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Ana Paula de Barcellos Professora Adjunta de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERI); Doutora em Direito Público pela UERI PONDERAÇÃO, RACIONALIDADE E ATIVIDADE JURISDICIONAL BPDEA EjLk TW RENOVAR Rio de Janeiro • São Paulo • Recife 2005 fleall...Bra•kl.rara ul 1/48,1043% L6tersbe!ANo.J• RI ,I.LIIII És At I kni NÃO Fac., etdP1+

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Ana Paula de Barcellos Professora Adjunta de Direito Constitucional da

Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERI); Doutora em Direito Público pela UERI

PONDERAÇÃO, RACIONALIDADE E

ATIVIDADE JURISDICIONAL

BPDEA EjLk TW

RENOVAR Rio de Janeiro • São Paulo • Recife

2005

fleall...Bra•kl.rara ul1/48,1043%

L6tersbe!ANo.J• RI ,I.LIIII És At I kni NÃO Fac., etdP1+

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www.editorarenovar.com.br [email protected] SAC: 0800-221863

Cl 2005 by Livraria Editora Renovar Ltda.

Conselho Editorial:

Arnaldo Lopes Süssekind — Presidente Carlos Alberto Menezes Direito Caio Tácito Luiz Emygdio F. da Rosa Jr. Celso de Albuquerque Mello (in rnemoriam) Ricardo Pereira Lira Ricardo Lobo Torres Vicente de Paulo Barretto

Revisão Tipográfica: M° de Fátima Cavalcanti

Capa: Sheila Neves

Editoração Eletrônica: TopTextos Edições Gráficas Ltda.

2 tiragem - janeiro de 2007

JO. _ 0102 CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte

Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

Barcellos, Ana Paula de 8426p Ponderação, racionalidade e atividade jurisdicional / Ana Paula de

Barcellos. — Rio de Janeiro: Renovar, 2005. 356p. ; 21 cm

Inclui bibliografia ISBN 85-7147-511-3

1. Direito constitucional — Brasil. I. Título. CDD 343.8104

Proibida a reprodução (Lei 9.610/98) Impresso no Brasil Printed in Brazil

AGRADECIMENTOS

Poder agradecer, já se disse, é uma benção divina. Mas é preciso retificar. Na verdade, não se trata propriamente de poder agradecer. Sempre há o que agradecer. Na maior parte das vezes a questão é ter olhos de ver o que se tem recebido

e humildade para reconhecer que, sozinhos, somos pouco mais que nada. No caso específico deste trabalho, o mais cego e soberbo dos homens não teria como deixar de ser grato. Há tanto a agradecer e a tantas pessoas que este registro,

mais do que um costume editorial, tornou-se pessoalmente tão importante quanto o próprio trabalho que o segue. Não fui capaz de inventar novas línguas ou imaginar formas origi-nais de demonstrar minha gratidão e tocar as pessoas. Mais uma vez, só me restam as palavras de sempre. Seja como for, estou certa de que Deus ouvirá minhas orações em favor de cada um dos envolvidos.

Este livro corresponde, com pequenas adaptações, à tese denominada "A técnica da ponderação: metodologia e parâ-metros jurídicos", apresentada em conclusão do Doutorado em Direito Público da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Participaram da banca exami-nadora, para honra do trabalho e meu orgulho pessoal, além

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do Professor Luís Roberto Barroso, orientador do estudo, os professores José Afonso da Silva, Clèmerson Merlin Clève, Ricardo Lobo Torres e Paulo Braga Galvão. Sou grata de forma muito particular a cada um deles por suas críticas, observações e sugestões sobre a tese. A rigor, a expectativa de ter tais professores na banca examinadora me impulsionou a realizar o melhor trabalho que fui capaz de produzir, e apenas por isso já sou especialmente grata.

O orientador deste trabalho foi o Professor Luis Roberto Barroso. Há pessoas que entram na vida de outras e mudam suas existências de forma maravilhosa e definitiva. Na minha vida, uma dessas pessoas é, sem dúvida, o Professor Luís Roberto Barroso. Há onze anos compartilhamos amizade, companheirismo fraternal, projetos acadêmicos e profissio-nais. Eu gostaria de veicular minha gratidão de uma forma precisa, que correspondesse ao que penso e sinto, mas essa forma não existe na Terra. Só me resta dizer obrigada; mas me consola saber que serei perfeitamente compreendida.

Este trabalho não teria sido possível sem a ajuda incan-sável e preciosa em cada aspecto de Danielle Lins. Seu talento, sua inteligência e seu carinho foram imprescindíveis. Renata Ramos, lá de Cambridge, fez uma revisão completa e profunda do texto, além de ter sido uma interlocutora valiosa. Também reviram o texto, e me livraram de muitos proble-mas, Eduardo Mendonça, Luís Eduardo Barbosa Moreira e o insuperável Nelson Diz. Ajudaram muitíssimo na revisão formal e padronização, em momentos diversos, os Felipes Fonte e Barcellos e Juba Rodrigues. Carmen Tiburcio foi e é um ser humano sob a forma de injeção de ânimo para quem está ao seu redor.

Todas as pessoas que acabo de listar estão ou estiveram vinculadas a minha segunda família: o escritório Luis Roberto Barroso & Associados. Na verdade, se alguém não ajudou diretamente neste trabalho foi porque não pôde. Esse é o caso dos brilhantes advogados Karin Basílio Khalili, Viviane Perez e Rafael Barroso Fontelles, que estavam muito ocupa-

dos trabalhando, justamente para que eu pudesse me dedicar ao doutorado. Seu carinho em todo o tempo, porém, é o que vale a pena e sou muito grata a eles.

Flávio Galdino, companheiro de jornadas acadêmicas, participou de inúmeras discussões sobre diferentes pontos da tese, reviu o texto e esteve sempre presente. Sou grata ainda a meus alunos da Faculdade de Direito da UERJ. Muitas vezes eles foram cobaias involuntárias das idéias desenvolvi-das neste trabalho e o produto obtido nos grupos de pesquisa foi útil em muitos pontos da tese que agora se transforma em livro. Leandro Barifouse, além de cobaia, prestou impor-tante ajuda na revisão dos originais.

