representaÇÕes dos Índios goitacÁ na paisagem ... · quanto com o racionalismo. o método...

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A D IVERSIDADE DA G EOGRAFIA B RASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO 5273 REPRESENTAÇÕES DOS ÍNDIOS GOITACÁ NA PAISAGEM CONTEMPORÂNEA DE CAMPOS DOS GOYTACAZES PRISCILA VIANA ALVES 1 JOILSON BESSA DA SILVA 2 Resumo: Este artigo debate as representações espaciais dos índios Goitacá existentes na paisagem contemporânea de Campos dos Goytacazes - Rio de Janeiro. Este município abrange parte do território ocupado pela nação indígena Goitacá até o século XVII. A paisagem na concepção da Geografia Humanista não é composta apenas pelas suas formas, mas também por seus repletos significados que necessitam ser interpretados. A construção da identidade é resultado de um processo de relações de poder, que visa afirmar ou negar determinados traços culturais de um grupo. Esta afirmação ou negação é perceptível tanto na toponímia quanto nos elementos que compõem a paisagem. Palavras-chave: Paisagem; Representação; Goitacá Abstract: This paper debates Goitacá Indian‟s spatial representation on the contemporary landscape of Campos dos Goytacazes Rio de Janeiro.This town covers part of Goitacá‟s occupied territory until the seventeenth century. The landscape in Humanist Geography conception is not composed only by its forms, but also for its many meanings that need to be interpret. The identity‟s contruction results from a process of power relationships that aim to affirm or negate specific cultural aspects of a group. This affirmation or negation is sensitive both in toponym and in elements that compose the landscape. Key-words: Landscape, Representation, Goitacá INTRODUÇÃO O presente trabalho visa discutir as representações espaciais dos índios Goitacá impressas na paisagem contemporânea de Campos dos Goytacazes, município localizado no Norte do estado do Rio de Janeiro, na região Sudeste do Brasil. Os limites territoriais dessa planície abrangem parte do território ocupado pela nação indígena Goitacá até o século XVII. Em virtude dessa interseção encontram- se referências étnico-culturais dos primeiros habitantes de Campos na formação socioespacial da planície Goitacá. Esses, como diversas outras nações indígenas brasileiras, foram exterminadas pelos colonizadores portugueses a partir do século XVI. Em consequência disto muitos aspectos relacionados à cultura desse povo se 1 Graduada em Geografia no Instituto Federal Fluminense (IFF/Campos). Bolsista do Programa Observatório da Educação do Brasil OBEDUC/CAPES (Polo Campos). Discente do Programa de Pós-Graduação em Geografia PPG/UFF/Campos. E-mail de contato: [email protected] 2 Historiador. Professor da Escola Municipal José do Patrocínio Campos dos Goytacazes. Bolsista do Programa Observatório da Educação do Brasil OBEDUC/CAPES (Polo Campos). Discente do Programa de Pós-Graduação em Geografia PPG/UFF/Campos. E-mail de contato: [email protected]

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A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO

DE 9 A 12 DE OUTUBRO

5273

REPRESENTAÇÕES DOS ÍNDIOS GOITACÁ NA PAISAGEM CONTEMPORÂNEA DE CAMPOS DOS GOYTACAZES

PRISCILA VIANA ALVES1

JOILSON BESSA DA SILVA 2

Resumo: Este artigo debate as representações espaciais dos índios Goitacá existentes na

paisagem contemporânea de Campos dos Goytacazes - Rio de Janeiro. Este município abrange parte do território ocupado pela nação indígena Goitacá até o século XVII. A paisagem na concepção da Geografia Humanista não é composta apenas pelas suas formas, mas também por seus repletos significados que necessitam ser interpretados. A construção da identidade é resultado de um processo de relações de poder, que visa afirmar ou negar determinados traços culturais de um grupo. Esta afirmação ou negação é perceptível tanto na toponímia quanto nos elementos que compõem a paisagem.

