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TARCÍSIO MARCELINO FERREIRA MONAY AS MULHERES NO EVANGELHO DE JOÃO paradigmas de fé e anúncio Dissertação apresentada ao Departamento de Teologia da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Teologia. Área de concentração: Teologia Sistemática Orientador: Prof. Dr. Jaldemir Vitório, SJ BELO HORIZONTE - MG FAJE - Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia 2008

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TARCÍSIO MARCELINO FERREIRA MONAY

AS MULHERES NO EVANGELHO DE JOÃO paradigmas de fé e anúncio

Dissertação apresentada ao Departamento de

Teologia da Faculdade Jesuíta de Filosofia e

Teologia, como requisito parcial à obtenção do título

de Mestre em Teologia.

Área de concentração: Teologia Sistemática

Orientador: Prof. Dr. Jaldemir Vitório, SJ

BELO HORIZONTE - MG

FAJE - Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia

2008

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Agradecimentos

Senhor, obrigado pelo dom da vida e da sabedoria que me fazem me aproximar de vossa

infinita bondade e misericórdia.

Senhor, obrigado pelos pais, irmão e irmãs que me destes e que me possibilitaram a

experiência da ternura e do vigor no aconchego familiar.

Senhor, obrigado pelos irmãos e irmãs que encontrei no caminho da vida e que me ensinaram

a alegria de amar e ser amado.

Senhor, obrigado por nos revelar o seu maravilhoso SER.

Senhor, obrigado por me fazer conhecer a vossa palavra de vida eterna. AMÉM!

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RESUMO

A fé e o anúncio são dois temas fundamentais do Evangelho de João. À primeira vista, tem-se

a impressão de serem referidos exclusivamente aos homens, como se os discípulos tivessem o

privilégio do apostolado, na condição de testemunhas do Ressuscitado. Esta dissertação, indo

além das aparências, tem o objetivo de mostrar a importância das mulheres no Quarto

Evangelho, por reunirem os elementos que as tornam paradigmas de fé e de anúncio para a

comunidade joanina. O primeiro passo consistirá em fazer um levantamento da vivência e dos

desafios da fé na comunidade de João. Sobre este pano de fundo, serão projetadas duas

imagens de mulheres que, no Evangelho, são modelos de discipulado. A análise de Jo 4,1-42

explicitará a experiência de fé e de anúncio na narração do encontro da mulher Samaritana

com Jesus, junto ao poço de Jacó. Na mesma linha, a análise de Jo 20,1-18 concentrar-se-á em

Maria Madalena, na cena do encontro com o Ressuscitado, próximo ao túmulo vazio. O passo

seguinte consistirá em retomar os pontos mais relevantes da análise de Jo 4,1-42 e 20,1-18,

para explicitar os eixos semânticos de ambas as perícopes, no tocante à fé e ao anúncio. Os

relatos da Samaritana e de Maria Madalena comportam as grandes linhas da catequese sobre a

fé e o anúncio na comunidade joanina. O último passo consiste na leitura hermenêutica do

tema da dissertação, na tentativa de haurir inspirações para a vivência da fé e do anúncio nas

comunidades cristãs de hoje.

PALAVRAS-CHAVES

A Samaritana, Maria Madalena, Evangelho de João, Mulher, Fé, Anúncio, Paradigma.

ABSTRACT

Faith and proclamation are two fundamental themes of the Gospel of John. At first sight there

is the impression that they refer exclusively to men, as if the disciples had the privilege of

apostleship, being Witnesses of the Risen One. This dissertation, going beyond the

appearances, has as its objective to show the importance of women to the Fourth Gospel, by

uniting the elements which make them paradigms of faith and proclamation for the Joannine

community. The first step will be to examine the life and challenges of faith in the community

of John. Onto the background will be projected two images of women which in the gospel are

models of discipleship. The analysis of Jn 4:1-42 will make explicit the experience of faith

and proclamation in the narration of the encounter of the Samaritan woman with Jesus, at

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Jacob‟s well. Similarly the analysis of Jn 20:1-18 will concentrate on Mary Magdalen in the

scene of her encounter with the Risen One near the empty tomb. The next step will be to take

up again the most relevant points of the analyses of Jn 4:1-42 and 20:1-18 to make explicit the

semantic hinges of both pericopes, as they touch on faith and proclamation. The stories of the

Samaritan woman and of Mary Magdalen carry the main lines of catequetics about faith and

proclamation in the Joannine community. The last step consists in the hermeneutical reading

of the theme of the dissertation, trying to derive inspiration for the living of faith and

proclamation in the Christian communities of today.

KEY-WORDS

The Samaritan, Mary Magdalen, Gospel of John, Woman, Faith, Proclamation, Paradigm.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 9

1. JOÃO E SUA COMUNIDADE: DESAFIOS DA FÉ E DO ANÚNCIO ......... 13

1.1. Introdução ................................................................................................... 13

1.2. Pi,stij: adesão da comunidade a Cristo Jesus ............................................ 13

1.3. Conflito com os discípulos de João Batista ................................................ 17

1.4. Conflitos com a Sinagoga ........................................................................... 19

1.5. Conflitos internos da comunidade .............................................................. 23

1.6. Preocupações pastorais do evangelista ....................................................... 32

1.7. Conclusão ................................................................................................... 36

2. O DOM DE DEUS OFERECIDO À SAMARITANA ..................................... 38

2.1. Introdução ................................................................................................... 38

2.2. A Missão de Jesus: Jo 4,1-6 ........................................................................ 39

2.3. O encontro da samaritana com Jesus .......................................................... 43

2.3.1. A sede de Jesus e a mulher samaritana - Jo 4,7-9 ................................ 43

2.3.2. O dom de Deus: Jo 4,10-15 ................................................................. 45

2.4. A sede de Jesus: a fé da samaritana - Jo 4,16-24 ........................................ 49

2.5. A revelação de Jesus à samaritana .............................................................. 53

2.5.1. Jesus é o messias - Jo 4,25-26 ............................................................. 54

2.5.2. A não-compreensão dos discípulos – Jo 4,27 ...................................... 56

2.6. A samaritana anuncia o Messias a seu povo ............................................... 57

2.6.1. A mulher torna-se discípula - Jo 4,28-30 ............................................ 58

2.6.2. O verdadeiro alimento: fazer a vontade do Pai - Jo 4,31-38 ............... 60

2.6.3. O verdadeiro Salvador do mundo - Jo 4,39-42 .................................... 63

2.7. O trabalho incansável de Jesus - Jo 4,43-46 ............................................... 66

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2.8. Conclusão ................................................................................................... 69

3. A RESPOSTA DE MARIA MADALENA AO CHAMADO - Jo 20,1-18 ...... 72

3.1. Introdução ................................................................................................... 72

3.2. Maria Madalena vai ao túmulo e vê a pedra removida - Jo 20,1 ................ 74

3.2.1. Maria Madalena vai avisar Pedro e o outro discípulo – Jo 20,2 .......... 77

3.2.2. Pedro e o outro discípulo correm até o túmulo – Jo 20,3-10 ............... 79

3.3. Maria Madalena permanece junto ao túmulo ............................................. 83

3.3.1. Maria vê os anjos e fala com eles – Jo 20,11-13 ................................. 83

3.3.2. Maria vê Jesus, mas não o reconhece – Jo 20,14-15 ........................... 85

3.4. Jesus fala com Madalena e lhe dá uma missão – Jo 20,16-17 .................... 88

3.5. Maria Madalena é enviada a anunciar aos discípulos - Jo 20,18 ................ 91

3.6. Conclusão ................................................................................................... 93

4. CONTRIBUIÇÃO DA SAMARITANA E DE MARIA MADALENA NA FÉ

E NO ANÚNCIO PARA A COMUNIDADE JOANINA ............................... 95

4.1. Introdução ................................................................................................... 95

4.2. A escuta da palavra de Jesus prepara o discípulo para a missão ................ 96

4.2.1. A samaritana escuta Jesus junto ao poço de Jacó ................................ 97

4.2.2. Maria Madalena identifica o Senhor.................................................. 102

4.3. A abertura ao dom de Deus torna o discipulado sinal do Reino ............... 104

4.3.1. A mulher samaritana é sinal do Reino para seus conterrâneos .......... 105

4.3.2. O amor de Maria Madalena é sinal do Reino .................................... 108

4.4. Coragem e a permanência em Cristo: fonte de vida para a comunidade .. 111

4.4.1. A samaritana: sua permanência em Jesus e sua coragem .................. 113

4.4.2. Maria Madalena: sua permanência em Cristo e sua coragem............ 115

4.5. Conclusão ................................................................................................. 118

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5. IGREJA: COMUNIDADE DE FÉ E ANÚNCIO ........................................... 119

5.1. Introdução ................................................................................................. 119

5.2. O amor: ato fundante da comunidade que crê e anuncia .......................... 119

5.3. Mulher: Modelo de Igreja-esposa de Cristo ............................................. 124

5.4. Intimidade com Cristo através de sua Palavra .......................................... 127

5.5.Coragem para romper as barreiras e as limitações institucionais .............. 129

5.6. Superação da arrogância e do egoísmo ..................................................... 134

5.7. Conclusão ................................................................................................. 137

CONCLUSÃO ..................................................................................................... 139

BIBLIOGRAFIA ................................................................................................. 143

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ABREVIAÇÕES

AT Antigo Testamento

NT Novo Testamento

aC Antes de Cristo

dC Depois de Cristo

CNBB Conferência Nacional dos Bispos do Brasil

CELAM Conferência Episcopal da América Latina

v, vv

v

Versículo, versículos

Volume (quando aparece na indicação bibliográfica)

s, ss Seguinte, seguintes

As abreviações bíblicas seguem a tradução da CNBB. As abreviaturas da ABNT não são

referidas.

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INTRODUÇÃO

A narração joanina apresenta uma comunidade marcada por uma vida de fé, a

ponto de viver mergulhada na intimidade com Jesus, selando, assim, seu compromisso radical

no seguimento a ele. A vida de Jesus narrada pelo evangelista traz também à tona a vida da

comunidade inserida nela. Para participar da comunidade cristã torna-se necessário vincular-

se a Jesus sendo capaz de caminhar com seu sofrimento e com todo o sofredor. A palavra de

Jesus fecunda o coração dos discípulos e das discípulas tornando-os íntimos do Senhor. Os

seguidores do Nazareno assumem corresponsavelmente seu compromisso na construção do

reino de Deus. Os ensinamentos de Jesus fazem do discipulado um sinal da presença de Jesus

no mundo. Sinal que leva a uma verdadeira profissão de fé: “... ele é verdadeiramente o

Salvador do mundo” (Jo 4,42). O evangelista João evidencia a intenção da narrativa do

Quarto Evangelho quando afirma: “Estes foram escritos para que creais que Jesus é o Cristo,

o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais vida em seu nome” (Jo 20,31). Na constituição e

participação desta comunidade, João apresenta algumas mulheres, personagens presentes ao

longo de toda a narração como paradigmas de fé e de anúncio. São mulheres que escutam,

dialogam, aderem e anunciam o Cristo aos outros irmãos e irmãs, como o Messias que tanto

esperavam (cf. Jo 4,28-30). Elas acompanham Jesus em todo seu ministério. Não se

escandalizam com a cruz; pelo contrário, marcam presença aos pés da cruz. O amor destas

mulheres vai além da cruz. A insistência e a procura pelo Senhor da vida (cf. Jo 20,1-2.11-16)

faz de Maria Madalena uma verdadeira testemunha do Cristo ressuscitado. Estes paradigmas

são muito importantes para a vida da comunidade, pois refletem a história, a teologia e os

valores nela presentes. Em João, esses paradigmas tipológicos femininos não encontram

paralelo entre os homens.

É possível levantar a hipótese de que, no Evangelho de João, as mulheres são

apresentadas como paradigmas de fé e anúncio. O objetivo desta pesquisa consistirá em

explicitar os paradigmas de fé e anúncio presentes nas narrativas joaninas acerca das

mulheres, que qualificam a comunidade de fé que anuncia Jesus Cristo ressuscitado.

Esta pesquisa mostrará a importância das mulheres para a fé e o anúncio de Jesus

Cristo na comunidade joanina. As mulheres, discípulas qualificadas de Cristo, em um

contexto histórico-social-político-econômico-religioso que lhes dava pouco reconhecimento,

fazem da comunidade joanina um exemplo de comunidade querida por Deus, onde o amor

mútuo, sem distinção, é a pauta do agir.

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Para visualizar estes paradigmas de fé e anúncio do Quarto Evangelho, tomaremos

as perícopes da mulher samaritana (cf. Jo 4,1-42) e a de Maria Madalena (cf. Jo 20,1-18). O

funcionamento do texto, a produção de seu sentido, as operações lógicas, as afirmações, a

negação e a oposição existentes nos relatos permitirão, por uma leitura atenta, perceber a

carga de sentido produzida pelo autor, ao apresentar essas mulheres que, com adesão firme e

resposta ao oferecimento de vida que o Pai faz em Cristo, levam a Igreja a mergulhar no

mistério da nossa redenção.

O trabalho está dividido em cinco capítulos que demonstrarão a importância da fé

e do anúncio da samaritana e de Maria Madalena para a comunidade joanina, bem como,

apontarão as pistas que o Evangelho oferece à Igreja de hoje, em vista da vivência da fé cristã.

Para um trabalho mais profícuo, tem-se um olhar atento para a literatura joanina que engloba

todos os escritos de João.

Antes de analisar as perícopes da mulher samaritana (cf. Jo 4,1-42) e de Maria

Madalena (cf. Jo 20,1-18), numa etapa prévia, procura-se fazer uma reflexão sobre a vida da

comunidade joanina. O primeiro capítulo faz um levantamento dos elementos que marcam a

sua identidade e os desafios que enfrenta na vivência da fé cristã. Por outro lado, explicita a

finalidade primeira do Evangelho. O contexto social, econômico e político contribuem para a

compreensão da vida da comunidade, permitindo responder à problemática que se apresenta

como entraves para a fé e o anúncio, bem como apontar caminhos que possibilitem a

superação. Qual o significado da fé para o evangelista João e quais são as suas implicações na

vida da comunidade? Quais as preocupações pastorais do evangelista? Como o Evangelho de

João ilumina a comunidade para a vivência da fé?

O segundo capítulo faz uma análise da perícope sobre a mulher samaritana (cf. Jo

4,1-42) que compõe o livro dos sinais no evangelho de João. No diálogo com Jesus, a mulher

samaritana abre o coração para o Messias que todo o povo esperava. A samaritana ouve, vê,

interpela, responde e vai anunciar o Cristo que todo o povo esperava. Essa mulher não recebe

um mandato para o anúncio, mas se torna discípula ao largar tudo o que está fazendo para

anunciar aos conterrâneos o que ouviu do Cristo. Portanto, a partir das atitudes da samaritana

e de seu diálogo com Jesus, tornar-se-á evidente a gênese de sua fé e de seu seguimento no

anúncio do Cristo.

O terceiro capítulo analisa a perícope sobre Maria Madalena (cf. Jo 20,1-18) que

compõe o livro da glória no evangelho de João, com a finalidade de detectar nos gestos e

palavras dessa mulher os elementos de sua fé em Jesus e o conseqüente seguimento do

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Ressuscitado. A procura incansável e destemida leva Maria Madalena a encontrar-se com o

Senhor ressuscitado. Quando tudo parecia perdido e sem sentido, Maria Madalena reconhece

o Senhor que a chama pelo nome. Sem deter-se, ela cumpre o mandato do Senhor de anunciar

aos seus irmãos a mensagem da qual tornou-se portadora. A mensagem estabelece na

comunidade uma nova relação que extingue toda e qualquer diferença entre os irmãos e as

irmãs. Maria Madalena, sustentada pela fé no Cristo glorificado pelo Pai, reúne os discípulos

temerosos de passar pelo mesmo sofrimento de Jesus na cruz. Somente com uma

espiritualidade encarnada é possível constituir uma comunidade de discípulos e discípulas,

seguidora fiel e comprometida com o Cristo Jesus.

O quarto capítulo consiste numa síntese dos principais elementos levantados no

segundo e no terceiro capítulo, confrontando-os com a práxis expressa no primeiro capítulo.

Os elementos levantados pela análise das perícopes da mulher samaritana (cf. Jo 4,1-42) e de

Maria Madalena (cf. Jo 20,1-18) iluminam a vida da comunidade joanina e ajudam-na a

enfrentar as dificuldades e os desafios que se lhe impõem. A mulher samaritana e Maria

Madalena evidenciam a força do encontro pessoal com Cristo e a escuta da palavra que

garante a vida para todo aquele que crê. A vida dessas mulheres torna-se anúncio do Cristo

ressuscitado para a comunidade. E a vida da comunidade, no amor de uns para com os outros,

torna-se a vida do próprio Cristo Jesus.

O quinto capítulo faz uma leitura atualizante (hermenêutica) das perícopes da

mulher samaritana e de Maria Madalena, tendo em vista as inspirações que oferecem à Igreja

para a vivência da fé e do anúncio nos dias de hoje. A Igreja, comunidade de discípulos e

discípulas, é chamada a seguir fielmente o Cristo Jesus e a comprometer-se com ele. A mulher

samaritana e Maria Madalena mostram para a Igreja que, no relacionamento entre os seres

humanos, não pode existir diferenças e desigualdades. O que identifica o discipulado com o

Cristo é o amor de uns para com os outros (cf. Jo 13,34-35; 15,9.12.17). Por isso é necessário

vencer todo tipo de egoísmo e arrogância que impedem a comunidade de viver a fraternidade,

a comunhão e a solidariedade, e que não a deixam perceber o amor de Deus em Jesus Cristo

por todos os seus filhos e filhas. A Igreja, na intimidade com a Palavra de Deus, deverá agir

como esposa fiel ao seu esposo Jesus Cristo.

A pesquisa, afinal, tem como pretensão:

- Evidenciar a presença e o papel das mulheres nas comunidades cristãs primitivas

e questionar a persistente misoginia presente nas Igrejas cristãs.

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- Apresentar a partir da Samaritana e de Maria Madalena um modelo eclesial onde

todos, sem exceção, são valorizados.

- Descrever, para os que crêem, os paradigmas de fé e de anúncio no seguimento

cristão, tendo as mulheres como referencial.

- Mostrar como, no Evangelho de João, além do Discípulo Amado, existem outros

exemplos relevantes de fé e anúncio e de intimidade com Jesus.

Como pano de fundo da reflexão, está uma série de questões, cujas respostas

encontram-se nas entrelinhas do texto. Assim, para explicar o modo de vida adotado antes da

Páscoa por Jesus e seus discípulos, pergunta-se qual o valor e a importância das mulheres na

comunidade cristã? O que se pode apreender da estrutura social da comunidade joanina,

levando-se em conta a cultura da época? Qual a posição ocupada pela mulher na sociedade da

época? O conhecimento desses dados contribui para a compreensão do funcionamento

econômico, cultural e religioso da época em que nasceu o texto do Evangelho de João.

Para evidenciar o papel das mulheres como paradigmas de fé e anúncio no

Evangelho de João, o método utilizado consiste em analisar o texto da mulher samaritana (cf.

Jo 4,1-42) e o de Maria Madalena (cf. Jo 20,1-18). A análise consiste primeiro numa visão

geral do texto, ou seja, ver o mapa do texto, estabelecendo a sua fisionomia, suas idéias

orientativas bem como sua tradução. Segundo, a análise dos pontos comunicativos

fundamentais que fazem do texto uma unidade de sentido. E terceiro, a análise dos vocábulos,

frases, períodos e passagens de maior relevância teológica, determinando o que esses

significam e a que dados de fato se referem.

Após estas duas etapas analíticas, o trabalho consiste em haurir inspirações para a

Igreja de hoje em sua práxis cristã.

O texto bíblico utilizado para auxiliar a tradução é o da Tradução Ecumênica da

Bíblia (TEB).

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1. JOÃO E SUA COMUNIDADE: DESAFIOS DA FÉ E DO ANÚNCIO

1.1. Introdução

O Evangelho de João revela a importância da fé para uma comunidade que se

esforçava para configurar sua vida com Cristo ressuscitado. A comunidade tem sua identidade

construída em um tempo que já se distancia das testemunhas que tiveram contato com Jesus

em seu ministério terrestre. Por isso, este primeiro capítulo faz um levantamento das

principais características que marcaram a identidade da comunidade joanina, bem como dos

desafios na vivência da fé cristã. Por outro lado, mostra também qual a finalidade do

Evangelho em sua situação original.

1.2. Pi,stij: adesão da comunidade a Cristo Jesus

Ao escrever o Evangelho, João expressa um desejo muito grande de anunciar

Cristo Jesus glorificado à comunidade. Seu Evangelho é um escrito de fé, marcado pelo

caminho daquele que fez a experiência profunda do evento Jesus. João pôde penetrar em

profundidade o sentido e a motivação da ação de Jesus. Esforça-se por expressá-lo numa

linguagem adaptada a seu tempo. Assim, a vida de Jesus narrada pelo evangelista traz também

à tona a vida da comunidade inserida nele1. Segundo Soares-Prabhu, um exegeta indiano, “o

Jesus da fé é o Jesus da história na medida em que era conhecido por experiência, por seus

discípulos fiéis”2. Isto implica a exigência de um compromisso total de seus membros com o

projeto de fé e vida cristãs.

João explicita bem o objetivo de seu escrito ao declarar: “Estes foram escritos

para que creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais vida em seu

nome” (Jo 20,31). O crente passa por uma transformação no mais íntimo do ser porque

acolheu a fé. A fé é para João o eixo que impulsiona toda a ação do cristão3. Somente pela fé

1 BROWN, Raymond Edward. A comunidade do discípulo amado. São Paulo: Paulinas, 1984. p. 15. O autor

sugere que o Quarto Evangelho deve ser lido em diferentes níveis, pois narra tanto a história de Jesus quanto a da

comunidade que acreditava nele. 2 SOARES-PRABHU, G. Wir werden bei ihm wohnem. Das Johannesevangelium in indischer Deutung. Herder,

1984 apud LÉON-DUFOUR, Xavier. Agir Segundo o Evangelho. Palavra de Deus. Petrópolis: Vozes, 2003. p.

46. 3 A fé é o objeto precípuo de todos os “sinais” relatados no Quarto Evangelho, como João deixa claro no final: os

sinais feitos por Jesus foram escritos “para que acrediteis” (cf. Jo 20,31). Cf. LÉON-DUFOUR, Xavier. Leitura

do Evangelho Segundo João. São Paulo: Loyola, 1996. p. 164.

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se reconhece a glória do Filho.

Mas, para João, o que é a fé? O termo fé ocorre freqüentemente no Evangelho. Na

literatura grega, o verbo pisteu,ein é usado de modo transitivo – evpi,steuen, que significa “fiar-

se” – e aparece apenas uma vez no Quarto Evangelho, na forma negativa ouvk evpi,steuen, em Jo

2,24. No modo intransitivo, é empregado em dois sentidos: “dar crédito”, “crer” e “ter

confiança em”, “confiar”. Normalmente, no primeiro sentido, o verbo é empregado com uma

frase introduzida por o[ti ou semelhante; e, no último, com o dativo. Ao empregar o verbo

pisteu,ein no seu Evangelho muito mais vezes do que o substantivo pi,stij, João assinala a

supremacia da realidade viva sobre a discussão teórica e sua conceituação. Jo 20,31 proclama

que é preciso crer em Jesus como o Cristo, o Filho de Deus, para assim alcançar a salvação;

ou, então, que, para se tornar crente, é preciso aceitar a mensagem de Cristo. Aceitar a

mensagem de Cristo é crer nele e em Deus, acolhendo sua palavra como verdadeira, palavra

que faz o crente conhecer Deus e entregar-se confiante a ele, que pode dar a tudo o seu

sentido último.

No hebraico existem duas raízes verbais que são utilizadas para exprimir a fé:

aman acentua a certeza, a firmeza; batah tem em vista a vivacidade da fé e da confiança.

A palavra hebraica ۥemet significa verdade, genuidade, realidade. Para o hebreu, a

verdade é o contrário do nada, aquilo que é “vaidade, nulidade”. Por isso Deus é também

chamado o “Deus da ۥemet”, da verdade ou da fidelidade, da segurança. Assim, Javé é um

Deus neۥemân, um Deus de confiança, um Deus provado, a quem o crente pode se entregar

(cf. Dt 7,9). Jesus é, neste sentido, o amén (cf. Ap 3,14) que significa, segundo Dt 27,15-26,

ter a consciência de estar ligado, de estar contido dentro da aliança com Deus. Logo, a forma

verbal he’emin, que significa creu, denota a atitude da pessoa que se entrega a alguma coisa

ou a alguém verdadeiro e plenamente firme e seguro. Crer é dar-se inteiramente àquele que

por si mesmo merece este oferecimento total e sem reserva. Contendo algo de esperança e

espera, tem-se a outra raiz batah, que, antes de tudo, significa o elan da fé, traduzida ora por

crer, ora por confiar, ora por esperar (cf. Sl 4,6; Sl 25,2; Sl 55,24)4.

A vivacidade da fé e a entrega pessoal são explicadas por João de diversas formas.

Charles Harold Dodd5 apresenta os textos onde aparece a palavra pisteu,ein em João.

4 Cf. ZIMMERMANN, Heinrich. Fé. In: Dicionário de teologia bíblica. 4.ed. São Paulo: Loyola, 1988. v. 1, p.

413. 5 Cf. DODD, Charles Harold. A interpretação do Quarto Evangelho. São Paulo: Teológica/Paulus, 2003. p. 245-

250.

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15

Em primeiro lugar, o vocábulo aparece em 4,21 e 14,11, na expressão pi,steue,

moi, significando “confia em mim”, no sentido de dar crédito às palavras de Jesus. Logo, quer

dizer “crê em mim”, tendo o conteúdo da crença apresentada na frase com o[ti.

Em segundo lugar, é freqüente o uso de pisteu,ein com o dativo, que, no contexto

de João, assume o sentido de crer, já que, no grego ordinário e na tradução dos Setenta, o

sentido é geralmente “confiar”. Assim ocorre em 2,22; 5,46 e 8,31-47 a expressão crer na

palavra ou nas palavras que Jesus diz.

Em terceiro lugar, encontramos pisteu,ein seguido de uma frase com o[ti, que

representa a expressão hebraica he’emin ki, no sentido de “estar convencido”, “acreditar”. Em

8,24; 13,15; 11,27; 20,31; 14,11; 16,30, o conteúdo da crença é a natureza, a missão, a

condição de Cristo.

Em quarto lugar, pisteu,ein vem seguido de eivj com acusativo. Segundo Dodd,

parece ser uma alternativa para traduzir o hebraico he’emin ki. A preposição eivj é equivalente

à preposição hebraica. É claro em 14,1 o sentido de confiança pessoal ou segurança que

afirma que crer em Deus e em Jesus é o remédio contra a perturbação e o desnorteamento. A

expressão também pode implicar um reconhecimento da afirmação de Jesus de ser ele a

revelação de Deus, como aparece de modo negativo em 7,5. Pisteu,ein eivj auvto,n significa

ter confiança em Jesus baseado numa aceitação intelectual das afirmações feitas em relação a

ele. É interessante perceber, em alguns textos, a utilização de pisteu,ein eivj auvtou/ seguido de

o;noma (“crer no nome do filho”) que, no cristianismo primitivo, referia-se ao batismo (cf. Jo

1,12; 2,23; 3,18). Isto implicava a pertença ao Cristo e, como reconhecimento desta pertença,

prestar-lhe serviços como um servo ao seu senhor.

O ser batizado em nome de Cristo é realizar um ato pelo qual a pessoa passa para o

absoluto domínio de Cristo e fica devendo a ele, por conseguinte, vassalagem, como

um doulos a seu kyrios. Não seria possível que, sendo o batismo sempre associado

intimamente com a fé, o evangelista tenha aplicado diretamente à fé um conceito

ligado ao batismo? Assim, pisteuein eis to onoma autou seria não simplesmente

aceitar sua asserção, por consentimento intelectual, mas reconhecer tal asserção

prestando vassalagem6.

Em quinto lugar, aparece o uso absoluto de pisteu,ein, onde o contexto claramente

mostra que se deve suprir com alguma idéia que complete o sentido. É o caso de 3,18

“...porque não creu no nome do filho único de Deus” e 12,39 “...pela qual eles não podiam

crer”. Há ainda lugares onde pisteu,ein tem o sentido de “ser ou tornar-se cristão”, como

aparece na fé da comunidade primitiva em Atos dos Apóstolos. Em Jo 4,53 – “Desde este

6 DODD, A interpretação, p. 247.

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momento creu, tanto ele como todos de sua casa”, percebe-se um notável paralelo com At

16,34 – “Em seguida, o carcereiro fez Paulo e Silas subirem para a casa dele, ofereceu-lhes

uma refeição e se alegrou com os seus por ter crido em Deus”.

Além destes significados, em Jo 1,7 e 11,15, pisteu,ein é usado sem nenhum

acréscimo no sentido de “para que tenham fé”. Este sentido absoluto será encontrado também

nos textos que falam de “ver”. A fé é apresentada como uma forma de visão. É só conferir Jo

6,36 – “...vós vistes e, no entanto, não acreditais”; 11,40 – “...que, se creres, verás a glória de

Deus?” e 6,46-47 – “É que ninguém viu o Pai, a não ser aquele que vem de Deus. Este sim viu

o Pai. Amém, amém eu vos digo, aquele que crê tem a vida eterna”. Em 20,25-29, aparece o

texto mais significativo, que apresenta o episódio em que Tomé reconhece o Senhor

ressuscitado.

Nestas passagens, a visão pode não desencadear a fé, como em 6,36, em que

vendo o Senhor não acreditavam. Era uma visão puramente física. Eventualmente, pode vir

acompanhada da fé que leva a um sentido profundo, que dá vida ou conhecimento de Deus.

Quem tem fé tem a vida eterna. No episódio de Tomé, ocorre a transição: Tomé viu o Cristo,

fisicamente; e, tendo fé, ele o viu no verdadeiro sentido. Porém, mais felizes são os que, sem a

visão física de Jesus, têm fé. Portanto, quem tem fé7, mesmo que não o tenha visto

fisicamente, continua tendo a capacidade de ver sua glória.

Ver a Deus significa crer que Cristo está no Pai, e que o Pai está em Cristo. O

homem não produz por si só a fé. Esta lhe é dada por Deus. Por isso Jesus disse: “Ninguém

pode vir a mim se o Pai, que me enviou, não o atrair” (cf. Jo 6,44.65; 17,6-8).

A fé faz o discípulo ir a Jesus incondicionalmente. É uma entrega que tem como

conseqüência o anúncio de Jesus Cristo. A fé comporta concretamente, para quem crê, a

ordem de ir anunciar Jesus Cristo.

O sentido de crer também pode ser explicado como ouvir a voz de Jesus,

conforme atestam vários versículos: “Os mortos ouvirão a voz do Filho de Deus e os que a

tiverem ouvido viverão” (5,25); “Depois de o terem ouvido, muitos dos seus discípulos

começaram a dizer: „Essa palavra é dura! Quem pode escutá-la?‟” (6,60); “Porque não sois

capazes de escutar a minha palavra” (8,43); “Aquele que é de Deus escuta as palavras de

Deus; e é porque não sois de Deus que vós não me escutais” (8,47); “Todo aquele que é da

7 DODD, A interpretação, p. 250: “Pi,stij é aquela forma de conhecimento ou visão, apropriada àqueles que

encontram Deus numa pessoa histórica do passado, uma pessoa que, embora sendo do passado, através da pi,stij continua sendo objeto do conhecimento que salva, da verdade e da vida”.

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verdade escuta a minha voz” (18,37). Ouvir é pôr-se no caminho de Jesus, porque se crê nele

como o Filho de Deus, enviado para a salvação do mundo. Deste modo, ouvir é também crer.

E quem o ouve viverá.

Se João tem a fé como ponto fundamental em seu escrito é porque sua

comunidade deve se entregar confiante a Cristo Jesus, o Filho de Deus.

João indicou, de modo bem incisivo, o escopo de seu evangelho: “Estes (sinais)

foram escritos para crerdes que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo,

tenhais a vida em seu nome” (20,31). Procurou, evidentemente, dar especial relevo à

fé na pessoa de Jesus Cristo e em seu poder salvífico. O fundamento dessa fé é a sua

própria apresentação dos fatos, a preferência dada por ele a certos sinais entre

muitos outros realizados por Jesus (20,30). Seu intento é induzir os homens a crer

que este homem de carne e sangue, Jesus de Nazaré, é o Messias da expectativa

judaica – e algo de muito, muito mais que isso. Ele é o “Filho de Deus” no sentido

da profissão cristã de fé, que ultrapassa todas as expectativas judaicas8.

Para João, não existe meio termo. É necessário acreditar plenamente nas palavras

de Jesus, que são os ensinamentos do próprio Deus. A fé é exclusivamente dirigida à pessoa

de Jesus, assumindo para com ele, um compromisso definitivo. Esta fé pode crescer e tornar-

se “conhecimento”, porque, na Sagrada Escritura, o saber é sempre um ato que institui ou

reforça os vínculos de comunhão e amizade. O conhecimento vem pela fé, e a fé deve crescer

e tornar-se conhecimento; uma comunhão mais íntima com o Pai e o Filho.

Quais são os desafios da fé e do anúncio enfrentados por João e sua comunidade?

1.3. Conflito com os discípulos de João Batista

Como se lê em João, os primeiros seguidores de Jesus são discípulos de João

Batista, podendo o próprio movimento joanino ter suas origens no movimento batista. “No dia

seguinte, João se achava de novo no mesmo lugar com dois dos seus discípulos. Fixando o

olhar em Jesus que caminhava, ele disse: „Eis o Cordeiro de Deus‟. Os dois discípulos

escutaram esta palavra e seguiram Jesus” (Jo 1,35-37). Os indícios de um conflito com os

discípulos de João Batista aparecem nas afirmações negativas do evangelista sobre João

Batista, quando afirma: “Ele não era a luz” (Jo 1,8); “Depois de mim veio um homem que me

precedeu, porque antes de mim ele era” (Jo 1,15.30); “Eu não sou o Cristo, eu não sou Elias,

nem o profeta” (Jo 1,19-24); João Batista não é o esposo, mas amigo dele (cf. Jo 3,29); “É

preciso que Ele cresça e eu diminua” (Jo 3,30); “João não realizou nenhum sinal” (Jo 10,41).

João Batista dá testemunho de Jesus e o revela a Israel (cf. Jo 1,29-34; 5,33), mesmo Jesus

8 HARRINGTON, Wilfrid John. Chave para a Bíblia: a revelação, a promessa, a realização. 2.ed. São Paulo:

Paulinas, 1985. p. 602.

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não precisando deste testemunho humano (cf. Jo 5,34). Em outro texto, aparece a informação

de que Jesus e seus discípulos batizavam em terras da Judéia, enquanto João Batista batizava

em Enom, perto de Salim (cf. Jo 3,22). João ainda não tinha sido encarcerado. Seus

discípulos, após uma discussão sobre a purificação com um judeu, foram ter com ele: “Rabi,

aquele que estava contigo além do Jordão, aquele sobre quem deste testemunho, eis que se

põe também a batizar e todos vão ter com ele” (Jo 3,22-26). Alguns discípulos de João Batista

que não seguiram Jesus, como os dois citados em Jo 1,35-37, se opunham às pessoas que o

seguiam. Segundo Brown, somos levados a suspeitar que os cristãos joaninos tinham de tratar

com tais discípulos e que as afirmações negativas significam uma apologética contra eles. No

fim do século XIX, o motivo do Batista foi muito exagerado na interpretação do Quarto

Evangelho9.

O evangelista reformula uma informação antiga de que João Batista é a

testemunha de Jesus – “Eu não sou o Cristo; sou aquele que foi enviado diante dele” (Jo 3,28),

mostrando bem o ponto de partida de um conflito que duraria por longo tempo entre os

discípulos do Batista e os de Jesus10

. Os discípulos de João Batista tinham certa inveja de

Jesus e uma consideração ciumenta das prerrogativas de seu mestre, mas não um ódio como

“os judeus”. E muito menos o mundo que não acredita em Jesus e por isso mesmo rejeita a luz

(cf. Jo 7,7; 15,18s; 16,20).

Portanto, em Jo 1,19-36; 3,27-30, João Batista realça a superioridade de Jesus.

Esse realce pode provir do fato de que a comunidade de João sofria oposição dos

descendentes dos seguidores originais de João Batista, que proclamavam que o Batista, não

Jesus, era o verdadeiro Messias. Isso leva a crer que o grupo de discípulos de João Batista

estava ainda ativo quando o Quarto Evangelho estava sendo escrito. Na tentativa de combater

tal conflito, os discípulos de Jesus não cessaram de proclamar que João Batista testemunhava

em favor de seu mestre11

. Tal fato é confirmado em Jo 10,40-42: “Jesus voltou para o Jordão,

no lugar onde João começara a batizar, e aí permaneceu. Muitos vinham a ele e diziam: „João

9 Cf. BROWN, A comunidade, p. 72.

10 O Evangelho de João é também o único a dizer explicitamente que os primeiros discípulos de Jesus vieram do

círculo do Batista (1,35ss). Essa informação permite compreender a importância de João Batista para a

comunidade primitiva: tudo havia começado com o Precursor, segundo os Sinóticos e os fragmentos de

catequese conservados pelos Atos dos Apóstolos (At 1,5.22; 10,37; 11,16; 13,24; 18,25; 19,3). Ela explica

também as reações daqueles que, apegados a seu mestre João Batista, recusaram-se a passar para Jesus, o

Galileu. Cf. JAUBERT, Annie. Leitura do Evangelho Segundo João. 3.ed. São Paulo: Paulinas, 1985. p. 8. 11

Os cristãos da comunidade de João mantinham a esperança de que os seguidores de João Batista, que ainda

não eram cristãos, haveriam de reconhecer a superioridade do mestre Jesus. Por isso, os seguidores de João

Batista eram convidados pelo Evangelho, através de uma correção prudente, a retificar suas interpretações

errôneas a respeito da figura de João Batista, que eles julgavam superior a Jesus.

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por certo não realizou nenhum sinal, mas tudo o que ele disse deste homem era verdade‟. E

numerosos foram os que nele creram”.

Mesmo João Batista, testemunhando Jesus na preparação do caminho do Senhor,

torna-se sinal de contradição como o próprio Nazareno: para uns, ele é guia; para outros, é

tropeço.

1.4. Conflitos com a Sinagoga

A controvérsia entre Jesus e os judeus é refletida em João com a expulsão dos

judeus cristãos da sinagoga. João designa como judeus aqueles que na nação judaica

rejeitaram Jesus. Há uma distância entre os discípulos de Jesus e aqueles que romperam com

ele. Os primeiros discípulos de Jesus não eram também judeus? Há uma clara indicação da

dificuldade de convivência entre pessoas que outrora pertenciam à mesma comunidade de fé.

Desta forma, as polêmicas em João prolongam as de Jesus através das controvérsias do

momento entre a comunidade cristã e a sinagoga. Assim, a oposição entre Jesus e os judeus

que o renegam deriva da acirrada inimizade entre judeus e cristãos no tempo em que João

escreveu seu Evangelho. A prova disso está em Jo 16,2ss: “Sereis excluídos das sinagogas.

Mais ainda, virá a hora em que aquele que vos fizer morrer julgará estar oferecendo um

sacrifício a Deus. Eles agirão assim por não terem conhecido nem ao Pai nem a mim. Mas vos

disse isso, a fim de que, quando chegar a hora deles, vos lembreis de que eu vo-lo havia dito”.

Quando João escreve seu Evangelho, os cristãos que originariamente pertenciam à

comunidade da sinagoga já tinham sido excluídos oficialmente dela e, ainda, alguns foram

condenados à morte.

Tal exclusão da sinagoga não era característica do tempo de Jesus, nem de Paulo

que, em At 21,26, em sua última viagem a Jerusalém, foi cultuar no templo. A cura do cego,

no capítulo 9, apresenta de maneira sutil o nível histórico mais tardio da experiência da

comunidade de João. O versículo 22 declara: “Os seus pais (do cego de nascença) falaram

assim porque tinham medo dos judeus. Estes já haviam decidido excluir da sinagoga todos

aqueles que confessassem que Jesus é o Cristo”. João faz do cego um modelo para os

membros de sua comunidade, apresentando-o como testemunha de Jesus, intimada a escolher

entre o ensinamento da sinagoga e a fidelidade a Cristo. A comunidade é encorajada a colocar

toda sua confiança em Cristo Jesus, a exemplo do cego: “Creio, Senhor”, e a se prostrar diante

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do Senhor para adorá-lo (v. 38)12

.

O texto de Jo 18,20s contém uma clara evidência de que a exclusão dos judeus-

cristãos das sinagogas era própria da época em que João escreveu o Evangelho. A resposta de

Jesus ao Sumo Sacerdote evidencia que falou abertamente (cf. Jo 7,26; 7,4.10; 10,24s);

ensinou onde todos os judeus se reuniam, nas sinagogas e no templo (cf. Jo 6,59; 2,14;

7,14.28; 8,20; 10,23), lugares de oração onde o israelita que está em busca de Deus encontra-

se mais disposto ao encontro.

João quer mostrar que Jesus é o Messias, acentuando a identidade cristã de todo

discípulo. Jesus apelava para que o reconhecessem como o Enviado que falava as palavras de

Deus. O não declarar-se a favor de Jesus por medo de ser excluído da sinagoga pelos fariseus

faz João afirmar que os dirigentes que tinham começado a crer nele preferiam a glória que

vem dos homens à glória que vem de Deus (cf. Jo 12,42s)13

.

Por volta de 90-95 dC, quando o Evangelho tem sua configuração final, depois da

destruição do templo, em 70 dC, a comunidade cristã sofria com a competição do judaísmo

que estava se reorganizando e chegou a expulsar de seu meio todos os que acreditavam em

Jesus Cristo, os judeus-cristãos14

. Ser expulso da sinagoga era uma experiência traumatizante

para os primeiros cristãos de origem judaica. Como se vê em Jo 9,22.34; 12,42 e 16,1-4,

tornar-se cristão significava ser banido da família, da comunidade religiosa, do povo.

Praticamente ficava-se fora da vida social do povo judaico, cuja instituição não suporta a

liberdade obtida pelo cego. Jesus comunica a plenitude da vida, que é incompatível com o

regime de opressão. Ora, o judaísmo rabínico exercia grande atração sobre os judeus-cristãos,

que parecem ter constituído a maior parte da comunidade joanina. João, em conflito com o

judaísmo (judeus), mostra que a adesão a Jesus comportava a ruptura com as instituições (cf.

Jo 8,23-24.31; 10,3-4), cujos líderes permanecem cegos (cf. Jo 9,39-41). Portanto, na cura do

cego, com o testemunho dos vizinhos, com a interrogação do cego por duas vezes e a dos seus

12

LÉON-DUFOUR, Leitura, p. 240: “O cego de nascença, que recobra a visão, percebe o Senhor em sua fé e

„crê‟ (9,38), sem demonstrá-lo, decerto, mas fazendo um gesto pelo qual dá glória a Deus, num sentido distinto

do que lhe pediam os fariseus (9,24). O verbo „prostrar-se‟ (proskune,w) adquire o sentido claro de adorar quando

tem por objeto o próprio Deus, assim como no diálogo com a samaritana (4,20-23); em outros casos, exprime

profundo respeito. Aqui no entanto, comporta um sentido mais rico: não é o destinatário do gesto o novo Templo

da Presença? O cego de nascença, que se mostrou também “israelita sem fraude” (1,47) e que foi „encontrado‟

por Jesus, passa a crer. Ele é a ovelha que escuta a voz do pastor para ser conduzida ao Pai”. 13

Esta representação original de Jesus procura dar perfeita expressão à fé cristã em Jesus, o Messias e o Filho de

Deus, procedendo conseqüentemente da imagem de fé da comunidade cristã. “João representa de maneira mais

sistemática, mais original, e de forma mais grandiosa que os sinóticos, não o que Jesus foi, mas o que os cristãos

têm em Jesus” (KÜMMEL, Werner Georg. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo: Paulinas, 1982. p. 296-

297). 14

Cf. BROWN, A comunidade, p. 61-95.

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pais, João quer mostrar que os fariseus fecham os olhos para o que é evidente. Vêem a luz e a

reconhecem, mas ficam nas trevas, temendo as conseqüências de sua decisão. Os líderes

propõem como luz o que sabem serem trevas; assim, desorientam o povo impedindo-o de

alcançar a libertação que Jesus lhe oferece. Por isso pecam, porque, sendo cegos, cegam o

povo. Ocultam a verdade, para permanecerem em sua posição. Afinal, aceitar a glória de Deus

em Jesus como norma de vida significa perder a situação de privilégio. Por isso preferem

continuar como estavam, renunciando à vida plena, abrindo mão da vivência de filhos de

Deus (cf. Jo 12,25; 3,36; 1,12). Os judeus que se deixam dominar pelo príncipe deste mundo,

Satanás, são a causa da morte de Jesus, pois não escutaram suas palavras, nem creram que ele

era o enviado do Pai15

. Portanto, a expulsão ou exclusão dos cristãos de origem judaica da

Sinagoga é uma característica da época em que o autor escreveu o seu Evangelho. Mas quais

foram os motivos que provocaram este conflito com a Sinagoga e, conseqüentemente, a

exclusão dos judeus-cristãos de seu meio?

O próprio episódio da cura do cego de nascença tem como centro, não o milagre,

mas a discussão que suscita. No interrogatório feito ao cego, percebe-se uma confissão em

favor de Jesus: “O homem a quem chamam Jesus fez lama” (9,11); “é um profeta” (9,17); “Se

este homem não fosse de Deus, nada poderia fazer” (9,33). Ora, “os judeus já haviam

decidido excluir da sinagoga todos aqueles que confessassem que Jesus é o Cristo” (9,22b). E,

segundo eles, Jesus é um indivíduo que não observa o sábado, pois curara neste dia; portanto,

ele não é de Deus. E ainda questionavam: “Como é que um homem pecador teria o poder de

realizar tais sinais?” (9,13-16). A insistência dos judeus deseja forçar o cego a confessar que o

homem que o curou não é de Deus e sim um pecador. Recusam-se a admitir que Jesus é o

Enviado de Deus. E, com a cura do cego em dia de sábado, surge a discussão sobre a origem

de Jesus: “Nós sabemos que Deus falou a Moisés, ao passo que este, não sabemos de onde é!”

(9,29). Se o êxodo do Egito fora obra do amor de Deus ao seu povo (cf. Ex 4,22s; Os 11,1),

interpõem agora a lei de Moisés para evitar toda nova manifestação de seu amor. Não estão

dispostos a reconhecer a presença de Deus, que é visibilizada em Jesus, pois o encontro com

Jesus é encontro com Deus no ser humano ou com o ser humano que torna Deus presente

como atividade de amor. O ser humano torna-se o lugar da manifestação de Deus. O sábado é,

15

Gerd Theissen afirma que, para o Evangelho de João, não são os judeus em si que são a causa da morte de

Jesus, mas apenas os judeus que caíram na dependência do príncipe deste mundo. Satanás é uma encarnação

simbólica do poder dos romanos. No Evangelho de João, portanto, a oposição entre judeus e cristãos, com o

auxilio de uma linguagem mítica, é entendida como expressão de uma alienação do judaísmo em relação a si

mesmo, uma alienação politicamente condicionada. Por causa das afirmações estarem sujeitas a mal-entendidos,

deve ser rejeitada qualquer acusação de antijudaísmo ao Evangelho de João. Cf. THEISSEN. Gerd, O Novo

Testamento. Petrópolis: Vozes, 2007. p. 120s.

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portanto, o ponto de partida que leva à pergunta essencial: quem é Jesus?16

Sua pessoa e suas

pretensões exorbitantes é o que está em discussão; afinal, ele “não apenas violava o sábado,

mas ainda dizia ser Deus seu próprio Pai, fazendo-se, assim, igual a Deus” (Jo 5,18). Ao se

auto-revelar como Filho de Deus, Jesus recorre em sua defesa a outros testemunhos além de

sua palavra, que podem, em certo sentido, ser considerados objetivos (cf. Jo 5,31-47). Mas,

para serem entendidos, os testemunhos citados supõem uma abertura espiritual que os

ouvintes, até o momento presente, se recusaram a ter, a ponto de não reconhecerem até o

testemunho que deveria ser o mais convincente: as Escrituras de Israel - “Vós perscrutais as

Escrituras porque pensais adquirir por elas a vida eterna, e são exatamente elas que dão

testemunho a meu respeito; mas vós não quereis vir a mim para terdes a vida eterna” (Jo 5,39-

40). E, por isso, interroga: “Com efeito, se crêsseis em Moisés, creríeis em mim, pois é a meu

respeito que ele escreveu. Se não acreditais no que ele escreveu, como creríeis no que eu

digo?” (Jo 5,46s). Eles não toleram a afirmação de Jesus: “O meu Pai até agora está

trabalhando, e eu também estou trabalhando” (Jo 5,17). Desta forma, o ponto fulcral da

discussão é a filiação divina de Jesus, que faz os judeus tomarem a decisão de matá-lo sob a

alegação de blasfêmia17

.

As narrativas da cura do aleijado e do cego de nascença manifestam a vida do Pai

que o Filho comunica. Assim, todo aquele que crê não caminha sozinho, pois permanece em

relação com o Filho e, por ele, com o Pai.

Além deste conflito com a Sinagoga judaica, a comunidade também se preocupa

com as adversidades dentro da própria comunidade cristã. Se o Evangelho reflete o

16

Conforme a tradição sacerdotal (Gn 1,1–2,4 ; Ex 20,8-11), o sábado tem origem no descanso de Deus no fim

da obra da criação. Na reflexão judaica posterior, o sábado torna-se – e não podia ser diferente – sinal de repouso

escatológico; antecipa a escatologia, é sua pregustação. É o que pensa, por exemplo, Is 56,7, acentuando o

motivo da alegria, da jubilosa comunhão com Deus, do festivo congraçamento de todos os seres humanos.

Segundo Ex 31,13-17, o sábado é um sinal da consagração do povo de Deus. Com o repouso sabático, o homem

consagra parte de seu tempo a Deus e renuncia a usá-lo para si, testemunhando assim que Deus é o dono do

tempo. Assim nasce a exigência de cumprir gestos cultuais no sábado. E aqui está, a nosso ver, a raiz do possível

equívoco: o sábado é tempo dado a Deus, mas esquece-se que o Deus do sábado é o Deus do Êxodo e da

libertação; o sábado torna-se um preceito, um dever a cumprir ao lado dos outros, não mais a alegria da dádiva, o

sinal do homem liberto diante de Deus e do mundo. Cf. MAGGIONI, Bruno. O Evangelho de João. In: FABRIS,

R.; MAGGIONI, Bruno. Os Evangelhos. 4.ed. São Paulo: Loyola, 2006. v. 2, p. 329. 17

Cf. MAGGIONI, O Evangelho de João, p. 330. Também aqui João imprime à polêmica um caráter mais

nitidamente cristológico. Jesus chama a atenção para sua relação com o Pai. A filiação divina é a razão profunda

pela qual ele é dono do sábado. A afirmação central, que deve ser bem entendida para se compreender o

raciocínio de Jesus, encontra-se no v. 17: “Meu Pai continua agindo até agora, e eu também vou agindo”. Os

rabinos distinguiam a atividade de Deus na criação, que é suspensa no sábado, de sua atuação na providência e

no juízo, que não conhecem interrupção. Deus sustenta e salva o ser humano também no sábado. Curando em

dia de sábado, Jesus aplica a prerrogativa divina da atuação contínua, não interrompida nem mesmo pelo sábado;

assim é associado à ação salvífica do Pai, que não admite interrupção. Por isso, a discussão que se segue não

trata exatamente da observância da Lei, e sim da filiação divina de Jesus, sua afirmação de ser igual ao Pai.

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relacionamento da comunidade joanina com os de fora, as Epístolas, que são escritas no

mesmo período, se ocupam com os de dentro. Quais são os motivos que levam a esses

conflitos dentro da comunidade?

1.5. Conflitos internos da comunidade

Todas as epístolas joaninas mencionam, em termos muito próximos, uma situação

de conflito e se assemelham ao Evangelho pelo vocabulário e pela teologia. As três Epístolas

supõem que as comunidades joaninas estejam passando por um tempo de crise. Esta era uma

ameaça que pesava sobre as comunidades, com o perigo de destruí-las internamente. Como se

sabe, o Evangelho de João foi escrito em sua maior parte pelos anos 90 a 95. A finalização de

sua redação se situa, com grande probabilidade, na virada do século I para o século II, quando

as Epístolas Joaninas foram escritas. Indubitavelmente houve uma grande interação entre as

Epístolas e a última redação do Quarto Evangelho, onde se encontram os primeiros elementos

da tradição joanina18

. Muitas passagens, principalmente da Primeira Epístola, têm relação

com a teologia do Evangelho19

. O que se deduz é que as comunidades joaninas viviam,

segundo o Quarto Evangelho, de acordo com o testemunho comunicado e transmitido por

João, designado como “o discípulo que Jesus amava”. Ora o que se tinha dos escritos de João

era constituído em sua maior parte pelo Evangelho.

Assim, sem ter que aderir a todo um esforço de uma tese tão radical, sem

impedimento, deve-se admitir que a maioria dos estudiosos hoje em dia estão de

acordo em considerar que João, o apóstolo, o filho de Zebedeu, não deve ser visto

como o autor “real” do Evangelho, senão somente como o autor “originário”. Isto,

com efeito, não diminui a paternidade joânica da obra, senão que opera uma

distinção entre o autor e o escritor. O apóstolo, com sua autoridade e sua pregação,

constitui o ponto de partida e foi a garantia da tradição que, nascida na Palestina,

transpassou essas fronteiras, difundindo-se na Turquia e na Ásia Menor, e culminou

em uma produção literária, cujo fruto excelente é o Evangelho, escrito

provavelmente em torno do ano 100 dC20

.

As comunidades joaninas não estão concentradas numa mesma região. Encontravam-

se em diferentes cidades ou povoados. Nelas aparecem divisões que, aos poucos, caminham

18

Cf. MORGEN, Michele. As epístolas de João. São Paulo: Paulinas, 1991. p. 7. 19

As Cartas de João mostram muita semelhança temática com os discursos de Jesus no Quarto Evangelho,

especialmente Jo 15-16. São fortemente marcadas pelo problema da coerência de vida da comunidade. O

conjunto de 1Jo parece aprofundar a mensagem do amor fraterno (cf. Jo 15). 1Jo 1,1-4 mostra parentesco com o

prólogo do Evangelho. Embora pareça refletir o pensamento da fase final do Evangelho, 1Jo não menciona a

discussão com a Sinagoga, pois o assunto não é o conflito com os de fora, mas os problemas da comunidade: a

caridade e a profissão de fé. Cf. KONINGS, Johan. Evangelho segundo João: amor e fidelidade. Petrópolis:

Vozes, 2000. p.27. 20

TILBORG, Sjef van. Comentário al evangelio de Juan. Estella: Verbo Divino, 2005. p. 6.