Passarei o resto de meus dias ocupada em agradecer a meu marido, Daniel; não será suficiente, M28 será um prazer. Ele, como ontem, e a cada dia mais, é a alegria da minha vida. Mais uma vez, sem ele, eu sequer seria eu mesma e nada disso teria importância ou valor algum. Obrigada, meu que-rido. Jonatas e Felipe são meus filhos de eleição e agradeço pelo carinho constante. Meus pais, José e Alice, e minha tia, Marcelina, são incansáveis sustentáculos: obrigada mais uma vez.

Reservo minhas melhores palavras para expressar minha gratidão a Deus, acima de tudo e de todos. Sinto-me como Abraão: em tudo tenho sido muito abençoada. A verdade é que toda boa dádiva vem de Deus e é preciso ser grata. Ao Todo-Poderoso, portanto, pai de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo, por seu amor e por sua bondade permanentes, agradeço com tudo o que sou e possuo.

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Prefácio

DIREITO, RACIONALIDADE E PAIXÃO

I. A autora

Há professores que mudam a vida dos seus alunos. Pelo talento, pelo amor ao ensino ou por um gesto amistoso, servem de inspiração, exemplo ou símbolo para os jovens estudiosos. Tive alguns mestres assim ao longo da vida, e os guardo na mente e no coração. Nos meus melhores sonhos, vivo a esperança de ser um desses.

É menos comum, na vida acadêmica, um aluno mudar a vida de seu professor. Foi o meu caso, na longa interação acadêmica que mantenho com Ana Paula de Barcellos. Aliás, percebi que isto poderia acontecer desde o primeiro mo-mento, quando ela venceu o concurso para se tornar minha monitora, pouco mais de dez anos atrás. A velocidade e profundidade com que dava retorno às pesquisas que eu lhe passava impuseram a mim mesmo, desde o começo do nosso convívio, um novo ritmo e um outro patamar.

De lá para cá, Ana Paula e eu desenvolvemos uma intensa relação profissional e acadêmica, na qual ela tem

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sido não apenas uma interlocutora brilhante, construtiva e dedicada, mas também co-autora de diversos trabalhos que produzimos juntos. Em livro recente que escrevi, prestei sobre ela o depoimento que me pareceu justo:

"(...) E Ana Paula de Barcellos, que há dez anos ingres-sou na vida acadêmica pelas minhas mãos, tendo sido minha monitora e minha orientanda de mestrado e de doutorado, até tornar-se professora da UERJ por con-curso público. O leitor imaginará que tenha sido pro-veitosa para a jovem estudiosa a convivência com seu professor. Mas deve saber que a recíproca é mais intensamente verdadeira: de longa data beneficio-me eu de seu talento privilegiado, de sua inteligência emocional e de sua dedicação plena a todos os projetos com os quais se compromete".

Um primeiro marco dessa relação foi sua dissertação de mestrado, intitulada A eficácia jurídica dos princípios constitucionais. O princípio da dignidade da pessoa huma-na. Um trabalho precioso, que se tornou leitura obrigatória no tema. Já agora vem à luz sua tese de doutorado, uma obra-prima acerca do novo papel de juízes e tribunais na interpretação do direito: Ponderação, racionalidade e ati-vidade jurisdicional. Trata-se, provavelmente, do mais bem-sucedido esforço já realizado na dogmática jurídica brasileira de desenvolver parâmetros de juridicidade e racionalidade na contenção da discricionariedade judicial'.

Luis Roberto Barroso, Temas de direito constitucional, t. 111, 2005, Registros. 2 Sem surpresa, seu trabalho foi aprovado com nota máxima, em banca da qual participaram, além de mim, como orientador, os eminen-tes professores José Afonso da Silva, Clêmerson Merlin Ceve, Ricardo Lobo Torres e Paulo Braga Galvão.

Em homenagem à autora e ao leitor, animo-me a algumas reflexões acerca do atual estágio do debate cons-titucional no Brasil, que serviu de cenário e de inspiração para o desenvolvimento da tese que ora apresento.

II. Neoconstitucionalismo, interpretação constitucional e judicialização das relações sociais no Brasil

A dogmática jurídica brasileira sofreu, nos últimos anos, o impacto de um conjunto novo e denso de idéias, identificadas sob o rótulo genérico de pós-positivismo ou principialismo. Trata-se de um esforço de superação do legalismo estrito, característico do positivismo normativis-ta, sem recorrer às categorias metafísicas do jusnaturalis-mo. Nele se incluem a atribuição de normatividade aos princípios e a definição de suas relações com valores e regras; a reabilitação da argumentação jurídica; a formação de uma nova hermenêutica constitucional; e o desenvolvi-mento de uma teoria dos direitos fundamentais edificada sobre a idéia de dignidade da pessoa humana. Nesse ambiente, promove-se uma reaproximação entre o Direito e a Ética.

Fenômeno contemporâneo, que entre nós iniciou seu curso após a Carta de 1988, foi a passagem da Constituição para o centro do sistema jurídico. À supremacia até então meramente formal da Lei Maior agregou-se uma valia material e axiológica, potencializada pela abertura do sis-tema jurídico e pela normatividade de seus princípios'.

3 V. Pietro Perlingieri, Perfis do direito civil, 1997, p. 6: "O Código Civil certamente perdeu a centralidade de outrora. O papel unificador do sistema, tanto nos seus aspectos mais tradicionalmente civilisticos quanto naqueles de relevância publicista, é desempenhado de maneira cada vez mais incisiva pelo Texto Constitucional". Vejam-se, também,

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Compreendida como ordem objetiva de valores4 e como sistema aberto de princípios e regras', a Constituição transforma-se no filtro através do qual se deve ler todo o direito infraconstitucional. Este importante desenvolvi-mento metodológico tem sido designado como constitucio-

Maria Celina B. M. Tepedino, A caminho de um direito civil constitu-cional, RDC 65:21, 1993 e Gustavo Tepedino, O Código Civil, os chamados microssistemas e a Constituição: premissas para urna refor-ma legislativa. In: Gustavo Tepedino (org.), Problemas de direito civil-constitucional, 2001. 4 Na Alemanha, a idéia da Constituição como ordem objetiva de valores, que condiciona a leitura e interpretação de todos os ramos do direito, foi fixada no julgamento do célebre caso Liith, pelo Tribunal Constitucional Federal alemão, que assentou: "Los derechos funda-mentales son ante todo derechos de defensa del ciudadano en contra dei Estado; sin embargo, en las disposiciones de derechos fundamenta-les de la Ley Fundamental se incorpora también un orden de valores objetivo, que como decisión constitucional fundamental es válida para todas las esferas dei derecho" (Jürgen Schwabe, Cincuenta anos de jurisprudência dei Tribunal Constitucional Federal alemán, 2003, Sen-tencia 7, 198). No caso concreto, o tribunal considerou que a conduta de um cidadão convocando ao boicote de determinado filme; dirigido por cineasta de passado ligado ao nazismo, não violava os bons costu-mes, por estar protegida pela liberdade de expressão.