Palavras-chave: Paisagem; Representação; Goitacá

Abstract: This paper debates Goitacá Indian‟s spatial representation on the contemporary

landscape of Campos dos Goytacazes – Rio de Janeiro.This town covers part of Goitacá‟s occupied territory until the seventeenth century. The landscape in Humanist Geography conception is not composed only by its forms, but also for its many meanings that need to be interpret. The identity‟s contruction results from a process of power relationships that aim to affirm or negate specific cultural aspects of a group. This affirmation or negation is sensitive both in toponym and in elements that compose the landscape.

Key-words: Landscape, Representation, Goitacá

INTRODUÇÃO

O presente trabalho visa discutir as representações espaciais dos índios

Goitacá impressas na paisagem contemporânea de Campos dos Goytacazes,

município localizado no Norte do estado do Rio de Janeiro, na região Sudeste do

Brasil. Os limites territoriais dessa planície abrangem parte do território ocupado pela

nação indígena Goitacá até o século XVII. Em virtude dessa interseção encontram-

se referências étnico-culturais dos primeiros habitantes de Campos na formação

socioespacial da planície Goitacá. Esses, como diversas outras nações indígenas

brasileiras, foram exterminadas pelos colonizadores portugueses a partir do século

XVI. Em consequência disto muitos aspectos relacionados à cultura desse povo se

1 Graduada em Geografia no Instituto Federal Fluminense (IFF/Campos). Bolsista do Programa

Observatório da Educação do Brasil – OBEDUC/CAPES (Polo Campos). Discente do Programa de Pós-Graduação em Geografia – PPG/UFF/Campos. E-mail de contato: [email protected] 2 Historiador. Professor da Escola Municipal José do Patrocínio – Campos dos Goytacazes. Bolsista

do Programa Observatório da Educação do Brasil – OBEDUC/CAPES (Polo Campos). Discente do Programa de Pós-Graduação em Geografia – PPG/UFF/Campos. E-mail de contato: [email protected]

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perderam ao longo do tempo, sobretudo as Remanescente materiais dessa

existência. Contudo, escassos vestígios da presença desses grupos ameríndios

estão presentes em materiais arqueológicos descobertos, bem como nos relatos de

viajantes naturalistas e cartógrafos dos séculos XVIII e XIX. A produção

historiográfica atual sobre os índios Goitacá é bem limitada. Dentre ao fatores

responsáveis por esta limitação, identificam-se o etnocídio e a escassez de

trabalhos acadêmicos voltados para esta questão. Porém há dois trabalhos

fundamentais para a compreensão de determinados aspectos da organização social

desse grupo indígena: o trabalho realizado por Manoel Martins do Couto Reis e a

obra de Alberto Ribeiro Lamego, escritas, respectivamente, nos séculos XVIII e XX.

Ambas estão contempladas na bibliografia deste artigo. Baseado na metodologia

proposta pela Geografia Humanista, fundamentada principalmente no método

fenomenológico da leitura das representações impressas na paisagem, será

possível identificar os diferentes tratamentos dados à imagem do índio Goitacá no

município de Campos dos Goytacazes na contemporaneidade. O trabalho em

questão encontra-se estruturado em dois eixos temáticos: a) a historiografia dos

índios Goitacá; b) a análise das representações indígenas evidenciadas na

paisagem de Campos dos Goytacazes. Este artigo consiste numa contribuição

interdisciplinar, em especial àquelas advindas da Geografia e da História, cujo

propósito visa o enriquecimento bibliográfico sobre os índios Goitacá. Sua relevância

diz respeito também ao reconhecimento e identificação de elementos da cultura dos

índios Goitacá no patrimônio material e imaterial que compõem a paisagem urbana e

rural campistas. Nesse sentido, a leitura da paisagem visa perceber como a

sociedade campista se identifica ou nega a cultura indígena goitacá.

ESCOPO TEÓRICO-METODOLÓGICO

Segundo Eric Dardel “a ciência geográfica pressupõe que o mundo seja

conhecido geograficamente, que o homem se sinta e se saiba ligado à Terra como

ser chamado a se realizar em sua condição terrestre” (DARDEL, 2015, p. 33). Logo,

a Geografia é uma experiência essencialmente humana. A relação entre a

Humanidade e a Terra é afetiva, prática, simbólica e ao mesmo tempo teórica. Estas

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dimensões são inerentes à condição terrestre. Dito de outra maneira, os laços

afetivos e práticos que ligam o ser humano à Terra bem como seus conhecimentos

teóricos e simbólicos são fundamentais para a interpretação do mundo.

