtor textual, bem como os recursos

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argumentativos postos em cena a fim de levar os interlocutores a aceitar os

procedimentos adotados pelo Regime, visando à sua manutenção no poder e à

aniquilação de todos aqueles que a ele se opunham. Embora secundário, este foi um dos

objetivos que este trabalho buscou alcançar: levar o leitor deste texto a perceber, na

prática, que também o texto normativo (justamente por ser um texto) é fortemente

motivado pela ideologia do grupo social no qual é produzido. Nesse sentido, este

trabalho abordou um corpus constituído por enunciados que permitiram a verificação da

compreensão ativamente responsiva, tendo em vista o relacionamento entre

“Revolução” e grupos “Antirrevolucionários”, que ocorreu no campo político dos anos

do Regime Militar. Além do mais, esta pesquisa permitiu verificar como se deu a

evolução dos dois objetos de discurso ao longo dos momentos por que passou o País.

Em linhas bem gerais, foi isso o que se buscou mostrar e demonstrar ao longo

das páginas desta tese.

Sempre chegamos ao sítio aonde nos esperam. (José Saramago)

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DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado. São Paulo: Saraiva. 2003. DINIZ, Antônio Carlos de Almeida. Teoria da Legitimidade do Direito e do Estado: uma abordagem moderna e pós-moderna. São Paulo: Landy Editora, 2006. DUCROT, Oswald. O dizer e o dito. Campinas/SP: Pontes, 1984. FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e mudança social. Brasília: Editora Unb. 2001. FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucília de Almeida Neves. O Brasil Republicano: o tempo da ditadura – regime militar e movimentos sociais em fins do século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. FIORIN, José Luiz. O regime de 1964: discurso e ideologia. São Paulo: Atual Editora. 1988. FRANCIS, Paulo. Trinta anos esta noite: 1964, o que vi e vivi. São Paulo: Companhia das Letras. 1994. FRANCIS, Paulo. O Brasil no mundo: uma análise política do autoritarismo desde suas origens. 1985. FREIRE, Natália de Miranda. Técnica e Processo Legislativo: comentários à lei complementar n. 95/98, introduzida pela lei complementar n. 107/01. Belo Horizonte: Del Rey, 2002. FRÓES, Hemílcio. Véspera do Primeiro de Abril ou Nacionalistas x Entreguistas. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1993. GADAMER, Hans-Georg. O Problema da Consciência Histórica. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas Editora, 1998. GOFFMAN, Erving. A representação do eu na vida cotidiana. Petrópolis: Editora Vozes, 1975. KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça. Argumentação e linguagem. 13 ed. São Paulo: Cortez, 2011. KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça. Introdução à linguística textual. São Paulo: Wmf Martins Fontes. 2013. LOPES, Maria Ângela Paulino Teixeira. Referenciação e gênero textual – atividades sócio-discursivas em interação. In: MACHADO, Ida Lúcia e MELLO, Renato (Org.). Gêneros: reflexão em análise do discurso. Belo Horizonte: NAD/POSLin, FALE/UFMG, 2004, p. 205-219. LOPES, Maria Angela Paulino Teixeira. Processos de referenciação na perspectiva sócio-discursiva. 2004. Tese (Doutorado). FALE/UFMG, 2004. 2º capítulo, p. 45-72.

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ANEXOS ANEXO 1

ATO INSTITUCIONAL (Nº 1)

À NAÇAO

É indispensável fixar o conceito do movimento civil e militar que acaba de abrir ao Brasil uma nova perspectiva sobre o seu futuro. O que houve e continuará a haver neste momento, não só no espírito e no comportamento das classes armadas, como na opinião pública nacional, é uma autêntica revolução.

A revolução se distingue de outros movimentos armados pelo fato de que nela se traduz, não o interesse e a vontade de um grupo, mas o interesse e a vontade da Nação.

A revolução vitoriosa se investe no exercício do Poder Constituinte. Este se manifesta pela eleição popular ou pela revolução. Esta é a forma mais expressiva e mais radical do Poder Constituinte. Assim, a revolução vitoriosa, como Poder Constituinte, se legitima por si mesma. Ela destitui o governo anterior e tem a capacidade de constituir o novo governo. Nela se contém a força normativa, inerente ao Poder Constituinte. Ela edita normas jurídicas sem que nisto seja limitada pela normatividade anterior à sua vitória. Os Chefes da revolução vitoriosa, graças à ação das Forças Armadas e ao apoio inequívoco da Nação, representam o Povo e em seu nome exercem o Poder Constituinte, de que o Povo é o único titular. O Ato Institucional que é hoje editado pelos Comandantes-em-Chefe do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, em nome da revolução que se tornou vitoriosa com o apoio da Nação na sua quase totalidade, se destina a assegurar ao novo governo a ser instituído, os meios indispensáveis à obra de reconstrução econômica, financeira, política e moral do Brasil, de maneira a poder enfrentar, de modo direto e imediato, os graves e urgentes problemas de que depende a restauração da ordem interna e do prestígio internacional da nossa Pátria. A revolução vitoriosa necessita de se institucionalizar e se apressa pela sua institucionalização a limitar os plenos poderes de que efetivamente dispõe.

O presente Ato institucional só poderia ser editado pela revolução vitoriosa, representada pelos Comandos em Chefe das três Armas que respondem, no momento, pela realização dos objetivos revolucionários, cuja frustração estão decididas a impedir. Os processos constitucionais não funcionaram para destituir o governo, que deliberadamente se dispunha a bolchevizar o País. Destituído pela revolução, só a esta cabe ditar as normas e os processos de constituição do novo governo e atribuir-lhe os poderes ou os instrumentos jurídicos que lhe assegurem o exercício do Poder no exclusivo interesse do Pais. Para demonstrar que não pretendemos radicalizar o processo revolucionário, decidimos manter a Constituição de 1946, limitando-nos a modificá-la, apenas, na parte relativa aos poderes do Presidente da República, a fim de que este possa cumprir a missão de restaurar no Brasil a ordem econômica e financeira e tomar as urgentes medidas destinadas a drenar o bolsão comunista, cuja purulência já se havia infiltrado não só na cúpula do governo como nas suas dependências administrativas. Para reduzir ainda mais os plenos poderes de que se acha investida a revolução vitoriosa, resolvemos, igualmente, manter o Congresso Nacional, com as reservas relativas aos seus poderes, constantes do presente Ato Institucional.

Fica, assim, bem claro que a revolução não procura legitimar-se através do Congresso. Este é que recebe deste Ato Institucional, resultante do exercício do Poder Constituinte, inerente a todas as revoluções, a sua legitimação.

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Em nome da revolução vitoriosa, e no intuito de consolidar a sua vitória, de maneira a assegurar a realização dos seus objetivos e garantir ao País um governo capaz de atender aos anseios do povo brasileiro, o Comando Supremo da Revolução, representado pelos Comandantes-em-Chefe do Exército, da Marinha e da Aeronáutica resolve editar o seguinte.

ATO INSTITUCIONAL

Art . 1º - São mantidas a Constituição de 1946 e as Constituições estaduais e respectivas Emendas, com as modificações constantes deste Ato.

Art . 2º - A eleição do Presidente e do Vice-Presidente da República, cujos mandatos terminarão em trinta e um (31) de janeiro de 1966, será realizada pela maioria absoluta dos membros do Congresso Nacional, dentro de dois (2) dias, a contar deste Ato, em sessão pública e votação nominal.

§ 1º - Se não for obtido o quorum na primeira votação, outra realizar-se-á no mesmo dia, sendo considerado eleito quem obtiver maioria simples de votos; no caso de empate, prosseguir-se-á na votação até que um dos candidatos obtenha essa maioria.

§ 2º - Para a eleição regulada neste artigo, não haverá inelegibilidades.

Art . 3º - O Presidente da República poderá remeter ao Congresso Nacional projetos de emenda da Constituição.

Parágrafo único - Os projetos de emenda constitucional, enviados pelo Presidente da República, serão apreciados em reunião do Congresso Nacional, dentro de trinta (30) dias, a contar do seu recebimento, em duas sessões, com o intervalo máximo de dez (10) dias, e serão considerados aprovados quando obtiverem, em ambas as votações, a maioria absoluta dos membros das duas Casas do Congresso.

