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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais Em convênio de co-tutela com UNIVERSITÉ PARIS I – SORBONNE École Doctorale de Droit Marinana Andrade e Barros REGIME DEMOCRÁTICO E DIREITO INTERNACIONAL NA AMÉRICA LATINA: A construção normativa da promoção da democracia nos acordos e arranjos multilaterais regionais Belo Horizonte 2016

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    PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais

    Em convênio de co-tutela com

    UNIVERSITÉ PARIS I – SORBONNE École Doctorale de Droit

    Marinana Andrade e Barros

    REGIME DEMOCRÁTICO E DIREITO INTERNACIONAL NA

    AMÉRICA LATINA:

    A construção normativa da promoção da democracia nos acordos e arranjos

    multilaterais regionais

    Belo Horizonte 2016

  •  

    Marinana Andrade e Barros

    REGIME DEMOCRÁTICO E DIREITO INTERNACIONAL NA

    AMÉRICA LATINA:

    A construção normativa da promoção da democracia nos acordos e arranjos

    multilaterais regionais

    Tese apresentada em quadro de co-tutela aos Programas de Pós-Graduação em Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e em Direito Internacional e Europeu da Université Paris I – Sorbonne, como requisito parcial para obtenção do título de Doutora em Relações Internacionais e em Direito Internacional e Europeu. Orientadores: Prof. Dr. Jorge Lasmar Prof. Dr. Jean-Marc Sorel

    Belo Horizonte 2016

  • FICHA CATALOGRÁFICA

    Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

    Barros, Marinana Andrade e

    B277r Regime democrático e direito internacional na América Latina: a construção

    normativa da promoção da democracia nos acordos e arranjos multilaterais

    regionais / Marinana Andrade e Barros. Belo Horizonte, 2016.

    462 f. : il.

    Orientador: Jorge Lasmar

    Coorientador: Jean-Marc Sorel

    Tese (Doutorado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.

    Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais / Université Paris I –

    Sorbonne École Doctorale de Droit.

    1. Direito internacional público. 2. Democracia – América Latina. 3. América

    Latina - Condições sociais. 4. Relações internacionais. 5. Organizações

    internacionais. 6. Tratados. I. Lasmar, Jorge. II. Sorel, Jean-Marc. III. Pontifícia

    Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em

    Relações Internacionais. IV. Université Paris 1 – Panthéon Sorbonne.

    Département de Droit International et Européen de l'École Doctorale de Droit. V.

    Título.

    CDU: 341

  •  

    Marinana Andrade e Barros

    REGIME DEMOCRÁTICO E DIREITO INTERNACIONAL NA

    AMÉRICA LATINA:

    A construção normativa da promoção da democracia nos acordos e arranjos

    multilaterais regionais

    Tese apresentada em quadro de co-tutela aos Programas de Pós-Graduação em Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e em Direito Internacional e Europeu da Université Paris I – Sorbonne, como requisito parcial para obtenção do título de Doutora em Relações Internacionais e em Direito Internacional e Europeu.

    ___________________________________________________________________________

    Prof. Dr. Jorge Lasmar – PUC Minas (Orientador) ___________________________________________________________________________

    Prof. Dr. Jean-Marc Sorel – Université Sorbonne (Orientador) ___________________________________________________________________________

    Prof. Dr. Aziz Saliba – UFMG (Banca Examinadora) ___________________________________________________________________________

    Profa. Dra. Emmanuelle Tourme-Jouannet – Sciences Po (Banca Examinadora) ___________________________________________________________________________ Prof. Dr. Leonardo Estrela Borges – Inst. Brasiliense de Direito Público (Banca Examinadora) ___________________________________________________________________________

    Prof. Dr. Leonardo Ramos – PUC Minas (Banca Examinadora) ___________________________________________________________________________

    Prof. Dr. Otávio Dulci – PUC Minas (Banca Examinadora) ___________________________________________________________________________

    Profa. Dra. Fátima Anastasia – PUC Minas (Banca Examinadora – Suplente)

    Belo Horizonte, 05 de dezembro de 2016

  •  

    Para Frederico, que fez de cada passo desta caminhada uma demonstração de companheirismo. “Se é pra sonhar, não seja no fim”.

  •  

    AGRADECIMENTOS

    Ao fim de um longo processo como esse, resta um profundo sentimento de gratidão aos que

    dele participaram.

    Ao Frederico, por me inspirar diariamente com seu amor e cuidado. E, como se não bastasse,

    ter me ajudado a compreender minhas próprias ideias sobre este trabalho com conversas que

    tornaram mais leve esta trajetória.

    Ao Felipe, que no início desta tese era apenas um sonho e que se tornou meu coração batendo

    fora de mim, por me mostrar em cada sorriso o que importa acima de tudo.

    À minha mãe e aos meus pais por protegerem cada passo. À Roberta, João Felipe e Francisco,

    pela companhia, carinho e apoio sempre e a qualquer hora. Aos familiares e amigos, pelas

    palavras de incentivo e por compreenderem os momentos de distância e de saudade.

    Aos que tão gentilmente me concederam seu tempo e compartilharam comigo seus

    conhecimentos sobre o tema deste trabalho, que me é tão caro: Professor Jean-René Garcia,

    Thomas Carothers e Katalina Montaña.

    À CAPES pela bolsa concedida que me propiciou o aprofundamento deste estudo.

    Por fim, agradeço imensamente aos meus orientadores, Professor Jorge Lasmar e Professor

    Jean-Marc Sorel. Tive a sorte de ter podido contar com dois professores cuja vocação se faz

    notar em cada gesto. Obrigada pela generosidade comigo e com meu trabalho ao longo destes

    anos. Com vocês, reparto a alegria da tese concluída e lhes dedico meu profundo respeito e

    admiração.

  •  

    “(...) lo que descubre uno es que ya en América Latina, la literatura, la ficción, la novela, es más fácil de hacer creer que la realidad” (Gabriel Garcia Marques, 1995)

  •  

    RESUMO

    Com o fim da Guerra Fria, a promoção da democracia consolidou-se como tema para além

    das fronteiras nacionais, implicando a revisão de tradicionais paradigmas das relações

    internacionais e trazendo consigo profundas controvérsias. Afinal, o conteúdo daquilo que se

    nomeia como democracia é preenchido a partir de posicionamentos ideológicos que diferem,

    por vezes de forma cabal, entre os atores internacionais. Ainda assim, prevalece na sociedade

    internacional uma concepção específica de democracia, qual seja, a liberal representativa,

    produto do desenvolvimento político ocidental. Na América Latina, locus que se constrói

    tendo como parâmetros políticos categorias que não lhes são necessariamente próprias, essa

    discussão ganha contornos bastante particulares devido tanto à construção histórica da região

    quanto à sobreposição de arranjos multilaterais regionais. Esses arranjos – OEA, Mercosul,

    Unasul, SICA, CAN e ALBA – criaram, ao longo da década de 1990, quadros normativos que

    tratam do regime político de seus Estados membros. Como consequência, a América Latina

    possui um denso conjunto de diretrizes que se estabelece com a adoção de normas abstratas,

    que versam sobre a necessidade da manutenção de regimes democráticos, e de normas

    concretas, que operacionalizam esse imperativo quando crises políticas atingem países da

    região. O conteúdo desse corpo normativo varia dependendo do arranjo analisado, do tipo de

    crise enfrentada e do governo objeto das medidas propostas, refletindo, no fenômeno da

    promoção da democracia, a complexidade da cena política regional.

    Palavras-chave: Promoção da democracia. América Latina. Arranjos multilaterais regionais.

    Direito Internacional.

  •  

    RÉSUMÉ

    A la fin de la Guerre froide, la promotion de la démocratie s’est consolidée en tant que thème

    au-delà des frontières nationales, ce qui impliqua de revoir les paradigmes traditionnels des

    relations internationales et engendra de profondes controverses. Le contenu de ce que l’on

    nomme démocratie est ainsi formé de positionnements idéologiques différents, voire parfois

    opposés, entre les acteurs internationaux. Dans la société internationale, la conception

    spécifique de démocratie libérale représentative prévaut néanmoins en tant que produit

    politique occidental. En Amérique latine, un locus construit sur la base de paramètres

    politiques représentés par des catégories qui ne lui sont pas nécessairement propres. Cette

    discussion prend ainsi des contours très particuliers du fait de la construction historique de la

    région et de la superposition des accords et arrangements multilatéraux régionaux. Ces

    arrangements – OEA, Mercosur, Unasur, SICA, CAN et ALBA – créèrent, tout au long des

    années 90, des cadres normatifs qui traitent du régime politique de leurs États membres.

    L’Amérique latine possède ainsi un ensemble très dense de directives établi par l’adoption de

    normes concrètes qui mettent en œuvre cet impératif lorsque des crises politiques surviennent

    dans des pays de cette région. Le contenu de ce corps normatif varie selon l’arrangement

    analysé, le type de crise auquel il faut faire face et le gouvernement qui fait l’objet des

    mesures proposées. La complexité de la scène politique régionale se reflète ainsi dans le

    phénomène de promotion de la démocratie.