5 A idéia de abertura abriga dois conceitos: incompletude — a Cons-tituição não tem a pretensão de disciplinar todos os temas e os que disciplina somente o faz instituindo os grandes princípios — e certa indetenninação de sentido, que permite a integração de suas normas pela atuação do legislador e do intérprete. V. Luís Roberto Barroso, Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito constitucional bra-sileiro. In: A nova interpretação constitucional, 2003. Sobre a distinção entre princípios e regras, v. infra e, especialmente, Ronald Dworkin, Taking rights seriously, 1997, e Robert Alexy, Teoria de los derechos fundamentales, 1997. Para a idéia de abertura do sistema jurídico, v.

Claus-Wilhelm Canaris, Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito, 1996. Para um tratamento sistemático destas questões, v. também J. J. Gomes Canotilho, Direito constitucional e

teoria da Constituição, 2000, p. 1.121 es.

nalização do direitos, uma verdadeira mudança de para-digma que deu novo sentido e alcance a ramos tradicionais e autônomos do Direito, como o civil, administrativo, penal, processual etc.

Ainda nesse ambiente, desenvolveu-se um conjunto de idéias que foi identificado — inclusive por mim e pela autora — como a nova interpretação constitucional', mar-cada pela mudança de dois paradigmas: o do papel da norma jurídica e o do papel do intérprete na realização do direito'. Foi no âmbito dessas novas formulações teóricas

6 Sobre o tema, v. Riccardo Guastini, La constitucionalización dei ordenamiento jurídico: el caso italiano. In: Miguel Carbonell (org.), Neoconstitucionalismo(s), 2003; e Luís Roberto Barroso, O novo direi-to constitucional e a constitucionalização do direito. In: Temas de direito constitucional, t. III, 2005. 7 Luís Roberto Barroso e Ana Paula de Barcellos, O começo da histó- ria. A nova interpretação constitucional e o papel dos princípios no direito brasileiro. In: Luís Roberto Barroso, A nova interpretação cons-titucional: ponderação, direitos fundamentais e relações privadas, 2003. 8 A interpretação jurídica tradicional desenvolveu-se sobre duas gran- des premissas: a primeira, quanto ao papel da norma, que seria o de oferecer, no seu relato abstrato, a solução para os problemas jurídicos; a segunda, quanto ao papel do juiz, que seria o de identificar a norma aplicável ao problema que lhe cabe resolver, revelando a solução nela contida. Sua função seria uma função de conhecimento técnico, de formulação de juízos de fato. Com o tempo, as premissas ideológicas sobre as quais se erigiu o sistema de interpretação tradicional deixaram de ser integralmente satisfatórias, quer quanto ao papel da norma, quer quanto ao papel do intérprete. De fato, quanto ao papel da norma, a solução dos problemas jurídicos nem sempre se encontra no relato abstrato da norma. Muitas vezes só é possível produzir a resposta constitucionalmente adequada à luz doproblema, dos fatos relevantes, analisados topicamente; quanto ao papel do juiz, já não será apenas um papel de conhecimento técnico, voltado para revelar o sentido contido na norma. O juiz torna-se co-participante do processo de criação do Direito, ao lado do legislador, fazendo valorações próprias, atribuindo

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que foram desenvolvidas ou sistematizadas categorias es-pecíficas, que incluem o emprego da técnica legislativa das cláusulas abertas, a normatividade dos princípios, o reco-nhecimento da existência de colisões de normas constitu-cionais, a necessidade do emprego da técnica da pondera-ção de valores e a teoria da argumentação como funda-mento de legitimação das decisões judiciais. O papel chave da ponderação dentro desse novo modelo de racionalidade jurídica foi a motivação do estudo ora apresentado.

Por fim, todos estes elementos novos — pós-positivis-mo, constitucionalização do direito, nova interpretação constitucional —, aliados a circunstâncias peculiares da redemocratização no Brasil, levaram a um novo fenômeno: a judicialização da vida, a ampliação da interferência do Judiciário nas relações sociais em geral'. Isto tem sido verdade não apenas em relação às grandes questões insti-tucionais — e.g., a constitucionalidade das Reformas da Previdência e do Judiciário — ou afetas a direitos funda-mentais — e.g., legitimidade da interrupção da gestação de fetos inviáveis —, como também no que toca a temas mais diretamente ligados à rotina da vida social, como o valor da mensalidade dos planos de saúde ou a majoração das tarifas telefônicas.

Pois bem: a abertura dos textos normativos, o exercício de discricionariedade pelo intérprete e a expansão do papel de juízes e tribunais criaram novas demandas de elaboração

sentido a cláusulas abertas e realizando escolhas. V. Luis Roberto Bar-roso, Temas de direito constitucional, t. III, 2005, p. 515-16.

9 Sobre este tema, v. Luiz Werneck Vianna, Maria Alice Resende de Carvalho, Manuel Palácios Cunha Melo e Marcelo Baumann Burgos, A judicialização da política e das relações sociais no Brasil, 1999; Mark Tushnet, Taking the constitution away from the cozias, 1999; Robert Bork, Coercing virtue, 2003; e Ran Hirschl, Towards juristocracy, 2004.

teórica. De fato, em nome da objetividade mínima do direito e da previsibilidade das condutas, impõe-se o de-senvolvimento de parâmetros técnicos que permitam a controlabilidade das decisões, preservando o Estado de-mocrático de direito de uma degeneração indesejável: a do voluntarismo judicial. Com pioneirismo e criatividade, este livro enfrenta o desafio trazido pela nova realidade da interpretação jurídica.