Art . 4º - O Presidente da República poderá enviar ao Congresso Nacional projetos de lei sobre qualquer matéria, os quais deverão ser apreciados dentro de trinta (30) dias, a contar do seu recebimento na Câmara dos Deputados, e de igual prazo no Senado Federal; caso contrário, serão tidos como aprovados.

Parágrafo único - O Presidente da República, se julgar urgente a medida, poderá solicitar que a apreciação do projeto se faça, em trinta (30) dias, em sessão conjunta do Congresso Nacional, na forma prevista neste artigo.

Art . 5º - Caberá, privativamente, ao Presidente da República a iniciativa dos projetos de lei que criem ou aumentem a despesa pública; não serão admitidas, a esses projetos, em qualquer das Casas do Congresso Nacional, emendas que aumentem a despesa proposta pelo Presidente da República.

Art. 6º - O Presidente da República, em qualquer dos casos previstos na Constituição, poderá decretar o estado de sítio, ou prorrogá-lo, pelo prazo máximo de trinta (30) dias; o seu ato será submetido ao Congresso Nacional, acompanhado de justificação, dentro de quarenta e oito (48) horas.

Art. 7º - Ficam suspensas, por seis (6) meses, as garantias constitucionais ou legais de vitaliciedade e estabilidade.

§ 1º - Mediante investigação sumária, no prazo fixado neste artigo, os titulares dessas garantias poderão ser demitidos ou dispensados, ou ainda, com vencimentos e as vantagens proporcionais ao tempo de serviço, postos em disponibilidade, aposentados, transferidos para a reserva ou reformados, mediante atos do Comando Supremo da

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Revolução até a posse do Presidente da República e, depois da sua posse, por decreto presidencial ou, em se tratando de servidores estaduais, por decreto do governo do Estado, desde que tenham tentado contra a segurança do Pais, o regime democrático e a probidade da administração pública, sem prejuízo das sanções penais a que estejam sujeitos.

§ 2º - Ficam sujeitos às mesmas sanções os servidores municipais. Neste caso, a sanção prevista no § 1º lhes será aplicada por decreto do Governador do Estado, mediante proposta do Prefeito municipal.

§ 3º - Do ato que atingir servidor estadual ou municipal vitalício, caberá recurso para o Presidente da República.

§ 4º - O controle jurisdicional desses atos limitar-se-á ao exame de formalidades extrínsecas, vedada a apreciação dos fatos que o motivaram, bem como da sua conveniência ou oportunidade.

Art. 8º - Os inquéritos e processos visando à apuração da responsabilidade pela prática de crime contra o Estado ou seu patrimônio e a ordem política e social ou de atos de guerra revolucionária poderão ser instaurados individual ou coletivamente.

Art . 9º - A eleição do Presidente e do Vice-Presidente da República, que tomarão posse em 31 de janeiro de 1966, será realizada em 3 de outubro de 1965.

Art. 10 - No interesse da paz e da honra nacional, e sem as limitações previstas na Constituição, os Comandantes-em-Chefe, que editam o presente Ato, poderão suspender os direitos políticos pelo prazo de dez (10) anos e cassar mandatos legislativos federais, estaduais e municipais, excluída a apreciação judicial desses atos.

Parágrafo único - Empossado o Presidente da República, este, por indicação do Conselho de Segurança Nacional, dentro de 60 (sessenta) dias, poderá praticar os atos previstos neste artigo.

Art . 11 - O presente Ato vigora desde a sua data até 31 de janeiro de 1966; revogadas as disposições em contrário.

Rio de Janeiro-GB, 9 de abril de 1964.

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ANEXO 2

ATO INSTITUCIONAL Nº 2

À NAÇÃO

A Revolução é um movimento que veio da inspiração do povo brasileiro para atender às suas aspirações mais legítimas: erradicar uma situação e um Governo que afundavam o País na corrupção e na subversão.

No preâmbulo do Ato que iniciou a institucionalização, do movimento de 31 de março de 1964 foi dito que o que houve e continuará a haver, não só no espírito e no comportamento das classes armadas, mas também na opinião pública nacional, é uma autêntica revolução. E frisou-se que:

a) ela se distingue de outros movimentos armados pelo fato de que traduz, não o interesse e a vontade de um grupo, mas o interesse e a vontade da Nação;

b) a revolução investe-se, por isso, no exercício do Poder Constituinte, legitimando-se por si mesma;

c) edita normas jurídicas sem que nisto seja limitada pela normatividade anterior à sua vitória, pois graças à ação das forças armadas e ao apoio inequívoco da Nação, representa o povo e em seu nome exerce o Poder Constituinte de que o povo é o único titular.

Não se disse que a revolução foi, mas que é e continuará. Assim o seu Poder Constituinte não se exauriu, tanto é ele próprio do processo revolucionário, que tem de ser dinâmico para atingir os seus objetivos. Acentuou-se, por isso, no esquema daqueles conceitos, traduzindo uma realidade incontestável de Direito Público, o poder institucionalizante de que a revolução é dotada para fazer vingar os princípios em nome dos quais a Nação se levantou contra a situação anterior.

A autolimitação que a revolução se impôs no Ato institucional, de 9 de abril de 1964 não significa, portanto, que tendo poderes para limitar-se, se tenha negado a si mesma por essa limitação, ou se tenha despojado da carga de poder que lhe é inerente como movimento. Por isso se declarou, textualmente, que "os processos constitucionais não funcionaram para destituir o Governo que deliberadamente se dispunha a bolchevizar o País", mas se acrescentou, desde logo, que "destituído pela revolução, só a esta cabe ditar as normas e os processos de constituição do novo Governo e atribuir-lhe os poderes ou os instrumentos jurídicos que lhe assegurem o exercício do poder no exclusivo interesse do País".

A revolução está viva e não retrocede. Tem promovido reformas e vai continuar a empreendê-las, insistindo patrioticamente em seus propósitos de recuperação econômica, financeira, política e moral do Brasil. Para isto precisa de tranqüilidade. Agitadores de vários matizes e elementos da situação eliminada teimam, entretanto, em se valer do fato de haver ela reduzido a curto tempo o seu período de indispensável restrição a certas garantias constitucionais, e já ameaçam e desafiam a própria ordem

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revolucionária, precisamente no momento em que esta, atenta aos problemas administrativos, procura colocar o povo na prática e na disciplina do exercício democrático. Democracia supõe liberdade, mas não exclui responsabilidade nem importa em licença para contrariar a própria vocação política da Nação. Não se pode desconstituir a revolução, implantada para restabelecer a paz, promover o bem-estar do povo e preservar a honra nacional.

Assim, o Presidente da República, na condição de Chefe do Governo revolucionário e comandante supremo das forças armadas, coesas na manutenção dos ideais revolucionários,

CONSIDERANDO que o País precisa de tranqüilidade para o trabalho em prol do seu desenvolvimento econômico e do bem-estar do povo, e que não pode haver paz sem autoridade, que é também condição essencial da ordem;

CONSIDERANDO que o Poder Constituinte da Revolução lhe é intrínseco, não apenas para institucionalizá-la, mas para assegurar a continuidade da obra a que se propôs,

Resolve editar o seguinte:

ATO INSTITUCIONAL Nº 2

Art. 1º - A Constituição de 1946 e as Constituições estaduais e respectivas emendas são mantidas com as modificações constantes deste Ato.

Art. 2º - A Constituição poderá ser emendada por iniciativa:

I - dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal;

II - do Presidente da República;

III - das Assembléias Legislativas dos Estados.

§ 1º - Considerar-se-á proposta a emenda se for apresentada pela quarta parte, no mínimo, dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal, por mensagem do Presidente da República, ou por mais da metade das Assembléias Legislativas dos Estados, manifestando-se cada uma delas pela maioria dos seus membros.

§ 2º - Dar-se-á por aceita a emenda que for aprovada em dois turnos na mesma sessão legislativa, por maioria absoluta da Câmara dos Deputados e do Senado Federal.

§ 3º - Aprovada numa, a emenda será logo enviada à outra Câmara, para sua deliberação.

Art. 3º - Cabe, à Câmara dos Deputados e ao Presidente da República a iniciativa dos projetos de lei sobre matéria financeira.

Art. 4º - Ressalvada a competência da Câmara dos Deputados e do Senado e dos Tribunais Federais, no que concerne aos respectivos serviços administrativos, compete exclusivamente ao Presidente da República a iniciativa das leis que criem cargos,

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funções ou empregos públicos, aumentem vencimentos ou a despesa pública e disponham sobre a fixação das forças armadas.