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24

para o cisma21

. No tempo das Epístolas e depois delas, diferentes grupos religiosos, cristãos e

não cristãos, especialmente gnósticos, lerão o Quarto Evangelho. O autor das Epístolas reage

vivamente e apresenta a exegese autêntica do Evangelho em face aos grupos separatistas e às

heresias. Isto sugere que tanto o autor das Epístolas quanto os separatistas conheciam a

proclamação do cristianismo que nos foi feita através do Quarto Evangelho, mas a

interpretavam diferentemente. De acordo com Brown,

a luta acontece entre dois grupos dos discípulos de João, que estão interpretando o

Evangelho de maneiras opostas, no que se refere à cristologia, à ética, à escatologia

e à pneumatologia. Os temores e o pessimismo do autor das Epístolas sugerem que

os separatistas estão tendo maior sucesso numérico (1Jo 4,5) e o autor está tentando

defender seus adeptos contra posteriores incursões de falsos mestres (2,27; 2Jo

10.11). O autor sente que é a “última hora” (1Jo 2,18)22

.

O autor da Primeira Epístola se vê, assim, no dever de determinar os elementos

fundamentais da fé cristã. A referência é sempre o Evangelho. “O que era desde o

princípio,...” (1Jo 1,1) mostra já a intenção do autor logo no início da Epístola. A mensagem é

explicitada em alguns pontos de acordo com “a tradição cristã”.

A Primeira Epístola afirma que vários membros romperam com a comunidade:

“Do nosso meio é que saíram, mas não eram nossos. Pois se fossem nossos, conosco teriam

permanecido. Mas era preciso que se manifestasse que eles todos não são nossos” (1Jo

2,19)23

. Certamente, ao expressarem seus pensamentos, causaram conflitos que levaram ao

desligamento da comunidade. A comunhão dos membros da comunidade joanina com o Pai e

o Filho é expressa pela fidelidade ao ensinamento dado, desde o começo na comunidade.

Enquanto essa comunhão designa o discípulo, o que nega o Filho é visto como mentiroso,

(1Jo 2,22: “Quem é mentiroso, senão o que nega que Jesus é o Cristo? Eis o anticristo o que

nega o Pai e o Filho!”). No centro do Quarto Evangelho está a afirmação: “Ninguém vai ao

Pai senão por mim” (Jo 14,6), confessada pelas comunidades joaninas. Todos os membros

estavam convencidos disso. O problema está em como a comunidade interpreta o Evangelho.

Por isso, a chamada Primeira Epístola atribuída a João, que não é uma epístola e sim

um documento, seria na realidade, um complemento trazido pelos discípulos do

21

Cf. BROWN, A comunidade, p. 151-171. 22

BROWN, A comunidade, p. 22 23

Esses oponentes devem ter sido membros do círculo joanino (é inútil tentar identificá-los com algum

heresiarca em particular dentre os conhecidos dos Padres da Igreja de algum tempo depois, como Cerinto, por

exemplo), pois eles liam o Evangelho de João e a ele apelavam, afirmando que o Jesus desse evangelho dava

total suporte à sua teologia gnóstica. Eles falavam do seu conhecimento de Deus (2,4; 4,8), do seu amor a Deus

(4,20), da sua isenção de pecado (1,8-10) e do seu caminhar na luz (2,9). Como o próprio Jesus, eles diziam

proceder de “Deus” e falar na voz do espírito (4,2-6). Mas negavam a vida de Jesus na carne (4,2) e a identidade

do Cristo Celeste e do Jesus terreno (2,22). Cf. KOESTER, Helmut. Introdução ao Novo Testamento: história e

literatura do cristianismo primitivo. São Paulo: Paulus, 2005. v. 2. p. 212.

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25

autor do Quarto Evangelho com o fim de retificar leituras heréticas. Essa epístola

insiste no concreto de Jesus. O Cristo preexistente, objeto da nossa fé, é esse Jesus

que viveu na carne, esse Jesus que entrou na história. A insistência da Epístola supõe

que havia cristãos muito inclinados a fazer uma leitura espiritualizante e

desencarnada do Evangelho24

.

1Jo 2,22 conduz a Jesus: como confessá-lo como Filho? O conflito aqui gira em

torno da correta confissão de fé no Filho. Quem o nega é mentiroso. E a mentira é total,

porque destrói a fé cristã no seu núcleo: a pessoa de Jesus Cristo.

Tratava-se, da parte de certos cristãos, de uma espécie de gnosis25

, um docetismo

cristológico e ético. Os cristãos que saíam da comunidade negavam a realidade da

humanidade de Jesus. Para eles, a carreira terrena de Jesus não tinha importância salvífica real

e, por isso, deixaram de pensar nela como real. Eles se consideravam filhos de Deus através

de Jesus Cristo pela escolha do Pai. Com isso começaram a proclamar a escolha como filhos

de Deus antes de suas existências terrenas e pensaram que eles próprios eram divinos por sua

origem à imitação de Jesus. Como Jesus, também vieram ao mundo, mas perderam o

caminho, enquanto que o Filho não. A missão de Jesus agora consistia em mostrar-lhes o

caminho para Deus. Mas o que significa não confessar Jesus ou não confessar que Jesus veio

na carne?

O ponto conflitante está em 1Jo 4,2s: “Nisto reconheceis o Espírito de Deus.

Todo espírito que confessa Jesus Cristo vindo na carne é de Deus; e todo espírito que divide

Jesus não é de Deus”. Isto significa que a vida terrena de Jesus é desconsiderada; e valorizado

apenas o princípio divino de sua vida. O autor quer chamar a atenção para a proclamação de

um Jesus divino, que desconsidera a vida de Jesus na carne como parte do princípio divino.

Por isso, todo aquele que divide Jesus não é de Deus. Afirma o evangelista: “Foi ele que veio

pela água (batismo) e pelo sangue (morte na cruz), Jesus Cristo: não com a água somente, mas

com a água e o sangue” (1Jo 5,6a).

Uma teoria doceta atribuída por Irineu a Cerinto é formulada assim: “Depois do

batismo de Jesus, o Cristo, descendo desse Poder, que está acima de tudo, desceu sobre ele em

forma de uma pomba... mas, no fim, o Cristo se retirou de novo de Jesus.... o Cristo, sendo

24

O‟CONNOR, J. Murphy. A comunidade do discípulo bem amado. São Paulo: Paulinas, 1983. Apud

COMBLIN, José. A força da palavra. “No princípio havia a Palavra”. Petrópolis: Vozes, 1986. p. 78. 25

Dodd usa o termo para designar um grupo vasto e amorfo de sistemas religiosos, descrito por Irineu e Hipólito

em suas obras contra a heresia (Adversus Haereses e Refutatio Omnium), e também para indicar semelhantes

sistemas conhecidos por outras fontes. O uso desse termo não é atestado nesses escritores, nem em autores

antigos, mas é conveniente e não parece deturpado. Cf. DODD, A interpretação, p. 137.

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26

espiritual, ficou incapaz de sofrer”26

. Logo, a humanidade de Jesus não passava de uma mera

aparência. No entanto, os grupos cristãos contra os quais o autor das Epístolas reage não são

docetas27

, mas já denotam essa tendência, por colocarem em dúvida a paixão de Cristo e até

mesmo a realidade de sua encarnação. A única coisa importante para esse grupo de cristãos

era que a vida eterna tinha sido trazida para os homens através de um Filho divino que passou

por este mundo. A humanidade de Jesus é relativizada.

Com isso juntam-se outros elementos presentes no Evangelho que, no parecer

deles, diminuem a importância salvífica do ministério público de Jesus. A vida eterna se

tornou disponível simplesmente através da presença do Verbo no mundo e não através das

ações que o Verbo fez, enquanto estava presente no mundo. Ou seja, o que realmente

importava seria o fato de o Verbo ter-se feito carne, e não a espécie de vida que viveu, nem o

tipo de morte que padeceu. Por isso o autor da Primeira Carta de João tem o cuidado de

explicar as afirmações que implicam a pré-existência com outras afirmações que expõem a

vida terrena do Verbo feito carne – uma ênfase mais formal e explícita do que se encontra no

Quarto Evangelho. Esta mudança de ênfase pode ser observada comparando-se o prólogo da

Primeira Epístola com o prólogo do Evangelho, onde aparecem os mesmos termos

(“princípio”, “palavra”, “vida”), mas com uma significação diferente. Para o Evangelho, o

“princípio” está antes da criação; para a Epístola, “o que era desde o princípio” é paralelo ao

“o que ouvimos... o que vimos... o que contemplamos... e nossas mãos apalparam”; ou seja, é

o princípio do ministério, quando Jesus começou o seu primeiro relacionamento com os

discípulos28

. Assim, o autor da Primeira Carta dá o significado de “princípio” sem violar a

tradição joanina, que aparece no Evangelho em 2,11; 6,64 e 16,4. E apresenta ainda o que o

Evangelho afirma em 15,27: “e, por vossa vez, vós dareis testemunho, porque estais comigo

desde o começo”.

Quanto aos termos “verbo” e “vida”, lemos no prólogo do Evangelho pela

primeira vez (cf. Jo 1,1-5) que o Verbo estava na presença de Deus e o que veio a estar nele

era vida. Aqui estes termos fazem eco à história da criação em Gn 1–3. Somente em Jo 1,14 é

que se faz uma referência à encarnação, quando o Verbo se fez carne. Mas, no prólogo da

26

BROWN, A comunidade, p. 117. 27

O termo docetismo (do grego doke,w, “parecer”, “ter a aparência”) designa as doutrinas heréticas que reduzem

a humanidade de Cristo a uma aparência. Contra os docetas, os Padres da Igreja, desde o século II, mantiveram

controvérsias que levaram às fórmulas cristológicas dos Concílios do século V, em Éfeso e Calcedônia (sobre

Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem). Cf. MORGEN, As Epístolas, p. 38. 28

Brown compara o prólogo da Primeira Epístola como o prólogo do Evangelho evidenciando a diferença de

significação dos mesmos termos utlizados tanto no Evangelho quanto na Primeira Epístola. Cf. BROWN, A

comunidade, p. 125s.

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Epístola, o autor sublinha a vida eterna não somente “como ela era na presença do Pai”, mas

também “como ela nos fora revelada”: “O que ouvimos... do Verbo da vida, – pois a vida se

manifestou, e nós vimos e damos testemunho...” (1Jo 1,1-2). A Palavra da vida é a mensagem

evangélica da carreira vivificante de Jesus entre os homens. E ainda, quando se compara o

comentário do Evangelho sobre o “Verbo-feito-carne” em Jo 1,14: “...e nós vimos a sua

glória”, com o comentário da Epístola 1Jo 1,1: “...o que ouvimos, o que vimos com nossos

olhos, o que contemplamos e nossas mãos tocaram”; percebe-se que mesmo a ênfase na

encarnação é diferente nos dois prólogos. Na Epístola a ênfase é na qualidade observável e

tangível da proclamação e daí na carreira humana de Jesus29

.

E, quanto ao valor salvífico da morte de Jesus, a afirmação – “Nisto é que

doravante conhecemos o amor: ele (Jesus) deu a vida por nós” (1Jo 3,16) – apresenta uma

espécie de comentário a Jo 10,15: “Eu dou minha vida pelas minhas ovelhas”, que consiste

na expiação dos pecados. Por isso a afirmação de 1Jo 4,10: “Nisto consiste o amor: não fomos

nós que amamos a Deus, mas foi ele que nos amou e nos enviou seu Filho como vítima de

expiação por nossos pecados”.

Outro ponto interno conflitante nas comunidades joaninas era o das implicações

da cristologia no comportamento cristão. O autor da Primeira Carta chama a atenção para

aqueles que não guardam os mandamentos (cf. 2,3-4; 3,22.24; 5,2-3). Assim, aquele que diz

que conhece a Deus, mas não observa os mandamentos é um mentiroso e não tem condições

de permanecer no amor de Cristo Jesus (cf. Jo 14,10.15; 15,10). Isto leva a pensar que alguns

membros das comunidades joaninas interpretaram o Evangelho de João, mas deixaram de

lado a radicalidade do amor, que implica em uma vida ética exemplar, coerente com os

ensinamentos e a vida de Jesus30

. O próprio Evangelho mostra do começo ao fim como Jesus

foi obediente ao Pai e cumpriu sua vontade, realizando a “obra de amor” (cf. Jo 4,34; 10,17s;

12,49s e 15,10). Cristo cumpriu o mandamento do amor e se tornou palavra-luz (cf. 1Jo 2,8)

para o caminho que todo crente deve andar (cf. 1Jo 2,6). Segundo Feuillet,

no Evangelho é primeiro pela fé que o homem se abre à luz que emana de Cristo, o

Revelador, mas na segunda parte, começando com o cap. 13, Cristo faz insistentes

apelos em prol do amor fraterno, da parte dos que se lhe entregaram pela fé: crede e

amai, estas são as duas exigências fundamentais de Cristo no Quarto Evangelho.

Viver à luz da fé, e para isso rejeitar o erro e o pecado, e amar o próximo, estas são,

também na Epístola, as duas condições essenciais de uma autêntica comunhão com

Deus. Os diversos temas apresentados em 1Jo gravitam, cremos nós, em torno dos

29

Cf. BROWN, A comunidade, p. 126s. 30

Do mesmo modo que esses membros da comunidade joanina ignoravam a importância da obra salvífica de

Jesus, tornando-se indiferentes ao modo como ele viveu e morreu, também afirmavam uma intimidade com

Deus, independentemente do comportamento neste mundo.

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dois motivos básicos da luz divina e do amor divino, bem como a volta das duas

atitudes humanas correspondentes: fé e caridade31

.

É clara a firmação do evangelista: “Ninguém vai ao Pai a não ser por mim” (Jo

14,6). E, no caminho traçado por Cristo, o amor ao irmão constitui a prova de uma vida

espiritual autêntica. “Um mandamento novo eu vos dou: amai-vos uns aos outros. Como eu

vos amei, vós também amai-vos uns aos outros. Nisto todos reconhecerão que sois meus

discípulos: no amor que tiverdes uns para com os outros” (Jo 13,34s). “Se o conhecimento

leva à perfeição o amor de Deus no coração do crente (cf. 1Jo 2,4s), este não pode pretender

permanecer nesse amor sem amar seu irmão, segundo o exemplo de Jesus”32

.

Em 2Jo 6–7, o autor evidencia que a negação da encarnação de Jesus Cristo era a

falta de compromisso no nível concreto da caridade para com o irmão, o que significa dizer

que “confessar que Jesus veio na carne” se traduz por “amar-se uns aos outros”. O cristão não

pode confessar a fé independentemente de sua prática. 1Jo 2,10 afirma que “quem ama seu

irmão permanece na luz, e nele nada há que o faça tropeçar”. E “quem pretende estar na luz,

embora odiando seu irmão, está sempre nas trevas” (v. 9). Quem odeia o irmão se fecha à luz

que se revela em Jesus Cristo. A negação da humanidade de Jesus e a conseqüente falta de

caridade com o irmão é substancialmente uma fuga da história e do mundo. Ela não permite

que a luz de Cristo brilhe para os irmãos que mais necessitam. “Se alguém disser „Amo a

Deus‟ e odeia seu irmão, é um mentiroso. Com efeito, quem não ama seu irmão, a quem vê,

não pode amar a Deus, a quem não vê” (1Jo 4,20). O mandamento de amar presente nas cartas

joaninas diz respeito antes ao amor ao irmão de comunidade, àqueles que professam a mesma

fé no Cristo feito carne. Para amar aqueles que não pertencem a esse grupo, conforme exige

Mt 19,19, é preciso antes dar o testemunho do amor na vida interna da comunidade. Os

escritos joaninos insistem: é preciso amar uns aos outros (cf. Jo 13,34s; 15,12.17). Jo 15,13-

15 permite interpretar “uns aos outros” como aqueles que são discípulos de Cristo e que

observam os mandamentos33

. A recusa de Jesus em orar pelo “mundo” (cf. Jo 17,9) é também

transladada para a Primeira Epístola na recusa de se rezar por outros cristãos que cometeram o

pecado mortal de apostatar (cf. 1Jo 5,16).

Ainda nesse ponto conflitante, está a prática da justiça, que também é sinal do

31

FEUILLET, A. The structure of the first John. In: Biblical Theology Bulletin 3, p. 214-215, 1973. Apud

HARRINGTON, Chave, p. 609. 32

MORGEN, As Epístolas, p. 23. 33

MORGEN, As Epístolas, p. 64: “Aquele que tem a caridade fraterna, que a tem diante de Deus, onde vê a

Deus, e que, interrogando seu coração num exame rigoroso, recebe como resposta a certeza de ter em si a

verdadeira raiz da caridade, da qual saem os frutos das boas obras: esse tem a plena segurança junto de Deus e,

seja o que for que lhe peça, recebê-lo-á dele, porque guarda seus mandamentos”.

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reino de Deus. Essa atitude ética desenvolve-se a partir do amor ativo e atuante ao irmão (cf.

1Jo 2,28-3,24), pois “todo o que não pratica a justiça não é de Deus” (1Jo 3,10). Praticar a

justiça e purificar-se são características dos filhos de Deus (cf. 1Jo 2,28-3,6). Pelo contrário,

cometer pecados é atitude característica dos filhos do demônio. Portanto, a fé em Cristo, o

amor fraterno e a prática da justiça constituem o penhor da amizade com o Senhor Deus.

Quanto à escatologia, o autor da Primeira Epístola de João procura ser fiel à

tradição principal do Quarto Evangelho, mesmo sendo o tema referido de maneira muito

sucinta. 1Jo 3,2 diz: “Caríssimos, desde agora somos filhos de Deus, mas o que seremos ainda

não se manifestou. Sabemos que, quando ele aparecer, seremos semelhantes a ele, já que o

veremos, tal como é”. O autor sublinha as bênçãos futuras, porque “todo o que nele põe esta

esperança torna-se puro como ele é puro” (1Jo 3,3); ou seja, as bênçãos dependem da maneira

como os cristãos vivem.

Para o autor das Epístolas, os dons proclamados na escatologia joanina realizada não

são um fim em si mesmos (como são para seus adversários), mas uma fonte de

confiança no futuro, contanto que os que já são filhos de Deus continuem a viver

uma vida digna do Pai, a quem um dia eles verão face a face34

.

O autor da Primeira Epístola corrige os equívocos de interpretação do Evangelho,

feita pelos que deixaram a comunidade. Outros textos reforçam a ética da comunidade: 1Jo

2,28: “Agora, pois, filhinhos, permanecei nele. A fim de que, quando este se manifestar,

tenhamos plena confiança e não sejamos cobertos de vergonha, longe dele, na sua vinda”; 1Jo

3,18-19: “Filhinhos, não amemos com palavras nem com a língua, mas com obras e em

verdade; nisto reconheceremos que somos da verdade, e diante dele tranqüilizaremos nosso

coração”; 1Jo 4,17: “Nisto é perfeito em nós o amor, que temos plena confiança para o dia do

julgamento: porque, tal como ele é, (Jesus), assim também somos nós, neste mundo”.

Outro conflito é a luta pelo poder dentro de algumas comunidades já bem

estabelecidas. O autor da Terceira Epístola registra o fato quando escreve: “Escrevi uma

palavra à Igreja. Mas Diótrefes, que pretende mandar em tudo, não nos reconhece” (3Jo 9).

Aparece aqui Diótrefes, uma figura obscura que pertencia à mesma Igreja que o destinatário

da Epístola, Gaio, ao qual o autor escreve com afeto. Nesta Igreja, Diótrefes pretendia obter o

domínio de tudo, recusando-se a reconhecer o Ancião, autor da Epístola. “Por isso, quando eu

for aí, denunciarei sua conduta e as muitas más palavras que profere contra nós: não contente

com isso, recusa-se pessoalmente a receber os irmãos e impede que o façam aqueles que

34

BROWN, A comunidade, p. 143-144.

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30

desejariam recebê-los, expulsando-os da Igreja” (v. 10). Diótrefes bate de frente com os

missionários35

enviados pelo autor da carta. Diótrefes não recebe os missionários e expulsa da

comunidade aqueles que os recebem. O autor apresenta a falta de hospitalidade de Diótrefes

para com os irmãos itinerantes, que dependiam dela para a subsistência. E aqui a Primeira

Epístola questiona: como amar a Deus sem amar os irmãos? “Quem não ama seu irmão, a

quem vê, não pode amar a Deus, a quem não vê” (1Jo 4,20). Na disputa pelo poder, alguns

fecharam o coração aos irmãos em necessidade. O autor da carta, chamado de Ancião, diante

do testemunho que os membros da comunidade dão sobre Demétrio, apresenta-o como

modelo a ser imitado. Deve-se fazer passar a segundo plano a sua própria pessoa e a sua

ambição. Deve colocar-se a serviço dos outros e ajudar-lhes em sua labuta. Não se deve

acreditar que seja tempo perdido o que se empreende na ajuda aos irmãos que trabalham na

mesma obra em que o amor de Deus se está comunicando a si mesmo. No pólo oposto, está

Diótrefes, que tem diante da comunidade um comportamento negativo, ambicionando ser o

primeiro entre as pessoas da Igreja local, exercendo com presunção uma função de

autoridade36

. Estes textos demonstram um clima difícil no interno dessas Igrejas: expulsão de

irmãos e denúncias recíprocas. E aqueles que eram fiéis, que caminhavam no amor e na luz da

verdade, estavam sujeitos aos ataques vindos de seus próprios irmãos de fé. A Segunda

Epístola confirma ainda que os conflitos internos eram mais ásperos e rígidos que os externos

(cf. 2Jo 10). Diante de atritos tão intensos, o autor recomenda romper as relações com os

hereges, negando-lhes inclusive a saudação: “Se alguém vem ter convosco sem ser portador

desta doutrina, não o recebais em vossa casa, nem lhe desejeis as boas vindas” (2Jo 10). É

uma atitude dura contra os hereges, condicionada pela época. Os adversários gnósticos

representavam um perigo para as comunidades cristãs, que, segundo a opinião do autor da

carta, só a mais estrita separação deles podia sustentar o essencial da fé. A saudação que aqui

se proíbe é certamente mais que uma simples saudação de cortesia. Significa entrar em

comunhão eclesial.

35

Na verdade, percebe-se nitidamente que, diante do Ancião, Diótrefes assumiu para si um papel exclusivo a que

não tinha direito algum; e o fez a despeito de seu papel de liderança atual na comunidade. Como resultado de tal

atuação, a atividade missionária fica prejudicada, uma atividade missionária que tinha atrás de si o Ancião e que

era apoiada por alguns membros da comunidade de Diótrefes. Cf. KÜMMEL, Introdução, p. 589. 36

Provavelmente Diótrefes e os seus se entendiam como representantes do verdadeiro cristianismo e procuravam

proteger-se contra a penetração de um grupo cuja teologia era, de fato, muito avançada. Os enviados do Ancião,

por sua vez, considerar-se-ão com o mesmo direito de representantes do verdadeiro cristianismo. Estruturalmente

trata-se de um conflito entre autoridades carismáticas localmente estabelecidas e itinerantes. A Terceira Epístola

de João mostra que a decisão se dava cada vez mais em favor das autoridades locais. Cf. THEISSEN, O Novo

Testamento, p. 125.

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31

Outro conflito é o da Igreja que, ao testemunhar o Cristo Ressuscitado, deve

enfrentar com coragem a provação37

. Parece que o autor do Apocalipse experimentou a

perseguição nos últimos anos do imperador Domiciano. O poder político se arroga honras e

louvores divinos, contra o princípio cristão, pois um só é o Senhor que está em Jesus Cristo.

Assim, a comunidade se vê envolvida num conflito fundamental que lhe exige fidelidade à fé

e unidade diante da perseguição do poder político.

A seu modo, o Evangelho de João é também testemunha destas perseguições. Toda

uma seção do discurso de adeus descreve “o ódio do mundo” contra os discípulos

(15,18-20). “O discípulo não está acima do Mestre; se perseguiram a mim, também

perseguirão a vós; se guardaram minha palavra, guardarão também a vossa” (15,20).

“Expulsar-vos-ão das sinagogas. E mais ainda: virá a hora em que aquele que vos

matar julgará realizar um ato de culto a Deus” (16,2). Os judeus perseguiram os

discípulos sob a acusação de apostasia e de blasfêmia. Em breve os pagãos

considerariam os cristãos como ateus que atraiam sobre a cidade a cólera dos deuses

ultrajados38

.

Assim, o Apocalipse é uma revelação feita à Igreja com a finalidade de fazê-la

descobrir o sentido de sua história, em que o Cristo ressuscitado e vencedor acha-se presente

já, mas na qual, ao mesmo tempo, se desencadeiam forças do mal por intermédio de

instituições humanas.

Essa situação da comunidade joanina revela que nem tudo ocorreu perfeitamente.

Desmentidos por parte dos antigos irmãos – discípulos de João Batista –, acusações da parte

dos judeus, rivalidades internas e perseguições vindas do exterior mostram uma comunidade

afligida por todos os lados. Ao observar estas dificuldades, o evangelista escreve o Evangelho

com o intuito de fortalecer e firmar os passos das comunidades cristãs. A fé da comunidade

joanina era a sua força na convicção comunicada pelo Espírito: o mal e o ódio estavam

vencidos em sua fonte: “...tende confiança, eu venci o mundo” (Jo 16,33). É no mundo e não

fora dele que se difundem a alegria e a esperança deixadas pelo próprio Cristo na paz: “Eu vos

disse isso para que em mim tenhais a paz” (Jo 16,33a).

Quais eram, então, as preocupações pastorais do evangelista?

37

Uma base segura para a interpretação que o próprio texto do Apocalipse exige encontra-se na situação

específica das comunidades cristãs primitivas, que certamente seriam levadas, dentro de muito pouco tempo, a

uma perseguição sangrenta que atingiria toda a Igreja. Encontra-se também na confiança em face da vitória,

propiciando perspectivas que ultrapassam o tempo de sofrimento já bem próximo e fazendo a atenção voltar-se

para a parusia de Cristo e a destruição de todos os poderes e forças que se opõem a Deus. Cf. KUMMEL,

Introdução, p. 607. 38

JAUBERT, Leitura, p. 13.

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32

1.6. Preocupações pastorais do evangelista

O relato da vida de Jesus de Nazaré nos Evangelhos tem por finalidade suscitar ou

confirmar a fé dos seus leitores. Cada evangelista dá o testemunho de sua comunidade eclesial

sobre os fatos que servem de base para sua existência e para sua fé.

Os acontecimentos passados escolhidos pelo evangelista são aqueles que

considera mais significativos e dos quais se diz testemunha (cf. Jo 21,24). João amálgama os

dois tempos: o antes, tempo dos ouvintes contemporâneos de Jesus, e o pós-páscoa, tempo dos

leitores situados depois da páscoa.

O que o evangelista escreve não é, portanto, como no profeta Isaías, um anúncio

para o futuro. É ao contrário, um olhar, só possível tarde demais, para um

acontecimento enraizado num terreno histórico, cuja importância provou ser

decisiva e para sempre atual: esse acontecimento transformou a relação entre Deus e

os homens e dos homens entre si. O leitor é situado na presença dessa novidade de

vida e convidado a fazer parte dela; para tanto, é posto em contato não com um

morto ilustre, mas com um Vivente de quem sua própria existência depende para se

realizar39

.

Sua preocupação não consiste mais em apresentar a história de Jesus no tempo

em que estava no meio dos homens, como os sinóticos, mas a vivência da comunidade no

Cristo ressuscitado. Assim, ao ler o Evangelho, percebe-se tanto a história de Jesus de Nazaré

quanto a vida da comunidade que se estabelece nele40

. João vê a “Igreja” em Cristo. A Igreja é

o Cristo morto e ressuscitado que continua sua atuação. Para João, a Igreja está toda incluída

em Cristo (cf. Jo 15); nasce da Cruz de Cristo (cf. Jo 12,32ss); nela, através de Cristo,

prolonga-se o diálogo trinitário (cf. Jo 17,20ss)41

.

O evangelista preocupa-se com a comunidade quando escreve o Evangelho. Quer

que os leitores creiam que Jesus é o Cristo (cf. Jo 20,31). Orienta-os a reconhecer em Jesus

aquele por meio do qual Deus cumpre as promessas feitas a Israel. Leva-os a entender o

próprio mistério do Filho, de seu itinerário, e a adentrar no mistério do amor de Deus pelos

seres humanos, tal como o Filho o revelou (cf. Jo 3,16; 1,18). A organização do Evangelho de

João já mostra esta preocupação do evangelista ao explicar os mistérios do Reino

39

LÉON-DUFOUR, Leitura, p. 20. 40

Smith diz que, se a comunidade joanina que produziu o Evangelho viu a si mesma em continuidade tradicional

com Jesus, podemos perceber no “nós” dos prólogos não só do Evangelho como também da Epístola, não a

testemunha ocular apostólica em si, mas uma comunidade que, apesar disso, entendeu que era herdeira de uma

tradição baseada em alguma testemunha histórica de Jesus. Cf. SMITH, Moody D. Johannine Christianity: Some

Reflections on Its Character and Delineation. NTS 21, p. 236, 1974-1975. Apud BROWN, A comunidade, p. 33. 41

Cf. MAGGIONI, O Evangelho de João, p. 268-270.

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paulatinamente, levando os leitores a tirarem o véu que os impede de perceber a clareza

daquilo que está sendo anunciado. Assim são os diálogos entre Jesus e Nicodemos (cf. Jo 3,1-

21) e de Jesus e a samaritana (cf. Jo 4,1-42). Jesus apresenta uma verdade enigmática de

difícil compreensão imediata, provocando o interlocutor a fazer um pedido de explicação

necessária para que, a seguir, seja dada uma resposta clara. A incompreensão permite o

aprofundamento de determinada idéia. É um modo dinâmico e vivo de apresentar a catequese

para instruir a comunidade cristã. Outro exemplo são os episódios do capítulo 20, cada um

com sua própria importância. Há uma catequese da fé que reconhece em Jesus o Senhor e que

se torna capaz de irradiar sua presença para o mundo. Assim, Maria Madalena e os discípulos

partem da falta de fé e têm acesso à plena fé. O evangelista, preocupado com a vivência da fé

no Ressuscitado de sua comunidade, construiu o texto começando pela fé do discípulo amado

e de Maria Madalena, passando depois para o grupo dos discípulos e atingindo o ápice com a

solene proclamação: “Bem aventurados os que não viram e, contudo, creram” (Jo 20,29).

Quem lê o Evangelho percebe uma extensão progressiva da fé no Ressuscitado que vem até o

leitor de hoje.

O cuidado de explicar os termos hebraicos e aramaicos como Messias, Rabbí,

Siloé, mostra que o autor está preocupado com os que viviam fora da Palestina e seus leitores

gregos. O Evangelho é prova de que, na pessoa de seus pregadores, Jesus chegou à Diáspora

(cf. Jo 10,16; 7,35; 12,20-21). As comunidades joaninas são formadas, pelo que tudo indica,

também por judeus helenizados, ou seja, por judeus que estavam dispersos entre os gregos.

Para que a tradição seja transmitida e compreendida pelos seus leitores gregos, o evangelista

freqüentemente utiliza o recurso de parênteses explicativos42

.

Ao acentuar a identidade cristã em relação ao novo judaísmo, hostil ao

cristianismo e em especial aos judeus-cristãos, o evangelista está preocupado com os judeus

42

G. Van Belle chega a enumerar 176 parênteses classificados por seu conteúdo em 17 categorias: 1) tradução de

palavras hebraicas ou aramaicas para o grego; 2) explicação de usos judeus (cf. Jo 2,6 4,9; 18,28; 19,40); 3)

indicação ou descrição de personagens; 4) indicação ou descrição de lugares; 5) indicações de tempo; 6)

explicação das palavras de Jesus ou de outros; 7) explicação das ações de Jesus ou de outros personagens; 8)

incompreensões dos discípulos ou de outros; 9) compreensão tardia dos discípulos; 10) cumprimento da

Escritura ou das palavras de Jesus; 11) referência a uma passagem anterior ou posterior, a fim de criar uma trama

narrativa contínua; 12) correção de uma concepção equivocada (1,8) ou de uma possível interpretação errônea da

tradição (cf. Jo 6,46); 13) notícia conclusiva (cf. Jo 6,59); 14) reflexão incerta na narração (cf. Jo 1,24.28.44; 2,6

etc.); 15) reflexão teológica mais ampla (cf. Jo 1,6.8.15; 3,16-21.31-36 etc.); 16) referência ao autor do

evangelho (cf. Jo 1,14; 19,35; 21,20.23.24); 17) conhecimento sobrenatural de Jesus (cf. Jo 2,24-25; 6,6.64;

13,1.11 etc). Esta lista é ampla e compreensiva, porém dá uma idéia da intervenção do evangelista na tradição,

tanto para fazê-la compreender a seus leitores, como para oferecer uma informação coerente e compreensiva, ou

também para fazer compreender sua profundidade teológica. Porém, a tradição e o evangelista estão tão fundidos

no estilo que é necessária uma esmerada crítica literária para distingui-los. Cf. VAN BELLE, Gilbert. Les

parenthèses de l’Evangile de Jean. Leuven, 1985. p.106-112. Apud SEGALLA, Giuseppe. Panoramas del

Nuevo Testamento. Estella: Editorial Verbo Divino, 1989. p. 334-335.

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que criam em Jesus, porém se sentiam angustiados entre as exigências de sua fé e o desejo de

não abandonar o judaísmo. Esta firme insistência de que Jesus é o Messias (cf. Jo 20,31) tem

por finalidade fortalecer a fé nesta confissão crucial que havia se convertido em pedra de

escândalo que os impedia de continuar participando nas sinagogas. João mostra a experiência

do cego de nascença (cf. Jo 9) que, ao ser curado e mostrar-se aberto para Jesus, foi expulso

da sinagoga. Ele exorta aos judeus-cristãos da diáspora a seguir seu exemplo.

Outra preocupação do evangelista era com os que negavam a humanidade de

Jesus Cristo. Dissociavam o homem histórico Jesus e o Cristo celeste enviado pelo Pai (cf.

1Jo 2,18-23; 4,1-3). As correntes de pensamento que divulgavam tais concepções receberam o

nome de gnósticas, porque atribuíam a salvação ao conhecimento que provinha da revelação

de segredos divinos. Tudo quanto se referia ao corpo era desprezível. No fundo elas informam

sobre os desvios ocorridos a propósito da cristologia do Quarto Evangelho. Estes desvios

acabaram confundindo os irmãos mais fracos na fé. Ou seja, João provavelmente utilizou

ditos, palavras e expressões dessas correntes de pensamentos para escrever o Evangelho, o

que levou a uma interpretação diferente daquela que propôs com seu escrito.

O Evangelho de João é uma nova interpretação da fé cristã num ponto crítico da

história religiosa. Percebemos nele o surgimento da “gnose”, que une três motivos

básicos: 1) uma radical desvalorização do mundo como obra de um demiurgo

subordinado, ignorante ou maléfico, distinto do verdadeiro Deus transcendente, com

2) uma radical valorização do ser humano como centelha celeste que se perdeu neste

mundo, e 3) a convicção de que a salvação se dá pela “gnose”: pelo intuitivo

conhecimento (= gnose) de uma identidade do ser humano com o Deus

transcendente. Por isso a gnose é uma variante da religiosidade mística. No

Evangelho de João Jesus é o único gnóstico. Só Ele veio do céu, e só Ele sabe que

ao céu tornará (8,14)43

.

Segundo Kümmel, “uma interpretação cuidadosa de João evidencia que João

empregou uma linguagem gnóstica de maneira enfaticamente antignóstica (cf. 1,14; 3,16;

17,15; 20,20)”44

. João, ao escrever utilizando a linguagem do gnosticismo, mostrou aos

cristãos que Jesus é o verdadeiro revelador. A Primeira Epístola de João tem o objetivo de

esclarecer as dúvidas e pendências que possivelmente possibilitaram uma interpretação

errônea do Evangelho.

As lutas pelo poder dentro das comunidades já bem organizadas fazem parte

também das preocupações pastorais do autor, como se vê na Terceira Epístola. O autor chama

a atenção para a caridade e a hospitalidade para com os irmãos, missionários itinerantes de

43

THEISSEN, O Novo Testamento, p. 122-123. 44

KÜMMEL, Introdução, p. 290.

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outras comunidades. As lutas são tão ásperas que se admite o rompimento de relações com

aqueles que não permanecem na doutrina de Cristo (cf. 2Jo 9–10).

Também a perseguição é motivo de preocupação para João. O Apocalipse revela

que as comunidades passavam por momentos difíceis com o imperador romano da época. O

poder político arrogava para si os louvores divinos. Por não aceitarem tal situação, os cristãos

eram perseguidos e muitos, martirizados. João fortalece os cristãos exortando-os a terem

coragem e confiança para enfrentar as aflições na certeza da vitória em Cristo (cf. Jo 7,9-17).

O próprio Cristo em seu discurso chama a atenção dos discípulos: “Neste mundo

experimentareis a aflição, mas tende confiança, eu venci o mundo” (Jo 16,33). É uma palavra

que insiste na perseverança do passo mantido e na convicção de fazer a vontade de Deus

como discípulos e discípulas de seu Filho, Jesus Cristo.

Além disso, João, através de seu modo de apresentar o Evangelho, dedica-se ao

tema dos sacramentos na descrição de um acontecimento de Jesus, sugerindo alguma coisa

que os evoque na Igreja. É o que se pode presumir em Jo 3,3; 6,51-58; 19,34. Ao lê-los é

impossível não pensar no Batismo e na Eucaristia45

. João relaciona os sacramentos com o

evento Cristo em sua globalidade, cujo centro é exatamente a cruz e a ressurreição, levando o

fiel a participar do mistério do Cristo em sua totalidade. Para João, o que importa nos

sacramentos é encontrar a pessoa de Jesus Cristo e a ela aderir. A palavra é que desvela o

sentido do sinal: “É o Espírito que vivifica, a carne para nada serve. As palavras que eu vos

disse são espírito e vida” (Jo 6,63). João não nega os sacramentos, mas os confirma. O que se

diz dos sacramentos poderia ser dito também, analogamente, de outros aspectos institucionais,

por exemplo, a autoridade. João conhece estes aspectos e os acata, mas faz uma leitura deles

na perspectiva de sua própria cristologia: acima dos aspectos institucionais, João ressalta o

Cristo e sua autoridade. João acreditava que o Senhor ressuscitado estava, na época, falando

às suas comunidades nas palavras e ações de Jesus de Nazaré.

No encontro pessoal com o Cristo e na adesão à sua pessoa, na comunidade

joanina, mulheres emergem como paradigmas da fé e do anúncio. A atitude delas aparece

refletida nos episódios da mãe de Jesus (cf. Jo 2,1-12; 19,25-27), da samaritana (cf. Jo 4,1-

42), de Marta (cf. Jo 11,17-37), de Maria (cf. Jo 12,1-8) e de Maria Madalena (cf. Jo 20,1-18).

45

Maggioni, citando Cullmann, afirma: “João está preocupado em estabelecer uma relação entre o culto cristão

de seu tempo e os acontecimentos da vida de Jesus. Mas esta preocupação faz parte de outra mais ampla: mostrar

a identidade do Senhor presente e operante na comunidade com a do Jesus histórico. Assim encontraríamos mais

uma vez o tema cristológico ao qual João reconduz todas as outras realidades da salvação. Para ele, „os

sacramentos, no tempo da ressurreição, tomam o lugar dos milagres realizados por Jesus, no tempo de sua

encarnação‟” (MAGGIONI, Os Evangelhos, p. 27).

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Há ainda o texto da mulher adúltera (cf. Jo 7,53-8,11) que, segundo os exegetas, trata-se de

um acréscimo posterior e não é de autoria joanina. Desta forma as mulheres no Quarto

Evangelho refletem a história, a teologia e os valores da comunidade joanina46

. Com isso, o

evangelista mostra também que a autoridade eclesiástica não é o único critério para julgar a

importância da adesão a Jesus Cristo.

1.7. Conclusão

João marca a identidade da comunidade com a fé no Cristo Jesus. Para fazer parte

da comunidade joanina, faz-se necessária uma adesão incondicional ao Cristo, o que implica a

exigência de um compromisso total de seus membros com o projeto de fé e vida cristã. João

não se preocupa com a discussão teórica ou com a conceituação da fé, mas mostra a realidade

concreta do crer em Jesus Cristo, o Filho de Deus, o salvador do mundo.

A comunidade joanina está enfrentando muitas dificuldades, tanto externas

(expulsão da Sinagoga, a não compreensão dos discípulos de João Batista, perseguições)

como internas (cíumes entre as lideranças das comunidades, interpretações errôneas sobre o

Evangelho). Para solucionar esses problemas, o evangelista convoca os ouvintes para

aprofundar dentro de si mesmos o mistério de Deus em Jesus Cristo, mantendo-se firmes nas

palavras do Cristo. São os ensinamentos de Jesus que sustentam a fé do discipulado. Os

discípulos tornam-se capazes de enfrentar todo e qualquer tipo de adversidade. Para o

evangelista, o importante e essencial é tornar a comunidade um sinal vivo e permanente do

Cristo Jesus.

A comunidade joanina apresenta em sua convivência muitas mulheres como

paradigmas de fé e de anúncio. A mulher, em João, é a primeira a crer. A começar pelas bodas

de Caná (cf. Jo 2,1-12), que revela a mãe de Jesus como aquela que crê profundamente no seu

filho e Deus, levando-a à dizer àqueles servos do casamento: “Fazei tudo o que ele vos disser”

46

Elisabeth Fiorenza mostra que o evangelista começa e conclui o ministério público de Jesus com uma narração

sobre a mulher, Maria, a mãe de Jesus, e sobre Maria de Betânia. Ao lado do fariseu Nicodemos, coloca a mulher

samaritana; ao lado da confissão cristológica de Pedro, coloca a de Marta. Quatro mulheres e o discípulo amado

estão sob a cruz de Jesus. Maria Madalena não é apenas a primeira a testemunhar o túmulo vazio, mas também a

primeira a receber a aparição do Senhor ressuscitado. Assim, em pontos decisivos da narrativa, emergem

mulheres como discípulas exemplares e testemunhas apostólicas. Ainda que a narrativa sobre a mulher

supreendida em adultério seja acréscimo posterior ao texto do Evangelho, quem a interpolou possuía, todavia,

fino senso da dinâmica da narrativa que coloca as mulheres em pontos decisivos de desenvolvimento da

narração. Segundo esta autora, a preeminência das mulheres na comunidade joanina e sua tradição apostólica

causaram consternação entre os outros cristãos e isso pode ser percebido em Jo 4,27s, onde os discípulos ficam

“chocados” por Jesus conversar com uma mulher e se revelar a ela. Cf. FIORENZA, Elisabeth. As origens

cristãs a partir da mulher: uma nova hermenêutica. São Paulo: Paulinas, 1992. p. 373.

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(Jo 2,5). Além dela, Marta, que crê na ressurreição de Lázaro (cf. Jo 11,24ss) e em Jesus

como ressurreição e vida (cf. Jo 11,27); Maria, irmã de Marta e Lázaro, que crê em Jesus

como profeta (cf. Jo 12,3). As mulheres que estavam ao pé da cruz (cf. Jo 19,25), que creem

em Jesus como o Senhor; a mulher samaritana (cf. Jo 4,19.25s), que crê em Jesus como

profeta e Messias, aquele que anunciará todas as coisas; e Maria Madalena (cf. Jo 20,16), que

crê em Jesus como Mestre e Senhor. São mulheres que sustentam a fé até o fim. Não

abandonam o seu Senhor, nem na hora da Cruz. O amor que possuem faz delas verdadeiras

discípulas de Jesus. A coragem delas não deixa com que as palavras de Jesus caiam no vazio.

Ao contrário, faz com que essas palavras cheguem a muitos irmãos e irmãs. Muitas atitudes

dessas seguidoras de Jesus mostram por que são paradigmas de fé e de anúncio. Como são

muitas as mulheres que protagonizam o Evangelho e seria dificil analisá-las em seus

pormenores, este trabalho centra-se na análise das perícopes da mulher samaritana, em Jo 4,1-

42 e de Maria Madalena, em Jo 20,1-18.

O próximo capítulo consitirá em detectar nas atitudes da mulher samaritana e seu

diálogo com Jesus, junto ao poço de Jacó, a origem de sua fé e de seu seguimento, que se

tornam referencial para a comunidade.

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2. O DOM DE DEUS OFERECIDO À SAMARITANA

2.1. Introdução

Para sublinhar a importância da fé e do anúncio para a comunidade, João

apresenta na perícope da samaritana um modelo de discipulado. Diante de Jesus, não existe

meio termo: ou se confessa a fé nele, como o fez a samaritana (cf. Jo 4,15.19.25.42), ou se

rejeita abertamente seu testemunho, como os judeus (cf. Jo 12,37). A perícope da mulher

samaritana (cf. Jo 4,1-42) manifesta o conflito geral deste Evangelho: de um lado os judeus,

que não acreditam em Jesus e que exclui todo aquele que o professa, e de outro a comunidade

do discípulo amado, que se esforça para ser fiel ao projeto de Deus: projeto integrador, vivido

em comunhão.

A fé da mulher samaritana é selada em seu coração pela palavra de Jesus. Ela

ouve, aceita ser interpelada e responde. Ela larga tudo e vai anunciar ao seu povo o que viu e

ouviu. Sua disposição de seguir Jesus e sua vinculação são imediatas. Sua resposta ao

oferecimento de Deus em Jesus transforma sua vida por completo, bem como a de toda a

comunidade que ouve a palavra que ela anuncia. Para crer e seguir é necessário ouvir o que

Jesus tem a dizer, abrir o coração, aceitando ser interpelada e responder à proposta de Jesus.

Se a comunidade da samaritana acolhe a palavra de Jesus, bem o contrário é o que

se dá com os judeus, que parecem incapazes de assimilar o sentido profundo da atuação do

Mestre no templo (cf. Jo 2,18-20). Quando Jesus expulsa os vendedores de bois, ovelhas e

pombas do Templo, os judeus interpelam-no e lhe pedem um sinal que lhes mostre o porquê

de sua atitude. Mediante a resposta enigmática de Jesus – “Destruí este templo, e em três dias

eu o reerguerei” –, os judeus não o entendem de modo algum. Pensando na forma material e

visível daquele templo, interrogam Jesus: “Foram necessários quarenta e seis anos para

construir este templo e tu o reerguerias em três dias?”. O evangelista faz saber que o grande

sinal está ali diante deles e eles não conseguem vê-lo. Por isso comenta: “Mas ele falava do

templo do seu corpo”. Jesus entrega seu corpo espontaneamente à destruição; porém, em três

dias, ele o reerguerá novamente, vencendo o poder da morte (cf. Jo 10,18). Com esta

interpretação, Jesus torna-se o “lugar” da adoração de Deus, a verdadeira “casa de Deus” (cf.

Jo 1,51). Com ele e nele começa o tempo da adoração de Deus “em espírito e em verdade”

(cf. Jo 4,23).

Na seqüência de reações diante de Jesus que encontramos nos diálogos dos capítulos

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2, 3 e 4, parece haver uma mudança, partindo da descrença, passando pela crença

insuficiente, para uma crença mais suficiente. Os “judeus” na cena do Templo são

abertamente céticos sobre os sinais (2,18-20); Nicodemos é em Jerusalém um dos

que acreditam por causa dos sinais de Jesus, mas não tem uma concepção adequada

de Jesus (2,23s); a samaritana é levada quase a perceber que Jesus é o Cristo

(Messias; 4,25-26.29) e transmite isto aos outros. Na verdade, os samaritanos

acreditam por causa da palavra da mulher (4,39 e 42): dia ton lógon [lalian]

pisteuein. Esta expressão é significativa porque ela aparece novamente na oração

„sacerdotal‟ de Jesus por seus discípulos: „Não rogo somente por eles, mas pelos

que, por meio de sua palavra, crerão em mim‟ (17,20: dia tou lógou pisteuein)1.

O que se percebe na seqüência de relatos joaninos é que a samaritana representa

um passo a mais no caminho da fé. O episódio da samaritana gira em torno da declaração de

Jesus em Jo 4,10: “Se conhecesses o dom de Deus...”. No diálogo estabelecido com a mulher,

Jesus vai se revelando como dom que leva a salvação a todo que nele crê. É esta mulher

concreta que anunciou o Messias aos desprezados samaritanos. Símbolo de seu povo, a

samaritana é alguém que precede os apóstolos em seu trabalho missionário2. João apresenta

essa mulher com traços do verdadeiro discípulo de Jesus, tal como aparecem em Jo 153. João

mostra o caminho para a autêntica fé: a fé em Deus que se plenifica em Jesus como dom

oferecido a todo aquele que o procura incessantemente. A riqueza deste texto oferece ao

leitor-discípulo um horizonte inesgotável de reflexão. A composição desta perícope não deixa

dúvidas de que João quer mostrar quem são os verdadeiros adoradores do Pai, autênticos

discípulos de Jesus.

Para melhor entender a dinâmica da perícope da samaritana (cf. Jo 4,1-42), a

divisão em partes menores facilitará a análise dos vocábulos, frases, expressões e passagens

de grande relevância teológica que evidenciam essa mulher como um modelo para o

discipulado da comunidade joanina.

2.2. A Missão de Jesus: Jo 4,1-6

O encontro de Jesus com a samaritana dá-se por iniciativa dele. A samaritana

nem pensava que poderia se encontrar com Jesus no poço de Jacó. Foi Jesus quem tomou a

iniciativa ao decidir passar pela Samaria, retornando da Judéia para a Galiléia. Ele poderia ter

feito outro caminho, como nos informa o evangelista: “Era preciso passar pela Samaria”. Não

que fosse o único caminho. É que algo muito importante era necessário acontecer: o

1 BROWN, A comunidade, p. 197.

2 Cf. GALVÃO, Antonio Mesquita. Jesus e a samaritana: um diálogo sempre atual. Revista Grande Sinal,

Petrópolis, v. 59, n. 1, p. 61-62, Janeiro/Fev. 2005. 3 Cf. ESTÉVEZ, Elisa. A mulher na tradição do Discípulo Amado. Ribla, Petrópolis, n. 17, p. 68, fev. 1994.

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“encontro” com a samaritana e com os samaritanos. Se Jesus atravessa a Samaria é porque sua

missão o exige segundo o desígnio de Deus. E o diálogo de Jesus com a samaritana se

desenvolve alternando a revelação de Jesus com a incompreensão humana ante o mistério de

Deus. Fica evidenciada, assim, a paciência de Deus que não só satisfaz as aspirações da

pessoa humana, mas, muito mais, ele as suscita.

1 ~Wj ou=n e;gnw o VIhsou/j o[ti h;kousan oi Farisai/oi o[ti VIhsou/j plei,onaj maqhta.j poiei/ kai. bapti,zei h' VIwa,nnhj

2 &kai,toige VIhsou/j auvto.j ouvk evba,ptizen avllV oi` maqhtai. auvtou/&

3 avfh/ken th.n VIoudai,an kai. avph/lqen pa,lin eivj th.n Galilai,anÅ

4 :Edei de. auvto.n die,rcesqai dia. th/j Samarei,ajÅ

5 e;rcetai ou=n eivj po,lin th/j Samarei,aj legome,nhn Suca.r plhsi,on tou/ cwri,ou o] e;dwken VIakw.b Îtw/|Ð VIwsh.f tw/| ui`w/| auvtou/\

6 h=n de. evkei/ phgh. tou/ VIakw,bÅ o ou=n VIhsou/j kekopiakw.j evk th/j o`doipori,aj evkaqe,zeto ou[twj evpi. th/| phgh/|\ w[ra h=n w`j e[kthÅ

1Quando Jesus soube que os fariseus tinham ouvido

dizer que ele fazia mais discípulos e batizava mais

gente do que João

2 – na verdade, Jesus mesmo não batizava, mas os seus

discípulos –,

3 ele deixou a Judéia e foi para a Galiléia.

4 Ora, era preciso que atravessasse a Samaria.

5 Foi assim que ele chegou a uma cidade da Samaria

chamada Sicar, não longe da terra dada por Jacó a seu

filho José,

6 lá mesmo onde se acha a fonte de Jacó. Cansado da

viagem, Jesus estava assim sentado junto à fonte. Era

mais ou menos a sexta hora.

Primeiramente João informa que o grupo de Jesus estava batizando mais que João

Batista. Esta afirmação pode ser uma confirmação do que fora dito em Jo 3,30: “É preciso que

ele cresça e eu diminua”. Com isso o evangelista mostrava que a missão de João Batista já

estava no fim. A missão do Batista era a de preparar o povo para acolher aquele que vem do

alto, o Cristo Jesus. A alegria de João Batista é perfeita (cf. Jo 3,29), porque Jesus Cristo faz

mais discípulos e batiza mais gente do que ele (cf. Jo 4,1). Para os fariseus maliciosos devia

ser insuportável ver que Jesus recrutava mais neófitos e adeptos que João Batista.

Os discípulos (oi maqhtai,) são os que testemunham Jesus. A adesão a Jesus é

acompanhada de perto pelos fariseus que se inteiraram do êxito do empreendimento do

Nazareno. Os fariseus4 eram os mais zelosos guardiões da lei e das instituições religiosas.

4 Oriundos do povo, constituindo um partido do povo, os fariseus procuram ser separados do povo (este é, ao

que tudo indica, o sentido do seu nome): eles consideram o povo por demais ignorante da Lei e sobretudo

impuro, por não respeitar suficientemente a lei de santidade, expressão da própria vontade de Deus. Desta Lei de

Moisés, só uma parte foi posta por escrito, sendo o resto transmitido oralmente de Moisés aos profetas e depois

aos sábios ou escribas (rabis), graças a um ensino esotérico que, no século I, torna-se cada vez mais importante.

Essa Lei oral tem o mesmo valor ou até mais que a Lei escrita. E é à medida em que se respeita toda essa Lei,

escrita e oral, que são adquiridos os méritos necessários à salvação e ao envio do Messias, que estabelecerá

enfim o Reino de Deus, expulsando ao mesmo tempo os romanos e todos os outros ocupantes da Palestina. O

farisaísmo era o único movimento religioso que tinha profundidade bastante para resistir à catástrofe de 70; é

dele que em Jâmnia, na costa mediterrânea, renascerá o judaísmo. Cf. SAULNIER, Christiane; ROLLAND,

Bernard. A Palestina no tempo de Jesus. 3.ed., São Paulo: Paulinas, 1983. p. 81-82.