    Mots-clés : Promotion de la démocratie. Amérique latine. Arrangements multilatéraux

    régionaux. Droit international.

  •  

    ABSTRACT

    With the end of the Cold War, the promotion of democracy has established itself as a theme

    beyond national boundaries, implying a review of traditional paradigms of international

    relations and leading to deep controversy. This is a consequence of the fact that the content of

    what is named as democracy is filled from ideological positions that differ, sometimes vastly,

    among international actors. Nevertheless, it still prevails in international society a specific

    conception of democracy, namely, the representative liberal, product of Western political

    development. In Latin America, locus that is built having as political parameters categories

    that were necessarily created locally, this discussion gets very specific contours due to both

    the historical construction of the region and to the existence of overlapping regional

    multilateral arrangements. These arrangements – OAS, Mercosur, Unasur, SICA, CAN and

    ALBA – created, throughout the 1990s, regulatory frameworks to deal with the political

    system of its member states. As a result, Latin America has a dense set of guidelines

    established with the adoption of general rules, which relate to the need to maintain democratic

    regimes, and specific rules, that operationalize this imperative when political crises hit the

    region. The content of this regulatory framework varies depending on the arrangement

    analyzed, the crisis type and the government object to the measures proposed, reflecting, in

    the phenomenon of promotion of democracy, the complexity of the regional political scene.

    Keywords: Democracy promotion. Latin America. Regional multilateral arrangements.

    International Law.

  •  

    LISTA DE TABELAS

    TABELA 1 Sistemas eleitorais na América Latina..................................................... 190

    TABELA 2 Participação política popular na América Latina..................................... 194

    TABELA 3 Característica mais importante da democracia (a) ................................... 198

    TABELA 4 Característica mais importante da democracia (b) .................................. 200

    TABELA 5 Característica mais importante da democracia (c) ................................... 203

    TABELA 6 Característica mais importante da democracia (d) .................................. 205

    TABELA 7 Apoio à democracia (1996) ..................................................................... 208

    TABELA 8 Apoio à democracia (2015) ..................................................................... 210

    TABELA 9 Satisfação com a democracia (1996) ....................................................... 212

    TABELA 10 Satisfação com a democracia (2015) ....................................................... 213

    TABELA 11 Classificação da democracia segundo os cidadãos de cada país (2004). 215

    TABELA 12 Classificação da democracia segundo os cidadãos de cada país (2013). 216

    TABELA 13 Status da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San Jose Da Costa Rica) – América Latina.............................................. 251

    TABELA 14 Quadro resumo das normas sobre promoção da democracia nos arranjos regionais latino americanos – a partir dos anos 1990.................   295

    TABELA 15 Quadro resumo das reações dos arranjos regionais às crises de 1a ordem da democracia................................................................................................. 348

    TABELA 16 Quadro resumo das reações dos arranjos regionais às crises de 2a ordem da democracia................................................................................ 402

  •  

    LISTA DE ABREVIATURAS Art. – Artigo B. C. Int'l & Comp. L. – Boston College of International and Comparative Law Brit. Y.B. Int'l L. – British Yearbook of International Law Comp. – Compilador Coord. – Coordenador Dec. – Declaração Dir. – Diretor E.g. – Por exemplo Ed. – Editor Estud. Econ. – Estudos Econômicos (Revistas Universidade de São Paulo) Et al. – E outro Harv. Int'l. L. J – Harvard International Law Journal Inf. – Informativo I.e. – Isto é Mich. J. Int'l L – Michigan Journal of International Law Org. – Organizador Res. – Resolução Rev. Bras. Polít. Int. – Revista Brasileira de Política Internacional

  •  

    LISTA DE SIGLAS

    AD – Áccion Democrática AG – Assembleia Geral ALBA – Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América ALBA-TCP – Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América – Tratado de Comércio dos Povos ALCA – Área de Livre Comércio para as Américas ASIL – American Society of International Law BBC – British Broadcast Corporation BICE – Banco Centro-Americano de Integração Econômica CAN – Comunidade Andina CARICOM – Comunidade do Caribe CCDHRN – Comissão Cubana de Direitos Humanos e Reconciliação Nacional CDH – Conselho de Direitos Humanos CEDLAS – Centro de Estudios Distributivos Laborales y Sociales CELAC – Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos CIA – Central Intelligence Agency CIDH – Comissão Interamericana de Direitos Humanos CIJ – Corte Internacional de Justiça CJI – Comissão Jurídica Interamericana CMC – Conselho Mercado Comum CNE – Consejo Nacional Electoral CNN – Cable News Network CONALDE – Consejo Nacional Democrático COPEI – Comité de Organización Política Electoral Independiente

  •  

    CP – Conselho Permanente CR – Constituição da República CS – Conselho de Segurança CSN – Comunidade Sul-Americana de Nações EJIL – European Journal of International Law EUA – Estados Unidos da América FMI – Fundo Monetário Internacional FSLN – Frente Sandinista de Liberación Nacional GMC – Grupo Mercado Comum IFIS – Instituições Financeiras Internacionais LGDJ – Librairie générale de droit et de jurisprudence MAS – Movimiento Alianza País MERCOSUL – Mercado Comum do Sul MICIVIH – Missão Civil Internacional no Haiti MINUHA – Missão das Nações Unidas para o Haiti MINUSTAH – Missão de Estabilização das Nações Unidas no Haiti MOE – Missão de Observação Eleitoral MRE – Ministério das Relações Exteriores OC – Opinião Consultiva ODECA – Organização dos Estados Centro-Americanos OEA – Organização dos Estados Americanos ONU – Organização das Nações Unidas PIB – Produto Interno Bruto PLC – Partido Liberal Constitucionalista PRI – Partido Revolucionário Institucional

  •  

    RBDI – Revista Brasileira de Direito Internacional SICA – Sistema de Integração Centro-americano TIAR – Tratado Interamericano de Assistência Recíproca TPP – Acordo Transpacífico UE – União Europeia UNASUL – União das Nações Sul-Americanas UPD – Unidade para a Promoção da Democracia UNIDO – United Nations Industrial Development Organization

  •  

    SUMÁRIO INTRODUÇÃO...................................................................................................... 19 I. ENQUADRAMENTO TEÓRICO................................................................. 22 A. Promoção da democracia: a sociedade internacional entre o pluralismo e o solidarismo....................................................................................

    23

    B. Especificidades do Direito Internacional na esfera da promoção da democracia..............................................................................................................

    32

    1. As fontes do Direito Internacional previstas pelo artigo 38 do Estatuto da CIJ e os atos unilaterais dos Estados................................................................... 35 2. O soft law como expressão do Direito Internacional............................... 37 3. A regionalização do Direito Internacional............................................... 40 4. A concorrência e a sobreposição de arranjos multilaterais regionais...... 43 II. CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS................................................. 44 PRIMEIRA PARTE – ENTRE O “UNIVERSAL” E O PARTICULAR: DIMENSÕES DA DEMOCRACIA.....................................................................

    50

    TÍTULO I. A DEMOCRACIA NA AGENDA INTERNACIONAL............. 51 CAPÍTULO 1. PROMOÇÃO DA DEMOCRACIA: QUAL DEMOCRACIA?................................................................................................... 52 SEÇÃO 1. A democracia em sua dimensão internacional..................... 52 § 1 – A concepção liberal de democracia................................................ 53 § 2 – O triunfo da democracia liberal?.................................................... 62 SEÇÃO 2. Os discursos legitimadores da promoção da democracia..............................................................................................................

    74

    § 1 – A paz democrática.......................................................................... 75 A. A difícil aprovação da guerra em uma democracia liberal............. 77 B. O reflexo dos valores domésticos da democracia liberal nas relações internacionais.............................................................................................

    80

    C. A relação direta entre comércio e paz............................................. 81 § 2 – A democracia como condição e conteúdo para efetivação da justiça e dos Direitos Humanos............................................................................... 83 A. A democracia como condição para o respeito às potencialidades humanas................................................................................................................... 83 B. A democracia como conteúdo dos Direitos Humanos.................... 86 CONCLUSÃO DO CAPÍTULO .................................................................. 90 CAPÍTULO 2. LIMITES E OPOSIÇÕES À PROMOÇÃO DA DEMOCRACIA.....................................................................................................

    92

    SEÇÃO 1. Um fenômeno que desafia concepções tradicionais da sociedade internacional.........................................................................................

    92

    § 1 – A democracia como fenômeno internacional e a soberania estatal.......................................................................................................................

    93

    § 2 – A democracia como justificativa para a intervenção internacional.............................................................................................................

    98

    A. Uso da força.................................................................................... 99

  •  

    B. Intervenção por convite................................................................... 105 SEÇÃO 2. Perspectivas críticas e proposições conciliadoras da promoção da democracia......................................................................................