Parágrafo único - Aos projetos oriundos dessa, competência exclusiva do Presidente da República não serão admitidas emendas que aumentem a despesa prevista.

Art. 5º - A discussão dos projetos de lei de iniciativa do Presidente da República começará na Câmara dos Deputados e sua votação deve estar concluída dentro de 45 dias, a contar do seu recebimento.

§ 1º - Findo esse prazo sem deliberação, o projeto passará ao Senado com a redação originária e a revisão será discutida e votada num só turno, e deverá ser concluída no Senado Federal dentro de 45 dias. Esgotado o prazo sem deliberação, considerar-se-á aprovado o texto como proveio da Câmara dos Deputados.

§ 2º - A apreciação das emendas do Senado Federal pela Câmara dos Deputados se processará no prazo de dez dias, decorrido o qual serão tidas como aprovadas.

§ 3º - O Presidente da República, se julgar urgente a medida, poderá solicitar que a apreciação do projeto se faça em 30 dias, em sessão conjunta do Congresso Nacional, na forma prevista neste artigo.

§ 4º - Se julgar, por outro lado, que o projeto, não sendo urgente, merece maior debate pela extensão do seu texto, solicitará que a sua apreciação se faça em prazo maior, para as duas casas do Congresso.

Art. 6º - Os arts. 94, 98, 103 e 105 da Constituição passam a vigorar com a seguinte redação:

"Art. 94 - O Poder Judiciário é exercido pelos seguintes órgãos:

I - Supremo Tribunal Federal;

II - Tribunal Federal de Recursos e Juízes Federais;

III - Tribunais e Juízes Militares;

IV - Tribunais e Juízes Eleitorais;

V - Tribunais e Juízes do Trabalho."

"Art. 98 - O Supremo Tribunal Federal, com sede na Capital da República e jurisdição em todo o território nacional, compor-se-á de dezesseis Ministros.

Parágrafo único - O Tribunal funcionará em Plenário e dividido em três Turmas de cinco Ministros cada uma."

"Art. 103 - O Tribunal Federal de Recursos, com sede na Capital Federal, compor-se-á de treze Juízes nomeados pelo Presidente da República, depois de aprovada a escolha pelo Senado Federal, oito entre magistrados e cinco entre advogados e membros do Ministério Público, todos com os requisitos do artigo 99.

Parágrafo único - O Tribunal poderá dividir-se em câmaras ou turmas."

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"Art. 105 - Os Juízes Federais serão nomeados pelo Presidente da República dentre cinco cidadãos indicados na forma da lei pelo Supremo Tribunal Federal.

§ 1º - Cada Estado ou Território e bem assim o Distrito Federal constituirão de per si uma Seção judicial, que terá por sede a Capital respectiva.

§ 2º - A lei fixará o número de juízes de cada Seção bem como regulará o provimento dos cargos de juízes substitutos, serventuários e funcionários da Justiça.

§ 3º - Aos Juízes Federais compete processar e julgar em primeira instância.

a) as causas em que a União ou entidade autárquica federal for interessada como autora, ré, assistente ou opoente, exceto as de falência e acidentes de trabalho;

b) as causas entre Estados estrangeiros e pessoa domiciliada no Brasil;

c) as causas fundadas em tratado ou em contrato da União com Estado estrangeiro ou com organismo internacional;

d) as questões de direito marítimo e de navegação, inclusive a aérea;

e) os crimes políticos e os praticados em detrimento de bens, serviços ou interesse da União ou de suas entidades autárquicas, ressalvada a competência da Justiça Militar e da Justiça Eleitoral;

f )os crimes que constituem objeto de tratado ou de convenção internacional e os praticados a bordo de navios ou aeronaves, ressalvada a competência da Justiça Militar;

g) os crimes contra a organização do trabalho e o exercício do direito de greve;

h) os habeas corpus em matéria criminal de sua competência ou quando a coação provier de autoridade federal não subordinada a órgão superior da Justiça da União;

i) os mandados de segurança contra ato de autoridade federal, excetuados, os casos do art. 101, I, i, e do art. 104, I, b."

Art. 7º - O Superior Tribunal Militar compor-se-á de quinze Juízes vitalícios com a denominação de Ministros, nomeados pelo Presidente da República, dos quais quatro escolhidos dentre os Generais efetivos do Exército, três dentre os Oficiais Generais efetivos da Armada, três dentre os Oficiais Generais efetivos da Aeronáutica e cinco civis.

Parágrafo único - As vagas de Ministros togados serão preenchidas por brasileiros natos, maiores de 35 anos de idade, da forma seguinte:

I - três por cidadãos de notório saber jurídico e reputação ilibada, com prática forense de mais de dez anos, da livre escolha do Presidente da República;

II - duas por Auditores e Procurador- Geral da Justiça Militar.

Art. 8º - O § 1º do art. 108 da Constituição passa a vigorar com a seguinte redação:

"§ 1º - Esse foro especial poderá estender-se aos civis, nos casos expressos em lei para repressão de crimes contra a segurança nacional ou as instituições militares."

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§ 1º - Competem à Justiça Militar, na forma da legislação processual, o processo e julgamento dos crimes previstos na Lei nº 1.802, de 5 de janeiro de 1963.

§ 2º - A competência da Justiça Militar nos crimes referidos no parágrafo anterior com as penas aos mesmos atribuídas, prevalecerá sobre qualquer outra estabelecida em leis ordinárias, ainda que tais crimes tenham igual definição nestas leis.

§ 3º - Compete originariamente ao Superior Tribunal Militar processar e julgar os Governadores de Estado e seus Secretários, nos crimes referido no § 1º, e aos Conselhos de Justiça nos demais casos.

Art. 9º - A eleição do Presidente e do Vice-Presidente, da República será realizada pela maioria absoluta dos membros do Congresso Nacional, em sessão pública e votação nominal.

§ 1º - Os Partidos inscreverão os candidatos até 5 dias, antes do pleito e, em caso de morte ou impedimento insuperável de qualquer deles, poderão substituí-los até 24 horas antes da eleição.

§ 2º - Se não for obtido o quorum na primeira votação, repetir-se-ão os escrutínios até que seja atingido, eliminando-se, sucessivamente, do rol dos candidatos, o que obtiver menor número de votos.

§ 3º - Limitados a dois os candidatos, a eleição se dará mesmo por maioria simples.

Art. 10 - Os Vereadores não perceberão remuneração, seja a que título for.

Art. 11 - Os Deputados às Assembléias Legislativas não podem perceber, a qualquer título, remuneração superior a dois terços da que percebem os Deputados federais.

Art. 12 - A última alínea do § 5º do art. 141 da Constituição passa a vigorar com a seguinte redação:

"Não será, porém, tolerada propaganda de guerra, de subversão, da ordem ou de preconceitos de raça ou de classe."

Art. 13 - O Presidente da República poderá decretar o estado de sítio ou prorrogá-lo pelo prazo máximo de cento e oitenta dias, para prevenir ou reprimir a subversão da ordem interna.

Parágrafo único - O ato que decretar o estado de sítio estabelecerá as normas a que deverá obedecer a sua execução e indicará as garantias constitucionais que continuarão em vigor.

Art. 14 - Ficam suspensas as garantias constitucionais ou legais de vitaliciedade, inamovibilidade e estabilidade, bem como a de exercício em funções por tempo certo.

Parágrafo único - Ouvido o Conselho de Segurança Nacional, os titulares dessas garantias poderão ser demitidos, removidos ou dispensados, ou, ainda, com os vencimentos e as vantagens proporcionais ao tempo de serviço, postos em disponibilidade, aposentados, transferidos para a reserva ou reformados, desde que demonstrem incompatibilidade com os objetivos da Revolução.

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Art. 15 - No interesse de preservar e consolidar a Revolução, o Presidente da República, ouvido o Conselho de Segurança Nacional, e sem as limitações previstas na Constituição, poderá suspender os direitos políticos de quaisquer cidadãos pelo prazo de 10 (dez) anos e cassar mandatos legislativos federais, estaduais e municipais.

Parágrafo único - Aos membros dos Legislativos federal, estaduais e municipais, que tiverem seus mandatos cassados não serão dados substitutos, determinando-se o quorum parlamentar em função dos lugares efetivamente preenchidos.