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Jesus, ao suscitar um movimento de adesão a si, gera como conseqüência uma ruptura com as

instituições. Ser seu discípulo supunha abandonar tudo o que impedia a abertura do coração

ao dom de Deus. E, por isso, o foco dos fariseus estava em Jesus e não mais em João Batista.

Jesus não quer, neste momento, nenhum tipo de conflito com os dirigentes do judaísmo. Por

isso toma a decisão de ir para a Galiléia, província do norte, fora da jurisdição romana e

afastada das autoridades nacionais e religiosas de Jerusalém5. Jesus está sob o imperativo da

hora, que lhe foi fixada pelo Pai (cf. Jo 2,4).

Acentuando o conhecimento e domínio que Jesus tem de seu destino, o autor anota

que Jesus sabe da preocupação dos fariseus a respeito de seu sucesso que supera o

do Batista (ver 3,25-26). Reconhecemos por trás disso a situação da comunidade

cristã, muito mais “intragável” para o judaísmo dominante que o grupo do Batista,

que não põe em xeque seus conceitos nem confessa Jesus como “Filho de Deus” (cf.

5,18; 10,30). Conhecendo o zelo dos fariseus e achando que é muito cedo para

provocar o conflito decisivo, Jesus se retira para a Galiléia6.

Ali Jesus podia circular livremente. O enviado de Deus precisava proclamar o

evangelho também nas redondezas. Jesus retorna à Galiléia onde já estivera manifestando sua

glória – Caná (cf. Jo 2,1-11), seguido de seus primeiros discípulos (cf. Jo 1,43). De lá, ele

voltará a subir para Jerusalém para dar prosseguimento à missão junto a seu povo.

No caminho para a Galiléia está a Samaria7 onde “é preciso” (:Edei) que Jesus

atravesse. Geograficamente, Jesus podia ter ido para a Galiléia, passando pela Transjordânia,

como se fazia freqüentemente. Era até mais fácil. O verbo “:Edei” – era preciso ou tinha que

– denota que a necessidade de Jesus era de outra ordem. Como em outras passagens de João

(cf. 3,14), a idéia de necessidade indica que se trata de cumprir a vontade ou os desígnios de

Deus. Em Isaías há uma profecia segundo a qual os dois reinos separados (Israel e Judá)

seriam um dia reconciliados. O profeta anuncia que o rei justo, sobre o qual pousará o Espírito

de Deus, “congregará os exilados de Israel, reunirá os dispersos de Judá dos quatros cantos da

terra” (Is 11,12). Esta vontade é confirmada em Jo 4,34: “O meu alimento é fazer a vontade

daquele que me enviou e realizar a sua obra”. Jesus quer reconciliar os dois povos, os irmãos

5 Cf. LÉON-DUFOUR, Leitura, p. 260.

6 KONINGS, Evangelho, p. 140.

7 A região da Samaria – assim denominada por causa do nome de sua capital, fundada pelo rei Omri (886-

875a.C.) – corresponde ao antigo reino israelita do norte. Em 722, os assírios dele se haviam apossado,

deportando uma parte dos habitantes e instalando colonos. Quando o sumo sacerdote judeu João Hircano (134-

104a.C.) conseguiu reconquistar o país, a população local provinha de duas cepas, a judaica e a pagã. Os

descendentes dos israelitas tinham conservado a fé ancestral, mas reconheciam tão somente a tradição do

Pentateuco e consideravam o monte Garizim, onde havia sido posta a benção de YHWH sobre Israel (cf. Dt

11,29; 27,12), era o autêntico lugar do culto; além disso, elementos colhidos em religiões estrangeiras

misturavam-se às suas crenças. Por esses motivos, os judeus os consideravam cismáticos, quando não heréticos.

Cf. LÉON-DUFOUR, Leitura, p. 261.

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divididos desde os primórdios da realeza. Jesus levará a cabo a obra do Pai junto aos

samaritanos, esses herdeiros do antigo reino de Israel que outrora se separara do de Judá. Por

isso Jesus toma a decisão de ir para a Galiléia pelo caminho da Samaria para realizar a obra

daquele que o enviou.

Jesus chega a Sicar8, cidade da Samaria, próximo à terra dada por Jacó a seu filho

José, onde fica a fonte de Jacó. Estas terras remontam às origens de Israel, quando não havia a

divisão entre judeus e samaritanos. Junto a esta fonte, Jacó encontrou-se com Raquel em Harã

(cf. Gn 29,2-10). Jacó tira a pedra que estava em cima da fonte para dar de beber ao gado. Em

Gn 24, encontramos uma narrativa semelhante o relato joanino do encontro no poço: quando o

estrangeiro acabou de falar, Rebeca voltou aos seus e disse-lhes de que modo lhe falou aquele

homem. A samaritana age do mesmo modo. O que é destacado certamente é a fonte e sua

água que garante a existência e reanima as forças para prosseguir o caminho.

Jesus, ao chegar com seus discípulos, mostra-se cansado (kekopiakw,j) e, por isso,

senta-se junto à fonte. Jesus trabalha, prega, afadiga-se na missão antes de dar sua vida pelos

seus na cruz. Mas que cansaço é esse? Será da fadiga de uma caminhada sob o sol? Ou um

cansaço pelo não-entendimento de seus discípulos acerca de sua missão? Tal cansaço provem

de um trabalho necessário que está fazendo para que se produza o fruto. O caminho de Jesus é

marcado pela fadiga de quem trabalha sempre. No caminho que está fazendo, Jesus vai

semeando. Por isso, em Jo 4,38, diz a seus discípulos: “Eu vos enviei para colher o que não

vos custou nenhum trabalho; outros trabalharam e vós entrastes no que lhes custou tanto

trabalho”.

A narração marca a hora em que Jesus está sentado junto à fonte (w[ra h=n w`j e[kth

– era mais ou menos a sexta hora)9. Segundo vários exegetas, esse é o horário em que Jesus

será apresentado à multidão por Pilatos. Assim, alguns autores vêem aqui uma alusão à

paixão. Antecipa-se, como em Caná (cf. Jo 2,4), a hora de Jesus. O cansaço da paixão já se

faz presente em sua caminhada evangelizadora. Também o v. 23 – “Mas vem a hora, e é

agora, na qual os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e verdade” – faz

referência à paixão. O culto com espírito e lealdade será possível somente quando Jesus tiver

entregue o espírito (cf. 7,39; 19,30), a água viva que oferece à mulher (cf. 4,14) e que brotará

8 A cidade existente nos tempos de Jacó chamava-se Siquém (Gn 33,18-20; Js 24,32; Os 6,9) e, perto dela,

surgira a cidade mais moderna de Sicar. Siquém fora destruída há mais de um século. Cf. MATEOS, Juan;

BARRETO, Juan. O Evangelho de São João. 2.ed. São Paulo: Paulus, 1999. p. 219 9 Alguns exegetas chamam a atenção por ser uma hora que ninguém vai ao poço tirar água. É a hora mais quente

do dia. Normalmente se faz isso pela manhã, quando ainda está fresco ou ao entardecer. Cf. LÉON-DUFOUR,

Leitura, p. 267.

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de seu lado aberto pela lança do soldado (cf. 19,34). O evangelista antecipa na cena de

Samaria, como em Jo 3,3-7, o fruto da morte de Jesus. Une o tempo de Jesus com o tempo da

comunidade que lê a vida de Jesus após a sua morte e ressurreição, e vê na sua atividade

anterior a antecipação da realidade que ela vive.

2.3. O encontro da samaritana com Jesus

O encontro com Jesus sempre possibilita uma transformação de vida para todo

aquele que abre seu coração a ele. Jesus sentia ressoar em seu humano coração um amor

infinito, que vinha do invisível mistério de seu Pai. Ele sabia que o grande dom, que o Pai sem

cessar lhe dava, era destinado a todos os seres humanos. Muitos desses encontros de Jesus

com homens e mulheres são mencionados pelos Evangelhos. Pensando na força

transformadora desses encontros, João Paulo II afirma:

Uma característica comum a todas essas narrações é a força transformadora que

encerram e manifestam os encontros com Jesus, visto que “desencadeiam um

autêntico processo de conversão, comunhão e solidariedade”. Um dos encontros

mais significativos é o da samaritana (cf. Jo 4,5-42). Jesus a chama para saciar sua

sede, que não era só material: na verdade, “Aquele que lhe pedia de beber, tinha

sede da fé da mulher mesma”10

.

Portanto, o encontro de Jesus com a samaritana a conduz a uma fé profunda11

. Sua

vida depois deste encontro nunca mais será a mesma. Através da palavra da samaritana, o seu

povo vai ao encontro de Jesus para ter com ele. E, pela força da palavra de Jesus, efetua-se a

conversão dos samaritanos.

2.3.1. A sede de Jesus e a mulher samaritana - Jo 4,7-9

A água é um elemento imprescindível para a vida. A sua virtude purificadora, sua

capacidade de saciar a sede, seu poder vivificador, fecundante, reanimador podia muito

facilmente transpor-se às necessidades e bens superiores dos homens. Por isso Jesus toma a

iniciativa desse diálogo e diz à samaritana: “Dá-me de beber”.

7 e;rcetai gunh. evk th/j Samarei,aj avntlh/sai u[dwrÅ 7 Chega uma mulher da Samaria para tirar água; Jesus

10

JOÃO PAULO II. Ecclesia in América. Exortação Apostólica pós-sinodal do Santo Padre João Paulo II. São

Paulo: Paulus, 1999. p. 13. 11

Segundo Weiler, o episódio do encontro de Jesus com a mulher samaritana à beira do poço de Jacó e todo o

desenrolar da cena que se segue trazem à luz vários elementos hermenêuticos para três questões candentes na

época de Jesus e hoje: mulher, cultura e evangelização. Cf. WEILER, Lúcia. Jesus e a samaritana. Ribla,

Petrópolis, n. 15, p. 98-103, 1993.

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le,gei auvth/| o VIhsou/j\ do,j moi pei/n\

8 oi ga.r maqhtai. auvtou/ avpelhlu,qeisan eivj th.n po,lin i[na trofa.j avgora,swsinÅ

9 le,gei ou=n auvtw/| h` gunh. h` Samari/tij\ pw/j su. VIoudai/oj w'n parV evmou/ pei/n aivtei/j gunaiko.j Samari,tidoj ou;shjÈ ouv ga.r sugcrw/ntai VIoudai/oi Samari,taijÅ

lhe disse: “Dá-me de beber”.

8 Os seus discípulos, com efeito, tinham ido à cidade

para comprar o que comer.

9 Mas esta mulher, esta samaritana, lhe disse: “Como?

Tu, um judeu, tu me pedes de beber a mim, uma

mulher samaritana?” Os judeus, com efeito, não

querem ter nada em comum com os samaritanos.

Num horário anormal para se ir buscar água, chega uma mulher da Samaria. E

Jesus, na sua sede, interpela aquela mulher, pedindo-lhe: do,j moi pei/n – Dá-me de beber. É o

pedido de um judeu. Para a mulher da Samaria, esse pedido é estranho. Pedir que essa mulher

lhe dê de beber parece ser um ato insano de Jesus. É esse pedido que dá inicio ao diálogo

revelador e transformador da vida daquela mulher e de seu povo, os samaritanos.

A mulher com quem Jesus dialoga não é nomeada, mas tem história e reações

próprias. Representa o povo da Samaria, cuja mentalidade religiosa nela se reflete12

. Nela está

presente uma expectativa que vai além da simples sede que é saciada quando se bebe água

que é tirada da fonte de Jacó.

Como afirma o v. 8, os discípulos vão à cidade para comprar o que comer13

. Jesus

encontra-se sozinho. Ele tem a iniciativa de provocar o diálogo. Este gesto de Jesus simboliza

a iniciativa de Deus, que sempre vem ao encontro da humanidade. De acordo com Bastianel,

todas estas circunstâncias não são a causa do encontro, mas o espaço humano que

torna possível o encontro nesta modalidade. Deus sempre encontra o homem ao

interno de sua história concreta. Em Jesus de Nazaré, o modo semelhante de estar

próximo de Deus assume o rosto da história concreta de um homem, entrelaçado

pelas circunstancias, à modalidade da relação humana. Jesus assume a história do

homem e nessa vive a sua missão, tornando presente o amor salvífico de Deus

através da situação de seu encontro concreto com a pessoa14

.

12

João mostra muito bem que o centro religioso dos samaritanos não era a Samaria pagã, mas o monte Garizim

perto de Siquém, e que, exatamente como os judeus, os samaritanos também esperavam a vinda do messias. Cf.

KOESTER, Introdução v. 1, p. 248. 13

Pode ser a razão de que Jesus pedisse de beber à mulher. Pois, se os discípulos estivessem presentes, eles

mesmos teriam tirado a água do poço ou teriam se entendido com a mulher. Jesus pediu a água pessoalmente,

porque os discípulos estavam na cidade. Pode também dar razão clara de Jesus ter falado a sós com aquela

mulher, e por isso os apóstolos ficaram admirados (v. 27). Jesus travou, pois, com a mulher samaritana um

colóquio a sós, porque a sede urgia e os discípulos estavam na cidade. Mesmo assim há bons autores que

afirmam que Jesus, na realidade, não teve sede nenhuma, senão que a simulou para introduzir a mulher no

diálogo. Cf. MALDONADO, Juan de. Comentários a los cuatro Evangelios: Evangelio de San Juan. Madrid:

Editorial Católica, 1954. v. 112, p. 241 (BAC). 14

BASTIANEL, Sergio. La samaritana: Giovanni 4,1-42. In: _____ Ho visto il Signore: Figure di preghiera

nella Bibbia. Casale Monferrato: Edizione Piemme, 1999. p. 74.

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Jesus sente o que é próprio de todo ser humano: a sede. E pede de beber. Jesus

sedento se solidariza com a necessidade de todo ser humano. Dar água era sinal de acolhida,

solidariedade e hospitalidade (cf. Mt 10,42; Mc 9,41).

Mas, com sua pergunta, a samaritana revela toda a polêmica entre dois grupos que

esperavam pelo Messias que devia vir. “Como? Tu, um judeu, tu me pedes de beber a mim,

uma mulher samaritana?” Judeus e samaritanos se detestavam mutuamente. Ao que parece os

samaritanos normalmente negavam água aos judeus. Comer e beber com alguém que não

fosse da mesma religião era sinal de intimidade e não era permitido entre os judeus. Por

comer com os pecadores, Jesus foi rejeitado por escribas e fariseus. Porque amar e igualar-se

com os “malditos” foi para Jesus a maneira de ensinar a ser Senhor e Mestre. É o que se

percebe pelo comentário do evangelista: “Os judeus, com efeito, não querem ter nada em

comum com os samaritanos”. Isto é compreendido perfeitamente pelo contexto histórico15

.

Jesus não está preocupado com a relação conflitual entre judeus e samaritanos e, por isso, põe

a questão em discussão com sua interlocutora. Jesus quebra as barreiras que os separavam e

elimina a superioridade dos judeus em relação aos samaritanos ao pedir água16

. Apesar da

estranheza, a mulher, pelo simples tratamento (tu), situa o diálogo na relação entre pessoas:

“Tu a mim...?” Ao entrar em diálogo com aquele homem, que para ela era um estranho, a

samaritana permite que Jesus estabeleça um encadeamento com o que ela disse, conduzindo-a

a uma progressão no acolhimento da revelação. Aceitar Jesus, o Salvador, é libertar-se do que

impede, do que obstaculiza a realização como pessoa humana em sua dignidade e

transcendência.

2.3.2. O dom de Deus: Jo 4,10-15

A mulher samaritana insiste no desejo da água que lhe matará a sede do corpo.

Foi ali para retirá-la como, certamente, fazia todos os dias. O seu semblante expressa o

espanto de quem quer entender aquele pedido de Jesus. Para entender o que aquele judeu lhe

pede, a mulher samaritana deve se abrir para uma superação da oposição étnica. A resposta

que Jesus dá à mulher, induzindo-a a seguir perguntando, converte-se em sua palavra de

15

KOESTER, Introdução v. 1, p. 248: “A verdadeira causa da rejeição dos samaritanos por parte dos judeus está

no desenvolvimento separado da comunidade cultual samaritana. Essa divergência começou bem antes da

reorganização do judaísmo sob a liderança dos fariseus. Não é de se admirar que os samaritanos aparecessem tão

cismáticos e „impuros‟ aos olhos dos que tinham uma visão rabínica da observância da lei. Por outro lado, isso

não impediu os primeiros missionários cristãos de levar sua mensagem para a Samaria (At 8,1ss)”. 16

Ao pôr-se no nível da necessidade humana, Jesus afirma a igualdade (cf. 2,21: seu corpo, 19,31: os corpos),

suprime a discriminação e dignifica a mulher. MATEOS; BARRETO, O Evangelho, p. 222.

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revelação para os leitores crentes. Jesus exorta-os a reconhecer o verdadeiro e próprio dom de

Deus e àquele que é o único que lhes pode oferecer; ou a reconhecer aquele que fala a palavra

de Deus e a pedir-lhe o seu dom. Jesus evoca o dom de Deus, que transcende toda

discriminação de pessoas e raças. A água viva, enquanto expressão figurada, refere-se ao dom

do doador.

10 avpekri,qh VIhsou/j kai. ei=pen auvth/|\ eiv h;|deij th.n dwrea.n tou/ qeou/ kai. ti,j evstin o` le,gwn soi\ do,j moi pei/n( su. a'n h;|thsaj auvto.n kai. e;dwken a;n soi u[dwr zw/nÅ

11 le,gei auvtw/| Îh` gunh,Ð\ ku,rie( ou;te a;ntlhma e;ceij kai. to. fre,ar evsti.n baqu,\ po,qen ou=n e;ceij to. u[dwr to. zw/nÈ

12 mh. su. mei,zwn ei= tou/ patro.j h`mw/n VIakw,b( o]j e;dwken h`mi/n to. fre,ar kai. auvto.j evx auvtou/ e;pien kai. oi ui`oi. auvtou/ kai. ta. qre,mmata auvtou/È

13 avpekri,qh VIhsou/j kai. ei=pen auvth/|\ pa/j o pi,nwn evk tou/ u[datoj tou,tou diyh,sei pa,lin\

14 o]j dV a'n pi,h| evk tou/ u[datoj ou- evgw. dw,sw auvtw/|( ouv mh. diyh,sei eivj to.n aivw/na( avlla. to. u[dwr o] dw,sw auvtw/| genh,setai evn auvtw/| phgh. u[datoj a`llome,nou eivj zwh.n aivw,nionÅ

15 le,gei pro.j auvto.n h` gunh,\ ku,rie( do,j moi tou/to to. u[dwr( i[na mh. diyw/ mhde. die,rcwmai evnqa,de avntlei/nÅ

10 Jesus lhe respondeu: “Se conhecesses o dom de

Deus, e quem é aquele te diz: „Dá-me de beber‟, tu é

que lhe pedirias e ele te daria água viva”.

11 A mulher disse: “Senhor, tu não tens sequer um

balde, e o poço é profundo; de onde tiras, então, essa

água viva?

12 Serias maior do que o nosso pai Jacó, que nos deu o

poço do qual ele mesmo bebeu, como também seus

filhos e os seus animais?”

13 Jesus lhe respondeu: “Todo aquele que bebe desta

água ainda terá sede;

14 mas aquele que beber da água que eu lhe darei nunca

mais terá sede; pelo contrário, a água que eu lhe darei

se tornará nele uma fonte que jorrará para a vida

eterna”.

15 A mulher lhe disse: “Senhor, dá-me essa água, para

que eu não tenha mais sede e não precise mais vir aqui

tirar água”.

O dom de Deus está ali diante daquela mulher samaritana. O dom de Deus é a

doação que Deus faz: Jesus Cristo. “Deus, com efeito, amou tanto o mundo que deu o seu

filho único” (Jo 3,16). Por isso Jesus respondeu àquela mulher: “Se conhecesses o dom de

Deus e quem é aquele que te diz: „Dá-me de beber‟, tu é que lhe pedirias e ele te daria água

viva”. Jesus não se preocupa com os desacordos entre judeus e samaritanos, causados pelas

ideologias, principalmente as religiosas. Pelo contrário, oferece o dom de Deus que as supera,

porque seu amor se dirige à humanidade inteira. Mesmo assim, aquela mulher não

compreende o que aquele homem quer lhe dizer. E o desencontro prossegue nas perguntas que

ela faz: “Senhor17

, tu não tens sequer um balde, e o poço é profundo; de onde tiras, então, essa

água viva? Serias maior que o nosso pai Jacó, que nos deu o poço do qual ele mesmo bebeu,

como também seus filhos e os seus animais?” (vv. 11-12). Enquanto Jesus escancara a

17

Senhor – Kýrios – é um título de Jesus, capaz de significados muito variados desde a simples cortesia até a fé

mais autêntica, conforme o caso. Nesta perícope aparece por três vezes, sempre nos lábios da samaritana; e o seu

conteúdo se torna cada vez mais profundo à medida que cresce a compreensão da mulher (v. 15.19). Cf.

NICCACI, Alviero; BATTAGLIA, Oscar. Comentário ao Evangelho de João. 3.ed. Petrópolis: Vozes, 2000. p.

79.

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revelação de sua missão messiânica oferecendo a graça, o dom de Deus que suplanta todo

preconceito e toda discriminação, para a samaritana, o dom de Deus é apenas a natureza

fazendo brotar aquela água tão boa18

. Jesus referia-se às coisas espirituais e a mulher ficara

presa aos aspectos materiais da água do poço de Jacó. Para Jesus, é a verdade e a graça que

dará aos que nele crerem (cf. Jo 7,37ss).

A mulher já não o trata de “tu”, mas de “Senhor”, pois, mesmo impressionada

com aquele colóquio enigmático de Jesus, percebe em suas palavras que não era um homem

comum. Ela não conhece nem imagina quem é e o que é esse dom gratuito de Deus. Mas

progride no diálogo com o Senhor ao dizer: “Serias maior do que o nosso pai Jacó?”

estabelecendo um paralelo entre Jesus e o patriarca. Ao citar Jacó, o evangelista acentua o

papel sem igual de Jesus, situando-o justamente numa relação inalienável com a comunidade

de Israel. O poço ou fonte significa a lei que sintetizava as figuras dos patriarcas e de Moisés,

o legislador. A mulher conhece o que Jacó lhes deu, mas desconhece o que Deus lhes deu.

Para ela Jesus é um rival de Jacó, pois pretende igualar-se ou fazer-se superior ao patriarca19

.

A samaritana com sua fala revela estar imbuída de uma perspectiva totalmente humana e

materialista. Custa-lhe enxergar algo que está ali à sua frente, bem maior e para além de toda

materialidade.

Jesus pedagogicamente estabelece um momento para cada coisa. Segundo

Theissen20

, o Evangelho de João tem como característica uma hermenêutica de passos ou de

degraus. Com esta mulher, o aprendizado deveria ser lento, paulatinamente envolvente. É

assim que Jesus vai quebrando as barreiras que impedem a samaritana de conhecer o dom de

Deus que lhe é oferecido. Por isso, depois de se ter apresentado à samaritana como o dom

eterno que Deus concede à humanidade, Jesus despertará nela a sede de Deus, oferecendo-lhe

uma água diferente: “Todo aquele que bebe desta água ainda terá sede; mas aquele que beber

da água que eu lhe darei nunca mais terá sede; pelo contrário, a água que eu lhe darei se

tornará nele uma fonte que jorrará para a vida eterna” (vv. 13-14).

18

No momento, a mulher está ainda em um mal entendido. Através do vocábulo “água”, Jesus e a mulher entram

em contato, porém como cada um fala sempre em um plano de compreensão distinto, não chegam a se encontrar.

A menos que esta diferença de compreensão se apresente como a diferença entre o significado literal e

metafórico do termo “água”: A mulher permaneceria no plano do significado material da palavra “água”,

enquanto Jesus estaria se referindo ao significado figurativo, espiritual. Para Tilborg nesse momento isso não

parece ser exato; tanto a mulher como Jesus falam da água em um sentido figurado. Cf. TILBORG, Comentário,

p. 83. 19

A ironia da mulher poderia funcionar ainda de outra maneira: no Gênesis e no ciclo lendário posterior, Jacó é

aquele que “suplantou” seu irmão, como indica seu nome. A samaritana diria: “Queres tu suplantar Jacó?” Cf.

LEON-DUFOUR, Leitura, p. 272. 20

Cf. THEISSEN, O Novo Testamento, p. 118.

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Por isso precisamente a samaritana não terá sede eternamente. Porque a água que

Jesus lhe dará se tornará uma fonte que brota e salta até a vida eterna, até o céu.

Como poderá ter sede o que tem em seu interior fonte que brote com tanto ímpeto?

A metáfora está tomada das fontes que jorram a água a grande altura, devido a

grande abundância de água e pressão de seu jorro. Pois, da mesma maneira o que

possui o Espírito Santo dentro de si é como se tivesse uma fonte que salta até o céu,

isto é, até a vida eterna que nos espera. Sucede aqui com a água o mesmo que com

uma semente jogada em terra, que surge e cresce; de igual maneira aquela água em

nós se enche até a vida eterna21

.

Deus oferece a todos sua água (cf. Is 55,1), água que, se bebida uma vez, apaga

para sempre a sede, porque é diferente da outra. O Espírito se interiorizará no ser humano

como uma fonte de água viva que jorrará para a vida eterna22

. Jesus falava da sua fonte,

aquela que tinha por dentro, inesgotável fonte que jorra infinito amor como coração humano

algum jamais imaginou. E isso para que seja saciada a sede mais profunda do homem: o

desejo de participar da vida do próprio Deus: “A minha alma tem sede de Deus, do Deus

vivo” (Sl 42,2). Os profetas no AT tinham convidado o povo a beber nas fontes da salvação. E

João marcará a força da fé quando Jesus diz: “Aquele que crê em mim jamais terá sede”

(6,35) e “Se alguém tem sede, venha a mim e beba aquele que crê em mim” (7,37s).

Ao ouvir a promessa de Jesus, a samaritana passa do espanto para o desejo. Pede a

água, desconhecendo ainda sua essência: “Senhor, dá-me essa água, para que eu não tenha

sede e não precise mais vir aqui tirar água” (v. 15). Ela rompe as barreiras, falando àquele

judeu como uma pessoa íntima. Passa por cima de todas as dificuldades com os judeus. Jesus

despertou nela uma expectativa que a faz voltar-se para ele como sendo o único que a pode

entender23

. Sua reação, oposta à de Nicodemos, mostra a disposição para abandonar

definitivamente o poço da lei e da tradição que sua história representa. Rompendo com seu

passado, aquela mulher está disposta a nascer de novo. Ela vê o valor da vida e a deseja;

deixa-se iluminar pela luz que brilha em Jesus: “Nele estava a vida, e a vida era a luz dos

homens” (Jo 1,4). Antes era Jesus que tinha pedido água; agora é a samaritana que, diante de

todas as suas dificuldades, pede-lhe a água viva, mesmo que ainda sob a perspectiva material.

Era certo que a mulher desconhecia o dom e a graça de Deus. Aqui Jesus escancara a

revelação de sua missão messiânica. Até então ele não havia se revelado com tanta

21

MALDONADO, Comentários, p. 247. 22

MATEOS; BARRETO, O Evangelho, p. 224: “O Espírito é manancial interior, e não exterior como o de Jacó.

O homem deve receber a vida em sua raiz mesma (dentro), na profundidade do seu ser, não por acomodar-se às

normas externas. É dom permanente que faz nascer para a vida nova e a mantém (3,6), que abre o horizonte do

reino de Deus (3,5). Sua força é garantia de plenitude de vida (cf. 10,10: Vim para que tenham vida e a tenham

em abundância)”. 23

O desconhecido promete dar-lhe a “Água Viva”. A samaritana pede-lhe, suplica-lhe, implora-lhe a dádiva, e

assim procede impelida por um misto de curiosidade e de interesse. Curiosidade ante a perspectiva de uma coisa

nova da qual nunca ouvira falar. E de interesse para se ver livre do incômodo diário de ir à fonte e ter que tirar

água. Cf. DELAMARE, Alcibíades. A samaritana. Rio de Janeiro: Livraria Clássica Brasileira, 1955. p. 74.

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clareza. A água viva oferecida à samaritana é a graça, o dom de Deus, é aquela

amizade divina que suplanta todo o preconceito e toda a discriminação. O amor de

Deus, gratuitamente oferecido, é uma fonte fresca, pura e inesgotável de uma água

que mata a sede para sempre24

.

Assim, inauguram-se os tempos do Messias. A água da fonte de Jacó dá lugar à

água abundante da fonte que é o próprio Jesus Cristo. Implicitamente, Jesus revela no diálogo

com a samaritana, a destinação universal da salvação que veio trazer à humanidade.

Mas, continuam para aquela mulher muitas dúvidas. Quem é mesmo esse homem

judeu? Qual é o seu interesse?

2.4. A sede de Jesus: a fé da samaritana - Jo 4,16-24

Jesus está com sede, mas quem acaba pedindo água é a mulher, pois ele tem

água capaz de saciar para sempre a sede de todos. A água que Jesus dá é o Espírito, a força

que vem de dentro e jorra para a vida eterna. A mulher ainda não conhece o seu “Senhor”,

pois pensa em uma água que possa matar a sua sede para sempre e não necessite mais buscá-

la na fonte. A mulher desconhece aquele que está diante dela. Jesus está sedento de sua fé. Por

isso, com paciência, vai se revelando àquela que agora lhe pede dessa água.

Jesus mostra à mulher samaritana que o seu verdadeiro “Senhor” não é o que

está com ela. A verdade divina não é acessível à mulher enquanto a sua vontade estiver cativa

do erro. Jesus leva a samaritana a encurtar suas indecisões e a tomar consciência de seus

pecados. Diante das declarações da mulher, Jesus a coloca na presença de suas faltas. É nesse

contato com os seus erros que a samaritana tem a possibilidade de conhecer aquele que lhe

está falando. A mulher samaritana começa a ver melhor, porque Jesus vai lhe ajudando a tirar

o véu que a impede de conhecer o seu Senhor. Ao sondar a vida da mulher samaritana, Jesus a

coloca em condições de julgar suas disposições interiores.

16 le,gei auvth/|\ u[page fw,nhson to.n a;ndra sou kai. evlqe. evnqa,deÅ

17 avpekri,qh h` gunh. kai. ei=pen auvtw/|\ ouvk e;cw a;ndraÅ le,gei auvth/| o VIhsou/j\ kalw/j ei=paj o[ti a;ndra ouvk e;cw\

18 pe,nte ga.r a;ndraj e;scej kai. nu/n o]n e;ceij ouvk e;stin sou avnh,r\ tou/to avlhqe.j ei;rhkajÅ

19 le,gei auvtw/| h` gunh,\ ku,rie( qewrw/ o[ti profh,thj ei= su,Å

20 oi pate,rej h`mw/n evn tw/| o;rei tou,tw| proseku,nhsan\

16 Jesus lhe disse: “Vai chama teu marido e volta aqui”.

17 A mulher lhe respondeu: “Eu não tenho marido”.

Jesus lhe disse: “Tu dizes bem: „Não tenho marido‟;

18 tiveste cinco, e o que tens agora não é teu marido.

Nisso disseste a verdade”.

19 Disse-lhe a mulher: “Senhor, vejo que tu és um

profeta.

20 Os nossos pais adoraram sobre esta montanha, e vós

24

GALVÃO, Jesus e a samaritana, p. 54.

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50

kai. umei/j le,gete o[ti evn ~Ierosolu,moij evsti.n o to,poj o[pou proskunei/n dei/Å

21 le,gei auvth/| o VIhsou/j\ pi,steue, moi( gu,nai( o[ti e;rcetai w[ra o[te ou;te evn tw/| o;rei tou,tw| ou;te evn ~Ierosolu,moij proskunh,sete tw/| patri,Å

22 umei/j proskunei/te o] ouvk oi;date\ h`mei/j proskunou/men o] oi;damen( o[ti h` swthri,a evk tw/n VIoudai,wn evsti,nÅ

23 avlla. e;rcetai w[ra kai. nu/n evstin( o[te oi avlhqinoi. proskunhtai. proskunh,sousin tw/| patri. evn pneu,mati kai. avlhqei,a|\ kai. ga.r o path.r toiou,touj zhtei/ tou.j proskunou/ntaj auvto,nÅ

24 pneu/ma o qeo,j( kai. tou.j proskunou/ntaj auvto.n evn pneu,mati kai. avlhqei,a| dei/ proskunei/nÅ

afirmais que é em Jerusalém que se encontra o lugar

onde se deve adorar”.

21 Jesus lhe disse: “Acredita-me, ó mulher, vem a hora

em que nem sobre esta montanha, nem em Jerusalém

adorareis o Pai.

22 Vós adorais o que não conheceis; nós adoramos o

que conhecemos, pois a salvação vem dos judeus.

23 Mas vem a hora, e é agora, na qual os verdadeiros

adoradores adorarão o Pai em espírito e verdade; tais

são, com efeito, os adoradores que o Pai procura.

24 Deus é espírito, e por isso os que o adoram devem

adorar em espírito e verdade”.

Com o pedido da mulher samaritana, “Jesus lhe disse: „Vai, chama o teu marido e

volta aqui‟”. Jesus é incisivo. Ele toca na ferida daquela mulher, que lhe responde: “Eu não

tenho marido25

.” Jesus não pretende dar-lhe lição de moral e muito menos mostrar-lhe o poder

de advinhação para fazê-la entender que ele não era um homem qualquer. O profeta do reino

do norte, Oséias proclama: “Acontecerá naquele dia – oráculo do Senhor – que tu me

chamarás „meu marido‟ e já não me chamarás „meu baal, meu dono‟”. A resposta da

samaritana é uma auto-acusação diante de Jesus, de sua infidelidade ao Deus da Aliança

expressa em termos de adultério. A palavra “marido” (em hebreu baal, em grego avnh,r)

passará a designar YHWH. E, por isso, Jesus lhe disse: “Tu dizes bem: „Não tenho marido‟,

tiveste cinco, e o que tens agora não é teu marido. Nisso disseste a verdade”. O profeta Oséias

fala da prostituta (1,2) e da adúltera (3,1), que são símbolos do reino de Israel, que tinha

Samaria por capital. A prostituição e o adultério consistiam no abandono da fé,

comprometendo-se com os cultos pagãos26

. Daí a origem da idolatria dos samaritanos (cf. 2Rs

17,24-41). “Os cinco maridos corresponderiam aos cinco deuses introduzidos depois da

conquista por parte da Assíria em 721 aC”27

. Assim sendo, Jesus pode afirmar que aquele que

a mulher tem agora não é o seu verdadeiro marido. A samaritana percorre o itinerário que faz

emergir a história religiosa dos samaritanos. A sua relação com Deus não era exclusiva e, por

25

Aos judeus era permitido casar-se somente três vezes; se a mesma norma se aplicasse entre os samaritanos,

isso significaria que a mulher havia levado uma vida muito imoral. Segundo Brown em seu comentário, não há

motivos para supor que a conversa entre Jesus e a mulher acerca da vida desta tinha maior alcance do que

obviamente se compreendia das palavras. Cf. BROWN, Raymond Edward. El Evangelio segun Juan. Madrid:

Ediciones Cristiandad, 1979. v. 1, p. 373. 26

Há aqui uma paganização de Javé. Deus é transformado em um ídolo (cf. 1Rs 12,25-33). 27

LÉON-DUFOUR, Leitura, p. 277.

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isso, ela não tem o verdadeiro Deus28

. Jesus induz aquela mulher a tomar consciência de sua

infidelidade para fazê-la inebriar-se do Deus verdadeiro: “Ele me disse tudo o que eu fiz” (vv.

29.39)29

.

Mesmo assim alguns biblistas se dividem quanto à interpretação sobre os

“maridos”. A interpretação antiga trabalhava numa linha mais fundamentalista que

considerava esta mulher como pessoa de má vida, quase uma prostituta. Embora a lei de

Moisés permitisse à mulher casar-se até três vezes, esta havia extrapolado, pois tivera cinco

maridos e já estava no sexto.

Ao ser alertada de sua infidelidade a Deus, a samaritana vê em Jesus um

“profeta”: ku,rie( qewrw/ o[ti profh,thj ei= su, – Senhor, vejo que tu és um profeta (v. 19). E

por isso a mulher samaritana submete a Jesus uma questão religiosa que preocupa tanto a ela

quanto os seus compatriotas. Na descoberta de seus segredos mais íntimos, ela não tem como

escapar do “conhecer-se”, confirmando sua infidelidade ao reconhecer naquele judeu um

profeta.

Jesus é identificado como um profeta por causa do conhecimento especial que ele

manifestou possuir, mas também por expressar deste modo o desejo que a mulher

sente de transformar sua própria vida. Os samaritanos não aceitavam os livros

proféticos do AT; é provável, portanto, que a imagem de um profeta que a mulher

tem seja a de Dt 18,15-18, uma passagem que no Pentateuco samaritano, assim

como em alguns materiais de Qumrã, vê a continuação de Ex 20,21b. Quiçá se

esperava que este profeta semelhante a Moisés revelasse certas questões legais, e daí

a pergunta implícita no v. 20 ganha lógica30

.

Ao dizer “Senhor, vejo que tu és um profeta”, imediatamente a mulher confessou

o que Jesus lhe acabara de afirmar: que ela vivia em contínuo adultério. Somente um

verdadeiro profeta lhe revelaria sua condição de vida. Daquele que lhe dissera tudo de si

mesma, ela aguarda a resposta para a pergunta na qual se revela o que de mais profundo vai

no coração humano.

28

No plano em que se move a narração, o marido (recorde-se a palavra “baal”= marido/senhor) tem conotação

religiosa; representa a busca de seguranças opostas ao desígnio de Deus, toda aliança contrária à sua, a pretensão

enganosa de encontrar sedução fora dele. Samaria atraiçoara Deus, o esposo do povo, buscando outros apoios

(Os 2,7: “Sim, sua mãe prostitui-se, cobriu-se de vergonha aquela que os concebeu, quando dizia: Quero correr

atrás de meus amantes, daqueles que me dão o meu pão e a minha água, a minha lã e o meu linho, o meu óleo e a

minha bebida”; 9,1: “Não te alegres, Israel, não exultes como os povos! Porque tu te prostituíste longe de teu

Deus”). Cf. MATEOS; BARRETO, O Evangelho, p. 226. 29

“„Aquele que faz o mal‟, dizia Jesus, „detesta a luz, com medo de que a suas obras sejam reprovadas‟ (cf. João

III,20). Eis-nos tentados a protestar: nós não fugimos da Luz, não odiamos a verdade. Bossuet responde-nos:

„quando a verdade, não contente de nos mostrar o que ela é, vem manifestar-nos o que nós somos, então, como

se tivesse perdido toda a sua beleza ao descobrir-nos a nossa fealdade, começamos imediatamente a odiá-la, e

esse belo espelho desagrada-nos porque é demasiado fiel‟”. Cf. CHEVROT Georges. Jesus e a samaritana.

Lisboa: Áster, 1958. p. 87. 30

BROWN, El evangelio, p. 374.

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A mulher apresenta a Jesus a questão controvertida entre os samaritanos e os

judeus acerca do verdadeiro lugar da adoração de Deus (cf. 2R 17,28-41). Os samaritanos

adoravam Yahveh sobre o monte Garizim. Mas a samaritana informa que os judeus afirmam

que é em Jerusalém que se encontra o lugar onde se deve adorar.

É nesta situação que começava a grande revelação de Jesus: “Acredita-me, ó

mulher, vem a hora que nem sobre esta montanha, nem em Jerusalém adorareis o Pai” (v. 21).

Terminou a era dos templos. O culto a Deus não terá lugar privilegiado. O próprio Cristo é

esse lugar da comunicação com Deus (cf. Jo 1,51). Ele é o novo santuário (cf. Jo 2,19-22;

1,14; 6,10), do qual brota a água do Espírito (cf. Jo 7,37-39; 19,34). Jesus une os dois lugares,

Israel e Judá e, em tom de súplica, convoca a samaritana a acreditar em sua palavra: pi,steue,

moi( gu,nai(... Palavra que revela os verdadeiros adoradores do Pai. Deus é aqui apresentado

por Jesus como o Pai. Paternidade que faz desaparecer a de Jacó e a dos antepassados,

tornando possível a união de todos. A paternidade de Deus cancela os particularismos. Jesus

pede fé à samaritana. Ele deseja a fé da samaritana para comunicar-lhe o dom de Deus, aquele

mesmo que, como infinita torrente de amor, plenifica a alma e que, uma vez acolhido, revela-

se ao ser humano como vida em plenitude. A samaritana experimenta no novo e inesperado

pedido, no qual é chamada de “mulher”31

, uma importância que até então lhe era

desconhecida.

Jesus revela à mulher a verdadeira adoração: “Vós adorais o que não conheceis;

nós adoramos o que conhecemos, pois a salvação vem dos judeus” (v. 22)32

. Jesus denuncia

assim a idolatria dos samaritanos (vós), revelando o único Deus verdadeiro, a quem o templo

de Jerusalém (cf. Jo 2,13-16) é dedicado e de onde vem a salvação dos judeus (nós)33

. Jesus

faz a samaritana compreender o Pai. Não se pode amar o Pai se não se ama Jesus; não se pode

amar o Pai se o Espírito de Cristo não reza dentro do ser humano. A fé em Cristo é o único

caminho que leva ao Pai.

31

É com a palavra “mulher” que Jesus no Evangelho de João se dirige à sua própria mãe: “Que queres de mim,

mulher?” (Jo 2,4) e, depois, na sua hora, do alto da cruz: “Mulher, eis aí o teu filho” (Jo 19,26). 32

Jesus, antes de desenvolver esta idéia, mostra que os judeus têm a primazia da história da salvação. Os

samaritanos não possuem o verdadeiro conhecimento de Deus, pois seu culto surgiu muito mais da ambição e da

concorrência nacional e política. Os judeus são os legítimos adoradores de Yahveh; deles vêm a “salvação”, o

Messias. 33

De acordo com Léon-Dufour, nem todos os estudiosos compartilham desta maneira de ler, não obstante óbvia.

Para alguns, o “nós” corresponde àquele de Jo 3,11, que se refere somente a Jesus ou à comunidade cristã; neste

caso, o “vós” remeteria em geral aos interlocutores não-cristãos; aí, assim como aqui em Jo 4,21. Semelhante

interpretação, que se coloca imediatamente no nível pós-pascal, não leva em conta a situação da conversa de

Jesus com a samaritana e torna incompreensível a frase explicativa: “A salvação provém dos judeus”. E ainda,

outros estudiosos reconhecem realmente que o “nós” se refere aos judeus, mas hesitam em incluir o próprio

Jesus, pelo fato de que, em Jo, ele é com freqüência contraposto aos “judeus”. Mas o próprio texto diz que Jesus

é judeu! Cf. LÉON-DUFOUR, Leitura, p. 281-282.

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“Mas vem a hora, e é agora, na qual os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em

espírito e verdade; tais são, com efeito, os adoradores que o Pai procura. Deus é espírito, e por

isso os que o adoram devem adorar em espírito e verdade” (vv. 23-24). Jesus aprofunda o

diálogo com a samaritana, dizendo que, graças à sua presença, os adoradores que o Pai

procura o adorarão em espírito e verdade: “vem a hora, e é agora”. Os “adoradores”

verdadeiros não são mais só os judeus, que sabiam a quem adoravam, mas todos aqueles que

adorarem em espírito e verdade.

O espírito, conforme o vocabulário joanino, não é uma realidade imaterial

contraposta ao corpo, nem uma realidade interna que se opõe ao mundo externo.

Então a adoração em espírito não é o culto interior, espiritualista, individual,

contraposto ao culto externo e público. O Espírito é a realidade divina que subleva o

homem de sua importância. E a verdade é a revelação de Deus manifestada nas

palavras, na história e na pessoa de Jesus. Portanto a “adoração em espírito e

verdade” é o culto do homem novo, que acolheu a palavra e ficou renovado pelo

Espírito. “Assim, o tema avançado pela mulher no v. 20 não é descartado. A

resposta de Jesus trata ainda do lugar do culto, do verdadeiro templo. Mas agora

Jesus é nosso templo, substituindo a partir deste momento o santuário do Garizim e

o de Jerusalém”34

.

Deus é definido pelo evangelista como Espírito, dinamismo de amor que faz

compreender os efeitos da água viva que Jesus dá a beber e que sacia a sede do ser humano.

Esse amor produz no ser humano a capacidade de amar generosamente como ser amado (cf.

Jo 4,14), transformando-o em espírito (cf. Jo 3,6) semelhante ao próprio Deus (cf. Jo 1,16). O

Espírito é o amor de Deus dirigido à humanidade inteira. É um dom; e é também uma tarefa.

A expressão evn pneu,mati – “em espírito” – refere-se à presença do Espírito que regenerou

aquele que crê. “Jesus, em quem habita o Espírito e que batiza no Espírito (1,33), anuncia

adoradores nascidos do Espírito (3,5-8). João se aproxima aqui do que diz Paulo: „É o Espírito

que nos faz exclamar: Abba, Pai!‟”35

. Quanto à expressão avlhqei,a| – “verdade”, refere-se à

revelação trazida por Jesus: a adoração do Pai pressupõe a acolhida de sua palavra. O novo

culto, portanto, eleva o ser humano, fazendo-o cada vez mais semelhante ao Pai. Esse culto só

será autêntico se produzido pelo Espírito, que diz a verdade do Cristo. Esses são os

verdadeiros adoradores que o Pai procura.

2.5. A revelação de Jesus à samaritana

Jesus Cristo fez a mulher samaritana conhecer os desejos do Pai: a hora está

próxima. Rompendo com as diferenças de nacionalidades e de raças, todos adorarão juntos o

Pai do céu. Nas palavras de Jesus, a samaritana reconhece o eco da longa esperança dos filhos

34

MAGGIONI, O Evangelho de João, p. 316-317. 35

LEON-DUFOUR, Leitura, p. 284.

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de Abraão. A samaritana crê no Messias que está para chegar. Ela sabe que o Messias já está

próximo. E quando ele vier, explicará todas as coisas.

2.5.1. Jesus é o messias - Jo 4,25-26

A espera do Messias, que chamam Cristo, terminou para esta mulher samaritana.

A samaritana, ao dizer que sabe que o Messias deve vir, escuta do próprio Jesus: “Sou eu, eu

que estou falando a ti”. Esta revelação marca o ponto culminante da conversa de Jesus com a

samaritana. Jesus é o messias. E, diante dessa escuta, a sua reação é de uma intensa

movimentação. Larga tudo para se tornar uma mensageira do Evangelho.

25 le,gei auvtw/| h` gunh,\ oi=da o[ti Messi,aj e;rcetai o` lego,menoj cristo,j\ o[tan e;lqh| evkei/noj( avnaggelei/ h`mi/n a[pantaÅ

26 le,gei auvth/| o VIhsou/j\ evgw, eivmi( o lalw/n soiÅ

25 Disse-lhe a mulher: “Eu sei que um Messias deve vir

– aquele que chamam Cristo. Quando vier, ele nos

anunciará todas as coisas”.

26 Disse-lhe Jesus: “Sou eu, eu que estou falando a ti”.

“A mulher lhe disse: „eu sei que um Messias deve vir – aquele que chamam

Cristo. Quando vier, ele nos anunciará todas as coisas‟” (v. 25). A mulher reconhece nas

palavras de Jesus o eco da longa esperança dos filhos de Abraão, mas tem receios de dizer-lhe

objetivamente e, por isso, introduz o assunto com a esperança do seu povo: “Eu sei que um

Messias deve vir – aquele que chamam Cristo”. Ao mesmo tempo, abre seu coração para

aceitar o Messias36

, quando ele chegar. É a entrega – disposição para a comunhão com o

verdadeiro Deus. A samaritana compreende que as palavras do profeta anunciam a era

messiânica: “Ele nos anunciará todas as coisas”. Ao ouvir a revelação sobre sua vida

conjugal, a samaritana compreende que na sua frente está um profeta e, escutando o anúncio

da adoração do Pai, pensa imediatamente naquele que deve anunciar todas as coisas.

Reconheceu em Jesus um profeta, um homem de Deus, que lhe falava coisas extraordinárias

sobre questões já adormecidas em seu coração. Mas ela não conhecia ainda a identidade

profunda daquele homem com quem falava tão seriamente. O mistério que ali se fazia em

Jesus ainda não lhe fora revelado. É aí que Jesus lhe disse: “evgw, eivmi( o lalw/n soi – sou eu,

eu que estou falando a ti” (v. 26). Esta revelação do próprio Jesus marca o ponto culminante

do diálogo com a samaritana. Evidencia a conversão daquela mulher que vai se tornar uma

mensageira do Evangelho. É a primeira vez que no relato Jesus fala assim, de si mesmo, na

36

Os samaritanos não esperavam um Messias no mesmo sentido que os judeus, como rei ungido da casa de

David. Esperavam um Taheb (Ta’eb = verbo hebreu sub = aquele que retorna), seguramente o Profeta

semelhante a Moisés. Esta crença era o quinto artigo do credo samaritano. Demonstra que a conversa recolhida

em Jo 4,19-25 concorda com o conceito samaritano de Taheb como mestre da Lei, ainda que nos lábios da

mulher o termo judeu “Messias” seja mais conhecido. Cf. BROWN, El evangelio, p. 375.

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primeira pessoa do singular37

. A mulher samaritana induziu Jesus a uma profunda

autocompreensão. De modo figurado, Jesus tinha expressado o seu messianismo muitas vezes,

porém aparece agora também na sua própria boca com a revelação “Sou eu”. Por que Jesus

não se declarou com tanta clareza aos judeus, se ele veio principalmente para eles?

Certamente a resposta a esta questão está na dificuldade que os judeus tinham em conceber

Jesus como o “Enviado de Deus” ou o “Filho de Deus”. Na proclamação messiânica, Jesus

declara ser aquele que realiza a expectativa dos samaritanos. Ele é o profeta, aquele que revela

e restaura o verdadeiro culto. E, para os seus contemporâneos, Jesus não foi e não podia ser o

conquistador terreno que eles esperavam. Por isso eles o rejeitaram.

A conversa com a samaritana atingiu seu ápice na revelação de Jesus. A

samaritana encontrou o homem que lhe devolve sua própria humanidade. Ela começa a viver

a plenitude do dia-sem-fim, pois descobrira que era ela mesma templo mais precioso que

todos os templos que conhecia. É nesse templo que Deus mora. O seu coração era o lugar da

verdadeira adoração do Deus da vida. O lugar sagrado muda. Este é o espaço dela mesma

como mulher, como pessoa humana feminina que ela é. É ela com seu corpo feminino e ali

onde ela se encontra. Ela é o verdadeiro templo. Os templos e as montanhas são símbolos da

mais profunda dimensão do ser humano, de transcendência, de interioridade aberta para o

mistério maior, escondido no mais profundo da alma humana; no sacrário da própria

consciência, onde é preciso entrar, se se deseja adorar de verdade.

Portanto, enquanto a mulher nomeou o Messias e confessou que já sabia que ele

deve vir, declarando que estava preparada para acreditar em seus ensinamentos, aquele que

chamam Cristo tomou a palavra para dizer-lhe que ele era o Messias anunciado. Assim, em

Jesus, a samaritana acabara de descobrir a presença do mistério maior, o Pai. Na força do

olhar de Jesus, descobrira, ela mesma, que o templo santo de Deus era Jesus. Jesus torna-se

para ela o templo, no qual existia uma fonte (cf. Ez 47) a jorrar a água da vida: “Se

conhecesses o dom de Deus, e quem é aquele que te diz: „Dá-me de beber‟, tu é que lhe

pedirias e ele te daria a água viva” (v. 10). Deus, o Pai, era a fonte que estava em Jesus. O

dom era o Espírito Santo, Espírito de amor e de vida (cf. Jo 7,37-39) que, uma vez oferecido,

como a água brotava misteriosamente de dentro, como se ela mesma, a samaritana, fosse uma

37

Léon-Dufour faz uma distinção desse evgw, eivmi para os outros que aparecem no evangelho. Nesse evgw, eivmi, os

comentadores se comprazem em ler um anúncio velado da divindade de Jesus, tal como em outros evgw, eivmi do

evangelho. Segundo Léon-Dufour, proceder assim seria precipitar a revelação que ainda deve progredir para

culminar no título que os samaritanos darão a Jesus (cf. Jo 4,42). Aqui Jesus responde a uma expectativa

expressa pela mulher, e convém não traduzir “Eu sou” e sim “Sou eu”, como quando Jesus declara ser o pão, a

vinha, o pastor. Cf. LÉON-DUFOUR, Leitura, p. 287.

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fonte de águas tão puras. A samaritana descobre que aquele que estava diante de seus olhos

morava desde sempre na sua própria alma. Sua reação é o gesto concreto de quem

atentamente ouviu o que o Senhor lhe disse e acreditou em suas palavras, largando tudo (o

cântaro) para ir anunciar ao seu povo o que ele lhe disse.

2.5.2. A não-compreensão dos discípulos – Jo 4,27

No mesmo momento em que Jesus se revelou à samaritana como o Messias que

ela aguardava, chegam os discípulos que não compreendem o porquê da conversa de Jesus

com aquela mulher samaritana. “Ficaram estupefatos ao verem Jesus falar com uma mulher”

(v. 27). A conversa de Jesus com a samaritana termina aqui. Mas a samaritana continua a

conversa no anúncio de sua grande descoberta aos seus compatriotas. A saída da mulher para

a cidade é ocasião de salvação, como o é a passagem de Jesus através da Samaria.

27 Kai. evpi. tou,tw| h=lqan oi maqhtai. auvtou/ kai. evqau,mazon o[ti meta. gunaiko.j evla,lei\ ouvdei.j me,ntoi ei=pen\ ti, zhtei/j h; ti, lalei/j metV auvth/jÈ

27 Nisso, os discípulos chegaram. E eles ficaram

estupefatos ao verem Jesus falar com uma mulher; mas

ninguém lhe disse: “Que procuras?” ou “Por que lhe

falas?”

O evangelista, antes da saída da samaritana para a cidade, introduz o retorno dos

discípulos na seqüência do relato. Os discípulos chegam da cidade e vêem Jesus a conversar

com a samaritana. João enfatiza a importância deste encontro38

. Os discípulos não esperavam

encontrar Jesus em conversa com uma mulher. Para eles é sem dúvida uma situação

desconcertante. O evangelista mostra que Jesus se encontra com pessoas individualmente,

tanto homens quanto mulheres. Para ele, não há diferenças. O verbo evqau,mazon – admirar-se –

indica algo mais do que um mero espanto ou surpresa de momento. Segundo a disciplina dos

rabinos, não se podia falar com mulheres em público39

. No tempo de Jesus Cristo, os rabinos

se recusavam sistematicamente a ensinar religião às mulheres. Elas eram respeitadas, mas o

lugar que normalmente competia à mulher era o espaço doméstico. Elas não tomavam parte

nos negócios públicos e sua posição religiosa era inferior em relação ao homem40

.