III. Algumas idéias centrais do trabalho

Na primeira parte de seu estudo, Ana Paula enuncia o propósito de sua tese: proceder a uma ordenação metodo-lógica da ponderação jurídica, conceituada como a técnica de solução de conflitos normativos que envolvem valores ou opções políticas em tensão, insuperáveis pelas formas hermenêuticas tradicionais. Na seqüência, escreve páginas primorosas sobre a racionalidade e a justificação das deci-sões judiciais, analisa as críticas e formulações alternativas à ponderação e expõe o tratamento da matéria nos direitos norte-americano e alemão. Como pressuposto desses no-vos desenvolvimentos, identifica a expansão do espaço interpretativo e a ascensão política e institucional do Poder Judiciário. Em suas palavras:

"Nesse contexto, parte da sociedade (no Brasil e em outros países), descrente do processo político normal, alimenta a expectativa de que o Judiciário seja afinal um espaço onde possam desenvolver-se de maneira mais lisa a discussão e a definição de políticas públicas. Esse movimento político acaba encontrando algum respaldo em disposições normativas bastante vagas, especialmente no nível constitucional, como visto aci-ma. A despeito do impacto que essa forma de visualizar

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o Judiciário possa ter sobre o regime democrático, a percepção desse fenômeno ajuda a entender o ambien-te no qual a técnica da ponderação tem se desenvolvido e aplicado".

Na segunda pane do trabalho, a autora expõe um roteiro lógico e didático da ponderação, a ser percorrido em três etapas, analiticamente desenvolvidas. Na primeira etapa, cabe ao intérprete proceder à identificação dos enunciados normativos em tensão. Na segunda etapa, cabe-lhe a identificação dos fatos relevantes e a apreciação da repercussão da incidência dos enunciados normativos so-bre os fatos selecionados. Por fim, chega-se à terceira etapa, que é a fase decisória da ponderação. É bem de ver, corno adverte o texto, que a técnica da ponderação em si não oferece respostas para as questões de natureza material que se colocam neste momento, mas a observância de determinados cuidados metodológicos ajudam na formu-lação da solução mais adequada. É como explica Ana Paula:

"Neste momento, o aplicador precisará de parâmetros propriamente jurídicos para orientar suas escolhas que, no entanto, não são fornecidos pela técnica da ponde-ração em si. De toda sorte, antes mesmo desses parâ-metros, três diretrizes devem ser consideradas pelo intérprete: (i) qualquer decisão deve poder ser gene-ralizada para casos equiparáveis (pretensão de univer-salidade), assim como a argumentação empreendida deve utilizar uma racionalidade comum a todos; (ii) sempre que possível o intérprete deve produzir a con-cordância prática dos enunciados em disputa; e (iii) a decisão a ser produzida deve respeitar o núcleo dos direitos, ainda que um núcleo apenas consistente, e não duro".

Na terceira e última parte da tese, Ana Paula de Barcellos desenvolve um conjunto de parâmetros preferenciais que deverão orientar a atividade do intérprete. São eles presun-ções de caráter relativo destinadas a reduzir a subjetividade e ampliar a controlabilidade das decisões. Tais parâmetros poderão ser gerais — aplicáveis a qualquer espécie de litígios — ou particulares, que se ocupam de colisões entre dispo-sições específicas. Ao cuidar dos parâmetros gerais, assim sintetizou a autora a sistematização que propôs:

"Ao longo do processo ponderativo o intérprete pode lançar mão de dois parâmetros gerais: (i) os enunciados com estrutura de regra (dentre os quais os núcleos dos princípios que possam ser descritos dessa forma) têm preferência sobre aqueles com estrutura de princípios; e (ii) as normas que promovem diretamente os direitos fundamentais dos indivíduos e a dignidade humana têm preferência sobre aqueles que apenas indiretamente contribuem para esse resultado. (...) Embora o parâmetro geral seja o da preferência das regras sobre os princípios, há duas situações nas quais as regras estarão envolvidas com a ponderação de certa forma: (i) quando a incidência de uma regra produz tamanha injustiça que a torna incompatível com as opções materiais da Constituição; e (ii) quando há uma colisão insuperável .de regras".

De minha parte, poderia prosseguir indefinidamente, colhendo os incontáveis achados do texto. Mas seria uma pretensão e uma inconveniência pautar a leitura do livro de acordo com meus próprios olhos. Por isso mesmo, deixo o caminho livre para que o leitof possa fazer as suas escolhas e desfrutar, sem intermediários,' desse trabalho memorável.

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IV. Conclusão

O trabalho da professora Ana Paula de Barcellos é motivo de orgulho e realização para o Programa de Pós-graduação em Direito Público da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Nele se concentra o melhor do nosso ideal: boa teoria constitucional, simplicidade e clareza na forma e capacidade de promover uma interlocução cons-trutiva entre a academia e o mundo real, entre teóricos e operadores do direito. Na juventude de seus trinta anos, Ana é uma jurista de primeira grandeza, que realiza com maestria este desiderato.

Apenas uma última advertência. Não leia este livro incidentalmente, como um fato casual da rotina dos estu-dos jurídicos. Há risco de se desperdiçar uma grande oportunidade. O trabalho que se segue é um marco na compreensão das complexidades do direito em nosso tem-po e na busca de legitimidade, racionalidade e controlabi-lidade para a interpretação judicial. Por isso mesmo, é preciso percorrer as suas páginas com os sentidos em alerta e o coração aberto, pronto para uma grande paixão. Há risco de a vida não voltar a ser a mesma.

Rio de Janeiro, 22 de junho de 2005.