A realidade geográfica humana é o lugar onde se está, onde a presença

humana se encontra. Este princípio preconiza que a Geografia deve ser entendida

como meio pelo qual a humanidade realiza a sua existência, como “base a partir da

qual a consciência se desenvolve [...]” (DARDEL, 2015, p. 48). A realização da

existência humana na Terra e o conhecimento do mundo dependem da valorização

de todos os saberes produzidos ao longo da história humanidade, desde as épocas

mais remotas. Isto implica na constatação de que o conhecimento científico

antecede a revolução epistemológica iluminista. Ou seja, a ciência não começou

com a emergência da modernidade.

A título de exemplo, o conhecimento grego e medieval do mundo tem origem

na tradição metafísica. Predominou em tais sociedades a consciência de que a

verdade suprema estava contida na essência das coisas. Contrapartida, a partir do

século XVIII, a ciência moderna criou a teoria do conhecimento baseada na razão. A

criação, nesse momento, de um método mais rígido, geral e objetivo aumentou a

confiabilidade na apreensão do conhecimento real. Contudo, a ciência racionalista

típica da modernidade negou a importância dos sentidos e da percepção como

método de conhecimento do mundo, baseada na necessidade de distanciamento

entre “o sujeito conhecedor e o objeto deste conhecimento” (GOMES, 1996, p. 68).

De acordo com este autor

A razão, graças ao método, era considerada como o único instrumento capaz de isolar estes dois termos. Entre o mundo sensível e o mundo inteligível, o único ponto capaz de separar a percepção personalizada e imediata do conhecimento geral, universal e objetivo é o método científico. (GOMES, 1996, p. 68.)

Opondo-se à ciência racionalista, emergiram correntes filosóficas que

retornaram ao conhecimento produzido pelos pré-socráticos. Dentre elas destaca-se

a fenomenologia, que possibilitou o rompimento tanto com a tradição metafísica

quanto com o racionalismo. O método fenomenológico mostrará que o conhecimento

do mundo não depende exclusivamente da razão. Depende também dos sentidos e

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da percepção. Sendo assim, o espaço pode ser interpretado por meio de símbolos.

Traduzindo, pode ser compreendido e experimentado, além de explicado.

Relph foi o primeiro geógrafo a escrever sobre a possível contribuição da

fenomenologia como suporte filosófico para a Geografia, principalmente em relação

aos estudos subjetivos de caráter humanista. Tecendo comentários sobre esse autor

e suas ideias, Holzer afirma que

O método fenomenológico seria utilizado para fazer uma descrição rigorosa do mundo vivido da experiência humana e, com isso, por meio da intencionalidade, reconhecer as “essências” da estrutura perceptiva [...] Relph previa pelo menos duas consequências imediatas do uso da fenomenologia na geografia: uma visão holística e unificadora da relação homem-natureza e uma crítica ao cientificismo e ao positivismo (HOLZER, 2012, p. 169).

A Geografia Humanista considera a compreensão da Terra como vocação

geográfica e não como análise pontual dos fenômenos naturais. Desta maneira deve

contribuir para o desvelamento da Terra tanto objetiva como subjetivamente.

Na tentativa de desvelar algumas representações dos índios Goitacá

presentes na paisagem campista contemporânea, este artigo abordará certos

aspectos simbólicos contidos na toponímia regional e em sete registros imagéticos

de Campos dos Goytacazes, sendo dois produzidos e utilizados oficialmente pelo

poder público municipal e o restante extraído de acervos particulares ou

disponibilizado pelas mídias eletrônicas.

HISTORIOGRAFIA DOS ÍNDIOS GOITACÁ EM CAMPOS

Como foi mencionado na introdução deste artigo, a historiografia indígena em

Campos dos Goytacazes é limitada. Contudo há duas obras reveladoras de alguns

aspectos da organização sociocultural dos índios Goitacá nessa região: A Descrição

geográfica, política e cronográfica do distrito dos Campos dos Goytacazes, de

Manoel Martins do Couto Reis e O Homem e o Brejo, de Alberto Ribeiro Lamego.