38

Cf. BULTMANN, Rudolf. The gospel of Jesus: A Commentary. Oxford: BasilBlackwell, 1971. p. 192-193. 39

Cf. BROWN, El evangelio, p. 375. 40

SAUNIER; ROLLAND, A Palestina no tempo de Jesus, p. 65: “Ela nada tem a fazer fora de casa e, se for

obrigada a sair, deve guardar o anonimato mais completo, por isso se usa o véu. Se ela conversa com alguém,

por exemplo para pedir uma informação, deve-se responder-lhe o mais brevemente possível; fora disso, não se

lhe deve dirigir a palavra, nem sequer para cumprimentá-la. Diante de um tribunal, ela jamais é admitida como

testemunha e menos ainda como juíza. Na sinagoga, ela tem seu lugar; no entanto, pode haver lá uma infinidade

de mulheres, se não houver dez homens adultos, é impossível celebrar o ofício”.

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Os discípulos, com seu espanto, evidenciam a mentalidade judaica. Era natural

que se espantassem com tal cena. A reação não fica só no espanto, pois além de não

compreenderem a fala de Jesus com aquela mulher, uma samaritana, ninguém ousa dizer-lhe:

“Que procuras?” ou “Por que lhe falas?”. João intui as perguntas que os discípulos poderiam

ter feito e não fazem. Eles preferem se calar, mesmo não compreendendo a atitude do Mestre,

a terem que articular uma palavra que possa parecer reprovação. Estavam eles como que

fechados em seus costumes que os impedia de ver que Jesus podia manifestar o seu amor

àquela samaritana e a todo o seu povo (cf. Jo 4,40), como tinha feito com eles em Caná (cf. Jo

2,11). Os discípulos tinham um olhar completamente diferente do olhar de Jesus. Jesus olhava

com o olhar do Pai, que criara a humanidade, homem e mulher, à sua imagem e semelhança.

Os discípulos deveriam aprender a trocar os critérios distorcidos da cultura, da religião, que

faziam da mulher uma imagem diminuída, pelos valores de Jesus: mulher objeto, escrava,

confinada, que em Ex 20,17 integra, junto com escravos e animais, a lista das posses que não

podiam ser cobiçadas por outros. Jesus definitivamente não aceita essa desigualdade. Mas

acolhe todos aqueles que são desprezados pelos notáveis de Israel: os samaritanos, os

pecadores, os funcionários, os soldados de Roma, os pobres, as crianças, as mulheres. Todos

aqueles que vinham a ele e nele acreditavam encontravam nele seu defensor.

Portanto, o espanto dos discípulos elevou a força do diálogo de Jesus com a

mulher samaritana, atingindo seu ápice na revelação do próprio Jesus como o Messias

esperado. O diálogo com Jesus fez surgir uma grande discípula, que, apesar de não confessar

literalmente sua fé, confessa-a largando o que estava fazendo para sair às pressas para

anunciar a seu povo tudo o que Jesus lhe disse.

2.6. A samaritana anuncia o Messias a seu povo

A samaritana volta à cidade sem se preocupar com a água que fora buscar no poço

de Jacó. Larga o seu cântaro para trilhar, a partir desta hora, um novo caminho: caminho que

não faz sozinha, porque, dentro do mais profundo de si mesma, descobrira que habita Deus.

Este Deus que se manifestou à mulher samaritana é o Pai de Jesus Cristo, o Messias que devia

vir e anunciar ao povo todas as coisas.

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2.6.1. A mulher torna-se discípula - Jo 4,28-30

O diálogo de Jesus com a samaritana terminou, mas a missão dela estava apenas

começando. Com seu cântaro foi buscar a água que lhe saciava a sede; agora volta para a

cidade sem o cântaro e aquela água. Para a “água viva” que interessava àquela mulher, aquele

cântaro se tornou inútil. O cântaro não servia para transportar aquele tipo de água. Traz em si

a água da vida, que se tornou nela, pela fé no Cristo, uma fonte que jorra para a vida eterna. É

essa água que faz da mulher samaritana a discípula de Jesus. Como discípula, vai ao seus

compatriotas para derramar a “água da vida” sobre eles. Da mesma forma com que Jesus

conduziu o diálogo, a samaritana com a sua palavra atrai os samaritanos para o Cristo.

28 avfh/ken ou=n th.n udri,an auvth/j h` gunh. kai. avph/lqen eivj th.n po,lin kai. le,gei toi/j avnqrw,poij\

29 deu/te i;dete a;nqrwpon o]j ei=pe,n moi pa,nta o[sa evpoi,hsa( mh,ti ou-to,j evstin o cristo,jÈ

30 evxh/lqon evk th/j po,lewj kai. H;rconto pro.j auvto,nÅ

28 A mulher, então, largando o cântaro foi à cidade e

disse ao povo:

29 “Vinde ver um homem que me disse tudo o que eu

fiz. Não seria ele o Cristo?”

30 Eles saíram da cidade e foram ter com ele.

Jesus foi aos poucos se revelando àquela mulher samaritana. Ela, por sua vez, foi

recebendo-o em seu coração à medida que ele lhe falava. O que nela se passa altera tudo o que

pode ser previsto. O cântaro, com o qual buscava a vida e que era a imagem da lei41

, é

abandonado pela mulher. Ela rompe com a lei. Dá sua resposta de fé ao Messias que se lhe

deu a conhecer. Ao contrário de Nicodemos (cf. Jo 3,4), que não via a possibilidade de novo

princípio, a mulher viu. Deixou o cântaro, como Tiago e João deixaram as redes para seguir

Jesus (cf. Mt 4,18-22; Mc 1,16-20; Jo 21,1-11).

Numa pintura, o utensílio que ali fica funcionaria visualmente como uma presença

da mulher ausente, enquanto Jesus anuncia aos discípulos que a seara está madura.

Num texto literário, é conveniente manter para a bilha a função que lhe cabe no

contexto da narrativa: ela servia para a mulher colher água do poço de Jacó. Ora, ao

pedir a Jesus que lhe desse água viva de que lhe tinha falado, a mulher havia

precisado que, graças àquela água, ela não teria mais sede nem, portanto, precisaria

voltar ali para buscá-la (cf. Jo 4,15). Depois de ter Jesus declarado que era o

Messias, a samaritana nada responde, encerrando-se a conversa com esta

41

A palavra que designa cântaro é a mesma usada no episódio de Caná para designar as talhas (cf. Jo 2,6). Como

estas talhas representavam a lei, também o cântaro é imagem da lei que a mulher samaritana toma do poço para

buscar a vida. A mulher estava provida da vasilha, onde bebia água que não lhe matava a sede. Abandonar o

cântaro, que era sua conexão com o poço, significa romper com a lei, que não lhe matava a sede. Cf. MATEOS;

BARRETO, O Evangelho, p. 233.

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proclamação solene. Abandonada, a bilha diz, sem palavras, que a samaritana conta,

daí por diante, unicamente com a promessa de Jesus42

.

Jesus não a mandou ir avisar ao povo. A atitude da mulher samaritana é a atitude

de adesão àquele que mudou seu caminho. Por isso, imediatamente vai anunciar a seu povo a

verdade que conheceu e o entusiasmo que a transporta. Narra o acontecimento que lhe

desvendara o próprio mistério: “Vinde ver um homem que me disse tudo o que eu fiz. Não

seria ele o Cristo?” (v. 29).

Primeiro, ela chama seu povo para ir e ver aquele homem. Pede para que eles

mesmos tirem as suas conclusões. O convite da mulher a seu povo é o mesmo de Jesus a dois

discípulos de João Batista que queriam saber onde ele morava: “Mestre, onde moras? Ele lhes

disse: „Vinde e vereis‟” (Jo 1,38-39). É o convite para se aproximar daquele que rompe com

todas as barreiras e desigualdades. A samaritana é uma das primeiras mulheres a proclamar o

messias que chegou àquela região. Tornara-se uma testemunha do Cristo. Não teme o

desprezo de seu povo e nem os esforços e sacrifícios que a esperam. Esvazia-se de si mesma

quando convida seu povo com o “vinde ver...”, na certeza de que Deus está com ela.

Segundo, seu anúncio apóia-se em Jesus, “um homem que me disse tudo o que eu

fiz”. Ela não diz que aquele homem era judeu, mas apenas “um homem” que instigará seu

povo a ir ao seu encontro. O Salvador saberá bem acabar nela a transformação que começou.

A atitude da samaritana é comparável à atitude dos discípulos quando encontraram Jesus.

André foi buscar seu irmão Simão (cf. Jo 1,41); Felipe, a Natanael (cf. Jo 1,45). Ela vai à

povoação e anuncia. “Ele me disse tudo o que eu fiz” é o anuncio que evidencia a conduta da

samaritana e de todo seu povo. Essas palavras são como uma fonte de água viva que brota do

coração da samaritana, que está sob a influência de um sentimento novo: o amor de Deus

transbordante de um coração que foi completamente convertido. Ela tomou consciência de

seus atos a partir daquilo que Jesus lhe disse sobre a sua conduta. E, por meio dela, Deus fará

com que o povo da Samaria tome consciência de sua má conduta (cf. Os 7,1s). Como uma

autêntica evangelizadora ela conduziu seu povo a Jesus43

.

Terceiro, para elevar a força da palavra que anuncia e da fé que passa a professar,

a samaritana anuncia de forma interrogativa: “Não seria ele o Cristo?”, com o intuito de fazer

com que seu povo tire suas próprias conclusões. A samaritana quer que cada um chegue à sua

própria conclusão. E o povo da cidade viu nela – no seu modo de anunciar, no brilho de seus

olhos outrora turvos e apagados, na alegria incontida que lhe iluminava o rosto antes sombrio

42

LÉON-DUFOUR, Leitura, p. 288. 43

Cf. GALVÃO, Jesus e a samaritana, p. 61.

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– a verdade que haveriam de encontrar em Jesus. A samaritana não volta para sua casa ou se

retira para um deserto. Ela vai ao encontro de seus concidadãos, que são testemunhas de sua

conduta, e toma parte na vida deles para levá-los a Cristo. Como discípula, só poderá levá-los

pela cordialidade, pelo espírito de sacrifício, pela pureza íntegra de seu coração, pela

serenidade, pela alegria. Sob a influência do amor de Cristo, é impelida a servir e a salvar os

seus semelhantes. A prontidão da samaritana em evangelizar torna-se a prontidão dos

samaritanos em acorrer a Jesus: “Eles saíram da cidade e foram ter com ele” (v. 30).

2.6.2. O verdadeiro alimento: fazer a vontade do Pai - Jo 4,31-38

Os discípulos continuam por fora de tudo. Não conseguem compreender o que

está acontecendo. A preocupação deles é se alimentarem para continuar o caminho para a

Galiléia. E Jesus pensa em outro alimento: aquele alimento que consiste em fazer a vontade

de quem o enviou. Diante do convite dos discípulos para que Jesus coma, o evangelista

estabelece o contraste entre dois alimentos. Para Bultmann, a razão destes versículos é

explicar a missão dos discípulos por meio da analogia da missão de Jesus44

. E Jesus lhes

ensinará onde se encontra a vida verdadeira.

31 VEn tw/| metaxu. hvrw,twn auvto.n oi maqhtai. le,gontej\ r`abbi,( fa,geÅ

32 o de. ei=pen auvtoi/j\ evgw. brw/sin e;cw fagei/n h]n umei/j ouvk oi;dateÅ

33 e;legon ou=n oi maqhtai. pro.j avllh,louj\ mh, tij h;negken auvtw/| fagei/nÈ

34 le,gei auvtoi/j o VIhsou/j\ evmo.n brw/ma, evstin i[na poih,sw to. qe,lhma tou/ pe,myanto,j me kai. teleiw,sw auvtou/ to. e;rgonÅ

35 ouvc umei/j le,gete o[ti e;ti tetra,mhno,j evstin kai. o` qerismo.j e;rcetaiÈ ivdou. le,gw umi/n( evpa,rate tou.j ovfqalmou.j umw/n kai. qea,sasqe ta.j cw,raj o[ti leukai, eivsin pro.j qerismo,nÅ h;dh

36 o qeri,zwn misqo.n lamba,nei kai. suna,gei karpo.n eivj zwh.n aivw,nion( i[na o` spei,rwn omou/ cai,rh| kai. o` qeri,zwnÅ

37 evn ga.r tou,tw| o` lo,goj evsti.n avlhqino.j o[ti a;lloj evsti.n o spei,rwn kai. a;lloj o qeri,zwnÅ

38 evgw. avpe,steila uma/j qeri,zein o] ouvc umei/j kekopia,kate\ a;lloi kekopia,kasin kai. U`mei/j eivj to.n ko,pon auvtw/n eivselhlu,qateÅ

31 Enquanto isso, os discípulos insistiam com ele:

“Rabi, come!”

32 Mas ele lhes disse: “Eu tenho para comer um

alimento que vós não conheceis”.

33 Nisso os discípulos disseram entre si: “Alguém lhe

teria dado de comer?”

34 Jesus lhes disse: “O meu alimento é fazer a vontade

daquele que me enviou e realizar a sua obra.

35 Vós mesmos não dizeis: „Daqui a quatro meses, virá

a messe‟? Ora, eu vos digo: levantai os olhos e olhai; já

os campos estão brancos para a messe!

36 Já o ceifeiro recebe o seu salário e ajunta fruto para a

vida eterna, de tal modo que aquele que semeia e

aquele que colhe se alegram juntos.

37 Pois nisto é verdadeiro o provérbio: „Um é o que

semeia; outro, o que colhe‟.

38 Eu vos enviei para colher o que não vos custou

nenhum trabalho; outros trabalharam e vós entrastes no

que lhes custou tanto trabalho”.

44

Cf. BULTMANN, The Gospel of John, p. 194-195.

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Com a mente tomada pelas interrogações não resolvidas, os discípulos insistiam

para que Jesus comesse: “Rabi, come!”. Mostram ter uma hierarquia de valores em desordem.

Sua falta de senso comum os condiciona para não discernir o momento. Prioriza-se o comprar

e satisfazer apenas as necessidades materiais (cf. Jo 4,8). E aí vem a surpresa dos discípulos

que ficam ainda com mais dúvidas, quando Jesus imediatamente lhes disse: “Eu tenho para

comer um alimento que vós não conheceis” (v. 32). Não seria aqui um eco daquelas palavras:

“... que nem só de pão vive o homem...” (cf. Dt 8,3)? No primeiro momento, é Jesus quem

pedia de beber à samaritana e, agora, são os discípulos que lhe pedem que coma. O Evangelho

de João serve-se de nomes de coisas da terra para significar as realidades espirituais. Jesus

parte do sentido do verbo “comer” para mostrar aos discípulos o que ele realmente buscava.

A transição da conversa de Jesus com a mulher para a sua conversa com os

discípulos é feita (com perfeita verossimilhança dramática) através da idéia do

alimento e da satisfação da fome (4,31) – a contrapartida da água e da satisfação da

sede. Jesus, que dá a água viva, não tem necessidade de que alguém lhe dê alimento.

No entanto ele é dependente do Pai que o enviou. É fazendo a vontade de Deus que

ele vive45

.

O desconcerto dos discípulos é total: “Alguém lhe teria dado de comer?” (v. 33).

Sentem-se perplexos diante de tal afirmação de Jesus. Não saem dos esquemas estabelecidos.

Não há espaço para a novidade, o dinamismo, a vida. O universo interior de Jesus e o dos

discípulos são tão diversos que são incapazes de compreender o que acontece com seu mestre.

Jesus ensina-lhes que mais poderosa que a fome de pão é a fome “da palavra que

sai da boca de Deus” (cf. Dt 8,3; Mt 4,4)46

, que só o Pai pode saciar e mais ninguém. É deste

alimento que Jesus vive: “O meu alimento é fazer a vontade daquele que me enviou e realizar

a sua obra” (v. 34) (cf. Jo 6,38-40). Aí estão a vida e a alegria de Jesus: a comunhão com o

Pai. Aí reside seu mistério, sua identidade, a razão de sua presença no mundo. Certamente é

preciso comer para viver, mas para que viver se se perde de vista o motivo pelo qual se vive?

Para o discípulo, o alimento consiste na aceitação de Jesus e sua adesão a ele como doador de

vida. Mas não basta simplesmente aceitar fazer a vontade do Pai, é necessário realizar sua

obra, seu desígnio, trabalhando em prol da humanidade: desígnio traído pelos que,

absolutizando a lei, o rejeitaram na Judéia (cf. Jo 4,1-3). Assim como Jesus explicara à

samaritana de que água se tratava, explicou também para os discípulos de que alimento ele

45

DODD, A interpretação, p. 412. 46

A idéia de um alimento que corresponde à vontade (palavra) de Deus já existe no AT. No Deuteronômio, esta

idéia aparece como releitura do Êxodo: “Ele te afligiu, fazendo-te passar fome, e depois te alimentou com o

maná, desconhecido por ti e por seus pais, para te mostrar que nem só de pão vive o homem mas de tudo o que

procede da boca de Deus” (Dt 8,3; cf. Tb, Sb 16,26 = Palavra de Deus). Nos Sinóticos, Jesus relê esta passagem

da Escritura no contexto de suas tentações messiânicas (cf. Mt 4,4-11). Cf. WEILER, Jesus e a samaritana, p. 99.

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falava. Tudo em Jesus lhe vem do Pai. O olhar de Jesus sobre as pessoas, sobre as coisas,

sobre o mundo é o olhar do Pai. Toda a vida de Jesus é vista sob o signo da vontade do Pai

como nutrimento e razão última de sua vida. A obra que Jesus realizará é para a glória do Pai

e se dará com sua morte de cruz, pela qual, uma vez exaltado, atrairá todos a si (cf. Jo 8,28;

12,32) e lhes dará o Espírito (cf. 7,37-39).

Com uma exposição metafórica, Jesus serve-se da estação do ano para comparar

duas colheitas: a do campo, ainda longínqua, e a da fé da samaritana, já a ponto de ser

recolhida: “Vós mesmos não dizeis: „daqui a quatro meses, virá a messe‟? Ora, eu vos digo:

levantai os olhos e olhai; já os campos estão branco para a messe!” (v. 35). Chegou o tempo!

É agora! O tempo final está aí! Os profetas pintaram esta imagem, proclamando o tempo da

conversão. Com a vinda dos samaritanos, primícias da colheita, a obra do Pai chega ao seu

objetivo desde aquele momento. Os discípulos são integrados à alegria de Jesus: “Já o ceifeiro

recebe o seu salário e ajunta o fruto para a vida eterna, de tal modo que aquele que semeia e

aquele que colhe se alegram juntos” (v. 36). O esforço de uns e de outros é igualmente

necessário. Trabalham para uma mesma obra. Por isso o fruto torna-se a alegria tanto daquele

que semeia quanto daquele que colhe (cf. 1Cor 3,6-9)47

. Para João, o tempo de Jesus, o

enviado do Pai, é único na história da salvação, porque somente nele se recolhem as

semeaduras e a colheita. Como aquele que ceifa, Jesus contempla em suas primícias a colheita

universal.

Os discípulos enviados por Jesus reunirão todos os crentes deixando com que a

palavra de Jesus produza seus efeitos no mundo. “Pois nisto é verdadeiro o provérbio: „Um é

o que semeia; outro, o que colhe‟. Eu vos enviei para colher o que não vos custou nenhum

trabalho; outros trabalharam e vós entrastes no que lhes custou tanto trabalho” (vv. 37-38).

Parece que Jesus os leva a tomar consciência da apropriação que fazem dos trabalhos dos

outros. Aqui, sem dúvida, há uma referência daquele que semeia e que não participa da

colheita (cf. Mq 6,15). Antes mesmo de Jesus ser enviado pelo Pai, os profetas trabalharam na

vinha. João Batista trabalhou na Samaria em Enon (cf. Jo 3,23). Provavelmente são esses

“outros” sublinhados fortemente pelo seu trabalho, antes dos discípulos, que serve para

manifestar a continuidade do desígnio de Deus. Deus abrange o passado e o futuro, e Jesus

está no centro. Os discípulos entraram no que não lhes custou nenhum trabalho. Entraram no

47

O ceifeiro cobra o seu salário, que é o mesmo fruto que recolhe, e alegra-se da mesma maneira como o que fez

a semeadura. O trabalho de um e outro dista no tempo, mas a alegria é simultânea. Ambos trabalham tendo em

mira a colheita; a finalidade é a mesma e, por isso, a alegria é comum. Cf. MATEOS; BARRETO, O Evangelho,

p. 236.

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estágio final de uma história iniciada há muito tempo. Eles podem se alegrar com Jesus, com

o pleno êxito da obra do Pai. Esta é a benção, o fruto sem trabalho, que continuará com a

alegria da colheita participada com o que semeia (cf. Am 9,13-14). Segundo o desígnio do Pai

em Jesus, o proselitismo irresistível de uma convertida, a mulher samaritana, preparou uma

colheita que fará de sua alegria a alegria de seus discípulos. Que abundante colheita lhe dava

o Pai, como fruto da semente plantada no coração da samaritana! Todo o ambiente está

preparado para um casamento perfeito. É a união do esposo com a esposa48

, do Messias que

reúne seu povo numa só fé.

2.6.3. O verdadeiro Salvador do mundo - Jo 4,39-42

Depois de um intenso labor, Jesus se prepara para a colheita dos frutos. Será o seu

casamento com a comunidade de fé que se formou. Os discípulos tomam parte desta colheita,

alegrando-se com Jesus. Jesus, que chegara àquela terra estrangeira cansado da caminhada e

da rejeição dos judeus, não cessou de trabalhar para fazer a vontade do Pai. Passo a passo,

levou a samaritana a reconhecer nele o enviado do Pai, transformando-a numa discípula fiel,

que foi anunciar a seus concidadãos aquele que seria o Messias que tanto esperavam49

. O

Mestre ensinou aos discípulos que foram enviados para colher o que não lhes custou nenhum

trabalho. E, agora, reúne a todos num mesmo lugar com a profissão de fé dos samaritanos.

39 VEk de. th/j po,lewj evkei,nhj polloi. evpi,steusan eivj auvto.n tw/n Samaritw/n dia. to.n lo,gon th/j gunaiko.j marturou,shj o[ti ei=pe,n moi pa,nta a] evpoi,hsaÅ

40 w`j ou=n h=lqon pro.j auvto.n oi Samari/tai( hvrw,twn auvto.n mei/nai parV auvtoi/j\ kai. e;meinen evkei/ du,o h`me,rajÅ

41 kai. pollw/| plei,ouj evpi,steusan dia. to.n lo,gon auvtou/(

42 th/| te gunaiki. e;legon o[ti ouvke,ti dia. th.n sh.n lalia.n pisteu,omen( auvtoi. ga.r avkhko,amen kai. oi;damen o[ti ou-to,j evstin avlhqw/j o swth.r tou/ ko,smouÅ

39 Muitos samaritanos daquela cidade tinham

acreditado nele por causa da palavra da mulher que

afirmava: “Ele me disse tudo o que eu fiz”.

40 Assim, quando chegaram junto dele, os samaritanos

lhe pediram que ficasse entre eles. E ele ficou lá dois

dias.

41 Bem mais numerosos ainda foram os que creram por

causa da própria palavra de Jesus;

42 e eles diziam à mulher: “Não é somente por causa

dos teus dizeres que nós cremos; nós mesmos ouvimos

e sabemos que ele é verdadeiramente o Salvador do

mundo”.

48

O feminino é elemento constitutivo da humanidade, enquanto evoca o ser pessoa sexuada, vocacionada para o

encontro integral com o masculino. Na unidade amorosa do diverso masculino e feminino, dá-se a semelhança

das pessoas divinas. Na “esposa” se acentua mais o amor do que a lei, o respeito ao diferente mais que o desejo

de uniformidade. Evoca a unidade pessoal do ser diante de Cristo; a necessidade de se conformar afetivamente

com os sentimentos de Cristo e a intuição feminina que dá sentido mais integral às análises puramente racionais. 49

Segundo Weiler, a versão joanina que narra a evangelização da Samaria pode ser considerada extremamente

revolucionária. Uma mulher, marginalizada por ser mulher e por ser samaritana, torna-se evangelizadora dentro

de sua própria cultura e a partir dela. Daí surge a suspeita hermenêutica da valorização do Evangelho, da boa-

nova de Jesus Cristo, já presente nas culturas. Cf. WEILER, Jesus e a samaritana, p. 102.

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Ouvindo o testemunho da mulher e vendo-a tão diferente, os samaritanos foram

até Jesus: “Muitos samaritanos daquela cidade tinham acreditado nele por causa da palavra da

mulher que afirmava: „Ele me disse tudo o que eu fiz‟”. A partir do testemunho da mulher

samaritana, seus concidadãos chegaram à fé, mesmo que tendo sido prestado por uma mulher

totalmente destituída de autoridade e pertencente a um grupo cismático.

Vejam como a metodologia de Jesus é desconcertante: a boa noticia é anunciada

pelos lábios de uma mulher, quem sabe considerada pouco virtuosa, filha de um

povo discriminado. Ela conduz seus conterrâneos a Jesus, para um encontro pessoal.

Retorna à fonte, trazendo consigo uma legião de sedentos...50

.

Os samaritanos são tocados pela palavra e pelo modo de ser da samaritana. Neste

primeiro passo, são apoiados num testemunho humano: “por causa da palavra da mulher que

afirmava” compreendem que chegou para eles a hora da misericórdia de Deus. Foram ao

encontro de Jesus, cheios de esperança, porque foram capazes de acreditar na mulher.

Sintonizaram e perceberam que verdadeiramente algo de fundamental mudara em sua vida. A

expressão “tinham acreditado nele” (evpi,steusan eivj auvto.n) denota adesão à pessoa de Jesus

segundo o anúncio da mulher que conclui com uma afirmação interrogativa reveladora de

uma dimensão de seu mistério: “Não seria ele o Cristo?” (v. 29). Por isso os samaritanos se

dirigem a ele esperando encontrar o tão esperado Messias, aquele que chamam Cristo. E,

quando encontraram Jesus e o ouviram, os samaritanos compreenderam que aquele homem

era ainda muito mais que o esperado. E, por isso, pediram-lhe que permanecesse entre eles51

.

O evangelista, ao enunciar novamente: “Ele me disse tudo o que eu fiz”, evidencia o sinal

experimentado pela mulher: Jesus que falou de toda sua vida. Este sinal foi esclarecedor para

os samaritanos. O progresso da fé dos samaritanos é motivado pelo sinal da fé que procede da

palavra de Jesus. O retorno imediato da samaritana tinha-os introduzido nas verdadeiras

regiões da fé. A partir daí, eles não põem condições ao Cristo; pelo contrário, são eles que

desejam saber quais são as suas condições. Não vêm como partidários que impõem os seus

preconceitos, mas como discípulos que só pensam em ouvir, aprender e realizar. Jesus, que

ensinara à mulher samaritana, ensinará ao povo samaritano, permanecendo dois dias entre

50

GALVÃO, Jesus e samaritana, p. 60. 51

Aqui os samaritanos pedem que Jesus permaneça com eles. Nos sinóticos, é Jesus quem convida seus

discípulos a permanecerem com ele (cf. Mc 3,13-14). A fórmula ficasse com eles indica um estreito contato

pessoal (cf. Jo 1,39). O ministério de Jesus na Samaria é recordado só por João. De mais a mais, Mateus refere-

se à proibição de Jesus aos apóstolos no que concerne as atividades junto aos samaritanos (cf. Mt 10,5). Também

Lucas, que de resto se mostra bem disposto para com esse povo (cf. Lc 10,29-37; 17,11-19), acena para a

hostilidade dos samaritanos com Jesus na sua viagem rumo a Jerusalém (Lc 9,52-53). Mas, em At 8,1-25, o

evangelho é anunciado na Samaria. Cf. NICCACI; BATTAGLIA, Comentário, p. 85-86.

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65

eles52

. A sua presença rompeu com todo tipo de obstáculo, preconceitos raciais ou religiosos.

Nos dois dias que Jesus permaneceu na cidade, muitos outros acreditaram nele por

causa de sua própria palavra. A fé aqui não é fundada na experiência da mulher, mas na

experiência pessoal com Jesus. Esse fato evidencia que nem todos tinham acreditado no que a

mulher afirmou. Aprisionados nos velhos conceitos de uma cultura que desconfiava das

mulheres, acharam que tudo aquilo não passava de uma conversa. Esperavam apenas a

confirmação de sua descrença porque não havia mais lugar em suas vidas para a esperança. A

narração informa que eram bem mais numerosos aqueles que creram em Jesus por causa da

sua palavra. Grande é a força que a palavra de Deus possui, seja quem quer que a anuncie, e

muito maior quando é o próprio Deus quem a anuncia por sua própria boca. Por isso eles

diziam à mulher: “Não é somente, por causa dos teus dizeres que nós cremos; nós mesmos o

ouvimos e sabemos que ele é verdadeiramente o salvador do mundo” (v. 42). A fé deixa de se

apoiar na palavra humana para atingir sua plenitude na palavra do próprio Jesus. A fé aparece

como o resultado do contato pessoal com Jesus; somente ele leva à confissão plena da fé: nós

mesmos o “ouvimos e sabemos” – auvtoi. ga.r avkhko,amen kai. oi;damen. João descreve nos vv.

40-42 a fé ideal, aquela que não nasce do milagre, nem da mediação de uma testemunha que

se refere ao milagre, mas aquela que nasce mediante o encontro pessoal com Jesus e a sua

palavra53

. Assim, a salvação é realizada e brota espontânea a proclamação da fé: “...ele é

verdadeiramente o Salvador do mundo” – ou-to,j evstin avlhqw/j o` swth.r tou/ ko,smouÅ

Com o título “Salvador do mundo”,54

o ápice da narrativa é atingido. O encontro

de Jesus com o povo da Samaria, a comunhão que Jesus estabeleceu com aquela gente, revela

um coração aberto para toda a humanidade. O amor do Pai abraça todos os homens, para além

das fronteiras étnicas, culturais e religiosas. Para os samaritanos Jesus não é Messias nacional,

que se destina ao seu povo ou aos judeus. Sua missão é universal. Ele foi capaz de superar a

inimizade entre os dois povos. Jesus se dirige a esse povo desprezado, que tantas vezes havia

se prostituído pelo culto às divindades pagãs, e fala-lhe ao coração convertendo-o ao amor de

seu Deus e Pai. A mulher se tornou mensageira de vida. Refez-se no encontro com Jesus.

52

Jesus, cuja missão é dar vida, comunica-a aos samaritanos que responderam ao seu anúncio pela fé. Cf. Os 6,2:

“Ao fim de dois dias nos fará reviver”. 53

Cf. NUOVISSIMA VERSIONE DELLA BIBBIA. Giovanni. 2.ed. Roma: Paoline, 1978. v. 36. p. 200-201. 54

DODD, A interpretação, p. 317: “No mundo helenístico este era um atributo muito comum dos deuses pagãos

(e dos imperadores), e parece provável que tenha sido nos ambientes cristãos helenísticos que ele ganhou

divulgação. O evangelista pode mesmo ter-se conscientizado de uma certa propriedade dramática ao colocá-lo na

boca dos samaritanos, que neste evangelho representam de algum modo o mundo gentio em oposição aos judeus.

Não se dá explicação alguma do termo. Deixa-se que o leitor mesmo perceba pelo próprio teor da obra em seu

todo, em que sentido Cristo é Salvador”.

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Jesus não se dedicou às instituições, mas à pessoa humana. Ele muda o coração dos homens,

libertando-os do egoísmo e insistindo incansavelmente no valor da ação fraternal. Por isso

Jesus salva o mundo55

, agindo sobre o indivíduo. O encontro com Cristo é sempre caminho de

conversão, de descoberta, de crescimento e de mais vida. Por isso a permanência de Jesus

com os samaritanos abriu para eles um horizonte que ultrapassa o seu território. A fé vence

todos os obstáculos que surgem da procedência externa do Revelador (cf. Jo 6,42; 7,27.41-

42.52) e eles se deixam instruir por Jesus como o Enviado escatológico. Também o interesse

histórico do evangelista é evidenciado pela prontidão dos samaritanos para crer,

diferentemente dos judeus de Jerusalém (cf. Jo 2,18-20; 4,1-3) e dos galileus (cf. Jo 4,44;

6,30-31.41.52). Eles compreenderam que Jesus não era somente o Messias que esperavam,

mas verdadeiramente o Salvador do mundo.

2.7. O trabalho incansável de Jesus - Jo 4,43-46

A boa acolhida de Jesus entre os samaritanos fez João recordar o que o próprio

Jesus tinha afirmado: um profeta só não é bem acolhido na sua própria pátria (v. 44). Depois

de ter parado naquela região para saciar a “sede” e a “fome”, Jesus seguiu para a Galiléia

onde também foi bem acolhido. Este foi o alimento de Jesus: “Fazer a vontade do Pai”. O seu

“cansaço” é refeito pela fé da samaritana e de seu povo, que deixaram de ser estranhos para

pertencerem à família de Deus. A vida deste povo foi completamente transformada pela fé.

A atividade de Jesus em Jerusalém teve uma grande ressonância nacional. Os

galileus que lá estavam mostram-se favoráveis a Jesus. Por isso ele é bem acolhido entre eles.

E voltando a Caná, onde transformara a água em vinho, Jesus realiza o segundo sinal.

43 Meta. de. ta.j du,o h`me,raj evxh/lqen evkei/qen eivj th.n Galilai,an\

44 auvto.j ga.r VIhsou/j evmartu,rhsen o[ti profh,thj evn th/| ivdi,a| patri,di timh.n ouvk e;ceiÅ

45 o[te ou=n h=lqen eivj th.n Galilai,an( evde,xanto auvto.n oi Galilai/oi pa,nta ewrako,tej o[sa evpoi,hsen evn ~Ierosolu,moij evn th/| e`orth/|( kai. auvtoi. ga.r h=lqon eivj th.n eorth,nÅ

46 +Hlqen ou=n pa,lin eivj th.n Kana. th/j Galilai,aj( o[pou evpoi,hsen to. u[dwr oi=nonÅ Kai. h=n tij basiliko.j ou- o ui`o.j hvsqe,nei evn Kafarnaou,mÅ

43 Dois dias mais tarde, Jesus deixou aquela região e foi

para a Galiléia.

44 De fato, Jesus mesmo tinha afirmado que um profeta

não é honrado em sua própria pátria.

45 Entretanto, quando ele chegou à Galiléia, os galileus

lhe fizeram boa acolhida: também eles tinham ido a

Jerusalém para a festa, e tinham podido ver tudo o que

Jesus fizera.

46 Jesus volta, pois, a Caná da Galiléia onde mudara a

água em vinho. Havia lá um oficial régio, cujo filho

estava doente em Cafarnaum.

55

LÉON-DUFOUR, Leitura, p. 301: “O termo „mundo‟ não pode designar o mundo perverso que Jo estigmatiza

em outras situações; é evidente o mundo amado por Deus, que o filho único deve salvar (3,16-17), aquele cujo

pecado será tirado (1,21). O vocábulo permite ultrapassar os limites do povo samaritano e abrir para o

universal”.

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João insiste na presença de Jesus na Samaria, com a finalidade de sublinhar a

mudança de vida daquele povo. A permanência de Jesus entre eles trouxe-lhes nova vida,

aquela que se derrama no coração humano como copiosa torrente que jorra de infinita fonte, o

Pai. “Permanecer com Jesus” é um termo característico de João. Indica uma íntima afiliação

com Jesus (cf. Jo 1,39; 4,40; 6,56; 8,31; 15,4-7). Banhada pelo olhar de Jesus, a samaritana

torna-se o ícone da fé para a comunidade. Não se fechou dentro de si mesma em sua

descoberta, mas tornou-se a mensageira do amor, indo anunciá-lo a seus irmãos. Estes

aceitaram Jesus, pois tinha um olhar de amor e ternura. Era um judeu diferente. E os

discípulos, com o ensinamento de Jesus, deveriam repensar seu modo de ver a mulher. A

atitude de Jesus lhes ensinava.

Por outro lado, o evangelista também frisa que Jesus vai para a Galiléia para

afastar-se da Judéia, onde se sente ameaçado: “De fato, Jesus mesmo tinha afirmado que um

profeta não é honrado em sua própria pátria” (v. 44). Os judeus que viram os sinais que ele

realizou não deram sua adesão a ele, começando por Nicodemos (cf. Jo 2, 23-25). Acreditar

em Jesus somente não bastava. Era necessário aderir à sua pessoa. Jesus, que se manifestara

no templo, experimentou a oposição dos dirigentes (cf. Jo 2,18) e a hostilidade dos fariseus

(cf. Jo 4,1). Na tradição sinótica, o provérbio proferido por Jesus sublinha o fracasso

experimentado por Jesus de Nazaré56

. A terra de origem de Jesus parece ser realmente a

Judéia e não a Galiléia. Segundo João, Jesus passa muito tempo na Judéia, porém isto não é

motivo para considerar que essa seja a sua pátria.

Assim, a melhor solução para resolver este impasse com relação ao v. 44 é

considerá-lo como uma adição do redator, exatamente igual a Jo 2,12. Por uma

tradição análoga à dos sinóticos, o redator conhecia uma sentença em que se dizia

que Jesus não era devidamente estimado na Galiléia, e acrescentou esta sentença ao

evangelho justamente quando neste se recolhe um relato em que aparece, bem

ilustrada, a fé insatisfatória dos galileus, que se apóia unicamente em sinais e

prodígios (v. 48). Na visão de João, a acolhida oferecida a Jesus na Galiléia (v. 45) é

tão vã como a reação provocada por Jesus em Jerusalém (cf. Jo 2,23-25). Em

conseqüência, a inserção do v. 44 não está tão em contradição com o v. 45 se o

entendimento de uma boa acolhida superficial, baseada no entusiasmo que

despertam os milagres, não constitui uma “honra” efetiva57

.

56

TILBORG, Comentário, p. 99: “Evidentemente percebe-se que o texto contém uma contradição que não se

pode aclarar totalmente. Porém, o método que se emprega neste comentário a contradição é menos absurda do

que às vezes se pensa. Há que manter, conseqüentemente, uma distinção dos diversos níveis de comunicação do

texto. A procedência nazarena de Jesus tem um papel somente donde se trata do plano de comunicação entre os

personagens da história relatada, ainda que o versículo 4,44, onde se menciona a Judéia como a Pátria de Jesus –

e esta é precisamente a pedra de escândalo –, é uma observação do autor mesmo, isto é: uma declaração que tem

lugar no plano de comunicação do autor implícito e seu leitor implícito. Segundo o autor do Evangelho de João,

Judéia é a pátria de Jesus, Jerusalém sua cidade e o templo a casa de seu Pai. Isto se opõe ao que dizem distintos

personagens de seu relato, porém isto não constitui para ele nenhum mal”. 57

Cf. BROWN, El evangelio, p. 393.

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“Entretanto, quando ele chegou à Galiléia, os galileus lhe fizeram boa acolhida:

também eles tinham ido a Jerusalém para a festa e tinham podido ver tudo o que Jesus fizera”

(v. 45). Os galileus acolhem Jesus, inspirados por sua atuação em Jerusalém. Tanto os judeus

quanto os galileus acreditavam em Jesus por causa dos sinais que realizava. Mas Jesus não se

deixava levar por ilusões, não acreditava neles (cf. Jo 2,23-24). Eles ficaram maravilhados

pelos sinais, mas não tomaram parte com Jesus (cf. Jo 4,48). Ora, a fé não é simplesmente

uma operação mística, é a consagração total do homem a Deus. Por isso os versículos 44 e 45

podem indicar a superficialidade do acolhimento dos galileus, fundado no entusiasmo dos

sinais que Jesus realizou entre os judeus58

. Jesus, como profeta enviado por Deus a falar ao

povo, exige fé em sua palavra, sem a confirmação de algum prodígio (cf. Jo 4,48-50). Para

João, a acolhida dos fariseus baseada nos sinais vistos não significa muita honra.

A atitude dos judeus contrasta com a postura dos samaritanos. Os samaritanos,

povo que lhe era estranho, reconheceram Jesus; na Judéia, porém, Jesus não recebeu a honra

de profeta (cf. Jo 4,19): “Ele veio para o que era seu, e os seus não o acolheram” (Jo 1,11).

Portanto, enquanto Jesus estava em sua casa e não fora bem acolhido pelos seus; na Samaria,

sendo forasteiro, o povo lhe pediu que permanecesse um tempo como hóspede e o reconheceu

não só como um profeta, mas como o Salvador do mundo.

Jesus vai para a Galiléia porque nela pode circular livremente (cf. Jo 7,1).

Habitada por pessoas sensíveis e fiéis à lei, pessoas menos ilustradas e livres quase que por

completo do fermento dos fariseus, a Galiléia é o lugar para o qual Jesus se dirige para educar

os discípulos, aqueles que tinham aderido a ele totalmente, que descobriam pouco a pouco sua

divina personalidade. A convivência com o Senhor projetará sempre de novo luzes sobre as

sombras do ser humano e os convidará a mais um passo adiante. A comunhão com Deus e

com os outros nunca terá se consumado no caminho da história. A certeza interior, que nada

substitui, nunca se esgota. Jesus já não é só um doutor admirado: é o Mestre que o discípulo

segue sempre. O encontro com ele será sempre um aprendizado se o discípulo permanecer

aberto para suas inesperadas e surpreendentes revelações. É assim que Jesus em Caná da

Galiléia realiza o segundo sinal ao curar o filho do oficial régio, que estava morrendo. Jesus

58

A crítica aos milagres e a polêmica contra os judeus são, sem dúvida, tópicos já presentes na tradição. João,

contudo, recorre a essa tradição para discutir um problema mais fundamental, ou seja, o dilema da documentação

visível da presença divina, que é facilmente aceita porque não combina com critérios teológicos pré-concebidos.

João vê tanto a rejeição quanto a aceitação do “mundo”, um mundo que não ouve a palavra do revelador. O

“mundo” não compreende que a verdadeira revelação é dada pelas palavras do revelador e numa manifestação

do revelador que não corresponde aos critérios religiosos estabelecidos e tradicionais. Cf. KOESTER, Introdução

v. 2, p. 207.

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apenas disse ao oficial: “Vai, teu filho vive” (Jo 4,50). E, acreditando nessa palavra, o homem

se pôs a caminho. O evangelista utiliza uma fonte inserindo o v. 48, como um convite a crer

na palavra, uma exortação para chegar à fé verdadeira (cf. Jo 20,24-29). Desta maneira, João

sublinha uma trajetória da fé: de uma fé insegura, sob a impressão dos prodígios, a uma fé

autêntica, que se apóia na palavra para chegar, no fim, à fé plena59

.

Portanto, podemos concluir que João, neste texto, estabelece para sua comunidade

um modelo de fé em Cristo. Jesus atrai a si todos os marginalizados e desprezados,

devolvendo-lhes a dignidade, a começar pela mulher. Sua presença e acolhida removiam das

pessoas o sentimento de exclusão. A mulher samaritana tornou-se portadora de uma

mensagem de salvação que vence as barreiras impostas pelo judaísmo. Jesus é livre,

plenamente livre. Nele não há lugar para a intransigência legalista dos fariseus, a vaidade dos

escribas, o orgulho dos sacerdotes e nem para a proposta revolucionária dos zelotas60

. Jesus

amava sem limites.

Atenta à palavra de Jesus, a mulher samaritana abre a porta de seu coração,

deixando para trás tudo o que a impedia de ver claramente. Sua fé não é professada com

palavras, mas com o gesto de largar tudo e caminhar apressadamente ao encontro de seus

concidadãos para lhes anunciar sua grande alegria. A palavra dela é causa de toda mudança

provocada naquele povo. Ao se encontrar com Jesus, o povo percebe que está diante não

apenas de um profeta que esperava, mas do Salvador do Mundo.

Para os discípulos que o acompanhavam foi uma verdadeira lição. Um

ensinamento que os torna verdadeiros discípulos, tal qual a mulher samaritana. É preciso

ouvir o que Jesus está falando e romper com todo tipo de barreira que impede de produzir os

frutos para o Reino de Deus. Enquanto os judeus não dão crédito a Jesus, os samaritanos lhe

pedem para permanecer com eles.

2.8. Conclusão

O diálogo de Jesus com a mulher samaritana sintetiza os traços do discipulado.

Primeiro ela disse: “Vejo que tu és um profeta” (Jo 4,19). As palavras de Jesus fazem a

samaritana acordar de sua inércia e de sua acomodação, que não possibilitam ver o dom de

59

Cf. NICCACI; BATTAGLIA, Comentário, p. 87-89. 60

É preciso ressaltar que havia fariseus que acreditavam em Jesus (cf. Jo 3,1-21 e 19,38-42); escriba que se

deixava instruir pelo Mestre e Senhor (cf. Mt 13,52) e sacerdote que confiava plenamente nos caminhos do

Senhor (cf. Lc 1,5-25).

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Deus presente em sua vida. Segundo, em mais um passo, revela que está ciente de que um

Messias deve vir, aquele que chamam Cristo (cf. Jo 4,25). Ou seja, como seu povo, ela

também espera por esse Messias. Este esperado, com suas palavras, transformará a vida

daquele povo, bem como todo o cosmos. Terceiro, quando Jesus lhe disse: “Sou eu, eu que

estou falando a ti” (Jo 4,26), a mulher, largando tudo, correu para anunciar a seu povo “Vinde

ver um homem que me disse tudo o que eu fiz. Não seria ele o Cristo?” (Jo 4,28-29). Ela não

questionou: “Como tu podes pretender ser o Messias?” Ela simplesmente acreditou nas

palavras de Jesus. E, por causa destas palavras, a samaritana levará seus concidadãos a

professar: “Não é somente por causa dos teus dizeres que nós cremos; nós mesmos o ouvimos

e sabemos que ele é verdadeiramente o Salvador do mundo” (Jo 4,42). Quarto, motivada pelo

mistério que se desvelara nela, foi anunciar o Cristo a seu povo, não se importando com o que

poderiam dizer dela. Mesmo sendo marginalizada e discriminada pelo povo judeu por

pertencer a um povo de hereges (cf. Jo 4,9), não se importa de ser hostilizada. Resgatou, para

nunca mais perder, sua dignidade, aquela que Deus lhe plantara no ser quando a fez à sua

imagem e semelhança.

Com a narração deste diálogo entre Jesus e a Samaritana, a comunidade joanina é

levada a perceber o dom de Deus oferecido a todos os que desejam encontrar o Senhor e

Mestre. Toda a narração é evidenciada por locais geográficos bem determinados. O texto

mostra as dificuldades (disputas, grupos, polêmicas) que os discípulos e discípulas devem

superar para conhecer o Senhor e Mestre Jesus, como o Salvador do Mundo.

Os discípulos e discípulas são conduzidos a responder à pergunta: Quem é mesmo

Jesus? Resposta que se delineia na abertura do discipulado ao dom de Deus, oferecido a todo

aquele que se propõe a ouvir atentamente as palavras de Jesus. A fé da samaritana é selada em

seu coração pela palavra de Jesus. É essa palavra de Jesus que, uma vez acolhida pela mulher

samaritana, torna-se nela fonte de água viva que jorra para a vida eterna. Sua vida passa a ser

sinal daquele que é o salvador do mundo.

Com Jesus, cessa todo tipo de divisão, de discriminação sociológica e religiosa.

Evidencia que Deus atua em cada pessoa e através de pessoas que não têm sequer

reconhecimento social e institucional. O desejo dos samaritanos de que Jesus permaneça com

eles é fruto do trabalho incansável de Jesus. Por isso, para os samaritanos, Jesus não é

somente um profeta, mas o salvador do mundo.

Como um rabi, Jesus ensina àquela mulher samaritana. Através de seu

ensinamento, ela se torna uma discípula. Ela anuncia o Cristo aos seus conterrâneos.

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Jesus não só ensina àquela mulher como também exorta aos discípulos, que

tinham ido à cidade, a necessidade de arrancar tudo o que divide a comunidade. Jesus

apresenta para os seus discípulos os frutos do anúncio feito pela mulher samaritana ao ver a

multidão que vinha ao seu encontro. Jesus torna-se presente na mulher samaritana que se

dirige, como uma verdadeira mensageira, a anunciar a seus conterrâneos tudo o que o Senhor

lhe havia dito.

Portanto, para reconhecer Jesus como o salvador do mundo, é fundamental

acolher sua palavra e nela permanecer.

Na força da palavra do Cristo, encontra-se outra mulher que é chamada a

anunciar o Cristo vivo aos discípulos. Seu amor e sua intensa procura proporcionam a Maria

Madalena um encontro edificante para a sua fé e conseqüentemente para a fé de toda sua

comunidade. O próximo capítulo consistirá na análise de Jo 20,1-18 na cena do encontro de

Maria Madalena com o Ressuscitado, próximo ao túmulo vazio. Terá por finalidade detectar,

nos gestos e palavras de Maria Madalena, os elementos de sua fé em Jesus, e o conseqüente

seguimento.

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3. A RESPOSTA DE MARIA MADALENA AO CHAMADO - Jo 20,1-18

3.1. Introdução

Se, no relato da Samaritana, já se percebe um modelo de fé e anúncio, no relato da

ressurreição, João nos apresenta Maria Madalena, uma mulher de incontestável fé em Jesus.

Torna-se, ao lado do discípulo amado, um modelo central de fé e de discipulado para a

comunidade joanina. O amor profundo que essa mulher sente pelo seu Senhor é descrito por

João como busca incansável. Maria Madalena é a discípula que, apesar de sua dor, busca

Jesus e o encontra. Ela reconhece o Senhor no momento em que a chama pelo nome:

“Mariâm” (v. 16). E sua resposta é imediata: “Rabuni”, mestre (v. 16) – a resposta de um

verdadeiro discípulo. “Àquele que guarda o redil a porta se lhe abre, e as ovelhas escutam a

sua voz; as ovelhas que lhe pertencem, ele as chama, cada uma por seu nome e as leva para

fora. Quando ele as fez sair todas, caminha à frente delas e elas o seguem, porque conhecem a

sua voz” (Jo 10,3-4). Por sua fé e seu seguimento, Maria Madalena se torna portadora do

mandato do Cristo Ressuscitado: transmitir e anunciar aos discípulos o que ele lhe disse. Sua

grande tristeza converte-se em alegria, como Jesus tinha prometido no discurso de adeus.

Maria Madalena impulsiona os discípulos a continuar a missão que o Cristo

ressuscitado lhes indicara. Quando tudo parece perdido e sem sentido, é justamente ela que

retoma, junto aos discípulos, o caminho da primeira comunidade, sustentada pela fé no Cristo

glorificado pelo Pai. Segundo Estevez, o relato joanino

nos apresenta Maria Madalena com as mesmas credenciais com as quais Paulo

justifica seu apostolado: por um lado, nos narra seu encontro pessoal com o

Ressuscitado e, por outro, o encargo que recebe dele de anunciá-lo a seus irmãos.

Paulo recebe o encargo de anunciar o evangelho a todo o mundo ao passo que Maria

é enviada ao grupo de discípulos. No entanto, não podemos esquecer que nesta

comunidade estavam representadas já pessoas provenientes do âmbito grego e

samaritano. Os limites estreitos do judaísmo estavam superados. Portanto, a missão

desta mulher aparece como prelúdio da missão universal da Igreja1.

Em sua perseverante busca, Maria Madalena torna-se a primeira testemunha

apostólica da ressurreição2. Na tradição da Igreja Ocidental, recebeu a honra de ser a única

1 ESTEVEZ, Elisa. A mulher na tradição do discípulo amado. Ribla, Petrópolis, n. 17, p. 71, fev. 1994.

2 Segundo Brown, a tradição de que Jesus apareceu primeiro a Maria Madalena tem uma grande chance de ser

histórica – ele se lembrou primeiro desta representante das mulheres que não o abandonaram durante a paixão. A

prioridade dada a Pedro e Paulo em Lucas é uma prioridade entre os que se tornaram testemunhas oficiais da

ressurreição. O segundo lugar dado à tradição de uma aparição a uma mulher ou a algumas mulheres

provavelmente reflete o fato de que as mulheres não serviram no começo como pregadores oficiais da Igreja –

fato que tornaria a criação de uma aparição a uma mulher improvável. Cf. BROWN, A comunidade, p. 200.

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mulher ao lado da virgem Maria, Mãe de Jesus, em cuja festa se recitava o credo. Certamente

esta honra se dava por ser ela considerada uma apóstola – “apóstola dos apóstolos” (apostola

apostolorum)3.

Maria Madalena é nomeada ao contar as cenas da páscoa em companhia de outras

mulheres, nos quatro Evangelhos. É relatada como seguidora de Jesus através de seu

ministério na Galiléia, como testemunha sofredora no momento da crucificação e morte do

Mestre, como testemunha do túmulo vazio, como a primeira pessoa para quem Jesus

ressuscitado apareceu e a primeira a proclamar sua ressurreição. E, por isso, principalmente

nas Igrejas do Oriente, Maria Madalena é vista com a mesma distinção que os apóstolos4.

Segundo Karen L. King5, no imaginário e na tradição ocidentais populares, Maria

Madalena é mais conhecida como a prostituta arrependida, como a adúltera que Jesus salvou

das mãos dos homens que queriam apedrejá-la (cf. Jo 8,1-11) e como a pecadora cujas

lágrimas de arrependimento lavaram os pés de Jesus em preparação para a sepultura (cf. Lc

7,36-50 em comparação com Jo 12,1-8). Isto surgiu de uma exegese equivocada. A partir do

século IV, os teólogos cristãos no ocidente latino fundiram o relato de Jo 12,1-8, em que

Maria de Betânia unge Jesus em preparação para a sua sepultura, com Lc 7,36-50, em que

uma pecadora anônima lavou os pés de Jesus com suas lágrimas e os ungiu. Daí foi fácil

passar a identificar Maria Madalena com a adúltera anônima de Jo 8,1-11. A Maria discípula

tornara-se a Maria prostituta.