Luís Roberto Barroso Professor titular de direito constitucional da

Universidade do Estado do Rio de Janeiro — UERJ.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO

PARTE I

I. LOCALIZANDO O TEMA DA PONDERAÇÃO 23 1.1. Ponderação, interpretação e antinomias 23 1.2. Direito, racionalidade e justificação: algumas notas 39

II. EXAMINANDO AS CRÍTICAS À PONDERAÇÃO 49

III. HÁ ALTERNATIVAS À PONDERAÇÃO? OS LIMITES IMANENTES, O CONCEPTUALISMO E A HIERARQUIZAÇÃO 57

ALEMÃ SOBRE AS EXPERIÊNCIAS NORTE-AMERICANA E IV. ENFRENTANDO A PONDERAÇÃO: NOTAS

77

PARTE II

V. A TÉCNICA DA PONDERAÇÃO: UMA PROPOSTA EM TRÊS ETAPAS 91

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V.1. Primeira etapa: identificação dos enunciados normativos em tensão 92

a) Interesses e enunciados normativos 96 b) Normas e enunciados normativos 103 c) Situações individuais e enunciados normativos 112

V.2. Segunda etapa: identificação dos fatos relevantes 115 a) Fatos relevantes 116 13) Repercussões dos fatos sobre os enunciados normativos. 120

V.3. Terceira etapa: decisão 123 a) Pretensão de universalidade 125 b) Busca da concordância prática 133 c) Construção do núcleo essencial dos direitos fundamentais 139

VI. PONDERAÇÃO PREVENTIVA OU ABSTRATA E REAL OU CONCRETA 146

PARTE III

VII. ALGUMAS NOTAS SOBRE OS PARÂMETROS 159 Parâmetros preferenciais 159

VII.2. Parâmetros gerais e particulares 163

VIII. PARÂMETRO GERAL 1: REGRAS TÊM PREFERÊNCIA SOBRE PRINCÍPIOS 165 VIII.1. Fundamentação 166

a) Revendo as distinções relevantes entre princípios, sua estrutura e diferentes categorias, e regras b) Revendo as diferentes funções de princípios e regras

VIII.2. É possível ponderar regras?

DIRETAMENTE DIREITOS FUNDAMENTAIS DOS INDIVÍDUOS TÊM PREFERÊNCIA SOBRE NORMAS

IX. PARÂMETRO GERAL 2: NORMAS QUE REALIZAM

RELACIONADAS APENAS INDIRETAMENTE COM DIREITOS.

235 IX.1. O momento e o objeto do parâmetro 236 IX.2. Fundamentação: o direito interno e o internacional e o procedimentalismo 245

X. PARÂMETROS ESPECÍFICOS: ELEMENTOS PARA SUA CONSTRUÇÃO OU UM ROTEIRO PARA A PONDERAÇÃO PREVENTIVA OU ABSTRATA 275

CONCLUSÕES 295

Referências bibliográficas 311

166

185 201

a) Modalidades de conflitos envolvendo regras 201 b) Solucionando os conflitos envolvendo regras: eqüidade, imprevisão e invalidade de uma incidência específica da regra 220

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Introdução

O verbo ponderar e o substantivo ponderação não são expressões privativas do chamado "mundo jurídico". O Di-cionário Houaiss descreve ponderar como a ação de "atri-buir pesos a diversas grandezas para calcular a média pon-derada; examinar com atenção e minúcia; avaliar, apreciar (p. as vantagens e as desvantagens); levar em consideração; ter atenção sobre; sopesar" 1 . Neste sentido, toda decisão humana minimamente racional envolve algum tipo de pon-deração. O indivíduo avalia as vantagens e desvantagens de casar ou permanecer solteiro, de adquirir uma casa ou um apartamento, e, em função das conclusões a que chega, toma suas decisões.

Na esfera pública, e em particular quando se cuida do exercício do poder político, dá-se fenômeno similar. O ra-ciocínio ponderativo, compreendido nesse sentido amplo, será o principal instrumento lógico de trabalho do Legisla-tivo. Cabe aos parlamentos, acima de tudo, avaliar vanta-gens e desvantagens, "prós e contras", e decidir qual é a

1 Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, 2001, p. 2257.

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melhor disciplina aplicável às diferentes matérias que lhes cabe regular. O Executivo, embora vinculado às escolhas do legislador na maior parte do tempo, também fará uso da ponderação nos seus espaços de competência própria e no âmbito de sua atuação discricionária. E o Judiciário ocupa-se exatamente de ponderar, compreendida a ponderação no sentido descrito acima, as provas produzidas (para defi-nir quais fatos ocorreram) e as razões apresentadas pelas partes (para decidir a disposição aplicável ao caso e suas conseqüências)2. Não é dessa espécie de ponderação, toda-via, que se pretende tratar neste estudo, e sim de fenôme-no muito mais especifico.

Se a ponderação no sentido genérico referido acima é própria de toda decisão judicial — e, a rigor, de todo dis-curso racional —, nos últimos anos, a jurisprudência brasi-leira tem incorporado à sua prática uma forma de pondera-ção muito particular, que merece exame exclusivo. Na rea-lidade, a seguinte situação tornou-se freqüente: o intérpre-te, afirmando estar diante de um conflito entre enunciados normativos válidos', considera necessário ponderá-los. O resultado dessa operação, em geral, é que um dos enuncia-

2 Como se sabe, além dos argumentos das partes, o juiz pondera (considerando a expressão no sentido referido no texto até aqui), consciente ou inconscientemente, muitos outros elementos, dentre os quais, a sua própria pré-compreensão do tema e o impacto que a decisão produzirá sobre a sociedade. Sobre o tema, v. LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito, 1969, p. 393 e ss.; CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e argumentação, 2001; e

TORRE, Maximo La. Theories of Legal Argumentation and Concepts of Law. An Approximation, Ratio Juris, vol. 14, n°4, 2002, pp. 377 a 402.

3 Neste estudo, as expressões norma ou comando normativo, de um

lado, e, de outro, enunciado ou dispositivo normativo identificam

fenômenos diversos, como será exposto em tópico próprio adiante. Até que se trate do assunto, porém, os termos não serão empregados com extremo rigor técnico a fim de facilitar a comunicação.

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dos identificados inicialmente é aplicado e os demais são afastados ou que a incidência de um é restringida em pro-veito dos outros. Já não se trata aqui, é bom notar, de ava-liar, ponderar argumentos, razões ou o acervo probatório produzido; mas sim de avaliar, ponderar enunciados nor-mativos válidos e em vigor, muitas vezes de estatura cons-titucional. Vejam-se alguns exemplos.