    107

    § 1 – Abordagens céticas diante da promoção da democracia................ 108 A. A universalização de um valor particular....................................... 108 B. A paz democrática em questão ....................................................... 112 1. Democracias beligerantes............................................................ 112 2. Contestação da relação causal entre democracia e paz................ 115 a. A estrutura do sistema.............................................................. 116 b. A paz capitalista....................................................................... 117 § 2 – A “terceira via” entre os céticos e os entusiastas............................ 118 A. Por uma nova forma de se promover a democracia........................ 119 B. O projeto da democracia cosmopolita............................................. 121 CONCLUSÃO DO CAPÍTULO................................................................... 124 TÍTULO II. AS PARTICULARIDADES DO DESENVOLVIMENTO DA DEMOCRACIA NA AMÉRICA LATINA.........................................................

    126

    CAPÍTULO 1. FUNDAÇÃO E DESENVOLVIMENTO POLÍTICO DA AMÉRICA LATINA: ENTRE CAUDILHOS, POPULISTAS E DITADORES..........................................................................................................

    128 SEÇÃO 1. A formação das Repúblicas Oligárquicas............................. 128 § 1 – A dicotômica inserção de elementos liberais na América Latina....................................................................................................................... 129 § 2 – Vários caudilhos, um imperador e o imperialismo......................... 133 A. A América espanhola pós-independência....................................... 135 B. O Brasil pós-independência............................................................ 141 C. O início do imperialismo norte-americano..................................... 146 SEÇÃO 2. Dos Populismos às Ditaduras................................................. 150 § 1 – O autoritarismo e o carisma como instrumentos políticos.............. 151 § 2 – A força como instrumento político................................................. 160 CONCLUSÃO DO CAPÍTULO................................................................... 169 CAPÍTULO 2. A REDEMOCRATIZAÇÃO DA AMÉRICA LATINA.................................................................................................................. 171 SEÇÃO 1. Os novos rumos da América Latina a partir dos anos 1990.........................................................................................................................

    172

    § 1 – As reformas políticas e econômicas liberais................................... 172 § 2 – Novas formas de se pensar a democracia na passagem para o século XXI...............................................................................................................

    179

    SEÇÃO 2. As características e o significado da democracia na América Latina......................................................................................................

    188

    § 1 – A conformação da democracia na América Latina......................... 189 § 2 – A democracia segundo os latino-americanos.................................. 196 A. A compreensão pelos latino-americano do significado da democracia...............................................................................................................

    197

    B. A Democracia nos países latino-americanos segundo seus cidadãos...................................................................................................................

    207

    CONCLUSÃO DO CAPÍTULO................................................................... 218

  •  

    CONCLUSÃO DA PARTE ................................................................................. 220 SEGUNDA PARTE – DA DEMOCRACIA NA AMÉRICA LATINA SOB A PERSPECTIVA INTERNACIONAL.............................................................. 222 TÍTULO I. DIMENSÕES JURÍDICA E SÓCIO-POLÍTICA DA PROMOÇÃO DA DEMOCRACIA NA AMÉRICA LATINA......................... 223 CAPÍTULO 1. A EMERGÊNCIA DA PROMOÇÃO DA DEMOCRACIA NO DIREITO INTERNACIONAL ENTRE O SÉCULO XIX E O FIM DA GUERRA FRIA NA AMÉRICA LATINA.......................... 224 SEÇÃO 1. As primeiras manifestações coletivas pró-democracia........ 224 § 1 – Congressos e Conferências no continente americano: o início da convergência em torno da democracia..................................................................... 225 § 2 – O reconhecimento de governo como instrumento de defesa da democracia............................................................................................................... 230 SEÇÃO 2. A promoção da democracia no sistema interamericano durante a Guerra Fria........................................................................................... 234 § 1 – A democracia como tema constante e inconsistente na agenda regional.................................................................................................................... 235 A. Disposições sobre democracia representativa na Carta da OEA.... 237 B. Entraves jurídicos e políticos para a operacionalização da promoção da democracia......................................................................................... 240 § 2 – O sistema regional interamericano de proteção aos Direitos Humanos e a promoção da democracia................................................................... 246 A. A construção convencional da promoção da democracia no sistema interamericano de proteção aos Direitos Humanos.................................... 246 B. Manifestações da Comissão e da Corte Interamericana de Direitos Humanos acerca da democracia................................................................. 252 CONCLUSÃO DO CAPÍTULO................................................................... 254 CAPÍTULO 2. A EXPANSÃO NORMATIVA DA PROMOÇÃO DA DEMOCRACIA APÓS A GUERRA FRIA........................................................ 257 SEÇÃO 1. Das normas sobre promoção da democracia nos arranjos regionais de maior abrangência entre os países da América Latina................. 259 § 1 – Organização dos Estados Americanos............................................ 260 § 2 – União das Nações Sul-Americanas................................................. 272 SEÇÃO 2. Das normas sobre promoção da democracia nos arranjos regionais de menor abrangência entre os países da América Latina................ 277 § 1 – Mercado Comum do Sul................................................................. 278 § 2 – Comunidade Andina....................................................................... 282 § 3 – Sistema de Integração Centro-Americano...................................... 286 § 4 – Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América................... 290 CONCLUSÃO DO CAPÍTULO................................................................... 294 TÍTULO II. A OPERACIONALIZAÇÃO DOS INSTRUMENTOS JURÍDICOS LATINO-AMERICANOS NA ABORDAGEM DE CRISES DOS REGIMES DEMOCRÁTICOS................................................................... 299

  •  

    CAPÍTULO 1. OPERACIONALIZAÇÃO DO QUADRO NORMATIVO SOBRE PROMOÇÃO DA DEMOCRACIA EM CRISES DE PRIMEIRA ORDEM: GOLPES E TENTATIVAS DE GOLPES DE ESTADO................................................................................................................. 300 SEÇÃO 1. Alterações inconstitucionais do poder soberano: golpes e autogolpes.............................................................................................................. 300 § 1 – Golpe de Estado no Haiti (1991-1994)........................................... 301 A. Organização dos Estados Americanos........................................... 302 § 2 – Golpe de Estado em Honduras (2009)........................................... 311 A. Organização dos Estados Americanos............................................ 313 B. Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América................... 315 C. Sistema de Integração Centro-Americano...................................... 317 D. União das Nações Sul-Americanas................................................. 319 E. Mercado Comum do Sul................................................................. 320 F. Comunidade Andina........................................................................ 321 § 3 – Autogolpe no Peru (1992)............................................................... 322 A. Organização dos Estados Americanos............................................ 323 § 4 – Autogolpe na Guatemala (1993).................................................... 325 A. Organização dos Estados Americanos............................................ 326 B. Sistema de Integração Centro-Americano...................................... 328 SEÇÃO 2. Aspirações de alteração inconstitucional do poder soberano: tentativas de golpe de Estado.............................................................. 329 § 1 – Tentativa de golpe de Estado na Venezuela (1992)........................ 330 A. Organização dos Estados Americanos............................................ 331 § 2 – Tentativa de golpe de Estado e assassinato do Vice-Presidente no Paraguai (1996/1999)............................................................................................... 332 A. Organização dos Estados Americanos............................................ 333 B. Mercado Comum do Sul................................................................. 334 § 3 – Tentativa de golpe de Estado na Venezuela (2002)........................ 336 A. Organização dos Estados Americanos............................................ 337 § 4 – Tentativa de golpe de Estado no Equador (2010)........................... 341 A. Organização dos Estados Americanos............................................ 343 B. Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América................... 344 C. União das Nações Sul-Americanas................................................. 345 D. Comunidade Andina....................................................................... 346 CONCLUSÃO DO CAPÍTULO................................................................... 347 CAPÍTULO 2. OPERACIONALIZAÇÃO DO QUADRO NORMATIVO SOBRE PROMOÇÃO DA DEMOCRACIA EM CRISES DE SEGUNDA ORDEM: INSTABILIDADES POLÍTICAS........................... 352 SEÇÃO 1. Instabilidade política com alteração constitucionalmente prevista de titularidade do poder soberano: processos de impeachment e renúncia presidencial........................................................................................... 352 § 1 – Processo de impeachment presidencial no Equador (1997)........... 354 A. Organização dos Estados Americanos............................................ 355 § 2 – Processo de impeachment presidencial no Paraguai (2012).......... 357 A. Organização dos Estados Americanos............................................ 359 B. Mercado Comum do Sul................................................................. 360 C. União das Nações Sul-Americanas................................................. 362