Art. 16 - A suspensão de direitos políticos, com base neste Ato e no art. 10 e seu parágrafo único do Ato Institucional, de 9 de abril de 1964, além do disposto no art. 337 do Código Eleitoral e no art. 6º da Lei Orgânica dos Partidos Políticos, acarreta simultaneamente:

I - a cessação de privilégio de foro por prerrogativa de função;

II - a suspensão do direito de votar e de ser votado nas eleições sindicais;

III - a proibição de atividade ou manifestação sobre assunto de natureza política;

IV - a aplicação, quando necessária à preservação da ordem política e social, das seguintes medidas de segurança:

a) liberdade vigiada;

b) proibição de freqüentar determinados lugares;

c) domicílio determinado.

Art. 17 - Além dos casos previstos na Constituição federal, o Presidente da República poderá decretar e fazer cumprir a intervenção federal nos Estados, por prazo determinado:

I - para assegurar a execução da lei federal;

II - para prevenir ou reprimir a subversão da ordem.

Parágrafo único - A intervenção decretada nos termos deste artigo será, sem prejuízo da sua execução, submetida à aprovação do Congresso Nacional,

Art. 18 - Ficam extintos os atuais Partidos Políticos e cancelados os respectivos registros.

Parágrafo único - Para a organização dos novos Partidos são mantidas as exigências da Lei nº 4.740, de 15 de julho de 1965, e suas modificações.

Art. 19 - Ficam excluídos da apreciação judicial:

I - os atos praticados pelo Comando Supremo da Revolução e pelo Governo federal, com fundamento no Ato Institucional de 9 de abril de 1964, no presente Ato Institucional e nos atos complementares deste;

II - as resoluções das Assembléias Legislativas e Câmara de Vereadores que hajam cassado mandatos eletivos ou declarado o impedimento de Governadores, Deputados, Prefeitos ou Vereadores, a partir de 31 de março de 1964, até a promulgação deste Ato.

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Art. 20. - O provimento inicial dos cargos da Justiça federal far-se-á pelo Presidente da República dentre brasileiros de saber jurídico e reputação ilibada.

Art. 21 - Os projetos de emenda constitucional, enviados pelo Presidente da República, serão apreciados em reunião do Congresso Nacional, dentro de 30 (trinta) dias, e serão considerados aprovados quando obtiverem em ambas as votações, a maioria absoluta dos membros das duas Casas do Congresso.

Art. 22 - Somente poderão ser criados Municípios novos depois de feita prova cabal de sua viabilidade econômico-financeira, perante a Assembléia Legislativa.

Art. 23 - Constitui crime de responsabilidade contra a probidade na administração, a aplicação irregular pelos Prefeitos da cota do imposto de Renda atribuída aos Municípios pela União, cabendo a iniciativa da ação penal ao Ministério Público ou a um terço dos membros da Câmara Municipal.

Art. 24 - O julgamento nos processos instaurados segundo a Lei nº 2.083, de 12 de novembro de 1953, compete ao Juiz de Direito que houver dirigido a instrução do processo.

Parágrafo único - A prescrição da ação penal relativa aos delitos constantes dessa Lei ocorrerá dois anos após a data da publicação incriminada, e a da condenação no dobro do prazo em que for fixada.

Art. 25 - Fica estabelecido a partir desta data, o princípio da paridade na remuneração dos servidores dos três Poderes da República, não admitida, de forma alguma, a correção monetária como privilégio de qualquer grupo ou categoria.

Art. 26 - A primeira eleição para Presidente e Vice-Presidente da República será realizada em data a ser fixada pelo Presidente da República e comunicada ao Congresso Nacional, a qual não poderá ultrapassar o dia 3 de outubro de 1966.

Parágrafo único - Para essa eleição o atual Presidente da República é inelegível.

Art. 27 - Ficam sem objeto os projetos de emendas e de lei enviados ao Congresso Nacional que envolvam matéria disciplinada, no todo ou em parte, pelo presente Ato.

Art. 28 - Os atuais Vereadores podem continuar a perceber remuneração até o fim do mandato, em quantia, porém, nunca superior à metade da que percebem os Deputados do Estado respectivo.

Art. 29 - Incorpora-se definitivamente à Constituição federal o disposto nos arts. 2º a 12 de presente Ato.

Art. 30 - O Presidente da República poderá baixar atos complementares do presente, bem como decretos-leis sobre matéria de segurança nacional.

Art. 31 - A decretação do recesso do Congresso Nacional, das Assembléias Legislativas e das Câmaras de Vereadores pode ser objeto de ato complementar do Presidente da República, em estado de sítio ou fora dele.

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Parágrafo único - Decretado o recesso parlamentar, o Poder Executivo correspondente, fica autorizado a legislar mediante decretos-leis em todas as matérias previstas na Constituição e na Lei Orgânica.

Art. 32 - As normas dos arts. 3º, 4º, 5º e 25 deste Ato são extensivas aos Estados da Federação.

Parágrafo único - Para os fins deste artigo as Assembléias emendarão as respectivas Constituições, no prazo de sessenta dias, findo o qual aquelas normas passarão, no que couber, a vigorar automaticamente nos Estados.

Art. 33 - O presente Ato Institucional vigora desde a sua publicação até 15 de março de 1967, revogadas as disposições constitucionais ou legais em contrário.

Brasília, 27 de outubro de 1965; 144º da Independência e 77º da República.

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ANEXO 3

ATO INSTITUCIONAL Nº 5

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL , ouvido o Conselho de Segurança Nacional, e

CONSIDERANDO que a Revolução Brasileira de 31 de março de 1964 teve, conforme decorre dos Atos com os quais se institucionalizou, fundamentos e propósitos que visavam a dar ao País um regime que, atendendo às exigências de um sistema jurídico e político, assegurasse autêntica ordem democrática, baseada na liberdade, no respeito à dignidade da pessoa humana, no combate à subversão e às ideologias contrárias às tradições de nosso povo, na luta contra a corrupção, buscando, deste modo, "os. meios indispensáveis à obra de reconstrução econômica, financeira, política e moral do Brasil, de maneira a poder enfrentar, de modo direito e imediato, os graves e urgentes problemas de que depende a restauração da ordem interna e do prestígio internacional da nossa pátria" (Preâmbulo do Ato Institucional nº 1, de 9 de abril de 1964);

CONSIDERANDO que o Governo da República, responsável pela execução daqueles objetivos e pela ordem e segurança internas, não só não pode permitir que pessoas ou grupos anti-revolucionários contra ela trabalhem, tramem ou ajam, sob pena de estar faltando a compromissos que assumiu com o povo brasileiro, bem como porque o Poder Revolucionário, ao editar o Ato Institucional nº 2, afirmou, categoricamente, que "não se disse que a Revolução foi, mas que é e continuará" e, portanto, o processo revolucionário em desenvolvimento não pode ser detido;

CONSIDERANDO que esse mesmo Poder Revolucionário, exercido pelo Presidente da República, ao convocar o Congresso Nacional para discutir, votar e promulgar a nova Constituição, estabeleceu que esta, além de representar "a institucionalização dos ideais e princípios da Revolução", deveria "assegurar a continuidade da obra revolucionária" (Ato Institucional nº 4, de 7 de dezembro de 1966);

CONSIDERANDO, no entanto, que atos nitidamente subversivos, oriundos dos mais distintos setores políticos e culturais, comprovam que os instrumentos jurídicos, que a Revolução vitoriosa outorgou à Nação para sua defesa, desenvolvimento e bem-estar de seu povo, estão servindo de meios para combatê-la e destruí-la;

CONSIDERANDO que, assim, se torna imperiosa a adoção de medidas que impeçam sejam frustrados os ideais superiores da Revolução, preservando a ordem, a segurança, a tranqüilidade, o desenvolvimento econômico e cultural e a harmonia política e social do País comprometidos por processos subversivos e de guerra revolucionária;

CONSIDERANDO que todos esses fatos perturbadores da ordem são contrários aos ideais e à consolidação do Movimento de março de 1964, obrigando os que por ele se responsabilizaram e juraram defendê-lo, a adotarem as providências necessárias, que evitem sua destruição,

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Resolve editar o seguinte

ATO INSTITUCIONAL Nº5

Art. 1º - São mantidas a Constituição de 24 de janeiro de 1967 e as Constituições estaduais, com as modificações constantes deste Ato Institucional. (Revogado pelo Ato Complementar nº 11, de 1966)

Art. 2º - O Presidente da República poderá decretar o recesso do Congresso Nacional, das Assembléias Legislativas e das Câmaras de Vereadores, por Ato Complementar, em estado de sitio ou fora dele, só voltando os mesmos a funcionar quando convocados pelo Presidente da República.