O art. 5° da Constituição de 1988, inciso XII, prevê ser "inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal" e, no inciso LVI, considera "inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilí-citos". Apesar de tais regras, e antes de editada a lei referida no inciso XII4, o Superior Tribunal de Justiça, em algumas decisões', autorizou a utilização de gravações de conversas telefônicas obtidas ilicitamente como prova no âmbito de processos criminais. O entendimento do STJ partia do pressuposto de que as regras constitucionais dos incisos XII e LVI não seriam absolutas, exigindo temperamentos, de-vendo-se ponderá-las com "valores maiores na construção da sociedade", também expressos na Constituição.

Em 15.02.2000, o Superior Tribunal de Justiça decidiu hipótese envolvendo uma desapropriação indireta já transi-tada em julgado'. A Fazenda do Estado de São Paulo havia sido vencida e acordara com os autores o parcelamento do débito. Tempos depois, já pagas algumas parcelas, apurou-

4 A lei exigida pelo texto constitucional veio a ser a Lei n°9.296/1996.

5 STJ, HC 3982/RJ, Rel. MM. Adhemar Maciel, DJU 26.02.1996 (RSTJ 82/321) e HC 4138, Rel. Min. Adhemar Maciel, DJU 27.05.1996. 6 STJ, REsp 240712/SP, Rel. Min. José Delgado, DJU 21.08.2000.

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se que a área supostamente apossada pelo Estado já perten-cia a ele mesmo, não aos autores. Não dispondo mais da possibilidade de propor ação rescisória por falta de prazo, a Fazenda paulista ajuizou ação declaratória de nulidade de ato jurídico cumulada com pedido de repetição de indé-bito.

O debate acerca da concessão ou não de tutela anteci-pada, a fim de se interromperem os pagamentos das parce-las, chegou ao STJ, cuja 1' Turma, por maioria, concedeu a antecipação pretendida. O principal argumento utilizado pelos votos vencedores foi o de que a coisa julgada e seu fundamento, a segurança jurídica, não se podem sobrepor aos princípios da moralidade pública, da razoabilidade e da proporcionalidade, sendo indispensável ponderar todos es-ses elementos constitucionais7 .

Ainda mais dois exemplos, agora da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Empresário supostamente en-volvido em crimes de contrabando foi convocado para de-por perante Comissão Parlamentar de Inquérito da Câmara dos Deputados e requereu ao STF ordem para que a sessão da CPI na qual seu depoimento seria tomado não fosse televisionada. O fundamento do pedido foi a necessidade de proteção da imagem e da honra do empresário (CF, art. 50, X). O Ministro Cezar Peluso, relator do Mandado de Segurança, concedeu a liminar e proibiu o uso de câmeras que possibilitassem a gravação de imagens do impetrante. Após a ciência da decisão judicial, porém, a CPI remarcou a sessão para outro horário e autorizou o uso de câmeras.

7 Confiram-se comentários sobre o caso por seu próprio relator, o Ministro José Delgado, no artigo DELGADO, José. "Efeitos da coisa julgada e os princípios constitucionais". In: NASCIMENTO, Carlos Valder do (coordenador). Coisa julgada inconstitucional, 2002.

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Submetida ao Plenário do STF, a decisão liminar não foi referendada. A posição firmada pela maioria pode ser resumida da seguinte forma: as sessões das CPIs são públi-cas e deve prevalecer na hipótese o direito à informação (CF, arts. 50, IX e 220), sendo que qualquer afronta à hon-ra ou à imagem pode ser reparada posteriormente, por meio de indenização. Os Ministros Cezar Peluso, Gilmar Mendes e Joaquim Barbosa ficaram vencidos por conside-rarem, em primeiro lugar, que o direito à informação não foi afetado, já que a imprensa não estava impedida de acompanhar a sessão, ficando vedado apenas o televisiona-mento. Em segundo lugar, e sobretudo tendo em conta o descumprimento da liminar pela Comissão, a minoria en-tendeu que a proteção da honra e da imagem do impetrante só seria eficaz se fosse preventiva, não bastando para isso posterior indenização'.

Em outra ocasião, o STF examinou o conflito entre a liberdade de expressão (CF, art. 50, IV e IX) e a vedação constitucional à prática do racismo, considerado crime ina-fiançável e imprescritível (CF, art. 50, XLII). A hipótese era a seguinte. Um editor havia publicado livros "fazendo apologia de idéias preconceituosas e discriminatórias con-tra a comunidade judaica" e, processado criminalmente, teve habeas corpus impetrado em seu favor perante o STF. A Corte, por maioria, entendeu que a liberdade de expres-são, a despeito de sua importância, não é absoluta, devendo observar os limites impostos pela própria Constituição, dentre os quais a condenação do racismo, sendo preponde-rantes na hipótese os princípios da dignidade humana e da igualdade jurídica de todas as pessoas. Com esse funda-mento, a Corte denegou o habeas corpus9.

8 STF, MS 24832 MC/DF, Rel. Min. Cezar Peluso, DJU 26.03.2004. 9 STF, HC 82424/RS, Rel. MM. Maurício Corrêa, DJU 19.03.2004.

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Uma observação superficial já revela por que motivo a ponderação empregada nos exemplos acima é fenômeno diverso da ponderação genérica identificada inicialmente. Aqui, os elementos ponderados são dispositivos normativos vigentes que, a rigor, em um Estado de direito, devem ser aplicados uma vez que se verifique sua hipótese de incidên-cia, mas que, no caso, parecem estar em colisão a ponto de se excluírem reciprocamente. Ademais, a ponderação sub-mete esses enunciados a um tipo de exame cujo objetivo é, de certo modo, verificar a conveniência de sua aplicação ao caso, a despeito de o juízo acerca de prós e contras já ter sido feito pelo Legislador. Por fim, e os exemplos ilustram esse ponto, a ponderação parece fornecer ao intérprete po-deres extraordinários: ele é capaz de afastar a aplicação de dispositivos válidos em benefício da aplicação de outros, restringir o exercício de direitos fundamentais e até mes-mo relativizar regras constitucionais.