Outra interpretação, feita por volta do século VI, pelo papa Gregório Magno em

seus sermões, prevaleceu no imaginário popular. Gregório Magno não apenas identificou

Maria Madalena com a mulher pecadora de Lucas e João, como também tirou a conclusão

moral que iria dominar o imaginário do Ocidente. O assunto da homilia 33 foi a história da

pecadora arrependida de Lc 7, identificada como Maria Madalena:

Aquela que Lucas chama de mulher pecadora e João chama de Maria, nós

acreditamos ser a Maria de quem foram expulsos sete demônios de acordo com

Marcos. E o que significaram estes sete demônios, senão todos os vícios?... É claro,

irmãos, que a mulher anteriormente usava o ungüento para perfumar sua carne em

atos proibidos. O que ela, portanto, ostentava mais escandalosamente, agora ela

3 JUNGMANN, J. A. The mass of the roman rite. New York: Benzinger, 1950. p. 470, nota 57. Apud BROWN,

A comunidade, p. 200: “O uso de „apóstola‟ aplicado a Madalena é freqüente na sua famosa vida, escrita no

século IX por Rábano Mauro: Jesus a instituiu apóstola para os apóstolos; ela não se demorou em escrever o

ofício de apostolado com o qual foi honrada; ela evangelizou seus co-apóstolos com as novas da ressurreição do

Messias; ela foi elevada à honra do apostolado e constituída a evangelista da ressurreição”. 4 Cf. BOBROVOLNY, Mary K. Mary Magdalene: An icon for women religious. Review for religious, Saint

Louis University, v. 61, n. 6, p. 604, November/December 2002. 5 Cf. KING, Karen L. Canonização e marginalização: Maria de Mágdala. Concilium, Petrópolis, v. 276, n. 3, p.

38-40, 1998.

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estava oferecendo a Deus de uma forma mais louvável. Ela havia cobiçado com os

olhos terrenos, mas agora, através da penitência, estes são consumidos pelas

lágrimas. Ela exibia seu cabelo para enfeitar o rosto, mas agora o cabelo enxuga as

lágrimas. Ela falava coisas orgulhosas com a boca, mas ao beijar os pés do Senhor

ela agora os beijava demoradamente. Para cada prazer, portanto, que tivera em sua

carne, ela agora se imolava. Ela transformava a enorme quantidade de seus crimes

em virtudes, a fim de servir a Deus inteiramente em penitência, por tanto tempo

quanto erradamente desprezara a Deus6.

Mesmo tendo essa confusão criado o imaginário popular, o Papa Gregório em sua

homilia oferece aos ouvintes um exemplo da possibilidade de arrependimento e de promessa

do perdão7.

Excluindo esses equívocos do passado, que identificam Maria Madalena com

outros personagens dos Evangelhos, podemos dizer que Maria Madalena é caracterizada no

relato de Jo 20,1-18 como representante da situação dos discípulos depois da partida de Jesus:

uma situação de tristeza que se converte em alegria. O relato conta como Maria Madalena

recebeu a revelação de Jesus e a ordem de anunciá-lo aos irmãos e irmãs.

Para melhor explicitar os elementos que evidenciam a gênese da fé de Maria

Madalena, a perícope de Jo 20,1-18 será dividida em partes menores, visando facilitar a

análise dos vocábulos, expressões, frases e passagens de grande relevância teológica, que

revelam essa mulher como um modelo para o discipulado da comunidade joanina.

3.2. Maria Madalena vai ao túmulo e vê a pedra removida - Jo 20,1

A morte de Jesus na cruz deixou os discípulos com muito medo. João confirma

esse medo ao narrar que eles se achavam em uma casa com as portas trancadas “por medo dos

judeus” (cf. Jo 20,19). Medo que, antes da morte do Senhor, caracterizava a atitude dos

israelitas que não ousavam se declarar abertamente a favor de Jesus (cf. Jo 7,13; 9,22; 12,42;

19,38). Os discípulos vivem uma situação de angústia. Tal situação revela um medo que

impedia os discípulos de compreenderem o que tinha acontecido com Jesus. O medo havia

paralisado o grupo dos apóstolos. Ao contrário dos doze, Maria Madalena se coloca em plena

ação, revelando uma coragem surpreendente na busca de Jesus. Maribel Pertuz afirma que,

“neste relato de Maria Madalena, ela aparece com grande protagonismo. Os verbos são de

muita ação. Ela vem, vê (v.1), corre (v.2), se agacha (v.11), procura, diz (v.15), volta e

6 HASKINS, Susan. Mary Magdalene: Myth and Metaphor. New York: Harcourt Brace and Co, 1993. p. 96.

Apud KING, Canonização e Marginalização, p. 40. 7 Cf. WELBORN, Amy. Decodificando Maria Madalena: a verdade, as lendas e as mentiras. São Paulo: Cultrix,

2006. p. 61.

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anuncia (v.18). Nota-se uma atitude de busca marcante. Jesus tinha dito: „...quem procura

acha‟ (cf. Mt 7,7-8; Lc 11,9-10)”8.

20:1 Th/| de. mia/| tw/n sabba,twn Mari,a h` Magdalhnh. e;rcetai prwi> skoti,aj e;ti ou;shj eivj to. mnhmei/on kai. ble,pei to.n li,qon hvrme,non evk tou/ mnhmei,ouÅ

1No primeiro dia da semana, ao alvorecer, enquanto

ainda estava meio escuro, Maria de Mágdala vai ao

túmulo e vê que a pedra fora retirada do túmulo.

Maria Madalena, que seguira Jesus até a hora de sua morte na cruz, é tomada em

seu coração por um grande amor ao seu Senhor. João relata a busca incessante dessa mulher

para evidenciar a necessidade e a importância da fé na vida da comunidade. Maria Madalena,

que estivera perto de Jesus na hora da cruz (cf. Jo 19,25), não conformada com a morte do

Mestre, dirige-se, no primeiro dia da semana9, ainda meio escuro, para o lugar onde

sepultaram Jesus. Ela vai somente visitar o túmulo, sem saber de nada. Ao contrário dos

sinóticos, João relata que Maria Madalena vai sozinha ao túmulo de Jesus. Segundo Léon-

Dufour,

João reelaborou profundamente essa tradição. A visita dos discípulos é desenvolvida

num relato no qual o Discípulo intervém com Pedro; a das mulheres é

individualizada numa única personagem, Maria de Mágdala, que terá uma aparição

do próprio Jesus. Os dois primeiros versículos do capitulo 20 introduzem

simultaneamente um e outro episódio10

.

O primeiro dia da semana – Th/| de. mia/| tw/n sabba,twn – frisa

que o tempo segue imediatamente à morte de Jesus11

. Esta expressão abre um novo tempo.

Indica para o mundo o começo de um novo tempo. Maria Madalena vai ao túmulo ao

alvorecer em meio às trevas – prwi> skoti,aj – sem se dar conta de que o dia já

começou. O termo skoti,aj é um termo grego, típico da linguagem de João, que revela

que a noite ainda não terminou. Podemos encontrar tal expressão no Cântico dos Cânticos:

“Sobre meu leito, ao longo da noite, procuro aquele que eu amo. Eu procuro, não o encontro.

Tenho de levantar-me, dar a volta pela cidade; nas ruas, nas praças, procurar aquele que eu

8 Cf. PERTUZ, Maribel. A evangelista da ressurreição no Quarto Evangelho. Ribla, Petrópolis, n. 25, p. 99, mar.

1996. 9 É importante notar que os Evangelhos não usam a expressão “terceiro dia” ou “depois de três dias”, como

dizem as fórmulas querigmáticas. Possivelmente isto se deu porque a indicação temporal da descoberta do

túmulo vazio se fixou na recordação cristã antes de que se compreendesse o possível simbolismo dos três dias. A

expressão do Evangelho é possível em grego porque neste idioma sabba,twn significa por sua vez “semana” e

“sábado”; no hebreu do AT, sabbat não significa “semana”, se bem que tenha também este sentido no hebreu

posterior. Cf. BROWN, El Evangelio, p. 1287. 10

LÉON-DUFOUR, Leitura, p.145. 11

Jesus foi sepultado no final da sexta-feira, véspera do sábado de Páscoa. Para os judeus, o dia seguinte começa

à tarde, quando aparece a primeira estrela no céu, e não à meia-noite como para nós. Jesus foi sepultado às

pressas no final de sexta-feira porque não se podia fazer sepultamentos no sábado e, muito menos, num sábado

de Páscoa. Se adentrassem o sábado preparando um cadáver, os judeus cometiam um sacrilégio.

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amo. Eu procuro, não o encontro” (Ct 3,1-2). Como faz a amada, Maria Madalena vai

certamente ao túmulo para procurar aquele que ela ama, ainda que esteja morto.

Ir ao túmulo só é possível um dia depois da sábado, pois no sábado era proibido

dar certo número de passos e realizar qualquer tipo de serviço12

. Também não era uma coisa

muito lógica ou aconselhável ir ao sepulcro antes do amanhecer. Tal atitude só é

compreendida quando motivada por um sentimento intenso e um vínculo muito forte13

.

Apesar de não ter compreendido ainda o que tinha acontecido com Jesus e de buscá-lo como

cadáver, Maria Madalena é impulsionada pelo vínculo com seu Mestre e por um sentimento

que a impede de permanecer na treva em que se encontra. “Maria Madalena é a figura da

comunidade – esposa –, antecipada na irmã de Lázaro (cf. 12,3;19,25)”14

. Ou seja, a irmã de

Lázaro, Maria, que não era Maria Madalena, ungiu os pés de Jesus e enxugou-os com seus

cabelos deixando a casa cheia de perfume.

Em um sermão anônimo do século XVII, descoberto por Rainer Maria Rilke num

antiquário parisiense em 1911, encontra-se:

Madalena, a santa amante de Jesus, amou-o em seus três estados. Amou-o vivo,

amou-o morto, amou-o ressuscitado. Assinalou a ternura de seu amor para com

Jesus Cristo presente e vivo; a constância de seu amor para com Jesus Cristo morto e

amortalhado; as impaciências e os enleios, as fúrias, os desfalecimentos e os

excessos de seu amor entregue a Jesus Cristo ressuscitado15

.

Maria Madalena, ao chegar, vê (ble,pei) que a pedra fora retirada do túmulo. Não

entra, mas constata que o corpo de Jesus não se encontra mais no mesmo lugar. O túmulo está

vazio. Segundo Barreto e Mateos16

, a pedra colocada em frente ao túmulo teria sido o selo da

morte definitiva (cf. Jo 11,38s.41). Não foi sequer indicado, no momento da sepultura, que

essa pedra tivesse sido colocada lá. A morte não interrompia a vida de Jesus; um fecho não foi

posto em sua história. Mas a constatação de Maria Madalena é negativa e surpreendente. Ela

permanece numa lógica bem humana, concluindo que o cadáver foi levado embora. A

narração evidencia a impressão trágica que o desaparecimento do corpo produz na discípula,

12

SAULNIER; ROLLAND, A Palestina, p. 52-53: “A prática do sábado foi codificada cada vez mais

estritamente no decorrer dos tempos, tendendo às vezes a se tornar uma espécie de absoluto escravizando o

homem. Jesus não fará senão restituir-lhe seu significado primitivo quando declara: “O sábado foi feito para o

homem e não o homem para o sábado” (Mc 2,27). De manhã, antes de qualquer atividade, e à tarde, os homens

adultos deviam rezar. Voltados para o templo de Jerusalém, recitavam uma prece de benção, depois o Shemá,

bem como as primeiras e as últimas das Dezoito bençãos ou Shemoné Esré que certamente já estavam em uso”. 13

Cf. BASTIANEL, Maria di Magdala, p. 118. 14

MATEOS; BARRETO, O Evangelho, p. 837. 15

RILKE, Rainer Maria. O amor de Madalena. Sermão anônimo francês do século XVII. São Paulo: Landy,

2000. p. 17. 16

Cf. MATEOS; BARRETO. O Evangelho, p. 837.

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ao não encontrá-lo no túmulo. Sinaliza que ainda não brotou em Maria Madalena a fé na

ressurreição. O túmulo aberto continua a provocar apreensão e tristeza, como demonstram a

reação imediata de Maria Madalena no v.2 e seu pranto posterior junto ao túmulo nos vv.11,

13 e 15. Segundo Sebastini,

sem querer afirmar que o evangelista tenha inserido com os gestos de afeto e de

culto pelo corpo falecido em seu relato tal aspecto – ligado à experiência feminina,

mas menos óbvio para uma mente masculina – entre os muitos sentidos coexistentes

nesta página, há também o cume do caminho de libertação interior de Maria de

Mágdala, que consegue aqui uma sofrida e progressiva vitória sobre a necessidade

de, em todo caso, “guardar”, fechando-se na intimidade de uma experiência querida

e valiosa: impulso não desprezível , que aliás, é humaníssimo e de grande dignidade,

mas que de fato constitui sempre uma tentação quando o emergir do Kairòs exige

que não se feche e nem se imobilize a experiência, pois é tempo de descortinar um

novo horizonte17

.

A experiência de Maria Madalena impulsiona a experiência de Pedro e do outro

discípulo. Sua reação não é de inércia, mas de completa ação. Alarmada com suas conclusões,

Maria Madalena corre para se encontrar com os discípulos. Eles precisam saber. Pedro, que

em sua negação havia desaparecido do relato, agora reaparece com toda força.

3.2.1. Maria Madalena vai avisar Pedro e o outro discípulo – Jo 20,2

O espanto, a apreensão ao ver removida a pedra do túmulo onde colocaram Jesus,

faz Maria Madalena correr até os discípulos. Ela vai ter com Simão Pedro e o outro discípulo,

aquele que Jesus amava. O coração de Maria Madalena é tomado por um sentimento muito

humano, e ela não consegue entender o que aconteceu. Para Madalena, Jesus morreu e é

impossível pensar que vencera a morte. Ela entende que tiraram o Senhor do túmulo, mas não

sabe para onde o levaram, afinal o corpo de Jesus não se encontra mais no túmulo.

2 tre,cei ou=n kai. e;rcetai pro.j Si,mwna Pe,tron kai. pro.j to.n a;llon maqhth.n o]n evfi,lei o VIhsou/j kai. le,gei auvtoi/j\ h=ran to.n ku,rion evk tou/ mnhmei,ou kai. ouvk oi;damen pou/ e;qhkan auvto,nÅ

2Ela corre, vai ter com Simão Pedro e o outro

discípulo, aquele que Jesus amava, e lhe diz:

“Tiraram o Senhor do túmulo, e não sabemos onde o

puseram”.

Por que Maria Madalena vai avisar Pedro e o outro discípulo? Como Jesus já tinha

anunciado, sua morte provocou a dispersão dos discípulos – “Eis que vem a hora, e ela já

chegou, em que sereis dispersados, cada qual para o seu lado, e me deixareis sozinho” (Jo

16,32). Aqui vemos a primeira justificativa: os discípulos estavam imobilizados pelo que

aconteceu com Jesus de Nazaré. O medo tomara conta de todos. Não queriam o mesmo fim

17

SEBASTIANI, Lilia. Maria Madalena: de personagem do Evangelho a mito de pecadora redimida. Petrópolis:

Vozes, 1995. p. 214.

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que Jesus teve. E a segunda justificativa é evidenciada pela pressa de Maria Madalena para ter

com os discípulos. Sua atitude revela uma realidade profunda de esperança, de compreensão

interior amadurecida no tempo da familiaridade com Jesus. É uma maneira de expressar a

familiaridade que havia entre as discípulas e os discípulos responsáveis pelas comunidades.

Maria sabe que o acontecido e o que está acontecendo não é um assunto

simplesmente seu, não é uma questão que traz só em seu sentimento ou em seu crer:

é coisa que interessa aos discípulos, em particular ao grupo dos onze, em particular

Pedro. Por isso, como primeira atitude, corre para lhes falar18

.

E é justamente a escuta do apelo feminino que coloca os discípulos, nas pessoas

de Pedro e do outro discípulo, em movimento. Pedro e o outro discípulo não foram ao túmulo

de madrugada como Maria Madalena. Ela os convoca e os põe em movimento a partir de sua

busca de Jesus. Ela disse-lhes: “Tiraram o Senhor do túmulo, e não sabemos onde o puseram”

(Jo 20,2). Aparece aqui to.n ku,rion – o Senhor19

, como designação de Jesus. Maria Madalena

anuncia que tiraram o Senhor e não o corpo de Jesus. Não anuncia também que a pedra tinha

sido removida da entrada do túmulo. O que era um sinal de vida, Maria Madalena o interpreta

como um sinal de morte. O relato mostra ao leitor que o Senhor não foi tirado por mão

humana, em contraste com Jo 11,39 onde Jesus, diante do túmulo de Lázaro, dá uma ordem

para retirar a pedra.

A expressão ouvk oi;damen – não sabemos – utilizada por Maria Madalena encontra-

se no plural que pode ser o indício de um relato original com diversas mulheres20

. Por outro

lado, Mateos e Barreto interpretam esse plural como uma comunidade desorientada21

.

Também o emprego do pronome pessoal nós na mensagem de Maria Madalena é importante

para a comunicação no relato. Ele evidencia um sentimento de pertença. Pedro e o outro

discípulo sabem o que José de Arimatéia e Nicodemos tinham feito. Maria não anuncia

nenhum roubo do túmulo. A frase “Tiraram o Senhor do túmulo e não sabemos onde o

puseram” mostra claramente sua suspeita: havia pessoas que não pertenciam ao grupo

conhecido dos discípulos e que tinham posto o corpo de Jesus em outro lugar. A atitude de

Maria Madalena confirma que ela é muito mais que uma mensageira. Ela convoca os

discípulos a serem ativos.

Outra expressão que chama a atenção é pro.j to.n a;llon maqhth.n o]n evfi,lei o 18

BASTIANEL, Maria de Magdala, p. 125. 19

Segundo Brown, é possível que, ao descrever os acontecimentos que seguiram a ressurreição, o evangelista se

sinta mais livre, reconhecendo que este título se converteu em uma forma comum de expressar a fé da

comunidade cristã. Cf. BROWN, El Evangelio, p. 1292. 20

MAGGIONI, O Evangelho de João, p. 479. 21

Cf. MATEOS; BARRETO, O Evangelho, p. 838.

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VIhsou/j – o outro discípulo, aquele que Jesus amava. É a terceira passagem que fala

explicitamente desse discípulo (cf. Jo 13,23 e 19,26). Somente no Quarto Evangelho o

discípulo que Jesus amava desempenha um papel decisivo (cf. Jo 21,20-24). Indubitavelmente

foi o evangelista que introduziu o discípulo para a inspeção do túmulo vazio. Assim, o

evangelista coloca em relevo a fé do discípulo que Jesus amava (v. 8)22

.

Depois deste anúncio de Maria Madalena, Pedro e o outro discípulo saíram e

foram ao túmulo.

3.2.2. Pedro e o outro discípulo correm até o túmulo – Jo 20,3-10

Diante da informação que Maria Madalena lhes fornece, a única reação de Pedro e

do outro discípulo, narrada pelo evangelista, é a verificação do que aconteceu. E o evangelista

faz notar que Pedro e o outro discípulo correm juntos. Essa pressa dos dois discípulos (como a

pressa de Maria Madalena em 20,1) evidencia o apego que tinham a Jesus. Com sua ação,

Maria Madalena torna-se a grande impulsionadora dos discípulos na comunidade nascente. A

ação de Maria Madalena coloca os discípulos a caminho do Senhor. Convida-os a saírem da

dispersão em que se encontravam.

3 VExh/lqen ou=n o Pe,troj kai. o a;lloj maqhth.j kai. h;rconto eivj to. mnhmei/onÅ 4 e;trecon de. oi` du,o o`mou/\ kai. o` a;lloj maqhth.j proe,dramen ta,cion tou/ Pe,trou kai. h=lqen prw/toj eivj to. mnhmei/on( 5 kai. paraku,yaj ble,pei kei,mena ta. ovqo,nia( ouv me,ntoi eivsh/lqenÅ 6 e;rcetai ou=n kai. Si,mwn Pe,troj avkolouqw/n auvtw/| kai. eivsh/lqen eivj to. mnhmei/on( kai. qewrei/ ta. ovqo,nia kei,mena( 7 kai. to. souda,rion( o] h=n evpi. th/j kefalh/j auvtou/( ouv meta. tw/n ovqoni,wn kei,menon avlla. cwri.j evntetuligme,non eivj e[na to,ponÅ 8 to,te ou=n eivsh/lqen kai. o` a;lloj maqhth.j o evlqw.n prw/toj eivj to. mnhmei/on kai. ei=den kai. evpi,steusen\

3Então Pedro saiu, como também o outro discípulo, e

foram ao túmulo. 4Ambos corriam juntos, mas o outro discípulo correu

mais depressa do que Pedro e chegou primeiro ao

túmulo. 5Ele se inclina e vê as faixas deitadas ali. Todavia,

não entrou. 6Chega também Simão Pedro que o seguia: ele entra

no túmulo e observa as faixas ali deitadas 7e o pano

que cobrira a cabeça; este não fora posto com as

faixas, mas estava enrolado à parte, em outro lugar. 8Só então o outro discípulo, aquele que tinha chegado

primeiro, entrou, por sua vez, no túmulo; ele viu e

creu. 9Com efeito, eles ainda não tinha compreendido a

22

Tilborg, em seu comentário, diz que a menção do discípulo anônimo, “O outro (o a;lloj) discípulo, aquele que

Jesus amava”, chama muito a atenção. De modo muito significativo se estabelece um nexo com Jo 18,15: “O

outro discípulo, que junto com Pedro tinha seguido Jesus, e que era conhecido do sumo sacerdote”. Isto é

possível se se pensa que “o outro discípulo, que era conhecido do sumo sacerdote” é o discípulo amado. Para os

exegetas que assim interpretam o emprego desta palavra “outro” é um argumento extra para considerar essas

duas figuras como personagens idênticos no relato. Porém se em Jo 18,15 se trata de Judas, isto já não funciona.

Então há que compreender a expressão “o outro discípulo, aquele que Jesus amava” de modo que, junto ao

segundo discípulo, o “outro” amado (= o discípulo que Jesus amava), Pedro é um primeiro discípulo que Jesus

amava. Em todo caso, chama a atenção, que não se emprega o termo avgapavw, como em outras passagens acerca

do discípulo amado, senão o termo filevw, termo que na discussão entre Jesus e Pedro acerca do amor de Pedro

para com Jesus em Jo 21,15-19 se emprega cinco vezes. Tilborg comenta ainda que filevw aparece duas vezes

junto ao termo avgapavw e que, em última instância, os termos são sinônimos. Cf. TILBORG, Comentário, p. 411.

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9 ouvde,pw ga.r h;|deisan th.n grafh.n o[ti dei/ auvto.n evk nekrw/n avnasth/naiÅ 10 avph/lqon ou=n pa,lin pro.j auvtou.j oi maqhtai,Å

Escritura segundo a qual Jesus devia ressurgir dentre

os mortos. 10

Depois disso os discípulos voltaram para casa.

Nestes versículos não aparece uma única frase que indique “diálogo”. Isso aponta

para a ausência de “discussão”. Os dois discípulos têm a mesma reação diante da informação

que Maria Madalena lhes dá. Lc 24,24 traz a lembrança de que alguns discípulos, avisados

pelas mulheres, tinham ido ao túmulo e constatado a ausência do corpo de Jesus. Lc 24,12 diz

respeito apenas a Pedro. A semelhança entre os textos de Lucas (cf. 24,24 e 24,12) e o texto

de João (cf. 20,3-10) se justificaria pela existência de uma tradição comum, acolhida por

ambos os evangelistas.

A expressão e;trecon de. oi du,o o`mou/ – os dois correm juntos – mostra adesão a

Jesus e interesse pelo ocorrido23

. No caminho, delineia-se a diferença entre Simão Pedro e o

outro discípulo que Jesus amava – “...mas o outro discípulo correu mais depressa do que

Pedro e chegou primeiro ao túmulo” (Jo 20,4). O discípulo que Jesus amava chega primeiro

(prw/toj). Quer saber o que aconteceu, mas não entra: deixa a Pedro a precedência. “Ele se

inclina (paraku,yaj) e vê (ble,pei) as faixas deitadas (kei,mena ta. ovqo,nia) ali. Todavia, não

entrou” (20,5). Ele só entrará no túmulo depois que Pedro tiver entrado. De fora examina o

que pode ser visto. E, ao ver as faixas deitadas, distingue o sinal da vida, mas não o

compreende. O verbo grego ble,pei (vê) mostra uma visão ainda muito distante da fé. É a

visão que Maria Madalena teve quando chegou ao túmulo em meio à escuridão. Chega

também Simão Pedro, que entra no túmulo e observa toda a organização das indumentárias

mortuárias postas ali. O verbo grego qewrei/ evidencia uma silenciosa contemplação de tudo o

que se apresenta. “As faixas ali deitadas (kei,mena) e o pano que cobrira a cabeça (to.

souda,rion), não posto com as faixas, mas enrolado à parte, em outro lugar” (vv. 6-7). A

reação de Pedro é de um silêncio profundo. Não diz nada. O evangelista não informa nada a

respeito da reação de Pedro. Sua atenção é permanente. Ele deixa penetrar no seu pensamento

o vazio daquele túmulo numa atitude de quem espera alguma coisa. Procura entender o que ali

23

Maggioni percebe na narração um interesse apologético, que contudo não é o interesse principal. Des-

membrando a narração de Maria no sepulcro e inserindo nela, como vimos, a corrida dos discípulos, o

evangelista quer atribuir um papel primário ao testemunho de Pedro e do outro discípulo: o testemunho da

ressurreição não se apóia por primeiro lugar na visão de uma mulher (que no mundo judaico não teria tido muito

valor), mas na constatação dos dois discípulos. Estes constataram que as faixas e o sudário nos quais tinha sido

envolvido o corpo de Jesus não tinham sido jogados no chão de um jeito qualquer, mas dobrados com ordem:

indício que já de per si parece contradizer a calúnia de uma transferência fraudulenta do cadáver. Cf.

MAGGIONI, O Evangelho de João, p. 480.

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aconteceu24. Pedro contempla e reconhece, portanto, os objetos que tem diante de si. Mas, sua

constatação é de um túmulo vazio.

Na narrativa da ressurreição, João se interessa por salientar o testemunho do túmulo

vazio. Não só as mulheres, mas também Pedro e o Discípulo Amado podem atestar o

fato, e não só isto, mas podem também testemunhar a posição em que foram achados

os panos usados no sepultamento (Jo 20,2-10). Isto pode ter valor apologético, mas

não procede da teologia especificamente joanina25

.

E ainda sem acreditar no que aconteceu ali, Pedro presencia naquela ausência uma

outra presença, uma presença nova e diferente. O seu “ver” com disponibilidade deixa aberta

a possibilidade de uma esperança.

Os panos da sepultura que amalgamavam o corpo do crucificado significam que

Cristo foi liberado dos laços da morte como anunciavam os salmistas em seus cantos de ação

de graças: “Os laços da morte me aprisionaram, as torrentes de Belial me surpreenderam. Os

laços do Sheol me cercaram, e as armadilhas da morte estavam armadas para mim. Ele me

libertou, pôs-me a salvo; ele me livrou, porque me ama” (cf. Sl 18,5-6.20; 116,3-6)26

. O pano

que cobrira a cabeça, enrolado e posto em outro lugar (eivj e[na to,pon), já não esconde o rosto

glorioso de Cristo. O sudário, símbolo da morte, cobre não o rosto do Nazareno, mas a

instituição judaica: sobre ela pesa a morte de Jesus. “Jesus respondeu aos judeus: „Destruí este

templo, e em três dias eu o reerguerei‟. Então os judeus lhe disseram: „Foram necessários

quarenta e seis anos para construir este templo e tu o reerguerias em três dias?‟, mas ele falava

do templo de seu corpo” (Jo 2,19-21). Eles eliminaram o santuário (o corpo de Jesus) e Jesus

foi reerguido (ressuscitado) dentre os mortos. A morte se afastou dele para sempre.

O discípulo amado, que havia chegado primeiro, entrou no túmulo, viu e creu. Ele

só entrou depois que Pedro chegou e entrou no túmulo. Ao repetir a expressão o` a;lloj

maqhth.j o` evlqw.n prw/toj – aquele que tinha chegado primeiro –, João frisa que o discípulo

quis esperar para que Pedro entrasse primeiro. Segundo Mateos e Barreto,

cedendo a precedência a Pedro, o discípulo amado demonstra-lhe sua deferência e

seu amor, a que o leva estar sintonizado com Jesus. Depois das negações de Pedro

no átrio do sumo sacerdote (Jo 18,15-17.25), é o gesto de aceitação e reconciliação.

Tendo seguido a Jesus disposto a morrer com ele (18,15-16), não afirma sua

superioridade diante daquele que o negou, mas, pelo contrário, deixa-o entrar antes

para que expresse primeiro o seu amor a Jesus. Da vez anterior, ele o conduzira

(18,16); agora precisa aproximar-se de Jesus sem intermediários27

.

24

Cf. WEIL; Simone. Attente de Dieu. La Colombe, 1950. p. 119. Apud LEON-DUFOUR, Leitura, p. 148. 25

Cf. DODD, A interpretação, p. 551-552. 26

O salmista põe em evidencia a força da presença de Deus, que vence o poder da morte. Cf. LÉON-DUFOUR,

Leitura, p. 149-152. 27

MATEOS; BARRETO, O Evangelho, p.839.

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Atitude parecida teve Maria Madalena que, ao ver o túmulo aberto e sem o corpo

de Jesus, correu para avisar os discípulos. O discípulo amado poderá ser testemunha da

ressurreição como foi da morte e do amor de Jesus (cf. 19,35). “Ele viu e creu” – ei=den kai.

evpi,steusen28. No vazio do túmulo, o discípulo compreende que Cristo venceu a morte. Ele vê

os mesmos sinais que Pedro vira. É uma visão penetrante pela qual ele vê o inicio da fé, uma

fé que abraça toda a vida e que certamente, como demonstra o versículo seguinte, tem como

objeto primeiro a ressurreição de Jesus. Mas o evangelista mostra que eles ainda não tinham

compreendido a Escritura segundo a qual Jesus devia ressurgir dos mortos (v. 9) 29

.

O emprego absoluto do verbo (crer) sugere, antes de tudo, a aceitação calma e

serena de um mistério em parte, ainda inexplicável, com plena confiança no amor

divino. O tríplice sinal da remoção da pedra, do sepulcro vazio e dos linhos

acuradamente dobrados, indicava alguma coisa cujo significado devia ser mostrado

mais plenamente, e o apóstolo, com uma esperança confiante, aguardava esta

interpretação30

.

Ora, o v. 10 conclui que Pedro e o Discípulo que Jesus amava voltaram para a

casa sem nenhuma preocupação aparente. Esta conclusão confirma a impressão que já produz

o v. 9, de que originariamente não se lia nada acerca da fé31

. Podia esta ida ao túmulo ficar

sem nenhum eco nem eficácia? Não devia chegar a notícia até os outros discípulos?

Provavelmente, a necessidade de ter que ver para crer explica que ainda não tinham

compreendido a Escritura. A fé está ainda no início, porque o discípulo está preso ao não-

saber (não tinha ainda compreendido), que o deixa muito lento e despreparado para o

acontecimento32

. A necessidade de compreender a Escritura se fundamenta no fato de que a

ressurreição foi querida por Deus. A Escritura, com efeito, é um indicativo dos planos de

Deus. João assinala essa incapacidade do discípulo diante do evento da ressurreição, quando

Maria Madalena informa aos discípulos: “...não sabemos onde o colocaram” (v. 2) e narra que

Pedro e o outro discípulo “não tinham compreendido ainda a Escritura” (v. 9).

28

LÉON-DUFOUR, Leitura, p. 152: “A continuação do relato não explicita se o discípulo repartiu sua certeza.

Por isso, desde Agostinho, propõe-se uma leitura diferente: ele teria simplesmente se convencido de que Maria

de Magdala falara a verdade. Segundo Léon-dufour, tal leitura é praticamente inconcebível em João. Vai de

encontro ao sentido global do relato, no qual a hipótese do roubo do cadáver foi eliminada; e de encontro ao uso

absoluto (sem complemento) do verbo pisteuein, que quase sempre tem um sentido intenso. A ausência de

qualquer referência nas narrativas seguintes mostra, antes, a relativa autonomia dos relatos pascais de João, cada

qual constituindo uma unidade”. 29

Para Bultmann, este versículo é apenas uma glosa. Cf. BULTMANN, The Gospel, p. 685. 30

Cf. WESTCOTT, B. F. The gospel According to St John. Grand Rapids, 1980. v. 2, p. 340. Apud SANTOS,

Bento Silva. Teologia do Evangelho de São João. Aparecida: Santuário, 1994. p. 330). 31

SCHNACKENBURG, El evangelio, p. 387. 32

Segundo Mollat, “este estado inicial de despreparação e como que de cegueira nas primeiras testemunhas da

ressurreição é fundamental (...) Esta despreparação radical não se faz senão colocar melhor em relevo a realidade

da intervenção divina e seu aspecto de ato criador. A fé pascal foi para os discípulos de Jesus como um

despertar” (MOLLAT, D. La foi pascale selon lê chapitre 20 de l’ Évangile de Jean. In: Études johanniques.

Paris, 1979. p.168-169. Apud SANTOS, Teologia, p. 329).

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A compreensão que eles têm da Escritura não precede, mas segue a certeza da

passagem de Jesus à glória. De fato, historicamente, a Igreja primitiva fez primeiro a

experiência do Ressuscitado e só depois esclareceu sua fé pela releitura das

Escrituras. Assim, segundo o relato lucano da aparição aos discípulos reunidos, o

Ressuscitado, fazendo-se reconhecer, é quem lembra aos seus os prenúncios na lei,

nos profetas e nos Salmos (Lc 24,44-45; cf. 24,25-27)33

.

João mostra que, depois de terem visto o túmulo vazio, os discípulos voltaram

para casa sem nenhuma discussão sobre o que poderia ter ocorrido ali (v. 10). A impressão

que se tem é que, ao voltarem para casa, os discípulos encerram sua busca de Jesus. Por outro

lado, Maria Madalena assume o lugar na narração. O afastamento dos dois discípulos do

túmulo abre espaço para o encontro de Maria Madalena com o Senhor. Os discípulos, que se

encontravam dispersos quando Maria Madalena lhes informou o acontecido, continuarão

dispersos até que Jesus faça chegar a eles a sua mensagem (cf. Jo 20,18). Por isso não

anunciaram o acontecido. Apenas constataram a ausência de Jesus. Para testemunhar que

Jesus está vivo, é preciso fazer a experiência de sua presença.

3.3. Maria Madalena permanece junto ao túmulo

Enquanto os dois discípulos retornam para sua casa, Maria Madalena, que ficara

fora, perto do túmulo, chorava por não ter encontrado o corpo de Jesus. Ela não sacia seu

desejo de encontrar o corpo, que poderia aliviar seu pranto. Tem no coração a certeza de

poder encontrá-lo a qualquer custo. João evidencia o progresso decisivo e comprometedor da

fé pascal. Dos sinais da ausência de Jesus, a narrativa passa à presença do próprio Senhor

ressuscitado, marcando a transformação profunda de Maria Madalena no seu modo de ver

Jesus. Isto quer dizer que sua visão de outrora acerca do Jesus terrestre deve dar lugar a uma

visão de fé que percebe no homem-Jesus, o Senhor glorioso.

3.3.1. Maria vê os anjos e fala com eles – Jo 20,11-13

Maria Madalena continua sua procura pelo corpo de Jesus. Segundo a narração do

evangelista, os discípulos saem sem dizer uma só palavra. Maria Madalena quer uma resposta,

mas não encontra ninguém para lhe dizer o que aconteceu. E, em seu caminho, não tem

descanso. Ela vai ao encontro da verdadeira fé. João evidencia que, para se chegar à fé, é

necessário perseverar. Quem procura encontra.

33

LÉON-DUFOUR, Leitura, p. 153.

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11 Mari,a de. ei`sth,kei pro.j tw/| mnhmei,w| e;xw klai,ousaÅ w`j ou=n e;klaien( pare,kuyen eivj to. mnhmei/on

12 kai. qewrei/ du,o avgge,louj evn leukoi/j kaqezome,nouj( e[na pro.j th/| kefalh/| kai. e[na pro.j toi/j posi,n( o[pou e;keito to. sw/ma tou/ VIhsou/Å 13 kai. le,gousin auvth/| evkei/noi\ gu,nai( ti, klai,eijÈ le,gei auvtoi/j o[ti h=ran to.n ku,rio,n mou( kai. ouvk oi=da pou/ e;qhkan auvto,nÅ

11Maria ficara fora, perto do túmulo, e chorava.

Chorando, ela se inclinou para o túmulo 12

e viu dois

anjos vestidos de branco, sentados no mesmo lugar

onde o corpo de Jesus fora depositado, um à cabeceira

e outro aos pés. 13

“Mulher, disseram-lhe, por que choras?”. Ela lhes

respondeu: “Tiraram o meu Senhor e eu não sei aonde

o puseram”.

Maria Madalena permanece ali, junto ao túmulo chorando (v. 11a). Até esse

momento, não consegue sequer pensar que Jesus pudesse ter ressuscitado. Para ela, era

inconcebível que seu Mestre pudesse estar vivo. A tristeza dos discípulos por causa da morte

de Jesus havia sido anunciada previamente por ele, mas ele lhes assegurara que seria uma

tristeza breve e que se transformaria em grande alegria (cf. Jo 16,16-23). Maria Madalena

parece não ter presente estas palavras do Mestre e, por isso, não se consola em sua dor.

Reclusa na sua tristeza, segue supondo que Jesus, o seu Senhor, foi tirado do túmulo pelos

não-discípulos. O verbo eisth,kei – estava – é o mesmo verbo empregado pelo evangelista,

quando fala daqueles que estavam (ei`sth,keisan) perto da cruz de Jesus. E Madalena então

chorava (klai,ousa) do lado de fora do túmulo, um derradeiro tributo proporcionado por uma

situação humana sofrida e vulnerável diante da aparente inelutabilidade da morte. O pranto de

Maria Madalena é sinal do sentimento de impotência da criatura. Mas a obra de Deus já está

em ato, mesmo se nada ainda parece dar sinal dela. “Pedro e João, não encontrando mais o

divino corpo, retiram-se; Madalena permanece firme e perseverante. Olha de tempos em

tempos o túmulo, com medo de que seus olhos a tenham enganado, e continua procurando

aquele pelo qual seu coração suspirava”34

.

E, “chorando, ela se inclinou para o túmulo” (pare,kuyen eivj to. mnhmei/on) para

examinar, para observar atentamente o que estava lá dentro. Não desiste de sua ansiosa

procura. Em meio à sua dor, o olhar permanece fixo dentro do túmulo. Foi então que ela “viu

dois anjos vestidos de branco, sentados no mesmo lugar onde o corpo de Jesus fora

depositado, um à cabeceira e o outro aos pés” (v. 12). O verbo qewrei/ – viu –, que já tinha

aparecido no v. 6 com respeito ao discípulo que Jesus amava, evidencia que, naquele

momento, enxergou aquilo que, quando chegou, não havia ainda se lhe manifestado: os dois

anjos vestidos de branco. A determinação do lugar e da posição em que se encontravam os

anjos, sentados onde estava o corpo de Jesus, um do lado da cabeça e o outro do lado dos pés,

tornam claro o significado do túmulo vazio. Determinam simbolicamente a corporeidade

34

RILKE, O amor de Madalena, p. 30.

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ausente do Senhor. Os anjos exprimem a corporeidade transfigurada do Ressuscitado. Aqui os

anjos são principalmente sinal; não anunciam, a não ser com a presença.

Maria Madalena, mesmo vendo os anjos no lugar onde o corpo havia sido

depositado, não consegue captar o sinal da não-corporeidade do Ressuscitado que querem lhe

indicar. Sua preocupação é outra: ela quer saber o lugar onde haviam colocado o corpo do seu

Senhor. Por isso, diante de pergunta dos anjos: “Mulher, por que choras?”, sua resposta é:

“Tiraram o meu Senhor e eu não sei onde o puseram”. A presença deles não consegue ainda

falar a Maria Madalena, porque seu coração ainda não está inteiramente preparado para ler

este tipo de sinal. Maria Madalena responde às palavras dos anjos como às palavras de

qualquer outro, inteiramente tomada por seu pensamento dominante.

A descrição dos anjos no v. 12 é, para o leitor, mas não para Maria, uma parada

contemplativa, para evitar o perigo de ver no Ressuscitado um sobrevivente deste

mundo. Os anjos aparecem em Jo somente em relação com a pessoa augusta de

Jesus: no “prólogo histórico” se diz que eles sobem e descem sobre o Filho do

Homem (1,51); em 12,29, a multidão que assiste à cena dos gregos interpreta a voz

do céu como a de um anjo que lhe falou. Aqui, os anjos formam a guarda de honra

do lugar, no qual terminou sua trajetória terrestre. Sua função não é mediar a

mensagem pascal – isso é reservado, em Jo, à Cristofania –, mas marcar o lugar

exato onde tinha repousado o corpo santíssimo. Estão colocados como os dois

querubins que se confrontam de cada lado do propiciatório acima da Arca da

Aliança, o lugar de onde YHWH falava a seu povo35

.

A afinidade misteriosa entre os anjos e Jesus é marcada pela pergunta: gu,nai( ti,

klai,eijÈ – “Mulher, por que choras?”. É a mesma pergunta que Jesus fará a Maria Madalena

quando se lhe manifestar. E, ainda assim, Maria Madalena não consegue perceber o que a

presença daqueles anjos lhe fala. Seu coração ainda não está totalmente preparado para ler

esta espécie de sinal. Maria vê os anjos e não tem nenhuma reação.

A pergunta dos anjos não tem como objetivo indagar o motivo do choro. Quer

insinuar misteriosamente, em um nível superior, espiritual, que aquele choro não tem razão de

ser.

3.3.2. Maria vê Jesus, mas não o reconhece – Jo 20,14-15

A expressão de Maria Madalena é de desesperança e angústia diante do nada que

viu no túmulo. Nem os anjos a acordaram daquele sono humano, que não a permitia ver e

acreditar na tamanha grandeza daquele acontecimento. Seu olhar é para o vazio de um lugar

que não permite ver a vida. E esse lugar não é o lugar próprio de Jesus. Maria Madalena não

35

LÉON-DUFOUR, Leitura, p. 156-157.

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poderá encontrar Jesus no túmulo. Ele está vivo; deixou o túmulo. É inútil buscá-lo entre os

mortos e querer achar o seu cadáver.

14 tau/ta eivpou/sa evstra,fh eivj ta. ovpi,sw kai. qewrei/ to.n VIhsou/n estw/ta kai. ouvk h;|dei o[ti VIhsou/j evstinÅ 15 le,gei auvth/| VIhsou/j\ gu,nai( ti, klai,eijÈ ti,na zhtei/jÈ evkei,nh dokou/sa o[ti o khpouro,j evstin le,gei auvtw/|\ ku,rie( eiv su. evba,stasaj auvto,n( eivpe, moi pou/ e;qhkaj auvto,n( kavgw. auvto.n avrw/Å

14Enquanto falava, ela se voltou e viu Jesus que

estava ali, mas não sabia que era ele. 15

Jesus lhe disse: “Mulher, por que choras? Quem

procuras?” Mas ela, pensando que se tratava do

jardineiro, disse-lhe: “Senhor, se foste tu que o tiraste,

dize-me onde o puseste, e eu o levarei”.

Com seu pensamento, sua fala aos anjos e seu olhar para o vazio do túmulo não é

possível reconhecer Jesus. Por isso, “enquanto falava, ela se voltou e viu Jesus que estava ali,

mas não sabia que era ele” (v. 14). Mas Maria não desiste e persiste na sua procura. Continua

ali buscando entender o que tinha acontecido. Os outros dois discípulos, Pedro e o Discípulo

que Jesus amava, não tiveram a mesma perseverança e, certamente, aguardavam o desenrolar

dos fatos em suas casas. Maria Madalena é conduzida à fé a partir de sua profunda ignorância:

uma fé ainda mais explícita e definida que a do discípulo amado. Depois de ter visto os dois

anjos e de ter-lhes falado, ao se voltar, viu Jesus ali. Acontece uma mudança de visão por

completo, pois saem de cena os anjos e entra o próprio Jesus, que Maria Madalena vê como

um estranho (jardineiro). Segundo Sebastiani,

alguns comentaristas antigos enxergavam um sentido teológico também no gesto de

“virar-se para trás”: somente após ter virado as costas ao sepulcro, que simboliza a

morte – uma morte já derrotada, mas ainda repleta de violência e de contradição –, é

possível fazer a experiência do vivente. Uma intenção teológica, certamente se acha

no fato de relevar que Jesus “estava de pé”. É a postura da autoridade e da

glorificação. Aqui há um dos fatos mais enigmáticos desta narração de João: Maria

vê Jesus, mas não o reconhece36

.

O olhar de Maria Madalena ainda não lhe deu a faculdade de compreensão plena

de que aquele homem que esta ali era o próprio Jesus. Maria Madalena estava diante de Jesus

e não conseguia reconhecer seu Mestre, seu Senhor. Para ela, a única coisa certa era o fato da

morte. Parecia impossível conceber que o evento da morte de Jesus pudesse ter outro desfecho

que não o corpo inerte no túmulo. Maria Madalena estava procurando um morto. Suas

expectativas eram todas orientadas para um corpo morto37

.

Com a mesma pergunta que os anjos lhe fizeram – “Mulher, por que choras?”

36

SEBASTIANI, Maria Madalena, p. 219. 37

Segundo Léon-Dufour, a peripécia do não-reconhecimento imediato do Ressuscitado caracteriza outros relatos

pascais: Jesus aparece “sob outra forma” (Mc 16,12), não se sabe que é ele. Esse traço não é um meio narrativo

para dramatizar o encontro; ele traduz como pode a alteridade que a fé reconhece ao Senhor que volta da morte.

Se os relatos sublinham a continuidade com Jesus de Nazaré, deixam entrever também que aquele que se torna

presente é totalmente diferente de um homem deste mundo: não é acessível e, contudo, bem próximo, ele mesmo

tem de se revelar. Cf. LÉON-DUFOUR, Leitura, p. 157.

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acrescentado de – “Quem procuras?”, Jesus atrai a mulher ainda ignara para uma

compreensão mais profunda do mistério (v. 15). É como se, ao dizer “Por que

choras? Por quem procuras?”, veladamente Jesus fizesse brotar no íntimo de Maria

Madalena uma pergunta diferente: Não compreendes que não deves chorar, pois

aquela que te pareceu a vitória da morte era a derrota da morte? Tu sabes a quem é

que verdadeiramente procuras, enquanto pensas de procurar apenas o seu cadáver?38

Contudo, o coração de Maria está ainda cego, incapaz de reconhecer o Senhor.

Maria quer saber onde foi posto aquele que não encontra no túmulo. Troca Jesus pelo

jardineiro (“...pensando que se tratava do jardineiro,...”), e diz a ele: “Senhor, se foste tu que o

tiraste, dize-me onde o puseste, e eu o levarei” (v. 15).

Ao não reconhecer Jesus, sua presença no horto a faz pensar que é o hortelão ou

jardineiro. Com essa palavra, João reintroduz o tema do horto-jardim, voltando ao

linguajar do Cântico (19,41a). Prepara-se o encontro da esposa com o esposo. Maria

ainda não o reconhece, mas já está presente o primeiro casal do mundo novo, o

começo da nova humanidade. Assim, como os anjos, a chamou “Mulher” (esposa).

Ela, expressando, sem o saber, a realidade de Jesus, chama-o “Senhor” (esposo,

marido)39

.

Maria Madalena é fiel a seu mestre até o momento da morte. Não se conforma

com a morte de Jesus e, por isso, busca-o incessantemente. Apenas esta busca constante torna

possível compreender ou viver a experiência da ressurreição. Somente é possível reconhecer o

ressuscitado quando se tem de antemão uma relação íntima e afetiva com Jesus e com seu

projeto de vida.

Segundo Faria, para entender Maria Madalena como discípula amada de Jesus,

basta redimensionar o nosso modo de entender a relação entre Maria Madalena e

Jesus. Basta compreender que Maria Madalena é a expressão de todo o ser humano

que procura por Deus. Ela é igual a tantas outras Marias que vivem a alegria e o

sofrimento, a ternura e o vigor do eterno procurar e encontrar o amado. Ela é o

paradigma de todo o ser humano que busca o transcendente com a determinação de

encontrá-lo e a certeza que ele já está dentro de cada um de nós40

.

Estas perguntas de Jesus, “Mulher, por que choras? Quem procuras?”41

, são um

convite à purificação da fé: Maria Madalena ainda está muito motivada por interesses

terrenos. Sua preocupação não deve ser com o lugar onde colocaram o corpo de Jesus terreno.

Antes de tudo deve procurar o Cristo, o Senhor ressuscitado. Ao invés de estar preocupada em

encontrar o Senhor para si, sua procura deve se transformar em um movimento de fé para ele.

38

SEBASTIANI, Maria Madalena, p. 220. 39

MATEOS; BARRETO, O Evangelho, p. 847. 40

FARIA, Jacir de Freitas. Maria Madalena, a mulher que Jesus tanto amou! Convergência, São Paulo, v. 246,

out. 2001, p. 511, 2001. 41

Segundo Schnackenburg, esta segunda pergunta descobre o fundo histórico-tradicional: a cena dos anjos nos

relatos sinóticos do túmulo. Ainda que cada um deles a descreva de modo distinto, o motivo da busca se mantém

constante. Cf. SCHNACKENBURG, Rudolf. El evangelio según San Juan. Barcelona: Herder, 1980. v. 3, p.

390.

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Se ela o confunde com o jardineiro, certamente se deve ao fato de que lhe faltava ainda o

olhar da fé. Jesus está comovido pelo pranto de Maria Madalena. Ele já sabe o que a move.

Portanto, Jesus, que está com o Pai, está também diante de Maria e se manifestará àquela que

o procurava inutilmente entre os mortos.

3.4. Jesus fala com Madalena e lhe dá uma missão – Jo 20,16-17

Jesus chama Maria Madalena pelo seu nome. É nesse instante que ela reconhece

Jesus. A experiência da ressurreição é possível nesse diálogo afetivo, nessa relação pessoal,

íntima e afetiva. Jesus conhece pelo nome suas ovelhas e suas ovelhas conhecem a sua voz

(cf. Jo 10,3-4.14). Ainda que não o tenha reconhecido pela vista, Maria Madalena o reconhece

pela voz, ao ser chamada pelo nome.

16 le,gei auvth/| VIhsou/j\ Maria,mÅ strafei/sa evkei,nh le,gei auvtw/|~Ebrai?sti,\rabbouni ¿o] le,getai dida,skaleÀÅ 17 le,gei auvth/| VIhsou/j\ mh, mou a[ptou( ou;pw ga.r avnabe,bhka pro.j to.n pate,ra\ poreu,ou de. pro.j tou.j avdelfou,j mou kai. eivpe. auvtoi/j\ avnabai,nw pro.j to.n pate,ra mou kai. pate,ra umw/n kai. qeo,n mou kai. qeo.n umw/nÅ

16Jesus lhe disse: “Mariâm”. Ela se voltou e lhe disse

em hebraico: “Rabuni”, o que significa mestre. 17

Jesus lhe disse: “Não me retenhas! Pois eu ainda

não subi para o meu Pai. Mas tu, vai ter com os meus

irmãos e dize-lhes que eu subo para o meu Pai, que é

vosso Pai, para o meu Deus, que é o vosso Deus”.

A entonação com que Jesus pronuncia o nome de Maria e a voz querida, tantas

vezes acolhida antes de ele morrer, revelam quem está chamando. Não há mais dúvidas para

Maria Madalena de que ela está diante de Jesus, vivo e verdadeiro. “O som da voz e o nome

são estados e os primeiros meios de reconhecimento; e, portanto, o escutar é o estado

primeiro, entre os sentidos humanos, a certificar a identidade do Ressuscitado”42

. Jesus não a

chama mais de “mulher”, como no v. 15; chama-a pelo nome: “Mariâm”, atingindo o mais

profundo de seu ser. A familiaridade de Jesus com esta mulher discípula, a proximidade e a

relação estreita em amizade e missão mostram que não há revelação do ser de Deus a não ser

no amor e na amizade. Maria Madalena cessa seu choro e seu pranto. Ao escutar seu nome

pronunciado por Jesus, Maria Madalena se volta imediatamente para ele, tomada de alegria, e

exclama: “Rabuni” (meu Senhor, meu Mestre). Ela se voltou (strafei/sa) sem nenhum tipo de

dúvida, pois só Jesus a chamava assim. Responde com uma exclamação, um tratamento que

se dava deste mesmo modo ao Jesus terrestre: “Rabuni”, que significa meu mestre.

Rabuni (em arameu “meu mestre”) não é em efeito se não o tratamento habitual de

Rabi, só que reforçado e em tom quase exclusivo, e tão pouco o evangelista o traduz

diversamente do grego (cf. 1,39). A simples estrutura “narrativa” desta cena de

42

NOLLI, Gianfranco. Evangelo secondo Giovanni. Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, 1986. p. 725.

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reconhecimento envolve toda uma teologia que expressa a fé na ressurreição de

Jesus, o encontro do crente com o ressuscitado43

.

É pela fé que se tem a certeza absoluta de que Jesus Cristo está presente,

ressuscitado, vivo e vivente em nossas vidas. O sofrimento e a dor de Maria Madalena são

superados pela certeza de que Jesus, o Senhor, está presente. Como discípula, Maria

Madalena experimenta a ressurreição de Jesus.

O reconhecimento, o final da procura de Maria Madalena pelo seu Senhor, é

indicado pelo intercâmbio de nomes, “Mariâm” e “Rabuni” em hebreu, o que produz um tom

de realismo. Maria Madalena é a primeira entre os discípulos a quem Jesus se dirige. Ela, que

sob a cruz fora testemunha dos sofrimentos e da morte dele, é agora a primeira a experimentar

que a comunhão de Jesus com seus discípulos não chegou ao fim. Experiência que é também

o resultado de uma pedagogia do diálogo. Segundo Archilla, para viver a ressurreição, é

preciso estar a caminho, numa procura que envolve todo o ser, os sentimentos e os

pensamentos44

. Em outras palavras, só é possível viver a ressurreição se houver abertura do

ser humano a uma nova sensibilidade que lhe permita afirmar com radicalidade o valor da

vida.

Estevez afirma que, do discípulo amado, é dito que “viu e creu” (Jo 20,8). É

testemunha do acontecimento da ressurreição. Mas Maria Madalena é testemunha da pessoa

do Ressuscitado (Jo 20,16). Por isso pode anunciá-lo e encorajar deste modo a comunidade

que estava de portas fechadas por medo dos judeus (cf. Jo 20,19)45

. Nada nem ninguém

poderá deter Maria Madalena nesta missão que Jesus lhe confia, assim como aconteceu com a

samaritana ao encontrar-se com o Messias (cf. Jo 4,28-30).