§ 1º - Decretado o recesso parlamentar, o Poder Executivo correspondente fica autorizado a legislar em todas as matérias e exercer as atribuições previstas nas Constituições ou na Lei Orgânica dos Municípios.

§ 2º - Durante o período de recesso, os Senadores, os Deputados federais, estaduais e os Vereadores só perceberão a parte fixa de seus subsídios.

§ 3º - Em caso de recesso da Câmara Municipal, a fiscalização financeira e orçamentária dos Municípios que não possuam Tribunal de Contas, será exercida pelo do respectivo Estado, estendendo sua ação às funções de auditoria, julgamento das contas dos administradores e demais responsáveis por bens e valores públicos.

Art. 3º - O Presidente da República, no interesse nacional, poderá decretar a intervenção nos Estados e Municípios, sem as limitações previstas na Constituição.

Parágrafo único - Os interventores nos Estados e Municípios serão nomeados pelo Presidente da República e exercerão todas as funções e atribuições que caibam, respectivamente, aos Governadores ou Prefeitos, e gozarão das prerrogativas, vencimentos e vantagens fixados em lei.

Art. 4º - No interesse de preservar a Revolução, o Presidente da República, ouvido o Conselho de Segurança Nacional, e sem as limitações previstas na Constituição, poderá suspender os direitos políticos de quaisquer cidadãos pelo prazo de 10 anos e cassar mandatos eletivos federais, estaduais e municipais.

Parágrafo único - Aos membros dos Legislativos federal, estaduais e municipais, que tiverem seus mandatos cassados, não serão dados substitutos, determinando-se o quorum parlamentar em função dos lugares efetivamente preenchidos.

Art. 5º - A suspensão dos direitos políticos, com base neste Ato, importa, simultaneamente, em: (Vide Ato Institucional nº 6, de 1969)

I - cessação de privilégio de foro por prerrogativa de função;

II - suspensão do direito de votar e de ser votado nas eleições sindicais;

III - proibição de atividades ou manifestação sobre assunto de natureza política;

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IV - aplicação, quando necessária, das seguintes medidas de segurança:

a) liberdade vigiada;

b) proibição de freqüentar determinados lugares;

c) domicílio determinado,

§ 1º - O ato que decretar a suspensão dos direitos políticos poderá fixar restrições ou proibições relativamente ao exercício de quaisquer outros direitos públicos ou privados. (Vide Ato Institucional nº 6, de 1969)

§ 2º - As medidas de segurança de que trata o item IV deste artigo serão aplicadas pelo Ministro de Estado da Justiça, defesa a apreciação de seu ato pelo Poder Judiciário. (Vide Ato Institucional nº 6, de 1969)

Art. 6º - Ficam suspensas as garantias constitucionais ou legais de: vitaliciedade, inamovibilidade e estabilidade, bem como a de exercício em funções por prazo certo.

§ 1º - O Presidente da República poderá mediante decreto, demitir, remover, aposentar ou pôr em disponibilidade quaisquer titulares das garantias referidas neste artigo, assim como empregado de autarquias, empresas públicas ou sociedades de economia mista, e demitir, transferir para a reserva ou reformar militares ou membros das polícias militares, assegurados, quando for o caso, os vencimentos e vantagens proporcionais ao tempo de serviço.

§ 2º - O disposto neste artigo e seu § 1º aplica-se, também, nos Estados, Municípios, Distrito Federal e Territórios.

Art. 7º - O Presidente da República, em qualquer dos casos previstos na Constituição, poderá decretar o estado de sítio e prorrogá-lo, fixando o respectivo prazo.

Art. 8º - O Presidente da República poderá, após investigação, decretar o confisco de bens de todos quantos tenham enriquecido, ilicitamente, no exercício de cargo ou função pública, inclusive de autarquias, empresas públicas e sociedades de economia mista, sem prejuízo das sanções penais cabíveis. (Regulamento)

Parágrafo único - Provada a legitimidade da aquisição dos bens, far-se-á sua restituição.

Art. 9º - O Presidente da República poderá baixar Atos Complementares para a execução deste Ato Institucional, bem como adotar, se necessário à defesa da Revolução, as medidas previstas nas alíneas d e e do § 2º do art. 152 da Constituição.

Art. 10 - Fica suspensa a garantia de habeas corpus, nos casos de crimes políticos, contra a segurança nacional, a ordem econômica e social e a economia popular.

Art. 11 - Excluem-se de qualquer apreciação judicial todos os atos praticados de acordo com este Ato institucional e seus Atos Complementares, bem como os respectivos efeitos.

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Art. 12 - O presente Ato Institucional entra em vigor nesta data, revogadas as disposições em contrário.

Brasília, 13 de dezembro de 1968; 147º da Independência e 80º da República.

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ANEXO 4

EDITORIAL “BASTA!” DO CORREIO DA MANHÃ DE 31 DE MARÇO DE 1964

Basta! Até que ponto, o Presidente da República abusará da paciência da Nação? Até que ponto pretende tomar para si, por meio de decretos, leis, a função do poder legislativo? Até que ponto contribuirá para preservar o clima de intranqüilidade e insegurança que se verifica presente na classe produtora? Até que ponto deseja levar ao desespero, por meio da inflação e do aumento do custo de vida, a classe média e a classe operária? Até que ponto quer desagregar as Forças Armadas, por meio da indisciplina que se torna cada vez mais incontrolável? Não é possível continuar neste caos, em todos os sentidos e em todos os setores, tanto no lado administrativo, como no lado econômico financeiro. Basta de farsa! Basta da guerra psicológica que o próprio governo desencadeou, com o objetivo de convulsionar o país e levar avante a sua política continuísta. Basta de demagogia, para que realmente se possam fazer as reformas de base. Quase todas as medidas tomadas pelo Sr. João Goulart, nestes últimos tempos com grande estardalhaço, mas inexeqüíveis, não têm outra finalidade, senão a de enganar a boa fé do povo, que, aliás, não se enganará. Não é tolerável esta situação calamitosa, provocada artificialmente pelo governo, que estabeleceu a desordem generalizada, desordem esta que cresce em ritmo acelerado e ameaça sufocar todos as forças vivas do país. Não contente de intranqüilizar o campo com o decreto da Supra, agitando igualmente os proprietários e camponeses, de desvirtuar a finalidade dos sindicatos, cuja missão é a das reivindicações de classe, agora estende a sua ação deformadora às Forças Armadas. Destruindo de cima a baixo a hierarquia e a disciplina, o que põe em perigo o regime e a segurança nacional. A opinião pública recusa uma política de natureza equívoca, que se volta contra as instituições cuja guarda deveria caber ao próprio Governo Federal. Queremos o respeito à Constituição, queremos as reformas de base votadas pelo Congresso, queremos a intocabilidade das liberdades democráticas, queremos a realização das eleições em 1965. Se o Sr. João Goulart não tem a capacidade para exercer a Presidência da República e resolver os problemas da Nação dentro da legalidade constitucional, não lhe resta outra saída senão a de entregar o governo ao se legítimo sucessor. É admissível que o Sr. João Goulart termine o seu mandato de acordo com a Constituição; este grande sacrifício de tolerá-lo até 1966 seria compensador para a democracia. Mas, para isso, o Sr. João Goulart terá de desistir de sua política atual, que está perturbando uma Nação em desenvolvimento e ameaçando levá-la à guerra civil. A Nação não admite golpe nem contragolpe, quer consolidar o processo democrático para a concretização das reformas essenciais de sua estrutura econômica. Mas não admite que seja o próprio Executivo, por interesses inconfessáveis, que desencadeie a luta contra o Congresso, censure o rádio, ameace a imprensa e com ela todos os meio de manifestação do pensamento, abrindo caminho à ditadura. Os Poderes Legislativo e

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Judiciário, as classes armadas, as forças democráticas devem estar alertas e vigilantes e prontos para combater todos aqueles que atentem contra o regime. O Brasil já sofreu demasiado com o governo atual, agora basta! Fonte: Correio da Manhã, 31 mar. 1964. p. 1.