  •  

    § 3 – Renúncia pesidencial no Equador (2000)...................................... 364 A. Organização dos Estados Americanos............................................ 365 B. Comunidade Andina....................................................................... 366 § 4 – Denúncias de irregularidades nas eleições e renúncia presidencial no Peru (2000)......................................................................................................... 367 A. Organização dos Estados Americanos............................................ 368 § 5 – Renúncias presidenciais na Bolívia (2003, 2005).......................... 369 A. Organização dos Estados Americanos............................................ 371 B. Comunidade Andina....................................................................... 372 § 6 – Denúncia de irregularidades nas eleições e renúncia presidencial no Haiti (2000/2004)................................................................................................ 374 A. Organização dos Estados Americanos............................................ 375 SEÇÃO 2. Instabilidade política com ameaça à ordem democrática: desequilíbrios entre poderes e protestos.............................................................. 377 § 1 – Desequilíbrio entre os poderes e impeachment presidencial no Equador (2005)........................................................................................................ 378 A. Organização dos Estados Americanos............................................ 379 B. União das Nações Sul-Americanas (Comunidade Sul-Americana de Nações) e Comunidade Andina........................................................................... 381 § 2 – Desequilíbrio entre os poderes na Nicarágua (2004, 2005)............ 383 A. Sistema de Integração Centro-Americano...................................... 384 B. Organização dos Estados Americanos............................................ 385 § 3 – Desobediência civil de Departamentos e protestos na Bolívia (2008)....................................................................................................................... 388 A. Organização dos Estados Americanos............................................ 389 B. União das Nações Sul-Americanas................................................. 390 C. Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América................... 391 § 4 – Protestos civis na Venezuela (2014).............................................. 393 A. Organização dos Estados Americanos............................................ 394 B. Mercado Comum do Sul................................................................. 397 C. União das Nações Sul-Americanas................................................. 398 D. Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América................... 399 CONCLUSÃO DO CAPÍTULO................................................................... 401 CONCLUSÃO DA PARTE.................................................................................. 409 CONCLUSÃO GERAL......................................................................................... 411 REFERÊNCIAS..................................................................................................... 416

  •   19  

    INTRODUÇÃO

    O presente trabalho se desenvolve a partir das controvérsias geradas pela emergência da

    promoção da democracia como temática multilateral na agenda latino-americana. Objetiva-se

    analisar o processo de elaboração, o conteúdo e a operacionalização do aparato normativo

    multilateral para a promoção da democracia na América Latina. Duas perguntas guiam a

    pesquisa. A promoção da democracia na América Latina se relaciona às particularidades dos

    regimes políticos da região? Qual o impacto da coexistência de organizações regionais, sub-

    regionais e acordos de cooperação nos arranjos normativos sobre democracia na América

    Latina? Busca-se, assim, estabelecer um diálogo entre a forma como internamente se

    configuram os regimes políticos e a dimensão normativa regional da promoção da

    democracia. Da mesma maneira, atenta-se para as possíveis consequências da concorrência e

    sobreposição de arranjos regionais desta temática. As duas questões se encontram na hipótese

    que orienta esta tese: a institucionalização da promoção regional da democracia, ou seja, sua

    inserção nas normas e nas práticas, pode ocorrer de formas díspares em diferentes arranjos

    políticos regionais, refletindo a história, os interesses, as alianças políticas e a fluidez do

    conceito de democracia. Por um lado, a democracia, compreendida como poder exercido pelo

    povo é, em si, um valor fundamental. Por outro lado, o transbordamento de sua defesa dos

    grupos domésticos para o âmbito multilateral tem reverberado as características e, portanto,

    também as incoerências da sociedade internacional. Forma-se, assim, uma dicotomia que deve

    ter seu significado e suas consequências explicitados.

    A emergência da democracia como tema da agenda internacional é resultado da revisão de

    tradicionais paradigmas que informaram durante séculos as relações internacionais tanto em

    seu contexto político quanto jurídico. A configuração dos regimes políticos formava uma das

    últimas importantes separações entre assuntos domésticos e internacionais. Até a ascensão de

    uma agenda internacional pró-democracia, predominava a concepção de que os contornos do

    regime político de cada Estado seriam resultado de sua própria história, construída a partir de

    caminhos particulares, sem que atores internacionais pudessem, legitimamente, ser parte neste

    processo. Esse cenário se modifica com a crescente compreensão de que a democracia

    constitui um valor a ser defendido para além das fronteiras nacionais. Uma mudança de tal

    amplitude não ocorre sem questionamentos e incongruências. O termo “democracia” padece

    de um significado extremamente fluido, preenchido a partir de posicionamentos ideológicos e,

    portanto, não-partilhados de forma homogênea na sociedade internacional. Esse fato

  •   20  

    fundamenta a dicotomia que se desenvolve a partir da existência de uma dimensão

    internacional de promoção da democracia1. O exercício do poder pelo povo – que está na base

    daquilo que foi classicamente compreendido como demokratia2 – é parte do desenvolvimento

    legítimo de uma sociedade política. Não há, contudo, uma só forma de se participar de uma

    sociedade política. A existência de uma pluralidade de contextos sócio-políticos resulta,

    necessariamente, na diversidade de construções normativas e institucionais domésticas sobre

    a participação popular nos assuntos públicos. Mas o Direito Internacional não reflete

    imperiosamente a diversidade que caracteriza a sociedade internacional.

    O Direito, afinal, relaciona-se ao poder e aos fatos políticos. Ele não é independente do

    comportamento, da vontade e do interesse (KOSKENNIEMI, 2005, p. 18). Caso o fosse,

    confundir-se-ia com uma espécie de moralidade natural. No entanto, não se pode reduzir o

    Direito Internacional ao jogo político, ainda que ele tenha propósitos políticos. Sua

    concretude não dissipa a normatividade que o informa (KOSKENNIEMI, 2005, p. 19). Os

    arranjos normativos internacionais sobre democracia refletem esses traços. A flexibilidade do

    conteúdo da democracia, somada aos interesses políticos muitas vezes conflitantes entre os

    atores internacionais, leva à possibilidade de instrumentalização do discurso e das práticas da

    promoção da democracia para fins outros, distantes do aprofundamento da participação

    política. A ingerência travestida na intenção de uma finalidade louvável é um dos principais

    riscos deste fenômeno. Como bem coloca Rein Müllerson, “[o] idealismo, que às vezes está

    próximo da ingenuidade, e a hipocrisia que pode ter de homenagear a virtude, juntamente às

                                                                                                                   1 Opta-se, aqui, pela utilização das expressões “promoção da democracia” e “promoção internacional ou

    regional da democracia” como equivalentes e que contêm em si tanto a noção de fomentar quanto de proteger este regime político. Neste sentido, segue-se a tendência majoritária da doutrina (e.g. FOX, ROTH, 2004; FOX, NOLTE, 2004; CAROTHERS, 2006; GUÉNARD, 2008; HOBSON, 2009; PETROVA, 2011; MARKAKIS, 2012 CAMARGO, 2013) e também os documentos internacionais que lidam com o assunto tanto no âmbito global (no sistema ONU, e.g., A/52/129 de 1997 e E/CN.4/RES/1999/57, da Assembleia Geral e da Comissão de Direitos Humanos, respectivamente) quanto no regional americano (na Organização dos Estados Americanos, e.g. Compromisso de Santiago e o Protocolo de Washington, além da existência da Unidade de Promoção da Democracia). É preciso esclarecer que parte da literatura sobre o tema tem preferido outros termos para referir-se ao mesmo fenômeno, como “ajuda” (KNACK, 2004), “assistência” (BURNELL, 2007; CAROTHERS, 2009), ou “exportação” (STIVACHTIS, 2006; TEIXEIRA, 2010) da democracia. Kurki sugere a terminologia deveria ser modificada para “facilitação”, “diálogo” ou “encorajamento” da democracia como forma de sublinhar-se a necessidade de uma interação mútua entre as partes deste processo (2010, p. 381). O argumento de Kurki confunde-se com o pano de fundo que justifica a existência deste trabalho. Contudo, por acreditar-se que o termo “promoção da democracia” é o que melhor caracteriza o atual estado deste fenômeno, seguir-se-á com ele.

    2 O termo demokratia teve diferentes significados na Grécia Antiga, especialmente devido às mutações do entendimento do termo demos (LARSEN, 1973, p. 45). Thucydides, na oração fúnebre atribuída a Péricles, afirmava que a Constituição ateniense seria chamada de demokratia por ser administrada não por poucos, mas pela maioria (SEALEY, 1973, p. 280), aproximando-se, assim, do sentido de governo do povo.  

  •   21  

    considerações pragmáticas, estão todos presentes no negócio da exportação-importação da

    democracia” (2010, p. 24, tradução nossa3).

    As polêmicas que envolvem a internacionalização da promoção da democracia não frearam,

    contudo, seu desenvolvimento. Na América Latina, as primeiras manifestações neste sentido

    ocorreram de forma pouco sistematizada e pouco profunda ainda no século XIX. Apenas com

    o término da Guerra Fria, quando este se torna um dos temas mais regulares da agenda

    internacional, é possível observar a sistematização dos esforços regionais e sub-regionais para

    a operacionalização da disseminação do regime político democrático. O fim da configuração

    bipolar do sistema coincidiu com intensas mudanças domésticas nos países da região –

    redemocratização de uma parte significativa da América Latina e emergência de políticas

    econômicas liberais – que contribuíram para a criação de um importante e peculiar quadro

    normativo sobre a democracia.