Maria Madalena expõe toda a sua alegria por ter encontrado o Senhor, que não

sabia onde estava (vv. 2.13). Mas sua exclamação não é ainda a expressão autêntica da fé

pascal, pois ela conhece apenas o Jesus terrestre como seu Senhor, aquele a quem havia se

submetido totalmente ao longo de seu ministério na Galiléia. Sua visão está ainda na ótica de

antes da morte e ressurreição de Jesus. O gesto daquele que ama quando encontra o ser amado

é o gesto do abraço, do beijo. E na tecedura destes gestos está o desejo de Maria Madalena de

retê-lo para si, de não deixá-lo nunca mais. O gesto implícito de Maria Madalena com

referência a Jesus corresponde a Ct 3,4: “Mal os tenho passado, encontro aquele que eu amo.

43

SCHNACKENBURG, El evangelio, p. 392. 44

Cf. ARCHILLA, Francisco Reyes. La resurrección como clave teológica en el cuarto evangelio – “Y Jesús le

dijo, Maria!”. Utopias, Bogotá, n. 22, p. 19, mar 1995. 45

Cf. ESTEVEZ, A mulher, p. 71.

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Seguro-o e não o largo, até tê-lo introduzido na casa da minha mãe, no quarto da que me

concebeu”. Por isso Jesus lhe disse: “Não me retenhas, pois eu ainda não subi para o meu Pai”

(v. 17a).

Num gesto de adoração abraçava os pés, como as santas mulheres segundo Mt 28,9.

A recusa dirigida a Maria não significa vontade de separação, mas é motivada pela

missão que deve cumprir junto aos discípulos. Segundo a estrutura tripartite das

narrativas de aparição, o encontro desemboca numa missão: Maria tem de ouvir que,

para ir levar a mensagem aos discípulos, ela não o pode manter abraçado, mesmo

que ainda esteja aqui na terra: “Vai aos meus irmãos!”46

A expressão ou;pw ga.r avnabe,bhka – “Ainda não subi” – evidencia a origem de

Jesus (cf. Jo 3,13 – “...o que desceu do céu...”) e sua pertença (cf. Jo 8,23 – “...eu, porém, sou

do alto”). Essas expressões indicam a diferença qualitativa entre a esfera de Deus – a do

Espírito, que existe dentro da história, mas que deverá ainda chegar à sua realização total – e a

do mundo, submetido ao mal e à injustiça (cf. Jo 8,23 – o que é daqui de baixo). A

manifestação de Jesus ressuscitado se dá na perspectiva “daqui de baixo”, mas não para

inscrever-se novamente nesta perspectiva, e sim para mostrar que é plenamente “do alto”. Por

isso Jesus disse a Maria Madalena: “Não me retenhas!”, pois não podia ser retido. João chama

as comunidades cristãs, formadas por homens e mulheres, à realidade. É preciso continuar a

missão de Jesus, cujo êxito é garantido pelo Espírito que recebem, realizando as obras daquele

que o enviou (cf. Jo 9,4), sinalizando até o final o amor de Deus pela humanidade (cf. Jo

17,22-24).

Jesus interrompe o desejo de Maria Madalena de retê-lo para si, para enviá-la com

um anúncio para os discípulos, aos quais, pela primeira vez, chama de “os meus irmãos”.

“Mas tu, vai ter com os meus irmãos e dize-lhes que eu subo para o meu Pai, que é vosso Pai,

para o meu Deus, que é vosso Deus” (v. 17bc). Jesus se deixa encontrar por Maria Madalena e

lhe dá a conhecer o significado pleno de sua glorificação e filiação divina, assim como

também o das novas relações fraternas inauguradas em sua pessoa47

. Se Jesus chama os

discípulos de “os meus irmãos”, aos quais envia Maria Madalena, é porque também quer

colocá-los em uma nova e especial relação com seu próprio Pai. Maria Madalena recebe uma

ordem que deve mudar sua ação e atitude por completo. O termo poreu,ou mostra que deve se

pôr a caminho para anunciar Jesus ressuscitado aos discípulos. Sua ação não pode ser de

retenção, mas de anúncio que evidencia a presença do Ressuscitado no meio da comunidade.

Maria tem de ir aos irmãos e irmãs para dizer-lhes que Jesus selou um pacto com Deus, que

46

LÉON-DUFOUR, Leitura, p. 161. 47

Cf. ESTEVEZ, A mulher, p. 71.

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permanece eternamente.

A mensagem da qual Maria Madalena é portadora e que é destinada aos irmãos

(avdelfou,j) é muito clara e objetiva: “...dize-lhes que eu subo para o meu Pai, que é vosso Pai,

para o meu Deus, que é vosso Deus” (v. 17c). João mostra que a comunidade tem Jesus por

irmão, que os atrai ao Pai, Deus de todos. O Pai recebe como filhos e filhas os que crêem em

Jesus, seu Filho.

Este v. 17c proclama um texto de aliança. Recorda as promessas que Deus fez a seu

povo: “Eles serão o meu povo e eu serei o seu Deus”; também a resposta de Rute à

sua sogra que não quer que Rute vá à terra de Judá: “Para onde tu fores, eu vou;

onde tu morares, eu morarei. Teu povo é meu povo; teu Deus é meu Deus”(Rt 1,16).

Jesus, em nome de seus discípulos, faz um acordo com Deus, o Pai, que perdura para

além de sua morte e para além da narração da história48

.

O verbo subo (avnabai,nw) evidencia uma ação que ainda está no início referindo-se

à exaltação na esfera celeste, atuante desde a morte de Jesus. É pela exaltação junto do Pai

que foi obtida a filiação divina dos homens. Segundo o desígnio de Deus, Jesus assume a

nossa humanidade para elevar até ele todas as pessoas. Trata-se da entrada de todos os que

crêem no amor, que desde sempre une o Pai e o Filho único: “Eu lhes dei a conhecer o teu

nome e darei a conhecer ainda mais, a fim de que o amor com que amaste esteja neles, e eu

neles” (Jo 17,26).

A ordem dada por Jesus a Maria Madalena é um convite a superar a experiência

do passado a fim de chegar a outro tipo de relacionamento que somente será viável após sua

subida ao Pai. É precisamente quando estiver junto do Pai que Jesus poderá comunicar o

Espírito Santo, que tornará possível a sua nova relação ou presença na comunidade. “A

ressurreição é o sinal da plena comunhão dos irmãos com Jesus e com Deus, Pai de Jesus e

nosso Pai, porque Jesus recobrou a posse da „glória que ele possuía antes da criação do

mundo‟ (Jo 17,5)”49

.

3.5. Maria Madalena é enviada a anunciar aos discípulos - Jo 20,18

A ordem de Jesus impõe uma nova atitude a Maria Madalena. Assim,

compreende-se que as relações passadas com o Jesus terreno cessaram. De seu ver de outrora

(cf. Jo 20,1.14.15), Madalena passa a uma experiência pessoal na qual contempla o mistério

extraordinário de Jesus: “Eu vi o Senhor” (Jo 20,18). Sua visão não é mais uma visão

48

TILBORG, Comentário, p. 414. 49

KONINGS, Evangelho, p. 403.

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qualquer. Ela vê o Senhor ressuscitado porque seu amor vai além de uma experiência

meramente humana. Esta expressão “Eu vi o Senhor” evidencia a plenitude do itinerário de fé

de Maria Madalena. Ela está pronta e habilitada a proclamar o evangelho da páscoa aos

discípulos. Sem a revelação que vem do alto, não se chega a uma fé radicalmente renovada,

capaz de discernir, no homem-Jesus, o Senhor glorioso. O fato de ter visto Jesus ressuscitado

e ter sido enviada a proclamá-lo faz de Maria Madalena a evangelista da ressurreição.

18 e;rcetai Maria.m h` Magdalhnh. avgge,llousa toi/j maqhtai/j o[ti ew,raka to.n ku,rion( kai. tau/ta ei=pen auvth/|Å

18Maria de Mágdala veio, pois, anunciar aos

discípulos: “Eu vi o Senhor, e eis o que ele me disse”.

Maria Madalena dirige-se novamente aos discípulos, portando desta vez uma

mensagem de alegria. Vai comunicar aos outros o que tinha experimentado e as palavras de

Jesus. Crescida espiritualmente, Maria Madalena se torna uma grande “apóstola”. Por isso

deve ajudar os outros a crescerem, superando o medo e a desconfiança. O anúncio que levava

era vital para desfazer a dispersão na qual se encontravam os discípulos. Sem este anúncio, o

grupo de seguidores não poderia tornar-se uma comunidade.

A resposta de Maria Madalena ao mandato do Senhor dá-se na ordem da

totalidade. A expressão “veio anunciar” (e;rcetai avgge,llousa) exprime com força a estreita

ligação entre sua pronta obediência e seu anúncio. O verbo grego avgge,llw, empregado para

este anúncio, consagra determinantemente Maria Madalena em sua dignidade de apóstola.

Assim ela é, então, uma mensageira, um anjo de Deus em nome de Jesus50

.

Como resposta, Maria de Mágdala transmite prontamente aos discípulos a

mensagem de Jesus. Seu nome, anotado por inteiro (cf. 20,1) e seu movimento na

direção deles correspondem ao início do relato, marcando agora o encerramento.

Mas o anúncio é agora positivo, iniciando-se por “Eu vi o Senhor”, maneira joanina

de expressar o encontro com o vivente51

.

O verbo grego o`ra,w, em primeira pessoa (e`w,raka), exprime o sentido de ver-crer-

compreender, indicando bem o que mais importava a Maria Madalena: ter visto pessoalmente

o Senhor. Quando Maria Madalena foi chamada pelo nome por Jesus, a reação dela foi

imediata com a exclamação “meu Mestre” (Rabuni) (v. 16). Logo em seguida, no anúncio aos

discípulos, ela usa o termo ku,rioj, que faz alusão à glorificação pascal. A fala de Maria

Madalena no v. 2, “tiraram o Senhor do túmulo e não sabemos onde o puseram”, pertence

50

Cf. TILBORG, Comentário, p. 414. 51

LÉON-DUFOUR, Leitura, p. 162.

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ainda inteiramente ao krónos, ao tempo terrestre. Seu amor e sua aflição parecem ainda

inteiramente contidos no horizonte humano. Entretanto, no v. 18, Maria Madalena anuncia

aos discípulos: “Eu vi o Senhor” e conta tudo o que disse Jesus aos discípulos, evidenciando

sua pertença ao tempo da salvação.

3.6. Conclusão

No final desta análise, podem-se perceber alguns elementos essenciais para todo

discipulado. Primeiro, Maria Madalena, depois de ter estado aos pés da cruz junto às outras

mulheres e o discípulo que Jesus amava, não desistiu de sua caminhada com Deus. Não

entendendo que Jesus deveria ressuscitar dos mortos, vai procurá-lo no túmulo, ainda de

madrugada. Revela-se nela a coragem para suplantar o poder da morte. Ela não fugiu, mas

manteve-se ao lado de Jesus até o fim. Segundo, o seu amor pelo Senhor não a deixa longe de

sua fé, mesmo que ainda, não seja plena. Por isso segue numa intensa ação: “...vai ao túmulo e

vê...” (Jo 20,1); “Ela corre, vai ter com Simão Pedro e o outro discípulo, aquele que Jesus

amava, ...” (Jo 20,2); “Maria ficara fora, perto do túmulo, e chorava. Chorando, ela se

inclinou para o túmulo” (Jo 20,11); “...e viu dois anjos vestidos de branco...” (Jo 20,12);

“...ela se voltou e viu Jesus que estava ali,...” (Jo 20,14); Ela ouve Jesus lhe chamar,

“Mariâm” (cf. Jo 20,15s); “Ela se voltou e lhe disse em hebaraico „Rabuni‟...” (Jo 20,16) e vai

anunciar o que o Senhor lhe ordenou aos discípulos (cf. Jo 20,18). Terceiro, a convivência de

Maria Madalena com Jesus em seu ministério terrestre a permitiu reconhecer a voz do Cristo

ressuscitado, quando este a chamou pelo nome. A identidade de Jesus estava selada no ser de

Maria Madalena. Quarto, Maria cumpre o mandato de Jesus de ir anunciar aos irmãos a

palavra do Senhor ressuscitado, tornando-se uma verdadeira “apóstola dos apóstolos”. Quinto,

o anúncio que porta estabelece uma nova relação entre os discípulos e as discípulas na

comunidade. Tornam-se irmãos e irmãs uns dos outros, porque em Cristo são também filhos e

filhas do mesmo Pai que está nos céus. Não é mais só o Pai de Jesus, mas é o Pai nosso. Sexto,

neste contexto da glória, Jesus Cristo estabelece no coração daquele que crê, persevera e

permanece nele, Maria Madalena, mulher que não desiste, um espírito vivificante que torna

esta nova comunidade, a Igreja, sua esposa fiel.

A procura incessante de Maria Madalena pelo seu Senhor evidencia a força da

palavra de Jesus, pois, como ele mesmo disse, aquele que procura encontra (cf. Mt 7,7-8). É

necessário perseverar para se chegar à fé. Maria Madalena vê o Senhor e se torna a portadora

da mensagem do Ressuscitado à sua comunidade.

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A busca de Maria Madalena cessou, pois ela encontrou aquele que venceu o poder

da morte. Ela carrega em seu ser a identidade daquele que venceu a morte e que vive no meio

da humanidade. No entanto, começava ali no mandato do Senhor Ressuscitado a sua missão:

ir aos irmãos e às irmãs para lhes dizer o que o Senhor lhe tinha ordenado.

Ao escutar Jesus pronunciar seu nome, Maria Madalena reconhece o mestre. Jesus

atingiu o mais profundo de seu ser. A familiaridade de Jesus com esta mulher discípula, a

proximidade e a relação estreita em amizade e missão, mostram que não há revelação do ser

de Deus a não ser no amor e na amizade.

Assim, no exemplo de Maria Madalena, que tem um amor profundo pelo Senhor,

os discípulos e as discípulas da comunidade de João são convidados a superar a experiência

do passado, a fim de chegar a outro tipo de relacionamento que somente será viável após a

subida de Jesus Cristo ao Pai. Somente quando Jesus estiver junto do Pai, poderá comunicar o

Espírito Santo, que tornará possível a sua nova relação ou presença na comunidade.

Portanto, no encontro de Jesus com Maria Madalena está registrada a importância

da ressurreição do Senhor para a comunidade de discípulos e discípulas. O anúncio levado por

Maria Madalena parte de sua experiência pessoal com Jesus e com a mensagem que ele

comunica. Com essa mensagem, começa a nova comunidade de irmãos, cujo centro é Jesus. A

resposta de Maria Madalena ao chamado de Cristo foi vital para a comunidade nascente. A

superação da fé ainda baseada numa perspectiva meramente humana preparou Maria

Madalena para o verdadeiro reconhecimento segundo a fé. Ela é convidada a sair de sua

tristeza, a não curvar-se sobre si e a não se encapsular numa tentativa de fazer voltar o

passado. Em Maria Madalena, o evangelista evidencia, antes de tudo, que ser discípula ou

discípulo é crer em Jesus, que padeceu, morreu e ressuscitou, e sair para anunciá-lo, para

pregar sua boa-nova.

A análise de Jo 4,1-42, sobre a samaritana, e Jo 20,1-18, sobre Maria Madalena,

evidenciou como o evangelista sublinha a importância do encontro pessoal e comunitário com

Jesus Cristo, elementos essenciais na vivência da fé e do anúncio. No próximo capítulo, será

feita a retomada daqueles pontos que marcam a identidade da comunidade joanina como

elementos essenciais para fé e o anúncio, presentes em ambas as mulheres.

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4. CONTRIBUIÇÃO DA SAMARITANA E DE MARIA MADALENA NA FÉ E NO ANÚNCIO PARA A COMUNIDADE

JOANINA

4.1. Introdução

Como vimos no primeiro capítulo, a comunidade joanina sofreu dificuldades e

perseguições. O “mundo” odiou e matou Jesus por causa de sua revelação. Os discípulos de

Jesus foram testemunhas diante do mundo, porque estavam com ele desde o começo (cf. Jo

15,27; 17,14). Jesus revelou que Deus ama o mundo (cf. Jo 3,16); ou, como diz na Primeira

Carta de João, que Deus é amor (cf. 1Jo 4,8). Jesus, ao dar a vida pelos seus, fez deles seus

amigos. E ordenou aos discípulos para que se amassem uns aos outros. Os discípulos só

poderão dar testemunho diante do mundo à medida que se amarem mutuamente (cf. Jo

13,34s). Jesus lhes ensinou que, se eles se amassem uns aos outros, seriam capazes de dar a

sua vida pelos amigos. Ao fazerem assim, estariam demonstrando que suas vidas não se

definiam pelos poderes destrutivos do ódio e da morte, mas pelo poder vitalizador de Deus,

revelado em Jesus.

O discipulado da comunidade joanina inclui homens e mulheres. Pela narração do

Quarto Evangelho, constata-se a importância das mulheres. São testemunhas da ação

surpreendente de Deus na história, por intermédio de Jesus. O testemunho delas era fruto da

fé, de uma fé com raízes na ação de Deus no mundo. A escuta atenta da palavra de Jesus fez

das mulheres, mediante a fé, seguidoras e testemunhas qualificadas na comunidade. A fé que

perpassa todo o texto do Evangelho é condição para a adesão a Jesus. A fé possui uma

disposição, um movimento interior marcado pelo amor ao Senhor, um abandono da pessoa,

aderindo a ele totalmente. A força da palavra de Jesus irrompeu de tal forma na existência das

mulheres “que se torna uma fonte que jorra para a vida eterna” (Jo 4,14), trazendo para a

comunidade joanina um modelo de fidelidade ao Senhor.

A samaritana e Maria Madalena evidenciam na comunidade joanina a importância

do encontro pessoal com o Senhor. É no encontro que se abrem as possibilidades de diálogo

com Jesus. E é no diálogo que Jesus se revela como o Messias, o Filho de Deus e doador da

vida. O encontro e a convivência com Jesus, assinalados pelo evangelista na narração da

conversa com a samaritana (cf. Jo 4,1-42) e Maria Madalena (cf. Jo 20,11-18), conduzem a

comunidade joanina a uma conversão sempre mais profunda, à comunhão e à solidariedade. A

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presença de Jesus transforma a vida de cada seguidor e seguidora, pois resgata o que há de

melhor e mais profundo em cada um. A atenção à palavra de Jesus constrói e forma a

comunidade de discípulos e discípulas. Essa comunidade está, portanto, constituída de

discípulos e de discípulas pelo amor que têm uns aos outros.

A Samaritana, após ter se encontrado com Jesus e escutado suas palavras, convoca

o povo de Samaria para um encontro com o Senhor. E os samaritanos acreditam por causa da

palavra que lhes foi anunciada pela mulher (cf. Jo 4,39-42).

Maria Madalena, após ter visto o Senhor ressuscitado e escutado suas palavras,

recebeu o encargo de ir aos irmãos de Jesus. O anúncio de Maria Madalena reúne os

discípulos e discípulas que estavam dispersos.

Esse capítulo procura fazer uma síntese dos principais elementos levantados no

segundo e terceiro capítulo, confrontando-os com a práxis expressa no primeiro. Esses

elementos iluminam a vida da comunidade joanina e ajudam-na a enfrentar as dificuldades e

os desafios que se lhe impõem. Em síntese, o que se deseja ver agora é como esses elementos

levantados na análise da perícope da Samaritana e da perícope de Maria Madalena iluminam e

fortalecem a comunidade na resolução de seus problemas.

4.2. A escuta da palavra de Jesus prepara o discípulo para a missão

Um dos elementos essenciais para seguir Jesus é a atitude de escuta de sua

palavra, permitindo ao discípulo e à discípula penetrarem na compreensão daquele a quem

seguem. E, associado a esta escuta, está o ver, que prepara ou capacita o discípulo e a

discípula para a missão de anunciar e sinalizar a Boa-nova como o próprio Jesus.

O modo pelo qual os discípulos se uniram a Jesus é sempre por iniciativa dele, o que

é diferente dos discípulos dos filósofos ou do “talmid” rabínico. Esses devem

procurar acercar-se do mestre (esta era uma regra para o início do rabinato, e um

expresso dever do homem pio). Além disso, o discípulo do filósofo grego ou o

“talmid” rabínico em todas as vinculações pessoais com o mestre buscam

ensinamentos efetivos, com o fim de chegar, por sua vez, a ser eles mesmos mestres

ou rabinos. Desse modo, sua relação é provisória, enquanto assimilam a doutrina.

Ao contrário, a chamada ao seguimento por parte de Jesus não significa que ele se

situe com respeito aos discípulos numa relação de mera docência, da qual eles

teriam podido sair por sua vez como mestres (cf. Mt 23,8)1.

A relação de Jesus com seus discípulos é permanente. Os discípulos estão ligados

à pessoa de Jesus pela fé e pela obediência. O elemento decisivo apresentado por João na

1 TEPEDINO, Ana Maria. As discípulas de Jesus. Petrópolis: Vozes, 1990. p. 25.

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figura da samaritana e em Maria Madalena é um acolhimento voluntário da palavra de Jesus e

o desejo de colocá-la em prática (cf. Mt 7,24s). A essa prática, João chamará obediência (cf.

Jo 8,31s; 15,1s). Isto é fácil de perceber pelo comentário do evangelista, que nos informa que

“... era preciso que Jesus atravessasse a Samaria” (Jo 4,4). Jesus é obediente porque faz a

vontade do Pai.

4.2.1. A samaritana escuta Jesus junto ao poço de Jacó

Na iniciativa de Jesus, não existem preconceitos. O tratamento igualitário é

demonstrado por João na maneira com a qual Jesus se relacionava com todas as pessoas.

Diferentemente do que ocorria com o rabinato, Jesus rompe as divisões existentes entre

homens e mulheres2, puros e impuros, pecadores e cumpridores da lei. É assim que Jesus,

junto ao poço de Jacó, rompe o silêncio da samaritana que tinha ido lá tirar água e acaba

pedindo-a: “Dá-me de beber” (Jo 4,7). Jesus se coloca diante dela como necessitado,

dependente dela. Situa-se no mesmo nível das necessidades físicas e biológicas. Cristo se

fatiga à procura do ser humano. Não se cansa nunca de amar. É Deus que, no seu Filho

amado, toma a frente do diálogo nesse encontro revelador. Jesus é o mestre que ensina a

mulher samaritana o verdadeiro caminho para Deus. E a mulher samaritana permanece ali

junto ao poço, na escuta de Jesus.

Essa mulher foi importante na conversão dos samaritanos3. Segundo os exegetas,

a comunidade joanina teve um forte influxo dos samaritanos convertidos que podem ter sido

elementos catalizadores para o desenvolvimento da cristologia do Quarto Evangelho4. A

comunidade joanina faz a colheita, tornada possível por uma mulher que iniciou o seguimento

dos samaritanos na comunidade. Ao se dirigir à mulher, João usa kopia,w, um verbo paulino,

para descrever o trabalho missionário da mulher samaritana: “Eu vos enviei para colher o que

não vos custou nenhum trabalho; outros trabalharam e vós entrastes no que lhes custou tanto

2 SAULNIER; ROLLAND. A Palestina, p. 65: “„Compra-se a mulher por dinheiro, contrato e relações sexuais,

constata um rabino. Compra-se um escravo pagão por dinheiro, contrato e tomada de posse. Há então diferença

entre a aquisição duma mulher e a dum escravo? - Não!‟ Essa definição apresenta bem a condição feminina:

como escravo, a mulher depende de seu Senhor-marido e tem que assumir todas as tarefas; não pode aproveitar-

se nem dos rendimentos do seu trabalho nem do que ela achar; só está sujeita aos mandamentos negativos ou

gerais da Lei e não aos que estão ligadas a um tempo preciso: senão, como haveria de ocupar-se das crianças ou

das tarefas do lar? Se não lhe é proibido interessar-se pela Lei e pelas tradições, é muito desaconselhado, no

entanto, ensinar-lhe demais a respeito disso, pois „aquele que ensina a Torá à sua filha ensina-lhe a

prostituição!‟” 3 O diálogo de Jesus com a samaritana baseia-se provavelmente numa tradição missionária que atribuía um papel

primário a uma missionária mulher na conversão dos samaritanos. Cf. BULTMANN, The Gospel of John, p.

175-177. 4 Cf. BROWN, A comunidade, p. 35-41.

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trabalho” (Jo 4,38). A mulher chama os seus conterrâneos para o seguimento de Jesus. A

conversão missionária da samaritana faz dela uma discípula de Jesus.

De múltiplas formas a mulher se vê novamente envolvida na experiência e na

organização de si mesma como sujeito, e sujeito atuante da história, e como sujeito

decisivo. Em razão do conceito negativo da humanidade da mulher sob o domínio

do patriarcado, esta autodenominação possui um caráter de um processo de

conversão, um afastamento da trivialidade e da depreciação de si mesma como

pessoa feminina e um voltar-se para o seu próprio interior como alguém que tem

valor, na realidade, como um dom, numa comunidade onde muitas outras pessoas

também vão se modificar da mesma forma. Esta conversão nada mais é do que um

renascimento, e é atingida dentro de uma dialética do contraste e da confirmação5.

Segundo Fiorenza6, a conversão missionária é entendida por analogia com a

vocação ao discipulado. Como André que chama seu irmão Pedro ao discipulado de Jesus

dizendo-lhe: “Encontramos o Messias” (cf. Jo 1,40-42), assim também o testemunho da

mulher motiva os samaritanos a virem a ele (cf. Jo 4,39). Como Natanael que se torna

discípulo porque Jesus sabia o que fizera sobre a figueira (cf. Jo 1,46-49), assim também a

mulher se torna uma discípula e testemunho pois Jesus lhe disse tudo o que ela fez (cf. Jo

4,29). Jesus roga ao Pai em sua oração pelos discípulos: “Eu não rogo somente por eles, rogo

também por aqueles que, graças a sua palavra, crêem em mim” (Jo 17,20). Usando quase as

mesmas palavras, Jo 4,39 afirma que muitos samaritanos creram nele “por causa da palavra da

mulher que dava testemunho”. O testemunho do discípulo é fundamental para a fé em Jesus.

Esta fé alimenta a comunidade joanina. A comunidade joanina colhe o trigo torrado, possível

pelo trabalho missionário da mulher que iniciou a conversão do seguimento samaritano da

comunidade.

O evangelista, ao evidenciar a aproximação de Jesus junto à samaritana, mostra

para a sua comunidade o que significa ser discípulo. A samaritana ouve a palavra de Jesus, é

interpelada e responde. Ela crê no Cristo e se liga existencialmente a ele. A fé da samaritana é

selada em seu coração pela palavra de Jesus, preparando-a para a missão que consiste

sobretudo em ser testemunha de seu Senhor por toda sua vida. É esta sede que Jesus tem, e é

muita sede: sede de amar e ser amado, de salvar; de abrir no seu povo um caminho para a casa

do Pai. Tem sede da fé que deve ter suas raízes lançadas no mais profundo do ser humano e

não superficialmente, fé que fará com que a samaritana anuncie à sua gente o Messias que

tanto esperava. A fé será a sua adesão diante da revelação do Cristo. Por isso, a samaritana

larga tudo o que estava fazendo para anunciar aos samaritanos o que viu e ouviu. A disposição

5 JOHNSON, Elizabeth A. Aquela que é: o mistério de Deus no trabalho teológico feminino. Petrópolis: Vozes,

1995. p. 99. 6 Cf. FIORENZA, As origens, p. 374-375.

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daquela mulher e sua vinculação a Jesus devem estar presentes em todo o discipulado da

comunidade joanina.

Ao ouvir as palavras daquele homem, a vida da mulher samaritana foi

transformada. A mulher samaritana se colocou de prontidão para escutar o que Jesus tinha

para lhe dizer. A samaritana se deixa conduzir por Jesus. Pouco a pouco, Jesus conduz a

samaritana a uma verdadeira revisão de vida, que tem seu ponto de apoio no mais profundo da

consciência. A escuta atenta da palavra de Jesus torna-se reveladora na samaritana, pois ela

reconhece em Jesus o Messias. A samaritana torna-se uma verdadeira adoradora de Deus. O

espírito de Jesus é fazer-se solidário na necessidade; não busca privilégios. O encontro com

Jesus conduz a mulher samaritana à fé, ao compromisso, ao testemunho, à missão. A palavra

pronunciada por Jesus e a escuta desta palavra pela samaritana evidenciam a importância da

obediência à voz do Senhor, na relação entre Deus e o homem, para a comunidade joanina. Só

aquele que se coloca disponível para escutar o que Jesus diz tem condição de anunciar Jesus

Cristo.

Jesus, na sua existência, demonstra a importância de ouvir ao Pai e aos outros, para

ir descobrindo cada vez mais sua missão, para conhecer cada vez melhor o Pai,

assim como sua própria identidade7.

Foi depois de escutar Jesus que a samaritana lhe disse: “Vejo que tu és um

profeta” (Jo 4,19). O que a samaritana ouviu de Jesus permitiu que visse nele não somente um

judeu, mas um profeta. O escutar capacita a samaritana a alargar o seu conhecimento sobre

Jesus. O ouvir associa-se ao ver. A compreensão do ver e ouvir tem como centro a pessoa de

Jesus. O ver e o ouvir provocam a fé desta mulher. Levam ao conhecimento e trabalham a

percepção interior da mulher samaritana. A fé reconhece o Messias que veio. As palavras

levam à fé, e a fé é necessária para penetrar nas próprias palavras. É a mulher samaritana

quem, repercutindo as palavras de Jesus, torna-se missionária para seu povo. A palavra do

Senhor leva-a do isolamento à fé, à missão. De agora em diante, a mulher samaritana confia

somente na palavra de Jesus. Cumpre o que a própria mãe de Jesus, outra mulher, disse:

“Fazei tudo o que ele vos disser” (Jo 2,5).

A partir da sua própria experiência da presença e revelação de Jesus, a samaritana

chama seu povo para ir e ver o homem que lhe tinha dito tudo o que fez.

A fé e a revelação marcam essa narrativa. A interação dialética entre fé e

revelação é evidenciada pelo progresso das afirmações cristológicas: judeu (v. 9), Senhor (v.

7 TEPEDINO, As discípulas, p. 47.

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11), maior que nosso Pai Jacó (v. 12), profeta (v. 19), a salvação vem dos judeus (v. 22),

Messias (v. 25), sou eu (v. 26), Cristo (v. 25.29), salvador do mundo (v. 42). A resposta da

mulher samaritana a Jesus e o conteúdo de sua revelação trazem para a comunidade joanina a

necessidade de uma escuta que não só se baseia na lei, mas que se funda na revelação que

Jesus faz. É na relação amorosa com Jesus que se pode conseguir a unidade sem o recurso

vazio do legalismo. Essa relação amorosa interioriza a lei, tornando-a expressão vital desse

amor. O Filho de Deus, através da sua palavra, manifesta àquela mulher samaritana o mistério

da sua pessoa e do profundo amor do Pai.

A plenitude da vida oferecida e prometida pelo revelador à mulher samaritana

elucida-se por todo o Evangelho. Vinho, água, pão, luz, verdade, caminho, vinha, porta e

palavra são essenciais para a vida humana. Sem eles, a pessoa perece. Essas imagens não só

designam o próprio Jesus, mas, ao mesmo tempo, os seus dons para a vida, os poderes divinos

vivos e vivificante que levam também à vida eterna. Nele está a vida e a vida é a luz dos

homens. Ele é o verbo da vida, vindo na carne para a salvação de todo aquele que nele crer.

Só no encontro com ele o ser humano pode encontrar a si mesmo. O encontro e a convivência

com ele podem conduzir o ser humano à conversão sempre mais profunda, à comunhão e à

solidariedade. E é essa relação de comprometimento com Deus e Jesus Cristo que se chama

fé, condição fundamental para a vida eterna.

Uma outra evidência do diálogo de revelação que muito contribui para a

comunidade joanina é a referência à adoração em espírito e verdade. Fiorenza afirma que,

Para a comunidade joanina, a hora é agora em que os verdadeiros adoradores vão

adorar o Pai, não mais no templo de Jerusalém e nem no templo de Garizim, mas,

em espírito e verdade, porque Deus é espírito, o poder vivificante a ser adorado.

Essa adoração ocorre na comunidade dos fiéis que são nascidos de novo no espírito

e que são chamados a “praticar a verdade” (Jo 3,21). É a adoração dos que foram

feitos santos pela palavra e para aqueles para os quais distinções sócio-religiosas

entre judeus e samaritanos, mulheres e varões não mais possuem nenhuma validade8.

É importante notar que o próprio Jesus tomou a iniciativa de falar com a mulher

para fazê-la discípula. Ela é uma verdadeira discípula que integra a “nova família” de

discípulos, que ora é constituída por aqueles que escutam a palavra de Jesus. A mulher

samaritana superou a fase do mal entendido, compreendendo quem é Jesus. Jesus, como um

mestre, foi interpelado por aquela mulher sobre questões teológicas que lhe diziam respeito e,

como primeira discípula, ela transmitiu aos samaritanos sua fé em Jesus. A mulher assumiu de

coração o que lhe sucedeu no encontro com Jesus. Ela bebeu a palavra do Filho de Deus,

8 FIORENZA, As origens, p. 376.

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deixando penetrar profundamente em seu coração a verdade, ou seja, deixou a revelação do

Verbo Encarnado fecundar seu coração. A samaritana deixou sua existência ser transformada

pela revelação que Jesus lhe fez9. Por isso, a admiração dos discípulos ao verem Jesus

conversar com aquela mulher não tinha sentido.

Com todo direito, a mulher desempenha um papel central no marco da missão da

comunidade de reunir os verdadeiros adoradores de Deus. Com a mulher samaritana, a

comunidade joanina avança no relacionamento de irmãos e irmãs, na qual não devem existir

diferenças sócio-religiosas entre judeus e samaritanos, mulheres e homens. O que deve marcar

a comunidade joanina é a comunhão, a solidariedade e a fraternidade: “Como eu vos amei,

vós também amai-vos uns aos outros. Nisto todos reconhecerão que sois meus discípulos: no

amor que tiverdes uns para com os outros” (Jo 13,34s).

Jesus levava a sério as mulheres judias (fossem ou não pecadoras) que a sociedade

de seu tempo marginalizava de toda vida social ou religiosa pública. Conhecia seus

sofrimentos e seus afazeres e sabia falar-lhes e escutá-las ensinando a elas e

convivendo com elas, dando assim uma resposta à sua profunda expectativa, à sua

sede de vida. Sua atitude com relação às mulheres causava espanto e assombro. Fala

publicamente com elas, até com estrangeiras (cf. Jo 4,27); e, como sabemos, os

estrangeiros eram discriminados em Israel. Não compartilha do preconceito do seu

tempo com relação a elas. Trata-as com respeito e carinho, como filhas queridas do

Pai. Vive uma especial aliança com elas, fazendo emergir o “novo” através desse seu

relacionamento10

.

Para adorar a Deus em “espírito e verdade”, o discípulo e a discípula devem se

deixar penetrar decididamente pelo que Jesus tornou visível de Deus. Eles devem estar

dispostos a se deixarem modelar, estimular e corrigir seus pensamentos sobre Deus,

acolhendo o que Jesus apresentou dele. A adoração em verdade emana do espírito que dirige a

conduta do ser humano. Este Espírito que Jesus oferece é personalizante, interno, move e

transforma a partir de dentro, criando vida, força, fecundidade. A mulher samaritana foi

conduzida por Jesus. Jesus – que sabe que ela é pecadora e sobre isto lhe fala – conversa com

ela sobre os mistérios mais profundos de Deus. Dialoga com ela sobre o infinito amor de Deus

e ensina-lhe que Deus é Espírito, falando-lhe da verdadeira adoração que o Pai tem direito de

receber em espírito e verdade (cf. Jo 4,24)11

. E os habitantes de Sicar na Samaria, chamados

pela mulher para verem aquele que é o Cristo, o ouviram e compreenderam como são as

coisas de Deus e do mundo. Por isso, confessam: “... nós mesmos o ouvimos e sabemos que

ele é verdadeiramente o salvador do mundo” (Jo 4,42). O empenho do autêntico discípulo de

9 Cf. PANIMOLE, Salvatore Alberto. Lettura pastorale del vangelo di Giovanni. Bologna: Dehoniane, 1978. v.

1, p. 424. 10

TEPEDINO, As discípulas, p. 82. 11

JOÃO PAULO II, Mulieris, n. 15

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Jesus deve ser aquele que aprofunda sempre mais a sua fé, deixando-se transformar

radicalmente pela palavra de Jesus.

É o próprio Deus que vem ao seu encontro. Deus encontra sempre cada um no

interior de sua história concreta. E dá a cada um aquilo que quer, que procura ansiosamente12

.

Sem dúvida, a mulher samaritana evidencia um caminho para a autêntica fé: a fé em Deus,

que se plenifica em Jesus como dom oferecido a todo aquele que o procura e o escuta

atentamente. E só quem crê pode amar como Jesus amou. É este amor que Jesus, com sua

palavra, vai procurando.

4.2.2. Maria Madalena identifica o Senhor

Com uma força imprescindível para a comunidade joanina, encontramos Maria

Madalena com uma participação que transcende a mera presença, mas como uma real

comunhão de vida. Ela, como testemunha da crucifixão, da sepultura e da ressurreição de

Jesus, tomou parte do dia-a-dia do grupo de discípulos, desde a Galiléia até a Judéia13

. Maria

Madalena, assim como os discípulos, escutou Jesus em todo o ministério de Jesus. A escuta

de Maria Madalena ao seu Senhor preparou-a para a missão de anunciar a ressurreição e

congregar os irmãos em Jesus. Maria Madalena é a primeira entre os discípulos, a quem o

Ressuscitado se dirige. Ela, que aos pés da cruz foi testemunha dos sofrimentos e da morte de

Jesus, pode ser agora a primeira a experimentar que a comunhão de Jesus com seus discípulos

não chegou a seu fim.

Por ter escutado e seguido Jesus durante todo o tempo de sua vida pública, Maria

Madalena reconheceu o Senhor Ressuscitado, quando a chamou pelo nome e lhe deu o

encargo de ir aos irmãos. Maria deu ouvido ao anúncio do Reino que se aproximava e

acreditou no homem no qual essa proximidade se fez carne e história. Como discípula,

superou no amor e na fidelidade os seus irmãos e os precedeu na fé. A escuta atenta da

palavra de Jesus selou a identidade de Maria Madalena: “Aquele que guarda o aprisco, a porta

12

CHEVROT, Jesus e a samaritana, p. 22: “Pelo gole de água fresca que implora à samaritana, Jesus fará que a

invadam as torrentes da graça que lavarão a sua consciência e acalmarão as sedes temporais para as transformar

em desejos de eternidade. Ele primeiro pede, mas depois dá sempre mais do que pede. E, ao pedir-nos alguma

coisa, é já um dom que nos faz”. 13

O seguimento de Maria Madalena não é um seguimento ocasional, como ocorre com as multidões. O

evangelista Lucas mostra que, além dos doze, acompanhavam Jesus, algumas mulheres que tinham sido curadas

de espíritos maus e de doenças. Maria, dita de Magdala, da qual haviam saído sete demônios, Joana, mulher de

Cusa, intendente de Herodes, Susana e muitas outras, que os ajudavam com seus bens (cf. Lc 8,1-3). Isto

confirma que Maria Madalena era uma das mulheres associadas à atividade de Jesus, com o mesmo título dos

doze.

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lhe abre, e as ovelhas escutam a sua voz; as ovelhas que lhe pertencem, ele as chama, cada

uma por seu nome, e as leva para fora. Quando ele as faz sair todas, caminha à frente delas e

elas o seguem, porque conhecem a sua voz” (cf. Jo 10,3-4). O que Maria Madalena escutou

do Ressuscitado não se calou em seu ser, mas ecoou na comunidade joanina: “Eu vi o Senhor,

e eis o que ele me disse” (Jo 20,18).

As narrativas joaninas das aparições enfatizam ao mesmo tempo a identidade do

ressuscitado com o Jesus do calvário e sua nova maneira de ser com os seus. Maria

Madalena deve aceitar vê-lo desaparecer, não poder retê-lo junto de si (Jo 20,17),

mas ela é enviada para anunciar aos irmãos uma experiência nova: o Pai de Jesus

tornou-se o Pai deles todos, o Deus de Jesus é doravante o Deus deles todos. As

antigas similitudes: Eu e meu Pai, Eu e vós, que eram até agora simples promessas

ou orações, tornaram-se realidades: “como tu, Pai estás em mim e eu em ti” (Jo

17,21), eles também, os crentes, são um só no Pai e no Filho14

.

Maria Madalena, ao receber o mandato de anunciar aos irmãos o que Jesus lhe

ordenou, servia a Jesus, assim como “ele veio dar a vida e servir”. Maria Madalena encarna

em sua vida a palavra de Jesus, servindo-o como fiel discípula. E nunca é dito dos discípulos

homens que serviam Jesus como Jesus os havia servido. Segundo Tepedino15

, Maria

Madalena faz a passagem da morte de Jesus à sua ressurreição. Como uma parturiente, ela dá

a luz a boa-nova: Jesus vive! Ela faz a gestação da comunidade dos discípulos.

Maria Madalena seguiu Jesus, desde a galiléia até Jerusalém. Serviu-o, escutou o

que dizia e viu o que fazia. Não fugiu quando Jesus foi preso, permanecendo fiel mesmo na

dor. Arriscou a própria vida quando foi ao túmulo ainda de madrugada e o encontrou vazio.

Porque creu e permaneceu fiel, tornou-se a primeira testemunha da ressurreição. Em

contrapartida, o grupo dos discípulos fugiu no momento da morte de Jesus, por medo de

sofrerem o mesmo destino. Maria Madalena, como verdadeira discípula, acompanhou seu

mestre até o fim do caminho na cruz. De seguidora na missão e testemunha na morte, torna-se

mensageira da boa-nova.

A mulher samaritana e Maria Madalena evidenciam para a comunidade joanina a

importância de escutar o que Jesus ensina. Pois, como Jesus escuta o Pai e entra em

comunhão com ele, também elas, ao escutarem Jesus, entram em comunhão com ele. Jesus, ao

retirar-se para rezar, entrava em comunhão com o Pai num encontro existencial com ele.

Adentrando no mistério, Jesus ouve o Pai, e esta escuta faz com que ponha em prática a

vontade divina. Jesus é obediente ao Pai e consagra-se definitivamente à missão que o Pai lhe

confiou. Seu comportamento é totalmente referido ao Pai, numa atitude ativa e dinâmica de

14

GUILLET, Jacques. Jesus Cristo no Evangelho de João. São Paulo: Paulinas, 1985. p. 70. 15

Cf. TEPEDINO, As discípulas, p. 107.

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abertura, confiança, abandono, busca de sua vontade. A samaritana e Maria Madalena, ao

verem e escutarem a Jesus, penetram neste mistério e se inserem obedientes em sua missão.

Portanto, escutar Jesus é pôr-se em seu caminho, porque se crê nele como o Filho

de Deus, enviado para a salvação do mundo. E quem o escuta, viverá. Todo aquele que escuta

a palavra de Jesus torna-se discípulo de uma missão que provém do coração do Pai. Para

seguir Jesus Cristo, os ouvidos dos discípulos e discípulas devem estar atentos para escutar e

prontos para obedecer. É na escuta amorosa da palavra, como fez Maria Madalena, que a

comunidade joanina descobre que Jesus está vivo.

4.3. A abertura ao dom de Deus torna o discipulado sinal do Reino

Os discípulos de Jesus seguem o Mestre para realizar a vontade do Pai, para fazer

sinais, por meio de palavras e obras, de que o Reino de Deus se inaugurou com Jesus. A

abertura do discípulo ao dom que Deus oferece faz do discípulo um sinal do Reino. Ao ver e

escutar, os discípulos conhecem melhor quem é Jesus a quem seguem, assim como percebem

o que devem fazer. Jesus, como enviado do Pai, veio ao mundo revelar a verdadeira vida. Os

discípulos são enviados por Jesus para anunciar e sinalizar a boa-nova. O verdadeiro

relacionamento com Jesus se dá na abertura à sua voz e na escuta do seu convite.

Sendo sinal do Reino, o discípulo aponta para algo que vai além do que se vê;

Jesus Cristo, o enviado do Pai. Na obediência, os verdadeiros discípulos são enviados ao

mundo, com o objetivo de transformá-lo, para que Deus seja visível no cotidiano da história.

O Evangelho de João apresenta muitas mulheres que se descobrem pessoas dignas

a quem Jesus valoriza e restitui seu valor e dignidade de criaturas de Deus, recuperando-as e

recriando-as16

. Essa recuperação e integração na comunidade são sinais do Reino

acontecendo.

Tanto as seguidoras como os seguidores de Jesus, sedentários e itinerantes,

compreendiam-se como o reinado de Deus que irrompia, o qual subverte as relações

de poder deste mundo. Apesar de as diferentes formas de vida necessariamente

provocarem diferenças na auto-compreensão e no ethos, o modelo de família

patriarcal foi questionado em ambos os grupos em favor da nova família de Deus, no

qual apenas Deus é pai e os seres humanos são irmãos17

.

16

A situação da mulher no judaísmo era difícil porque havia uma série de discriminações religiosas e legais

contra elas. Tal situação ficou ainda pior no judaísmo tardio e na diáspora. Com a finalidade de se manter a

unidade e a identidade dos judeus, as mulheres eram mais reprimidas mantendo-as afastadas das atividades

públicas. Ficavam mais dentro das casas, embora tenha havido algumas que se sobressaíram lutando em

benefício do povo. Cf. TEPEDINO, As discípulas, p. 67-81. 17

THEISSEN, Gerd; MERZ, Annete. O Jesus Histórico. 2.ed. São Paulo: Loyola, 2004. p. 246.

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Portanto, podemos afirmar que Jesus, com sua atitude e conduta concretas diante

das mulheres, comunicou-nos de modo exemplar uma nova autoconsciência e uma nova

maneira de sentir, que faz parte da salvação do mundo.

4.3.1. A mulher samaritana é sinal do Reino para seus conterrâneos

Tudo começa ao redor do poço. Jesus se encontra com a mulher samaritana. O

poço simboliza a Lei, as instituições judaicas e a sabedoria. Nesse contexto, Jesus recorda um

arranjo social que não satisfaz aos anseios do povo por liberdade e vida. Junto ao poço, Jesus

se dá a conhecer como fonte da qual a humanidade inteira bebe. A partir de agora Jesus é a

fonte de água viva que jorra para a vida eterna. A mulher samaritana tem sede dessa água, e

por isso pede: “Senhor, dá-me essa água, para que eu não tenha mais sede e não precise mais

vir aqui tirar água” (Jo 4,15). A água que Jesus oferece torna-se naquele que a bebe uma fonte

que jorra para a vida eterna. A mulher samaritana é acolhida por Jesus, tornando-a um sinal

do Reino de Deus para os seus conterrâneos. Ao aproximar-se da samaritana, Jesus fez dela

uma autêntica discípula. O encontro tornou-se sinal de salvação para o povo da Samaria. É um

encontro que sela a dignidade do homem e da mulher como imagem e semelhança de Deus. É

um encontro revitalizador das relações entre os povos, entre o homem e a mulher, entre Deus

e a humanidade. Os ensinamentos de Jesus transformam a vida da mulher samaritana. Ela

aceita Jesus, como seu mestre e senhor, tornando-se destinatária de uma mensagem reveladora

para os seus. A escuta da palavra de Jesus questiona, comove, impulsiona e convida a dar

nova orientação à própria vida. A experiência da conversão, não como desistência do eu

interior, mas para atingir sua força, libera, ao mesmo tempo, o entendimento do poder divino,

não como um poder dominador, mas como uma disposição ardente de fortalecer-se a si

mesmo e aos outros18

.

A mulher samaritana teve sua vida totalmente modificada por aquele que se

revelou a ela como o Cristo que ela e os samaritanos esperavam. Ao ir ao poço de Jacó, a

samaritana estava só. Ao voltar dele, está com o Senhor. Ela deixou que Jesus habitasse em

seu ser. Como um sinal desse Cristo, ela corre para anunciar aos seus conterrâneos a grande

novidade. Os habitantes de Sicar viram naquela mulher, no seu modo, no brilho de seus olhos,

na alegria que iluminava o seu rosto, a verdade que haveriam de encontrar em Jesus. O ser

daquela mulher e sua expressão apontavam para alguém que, de fato, se tornava visível e

falava nela. Por isso os samaritanos foram até Jesus. Os samaritanos acreditaram por causa da

18

Cf. JOHNSON, Aquela que é, p. 105.

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palavra daquela mulher.

O trabalho da mulher samaritana é explicado por Jesus aos seus discípulos: “Eu

vos enviei para colher o que não vos custou nenhum trabalho; outros trabalharam e vós

entrastes no que lhes custou tanto trabalho” (Jo 4,38). O diálogo entre Jesus e os seus

discípulos (cf. Jo 4,17-24) deixa evidente que a samaritana tinha uma real função missionária.

A eventual menção ao mundo das mulheres e às relações vitais femininas nas

palavras de Jesus é significativa, porque apresentam uma exceção em uma cultura

androcêntrica. Via de regra, o trabalho feminino é invisível na linguagem, pelo fato

de que o foco é centrado na figura do pai de família, provedor do pão para as

crianças (Mt 7,9), enquanto a mulher que o assou permanece sem ser citada. Cada

referência explícita faz que as mulheres sejam visíveis e dessa forma tematiza

obrigatoriamente seu valor, contra os dogmas básicos da cultura patriarcal. A

inclusão do mundo feminino na linguagem do anúncio tem como causa uma

sensibilidade aguçada de Jesus e dos que o seguiam para com o clamor dos

marginalizados, a quem a mensagem do reino de Deus vindouro é primeiramente

dirigida, e à participação ativa de mulheres no movimento de Jesus19

.

O papel da mulher que semeou a semente, preparando assim a colheita apostólica,

é um componente essencial na missão global. A missão da mulher samaritana junto ao seu

povo é sinal para os discípulos que acompanhavam Jesus. Eles irão ceifar onde não

trabalharam. Jesus tinha acabado de falar acerca dos campos que estavam maduros para a

colheita. Era a referência aos samaritanos que saíram da cidade para se encontrarem com ele

por causa do que a mulher lhes tinha transmitido.

A missão na Samaria põe em evidencia um contraste: Jerusalém e a Judéia são

estéreis, pois rejeitam o Pai. Já a Samaria é fecunda e promete muitos frutos, pois o projeto de

Deus, que Jesus dá a conhecer, encontra terreno favorável em meio aos samaritanos, que

tiveram papel decisivo na formação da comunidade do discípulo amado. Enquanto os judeus

não acreditavam em Jesus, os samaritanos reconheceram nele o “salvador do mundo”.

O diálogo de Jesus com a mulher samaritana sinaliza o fim do culto que

discrimina e marginaliza pessoas e grupos. O fato de a mulher samaritana não ser nomeada

indica que representa todos os samaritanos, tidos pelos judeus como pessoas impuras e

idólatras. Assim, a fé da mulher samaritana estabelece uma aliança com Jesus que não mais

será rompida. Nela, o povo da Samaria se une ao seu verdadeiro esposo. Bucker afirma que “a

esposa mostra um processo de aprendizado para a Unidade e Missão mediante uma

construção realizada na mesma relação. O que une é o Amor que os mantém e que também

envia para a Missão”20

. O verdadeiro discípulo – início da comunidade-esposa de Jesus

19

THEISSEN; MERZ, O Jesus histórico, p. 247. 20

BUCKER, Bárbara Pataro. O feminino da Igreja e o conflito. Petrópolis: Vozes, 1996. p. 131.

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Messias – é a samaritana, que, depois de abandonar o balde, anuncia aos habitantes da cidade

seu encontro com um homem, levando as pessoas a conhecê-lo. Portanto, o modo que a

mulher samaritana passa a viver o dom da fé que recebeu de Jesus torna-se o modo de

anunciar esse Cristo aos seus conterrâneos.

Pela abertura ao dom de Deus que se torna na mulher samaritana uma fonte de

água que jorra para a vida eterna (cf. Jo 4,14), o evangelista apresenta a samaritana como

tendo uma fé maior do que a dos judeus (cf. Jo 2,18-22) e maior que a fé de Nicodemos (cf. Jo

3,1-21). Os judeus são incapazes de assimilar o sentido profundo da atuação do Mestre no

templo. Eles acreditavam se aproximar de Deus mediante o conhecimento e a prática da lei.

Não será por meio dos sacrifícios prescritos na lei que irá se operar a reconciliação de Israel,

mas graças ao dom que Jesus faz de si mesmo. Jesus, aquele que revela o Pai, mostra-o

presente nas relações de fraternidade e gratuidade. O grande sinal está diante dos judeus e eles

não conseguem vê-lo. Os judeus são totalmente descrentes com relação a Jesus (cf. Jo 2,13-

25).

Nicodemos, que procura Jesus à noite, é chamado de o “Mestre de Israel” e é o

representante do Sinédrio e da lei21

. Ele não crê que Jesus possa trazer algo totalmente novo.

Nicodemos manifesta sua total cegueira, a cegueira provocada pela lei. A fé de Nicodemos é

insuficiente. Nascer de novo significava que Nicodemos devia romper com a instituição que

gera a morte (Sinédrio) e aderir à prática de vida presente nas ações de Jesus (cf. Jo 3,1-21). A

ação de Nicodemos devia ser como a da mulher samaritana, que rompeu com todo tipo de

barreira, aderindo a Jesus e se aproximando de Deus.

Tanto a Samaritana quanto Nicodemos começaram compreendendo mal as

palavras de Jesus. Mas também percebemos diferenças. Enquanto Nicodemos se dirige a

Jesus durante a noite para que ninguém o veja, a samaritana vai em pleno dia no poço de Jacó,

onde pode ser vista por qualquer um dialogando com Jesus. Fala com um varão em público e

sobre temas considerados de discussão masculina – raça, religião – temas que não eram da

competência da mulher, destinada a ficar só dentro de casa e considerada como menor de

idade. Essa atitude será referência para os discípulos que acompanhavam Jesus. A samaritana

levanta uma problemática pela qual se dá um diálogo esclarecedor com Jesus (cf. Jo 4,20-26)

21

Nicodemos vai procurar Jesus à noite, isto é, na escuridão (trevas). No Evangelho de João, a noite representa

as forças da morte que se opõem à prática da vida, presente em Jesus. Nicodemos é alguém que defende a Lei,

enquanto fonte de vida e norma de conduta. Mas o evangelista mostrará que a Lei é fonte de morte, pois

justamente em nome dela é que Jesus será condenado (cf. Jo 19,7). Cf. BORTOLINI, José. Como ler o

Evangelho de João: O caminho da vida. 7.ed. São Paulo: Paulus, 2005. p. 40-43.