Os manuscritos originais de Couto Reis se encontram no Arquivo Público

Municipal de Campos dos Goytacazes. Em seus relatos o autor narra a história da

disputa colonial nessa região, os enfrentamentos indígenas, além de apresentar o

resultado cartográfico de seu trabalho. Sobre a localização geográfica dos índios

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Goitacá, Couto Reis escreve que

[...] segundo as tradições mais justificadas consta que habitaram as Campinas deste Distrito compreendidas entre a lagoa Feia, de Carapebus e Ponta de São Tomé, os Índios Goytacazes, possuindo também toda a Costa

do mar correspondente, até a vizinhança de Macaé. (REIS, 2011, p. 145.).

No século XVI, a região denominada Capitania de São Tomé foi doada a Pero

de Góis da Silveira. A invasão por parte dos europeus não se deu sem a resistência

dos ameríndios, os quais foram contra a colonização portuguesa, dificultando a

ocupação da planície nesse momento.

Para Alberto Lamego o que garantia toda essa intrepidez natural do ameríndio

era a própria condição geográfica, considerando que “a lagoa ou o brejo, que se

completam e se entretocam em toda esta faixa litorânea, é que lhes fortifica o valor

guerreiro por vantagens estratégicas originais” (LAMEGO, 1940, p. 87). Segundo

este autor, viajantes e cronistas como Simão de Vasconcelos, Couto Reis e Augusto

de Saint-Hilaire afirmaram em seus relatos que os índios da nação Goitacá,

respectivamente, “eram os mais terríveis índios dos Brasis”, “audazes, destemidos,

vigilantes” e “sabiam manejar o arco com destreza” (LAMEGO, 1940).

Acerca de certos rituais dos índios Goitacá, o padre Aires de Casal afirma em

seu livro Corografia Brasílica do Reino do Brasil que eles tinham o costume de

enterrar seus mortos assentados, como corrobora esta assertiva: “Antigamente

sepultavam os caciques encolhidos dentro de grandes vasos de barro cilíndricos,

denominados camucis, dos quais se têm desenterrados alguns ainda com ossos”

(CASAL, 1976, p. 207).

Registros de rituais de passagem semelhantes estão presentes nos

manuscritos de Couto Reis. Neles está escrito que “em vários lugares dos Campos,

casualmente cavando-se, se tem achado deste gênero de sepulcro [...]” (REIS,

2011, p. 157). Neste momento o autor se refere as cerâmicas encontradas nessa

região, que eram utilizadas como urnas funerárias.

O desaparecimento da herança indígena em Campos foi resultado tanto do

massacre e extermínio físico dos povos indígenas quanto de uma opção política de

ocultamento desta herança. Este fato não foi diferente no restante do Estado do Rio

de Janeiro, tendo em vista que “todos os grupos indígenas que viviam no Rio de

Janeiro foram extintos, antes mesmo que tivéssemos um conhecimento mais

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profundo de como viviam [...]” (FREIRE, 2010, s/p). Já Alberto Lamego relaciona o

desaparecimento dos índios da nação Goitacá ao avanço e predomínio da cultura

Guarani do Brasil. Neste sentido ele escreve que

[...] a não ser pelo nome da planície nada mais o lembra. Sumiu-se tudo. Toda toponímia de sua áspera linguagem desapareceu. Terá sido influência guaranizante, possivelmente jesuítica, riscando e substituindo toda a

nomenclatura de rios, lagoas e montanhas [...] (LAMEGO, 1940, p. 86).

Mesmo diante da escassez historiográfica sobre os índios Goitacá em

Campos dos Goytacazes, a contribuição dos autores citados anteriormente vai ser

extremamente importante para a compreensão das representações indígenas nesse

município, próximo assunto a ser tratado.

REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS NA PAISAGEM CAMPISTA

A paisagem é uma criação humana relacionada à percepção e apropriação

do mundo. Todas as paisagens são simbólicas. Nelas estão impressas os valores

culturais dos grupos que compõem uma determinada sociedade. Para realizar a

leitura dessas impressões, é necessário conhecer sua história, seus costumes,

seus símbolos e significados.

O atual município de Campos dos Goytacazes recebeu diversas

denominações entre os séculos XVI e a contemporaneidade. Esses nomes revelam

parte da sua história, traduzem certas características físicas predominantes no

espaço, bem como revelam determinados aspectos socioculturais de seus

habitantes.

Registros datados do século XVI referem-se aos limites atuais desse

município como pertencente à Capitania de São Tomé. Esta expressão apresenta

duplo significado histórico: primeiro, aponta para o tipo de organização

administrativa implantada na colônia; segundo, evidencia um aspecto importante

desse processo colonizador - o poderio da Igreja Católica.

Ainda no século XVI as terras que deram origem ao município passaram a

ser conhecidas como Capitania do Paraíba do Sul, referência direta a um acidente

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geográfico presente nessa região, fundamental para a existência de quaisquer

povoado, vila, cidade ou município: o rio.

Mais tarde, no final do século XVII, é fundada nessas terras a Vila de São

Salvador dos Campos. Estes três termos denotam, respectivamente, a forma de

organização administrativa, a presença do catolicismo e o tipo de relevo

predominante nessa região.

Percebe-se a partir dessas variadas denominações atribuídas ao lugar,

desses variados topônimos, como “a dinâmica das visões de mundo, das religiões,

das culturas e das ideologias políticas inevitavelmente imprime suas marcas no

espaço” (MATA, 2005, p.133).

A partir de 1835 o termo “Goytacazes” vai dar nome ao município,

aparecendo mais tarde nos seus principais símbolos (Figuras 01 e 02). A ideia de

pertencimento contida na expressão “Campos dos Goytacazes” aparece também

em “O viridente plaino Goitacá”, segundo verso do hino municipal. Nestas

representações os índios Goitacá aparecem como legítimos donos dessa terra,

embora os mesmos tenham sido expulsos ou exterminados.

A bandeira e o brasão podem ser percebidos em inúmeros elementos

constitutivos da paisagem campista. São visíveis principalmente nas repartições

públicas e no patrimônio material de Campos. Contudo aparecem de maneira

significativa em vários estabelecimentos comerciais e nos meios de transporte que

circulam dentro da cidade ou interligam seus distritos.

As imagens e inscrições presentes no brasão evidenciam determinados

aspectos naturais, econômicos, políticos e socioculturais de Campos dos

Goytacazes, município predominantemente agrícola até a segunda metade do

século XX, quando teve início a exploração de petróleo na bacia de Campos.

Figura 01 – Brasão Municipal de Campos dos Goytacazes. Fonte: site da P.M.C.G.

– Acessado em maio de 2015.

Figura 02 – Bandeira Municipal de Campos dos Goytacazes. Fonte: site da P.M.C.G. – Acessado em maio de 2015.

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O ramo de café e as hastes de cana-de-açúcar, por exemplo, referem-se a

agroexportação destes produtos. Este aspecto da economia resultou na

consolidação de latifúndios e no empoderamento da elite local, fato que pode ser

percebido na paisagem através de casarões e solares, obras arquitetônicas

características do período colonial brasileiro. Já o nome do município, composto

por dois substantivos impressos no alto da flâmula amarela que envolve todo o

conjunto, revela nossas raízes históricas e a importância dos índios da nação

Goitacá para a formação da sociedade campista. Consiste também num exemplo

de “topofilia”, de amor à terra natal, de valorização da história desse lugar.

Segundo Yi-Fu Tuan

[...] A consciência do passado é um elemento importante no amor pelo lugar. A retórica patriótica sempre tem dado ênfase as raízes de um povo. Para intensificar a lealdade se torna a história visível com monumentos na paisagem e as batalhas passadas são lembradas, na crença de que o sangue dos heróis santificou o solo (TUAN, 1980, p.144).