    O fim da bipolaridade levou a um novo impulso do regionalismo. Diante de uma recém

    inaugurada agenda internacional, as principais instâncias regionais de concertação política –

    Organização dos Estados Americanos (OEA), Mercado Comum do Sul (Mercosul), União das

    Nações Sul-Americanas (Unasul), Comunidade Andina (CAN), Sistema de Integração

    Centro-Americano (SICA) e Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América (ALBA) –

    posicionaram-se, de formas variadas e com níveis diversos de institucionalização, sobre a

    conformação dos regimes políticos de seus membros. Neste cenário, a América Latina se

    estabelece como um relevante caso de desenvolvimento do aparato normativo internacional

    acerca da promoção da democracia. Ainda que este seja um fato conhecido, ele é

    surpreendente em algumas perspectivas. Os países latino-americanos estiveram entre os que

    mais vezes sofreram intervenções militares dos Estados Unidos da América (EUA) sob o

    argumento da necessidade de democratização. Como reação, na América Latina se

    desenvolveram algumas das mais importantes doutrinas sobre a não-intervenção no âmbito

    das relações interestatais, as quais se chocam, a princípio, com a própria concepção da

    promoção da democracia. A trajetória não-linear e conturbada dos regimes políticos contribui

    para as particularidades da conformação desta agenda. Golpes, cerceamento de direitos civis e

    políticos e concentração de poder fazem parte da história política da região. Nas últimas

    décadas foram instituídos alguns traços homogêneos nos regimes políticos (e.g. a existência

                                                                                                                   3 Idealism, which is sometimes close to naivety, and hypocrisy, which may have to pay homage to virtue,

    together with pragmatic considerations are all present in the export-import business of democracy.  

  •   22  

    de eleições periódicas), mas em termos de ideologia política – fator fundamental para o

    preenchimento do conceito de democracia – a heterogeneidade é marcante.

    Para dar cabo ao estudo proposto, duas reflexões prévias se fazem necessárias. Elas versam

    acerca do enquadramento teórico (I) e da metodologia (II) que fundamentarão as análises

    realizadas. O pano de fundo teórico será responsável por elucidar os conceitos e o paradigma

    que informam a concepção adotada sobre a sociedade internacional, os atores que nela se

    destacam, sua dinâmica política, o fenômeno jurídico que a compõe e as interações entre

    assuntos internacionais e internos aos Estados. Já no contexto metodológico, serão traçados os

    procedimentos científicos que direcionarão esta pesquisa. Nele, serão definidos os limites

    temporais e geopolíticos do estudo proposto, além de explicitados os níveis de análise e as

    dimensões compreendidas como essenciais para o exame do fenômeno da promoção da

    democracia na América Latina.

    I. ENQUADRAMENTO TEÓRICO

    O estudo acerca da promoção da democracia na América Latina será realizado partindo-se da

    concepção de uma sociedade internacional construída socialmente e que influencia assim

    como é influenciada pelos seus membros. No âmbito da sociedade internacional, duas

    tendências podem ser verificadas: a pluralidade ou a convergência entre os atores

    internacionais (A). Essas tendências são apreendidas pelo Direito Internacional, que visa a

    conformar o comportamento dos atores. Ao estabelecer normas acerca do regime político dos

    Estados, firma-se um arranjo que tende a instigar os Estados a homogeneizar suas estruturas

    políticas domésticas. Tais normas fazem parte de um quadro bastante particular na esfera do

    Direito Internacional, que reflete algumas de suas mais recentes transformações (B). Segundo

    Andrew Hurrell, normas tendem a ser compreendidas em dois sentidos. No primeiro, entende-

    se que elas são regularidades nos comportamentos dos atores, refletindo, portanto, padrões de

    comportamento que resultam em expectativas sobre o que será feito em situações particulares.

    Na segunda acepção, normas refletem padrões de comportamento prescritos que levam a

    expectativas sobre o que deve ser feito em determinadas situações. Neste caso, tende-se a

    criticar em o ator que desobedece a norma (HURREL, 2002, p. 194). Neste trabalho, o termo

    “norma” será utilizado neste segundo sentido. O termo “quadro normativo” se refere ao

    conjunto de normas sobre um determinado tema (e.g. democracia). Pode-se, então, afirmar

  •   23  

    que o significado aqui adotado de norma é amplo e se refere a enunciados prescritivos que

    incluem regras, padrões e princípios tanto procedimentais quanto substantivos (CHAYES;

    CHAYES, 1994, p. 68). As normas são prescrições para a ação dos atores internacionais em

    situações em que esses devem realizar uma escolha, havendo, portanto, um senso de

    obrigação que decorre do enunciado da norma. Seguindo os ensinamentos de Antonia Chayes

    e Abram Chayes, assume-se que não importa qual a motivação da obrigação, ou seja, se ela

    resulta de um cálculo utilitário, de um condicionamento social ou da crença (1994, p. 68).

    Além destas possibilidades, pelas premissas estabelecidas neste trabalho, a coerção também

    seria uma maneira de levar um Estado a aderir a uma norma internacional.

    A. Promoção da democracia: a sociedade internacional entre o pluralismo e o solidarismo

    A promoção da democracia é um fenômeno que ocorre no âmbito da sociedade internacional,

    arena que tem, como unidades principais, Estados que interagem entre si4. Ao considerar o

    viés social das interações – ou seja, partindo-se de uma ontologia estatal social –, deduz-se

    que os Estados dão forma à sociedade internacional ao mesmo tempo em que são

    influenciados por ela (BUZAN, 2004, p. 08). A criação e a manutenção de normas, regras e

    instituições compartilhadas são a base da sociedade internacional e formam arranjos

    acordados que versam sobre o comportamento que se espera dos atores (BUZAN, 2004, p. 07,

    p. 110-111). Assim, a inserção de um determinado tema como pauta internacional – como é o

    caso dos regimes políticos –, significa sua integração ao tecido normativo internacional por

    meio da concepção de novos parâmetros para avaliação das condutas dos Estados. Na

    sociedade internacional, a forma como Estados percebem-se uns aos outros é fundamental

    para determinar os termos de suas relações. O compartilhamento de uma identidade comum

    (e.g. o regime político) ou de um conjunto de normas e de regras (e.g. relativas ao Direito

    Internacional) torna as compreensões intersubjetivas definidoras também das fronteiras dos

    sistemas sociais (BUZAN, 2004, p. 08). Dessa forma, os contornos das interações entre os

    atores se delineiam nas convergências e nas divergências destes em relação ao que o é

                                                                                                                   4 Alguns esforços têm sido feitos para compreender o impacto das particularidades regionais na configuração

    de possíveis sociedades internacionais regionais. Ainda há, contudo, pouca literatura desenvolvida neste sentido. Para análises sobre a região na sociedade internacional, ver: Hurrel, 2007a; Buzan, 2014a, p. 57-59. Para um estudo sobre a possível existência de uma sociedade internacional latino-americana, ver: Merke, 2011.

  •   24  

    prescrito no quadro normativo internacional. Quando o tema dos regimes políticos adentra a

    cena internacional, ele se torna uma variável capaz de influenciar as relações entre os atores.

    A promoção da democracia ganhou importância devido ao ímpeto dos Estados Unidos5 e,

    posteriormente, também da Europa, para inseri-la e mantê-la na agenda. A ideia segundo a

    qual certa “unidade cultural” traria mais estabilidade e coesão à sociedade internacional

    (BUZAN, 2010, p. 01) colaborou para a criação de um quadro normativo sobre a temática.

    Contudo, ainda que haja um forte viés estatal nesse assunto, é inegável que sua legitimidade

    está relacionada à sua inserção na esfera dos arranjos regionais de cooperação, especialmente

    nas organizações internacionais (e.g. ONU, no âmbito global, OEA no regional Unasul no

    sub-regional) e nos processos de integração (e.g. Mercosul), e também em arranjos menos

    institucionalizados6 (e.g. ALBA). Desta forma, a promoção da democracia é uma faceta da

    governança internacional que se reflete na configuração das instituições primárias e na agenda

    das instituições secundárias.