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e serve de transição para que os samaritanos façam a grande confissão de fé, não

fundamentada em sinais, mas na própria palavra de Jesus: “É o salvador do mundo” (Jo 4,42).

Afinal, o fiel samaritano está mais perto do revelador que o rabi judeu. Nicodemos, ao

contrário, não professa sua fé no revelador, nem serve de ponte para provocar a fé nos

membros de seu povo.

Quem é Nicodemos? Trata-se de um homem que já chegou, ou seja, trata-se de um

“presbítero”, isto é, de um “adulto”, que já fez uma certa carreira e por isso tem

certas prerrogativas e certos deveres externos a salvaguardar: em resumo, ele sente

um pouco o peso de sua reputação, de sua importância. Por isso tem medo de

comprometer-se; tem medo de enfrentar abertamente a Palavra de Deus: com efeito,

encontra-se “em situação”, é vigiado, visto e olhado pelos outros; por isso vai de

noite a Jesus22

.

Pelo relacionamento que Jesus estabelece com a mulher samaritana, caem por

terra os muros da discriminação cultural e sócio-religiosa. A abertura da samaritana ao dom

oferecido por Deus faz dela um verdadeiro paradigma de fé e anúncio para a comunidade do

discípulo amado.

4.3.2. O amor de Maria Madalena é sinal do Reino

Para o evangelista, o mais importante na comunidade do discípulo amado é a

relação de amor do discípulo para com Jesus23

. E o verdadeiro relacionamento com Jesus é a

relação discipular, marcado pelo amor, pela solidariedade e pela fraternidade. Para Tepedino,

nas comunidades cristãs, segundo o Quarto Evangelho, a categoria fundamental é o

discipulado. O discípulo é aquele que segue o mestre, que crê em Jesus e deve viver

no serviço gratuito e no amor, dando testemunho de Jesus que amou-nos até o

último instante de sua vida (cf. Jo 16,1). Pela prática do “ágape” todos saberão quem

são os discípulos de Jesus. Para a comunidade a autoridade máxima era o “discípulo

amado” que teria sabido amar, portanto viver a fé de maneira adequada24

.

Maria Madalena, em sua busca amante, é apresentada como verdadeira discípula

de Jesus, por sua ligação a ele. Ela o acompanhou desde os primeiros tempos do ministério.

Ao lado do discípulo amado, Maria Madalena figura como a discípula amada. Ela compartilha

o empreendimento de Jesus e aceita ser “um dos seus” perante o mundo. O amor de Maria e

sua singular acolhida do dom de Deus sinalizam o Reino. O amor cresce, dilata-se e ganha

luz, até tornar-se uma nova forma de consciência. E essa nova consciência é tão ardente e

transfigurada que pode definir-se por uma nova forma de amor. O amor de Maria Madalena e

22

MARTINI, Carlos Maria. O Evangelho segundo João. 2.ed. São Paulo: Loyola, 1990. p. 17. 23

Para o evangelista João, que não usa o termo “apóstolo”, o discipulado é a categoria cristã fundamental. A

palavra apóstolos aparece em Jo 13,16 com o sentido geral de “enviado”. 24

TEPEDINO, As discípulas, p. 118.

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sua aflição, que parecem ainda contidos no horizonte humano, são transfigurados no amor que

aponta para aquele que venceu o poder da morte. Ao anunciar aos discípulos “Eu vi o Senhor,

e eis o que ele me disse”, Maria Madalena mostra que o tempo da salvação já se faz presente.

Segundo Martini,

quando falta a presença de sinais visíveis do Senhor, é preciso agitar-se, mexer-se,

correr, buscar comunicação com os outros, com a certeza de que Deus está presente

e nos fala. Se na Igreja primitiva Madalena não tivesse agido dessa forma,

comunicando o que salva, e se as pessoas não se tivessem ajudado umas às outras, o

sepulcro teria ficado ali e ninguém teria ido até ele; teria sido inútil a ressurreição de

Jesus. Somente a busca comum e a ajuda uns dos outros levam finalmente a

encontrar-se juntos, reunidos no reconhecimento dos sinais do Senhor25

.

Encarregada de uma missão, Maria Madalena é, antes que qualquer outro,

investida de um papel apostólico em comparação ao grupo dos doze, e os precede na fé26

. Ela

segue e serve como todo discípulo. A ação de Maria Madalena é a ação mesma de Jesus:

servir.

Jesus, ao dizer “Não me retenhas!”, indica a Maria Madalena a sua nova presença

junto à comunidade. Mostra-lhe que sua presença física não é mais possível. Ela não pode

mais ficar encerrada no passado. A experiência atual é diferente. Esta experiência não pode

basear-se no Ressuscitado que volta, mas no que sobe para o Pai. Jesus estabelece junto com o

Pai a sua morada no cristão que, no amor, cumpre os seus mandamentos. A ressurreição

implica um novo modo de se relacionar com Jesus.

Jesus foi o meio e o modelo das novas relações, do novo modo do ser humano se

relacionar com Deus. Como palavra feita carne, Jesus pertence a uma história que já passou.

Maria Madalena será sinal do Reino cumprindo o mandato do Senhor: transmitir aos irmãos e

irmãs o autêntico sentido da morte de Jesus. Aquele que acreditar no revelador cumprirá seus

mandamentos e poderá, então, experimentar plenamente a presença de Deus no seu interior,

fruto dos acontecimentos pascais27

.

O encontro com Jesus ressuscitado se realiza no âmbito da fé, pela palavra, ou

25

MARTINI, O Evangelho, p. 109-110. 26

Segundo Hanna Wolff, “devemos rever radicalmente nossa maneira de imaginar o grupo de discípulos de

Jesus. Os „doze‟ – como se costuma dizer – são uma estilização, uma redação que segue um esquema histórico-

religioso. A maioria dos profetas ou dos fundadores de religiões, como por exemplo, Buddha, têm doze

discípulos mais íntimos. O lado interessante é que se trata de uma redação androcêntrica. Com efeito fala-se

somente de homens: a tendência é aquela costumeira que reina na coletividade, e é aquela antifeminina. Nós

vemos que Jesus, no grupo íntimo dos próprios discípulos, precisa defender-se, e de fato se defende, contra o

androcentrismo daquele coletivo masculino para o qual as mulheres não contam” (WOLFF, Hanna. Gesù, la

Maschilità esemplare: La figura di Gesù secondo la psicologia del profondo. Brescia: Queriniana, 1998. p. 124-

125. Apud SEBASTIANI, Maria Madalena, p. 41). 27

Cf. CALLE, Francisco de la. A teologia do Quarto Evangelho. São Paulo: Paulinas, 1978. p. 154-155.

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“em espírito”.

Sebastiani cita um texto do século IX atribuído a Rabano Mauro, abade de Fulda e

mais tarde arcebispo de Mogúncia, que diz:

Inteiramente tomada pela doçura de seu amante amado, inebriada no Senhor pela

nostalgia de seu cálice, recolhendo-se totalmente em si mesma, e elevando-se acima

de si própria, esvaindo-se pelo calor do amor puríssimo, saboreava as alegrias

interiores. Espaçava entre as falanges dos anjos enquanto ainda morava na terra,

vagando com a mente entre os anjos [...]. Para que lembrar cada episódio singular?

Quem dos evangelistas se cala sobre os merecimentos de Maria Madalena? Quem

dos apóstolos foi intimamente unido ao Senhor? Quem entre eles bebeu com mais

avidez na fonte de seu ensinamento? Por isso, era óbvio que, se foi enviada aos

apóstolos como apóstola e profetiza da sua ascensão, tornou-se também, por isso

mesmo, evangelizadora [evangelista] dos crentes em todo o mundo28

.

Maria Madalena é portadora de palavras que iluminam de modo definitivo o

evento Jesus, sua morte e ressurreição. A glorificação de Jesus na cruz como o Filho de Deus

significou, para a comunidade, um novo nascimento que é obra do Espírito (cf. Jo 3,5;

19,30.34) e que os constitui uma família de irmãos e irmãs, filhos e filhas do mesmo Pai (cf.

Jo 20,17)29

.

A fé de Maria Madalena possibilitou-lhe uma abertura ao dom de Deus, pela qual

acolheu a ação de Deus, superando toda busca de apoio em si mesma para apoiar-se na

verdade e na fidelidade de Deus. Ao abrir-se a esse dom, Maria Madalena entregou-se

inteiramente, a começar por seu espírito, comprometendo-se a ser totalmente para Deus. Os

discípulos e as discípulas devem aprender a encontrar o Mestre de modo espiritual, passando

de uma experiência visível da sua presença a uma outra, totalmente interior e mais íntima.

Com o “Não me retenhas!” se expressa uma “experiência básica pós-pascal” com

Jesus e a tradição de Jesus. Mesmo com toda a ciência disponível, não podemos

chegar a Jesus, nem através de um conhecimento histórico, nem de um

conhecimento teológico sistemático. Com isto não queremos afirmar que o

conhecimento não tenha valor. Ele permite diversas “aproximações”. Provavelmente

um dos mais importantes efeitos da fé pascal do Novo Testamento consiste em levar

o homem a um limite, onde aos poucos lhe parece claro que existe algo de que não

28

SEBASTIANI, Maria Madalena, p. 103. 29

Bortolini afirma que, “ao longo de todo o Evangelho de João, Jesus jamais chamou seus seguidores de irmãos,

a não ser aqui, quando ordena a Maria Madalena: „Vá dizer aos meus irmãos...‟ (Jo 20,17b). Temos a impressão

de que o Evangelho de João reservou zelosamente essa palavra até o presente momento, sem voltar a repeti-la. A

palavra “irmãos”, dita por Jesus, é coisa rara no Evangelho de João. Por quê? Porque as pessoas não se tornam

irmãs de Jesus de modo fácil e simples. Vimos que o discípulo amado ao pé da cruz representa todos os irmãos

mais novos de Jesus que assumem seu projeto e, mediante o testemunho e o anúncio, suscitam descendência ao

irmão mais velho. Portanto, para ser irmão ou irmã de Jesus, é necessário ser „discípulo amado‟, assumir seu

projeto e levá-lo à realização. Cria-se, desse modo, uma grande fraternidade universal de todas as pessoas entre

si e com Jesus. O Pai dele é também o nosso Pai, o Deus dele é também o nosso Deus. Jesus é nosso irmão mais

velho que nos deixa em herança seu projeto de vida para todos. Ele é a videira e nós somos os ramos (cf. Jo

15,5). Ser irmã ou irmão dele é assumir sua herança e produzir frutos de direito e justiça” (BORTOLINI, Como

ler o Evangelho de João, p. 192-193).

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pode dispor, para conduzi-lo simplesmente ao reconhecimento desse indisponível30

.

Na certeza da fé, Maria Madalena sabe que Jesus está presente. A fé a acompanha

por toda a vida. Ela não está abandonada. Mesmo não tocando em Jesus ressuscitado, Maria

Madalena sabe que vela por ela, sabe que guia seus passos e sabe que vive dentro dela e de

todos os seus irmãos e irmãs. O amor de Maria Madalena e sua adesão à Palavra de Jesus

conduzem a comunidade à fé na ressurreição. Por sua busca e procura incessante, chega à fé.

Não exige nenhum tipo de condição ou de sinais para acreditar no Ressuscitado. Bastou

escutar a voz do Senhor lhe chamando, para imediatamente reconhecer aquele que procurava

e tanto amava. Tomé, ao contrário, quer garantias para crer (cf. Jo 20,25). Chegou à fé

exigindo sinais que provassem aquilo que seus companheiros lhe anunciaram. Por esta

analogia, evidencia-se um modelo de fé presente em Maria Madalena, que assinala a

importância da abertura ao dom de Deus para o discípulo ser sinal do Reino. A mensagem que

Maria Madalena deve transmitir aos “irmãos e irmãs” consiste na fundação de uma nova

comunidade escatológica, mediante a volta de Jesus para o Pai. O fundamento do Evangelho

de João está na comunhão divina permanente, aberta por Jesus com a Páscoa.

4.4. Coragem e a permanência em Cristo: fonte de vida para a comunidade

O Evangelho de João, como já foi dito no primeiro capítulo, foi escrito em meio a

muitos conflitos. Antes mesmo de ser escrito, foi vivido e gestado em meio a muitas

dificuldades. O seu testemunho é um testemunho vivo de várias gerações.

A comunidade do discípulo amado se apresenta num mundo que se opõe à ação de

vida trazida por Jesus e está à beira de uma grande perseguição. As autoridades judaicas (o

poder econômico, político, religioso e ideológico) decidiram eliminar todos os que dessem

adesão a Jesus. Alguns dos discípulos que permaneceram fiéis a João Batista hostilizavam a

comunidade do discípulo amado. E o Evangelho de João mostra que João Batista era apenas

testemunha da luz, a fim de que todos, por meio dele, aderissem a Jesus. Alguns grupos

aderiram a Jesus, mas permaneciam ligados à instituição judaica. Não queriam ser expulsos

das sinagogas e, por isso, ocultaram sua fé em Jesus. Essas eram as dificuldades que a

comunidade joanina foi chamada a enfrentar com muita coragem e firmeza na fé. Qual era,

então, a fonte de vida para a comunidade? Certamente é a coragem de romper com todo tipo

30

BLANK, Josef. O Evangelho segundo João. Petrópolis: Vozes, 1991. v. 3, p. 169.

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de barreira que impede de proclamar a fé em Jesus, permanecendo em seu amor e em sua

palavra31

. A coragem e a permanência no Cristo são duas dimensões que não podem se

ausentar do discipulado. São elas as fontes que garantem a vida da comunidade.

Jesus disse: “Se permanecerdes na minha palavra, sois verdadeiramente meus

discípulos, e conhecereis a verdade, e a verdade vos tornará livres” (Jo 8,31-32). “Permanecer

em” é uma expressão de interioridade que indica não apenas a relação entre o Pai e o Filho,

mas também a relação vital e dinâmica entre Jesus e seus discípulos. Logo, “permanecei em

meu amor” expressa uma intima união com Jesus que evidencia, ao mesmo tempo,

reciprocidade e durabilidade. “Permanecer na palavra” de Jesus é afirmar-se na fé, persistir no

caminho e interiorizar a palavra de Jesus como experiência de encontro pessoal. É discípulo

de Jesus quem permanece na sua palavra32

.

O permanecer na palavra de Jesus e em seu amor possibilitará ao discípulo uma

confiança inabalável em Deus diante das aflições. Os discípulos não devem perder o ânimo.

Em Jo 16,33, Jesus exorta os discípulos a manter a coragem que garante a vida da

comunidade, vencendo todas as aflições que o mundo inflige.

O discipulado não indica um grupo sociológico de indivíduos em redor de Jesus. Os

verdadeiros discípulos são aqueles que estão em união profunda e permanente com

Jesus. Esta “permanência” define substancialmente a condição de discipulado em

João. O ponto essencial de referência desta permanência é a palavra de Jesus (cf.

8,1; 15,8); não basta pertencer ao grupo daqueles que seguem Jesus durante sua vida

pública: é preciso “permanecer em sua palavra” (8,31). O “verdadeiro discípulo” é

aquele que deixa penetrar em si mesmo a Palavra (15,7) e, continuamente, a

transforma em palavra de vida. Desta assimilação progressiva da palavra de Jesus

dependerá a libertação do crente: “Se permanecerdes na minha palavra... a verdade

vos libertará” (8,31s)33

.

Quando João leva a comunidade a olhar para a “vitória de Cristo”, visa a lhe dar

apoio e consolo, não em primeiro lugar para garantir a sobrevivência da comunidade dentro

do mundo, mas para ficar firme até o fim. A fé já participa agora da vitória de Jesus. Pois,

como ressuscitado, Jesus é distribuidor escatológico da vida. Assim a fé torna-se força que

liberta o ser humano perdido no mundo da morte para a vida. “Pois tudo que vem de Deus

31

CNBB, Uma Igreja que acredita, acolhe e envia: Evangelho segundo João. São Paulo: Paulinas, 2007. p. 86:

“No meio das dificuldades, a comunidade encontra, na mensagem de Jesus, uma garantia de serenidade: „Não

perturbe o vosso coração‟ (Jo 14,1). A fé não elimina o medo; mas ajuda a enfrentá-lo de cabeça erguida.

Principalmente quando partilhada na comunidade, a fé não permite que fiquemos desnorteados: mostra saídas

para a crise; sugere alternativas. Haja o que houver, o cristão não entrega os pontos; não perde a cabeça”. 32

Léon-Dufour afirma que “o primeiro engajamento deve tornar-se fé autentica. Não se tratará somente de

„seguir‟ Jesus (Jo 8,12) ou de confiar nele (Jo 8,31), mas de „permanecer‟ em sua palavra, de assimilá-la, de

existir por ela e descobrir que ela é a palavra do próprio Deus. Permanecendo na palavra de Jesus, o discípulo

„compreenderá‟, entrará num conhecimento sempre mais profundo, que é comunhão com o objeto conhecido, a

„verdade‟” (LÉON-DUFOUR, Leitura, p. 200-201). 33

SANTOS, Teologia, p. 159.

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vence o mundo; e esta é a vitória que vence o mundo, nossa fé. Pois quem é vencedor do

mundo, senão aquele que crê que Jesus é o filho de Deus?” (1Jo 5,4-5). A fé em Jesus como o

Filho enviado pelo Pai ao mundo é a vitória sobre o mundo, porque é a fé no amor. Esta fé é

produzida pelo poder criador de Deus, pelo Espírito que orienta e conduz a comunidade. É

esse poder criador que faz com que o amor siga fluindo vitoriosamente para o “mundo”. E, se

o “mundo” é o âmbito em que domina o “maligno”, ou seja, as trevas da falta do amor, então

a fé no amor é a vitória sobre a falta de amor e sobre o ódio34

.

Como fonte que sustenta a vida da comunidade, o evangelista apresenta algumas

mulheres com essas dimensões. Elas são seguidoras de Jesus do principio ao fim.

Acompanham com coragem o Mestre até o fim do seu caminho na cruz. Permanecendo fiéis,

não o deixam e se tornam as únicas testemunhas oculares da execução de Jesus.

Diferentemente, o grupo dos discípulos foge no momento da morte de Jesus.

A atitude dessas mulheres é a mesma atitude de Jesus que amou até o fim.

4.4.1. A samaritana: sua permanência em Jesus e sua coragem

Ao deixar a Judéia, Jesus se dirige à Galiléia, passando pela Samaria. Depois de

uma caminhada de horas, chega a uma cidade de Samaria chamada Sicar, onde se acha a fonte

de Jacó. Jesus estava sentado junto à fonte, quando chegou uma mulher da Samaria. Ela foi lá

para tirar a água que precisava para saciar sua sede (cf. Jo 4,3-7). Jesus tomou a iniciativa de

conversar com aquela mulher. E ela sabia que os judeus não se davam com os samaritanos.

Por isso, achou estranha a aproximação daquele judeu. Mas Jesus tem sede dela, do desejo

dela pela água viva, água que só ele tem para dar. Essa aproximação possibilitou um encontro

revelador para a mulher samaritana e os seus conterrâneos. Diante da mulher samaritana,

estava aquele que ela não podia deixar de escutar. Por isso não foi embora, mas acolheu em

seu ser aquele que lhe fala, ensina e se revela. É o dom de Deus enviado àquela mulher

samaritana que representava toda a Samaria.

A mulher samaritana deixa de lado as controvérsias com os judeus e procura,

através do diálogo, conhecer e compreender aquele que se coloca junto ao poço de Jacó.

Permanece junto ao poço e escuta o que Jesus lhe revela. Sua vida é transformada por aquelas

palavras. Mas não só escuta. Suas questões proporcionam um verdadeiro diálogo. “Chegam a

34

Cf. THÜSING, Wilhelm. Las Cartas de San Juan. Barcelona: Herder, 1973. p. 185.

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uma conversa sobre questões religiosas importantes como o problema da salvação,

simbolizado pela „água viva‟, o problema da correta adoração de Deus, e do messias”35

.

A mulher samaritana, mesmo sabendo que aquele homem é um judeu, coloca-se

plenamente à sua escuta. Não se preocupa com o que podem dizer de sua conversa com

aquele judeu e muito menos de ser vista por alguém. Não tem medo do que possa acontecer

com ela por causa de seu diálogo com Jesus. A samaritana chegará, no seu diálogo, a provocar

a auto-revelação de Jesus (cf. Jo 4,26). Para isso, a mulher aceitou passar por uma ascese de

fé: Jesus é um judeu (cf. Jo 4,9), possivelmente maior que Jacó (cf. Jo 4,12.15), profeta (cf. Jo

4,9), possivelmente também o messias revelador (cf. Jo 4,29).

A permanência da samaritana junto a Jesus fez com que tomasse consciência de

suas próprias limitações. A coragem de reconhecê-las abriu o coração dessa mulher para o

dom que Deus estava lhe oferecendo36

. É justamente mediante à revelação que Jesus faz à

mulher samaritana, como sendo o Messias que tanto esperava, deixa o que estava fazendo

(buscar água) para anunciar corajosamente aos samaritanos o que ouviu de Jesus. Motivada

pelo mistério que se desvelara nela, foi anunciar o Cristo a seu povo, não importando com o

que poderiam dizer dela. Mesmo sendo marginalizada e discriminada pelo povo judeu por

pertencer a um povo de hereges (cf. Jo 4,9), não se importa de ser hostilizada. Aquele que se

demorou com ela, em profundo e inesquecível diálogo, fê-la possuir, para sempre, a verdade

de si mesma; devolveu-lhe o direito de ser mulher; refez-lhe o gosto de viver e abriu-lhe as

portas do amanhã. Fez de sua vida uma vida para Deus. Aceitou ser a discípula fiel de Jesus,

mesmo não sendo chamada e enviada para o anúncio. Sua disponibilidade foi plena de amor

porque não conteve essa novidade para si, mas anunciou o Cristo a todos os seus

conterrâneos.

A samaritana carrega no mais profundo de si mesma a palavra de Jesus que

alimentará os seus conterrâneos. Imbuída desta palavra, a mulher samaritana trará o seu povo

para conhecer aquele homem. A experiência da mulher samaritana conduz as pessoas a Jesus

e faz deste o hóspede dos samaritanos. A palavra da mulher samaritana é a palavra de Jesus,

que já era a palavra do Pai. A samaritana recebeu a palavra, guardou-a e nela perseverou. Deu

o fruto do amor que é o fruto da palavra. E, na força dessa palavra, os samaritanos

reconhecerão Jesus, mas não apenas como um profeta, e sim como o “salvador do mundo”.

35

BLANK, O Evangelho v. 1a, p. 298. 36

A consciência de ser pecador, o reconhecimento de estar longe da verdade e a confissão sincera de tudo o que

se tem feito fora do caminho desalojam do coração a mentira e o engano e permitem a salvadora presença da

verdade, fonte de vida.

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Tal e qual a mulher samaritana, os samaritanos querem permanecer na palavra de Jesus. Por

isso pedem a Jesus para permanecer com eles.

Portanto, a mulher samaritana fornece à comunidade, com sua fé no Cristo que se

lhe revela, uma fonte abundante de vida. Ela encontrou o seu verdadeiro Senhor e se tornou

uma esposa fiel. Ela é o sinal do Cristo Jesus, que aceita o dom que o Senhor profetiza: “Todo

aquele que bebe desta água ainda terá sede; mas aquele que beber da água que eu lhe darei

nunca mais terá sede; pelo contrário, a água que eu lhe darei se tornará nele uma fonte que

jorra para a vida eterna” (Jo 4,13s). Os discípulos e discípulas tornam-se os adoradores em

espírito e verdade (cf. Jo 4,24) e, por isso, terão um dinamismo missionário e evangelizador,

tal como a mulher samaritana, que dizia para todos: “Vinde ver o homem que disse tudo o que

eu fiz. Não seria ele o Cristo?” (Jo 4,28.39).

4.4.2. Maria Madalena: sua permanência em Cristo e sua coragem

O evangelista selou a vida da comunidade joanina ao evidenciar o grande amor

que Maria Madalena tinha pelo seu Senhor. Maria Madalena acompanhou Jesus em todo seu

ministério. As palavras de Jesus penetraram profundamente em seu ser. Pelo seu seguimento

fiel em todos os momentos da vida de Jesus, Maria Madalena é considerada uma autêntica

discípula.

“Perto da cruz de Jesus, permaneciam de pé, a sua mãe, a irmã de sua mãe, Maria

de Clópas, e Maria de Mágdala” (Jo 19,25). Maria Madalena não domina a cena, mas alguns

pensadores descobriram nela uma figura intrigante, útil para a compreensão da natureza da fé

e da redenção. O Quarto Evangelho apresenta Maria Madalena como uma personagem

fundamental para a comunidade do discípulo amado.

Junto à cruz, apresenta-se um corpo que expressa dor e sofrimento. Maria

Madalena não teme ser vítima do mesmo destino. Ela está ali diante da cruz, sofrendo com o

seu Senhor que tanto ama. Nesse momento tão difícil, Maria Madalena não abandona Jesus

como fazem os outros discípulos. Une-se ao Mestre para atravessar o portal da morte. Este

paradigma refere-se à rara capacidade de acompanhar as pessoas que estão em agonia, em

sofrimento e na hora da morte. “É também um papel de „parteira‟, tal qual aquela que

acompanha um ser humano na hora de seu nascimento. Corresponde a uma dimensão

feminina em homens e mulheres, que não teme o desconhecido, que não teme a morte”37

.

37

BOGADO, Anna Patrícia Chagas. Maria Madalena: O feminino na luz e na sombra. Rio de Janeiro: Lucerna,

2005. p. 136.

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Exceto o discípulo amado, os outros discípulos abandonam Jesus no momento da

cruz. Eles não suportam aquela cena, não o acompanham na hora derradeira, no

enfrentamento da morte38

.

A obediência de Jesus ao Pai leva-o à morte. Nela, oferece ao mundo a

possibilidade de salvação. O amor de Maria Madalena constata que esta morte é sinal do amor

no qual se deve permanecer. Maria Madalena enfrenta uma “morte de si mesma”, ou de

pequenas mortes que se dão, necessariamente, num processo de crescimento interior. É

permanecendo no amor e na palavra de Jesus que o discípulo e a discípula participam da vida

de Jesus, que se submeteu às ordens do Pai, levando ao máximo o amor de Deus. Os

discípulos e as discípulas devem continuar na mesma linha de obediência aos mandamentos

de Jesus, com a qual está atuando o mesmo amor-obediência que levou Jesus até a cruz.

O amor de Maria Madalena por Jesus deixa seu ser inquieto. Buscando

compreender o que aconteceu a Jesus, o seu Mestre, ela se agita, se mexe, corre, busca falar

com os outros. É na inteireza de seu amor pelo Mestre, que Maria Madalena vai ao túmulo de

Jesus no primeiro dia da semana, ao alvorecer, enquanto ainda estava escuro (cf. Jo 20,1).

Corajosa e destemida, ela é a primeira a observar o túmulo vazio. Sua atitude mostra para os

discípulos da comunidade que só o amor pode vencer o “medo”39

que tinham dos judeus.

Maria possui uma atitude que se apresenta como uma declaração a favor de Jesus (cf. Jo 7,13;

9,22; 12,42; 19,38).

Maria Madalena, com a sua ação, põe os discípulos em movimento, a caminho do

Senhor40

. Interpela-os a saírem da dispersão e inércia em que se encontravam. “Somente a

busca comum e a ajuda uns dos outros levam finalmente a encontrar-se juntos, reunidos no

reconhecimento dos sinais do Senhor”41

. Somente é possível o discípulo compreender ou

viver a experiência da ressurreição se, como Maria Madalena, estiver em busca.

38

Elizabeth Fiorenza resgata as mulheres como as discípulas da hora da paixão. “Ao passo que os lideres varões

e discípulos não compreendem esse messianismo sofredor de Jesus, recusam-no e por fim abandonam Jesus; as

discípulas mulheres, que seguiram Jesus desde a Galiléia até Jerusalém, surgem de repente como as verdadeiras

seguidoras (akolouthein) de Jesus; que compreenderam que o seu ministério não era governo e glória régia, mas

diakonia, „serviço‟ (Mc 15,41). Surgem, assim, as mulheres como as verdadeiras ministras e testemunhas

cristãs” (FIORENZA, As origens, p. 10). 39

Esse “medo” evidencia a situação da comunidade joanina em relação à sinagoga (cf. Jo 9,22). Cf. KONINGS,

Evangelho, p. 406. 40

CNBB, Uma Igreja, p. 102-103: “Enquanto os homens, assustados, se escondem, em Maria Madalena o amor

vence o medo: ela procura, acha, vê, ouve; acredita. Recebe a missão de, por primeira, anunciar a ressurreição

aos discípulos. Com sua atuação e palavra, os evangeliza em momento de crise; com razão será chamada, mais

tarde, „apóstola dos apóstolos‟. Desde as origens, que seria da Igreja se as mulheres não fossem tão decididas,

dedicadas e atuantes? Em João, todas as mulheres que entram em cena têm papel altamente positivo”. 41

MARTINI, O Evangelho, p. 109.

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Identificando-se como uma seguidora fiel do Senhor, Maria Madalena possui em

seu ser o registro da voz e da vida daquele que incansavelmente procurava. Por isso, ao ser

chamada pelo nome pelo Ressuscitado, reconhece-o de imediato. E, com o mandato de ir aos

irmãos para lhes anunciar o que Jesus lhe diz, torna-se uma das maiores testemunhas do

Ressuscitado42

.

Ela vê Jesus após a sua morte e ressurreição. Tendo sido capaz de atravessar a morte

junto com ele, e dentro de si, é a primeira a vê-lo, o que a torna a testemunha mais

importante de sua ressurreição, colocando-a no papel da “apóstola dos apóstolos”43

.

Segundo o sermão anônimo francês do século XVII,

Tendo, portanto, Maria Madalena encontrado esse único amável, ela convoca, por

assim dizer, todas as partes de seu amor [...], para consagrá-las a seu único; junta

toda a sua força no meio do coração, e admirando infinitamente esse novo amante,

ela busca, para ele um novo fundo de amor que não tenha limites44

.

Maria Madalena é intimada pelo Senhor a não retê-lo. É preciso fazer ecoar a boa-

nova de Jesus para os irmãos. É convocada pelo Ressuscitado a sair daquele lugar para

anunciar aos discípulos que o Cristo vive. Ao dirigir-se aos irmãos da comunidade, Maria

Madalena faz uma verdadeira profissão de fé. A “discípula amada” viu o Senhor e anunciou

aos discípulos o que ele lhe disse. Sua participação na comunidade é vital, pois leva dentro de

si aquele que tanto ama. Para Maria Madalena, ficou claro que Jesus venceu a morte e que ele

não está ausente. O anúncio que leva faz dela uma apóstola dos demais discípulos. Maria

Madalena faz a nova comunidade nascer de novo. Ela é um sinal do Ressuscitado, que integra

os irmãos e irmãs da comunidade. Gange lembra que,

diante desta irreparável separação que os deixava acabrunhados e órfãos, como

mulher amante e generosa, Maria Madalena quis partilhar o que tinha: este amor

imortal e este conhecimento profundo de Jesus45

.

Maria Madalena prossegue com a obra do seu Senhor. Em seu ser, habita o

Ressuscitado. Seu amor e sua confiança são infinitos. O que ela fez recria na comunidade de

crentes uma nova simbologia, uma nova maneira de ver, de sentir, de valorizar e de atuar na

relação com o mundo e no mundo. É uma experiência que alimenta, sustenta e mantém a vida

da comunidade. Só homens e mulheres atraídos pelo projeto de Jesus, com uma nova

sensibilidade que garanta a vida e mantenha a esperança, podem crer realmente no Cristo

Ressuscitado.

42

Cf. O‟COLLINS, Gerald; KENDALL, Daniel. Mary Magdalene as Major Witness to Jesus‟ Resurrection.

Theological Studies, Washington, n. 48, p. 631-646, 1987. 43

BOGADO, Maria Madalena, p. 139. 44

RILKE, O amor de Madalena, p. 26. 45

GANGE, Françoise. Jesus e as mulheres. Petrópolis: Vozes, 2007. p.183

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4.5. Conclusão

As mulheres exercem um papel muito importante na vida da comunidade joanina.

Elas mostram uma capacidade de abertura aos ensinamentos de Jesus. Elas escutam,

interpelam, buscam, correm, vêem, encontram, acreditam e anunciam aquele que é o enviado

de Deus. A vida destas mulheres é transformada pelas palavras de Jesus. A fé que têm, fazem

delas verdadeiras anunciadoras do Cristo Jesus. Com ternura, solidariedade e fraternidade

sustentam e alimentam a vida dos irmãos e das irmãs de comunidade.

A mulher samaritana e Maria Madalena evidenciam a importância do encontro

pessoal com Jesus. É no encontro e na convivência que se pode conhecer Jesus, o Filho de

Deus.

A escuta atenta da mulher samaritana torna-se reveladora do grande dom que

Deus lhe oferecia: Jesus. Aos poucos e de maneira bem pedagógica, Jesus conduz a mulher

samaritana. O ápice dessa escuta culmina com a revelação de Jesus como o Cristo que ela e os

seus conterrâneos tanto esperavam. A grande profissão de fé da samaritana é marcada pelo

gesto de largar tudo o que estava fazendo, para ir anunciar aos samaritanos o Cristo que

esperavam. Ela fez com que os samaritanos fossem até Jesus para ouvi-lo e também

professarem sua fé: este é verdadeiramente o “salvador do mundo” (cf. Jo 4,42).

Maria Madalena, em sua busca incansável, torna-se a grande integradora dos

irmãos e irmãs na comunidade. Sua ação e atitude colocam todos os discípulos em

movimento. Eles não podem ficar parados e inertes diante dos acontecimentos. O amor de

Maria Madalena pelo seu Senhor torna o Ressuscitado presente e vivo na sua vida. Escutar e

conviver com Jesus, seguindo-o em seu ministério, capacitaram Maria Madalena para a

missão que lhe deu o Cristo Ressuscitado. Os discípulos só poderão anunciar o Cristo Jesus se

se amarem uns aos outros. É este anuncio que Maria Madalena é incumbida de levar aos

irmãos e às irmãs, estabelecendo um novo modo de se relacionar com Jesus que volta para o

Pai.

A comunidade joanina teve nessas mulheres paradigmas de fé e de anúncio que

ajudou na caminhada com o Ressuscitado. Resta agora verificar a contribuição dessas

mulheres para a Igreja de hoje: uma Igreja formada por um discipulado fiel e comprometido

com o Cristo Jesus. Que inspirações essas mulheres da comunidade joanina lançam para a

Igreja de hoje?

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5. IGREJA: COMUNIDADE DE FÉ E ANÚNCIO

5.1. Introdução

A comunidade joanina foi iluminada pelo exemplo das mulheres, especialmente

pelo testemunho da samaritana e de Maria Madalena. Elas contribuíram para que a fé dos

membros da comunidade joanina fosse fortalecida. A persistência, o amor, a atenção, a

coragem da mulher samaritana e a de Maria Madalena deram à comunidade ânimo à obra do

Senhor Jesus, evitando que esta ficasse estagnada. Diante disso, quais são as luzes que estas

mulheres lançam para a vivência da fé e do anúncio nos dias de hoje? A Igreja é chamada a

ser sinal do Cristo ressuscitado. Isto exige do discipulado um seguimento fiel e um

compromisso com Jesus Cristo. Neste capítulo, o que se pretende é, pois, a partir desses textos

bíblicos, haurir inspiração para viver a fé e testemunhá-la como Igreja.

5.2. O amor: ato fundante da comunidade que crê e anuncia

Tendo o olhar focado no Evangelho de João, percebemos um trabalho que não é

fruto de esforço de uma pessoa isolada. Por trás desta magnífica obra, encontra-se uma

comunidade de discípulos e discípulas que nasceu de modo simples em meio às dificuldades e

conflitos, que os cristãos estavam enfrentando. A comunidade foi crescendo e assumindo um

jeito próprio de ser e de agir. Seu relacionamento com outros grupos e sua situação existencial

refletem tanto o amor quanto o ódio. O Evangelho é chave que nos abre a vida da Igreja como

comunidade que professa a fé, fazendo aliança com o Cristo Jesus. Essa vida faz emergirem a

paz e a alegria. Os discípulos vencem o medo que tinham dos judeus e, com suas vidas,

apresentam ante o mundo inimigo o verdadeiro rosto de Deus, como fez Cristo em seu

ministério terrestre.

Portanto, os cristãos têm agora nas mãos, como em seu tempo esteve nas mãos de

Cristo, a abertura do homem ao mundo de Deus. A aliança do ser humano feita com Cristo é

mais que um poder, é uma responsabilidade, pois seu agir tem uma transcendência na esfera

do divino. A presença do divino no mundo fica totalmente condicionada à comunidade cristã,

aberta sempre ao contínuo incremento dos seres humanos que creem e praticam os

mandamentos de Jesus.

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A Igreja é marcada e selada pela identidade de Jesus. Assim, os discípulos e as

discípulas são identificados com o agir próprio de Jesus. Jesus disse: “... aquele que crer em

mim fará também as obras que eu faço; ele fará até obras maiores, porque eu vou para o Pai”

(Jo 14,12). Acolher a boa-nova de Jesus é abrir lugar ao Deus que age.

Jesus identifica o agir dos discípulos com o seu próprio agir. Não se trata de um

“modelo” a copiar exatamente, mas essas palavras são pronunciadas num contexto

que determina o caráter de iminência do Reinado. Jesus certamente terá proclamado

uma moral de exceção, mas ao mesmo tempo de sinergia. Pois o texto vai até o

ponto de declarar que o crente fará não as obras que Jesus fez, mas aquelas que Jesus

está fazendo: o verbo está no presente do indicativo, significando que, se Jesus está a

ponto de morrer, ele não cessará de agir para a glória de seu Pai. Ele terminou sem

dúvida sua missão na terra, mas sua obra continua, hoje ainda, através de seus

discípulos que exprimem seu agir1.

Segundo João, o outro não é o ser humano em geral, mas o irmão na fé. Jesus

constitui sua comunidade, indicando-lhe a maneira de comportar-se num mundo hostil,

fornecendo aos discípulos e discípulas o modelo do amor que vai até o fim, sem reservas. “No

fundamento do desígnio eterno de Deus, a mulher é aquela na qual a ordem do amor no

mundo criado das pessoas encontra um terreno para deitar a sua primeira raiz”2.

Ao crer no amor de Deus, o cristão pode exprimir a opção fundamental de sua vida.

No início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande idéia, mas o

encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá a vida um novo horizonte

e, assim, o rumo decisivo. Em seu Evangelho, João expressou este acontecimento

com as seguintes palavras: “Deus amou de tal modo o mundo que lhe deu seu Filho

único para que todo o que n‟Ele crer (...) tenha a vida eterna” (3,16). Com a

centralidade do amor, a fé cristã acolheu o núcleo da fé de Israel e, ao mesmo tempo,

deu a esse núcleo uma nova profundidade e amplitude. O crente israelita, de fato,

reza todos os dias com as Palavras do livro do Deuteronômio, nas quais sabe que

está contido o centro de sua existência: “Escuta, ó Israel! O Senhor, nosso Deus, é o

único Senhor! Amarás ao Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua

alma e, com todas as tuas forças” (6,4-5). Jesus uniu – fazendo deles um único

preceito – o mandamento do amor a Deus com o do amor ao próximo, contido no

livro do Levítico: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo” (19,18; cf. Mc 12,29-

31). Dado que Deus foi o primeiro a amar-nos (cf. 1Jo 4,10), agora o amor já não é

apenas um “mandamento”, mas a resposta ao dom do amor com que Deus vem ao

nosso encontro3.

Sendo assim a Boa-Nova não comporta ensinamento sobre o ser humano diante

do ter, nem sobre o dinheiro, nem sobre o comportamento diante de seu cônjuge, nem enfim

sobre a vida em sociedade. O evangelista não ignora essas realidades da vida cotidiana. No

entanto, seu intento é diferente: quer chegar à radicalidade do agir humano. O exemplo do

1 LÉON-DUFOUR, Agir, p. 117.

2 JOÃO PAULO II, Mulieris, n. 29.

3 BENTO XVI. Carta Encíclica Deus é amor. São Paulo: Paulus, 2006, n. 1.

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lava-pés continua sendo o ato fundador pelo qual a Igreja se constitui4.

Comprometer-se com o Cristo Jesus exprime o amor divino que está em cada

discípulo e discípula5. A Igreja deve deixar-se reger pelo amor de Jesus fazendo crescer em

seus discípulos e discípulas o amor de uns para com os outros. Só assim poderá ser um sinal

que atrai a todos para Cristo. “A Igreja como „comunidade de amor‟ é chamada a refletir a

glória do amor de Deus, que é comunhão, e assim atrair as pessoas e os povos para Cristo”6.

Disse Jesus: “Como eu vos amei, vós também amai-vos uns aos outros. Nisto todos

reconhecerão que sois meus discípulos: no amor que tiverdes uns para com os outros” (Jo

13,34-35). No centro do agir da Igreja, impreterivelmente tem de estar o amor: amor que

constrói novas relações entre os membros da comunidade e que não deixa imperar as

diferenças existentes no poder. O amor nos une em comunidade e nos liberta das definições

pejorativas que resultam em exclusão. O amor transcende as barreiras, une, atrai e intensifica

a vida. O amor estabelece entre os discípulos e discípulas uma nova relação que supera todo

tipo de dificuldade (cf. Jo 20,17). As diferenças que dividem a comunidade deixam de existir,

quando existe amor.

A Igreja não pode tornar visível o amor de Deus ao mundo, senão quando ela

mesma o realiza sempre incansavelmente de novo. O relacionamento do amor se realiza

primeiro dentro da comunidade, pois a Igreja é comunhão no amor. Esta é a sua essência e o

sinal através do qual é chamada a ser reconhecida como seguidora de Cristo e servidora da

humanidade. O que une os discípulos e as discípulas fazendo-os se reconhecerem como

irmãos e irmãs é o novo mandamento. Obedientes a Jesus, como membros unidos à mesma

cabeça, os discípulos e as discípulas são chamados a cuidarem uns dos outros (cf. 1Jo 3,23).

No seio da comunidade humana em que vivem, os discípulos e as discípulas

manifestam sua capacidade de compreensão e de acolhimento, sua comunhão de vida e de

destino com os demais, sua solidariedade nos esforços de todos para tudo aquilo que é nobre e

bom. Assim, fazem expandir, de maneira simples, concreta e espontânea, sua confiança em

valores que estão para além dos valores correntes e terrenos. Sua esperança não está em

4 Jesus ao cingir-se com uma toalha, tomou o jarro com a bacia e pôs-se a lavar os pés dos discípulos. Todos

tiveram que aprender, como se estivessem começando do ponto zero, a trilhar o caminho de discipulado. Pedro

tornou-se a nossa voz: “Lavar os pés a mim? Jamais!” E Jesus lhe respondeu: “Se eu não te lavar, não poderás

ter parte comigo” (Jo 13,8). Todos os discípulos tinham ainda em seus pensamentos as relações entre os homens

em termos de importância e de poder. A partir deste momento, Pedro, juntamente com os outros, compreendera

que devia viver no amor de uns para com os outros, servindo os irmãos e as irmãs. 5 LA CALLE, A teologia, p.18: “Deus é amor e mandou seu filho ao mundo para que todo aquele que tem fé

nele se salve, guardando os seus preceitos, que encerram o mútuo amor dos fiéis, e dando testemunho da

salvação, mediante a sua palavra que procede do revelador e se amplia em compreensão por obra do Espírito”. 6 CONSELHO EPÍSCOPAL LATINO-AMERICANO. Texto conclusão da V Conferência Geral do Episcopado

Latino-americano e do Caribe, Aparecida, 2007. 2.ed. São Paulo: Paulus, 2007, n. 159.

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qualquer coisa, mas no Cristo Jesus que é o Filho de Deus, o salvador do mundo (cf. Jo

4,29s.39-42).

A fé e o amor devem firmar-se na vida cotidiana e em meio às tribulações do

mundo (cf. Jo 15,19;16,33; 1Jo 3,13). “Aquele que diz: „Eu o conheço‟, mas não guarda os

seus mandamentos é um mentiroso e a verdade nele não está. Mas aquele que guarda a sua

palavra, nele o amor de Deus é verdadeiramente perfeito, e nisto reconhecemos que estamos

nele. Quem pretende permanecer nele deve também andar no caminho em que ele [Jesus]

andou” (1Jo 2,4-6)7.

A fé precisa tanto do amor que somente quando se deixa preencher desse é

verdadeira, e somente quando consegue plasmar-se como expressão de ternura

reproduz realmente a cruz, tornando-se a contraprova de uma Igreja acreditável,

nascida do costado aberto de Cristo e capaz de repropor ao mundo a salvação como

fruto daquele “coração amante”8.

Todo aquele que quer oferecer amor deve ele mesmo recebê-lo em dom. O ser

humano pode , como nos diz Jesus, tornar-se uma fonte de onde correm rios de água viva (cf.

Jo 7,37-38; 4,14). Para se tornar semelhante fonte, deve ele mesmo beber incessantemente da

fonte primeira e originária que é Jesus Cristo (cf. Jo 4,15), de cujo coração trespassado brota o

amor de Deus (cf. Jo 19,34).

O anúncio, missão da comunidade, realiza-se em ambiente de amizade com Jesus

e faz com que a alegria do fruto seja partilhada (cf. Jo 4,36). Revela a alegria de sermos

discípulos do Senhor e de termos sido enviados para anunciar o evangelho.9 A comunidade do

discípulo amado mostra a força transformadora do mandamento novo e a fecundidade de

permanecer no amor de Jesus.

No encontro pessoal com Jesus, a mulher samaritana tornou-se uma fiel seguidora

de Jesus. O encontro com o Senhor gera uma profunda transformação em todos aqueles que

não se fecham ao seu apelo. Com fé e amor, a mulher samaritana apontou para seus

conterrâneos o caminho do Cristo. Assim, não só ensina o que descobriu, mas faz também

com que os seus encontrem pessoalmente Jesus: “Vinde ver” (Jo 4,29). A fé profunda dos

7 SCHMAUS, Michael; GRILLMEIER, Alois; SCHEFFCZYK, Leo. História de los dogmas. Cuaderno 3a-b,

Madrid: Edica S.A., 1978. v. 3, p. 107. 8 ROCCHETTA, Carlo. Teologia da ternura: um “evangelho” a descobrir. 2.ed. São Paulo: Paulus, 2006. p. 19.

9 CELAM, V Conferência, n. 31: “A Igreja deve cumprir sua missão seguindo os passos de Jesus e adotando

suas atitudes (cf. Mt 9,35-36). Ele, sendo o Senhor, se fez servidor e obediente até a morte de cruz (cf. Fl 2,8);

sendo rico, escolheu ser pobre por nós (cf. 2Cor 8,9), ensinando-nos o caminho de nossa vocação de discípulos e

missionários. No evangelho aprendemos a sublime lição de ser pobres seguindo a Jesus pobre (cf. Lc 6,20;9,58),

e a de anunciar o Evangelho da paz sem bolsa ou alforje, sem colocar nossa confiança no dinheiro, nem no poder

deste mundo (cf. Lc 10,4ss). Na generosidade dos missionários se manifesta a generosidade de Deus, na

gratuidade dos apóstolos aparece a gratuidade do Evangelho. [...] A Igreja está a serviço de todos os seres

humanos, filhos e filhas de Deus”.

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samaritanos é suscitada pelo encontro pessoal com Jesus. O amor com que a mulher

samaritana acolheu Jesus é para a comunidade dos discípulos de hoje o caminho para o

coração de Deus. O amor expandiu a vida dessa mulher ao fluir através dela.

A mulher é aquela que recebe amor para, por sua vez, amar. Mas não só ou antes de

tudo a relação esponsal específica do matrimônio. É algo mais universal, fundado no

próprio fato de ser mulher no conjunto das relações interpessoais, que nas formas

mais diversas estruturam a convivência e a colaboração entre as pessoas, homens e

mulheres. Neste contexto amplo e diversificado, a mulher representa um valor

particular como pessoa humana e, ao mesmo tempo, como pessoa concreta, pelo

fato da sua feminilidade. Isto se refere a todas as mulheres e a cada uma delas,

independentemente do contexto cultural em que cada uma se encontra e das suas

características espirituais, psíquicas e corporais, como, por exemplo, a idade, a

instrução, a saúde, o trabalho, o fato de ser casada ou solteira10

.

Esse amor leva a Igreja a ser sinal permanente do Cristo Jesus no mundo e

coloca-a a serviço de todos os seres humanos, filhos e filhas de Deus. Deste modo, “a Igreja,

que vive da presença permanente e misteriosa do seu Senhor ressuscitado, tem como centro da

sua missão o empenho de „levar todos os homens a encontrar-se com Cristo‟”11

.

Maria Madalena, com seu amor, recebe em seu ser o Senhor Ressuscitado. Sua

vida torna-se um testemunho que remete ao mistério. O mandato que recebe do Ressuscitado

é imediatamente comunicado aos irmãos da comunidade. Sua adesão incondicional ao Senhor

estabelece na comunidade um novo relacionamento que está para além de toda materialidade,

de todo privilégio e de todo poder que divide. Em Maria Madalena, está o mistério do amor,

da vida, da entrega. Nela se espelha a Igreja, que se esforça para ser um anúncio vivo do

mandato do Senhor12

. A riqueza da mensagem de Jesus Cristo dependerá da profundidade do

diálogo da Igreja com o Senhor e a comunidade se enriquecerá à medida que conseguir

meditar sobre os desafios, questionamentos e dons que a ela se apresentam.

Os verdadeiros discípulos e discípulas são aqueles que estão em união profunda e

permanente com Jesus. “Na proclamação e no testemunho cotidiano dos discípulos se

evidencia quem é, de fato, Cristo para a comunidade de hoje”13

. Maria Madalena respondeu a

Jesus com uma vida de discipulado fiel. Comparada à noiva do Cântico dos Cânticos, Maria

10

JOÃO PAULO II, Mulieris, n. 29. 11

JOÃO PAULO II, Ecclesia, n. 68. 12

LIBANIO, João Batista. Olhando para o futuro: Prospectivas teológicas e pastorais do Cristianismo na

América latina. São Paulo: Loyola, 2003. p. 57: “O testemunho parece tocar as pessoas quando ele remete ao

mistério. Vendo alguém que vive dedicação incondicional ao irmão como Teresa de Calcutá ou D. Helder,

esbarramos num mistério de amor. Como é possível alguém viver assim? De onde lhe vem a força? Para que

aponta tal vida? Aflora nessas perguntas uma inquietação pelo mistério do amor, da vida, da entrega. Por aí o

testemunho consegue ainda falar às pessoas de hoje”. 13

MOLTMANN, Jürgen. O caminho de Jesus Cristo: cristologia em dimensões messiânicas. Petrópolis: Vozes,

1993. p. 70.

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Madalena é, como a própria Igreja, libertada por Cristo da servidão aos demônios que

permeiam nosso mundo. Ao nos entregarmos a Jesus em sinal de gratidão, aguardando com

esperança ao lado do túmulo, mesmo quando tudo parece perdido, seremos recompensados

em um instante rápido, cheio de graça, quando no meio da escuridão, ouvirmos a sua voz

chamando o nosso nome.

A experiência de fé, encontro pessoal com Jesus Cristo, Caminho, Verdade e Vida,

alimentará o processo de conversão dos filhos e filhas de Deus, dando um novo

sentido à existência, e fará sentir a profunda alegria de ser discípulo de Jesus na

comunidade e no testemunho do Reino de Deus14

.

A alegria e o contentamento de Maria Madalena estão hoje em todo discípulo e

discípula. O seguidor de Jesus não tem outra felicidade nem outra prioridade senão a de ser

instrumento do Espírito de Deus na Igreja, para que Jesus Cristo seja encontrado, seguido,

amado, adorado, anunciado e comunicado a todos, não obstante todas as dificuldades e

resistências. O discípulo e a discípula se vêem enviados aos seres humanos para lhes

comunicar sua alegria e convidá-los a se amarem uns aos outros.

5.3. Mulher: Modelo de Igreja-esposa de Cristo

A mulher samaritana e Maria Madalena oferecem à Igreja um modelo da esposa

de Jesus Cristo. O amor que essas mulheres têm pelo Senhor estabelece uma aliança com o

Cristo Jesus pela fé e pelo anúncio. O amor de Deus é totalmente respeitoso da alteridade

homem-mulher que ele mesmo quis como reflexo, imagem e semelhança de seu mistério de

comunhão com o Pai. É no interior desta alteridade relacional e do mútuo chamado que

comporta, do homem para a mulher e da mulher para o homem, que Deus suscita um amor

maior, semelhante àquele do Cristo-esposo em relação à Igreja, sua esposa.

O modelo de Esposa apresenta uma relação amorosa profunda com Jesus Cristo,

relação de alteridade, que deixa em aberto a possibilidade de tensões provindas da

imperfeição da Esposa para com o Amor do Esposo, que bem corresponde ao caráter

histórico da Igreja, que vai aprendendo, exercitando e crescendo no Amor durante o

tempo de sua peregrinação terrena. Processo que inclui quedas e infidelidades. As

tentações que vêm da presença da Igreja no meio das várias culturas dos povos são:

o risco da mundanização, instalação, assumir a-criticamente os instrumentos

analíticos, etc., e colocam na Igreja como Esposa uma consciência de caminhar

desde a alteridade até uma comunhão com os critérios e valores do Esposo, e com

uma consciência da própria identidade como um Povo que só analogicamente pode

ser comparado aos outros povos da terra15

.

14

CNBB, Introdução Doc. 72, letra d. 15

BUCKER, O feminino, p. 241-242.

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O amor da esposa é um amor que não se retém para si, mas que se doa e se

entrega para a felicidade do outro.

Na história da Igreja, desde os primeiros tempos, existiam – ao lado dos homens –

numerosas mulheres, para as quais a resposta da Esposa ao amor redentor do Esposo

adquiria plena força expressiva. Como primeiras, vemos aquelas mulheres que

pessoalmente tinham encontrado Cristo, tinham-no seguido e, depois da sua partida,

juntamente com os apóstolos, “eram assíduas na oração” no cenáculo de Jerusalém

até o dia do Pentecostes. Naquele dia, o Espírito Santo falou por meio de “filhos e

filhas” do Povo de Deus, cumprindo o anúncio do profeta Joel (cf. At 2,17). Aquelas

mulheres, e a seguir outras mais, tiveram parte ativa e importante na vida da Igreja

primitiva, na edificação desde os fundamentos da primeira comunidade cristã – e das

comunidades que se seguiram – mediante os próprios carismas e o seu multiforme

serviço16

.