No início da década de 1990 foi inaugurada na entrada da cidade a estátua

de um índio empunhando arco e flecha (Figura 03). Como foi dito anteriormente,

os Goitacá manejavam com destreza estes artefatos. Logo, a presença desse

índio na paisagem simbolizava os primeiros habitantes de Campos, tendo em vista

que “Um símbolo é uma parte que tem o poder de sugerir um todo [...]” (TUAN,

1980, p.43).

Porém essa estátua indígena de tamanho desproporcional, feita

principalmente de isopor e espuma, materiais utilizados nos adereços e alegorias

das agremiações carnavalescas campistas dessa época, consistia numa

representação que compunha tanto a paisagem quanto o cenário local. Conforme

a análise destes termos estudados pelo Geógrafo Yi-Fu Tuan

Cenário e paisagem agora são quase sinônimos. A pequena diferença existente entre eles reflete suas origens diferentes. Tradicionalmente, a palavra cenário tem sido associada com o mundo de ilusão, que é o teatro. A expressão „atrás dos bastidores‟ revela a irrealidade das cenas. Nós não podemos proferir „atrás da paisagem‟, apesar de que um jardim paisagístico pode ser tão planejado quanto um cenário de teatro e ter tão pouco a ver com a vida de seu proprietário como a parafernália do palco com a vida do ator (TUAN, 1980, p.188).

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A ilusão provocada pelo monumento erguido em homenagem à nação

indígena Goitacá não durou muito tempo nesse local onde a poucos metros

funciona a principal rodoviária do município. Em 2006 essa representação do índio

Goitacá foi definitivamente retirada do Trevo do Contorno e, posteriormente,

substituída por uma bomba de extração de petróleo, denominada cavalo mecânico

ou “cavalo-de-pau”, mais um elemento figurativo da paisagem local (Figura 4).

O petróleo é a principal fonte de recursos do município de Campos dos

Goytacazes atualmente. Entretanto, o tipo de bomba colocada na entrada da

cidade é utilizada para a extração desse minério em terra firme. Não é isto que

acontece em Campos. Os poços de petróleo dessa região estão localizados em

alto mar. Ou seja, no lugar da antiga estátua encontra-se hoje em dia outro

monumento, cujas características também não correspondem à realidade dessa

região, configurando assim mais um elemento cenográfico na paisagem campista.

O tratamento dispensado à estátua do índio pelo poder público municipal,

abandonada em Tocos desde 2006 (Figuras 5), representa uma negação do

nosso passado histórico, uma tentativa de negar nossa identidade cultural. Mais

do que isso, mostra a hegemonia da economia relacionada à extração de petróleo

e aos royalties advindos deste recurso natural em detrimento das lembranças

histórico-culturais que a estátua do índio Goitacá poderia suscitar na população

campista.

Mesmo em desacordo com o biótipo dos índios Goitacá, segundo dados

empíricos encontrados no sítio arqueológico do Caju, localizado no município de

Campos, interior do Estado do Rio de Janeiro, o último Goitacá, como último

Figura 04 – Cavalo mecânico. Fonte: Acervo pessoal de Joilson Bessa (2015).

Figura 03 – Estátua do índio Goitacá. Fonte: http://camposfotos.blogspot.com

– Acessado em maio de 2015.

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guerreiro, luta contra o tempo dentro de uma estrutura enferrujada, preenchida

com gesso e outros materiais em decomposição.

Contudo, nem todas as representações espaciais dos índios Goitacá

presentes na paisagem do município negam nossa identidade, como sugerem as

duas fotografias acima. Um exemplo significativo de valorização do nosso

passado, das nossas memórias, consequentemente da nossa identidade histórico-

cultural está associada a história do time de futebol mais popular e querido dessa

região: Goytacaz Futebol Clube (Figura 06).

Essa agremiação esportiva foi fundada em 1912 por um grupo de

remadores oriundos do clube Natação de Regatas Campista. A relação pregressa

desse time de futebol com o esporte aquático lembra a ligação dos índios Goitacá

com os brejos, lagoas e rios, já que o termo indica um atributo desses guerreiros,

considerados exímios nadadores.

O nome do time foi escolhido para homenagear os índios da nação Goitacá.