    Instituições primárias são aqui compreendidas como práticas relativamente duráveis e

    fundamentais que podem ser modificadas ao longo do tempo. São constitutivas dos Estados e

    da sociedade internacional, já que definem suas características e propósitos (BUZAN, 2004,

    p. 166-167). Caracterizam-se, assim, como a fundação normativa da sociedade internacional

    (REUS-SMIT, 1997, p. 556). A elaboração de um quadro de promoção internacional da

    democracia ocorre especialmente a partir de sua inserção na esfera do Direito Internacional7,

    por definição uma das mais importantes instituições primárias desde a criação dos Estados

                                                                                                                   5 Sobre as intervenções norte-americanas fundamentadas na promoção da democracia ver: Peceny, 1999.  6 As normas sobre democracia na América Latina são, portanto, produzidas a partir de foros que têm variados

    graus de institucionalização. A partir das ideias de John Ruggie, compreende-se que existem três diferentes níveis de institucionalização das respostas coletivas dos Estados: (1) puramente cognitivo; (2) estabelecimento de expectativas mútuas, regras acordadas, regulamentações e planos; (3) organizações internacionais formais (RUGGIE, 1998, p. 55). Neste trabalho, os arranjos estudados encontram-se no segundo e no terceiro níveis de institucionalização. Para abrangê-los sem perder de vista este fato, opta-se neste trabalho por referir-se a eles com termos abrangentes como “arranjos multilaterais regionais”, ou ainda “foros multilaterais/regionais”.

    7 Nesse sentido, por exemplo, os tratados e as declarações que versam sobre democracia na OEA (Carta da Organização dos Estados Americanos e Carta Democrática Interamericana), no Mercosul (Protocolos de Ushuaia sobre Compromisso Democrático), na Unasul (Protocolo Adicional ao Tratado Constitutivo da Unasul sobre o Compromisso com a Democracia) e nas Nações Unidas (Declaração de Viena sobre Direitos Humanos, Resoluções do CS sobre a necessidade de recondução ao poder do Presidente democraticamente eleito do Haiti, Resoluções da AG sobre o papel das Nações Unidas na promoção da democracia), os quais serviram como fundamento para diversas ações destas organizações em relação ao regime político de seus membros.

  •   25  

    Modernos 8 . Já as instituições secundárias são definidas como organizações criadas com

    propósitos específicos (BUZAN, 2004, p. 164). No âmbito de instituições secundárias, como

    OEA, Mercosul e Unasul, foram concebidos arranjos normativos para a promoção da

    democracia. Este fenômeno, de emergência de um quadro normativo sobre democracia nas

    instituições secundárias, coincide com aquela que Emmanuelle Tourme-Jouannet classifica

    como a fase mais expansiva da existência do Direito Internacional (2007, p. 849).

    As características das normas, regras e instituições comungadas na sociedade internacional e

    representadas pelo Direito Internacional variam no tempo e no espaço. A natureza e as

    potencialidades deste compartilhamento podem ser compreendidas considerando-se a

    existência de tipos analíticos ideais que formam um espectro. Neste espectro há, como se

    espera, gradações e dois extremos opostos se relevam. De um lado, há uma inclinação

    pluralista na qual se observa um exíguo grau de convergência entre os atores. De outro lado,

    há uma tendência solidarista 9 na qual a convergência se adensa na medida em que se

    aproxima do extremo. Evidencia-se uma sociedade internacional pluralista no extremo em que

    o compartilhamento se restringe ao necessário para a coexistência pacífica e a ordem no

    sistema internacional (BUZAN, 2004, p. 46). Nela, as interações entre os Estados têm como

    objetivo a sobrevivência e, portanto, a cooperação tem como fonte o auto-interesse (BUZAN,

    2004, p.145). Concepções pluralistas relacionam-se ao lado realista do racionalismo. Além

    disso, estão associadas ao modelo westfaliano de Estados, pautado no reconhecimento mútuo

    da soberania das unidades (BUZAN, 2004, p. 141). A forte adesão ao princípio da soberania

    estatal, concebido em termos de autoridade do Estado, resulta em uma maior tendência à

    tolerância em relação à diferença e, consequentemente, ao respeito à não-intervenção. Isso

    ocorre porque, como não há uma convergência densa entre os Estados em termos de valores, a

    ingerência por motivos associados à forma como cada um se desenvolve dentro de suas

    fronteiras é pouco provável. A instituição estatal e a soberania fornecem uma proteção para a

                                                                                                                   8 Além do Direito Internacional, outras instituições primárias serão analisadas em sua relação com a promoção

    da democracia: a soberania e a não-intervenção. É interessante notar a recente discussão sobre a possibilidade de a democracia configurar-se, da mesma forma, como uma instituição primária. De acordo com Buzan, a democracia é uma instituição emergente e altamente contestada por não ter alcançado uma legitimidade generalizada como norma segundo a qual se determinam os regimes políticos dos Estados (BUZAN, 2014b, p.588).

    9 O termo solidarismo tem diferentes utilizações, além da aqui proposta. Pode referir-se à possibilidade de enforcement das normas internacionais e de declaração de guerra em nome da sociedade internacional; a uma consideração maior aos indivíduos e menor aos Estados quando da construção do quadro normativo internacional; ou, ainda, às ideias e doutrinas de Direito Internacional desenvolvidas no fim do século XIX e início do século XX na França, que sublinhavam a importância da interdependência social (HURREL, 2007b, p. 58).  

  •   26  

    diversidade. Tem-se como pilar a concepção de que cada Estado constitui uma comunidade

    política amparada no valor moral que informa a autodeterminação (HURREL, 2007b, p. 28).

    Concepções pluralistas sobre a sociedade internacional apoiam-se fortemente na ideia de que

    a diversidade é uma característica típica da humanidade e que, portanto, deve ser

    compreendida como um reflexo da multiplicidade de valores que fundamenta os

    entendimentos sociais de cada comunidade política (HURREL, 2007b, p. 47). Para pluralistas,

    tais como John Williams, a diversidade é algo desejável na esfera internacional, não se

    configurando como “(...) um produto do sistema de Estados, mas uma característica

    fundamental da condição humana” (2005, p. 29, tradução nossa10). Desta forma, visões que

    preconizam a possibilidade de que a modernização traga consigo uma maior e/ou uma natural

    convergência entre os Estados – tais quais a marxista e a liberal – são consideradas como

    mera ilusão pelos pluralistas (HURREL, 2007b, p. 47). Por esta perspectiva, a convergência

    de estruturas internas e de valores entre os Estados não é um objetivo, tampouco algo

    desejável ou a ser conscientemente buscado.

    Seguindo essas máximas, o Direito Internacional no âmbito pluralista é construído em torno

    do Estado e do conceito de soberania (HURREL, 2007b, p. 49). No pluralismo reside aquilo

    que Tourme-Jouannet classifica como o principal papel do Direito Internacional, qual seja, de

    regular a conduta dos Estados tendo como objetivo a resolução de conflitos e a promoção da

    coexistência entre entidades soberanas (2007, p. 829). As dificuldades de conciliação entre a

    soberania e a existência de um Direito constituído no âmbito da sociedade internacional são

    equacionadas a partir da ideia de consentimento (HURREL, 2007b, p. 49). Neste sentido, é no

    consentimento dos Estados que está a legitimidade do Direito Internacional. O viés pluralista

    assume, portanto, o Direito Internacional em termos positivistas (BUZAN, 2004, p. 46;

    HURREL, 2007b, p. 49) e voluntaristas, afastando a possibilidade de existência de uma

    obrigação para o Estado que não tenha sido criada por ele mesmo.

    Partindo do extremo pluralista, na medida em que o conjunto de regras compartilhadas pelos

    atores internacionais ultrapassa a mera coexistência buscando outros objetivos relacionados

    aos âmbitos econômico, social, comunicação e meio ambiente, esta sociedade aproxima-se de

    um viés solidarista (BULL, [1977] 2000, p. 67). Caminhar do pluralismo ao solidarismo

                                                                                                                   10 (...) a product of the states system, but a fundamental feature of the human condition.  

  •   27  

    significa aumentar o grau de convergência entre os Estados para além do entendimento basilar

    segundo o qual todos seriam um mesmo tipo de entidade soberana (BUZAN, 2004, p. 147).

    Requer-se, assim, a construção de um senso de pertencimento entre as unidades que

    ultrapasse o mero fato de serem Estados soberanos. O solidarismo se edifica a partir de dois

    princípios. Primeiro, os Estados tendem a buscar conscientemente uma semelhança maior

    entre suas estruturas. Nesse sentido, o solidarismo pode resultar em uma substancial

    homogeneidade das estruturas políticas domésticas (BUZAN, 2004, p. 146). A consolidação

    do solidarismo afeta, portanto, de forma profunda a organização e a conformação interna dos

    Estados. Além disso, os Estados devem reconhecer a existência de valores compartilhados

    que levem à coordenação de suas políticas e de suas ações coletivas com a criação de normas,

    regras e organizações e à alteração de suas instituições, de acordo com aquilo que é

    comungado (BUZAN, 2004, p. 147).