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ANEXO 5

EXCERTOS DA REUNIÃO DO CONSELHO DE SEGURANÇA NACION AL [Presidente Arthur da Costa e Silva] Meus senhores, eu convoquei o Conselho de Segurança Nacional, que é o órgão consultivo do governo, da Presidência da República, para colocá-los, a todos os membros, em parte de um problema que se apresenta com uma gravidade muito grande e que deve ser equacionado e resolvido dentro, com a maior tranqüilidade de espírito e a maior isenção de ânimo. O presidente da República [tosse], que se considera ainda um legítimo representante da Revolução de 1964, 31 de março, vê-se em um momento crítico, em que ele tem que tomar uma decisão optativa: ou a Revolução continua ou a Revolução se desagrega. Até agora, todo o povo brasileiro, inclusive os senhores, todo povo é testemunha do meu grande interesse, do meu grande esforço, da minha maior boa vontade e tolerância no sentido de que houvesse uma compreensão e união entre a área política e a área militar, ambas responsáveis pelo advento revolucionário. Várias divergências, vários embates, várias incompreensões e nós, pacientemente, nós quase que pregando essa harmonia entre essas duas áreas, nós conseguimos chegar a quase dois anos do governo presumidamente constitucional da Revolução. Eu não preciso apelar para o testemunho dos meus ministros, e dos meus, dos membros do Conselho de Segurança, para que afirmem e que confirmem essa minha declaração. Portanto, todos são testemunhas e agora mesmo Sua Excelência, o vice-presidente da República, acaba de depor perante mim, dizendo que tem acompanhado e é testemunha viva desse interesse, meu. Mas chega o momento em que, acima da vontade de um homem, está o interesse nacional, a harmonia, a tranqüilidade, a paz para o povo brasileiro. Nós compreendemos, perfeitamente, que foi um fato, talvez aparentemente insignificante, que tenha motivado essa [tosse]... Não digo, não vou empregar o termo que seria muito forte, mas essa revelação da falta de apoio político do governo. Quando o governo contava e pela compreensão dos homens públicos do país [tosse], daqueles que têm tanta responsabilidade quanto nós, para a manutenção da paz, da ordem e da tranqüilidade pública, compreendessem perfeitamente que não podiam colaborar numa agressão a uma outra área, também responsável pela Revolução, e que se tem mostrado dignamente acatadora de todas as ordens e de todos as, os princípios estabelecidos pela Constituição, na ordem jurídica e civil. Apresenta-se, portanto, um fato novo, com características típicas de provocação para que não continuemos nesse processo evolutivo da Revolução, para a consecução da ordem democrática ou do regime democrático completo. Disse eu e repito, disse perante homens do Congresso que era mais fácil, para mim, adotar medidas de prepotência e de força, do que manter a continuidade do regime dentro da Constituição, porque eu não estava com a, não estava tendo a compreensão necessária e nem o denodo daqueles que deviam me ajudar a defender essa ordem democrática. Meus senhores, naquela hora, eu nem sabia o que se estava preparando e o que ainda ia acontecer. E o que aconteceu foi muito pior do que se podia esperar. Porque como vamos tomar, em que sentido vamos tomar a manifestação do Congresso? Da Câmara dos Deputados? No sentido meramente de solidariedade a um membro do Congresso? Vamos tomar no sentido de uma manifestação ou uma expansão ou uma extrapolação de recalques, que porventura tenha sido pela hostilidade, causado pela hostilidade do poder público em relação à área política? Não creio. Porque eu não creio que a área política tenha merecido, de qualquer

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governo, de qualquer chefe de Estado, as considerações que eu tenho dispensado a essa área. A ponto que até me comprometer na minha área militar, de onde eu provenho, da minha área revolucionária, de onde eu surgi e de onde pretendo, onde pretendo me manter à custa de qualquer sacrifício. Não tenho o mínimo interesse pessoal, pelo contrário, desejo, se Deus me ajudar, chegar rapidamente ao fim do meu governo para entregar esse cargo penoso e duro a quem possa melhor do que eu cumprir essa e conseguir essa harmonia entre a área política e a área militar, porque sem isso o Brasil irá à desagregação. Ainda há poucos dias, falando a um grupo de deputados, eu usei uma imagem: a maré é violenta contra as costas nossas, procurando erodir a área revolucionária e a área política, levando o país à desagregação. Desagregação material, moral e política. Como não há dúvida de que se trata de fazer isso por todos os meios e modos. Então, é um momento histórico em que devemos ter uma definição clara e insofismável de que o Brasil precisa dessa união. Meus senhores, quando o fenômeno se me apresentou, eu repeli uma decisão imediata, porque compreendo que um fato como esse, um ato como esse, exige reflexão, mas também exige, após a reflexão, uma decisão. A decisão está tomada e é proposta ao Conselho de Segurança Nacional, para ampla discussão, para a ampla opinião de cada um, porque eu não desprezo o conselho do Conselho de Segurança Nacional. Eu preciso que cada membro diga aquilo que sente, aquilo que pensa e aquilo que está errado nisto, para que possamos, com consciência tranqüila, e vivamente apoiado numa, num conselho como este, de responsabilidade enorme perante a nação, eu possa autenticar, [corte], para depois estabelecer uma discussão. Muito obrigado [palmas]. [Sessão suspensa] [Sessão reaberta] Desejo ouvir a opinião de um a um, senhores membros do Conselho de Segurança Nacional. Como é natural, a maior autoridade deste Conselho é Sua Excelência o vice-presidente da República, tão interessado quanto eu na solução do problema, porquanto estamos ligados pela mesma decisão, numa eleição que se fez no Congresso Nacional, num colegiado, em que a maioria era do Congresso Nacional. Senhor vice-presidente, eu desejaria ouvir a sua opinião, o seu conselho.

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ANEXO 6 DISCURSO DO DEPUTADO FEDERAL MÁRCIO MOREIRA ALVES, NA CÂMARA DOS DEPUTADOS, PROFERIDO EM SETEMBRO DE 1968

Senhor presidente, senhores deputados,

Todos reconhecem ou dizem reconhecer que a maioria das forças armadas não compactua com a cúpula militarista que perpetra violências e mantém este país sob regime de opressão. Creio ter chegado, após os acontecimentos de Brasília, o grande momento da união pela democracia. Este é também o momento do boicote. As mães brasileiras já se manifestaram. Todas as classes sociais clamam por este repúdio à polícia. No entanto, isto não basta.

É preciso que se estabeleça, sobretudo por parte das mulheres, como já começou a se estabelecer nesta Casa, por parte das mulheres parlamentares da Arena, o boicote ao militarismo. Vem aí o 7 de setembro.

As cúpulas militaristas procuram explorar o sentimento profundo de patriotismo do povo e pedirão aos colégios que desfilem junto com os algozes dos estudantes. Seria necessário que cada pai, cada mãe, se compenetrasse de que a presença dos seus filhos nesse desfile é o auxílio aos carrascos que os espancam e os metralham nas ruas. Portanto, que cada um boicote esse desfile.

Esse boicote pode passar também, sempre falando de mulheres, às moças. Aquelas que dançam com cadetes e namoram jovens oficiais. Seria preciso fazer hoje, no Brasil, que as mulheres de 1968 repetissem as paulistas da Guerra dos Emboabas e recusassem a entrada à porta de sua casa àqueles que vilipendiam-nas.

Recusassem aceitar aqueles que silenciam e, portanto, se acumpliciam. Discordar em silêncio pouco adianta. Necessário se torna agir contra os que abusam das forças armadas, falando e agindo em seu nome. Creia-me senhor presidente, que é possível resolver esta farsa, esta democratura, este falso impedimento pelo boicote. Enquanto não se pronunciarem os silenciosos, todo e qualquer contato entre os civis e militares deve cessar, porque só assim conseguiremos fazer com que este país volte à democracia.

Só assim conseguiremos fazer com que os silenciosos que não compactuam com os desmandos de seus chefes, sigam o magnífico exemplo dos 14 oficiais de Crateús que tiveram a coragem e a hombridade de, publicamente, se manifestarem contra um ato ilegal e arbitrário dos seus superiores.