Não se trata, portanto, de uma ponderação qualquer, na qual vantagens e desvantagens são livremente avaliadas. Em sentido diverso, trata-se de uma ponderação cuja maté-ria-prima principal são disposições normativas válidas e em vigor e isso a torna extremamente particular. Na verdade, há aqui um ponto interessante. Embora o direito sempre tenha cémvivido com a questão das antinomias, nunca se falou tanto de colisões normativas e necessidade de ponde-ração como nas últimas décadas'°. Alguns elementos socio-

10 A questão tem se tornado tão popular que corre o risco da banalização, na medida em que autores e sobretudo decisões judiciais empregam a ponderação sem qualquer conteúdo próprio ou cuidado especifico. Nesse contexto, alguns autores começam a discutir a necessidade de auto-contenção (self-restraint) do Judiciário. V. MELLO,

Cláudio Ari. Democracia constitucional e direitos fundamentais, 2004, p.

203 e ss..

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lógicos, jurídicos e políticos ajudam a localizar historica-mente e a compreender o fenômeno da expansão da técni-ca da ponderação pelos meios jurídicosn.

Do ponto de vista sociológico, duas das características mais marcantes das sociedades contemporâneas nos últi-mos cinqüenta anos são o aprofundamento da complexida-de das relações humanas em seus vários níveis e, em certa medida como uma decorrência desse primeiro fato, a cres-cente pluralidade existente dentro das sociedades12. As relações familiares admitem hoje, tanto nos vínculos entre os adultos, como entre pais e seus filhos'', variações im-pensáveis décadas atrás, cada uma delas acompanhada de defensores e detratores. No âmbito de grupos sociais mais abrangentes, e mesmo da sociedade internacional, temas complexos dividem as pessoas em diferentes grupos de

ii A localização histórica dos fenômenos sociais é indispensável para sua compreensão adequada. Sobre o tema, v. ORTEGA Y GASSET, José. Que é filosofia?, 1971, p. 11 e ss.; e SALDANHA, Nelson. Filosofia do direito, 1998, p. 2 e ss..

12 SUNSTEIN, Cass. Conflicting Values in Laia, Fordham Law Review n° 62, 1994, pp. 1661 e 1662: "The first claim is that we value thingS in different ways; that is to say, we value things not only in terms of intensity, but in qualitatively distinct ways. It is not simply the case that some things are valued more; it is also the case that some things are valued differently from others. That is my first claim, about different modes of valuation. The second claim is that human goods are not commensurable. This is to say that there is no available metric along which we can align the various goods that are important to us. (...) It might be more accurate to say that economists and environmentalists value the environment in different ways, with economists thinking that the environment is for hum an exploitation and use, and environmentalists sometimes challenging that assumption." 13 São temas atuais, além da adoção, a inseminação artificial, a manipulação genética, a doação de sêmen, a desvinculação entre paternidade biológica e paternidade jurídica e sócio-afetiva, dentre outros.

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opinião, como é o caso do conflito entre interesse público e direitos individuais, da violência, do terrorismo, do tráfi-co de drogas, dos direitos humanos, das intervenções inter- nacionais etc.

Para o estudioso, ou para o cidadão que tenha a preten-são de estar bem informado, parece realmente que não há mais coisa alguma simples no mundo: já não é possível exa-minar com seriedade os problemas contemporâneos sob um único ponto de vista ou oferecer-lhes uma resposta sin-gela e direta, já que, com freqüência, eles envolvem valores e interesses diversificados e conflitantes. Jornais e revistas passaram a publicar matérias compostas de várias opiniões sobre o mesmo tema, na tentativa de dar conta de sua mul-tiplicidade e atrair leitores de todos os grupos". Nos regi-mes democráticos, predominantes nas sociedades ociden-tais nos últimos cinqüenta anos, essa pluralidade recebe espaço institucional de manifestação e desenvolvimento.

Do ponto de vista jurídico, é possível identificar dois processos em curso, também no meio século precedente, ambos interligados. O primeiro deles tem sido identificado como o movimento de retorno do direito aos valores15. Após a Segunda Guerra Mundial, e uma vez que o signifi-cado da barbárie nazista pôde ser apreendido pelo pensa- mento jurídico, o positivismo exclusivamente formal e nor-mativista, que já se encontrava em crise, deixou de ser con-siderado uma forma adequada de compreender o direito. A

14 CANOTILHO, J. J. Gomes. A 'principialização' da jurisprudência

através da Constituição, Revista de Processo n° 98 (Estudos em homenagem ao Ministro S álvio de Figueiredo Teixeira — Segunda parte), 2000, pp. 83 a 89.

15 NINO, Carlos Santiago. Etica y derechos humanos, 1989, p. 3 e ss.;

ALEXY, Robert. Teoria de argumentação jurídica, 2001, p. 19 e ss.; e

TORRES, Ricardo Lobo. Os direitos humanos e a tributação —

Imunidades e isonomia, 1995, p. 6 e ss..

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teoria jurídica voltou-se então para os valores, reaproxi-mou-se da moral e tem procurado desenvolver formas e técnicas capazes de lidar com esses elementos ideais, mui-tas vezes introduzidos no direito positivo sob a forma de princípios16.

O segundo processo em curso na experiência jurídica liga-se à ampliação do espaço no qual a interpretação jurí-dica e o intérprete estão autorizados a transitar. É fácil perceber que existe um vínculo entre essa ampliação e a reaproximação com os valores e a moral: tendo em conta sua abertura e abstração características, a aplicação de valo-res a casos concretos, ainda que veiculados sob a forma de princípios, exigirá do intérprete um esforço considerável de integração. De toda sorte, é possível identificar no pró-prio sistema jurídico causas imediatas para essa ampliação do espaço próprio da interpretação jurídica, tanto no nível constitucional, como na esfera infraconstitucionalu.

16 Para uma visão mais profunda do tema, v. BARROSO, Luis Roberto. "Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito constitucional brasileiro (pós-modernidade, teoria critica e pós-positivismo)". In: BARROSO, Luís Roberto (organizador). A nova interpretação constitucional. Ponderação, direitos fundamentais e relações privadas, 2003, pp. 1 a 49.

17 SANCHIS, Luis Prieto. "Neoconstitucionalismo y ponderación judicial". In: CARBONELL, Miguel (organizador). Neoconstitucionalimo(s), 2003, pp. 131 e 132: "El constitucionalismo está impulsando una nueva teoria dei Derecho, cuyos rasgos más sobresalientes cabria resumir en los siguientes cinco epígrafes: más principios que regias; más ponderación que subsunción; omnipresencia de Ia Constitución en todas las áreas jurídicas y en todos los conflictos minimamente relevantes, en lugar de espacios exentos en favor de la opción legislativa o reglamentaria; omnipotencia judicial en lugar de autonomia dei legislador ordinario; y, por último, coexistencia de una constelación plural de valores, a veces tendencialmente contradictorios, en lugar de homogeneidad ideológica".