A samaritana, mesmo sem nenhum preparo, mas fiel a Jesus Cristo, proclamou a

chegada do Messias àquela região. Após a cruz, Maria Madalena anunciou a ressurreição,

afirmando aos irmãos e irmãs: “Eu vi o Senhor!” (Jo 20,18). Nelas se deu um processo que

partiu do compromisso, da necessidade do testemunho e da coerência de vida. No agir da

mulher samaritana e de Maria Madalena se dava o agir do próprio Cristo Jesus.

Segundo Bento XVI,

a interpretação hoje predominante das poesias contidas no livro do Cântico dos

Cânticos são originalmente cânticos de amor, talvez previstos para uma festa

israelita de núpcias, na qual deviam exaltar o amor conjugal. Nesse contexto, é

muito elucidativo o fato de, ao longo do livro, se encontrarem duas palavras distintas

para designar o “amor”. Primeiro, aparece a palavra dodim, um plural que exprime o

amor ainda inseguro, numa situação de procura indeterminada. Depois, essa palavra

é substituída por ahabà, que na versão grega do Antigo Testamento, é traduzida pelo

termo de som semelhante ágape, que se tornou, como vimos, o termo característico

para a concepção bíblica do amor. Em contraposição ao amor indeterminado e ainda

em face de procura, esse vocábulo exprime a experiência do amor que agora se torna

verdadeiramente descoberta do outro, superando assim o caráter egoísta que antes

prevalecia. Agora o amor torna-se cuidado do outro e pelo outro. Já não se busca a si

próprio, não busca a imersão no inebriamento da felicidade; procura, em vez disso, o

bem do amado: torna-se renúncia, está disposto ao sacrifício, antes, procura-o17

.

O amor esponsal18

de Cristo pela Igreja incorpora numa única realidade os amores

que chegavam de fontes diferentes19

. Cristo entrou na história e permanece nela como o

Esposo que se entregou a si mesmo. Entregar-se significa tornar-se um dom sincero, da

maneira mais completa e radical, pois “Ninguém tem maior amor do que aquele que se

despoja da vida por aqueles a quem ama” (Jo 15,13). Deste modo, por meio da Igreja, todos

os seres humanos, homens e mulheres, são chamados a ser “Esposa” de Cristo, salvador do

16

JOÃO PAULO II, Mulieris, n. 27. 17

Bento XVI, Deus é amor, n. 6. 18

O termo “esponsal”, em correspondência aos “ritos esponsais” dos quais deriva, significa responder,

prometer-se, oferecer-se, e evoca a imagem da doação a alguém ao qual se responde, se promete e se oferece. 19

BUCKER, O feminino, p. 179.

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mundo. Nisto se exprime a verdade sobre o amor de Deus que nos amou primeiro (cf. 1Jo

4,19) e que, com o dom gerado por esse amor esponsal pelo ser humano, superou todas as

expectativas humanas: “... amou-os até o extremo” (Jo 13,1).

A Igreja torna-se a esposa de Jesus Cristo porque incorpora em seu agir o agir do

próprio Cristo20

. E esse amor não se fecha na relação entre o esposo e a esposa, mas alcança

espaços cada vez maiores, porque é fecundo e não se limita por egoísmos partilhados. “O

autêntico amor de Esposa a Cristo revela-se no lançar os missionários nas fronteiras mais que

reprimi-los, em favorecer experiências desde a alteridade em vez de uniformizá-los”21

. A

esposa ensaia sempre novos caminhos. A Igreja é uma comunidade de discípulos e discípulas

que respiram juntos um mesmo sonho, um mesmo desejo. Nesse sentido, a Igreja é “por

Cristo, com Cristo e em Cristo...”.

A eclesiologia da Esposa favorece uma compreensão de unidade missionária. A

Esposa não está referida só pelo amor e pela “submissão” ao Esposo, senão que

deseja que todos o conheçam. A expansão missionária não é um sair fora da relação

com Cristo, senão “fazer-lhe maior” na contemplação, como vínculo que une a

Cristo, e volta ela mesma “ação” que quer dá-lo a conhecer a todos. A Igreja não

vive senão para o Cristo do Evangelho e para evangelizar a Cristo22

.

O encontro de Jesus Cristo ressuscitado com Maria Madalena culmina na palavra

que esta deve transmitir aos irmãos: a relação de Jesus com o Pai permanece única, mais

estreita do que qualquer outra existente entre o Pai e algum crente – “... eu subo para o meu

Pai, que é vosso Pai, para o meu Deus, que é o vosso Deus” (cf. Jo 20,17). Jesus não diz

simplesmente para o nosso Pai e nosso Deus23

. Jesus, Mestre e Amado, passou ensinamentos

de vida para Maria Madalena, que também se tornou qual outro Jesus: mestra e amada dos

seus. Essa relação marca a entrada de todo aquele que crê no amor que desde sempre une o

Pai e o Filho único: “Pai, eu lhes dei a conhecer o teu nome e darei a conhecer ainda mais, a

fim de que o amor com que me amaste esteja neles, e eu neles” (Jo 17,26).

20

LÉON-DUFOUR, Agir, p. 153: “O ser humano encontra-se doravante tão profundamente unido a Deus que

sua ação se torna a ação de Deus mesmo, ou melhor, (...) a ação de Deus se torna a ação do ser humano”. 21

BUCKER, O feminino, p. 315. 22

BUCKER, O feminino, p. 307. 23

De acordo com Léon-dufour, “a palavra do Ressuscitado foi, muitas vezes, entendida como dirigida aos

„apóstolos‟ e, por extensão, a seus sucessores, os futuros ministros da Igreja. Ora, a estrutura relacional

Pai/Filho-Filho/discípulos opõe-se a tal interpretação institucional: cada vez que ela aparece em Jo, rege um

anúncio que, por meio dos discípulos daquele momento, concerne a todos os discípulos por vir. A palavra do

envio comporta outra implicação: do mesmo modo como o Pai permanecia sempre presente para Jesus, assim os

discípulos não estão nunca sozinhos no cumprimento de sua missão, pois „quem crê em mim fará as obras que eu

faço; e as fará até maiores, porque eu vou para o Pai‟ (Jo 14,12)”. LÉON-DUFOUR, Leitura v. 4, p. 169.

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Em Maria Madalena24

, a Igreja revê sua própria fé. Aos pés de Jesus na Cruz,

chora as suas penas. Ao mesmo tempo, deseja dar-lhe todo o seu amor porque só muito amor

pode libertá-la.

5.4. Intimidade com Cristo através de sua Palavra

Quem é Jesus? De onde ele é? Onde ele mora? O que ele faz? Qual é a sua

missão? Como ele vive? Com quem ele vive? O que ele procura? Quem ele quer encontrar?

Qual é a sua vontade? São questões que muitos, e principalmente os discípulos e discípulas,

fazem a respeito de Jesus. Jesus vem ao encontro do ser humano para lhe comunicar e revelar

quem ele é. Por sua vez, o encontro da parte do ser humano se dá pela escuta da palavra de

Jesus. Palavra que transforma em discípulos e discípulas todos aqueles que a ouvem,

tornando-os íntimos de Jesus pela palavra. “Se alguém me ama, observará a minha palavra, e

o meu Pai o amará; nós viremos a ele e estabeleceremos a nossa morada” (Jo 14,23). Através

da sua palavra, encontra-se resposta para as questões que permeiam a existência do ser

humano. Muitos dos que viram, escutaram e seguiram Jesus confirmaram a sua fé. Fizeram de

seu ser o ser do próprio Cristo Jesus, pois fizeram de sua palavra uma ordem em suas

existências.

O significado último de toda a realidade, de todas as coisas, da vida humana está

24

No mundo semita, a pessoa é o seu nome. Dizer o nome de alguém significa elucidar a sua identidade. Assim,

no nome Maria Madalena ou Míriam de Mágdala estão expressas a missão e a vida dessa controvertida mulher

dos primeiros séculos do cristianismo. Qual outra Beruria do Judaísmo, Miriam de Mágdala incomodou os

discípulos homens da primeira hora e os judeus hostis ao cristianismo. Os Evangelhos canônicos a mencionam

doze vezes. Temos conservado o evangelho apócrifo de Maria Madalena, não reconhecido como inspirado por

uma parte dos cristãos – idéia que prevaleceu. Míriam é um substantivo composto de duas raízes, uma egípcia

(myr) e outra hebraica (yam). Myr significa a amada e yam, Deus (abreviação de Yavé). Maria significa então a

amada de Deus. Maria Madalena é a amada de Deus, ou melhor de Jesus. Outras raízes para Míriam provêm do

hebraico mar que significa amargo e o ugarítico mrym que, ao contrário, significa agraciada, excelsa. Assim,

Maria Madalena simboliza todo e qualquer ser humano que vive a eterna dualidade da vida: amargura e graça

divina. Alegria e amargura são os dias do ser humano sobre a terra. Depois da tristeza, vem a alegria. Na tristeza,

a alma chora. Na alegria, o ser humano sorri. Assim agiu a comunidade de Míriam de Mágdala no seguimento de

Jesus. Mágdala tem por sua vez origem no hebraico. Nesse substantivo estão unidos a preposição me que

significa da e o adjetivo gadol, em português, grande. Torre em hebraico se diz migdal. Maria é, portanto, a

Mulher da Torre, Aquela que guarda, a Guardiã dos ensinamentos de Cristo. A torre era, no mundo antigo, o

lugar que mais se sobressaía nas cidades. Cf. FARIA, Maria Madalena, p. 512. Lagrange e outros chamam a

atenção sobre a etmologia popular que, para o sentido que se dava de fato ao nome, é mais importante: ele

distingue entre o nome hebraico Míryam e o nome posterior Maria(m). Para ele, o nome Míryam era

provavelmente relacionado com rā’āh (ver); Míryam teria significado „vidente‟ ou „aquela que faz ver‟; de fato,

ela é chamada de profetisa (cf. Ex 15,20; também Gn 22,2.14 onde São Jerônimo traduz mōriyyāh por terra

visionis) e de vidente, nome com o qual, nos tempos antigos, indicavam-se os profetas (cf. 1Sm 9,9). No tempo

de Jesus, quando se falava aramaico e se dizia Máryam em vez de Míryam, dava-se a esse nome outro sentido,

sendo ele relacionado, sem dúvida, com o aramaico mārā’ (Senhor); Maryam teria, portanto, signifcado

soberano; [...] Cf. BARDENHEWER, O. Der Name Maria. In: Dicionário enciclopédico da Bíblia. 2.ed.,

Petrópolis: Vozes, 1977. p. 946-947. Cf. também NOLLI, Evangelo secondo Giovanni, p. 711,720,727.

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na dependência de Deus. É a palavra criadora de Deus que dá sentido à vida humana.

As palavras de Jesus, que o ser humano escuta nas Escrituras, e a sua realidade

pessoal constituem o sentido luminoso e edificante de toda a experiência humana.

A palavra de Jesus não se refere apenas a Israel, mas a todos os humanos, o que

confirma a escolha de termos como “os humanos”, “todos aqueles que”, “a luz” que

está presente no mundo (1,9s). “Fazer a verdade” não significa praticar

honestamente a moral prescrita, mas acolher o atrativo que exerce a palavra de Deus

dirigida a todo o ser humano na criação ou na história de cada povo25

.

A palavra que Jesus dirige à mulher samaritana faz com que resgate o que é

permanente: a vida, a justiça, a graça, a salvação, a liberdade, o perdão. Ela é chamada a

acreditar na palavra que o Senhor lhe dirige: “Acredita-me, ó mulher...” (Jo 4,21). À medida

que escutava a palavra de Jesus, a samaritana bebia de uma água pura. Toma em seu ser essa

palavra. Faz de seu ser a morada do Cristo Jesus. E os samaritanos, levados pelas palavras

daquela mulher, aceitaram e professaram Jesus Cristo como o salvador do mundo. Confiaram,

então, na palavra do revelador Jesus. Assim, a fé é exigida não somente dos discípulos e das

discípulas que encontraram, ouviram e receberam Jesus, mas também de todos os que

continuam na Igreja esta atividade de ouvir e receber a Palavra, pondo-se em sintonia com

Jesus, continuamente presente na Igreja.

Maria Madalena reconhece o Senhor no jardim, quando houve Jesus chamá-la

pelo nome. E exclama: “Rabuni!” (Jo 20,16). Imediatamente, a intimidade, antes rompida pela

morte, torna-se presente: Maria Madalena reconhece Jesus vivo. Sua fé alcança plenitude na

palavra que o Cristo ressuscitado lhe entrega para dizer aos irmãos e irmãs da comunidade. A

intimidade que Maria Madalena adquiriu pela palavra de Jesus quando o seguia junto com os

discípulos tornou-se agora, no encontro com o Ressuscitado, algo inseparável de seu ser.

Mesmo assim, a palavra de Jesus não foi compreendida pelos discípulos. Também

Maria Madalena não a compreendeu. Os ensinamentos de Jesus sobre a Escritura não

penetraram no coração daqueles que o seguiram e o ouviram durante o seu ministério

terrestre. Chama a atenção o comentário do evangelista: “Com efeito, eles ainda não tinham

compreendido a Escritura segundo a qual Jesus devia ressuscitar dos mortos” (Jo 20,9).

Aqui nos é dada uma indicação importante sobre a função da Escritura na

compreensão dos sinais da presença de Deus no mundo. O texto quer dizer-nos que

se o discípulo realmente tivesse conhecido e compreendido a Escritura, tendo já um

quadro da obra de Deus e do modo pelo qual Deus se manifesta na história, teriam

sido suficientes pouquíssimas alusões, talvez já o primeiro aceno de Madalena, para

reconhecer a presença do Senhor. Faltando-lhes este quadro, teve necessidade de ser

levado mais perto, até ver e tocar. Isso vale para todas as comunidades cristãs:

25

LÉON-DUFOUR, Agir, p. 112.

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quando não sabemos mais reconhecer a presença de Deus nas situações de nossa

vida, a Escritura deveria ajudar-nos a fazer o discernimento dos sinais e a ver como

em tantas pequenas coisas, que nos haviam fugido, a presença do Ressuscitado

estava se manifestando. Sublinha assim o valor da leitura assídua e da compreensão

da Escritura, para iluminar com a glória do Ressuscitado a vida da Igreja26

.

A palavra de Jesus revela paulatinamente sua pessoa diante de seus amigos, diante

do mundo. A palavra do Cristo ressuscitado levada por Maria Madalena aos discípulos

estabelece na comunidade uma nova relação entre seus membros. O evento salvífico na carne

se torna Palavra e anúncio. É esta palavra que os torna íntimos do Cristo. Em Cristo, tornam-

se irmãos e irmãs uns dos outros.

A Igreja encontra Jesus na Sagrada Escritura, Palavra de Deus, fonte de vida e

centro de sua ação evangelizadora. Desconhecer esta Palavra é desconhecer Jesus Cristo e

renunciar a anunciá-lo. É fundamental e indispensável o conhecimento profundo e vivencial

da Palavra de Deus, que é alimento da fé para toda a Igreja. As palavras de Jesus são espírito e

vida (cf. Jo 6,63). A mulher samaritana, com seu desejo de culto verdadeiro (cf. Jo 4,20-24),

graças ao encontro com Jesus, foi iluminada e recriada porque se abriu à experiência da

misericórdia do Pai, que se oferece por sua Palavra de verdade e vida. Ela abriu o seu coração

para o próprio Cristo, caminho de crescimento na “maturidade conforme a sua plenitude” (cf.

Ef 4,13), processo de discipulado, de comunhão com os irmãos e irmãs e de compromisso

com a sociedade27

.

Juntamente com outras mulheres, a mulher samaritana e Maria Madalena são

consideradas por João Paulo II como “custódias da mensagem evangélica”28

. Nelas atua a

palavra de Jesus, fazendo-a chegar a muitos irmãos e irmãs. A samaritana e Maria Madalena

sentem-se amadas de “amor eterno”, por um amor que encontra direta expressão no próprio

Cristo. “Nesse dia compreendereis que estou em meu Pai e vós em mim e eu em vós. Quem

tem meus mandamentos e os observa é que me ama; e quem me ama, será amado por meu

Pai. Eu o amarei e a ele me manifestarei” (Jo 14,20-21). E ainda: “Se alguém me ama,

guardará minha palavra e meu Pai o amará e a ele viremos e nele estabeleceremos morada”

(Jo 14,23). Esse amor torna essas mulheres doadoras de Deus. Elas se tornam anunciadoras

das palavras de Jesus, que são palavras de vida eterna.

5.5.Coragem para romper as barreiras e as limitações institucionais

Para a fé ser vivida em comunidade, Jesus institui uma nova maneira de ser no

26

MARTINI, O Evangelho, p. 110. 27

Cf. CELAM, V Conferência, n. 249. 28

JOÃO PAULO II, Mulieris, n. 15.

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relacionamento entre os seus discípulos e discípulas: “Eis o meu mandamento: amai-vos uns

aos outros como eu vos amei” (Jo 15,12). No amor, tornam-se irmãos e irmãs uns dos outros

(cf. Jo 20,17b). Com isso, Jesus critica o exacerbado formalismo institucional que aprisiona o

ser humano em um baú de leis e rituais que devem ser cumpridos radicalmente. Antes, o amor

deve ser o cumprimento do mandato do Senhor.

Segundo Libanio,

A fé cristã mantém uma tensão originária com a instituição. De um lado, toda fé que

quer ser vivida em comunidade ao longo do tempo e espaço necessita de instituição.

Exigência histórico-antropológica. Sem a instituição a fé se desfaria em pedaços

religiosos até desaparecer no olvido da história. Por outro lado, a posição de Jesus

extremamente crítica ao formalismo das instituições, à perda do espírito da letra, à

tentação de o poder na comunidade copiar os esquemas profanos de dominação

deixou marca profunda na fé cristã29

.

Cumprindo o mandato do Senhor, a Igreja deve ser a guardiã da verdade que salva

e defende os direitos contra toda tentativa de alienação e destruição. Esta defesa não pode

acontecer recorrendo-se à arrogância ou a cálculos de poder, mas a partir de um coração que

ama. Deve manifestar-se em uma forma de amor desarmante como em Jesus no momento de

sua paixão: “Se eu falei mal, mostra em que; se falei bem, por que me bates?” (Jo 18,23) e

não configurar-se como ostentação de força ou de autoritarismo30

. A maneira como a mulher

samaritana anuncia o Cristo aos habitantes de Samaria – “Vinde ver um homem que me disse

tudo o que eu fiz. Não seria ele o Cristo?” (Jo 4,29) – evidencia um amor que convida aquele

povo a ver em Jesus, o Cristo enviado pelo Pai, salvador do mundo. O anúncio da samaritana

é corajoso e de tal leveza que o povo de Samaria compreende o mistério que nela se revelara.

Leva os seus conterrâneos para o Cristo pela cordialidade, pelo sacrifício, pela pureza íntegra

de seu coração, pela serenidade, pela alegria. Tudo isso brota da fé, que serena o coração e

capacita para anunciar a boa nova do amor de Deus. De maneira que, tornando-se discípula de

Cristo, a samaritana se converte cada dia mais sob a influência deste amor de Cristo que a

impulsiona a servir e a levar a salvação a seus semelhantes.

A Igreja é chamada a confirmar, renovar e revitalizar a novidade do evangelho

arraigada em nossa história, a partir de um encontro pessoal e comunitário com Jesus Cristo,

que desperte discípulos e missionários. Para isso, não é tão necessária a dependência de

29

LIBANIO, Olhando, p. 198. 30

O exercício da autoridade nem sempre foi um serviço desempenhado de forma evangélica. Na história da

Igreja, não faltou a crítica severa contra o exercício abusivo da autoridade, feita por grandes santos. Santa

Catarina de Sena, depois de dizer que os bispos deviam ser obedecidos, sejam eles bons ou maus, tem também a

coragem de censurar os seus vícios. “Não só não dão aos pobres o que estão obrigados, mas tiram deles por

simonia e ânsia de dinheiro. (...) amam a seus súditos tanto quanto os possam saquear, e não mais” (SANTA

CATARINA DE SENA. O diálogo. São Paulo: Paulinas, 1984. p. 255).

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grandes programas e estruturas, mas de homens e mulheres novos que encarnem essa tradição

e novidade, como discípulos e discípulas comprometidos com o Cristo Jesus31

. Por isso, é

preciso coragem para romper com estruturas que simplesmente não permitem o anúncio da

boa-nova de Jesus Cristo. A fé gera coragem porque é a certeza de apostar em Deus.

Não resistiria aos embates do tempo uma fé católica reduzida a uma bagagem, a um

elenco de algumas normas e de proibições, a práticas de devoção fragmentadas, a

adesões seletivas e parciais das verdades da fé, a uma participação ocasional em

alguns sacramentos, à repetições de princípios doutrinais, a moralismos brandos ou

crispados que não convertem a vida dos batizados. Nossa maior ameaça é o

medíocre pragmatismo da vida cotidiana da Igreja, no qual, aparentemente tudo

procede com normalidade, mas na verdade a fé vai se desgastando e degenerando

em mesquinhez. A todos nos toca recomeçar a partir de Cristo, reconhecendo que

não se começa a ser cristão por uma decisão ética ou uma grande idéia, mas pelo

encontro com um acontecimento, com uma pessoa, que dá um novo horizonte à vida

e, com isso, uma orientação decisiva32

.

Na mulher samaritana, a Igreja se quiser ser fiel ao Cristo Jesus e amada por ele

deve ser reconhecedora de seus limites e barreiras. Deve se perceber como pessoa pecadora

com seu esposo Jesus Cristo. “Nesse amor incondicional, o apelo da conversão continua, mais

que o juridicismo do poder que impõe, ou da autoridade que ameaça pela punição, ocorre a

benevolência da vivência da conversão como linguagem que fala e responde amor”33

.

Enquanto a Igreja estiver cativa do pecado, a verdade divina torna-se inacessível a ela. A

partir do momento em que se reconhecer pecadora, a luz penetrará em seu interior.

Quando assumimos que é Jesus que, através de mediações, faz discípulos,

vivenciamos o ato de segui-lo em diálogo com aquele que “nos amou primeiro”,

num processo de conversão e de tempos de rupturas e inserções. Falamos da

conversão pessoal e eclesial, a que muda a consciência da pessoa e o coração da

Igreja, abrindo-os à comunhão, à solidariedade e à nova evangelização inculturada34

.

Assim, a Igreja, se quiser fazer a vontade de Deus, deve se perceber num processo

constante de conversão. Cada comunidade de discípulos e discípulas de Jesus deve ser o

espaço que favoreça o crescimento e o amadurecimento da fé, estimulando um processo de

conversão. Neste processo, a Igreja toma consciência de que não é do mundo mas está no

31

Elisa Estevez afirma que “a maioria das tradições presentes na Igreja do século I acentuaram o papel

preponderante dos Doze (especialmente o de Pedro) como mestres autorizados que garantiam a fidelidade com

as origens. A tradição do discípulo amado relativiza esta função magisterial em favor de uma concepção que

acentua, por seu lado, a importância insubstituível do discipulado. A garantia de estarem enraizados firmemente

na pessoa de Jesus é dada não por elementos extrínsecos – por exemplo, „mestres autorizados‟ – mas pela

qualidade do seguimento que se tiver. É significativo o fato de que no Quarto Evangelho não encontramos o

termo apóstolo. Ele foi substituído pelo termo discípulo. Todas aquelas pessoas que se encontraram com Jesus e

estão dispostas a caminhar atrás dele tornam-se fiadores da tradição do Ressuscitado” (ESTEVEZ, A mulher, p.

69-70). 32

CNBB, Introdução Doc. 72, letra i. 33

BUCKER, O feminino, p. 57. 34

RETAMALES, Santiago Silva. Os discípulos de Jesus: relatos e imagens de vocação e missão na Bíblia. São

Paulo: Paulus, 2007. p. 132.

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mundo e existe para o mundo. É uma comunidade de discípulos e discípulas, sempre fiel e

comprometida com o Cristo Jesus no anúncio e testemunho da verdade.

A Igreja em sua identidade conformada com a do Cristo Jesus não pode isolar-se

em seus edifícios construídos por mãos humanas. Ela deve ir ao encontro do outro, mantendo-

se aberta ao diálogo revelador que encurta distâncias e supera as diferenças que dividem os

cristãos (cf. Jo 4,28-30.38-40). É essa a Igreja universal que o Senhor Jesus anuncia à mulher

samaritana.

Essa mulher, e além do mais “mulher pecadora”, torna-se “discípula” de Cristo;

mais ainda, uma vez instruída, anuncia Cristo aos habitantes da Samaria, de modo

que também eles o acolhem com fé (cf. Jo 4,39-42). Um evento sem precedentes, se

se tem o modo comum de tratar as mulheres, próprio de quantos ensinavam em

Israel, enquanto no modo de agir de Jesus de Nazaré, tal evento se faz normal”35

.

Em Jesus, a mulher samaritana chama todos os homens e mulheres que podem dar

a Deus o nome de Pai, cuja adoração é inseparável da união ao Filho de Deus, pelo

intermediário que é o Espírito de Deus. Ficam substituídos os sacrifícios antigos pelo ato

essencial da adoração, que brota do coração humano e pode atingir, por toda a parte e sempre,

o amor do Pai dos céus.

A missão da Igreja supõe sair das fronteiras, mas não por uma missão

conquistadora. Supõe um diálogo Igreja-mundo, que caminha para a unidade, comunhão filial

e fraterna. Em atitude de abertura à unidade, fruto de autêntica comunhão com o Senhor

ressuscitado, a Igreja, em cada um de seus membros, descobrirá, através da própria

experiência espiritual, que o encontro com Jesus Cristo vivo é “caminho de conversão, de

comunhão e de solidariedade”36

. “O Espírito, na sua ação, não impõe nem violenta a

liberdade. Por exemplo, na Encarnação pede o consentimento de Maria. O jeito do Espírito

equilibra a unidade e a missão na colaboração e responsabilidade da pessoa, e não na

imposição”37

. Assim, a mulher samaritana, imbuída do Espírito, anuncia a seu povo,

chamando-o para ir ver o homem que lhe tinha dito tudo o que fez (cf. Jo 4,29)38

.

A Igreja, no serviço que presta ao mundo, não pode usar de métodos de

constrangimento e de repressão que o Evangelho reprova. A pior contrapartida do poder é a

faculdade de abusar dele. Como Jesus, a Igreja deve se mostrar incansável no acolhimento a

35

JOÃO PAULO II, Mulieris. n. 15. 36

Cf. JOÃO PAULO II, Ecclesia, n. 7. 37

GALOT, J. L’Esprit d’amour. Bruges: Desclée de Brouwer, 1959. p. 69. Apud BUCKER, Bárbara P. O

feminino da Igreja e o conflito. Petrópolis: Vozes, 1995. p. 264. 38

CELAM, V Conferência, n. 14: “Aqui está o desafio fundamental que afrontamos: mostrar a capacidade da

Igreja para promover e formar discípulos e missionários que respondam à vocação recebida e comuniquem por

toda parte, transbordando de gratidão e alegria, o dom do encontro com Jesus Cristo”.

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todos aqueles que a procuram. Também como Jesus, não fará nenhum pacto com o pecado

nem com o erro. Antes, com amor e firmeza, deve fazer-se próxima do pecador para que este

se redima e comece vida nova. O acolhimento e a ternura se fazem encorajamento, força,

crédito, esperança, emergindo as potencialidades do bem encerradas no coração de todo ser

humano.

A partir do evangelho que recebeu e que anuncia, a Igreja não pode mais admitir

discriminações, nem exclusões, como uma interpretação equivocada da Lei permitia a alguns

grupos judaicos fazer. A mulher é chamada a tornar-se discípula do reino de Deus assim como

o homem, e cotestemunha com ele da salvação messiânica. As palavras de Jesus e as suas

obras exprimem sempre o respeito e a honra devidos à mulher39

. A partir de Jesus, as

mulheres são plenamente respeitadas e valorizadas como adultas, iguais aos homens na

dignidade e na responsabilidade, no acolhimento e no anúncio a todos da boa-nova da Páscoa.

Por isso, Maria Madalena, ainda hoje, anuncia o Cristo Ressuscitado para o mundo todo, em

toda parte onde se celebra a Páscoa na liturgia católica40

.

A natureza fundamental da identidade cristã como vida em Cristo deixa claro que o

Cristo, o ungido no Espírito, não pode se restringir à pessoa histórica de Jesus e nem

a determinados membros escolhidos da comunidade, mas representa todos aqueles

que, bebendo do mesmo Espírito, participam da comunidade dos discípulos41

.

Isto leva a Igreja a uma profunda reflexão, para ver se o amor está na base de sua

organização como critério decisivo na distribuição de tarefas e serviços. O amor gera a

fraternidade, a solidariedade, a igualdade. E isso se manifesta não em discursos bem

elaborados, mas em gestos concretos que a tornam crível42

. A missão da Igreja também não

está a serviço de estratégias sociais-ideológicas, mas é atuação aqui e agora daquele amor de

que o ser humano sempre tem necessidade.

Segundo Lúcia Weiler,

uma mulher, marginalizada por ser mulher e por ser samaritana, torna-se

evangelizadora dentro de sua própria cultura e a partir dela. Daí surge a suspeita

hermenêutica da valorização do Evangelho, da boa-nova de Jesus Cristo, já presente

39

Cf. JOÃO PAULO II, Mulieris, n. 13. 40

É interessante observar como a Igreja, atualmente, pede para ouvir as palavras que provavelmente os

discípulos varões no começo desprezaram. A seqüência da celebração eucarística do domingo de Páscoa, que é

cantada logo antes do Aleluia e da leitura do Evangelho, insiste dizendo: “Responde pois, ó Maria: no teu

caminho, o que havia?” Ao que ela responde com seu testemunho vibrante: “Vi Cristo ressuscitado, o túmulo

abandonado. Os anjos da cor do sol, dobrado ao chão o lençol... O Cristo, que leva aos céus, caminha à frente

dos seus!” Cf. MISSAL DOMINICAL, 4.ed. São Paulo: Paulus, 1995. 41

JOHNSON, Aquela que é, p. 238. 42

JOÃO PAULO II, Mulieris, n. 27: “Em cada época e em cada país encontramos numerosas mulheres

„perfeitas‟ (cf. Pr 31,10), que – não obstante perseguições, dificuldades e discriminações – participaram na

missão da Igreja. Basta mencionar aqui Mônica, mãe de Agostinho, Macrina, Olga de Kiev, Matilde de Toscana,

Edviges da Silésia e Edviges de Cracóvia, Elizabeth de Turíngia, Brígida da Suécia, Joana d‟Arc, Rosa de Lima,

Elisabeth Seaton e Mary Ward”. Poderíamos citar ainda Irmã Dulce, Madre Tereza de Calcutá, etc.

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nas culturas43

.

A identidade e a segurança dos judeus eram revestidas da idéia de que tinham

pureza de raça e eram os verdadeiros eleitos. A seus olhos, os samaritanos eram heréticos de

raça mestiça, dignos unicamente do desprezo. No tempo de Jesus, o preconceito contra os

samaritanos tinha alcançado o nível emocional profundo de um ódio visceral. Quando os

judeus peregrinos viajavam da Galiléia para Jerusalém, faziam o percurso mais longo à custa

do próprio conforto, atravessando o rio Jordão ao leste, passando pelo deserto e depois

voltando a atravessar o Jordão, para então entrar em Jerusalém – tudo isso para não respirar os

ares samaritanos pelo caminho. Jesus, ao dialogar com a mulher samaritana, tornando-a

portadora de uma mensagem de salvação para seu povo, rompe com os limites impostos pelo

judaísmo e abre um espaço de liberdade e de crescimento na fé, que não está sujeito a

condicionamentos culturais específicos.

Ao esforço de atualização, que permite à Bíblia de permanecer fecunda através da

diversidade dos tempos, corresponde, no que concerne à diversidade dos lugares, o

esforço de inculturação que assegura o enraizamento da mensagem bíblica em

terrenos os mais diversos. Esta diversidade, aliás, nunca é total. Toda cultura

autêntica é portadora, à sua maneira, de valores universais fundados por Deus. O

fundamento teológico da inculturação é a convicção de fé de que a Palavra de Deus

transcende as culturas nas quais ela foi expressa e tem a capacidade de se propagar

em outras culturas, de maneira a atingir todas as pessoas humanas no contexto

cultural onde elas vivem44

.

Isto deve ajudar a Igreja a responder uma questão: até que ponto, no contexto

eclesial em que vive, não se está impondo uma maneira de expressar a fé vinculada a uma

determinada cultura e determinado tempo? “As atuações históricas da Igreja podem ter

„encapsulado‟ o Cristianismo e criado barreiras para a missão de novos tempos e culturas.

Impõe-se o discernimento de valores autênticos e elementos acidentais”45

.

5.6. Superação da arrogância e do egoísmo

Para aproximar-se de Jesus, é necessário arrancar do coração todo tipo de auto-

suficiência e de individualismo, que não permitem as relações interpessoais. Alguns grupos,

muitas vezes, constroem barreiras e cavam fossos profundos com suas pretensões e

afirmações, arrogando para si a verdade suprema. Os judeus não tinham relações com os

samaritanos (cf. Jo 4,9). Em 722 aC, a Samaria foi conquistada por Salmanasar e repovoada

43

WEILER, Jesus e a Samaritana, p. 102. 44

PONTIFÍCIA COMISSÃO BÍBLICA, A interpretação da Bíblia na Igreja. São Paulo: Paulinas, 1994. p. 145. 45

BUCKER, O feminino, p. 315.

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pelos emigrados das cidades assírias (cf. 2Rs 17). Com o decorrer do tempo, os colonos

pagãos introduziram na religião os seus costumes. Mas, no regresso do cativeiro da Babilônia,

os verdadeiros israelitas recusaram-se a reconhecer, nesta população amalgamada, a raça do

povo de Deus. Excomungados, os samaritanos reagiram, levantando sobre o monte Garizim

um templo rival do de Jerusalém. Portanto, os samaritanos e os judeus, vizinhos no espaço, ou

pelas doutrinas, ou porque prosseguem um mesmo fim, por razão da proximidade de conflitos

de interesses, de idéias ou de métodos, estão expostos a entrar em contínuos atritos.

A mulher samaritana sublinha a diferença com os judeus ao dizer: “Como? Tu,

sendo um judeu, tu me pedes de beber a mim uma mulher samaritana?” (Jo 4,9). Jesus, um

judeu, rompe com essa diferença e integra aquela mulher à comunidade dos discípulos.

Mesmo sabendo que os judeus ignoram os samaritanos, a mulher é impelida para o diálogo

que apagará todo tipo de discriminação.

A samaritana mostra que, em seu cotidiano, já tem certo conhecimento do que ela

pode fazer e não pode fazer. Tudo o que faz se traduz em termos práticos de utilidade, mesmo

que seja para a própria vida espiritual, ou para o bem dos outros. Por isso interroga Jesus:

“Senhor, tu não tens sequer um balde, e o poço é profundo; de onde tiras, então, essa água

viva? Dá-me essa água, para que eu não tenha mais sede e não precise mais vir aqui tirar

água” (Jo 4,11.15). Segundo Martini,

“a samaritana é uma pessoa, que tendo já feito uma certa carreira e tendo calculado o

que se pode fazer e o que não se pode fazer, traduz tudo em termos práticos de

utilidade, ainda que este pragmatismo seja talvez endereçado à realização da

vantagem máxima para a Igreja, ou para a própria vida espiritual, ou para o bem dos

outros. Ela vive em termos de dar e receber; o seu espírito está preso numa certa

gaiola institucional, e por isso tudo é traduzido em termos de sucesso apostólico e

ascético, pastoral e pessoal: trata-se então de adquirir novas clarezas de idéias, novas

intuições, para si e para os outros, mas deixando de lado o que é o dom e o entregar-

se à Palavra para além de todas as vantagens pessoais”46

.

Em Jesus, a Igreja deve buscar vencer o preconceito, o egoísmo, a indiferença e os

estreitos limites de seus próprios conceitos. Afinal,

uma coisa é o dever da claridade dogmática, sóbria, humilde, pronta para o diálogo

e, se necessário, a novas compreensões do depósito da fé; outra coisa é a cegueira ou

a imposição pré-constituída de quem não ouve ou não quer ouvir, só porque – quase

sempre – não tem a coragem de questionar-se e vê com suspeita toda hipótese

diversa da sua”47

.

O dogma pode se tornar, como muitas vezes tem sido, uma doutrina meramente

46

MARTINI, O Evangelho, p. 19. 47

ROCCHETTA, A teologia da ternura, p. 18.

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humana de muitos preceitos que não libertam o homem de sua escravidão48

. Jesus ensina à

mulher samaritana que a salvação vem dos judeus. Faz isso oferecendo-lhe a capacidade de

refletir sobre aquilo que crê e de fazer profundas experiências desse ensinamento49

. As ações

da samaritana mostram o quanto não está vivendo de acordo com os mandamentos de Deus.

Por isso, em vez de acrescentar uma nova pedra a essas “torres de babel”, a Igreja

pode todo dia tirar uma. Para isso deve imbuir-se do espírito de Jesus Cristo como a

samaritana o fez. Deve esforçar-se para ser o meio de entendimento entre os seres humanos.

Deus não pode ser confinado aos limites dos sistemas religiosos. Jesus foi e é uma presença

de Deus através da qual homens e mulheres entram no reino de Deus, um reino que

transcende toda fronteira religiosa. “O cristão é chamado a ser uma parábola viva do

seguimento de Cristo. Seu testemunho terá mais importância do que o rito e a estética

religiosa”50

.

Nesta época em que os progressos científicos, encurtaram as distâncias entre os

habitantes do planeta, oferecendo facilidades nunca imaginadas de comunicação e de

conhecimento, a sociedade é tomada por uma reação de individualismo, no qual as raças, os

povos e nações, os partidos se encolhem ainda mais em si mesmos. Na sociedade neoliberal

em que vivemos, tudo se transformou em descartável, renovável, questionável... As estruturas

de outrora, instituições e formas de expressão religiosa já não conseguem convencer ou

perderam o autêntico sentido. Este parece esgotado, escondido ou vazio. Homens e mulheres

exigem viver cada dia os direitos humanos fundamentais com maior justiça e respeito, e os

valores cristãos com autenticidade. A Igreja é chamada a partir da comunhão e da

solidariedade a combater todo tipo de egoísmo e individualismo que impede um encontro

verdadeiro com o Cristo Jesus, barreiras que impedem as relações entre os seres humanos.

Jesus, ao dizer a Maria Madalena – “Não me retenhas” e “...vai ter com os meus

irmãos e dize-lhes que eu subo para meu Pai, que é vosso Pai, para meu Deus, que é vosso

Deus” (Jo 20,17) –, evidencia uma nova relação entre os membros da comunidade. Leva-a a

entender que nem ela e nem os discípulos podem detê-lo. É preciso sair do medo e da

estagnação que estão impedindo sua Palavra, sua vida plena, de se irradiar pelo mundo.

Principalmente, Maria Madalena, a primeira a encontrar o Cristo ressuscitado, deve suscitar

48

Os objetivos a que servem essas reivindicações visam a permitir que determinada instituição afirme que

somente ela possui a verdade e sugerir que quem não faz parte dessa comunidade específica de fé está perdido

nas trevas de seus próprios erros. Essas reivindicações de poder aumentam a pressão para converter as pessoas a

essa instituição, oferecendo, aos pretendentes à conversão, a recompensa de uma salvação indisponível a quem

não fosse um verdadeiro fiel ou não participasse da verdadeira Igreja. 49

Crer significa não uma ortodoxia dogmática, mas uma adesão prática e fiel a Deus e sua aliança e a Cristo. 50

LIBANIO, Olhando, p. 234.

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nos outros, agora seus irmãos51

, a coragem para anunciar que Cristo não está morto, mas que

está vivo. Maria Madalena, ao compreender-se a si mesma, recebe a manifestação de Jesus

Cristo ressuscitado e é impelida a sair de seu “egoísmo” para animar os seus irmãos. “Sua

experiência da ressurreição é também a vitória interior sobre o apego a uma fase superada. A

necessidade de persistir fecha para a vida nova. O impulso para o anúncio abre a vida nova”52

.

Sua vida e sua dedicação ao Senhor iluminam toda a Igreja, anunciando que aquele que

enviou Jesus e para o qual Jesus vive, em quem Jesus põe toda a sua segurança, em quem está

o fundamento de sua missão e, portanto, da sua coragem no meio das oposições, é agora o

“Pai nosso”53

.

Também, internamente na Igreja, muitos irmãos e irmãs que receberam a mesma

vida em Deus a partir da palavra de Jesus não hesitam, por divergências de ordem secundária,

em se tratarem como inimigos. Há nisso uma escandalosa relação que os verdadeiros

discípulos de Jesus Cristo devem exterminar (cf. 3Jo 9-11). O discípulo escolhe permanecer

em Jesus e identifica-se com ele. Por isso pode ter, com relação a seu Pai, o mesmo abandono

e a mesma confiança que Jesus teve. Assim, na fé e no anúncio, o discípulo sela a sua vida no

Cristo. Jesus Cristo está no Pai e, por isso, o discípulo está junto com ele.

Os que covardemente desertaram e fugiram foram chamados à coragem de

anunciá-lo com suas próprias vidas. Judeus, acorrentados em seus interesses grupais, foram

chamados a se integrarem ao Cristo. Mulheres foram chamadas para a humanidade plena e

para o discipulado pleno. Pessoas que tinham medo foram chamadas para viver

corajosamente. Excluídos foram chamados para a dignidade humana.

5.7. Conclusão

A Igreja, como comunidade de discípulos e discípulas fiéis e comprometidos com

o Cristo Jesus, é chamada a viver o amor de uns para com os outros. É no amor que todos

reconhecerão Jesus Cristo no meio deles: amor marcado naquele que serve o irmão e a irmã,

amor que rompe com todo tipo de diferença e distância, amor que dignifica tanto o homem

quanto a mulher.

51

Maria Madalena deve levá-los àquele encontro com Deus em Cristo que neles suscite o amor e abra seu íntimo

ao outro, de tal modo que se tornem irmãos uns dos outros não por imposição, mas como resultado de sua fé que

se torna viva pelo amor. 52

SEBASTIANI, Maria Madalena. p. 225-226. 53

CELAM, V Conferência, n. 382. “Deus amor é Pai de todos os homens e mulheres, de todos os povos e raças.

Jesus Cristo é o Reino de Deus que procura demonstrar toda a sua força transformadora em nossa Igreja e em

nossas sociedades. Nele, Deus nos escolheu para que sejamos seus filhos com a mesma origem e destino, com a

mesma dignidade, com os memos direitos e deveres vividos no mandamento supremo do amor”.

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A Igreja deve estar disponível para lavar os pés dos irmãos e irmãs. É o gesto de

seu acolhimento a todo aquele que vier ao seu encontro. O seu poder e a sua autoridade são

justamente o serviço a cada um de seus irmãos como fez o próprio Cristo Jesus, que veio para

servir e não para ser servido. Como uma esposa, ela se entrega ao seu esposo Jesus Cristo. Vai

conformando sua vida à vida do Cristo ressuscitado. Não se fecha num relacionamento

egoísta, mas se lança para fora, proclamando o esposo Jesus Cristo para toda a humanidade.

Quanto mais a esposa proclama o esposo Jesus Cristo mais forte se torna a sua união. A Igreja

é edificada pela palavra de Jesus encarnada na vida de cada discípulo e de cada discípula.

Torna-se íntima de Jesus ao deixar se fazer segundo a palavra de Jesus.

A Igreja deve esforçar-se para levar todas as pessoas a um encontro pessoal com o

Cristo Jesus, por meio do anúncio e de seu testemunho. Para isso deve manter-se aberta ao

diálogo que revitaliza e atualiza em seu caminho os ensinamentos do Cristo, diálogo que

aproxima os seres humanos uns dos outros fazendo-os “beber da água que se torna neles uma

fonte que jorra para a vida eterna” (cf. Jo 4,14). Ela não deve deter egoisticamente a verdade

que lhe é comunicada, mas anunciar a todos a alegria do Cristo que vive no meio da

humanidade. Deve romper com qualquer tipo de barreira e limitação que impedem a palavra

de Jesus de chegar aos diversos lugares. O anúncio que brota da fé deve ser feito de maneira

serena, cordial, humilde e sem imposições. Sua fé não será uma ortodoxia dogmática, mas

uma adesão prática e fiel a Deus e a Cristo. Deve ter a coragem de dialogar com o diferente,

rompendo com a arrogância que, muitas vezes, torna-se motivo de divisão e separação.

Também para a vivência da fé e do anúncio evidenciada na mulher samaritana e

em Maria Madalena, a Igreja deve olhar-se a si mesma, reconhecendo-se pecadora e em

constante processo de conversão. Nesse processo, a Igreja torna-se um sinal vivo e verdadeiro

do Cristo Jesus, que vive no meio da humanidade.

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CONCLUSÃO

O evangelista João, ao escrever o Quarto Evangelho, queria fortalecer a

comunidade cristã em sua fé. A comunidade joanina estava enfrentando muitos conflitos

externos e internos que marcaram a sua identidade. O Evangelho de João ofereceu à

comunidade uma palavra que a encorajava a aderir sem reservas e sem medo a Cristo

ressuscitado. Colocou em evidência muitos membros da comunidade que, em um encontro

pessoal com o Cristo, tornaram suas vidas sinal da presença de Jesus na sua própria

comunidade. Respondeu, assim, aos problemas que a comunidade joanina enfrentava,

rompendo várias barreiras e selando, no coração de cada um, a vida do Cristo ressuscitado.

A comunidade joanina experimentou uma grande participação de mulheres que

evidenciaram muitos elementos de vital importância para a vivência da fé e do anúncio. Para

João, na sua comunidade, essas mulheres são paradigmas de fé e de anúncio. O estudo das

perícopes da mulher samaritana (cf. Jo 4,1-42) e de Maria Madalena (cf. Jo 20,1-18) permitiu

levantar os elementos que fazem dessas mulheres verdadeiros paradigmas de fé e anúncio. O

relato da mulher samaritana está inserido no livro dos sinais e o de Maria Madalena no livro

da glória. Essas narrativas revelam o caminho trilhado por João, em sua produção literária:

percurso propício para o amadurecimento do discipulado. Essas mulheres encarnam o

caminho cristão de adesão à fé, que vai da descoberta do Mestre à intimidade com ele.

A comunidade cristã deve empenhar-se para viver de modo mais encarnado a fé.

Para isso sublinha-se que, para corresponder ao Deus da vida que se revelou em Jesus Cristo,

deve-se lutar para transformar o mundo em algo mais digno para o ser humano, pois isto é o

que corresponde ao plano de amor de Deus.

A mulher está na comunidade cristã desprovida de qualquer poder, mas atenta ao

que nela ocorre. Seu coração guarda muitos dos valores mantidos escondidos pela submissão

sofrida pelo poder masculino. Mesmo assim, a mulher fala e representa o anseio da

comunidade à espera do Messias, como o povo de Samaria. A mulher samaritana, ao se dirigir

ao poço de Jacó para buscar água, encontra-se com Jesus, protagonizando um diálogo

revelador e frutificante para a sua vida e a vida dos samaritanos. No diálogo de Jesus com a

samaritana, ocorre a abertura do coração daquela mulher para o Messias que todo o povo

esperava. Esta mulher ouve, vê, responde e vai anunciar o Cristo a seu povo.

Sem vínculo institucional, mas vinculada à Palavra de Deus (Jo 4,25s: “ Eu sei

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que um Messias deve vir – aquele que se chama Cristo. Quando vier, ele nos anunciará todas

as coisas. Jesus lhe disse: „Sou eu, eu que estou falando a ti‟”), a samaritana deixa tudo o que

estava fazendo e vai anunciar o que ouviu e viu. Sua disposição e vinculação a Jesus é

imediata. A força desta palavra de Jesus irrompe de tal forma nesta mulher, que se torna uma

fonte de água que jorra para a vida eterna (cf. Jo 4,14). O semear desta mulher prepara a

colheita feita pelos discípulos, que nada semearam por ali. Jesus ainda mostra que tanto

aquele que semeia quanto o que colhe se alegram juntos (cf. Jo 4,36). Sua resposta ao

oferecimento de Deus em Jesus transforma sua vida por completo, bem como a de toda a sua

comunidade que ouve sua palavra. Para crer e seguir, é necessário ir mais além do estrutural e

do institucional que muitas vezes não deixam ver, escutar e reconhecer o Cristo Jesus. Em

outras palavras, é preciso sair da nossa comodidade institucional. Conclui-se, assim, que Jesus

não se fecha a um determinado grupo e nem fica num determinado lugar específico, mas

chama outras pessoas em outros lugares, como a Samaritana, mulher tida como pagã, para o

anúncio e a sinalização do Reino.

A cultura judaica mostra-nos um masculino muito institucionalizado e enraizado

num poder opressor, que não possibilita a determinadas pessoas aproximarem-se de Jesus e

responderem seu convite como opção pessoal e livre. Como exemplo, Nicodemos, um dos

notáveis judeus, vai à noite conversar com Jesus às escondidas por causa da instituição a que

pertence (cf. Jo 3,2). Mesmo sabendo que Jesus é um Mestre que vem da parte de Deus,

Nicodemos não o professa claramente. Os próprios discípulos são marcados por essa

estrutura de sociedade, imposta pelo judaísmo da época, que dificulta entender a missão de

Jesus e, conseqüentemente, segui-lo plenamente. Por isso, os discípulos estranham Jesus:

sendo judeu, não deveria dialogar com aquela mulher samaritana, cujo povo mantinha-se

separado dos judeus. Por sua condição de mulher, sua forma de vida, pelo grupo cultural a que

pertence e pela religião que professa, Jesus a escolhe como portadora de uma mensagem de

salvação para o seu povo, rompendo os limites impostos pelo judaísmo. Assim, Jesus abre um

espaço de liberdade e de crescimento na fé, que não está sujeito a condicionamentos culturais

específicos. Isto nos ajuda a responder uma questão: até que ponto, em nosso contexto

eclesial, não estamos impondo uma maneira de expressar a fé, vinculada a uma determinada

cultura?

Maria Madalena vai ao túmulo de madrugada, vê a pedra retirada e corre para ter

com Simão Pedro e o discípulo que Jesus amava. Enquanto os discípulos comprovam o fato e

voltam para casa, Maria Madalena fica perto do túmulo. Ela chora, busca, procura

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perseverantemente Jesus, ao qual se sente ligada de modo particular. Quando Cristo a chama

pelo nome, “Maria!”, ela o reconhece imediatamente, respondendo: “Mestre”. Sua resposta

faz dela uma discípula, disposta a receber de Jesus um novo saber acerca de Deus. Por sua fé

e seu anúncio, torna-se portadora do mandato do Cristo ressuscitado: transmitir e anunciar aos

discípulos o que ele lhe disse. Em Maria Madalena, figura a nova comunidade, esposa fiel de

Cristo. A mensagem da qual é portadora estabeleceu uma nova relação na comunidade – “...

vai ter com os meus irmãos e dize-lhes que eu subo para o meu Pai, que é vosso Pai, para o

meu Deus, que é vosso Deus” (Jo 20,17). As relações são de fraternidade, pois o Pai de Jesus

tornou-se o nosso Pai. Deus, num ato supremo de amor, ao ressuscitar o Filho, restitui-lhe o

espírito, tornando-o capaz, pela ressurreição, de dar o Espírito Santo a toda criatura,

estabelecendo uma nova maneira de ser com os discípulos e discípulas. O que até aquele

momento eram simples promessas e orações tornaram-se realidades: “... como tu, Pai, estás

em mim e eu em ti...” (Jo 17,21), eles também, os que crêem, são um só no Pai e no Filho.

Portanto, Maria Madalena impulsiona os discípulos a continuar a missão que o Cristo

ressuscitado lhes indicara.

João mostrou ainda, na tipologia de mulher, a coragem de testemunhar o Cristo

em seu sofrimento, contrária ao temor presente nos discípulos que debandaram por medo de

sofrer a mesma sentença. Essa coragem se impõe sobre as dificuldades surgidas no caminho,

superando o medo que não deixa testemunhar a fé e o seguimento, próprios do discipulado

cristão.

Em suma, eis em grandes linhas, o testemunho da fé da samaritana e de Maria

Madalena, paradigmas para a fé e anúncio da comunidade cristã:

1) O evangelista João chama a atenção para o amor presente nessas mulheres. O

amor que carregam em si não deixa sem resposta aquele que se encontra com elas e as

interpela, Jesus Cristo. Vale a pena examinar os diversos influxos a que estão submetidos os

homens e as mulheres de hoje, e ver se esses influxos os levam ao egoísmo e os afastam do

amor e do serviço, se os fazem talvez incapazes para deixar que siga atuando o amor de Deus,

que está depositado nos cristãos.

2) A busca e a procura constante destas mulheres pelo seu Senhor é muito maior

que os seus próprios anseios e desejos e só cessam quando encontram o Cristo, Senhor da

vida.

3) Quando encontram o Cristo, tornam-se íntimas do Senhor pela escuta atenta de

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sua palavra. A Palavra de Jesus torna-se alimento para a vida destas mulheres. E elas se

tornam o eco desta palavra de vida eterna. Ao abrirem os seus corações aceitam os

ensinamentos deste “Rabi”, aderindo-lhe totalmente. Tornam o seu ser a morada do Cristo

Jesus. João evidencia ainda, que Jesus, sendo um Rabi, não ensina somente os homens, mas

também as mulheres. Rompe com um sistema costumeiro que privilegiava o sexo masculino.

Na Igreja nascente, homens e mulheres trabalham e se afadigam nas obras do Senhor Jesus.

4) A partir do encontro com o Senhor, as mulheres não o detêm para si, mas

correm para anunciar a todos a grande descoberta de suas vidas.

5) A coragem destas mulheres torna o Cristo presente na comunidade. A palavra

delas não cala a palavra daquele que venceu o poder da morte. Pelo contrário, estas palavras

atraem todos para o Cristo, salvador do mundo. Gera na comunidade uma relação fraterna de

irmãos e irmãs. Em Cristo, todos são filhos e filhas do mesmo Pai.

6) Tornam-se uma aliança da comunidade para com o Cristo Jesus. A comunidade

torna-se a esposa do esposo Jesus Cristo, que, em sua alteridade relacional, proclama o amor

que derruba todo egoísmo e arrogância. Quanto mais a comunidade-esposa proclama esse

amor, tanto mais se torna inseparável do Cristo Jesus.

7) Tal como Jesus, estas mulheres se tornam servidoras da comunidade com sua

dedicação, ternura e disponibilidade.

Portanto, podemos dizer que as mulheres no Evangelho de João são paradigmas

de fé e de anúncio do Cristo Jesus.

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