    No âmbito do Direito Internacional, o movimento em direção ao viés solidarista pode ser

    observado especialmente a partir de 1945, com o fim da II Guerra Mundial. Desde então,

    além dos papéis prescritivo e organizacional, outros também passam a ser atribuídos às

    normas internacionais. Tem início, então, o papel substantivamente interventor do Direito

    Internacional que influencia assuntos domésticos, reconstrói Estados, lida com questões como

    saúde, cultura e meio ambiente, além de promover a democracia (TOURME-JOUANNET,

    2007, p. 829). O resultado destes eventos é, ainda segundo Tourme-Jouannet, um dos mais

    extraordinários acontecimentos para o Direito Internacional contemporâneo, qual seja, “a

    regulação não somente de relações interestatais, mas também de situações domésticas” (2007,

    p. 829, tradução nossa11). O Direito Internacional reflete, a partir daquele momento, uma

    maior convergência de valores entre os Estados, ao mesmo tempo em que requer que as

    estruturas domésticas sejam dirigidas a um ponto comum.

    A trajetória percorrida por Estados e por organizações internacionais ao se posicionarem em

    relação ao regime político estatal preferível na esfera da sociedade internacional aponta,

    portanto, para um fortalecimento do solidarismo. A compreensão das estruturas políticas

    como um assunto exclusivamente doméstico, como outrora, possuía um viés eminentemente

    pluralista. Então, diferentes concepções e práticas quanto ao regime político dos Estados eram

    igualmente aceitas. Não havia, na sociedade internacional, uma opção clara por um ou outro

                                                                                                                   11 (...) the regulation not only of interstate relations, but also of domestic situations.

  •   28  

    regime político. O desenvolvimento da democracia como valor nas instituições internacionais

    configura-se como a busca pelo aprofundamento da convergência das estruturas estatais.

    Diminui-se, assim, a aceitação da pluralidade de possibilidades no que concerne aos regimes

    políticos. Caminha-se para uma perspectiva menos condescendente com regimes que destoam

    do regime democrático. Neste contexto, os entendimentos acerca da soberania e da não-

    intervenção são relativizados sob a justificativa da necessidade de proteção da democracia.

    Este fenômeno não deve, no entanto, ser encarado como um processo de convergência que se

    desenvolve uniformemente no âmbito global. Ele passa por contestações que não podem e não

    devem ser ignoradas. Se nos Estados Unidos e na Europa Ocidental a confluência em torno da

    caracterização dos regimes políticos é densa, o mesmo não ocorre de maneira homogênea nas

    demais regiões. Na América Latina, este não é um movimento que se estabelece de forma

    coesa e livre de contradições. Para compreendê-lo, é importante ter em mente que a região é

    profundamente influenciada por três dimensões sistêmicas: a proximidade geográfica com os

    Estados Unidos; sua posição periférica no contexto econômico-capitalista mundial; e a

    instabilidade política doméstica que marca historicamente os países da região (MERKE,

    2011, p. 03). Estes três fatores condicionaram a trajetória regional da promoção da

    democracia.

    Desde o fim do século XIX, o modelo de interações dos Estados Unidos com a América

    Latina passa, de forma recorrente, por intervenções – muitas vezes apoiadas na justificativa de

    implementar uma maior liberalização e/ou democratização nos países da região. Isto se

    configurou como um padrão de relações que Federico Merke chama de “solidarismo

    ofensivo” por parte dos Estados Unidos e um “pluralismo defensivo” por parte dos demais

    Estados da região (2011, p. 21). De um lado, os Estados Unidos, por vezes ferindo os

    princípios da soberania e da não-intervenção12, buscam influenciar os regimes políticos dos

    demais países americanos. De outro lado, tentando manter a independência de seus processos

    decisórios, os países da América Latina reafirmam sua distância em relação à política norte-

    americana. Não se trata, este, contudo, de um movimento linear e uniformemente

    estabelecido. Em diferentes momentos históricos, a ascensão de grupos politicamente

    próximos dos Estados Unidos em países latino-americanos resultou em uma alteração desse

                                                                                                                   12 Nesse sentido foi considerada ilegítima pela Corte Internacional de Justiça a intervenção dos Estados Unidos

    na Nicarágua (1984). Além deste caso, as ações dos EUA em Granada (1983) e no Panamá (1989-1990) também foram questionadas.

  •   29  

    padrão (MERKE, 2011, p. 21). Da mesma forma, a democratização e a liberalização que

    marcaram tantas vezes o discurso norte-americano para a América Latina foram neutralizados

    com o apoio a regimes ditatoriais, quando assim pareceu mais conveniente aos interesses

    políticos de Washington. Com estas incongruências, ficam expostas aquilo que Buzan

    denomina de hipocrisias do universalismo normativo liberal (2014b, p. 593).

    A posição periférica da América Latina na estrutura do capitalismo mundial somada à

    instabilidade política contribuiu para que os regimes políticos na região tenham contornos

    muito particulares. É possível encontrar uma ampla variação de estruturas de participação

    popular, que diferem no grau e no tipo de participação e que possuem inspirações ideológicas

    diversas. De democracias liberais bem estabelecidas – como é o caso do Chile e da Costa Rica

    – a governos que afirmam se apoiar na ideia da democracia participativa – como os da

    Venezuela e Bolívia – a América Latina é um microcosmo que bem representa multiplicidade

    de entendimentos sobre o que é um regime político democrático. Neste contexto, manifesta-se

    uma das principais tensões da promoção da democracia na região. De um lado, diferentes

    visões sobre o regime democrático. De outro, o fato de, ao tornar-se mais solidarista,

    partilhando normas e valores sobre a estrutura de seus regimes políticos, a América Latina

    estabelecer uma maior possibilidade de enforcement coletivo em relação a estas disposições.

    Tratar no âmbito internacional uma temática a princípio doméstica implica na possibilidade

    de se reivindicar para além das fronteiras nacionais o cumprimento daquilo que é previsto

    normativamente. Afinal, quanto mais profunda for a convergência da sociedade internacional

    em relação a uma temática, mais abrangente será a percepção do enforcement como algo

    aceitável e habitual (BUZAN, 2004, p. 149).

    O percurso para a convergência entre os Estados pode se dar por diferentes motivos e de

    formas diversas. A internalização de um valor pode ocorrer por meio de coerção, cálculo ou

    crença (BUZAN, 2004, p. 151). Cada uma destas motivações resulta em intensidades

    diferentes para o fortalecimento do solidarismo – ou do pluralismo – e, portanto, no caso do

    solidarismo, para o grau de aderência dos atores às normas. O grau de internalização de um

    valor internacional relaciona-se diretamente ao motivo pelo qual um determinado Estado

    adere a ele. A internalização por crença resulta, obviamente, em um valor mais estável.

    Aquela que advém de um cálculo instrumental será menos estável. A coerção é, certamente, o

  •   30  

    meio menos desejável e com resultados mais volúveis para a internalização de um valor13.

    Dessa forma, as variações nos laços que mantêm o solidarismo importam, apesar de não

    definirem sua existência. Ainda que seja inteiramente baseada na coerção, a convergência no

    sentido de práticas ou de estruturas compartilhadas configura uma expressão de solidarismo

    (BUZAN, 2004, p. 154). Geralmente, segundo Buzan, a expansão de padrões considerados

    mais adequados à sociedade internacional ocorre por meio de uma mistura de coerção, cálculo

    e crença, com uma preponderância da coerção (2004, p. 150). No mesmo sentido, Andrew

    Hurrel afirma que o paradoxo do universalismo está no fato de que o sucesso da promoção de

    valores “universais” ou “globais” depende da vontade de Estados que detém poder e o sucesso

    desta empreitada implica na reafirmação da desigualdade entre os Estados (2007b, p. 160). O

    recurso à coerção revela um traço potencialmente abusivo na busca pela consolidação do

    solidarismo. Trata-se da possibilidade de, em nome de valores pretensamente universais,

    travestidos de uma “função civilizadora”, ser imposta uma visão de mundo particular. O

    universalismo coercitivo traz em si uma dicotomia moral insuperável por se basear na

    imposição de valores e não na livre compreensão e convencimento sobre a importância destes.

    Análises que têm como objeto eventos internacionais anteriores à II Guerra Mundial

    apresentam com certa frequência o conceito de “padrão de civilização”, que era utilizado pelo

    Ocidente em relação aos que não comungavam de seus valores (BUZAN, 2014b, p. 577).

    Essa ideia remete à criação dos Estados Modernos na Europa14 e à perspectiva segundo a qual

    os Estados que reproduzissem o arquétipo europeu – somente eles – seriam considerados

    civilizados (STIVACHTIS, 2006). Estabelecia-se, desta forma, uma cisão entre os

    “civilizados” e os “bárbaros” ou “não-civilizados” fundada especialmente no

    desenvolvimento econômico e político – mensurados a partir da uma construção europeia

    sobre o desenvolvimento – em uma pretensa autoridade intelectual e cultural e, da mesma

    forma, em concepções raciais de cunho determinista15. Esta divisão transbordava para além

    das relações políticas. Na esfera do Direito Internacional, Estados “não-civilizados” eram

    considerados inferiores e, portanto, tinham uma personalidade jurídica incompleta e não

    gozavam do mesmo nível de proteção dispensado aos demais (GONG, 1984, p. 05-06). O

                                                                                                                   13 Apesar disso, os solidaristas por vezes advogam pela intervenção (coerção) para a garantia da observância

    dos Direitos Humanos, relativizando a importância daquilo que motiva a aderência a um valor (BUZAN, 2004, p. 152, 153).