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ANEXO 7 DISCURSO DO DEPUTADO MÁRCIO MOREIRA ALVES, NO DIA 1 2 DE DEZEMBRO DE 1968, EM SESSÃO PLENÁRIA DA CÂMARA DOS DEPUTADOS (TEXTO NA ÍNTEGRA. OS TRECHOS ENTRE COLCH ETES NÃO FORAM PRONUNCIADOS) Sr. Presidente, Srs. Deputados, marcou-me o acaso para que me transformasse em símbolo da mais essencial das prerrogativas do Poder Legislativo. Independente do meu desejo, transmudaram-me no símbolo da liberdade de pensamento, expressa na tribuna desta Casa. Sei bem que a prova a que me submeteram está muito acima de minhas forças e de minha capacidade. Mas transcendeu, a causa que a esta Câmara julgará, à minha pessoa, ao meu mandato, aos partidos. É incômoda e angustiante a posição que me tocou. Suporto-a sem temor, embora não merecesse a honra de simbolizar a liberdade de toda a Casa do Povo. As grandes causas exemplares, que na vida das nações firmam as garantias da democracia, sempre ultrapassam os que as hajam motivado. A impessoalidade das conquistas do Direito é uma das mais belas realidades da luta dos povos pela liberdade. O nome dos barões que, nas pradarias de Windsor, fizeram o Rei João Sem Terra assinar a Magna Carta, perdeu-se nas brumas do tempo. Mas o julgamento por jurados, o direito dos cidadãos de um país livremente atravessaram as suas fronteiras, a necessidade de lei penal anterior e de testemunhas idôneas para determinar uma prisão, continuam a ser um imorredouro monumento àqueles homens e a todos os homens. [Esqueceram as gerações modernas as violências de Henrique VII da Inglaterra, porém todas as nações do Ocidente incorporaram às suas tradições jurídicas a medida legal que durante seu reinado e contra ele firmou-se – o habeas corpus]. Até mesmo as decisões iníquas podem ser fonte de liberdade. Ninguém sabe ao certo onde jazem os restos do escravo Dred Scott, contudo, a decisão da Corte Suprema Americana que o manteve escravo foi o estopim da libertação de todos os negros da América do Norte. Assim poderá ser, também, neste caso. Apagado o meu nome, apagados os nomes de quase todos nós da memória dos brasileiros, nela ficará, intacta, a decisão que em breve a Câmara tomará. Não se lembrarão os pósteros do deputado cuja liberdade de exprimir da tribuna o seu pensamento é hoje contestada. Saberão, todavia, dizer se o Parlamento a que pertenceu manteve sua prerrogativa de inviolabilidade ou se dela abriu mão. A verdade histórica é que os homens passam, mas os direitos que uma geração estabelece, através de suas lutas, às outras gerações são legados, pouco a pouco criando o patrimônio comum das leis, garantias e liberdades de uma nação. Não se julga aqui um deputado; julga-se uma prerrogativa essencial ao Poder Legislativo. Livre como o ar, livre como o pensamento a que dá guarida deve ser a tribuna da Casa do Povo. [A Constituição proíbe que se tente abolir a Federação e a República. No entanto, os parlamentares podem defender da tribuna a monarquia e o estado unitário. A liberdade de expressão no Congresso terá de ser total para que o Congresso sobreviva. Muitas vezes, em períodos conturbados de nossa História, e ainda recentemente, deputados discursaram em defesa de um regime de exceção. Os deputados argelinos, malgaches e africanos reiteradamente reclama da tribuna da Assembléia francesa a independência de seus países. Fizeram o mesmo os irlandeses na

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Câmara dos Comuns, sem que houvessem sofrido sanções. Os parlamentares sulistas defendem no Congresso Norte Americano a segregação racial que a Corte Suprema colocou fora da lei. E nos Estados Unidos, que têm, no Vietnã, 600 mil de seus melhores soldados, incontáveis são as manifestações de representantes do povo contra a guerra]. Pode um deputado pronunciar um discurso que não conte com o apoio de um só de seus colegas. O fato de poder proferi-lo livremente não quer, entretanto, dizer que a câmara a que pertence é solidária com os conceitos que emitiu. Simplesmente significa que a Câmara existe, que é um poder independente e que garante a seus membros a liberdade de palavras e opiniões. [A lição dos mestres sobre a inviolabilidade da tribuna parlamentar é inexaurível. Nenhum dos comentaristas das Constituições que o Brasil já teve sequer admite discuti-la. Os autores citados pelo Sr. Ministro da Justiça, ou do assunto não tratam, ou dele tratam, como é o caso de Raul Machado Horta, para afirmar o que também afirmamos: a inviolabilidade é irrenunciável, pois que ao Deputado não pertence e, sim, a todo o Congresso]. Procura-se criar, em torno da concessão ou não de uma licença para que se prossiga um processo a respeito do que muito bem chamou o nosso professor de deveres, Deputado Djalma Marinho, “delito impossível”, uma crise institucional. Pudesse eu evitar esta crise abrindo mão de meus direitos, certamente o faria. Não creio que as crises que cada vez mais freqüentemente sacodem a imperfeita e injusta estrutura constitucional brasileira possam ser removidas pelo sacrifício de um, de dois, de dez ou de todos os Deputados. Transcendem elas ao Congresso, aos mandatos e aos representantes do povo. São, antes, originárias de abusos de poder que do exercício de direitos. Estão fundamente fincadas na própria Constituição de 1967, no gigantismo das atribuições do Executivo, no afastamento do povo dos governantes, que não escolhe, na desigualdade de participação nas riquezas nacionais, nas ameaças à soberania nacional que a todo momento sentimos. Entretanto, isto não me é dado fazer. Não se discute, na espécie, o que pertence ao Deputado, ou seja, a sua imunidade processual. Discute-se o que pertence à Câmara, ou seja, a inviolabilidade da sua tribuna, das suas comissões, das suas votações. [O Ministro da Justiça, movido por misteriosas pressões e por um pertinaz desejo de atacar o Congresso Nacional, surge, com a sua representação, perante o povo brasileiro, tal como Shylock apareceu diante do Doge de Veneza com a confissão de dívida do mercador Antonio, que lhe permitia tirar bem junto ao coração da vítima uma libra de carne. Não há apelo que o aplaque, não há violência que o estarreça, não há razão que o emocione, nem pedido que o abalo. Quer, por força e a todo custo, retirar de junto do coração do Poder Legislativo o preço que acredita lhe ser devido. Mas, tal como o mercador de Veneza era impossível receber o que lhe deviam sem romper a lei, derramando o sangue de um cristão, é também impossível ao Ministro da Justiça receber o mandato de um Deputado sem causar a definitiva hemorragia no Poder Legislativo. Todos nós aqui chegamos pela confiança que recebemos de uma parcela do povo brasileiro, manifestada pelo voto secreto em eleições diretas. Esta confiança não é gratuita. Representa o compromisso que assumimos com o pensamento e os interesses daqueles que nos elegeram para que aqui exprimíssemos os seus anseios. Assim,

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entendo e procuro viver o meu mandato. Os que em mim votaram não o fizeram iludidos. Sabiam quem eu era e por isso me escolheram. O que pensava a respeito dos tempos que vivemos no Brasil, a visão que tenho do futuro ao qual devemos aspirar, tudo isso era conhecido de forma clara e precisa, pois que minhas opiniões longamente as expusera, através de livros, de discursos, de programas de televisão e, sobretudo, de uma longa e diária presença na imprensa. Que visão é esta? Creio poder encontrar as suas raízes em uma profecia de Isaías: “Pois eu vou criar novos céus e uma nova terra. O passado não será mais lembrado, não volverá mais ao espírito, mas será experimentada a alegria e a felicidade eterna daquilo que vou criar... Serão construídas casas que se habitarão, serão plantadas vinhas das quais se comerá o fruto. Não mais se construirá para que outro se instale, não mais se plantará para que outro se alimente. Os filhos de meu povo durarão tanto quanto as árvores, e meus eleitos gozarão do trabalhos de suas mãos. Não trabalharão mais em vão, não darão mais à luz filhos votados a uma morte repentina”. É por um mundo assim que batalhamos. É por um Brasil assim que não tememos o sacrifício]. O que prego, desde o princípio de minha vida política, nesta Casa e fora dela, é o estabelecimento de uma sociedade justa, onde todos possam viver livremente, livremente exprimindo suas opiniões e tendências e recebendo oportunidades iguais de desenvolverem os seus dotes humanos, sem sofrerem qualquer restrição por motivo de cor, de crença e, sobretudo de disparidades de fortuna. [Assim entendo deva ser este País internamente, como entendo ainda que externamente deva ser soberano, sem filiar-se a blocos internacionais políticos ou militares, sem de nação alguma, por mais poderosa que seja, receber o ditado do seu comportamento e sem que os agentes de qualquer nação, ainda que poderosa e amiga, possam em seu desenvolvimento influir determinantemente]. Acredito que todos nós tenhamos uma responsabilidade direta na construção da paz social, como da internacional, responsabilidade esta que é tanto maior quanto maiores forem os instrumentos de cultura, de fortuna e de poder de que cada um disponha. É-me lembrado freqüentemente, nesta Casa, por amigos que à minha responsabilidade apelam, por adversários que me procuram julgar, que sou um dos privilegiados da sociedade brasileira. É verdade. Tenho disto a mais profunda e pesada noção. Procuro, por isso, transformar o que de mais eficaz os privilégios me deram, ou seja, a possibilidade de acesso aos bens da cultura, que a noventa por cento dos brasileiros é negada, em um instrumento que permita aos despojados de hoje serem os participantes do amanhã. [Quero crer, tal como Dom Antonio Fragoso expressou em uma carta recentemente publicada nos jornais, que nos cabe conscientizar o povo da realidade que o cerca, a fim de que, dispondo de todos os elementos necessários ao julgamento, possa ele fazer livremente a opção pelo sistema social e econômico que às suas aspirações mais perfeitamente atenta. Toda minha vida política foi e é norteada no sentido de poder eu prestar minha colaboração à tomada de consciência do povo brasileiro quanto à sua própria realidade. Neste sentido tenho proferido inúmeros discursos nesta Casa. Tenho falado muitas vezes sobre o sistema educacional brasileiro e os problemas da juventude. Na Comissão de Educação e Cultura, a qual tenho a honra de pertencer, nunca deixei de participar, na medida dos meus conhecimentos e inspiração, dos debates sobre os projetos que ali