Coincidentemente seus jogadores são considerados verdadeiros guerreiros em

campo e a torcida alvi-anil a quinta maior nação do Estado do Rio de Janeiro

(Figura 07).

Figura 05 – Estátua do índio, em Tocos. Fonte: Acervo pessoal de

Elis Miranda (2015).

Figura 06 – Estádio do Goytacaz Futebol Clube. Fonte: Acervo pessoal

de Joilson Bessa (2015).

Figura 07 – Jogo do Goytacaz. Fonte: http://www.goytacaz.com.br – Acessado

em maio de 2015.

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Goytacaz, guerreiro e nação são substantivos utilizados pelos torcedores

desse clube futebolístico, que fortalecem os laços identitários existentes entre os

campistas e seus ancestrais, os destemidos indígenas da nação Goitacá. Estas

palavras apresentam múltiplos significados. Conforme Cosgrove,

As paisagens tomadas como verdadeiras de nossa vida cotidiana estão cheias de significados. Grande parte da geografia mais interessante está em decodificá-las. É tarefa que pode ser realizada por qualquer pessoa no nível de sofisticação apropriado para elas. Porque a geografia está em toda a parte, reproduzida diariamente por cada um de nós. A recuperação do significado em nossas paisagens comuns nos diz muito sobre nós mesmos [...] (COSGROVE, 1998, p. 121).

Por fim, as verdades contidas nas paisagens cotidianas analisadas neste

artigo consistem em representações de mundo latentes em cada imagem ou registro

fotográfico, cuja decifração, decodificação e desvelamento dos seus significados não

são tarefas exclusivas do geógrafo.

CONCLUSÕES

A construção da identidade é resultado de um processo de relações de poder,

que visa valorizar ou negar determinados traços culturais de um grupo. Esta

afirmação ou negação é perceptível tanto na toponímia quanto nos elementos que

compõem a paisagem.

Os termos “goitacazes”, “goitacaz” e “goitacá” aparecem em diversos

elementos da paisagem campista. Ora eles denominam certos lugares pertencentes

ao município, ora nomeiam determinados produtos e serviços prestados nessa

região.

Além do nome do município, existem outros locais que fazem referência direta

aos primeiros habitantes dessa terra, tanto na área rural como na área urbana.

Neste sentido há, respectivamente, Goitacazes, segundo distrito de Campos,

localizado na Baixada Campista e a Rua dos Goitacazes, importante via de acesso à

ponte, que interliga as duas margens do rio Paraíba do Sul.

A apropriação de expressões relacionadas aos indígenas que viveram nessa

região está associada a diversos serviços prestados em Campos dos Goytacazes,

sobretudo na área de esporte e cultura, como exemplificam o extinto Cine Goitacá, a

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Locadora Goytacaz e uma academia com o mesmo nome.

Existe em Campos uma empresa especializada na fabricação e/ou

empacotamento de alguns condimentos que utiliza tanto o termo Goytacaz quanto a

imagem de um índio, em suas embalagens. Esses produtos podem ser encontrados

na maioria dos estabelecimentos comerciais da região, consumidos principalmente

pela população campista.

Esses exemplos todos retirados da toponímia mais a existência de um time de

futebol, cujo nome consiste numa homenagem aos índios Goitacá, reforçam a

identidade histórico-cultural dos campistas. Contudo, esta mesma identidade é

negada pela atuação do poder público municipal, como evidencia a retirada da

imagem do índio que compunha o cenário da entrada da cidade, substituída por um

monumento de extração petrolífera.

REFERÊNCIAS CASAL, Manoel Aires de. Corografia Brasílica do Reino do Brasil. 1976.

COSGROVE, Denis. A geografia está em toda parte: Cultura e simbolismo nas paisagens humanas.

In: ROSENDAHL, Zeny; CORRÊA, Roberto Lobato (orgs.). Paisagem, tempo e cultura. Ed. Rio de

Janeiro: EdUERJ, 1998, pp. 92-122.

DARDEL, Eric. O homem e a terra: natureza da realidade geográfica. Tradução: Werther Holzer.

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