    14 Para mais sobre a relação entre a ideia de “civilização” e a formação dos Estados Modernos europeus, ver: Elias, [1939] 2000.

    15 Sobre a questão da raça e seu tratamento em termos “científicos” especialmente no caso do Brasil, ver: Schwarcz, 1993.

  •   31  

    “padrão de civilização” é uma construção unilateral europeia que visa, por um lado, a tornar

    clara a diferença existente entre os Estados e, por outro, a sublinhar a necessidade de

    adequação do comportamento dos “não-civilizados” às normas e às expectativas dos

    “civilizados” o que levaria a uma possível expansão da sociedade internacional16. Apesar de

    ter sido abandonado e substituído por instrumentos analíticos considerados politicamente

    corretos (e.g. condicionalidade, boa governança e desenvolvimento), o conceito de “padrão de

    civilização” segue, segundo Buzan, significativo para a compreensão da sociedade

    internacional contemporânea, já que as práticas a ele relacionadas permanecem (2014b, p.

    577). A democracia, assim como os Direitos Humanos, o capitalismo, o meio ambiente e o

    desenvolvimento, são as formas contemporâneas daquilo que Buzan denomina “novo padrão

    de civilização” (2004, p. 586).

    O regime democrático passou a ser considerado como um “critério de civilidade” após a I

    Guerra Mundial, com a campanha wilsoniana pró-democracia (STIVACHTIS, 2006). Entre

    aqueles que atuam na promoção da democracia há uma clara tendência em equiparar governos

    democráticos à “civilização” e os não-democráticos à “barbárie” (BUZAN, 2014b, p. 589). Os

    que dela comungam fariam, assim, parte de um grupo moralmente superior aos demais.

    Estados não-democráticos seriam, nas palavras de Clark, “fora da lei ontológicos”, cuja

    anomalia está na forma como se constituem politicamente (CLARK, 2009, p. 566). Este

    fenômeno foi favorecido pela ascensão dos Estados Unidos como potência hegemônica após a

    II Guerra Mundial (STIVACHTIS, 2006). Da mesma forma, o colapso da União Soviética e

    consequente fim da Guerra Fria apontaram tanto para uma tendência normativista da

    sociedade internacional quanto para a consolidação dos valores ocidentais (CLARK, 2009, p.

    567). Nesse contexto ocorreu a inserção da promoção da democracia na agenda internacional

    global e o reforço na agenda regional latino-americana. Não por coincidência, estes

                                                                                                                   16 Andrew Linklater bem examina a possibilidade de expansão do “padrão de civilização” para outras

    sociedades que não a europeia no século XIX: “The ‘standard of civilization’ (...) expressed the idea that the European colonial powers would decide when non-European societies had reached a level of social and political development that made it possible for them to join the European society of states. The possibility of admission to international society on equal terms with the original members was recognised although most of those who designed the standard of civilization believed that would take several decades, and in some cases, many centuries. The main assumption was that entry into the society of states would require more than compliance with Western principles of international relations that were based on the idea of sovereignty and non-intervention, and on respect for Western diplomatic practice and international law; it would depend on parallel changes in the internal organisation of the societies involved. At a deeper level, the expansion of international society would only occur as a result of the Westernisation or ‘modernisation’ of non-European communities” (LINKLATER, 2010, p. 4-5).

  •   32  

    acontecimentos se delineiam naquele que ficou conhecido como o “momento unipolar”17,

    quando os Estados Unidos tiveram, de maneira extraordinária, a capacidade de influenciar a

    agenda internacional18.

    A América Latina definitivamente não se caracteriza como um espaço em que a existência da

    democracia encontra seus limites mais extremos. Não se trata de uma região dividida nem em

    democracias bem assentadas, como a Europa, nem em ditaduras tradicionais, tais como as que

    podem ser encontradas em alguns países do mundo árabe e da África. A qualificação dos

    regimes políticos latino-americanos transcende a oposição simplista adotada por grande parte

    da literatura que analisa a promoção da democracia, que tende a dividi-los em democráticos e

    não-democráticos. A partir deste cenário, tanto o conteúdo quanto os instrumentos usados na

    promoção da democracia configuram-se de uma maneira muito particular. Desde a década de

    1990, é possível observar na região a emergência da promoção da democracia em outros

    organismos multilaterais além da OEA – que começou a tratar do tema em seus primeiros

    anos. Mercosul, Unasul, CAN, SICA e ALBA também deram início à criação de arranjos

    normativos sobre o regime político de seus membros. Ao dispor sobre este assunto em

    diferentes organizações sub-regionais, a América Latina multiplica as fontes produtoras de

    normas, possibilitando sua fragmentação. Duas consequências podem surgir deste fato. Por

    um lado, a multiplicidade normativa em torno da democracia pode refletir a diversidade

    política da região. Por outro lado, ela pode expor as vulnerabilidades e as fragilidades deste

    fenômeno, já que possibilita a propagação de duplos padrões, aplicações seletivas e de

    apreciações baseadas no alinhamento político e ideológico dos atores. Este contexto, tão

    particular, demonstra que a América Latina se configura como um objeto único para análise

    da promoção da democracia.

    B. Especificidades do Direito Internacional na esfera da promoção da democracia

    A promoção de democracia ganha robustez a partir de sua inserção nos arranjos normativos

    internacionais, especialmente pela previsão de mecanismos de ação multilateral concertada

    nos casos de crise que possam comprometer o regime democrático. Como instituição

                                                                                                                   17 O termo “momento unipolar” foi cunhado pela primeira vez por Krauthammer (1990) para designar a grande

    lacuna de poder que se forma entre os Estados Unidos e o resto do mundo logo após o fim da Guerra Fria. Foi a primeira vez desde a modernidade em que se assistiu à unipolaridade.

    18 Apesar de os EUA seguirem como o Estado com maior poder no sistema internacional em termos materiais, a ascensão de novas potências – como a União Europeia e a China – significou um novo equilíbrio de forças na definição da agenda internacional.  

  •   33  

    primária, o Direito Internacional faz parte da fundação normativa da sociedade internacional.

    Influencia, portanto, a própria sociedade e os Estados na configuração de seus atributos e na

    definição de seus objetivos. Ainda que na ausência de um poder central a utilidade do Direito

    Internacional como instrumento de mudança social seja limitada se comparada ao direito

    doméstico (WILSON, 2009, p. 169), compreender sua configuração e suas mudanças

    significa apreender relevantes características da sociedade internacional e dos valores por ela

    compartilhados. Ele reflete, em larga medida, a própria sociedade internacional, suas

    transformações, a criação de novas agendas, assim como suas incoerências. O conteúdo do

    Direito Internacional repercute, afinal, sua estreita associação com a política internacional e,

    consequentemente, com as relações de poder que, da mesma maneira, informam sua

    existência (DUPUY; KERBRAT, 2014, p. 10-11).

    Neste contexto, é possível observar diferentes tendências, sendo duas antagônicas quanto à

    interpretação da construção contemporânea do Direito Internacional. Uma que compreende o

    Direito Internacional como resultante das relações de poder (e.g. o Realismo) e outra que o

    concebe como um instrumento racional para a realização da justiça (e.g. o Liberalismo). Estes

    dois extremos diminuem, contudo, as possibilidades de utilização do Direito Internacional

    como instrumento capaz de refletir efetivamente a sociedade internacional como fenômeno

    complexo e repleto de nuances. O Direito Internacional é, afinal, uma instituição multilateral

    dicotômica no sentido de que representa, ao mesmo tempo, um possível instrumento de poder

    e um obstáculo para o seu exercício (KRISCH, 2005, p. 371).

    Por um lado, enquanto a cena política estrutura-se hierarquicamente (e.g. os assentos

    permanentes do Conselho de Segurança da ONU), a esfera jurídica internacional tem seu

    fundamento na igualdade soberana entre os Estados (KRISCH, 2005, p. 370). É preciso ter em

    mente que o Direito Internacional se constrói, em grande parte, com o consentimento –

    expresso ou, no caso dos costumes, por vezes, tácito – dos Estados. Por isso, equivaler o

    Direito Internacional a meras relações de poder denota uma hiper-simplificação da realidade

    que, portanto, deve ser afastada. Por outro lado, é inegável que a assimetria de poder da

    sociedade internacional se reflete na ordem jurídica. Isto é perceptível tanto na aprovação de

    normas (e.g. as resoluções do Conselho de Segurança da ONU) quanto no reverberamento de

    temas importantes para os países centrais na agenda internacional (e.g. Direitos Humanos,

    democracia, liberalização do comércio). Nas palavras de Tourme-Jouannet, o Direito

    Internacional contemporâneo é profundamente influenciad