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transitam. Fiz parte da Comissão Mista que estudou a reforma da estrutura universitária e, embora visse derrotados quase todos os pontos de vista que ali defendi, creio ter colaborado para que a defeituosa mensagem que ao Congresso o Executivo mandou tivesse algumas pequenas imperfeições corrigidas, ainda que as grandes conservasse. Tenho falado sobre a política salarial do Governo, que uma comissão de inquérito desta Casa, à qual pertenci, condenou, ao aprovar o relatório do Deputado Gabriel Hermes. Neste sentido, procuro mostrar que não interessa ao desenvolvimento da Nação e muito menos interessa à sobrevivência do seu povo a manutenção de níveis salariais que restringem enormemente o mercado da indústria nacional, ao mesmo tempo que provam de forma progressiva os assalariados dos padrões mínimos de consumo, de saúde, de habitação, de cultura, condizentes com a nossa condição humana. Não neguei, entretanto, apoio ao Governo quando julguei que corretamente procedera nas instruções que mandou à delegação brasileira na II Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento. Embora a política externa do Brasil esteja ainda marcada pelo errôneo conceito de bipolarização do mundo, soube-se em Nova Dehli defender as verdadeiras necessidades do País, que se opõem aos privilégios desfrutados no mundo pelas nações ricas, capitalistas ou comunistas, e coincidem com as dos povos pobres do chamado Terceiro Mundo. Finalmente, tive muitas vezes a necessidade de subir à tribuna para defender um dos mais sagrados dos direitos do homem, que é o de, preso, receber um tratamento condigno por parte de seus carcereiros e de somente ser provado da sua liberdade em virtude de transgressão da lei, sendo-lhe garantida a defesa ampla. É notório que este direito à liberdade e à integridade física vem frequentemente sendo desrespeitado no Brasil. Assim o proclama o Superior Tribunal Militar, através de centenas e centenas de habeas corpus que concede e da reforma de dezenas e dezenas de sentenças de primeira instância. Assim o proclama o mais alto tribunal da República, o Supremo Tribunal Federal, corrigindo, muitas vezes, a negativa de algumas mercês que, no Tribunal Militar, não encontraram amparo. Na defesa destes direitos acuso o espírito militarista que se apossou de uma minoria de civis e militares, que infelizmente desfruta de acesso ou de participação nos conselhos da República. Repito o que em minhas razões preliminares disse: nem todos os militaristas são militares. A maioria dos militares não é militarista. [Segunda-feira passada, no Rio de Janeiro, conversei longamente com um general do Exército, que na ativa se encontra. Disse-me ele que eu fora, talvez, infeliz nas palavras que proferi ao expressar a repugnância que sentia pela impunidade em que se mantêm os que praticam abusos de poder e violência. Mas que esta repugnância, que da tribuna da Câmara tantas vezes manifestei, é compartilhada por todos os oficiais que se norteiam pelos ideais republicanos de respeito à Lei e à Constituição e pelos ideais militares de honra à farda e à corporação a que pertencem. Um outro oficial de grande prestígio entre seus pares declarou a vários deputados que não teriam eles – e aqui o pronome teria significado da maioria do corpo de oficiais das três armas – condições de defender um poder que abria mão de suas prerrogativas e, portanto, deixava de merecer respeito dos brasileiros. Sr. Presidente, não defendo o mandato que recebi para furtar-me à responsabilidade de responder por minhas palavras e opiniões. Nunca deixei de ser por elas pessoalmente

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responsável, como jamais deixei de exprimi-las. Ataquei governos e poderosos quando a proteger-me tinha apenas a inviolabilidade de minha consciência. Nas trincheiras da oposição passei minha vida de jornalista. Não abdiquei do meu dever de opinar quando muitos calavam e o Presidente da República podia suspender arbitrariamente direitos políticos. Por que luto, então? Luto por solidariedade a esta Câmara livre de pressões e ameaças. Luto por solidariedade a todos e a cada um dos deputados, cujo dever de dizerem o que pensam – ainda que pensem de modo totalmente contrário às minhas opiniões – querem cassar. Luto porque cedo aprendi a respeitar a Câmara dos Deputados e, depois de a ela pertencer, aprendi a amá-la. Luto porque quero a Câmara aberta e digna. Quero que daqui saiam as leis e as reformas que reconstruirão no Brasil a democracia e estabelecerão a justiça social. Quero que o Congresso recobre algumas das suas prerrogativas perdidas e conserve as que preservou]. Sei que a tentativa de cassar o meu mandato é apenas a primeira, de muitas que virão. Sei que o apetite, dos que a esta Casa desejam mal, é insaciável. Os que pensam em aplaca-lo hoje, com o sacrifício de um parlamentar, estarão apenas estimulando a sua voracidade. Buscam os inimigos do Congresso um pretexto. Acusam-me de injuriar as Forças Armadas. Nos processos penais de injúria a ação é liminarmente suspensa quando o acusado nega o seu ânimo de injuriar, e o acusador aceita a explicação. Nego aqui e agora que haja, em qualquer tempo ou lugar, injuriado as Forças Armadas. As classes militares sempre mereceram e merecem o meu respeito. O militarismo, que pretende dominá-las e comprometer-lhes as tradições democráticas, transformando-as em sua maior vitima, esse militarismo – deformação criminosa que a civis e militares contamina – impõe-se ao nosso repúdio. [Finalizo, Sr. Presidente, na esperança de que as angústias e sofrimentos que atravessamos possam servir para o engrandecimento do Congresso e a liberdade da Pátria. Os últimos dias foram pródigos em exemplos e lições. Um homem modesto, suave e tranqüilo mostrou ao Brasil que no momento da verdade transforma-se a dignidade no cinzel que esculpe o herói. Djalma Marinho soube recusar as honras para ficar com a sua consciência. Juntamente com seus companheiros de partido, que foram expurgados da Comissão de Justiça em nome de ideais a que se conservaram fiéis, personifica a independência da Câmara. Vindo de outro Rio Grande, onde o sangue dos peleadores firmou as fronteiras da Pátria, Daniel Kriegar mostrou que estão vivas as tradições de bravura dos gaúchos. É o verdadeiro e digno irmão do cavaleiro andante Brito Velho]. Entrego-me agora ao julgamento dos meus pares. Rogo a Deus que cada um saiba julgar, em consciência, se íntegra deseja manter a liberdade desta tribuna, que livre recebemos das gerações que construíram as tradições políticas do Brasil. Rogo a Deus que mereça a Câmara o respeito dos brasileiros, que possamos, no futuro, andar pelas ruas de cabeça erguida, olhar nos olhos os nossos filhos, os nossos amigos. Rogo a Deus, finalmente, que o Poder Legislativo se recuse a entregar a um pequeno grupo de extremistas o cutelo da sua degola. Volta-se o Brasil para a decisão que tomaremos. Mas só a História nos julgará.