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Diversas Constituições contemporânea& e a brasileira em particular, são generosas na referência a elementos va-lorativos's de conteúdo bastante vago (como justiça social e dignidade humana), cuja definição detalhada — a ser afe-rida pelo intérprete — pode variar em certa medida no tempo, no espaço e em função das circunstâncias do caso concreto. Também constam do texto constitucional metas políticas sob a forma de princípios, que em geral admitem uma variedade de meios de realização'9.

Além disso, cartas compromissorias — como é o caso da Constituição de 1988 — refletem, de forma nítida ou distorcida, sociedades plurais, em vários níveis. O mesmo texto constitucional consagra valores diferentes, opções e interesses políticos diversos e direitos que, em vários de seus desenvolvimentos, poderão se chocar reciprocamen-te'''. Essa pluralidade exigirá do intérprete um esforço todo

18 ALEXY, Robert. El concepto y la validez del derecho, 1994, p. 159. 19 ALEXY, Robert. "Derechos fundamentales y estado constitucional democrático". In: CARBONELL, Miguel (organizador).

Neoconstitucionalismo(s), 2003, p. 35 e ss..

20 Um dos exemplos mais estudados desse conflito potencial é o que se verifica entre liberdade de imprensa, liberdade de expressão e de informação em oposição aos direitos à intimidade, à vida privada e à honra. Há ampla bibliografia sobre o tema. Vejam-se, por todos, GUERRA, Sidney Cesar Silva. A liberdade de imprensa e o direito à imagem, 1999; CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de. Direito de informação e liberdade de expressão, 1999; SOUZA, Edilsom

Pereira de. Colisão de direitos fundamentais. A honra, a intimidade, a vida privada e a imagem versus a liberdade de expressão e de informação, 2000; CASTRO, Mônica Neves Aguiar da Silva. Honra, imagem) vida privada e intimidade, em colisão com outros direitos, 2002; MARTINEZ,

Miguel Angel Alegre. El derecho a la propia imagen, 1997; CALDAS,

Pedro Frederico. Vida privada, liberdade de imprensa e dano moral, 1997; BARROSO, Porfirio e TAVALERA, Maria dei Mar Lopez. La libertad de expresión ji sus limitaciones constitucionales, 1998; CARDO,

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especial — e também técnicas próprias — a fim de preser-var cada uma das disposições envolvidas, definir-lhes os contornos e manter a unidade da Constituição''. No caso brasileiro, une-se a isso a circunstância de a Constituição de 1988 dispor sobre os temas mais variados, autorizando

Antonio Fayos. Derecho a la intimidad y medios de comunicación, 2000; e BARROSO, Luis Roberto. Colisão entre liberdade de expressão e direitos da personalidade. Critérios de ponderação. Interpretação constitucionalmente adequada do Código Civil e da Lei de Imprensa, Revista de Direito Administrativo n° 235, 2004, pp. 1 a 36.

Sobre esse tema, a Corte Européia de Direitos Humanos proferiu importante decisão recentemente declarando contrária ao art. 8° da Convenção Européia de Direitos Humanos a orientação do Tribunal Constitucional Federal alemão em matéria de proteção à privacidade de figuras públicas. A questão foi levada à Corte Européia pela princesa Caroline von Hannover, do Principado de Mônaco, após diversas tentativas de impedir a publicação de fotos suas em atividades cotidianas (e.g., fazendo compras ou praticando esportes). A Corte Européia considerou que os critérios do Tribunal alemão não protegiam satisfatoriamente a privacidade e defendeu a necessidade de uma ponderação orientada pelo seguinte critério: a publicação se justificaria na medida em que trouxesse uma contribuição para o "debate de interesse geral", para além da satisfação de uma mera curiosidade do público. Os eventos da vida cotidiana de uma pessoa pública, a principio, não poderiam ser objeto de divulgação, ainda quando ocorridos em ambientes que não possam ser considerados como "reservados". Dois juizes da Corte, embora endossando o resultado do julgamento, discordaram do critério fixado, retomando em parte o argumento do Tribunal alemão no sentido de que também há um interesse juridicamente tutelável ao "entretenimento". O critério, para tais juizes, deveria ser a existência ou não de uma "expectativa legitima de privacidade", que não estaria presente quando uma figura pública vai às compras, mas estaria quando pratica esportes em um ambiente aparentemente protegido de observação externa. A íntegra da decisão pode ser obtida no sue da Corte Européia de Direitos Humanos (httn://www.echr.coe.int). 21 BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição, 2003, p. 192 e ss..

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um amplo controle de constitucionalidade sobre leis e atos administrativos em geraln.

A ordem infraconstitucional, na medida em que regula-menta ou desenvolve disposições constitucionais, reproduz o mesmo quadro descrito acima: previsões que tutelam bens diversos e que, em determinado ponto, podem gerar situações de antinomian. Mas há também duas outras cau-sas, originárias da própria ordem infraconstitucional, e, in-dependentemente do juízo que se forme acerca delas, é certo que elas contribuem igualmente para a ampliação do papel da interpretação jurídica.

Em primeiro lugar, assim como a Constituição, tam-

22 Desde a promulgação da Constituição em 05.10.1988 até 22.08.2004 foram distribuídas 3294 ações diretas de inconstitucionalidade, das quais já foram julgadas 2229, segundo a Secretaria de Informática do STF (a informação consta do Banco Nacional de Dados do Poder Judiciário, htto://www.stf.gov.bribndpi/stf/ADIN.asp acesso em 28.08.2004).

23 O mesmo acontece em outras ordens jurídicas, como a italiana, v. GUASTINI, Riccardo. "La sconstitucionalización) del ordenamiento jurídico". In: CARBONELL, Miguel (organizador). Neoconstitucionalismo(s), 2003, p. 58 e ss.. V. também DWORKIN, Ronald. The Judge's New Role: Should Personal Convictions Count?, Journal of International Criminal Justice I, 2003, pp. 5 e 6: "The role of moral judgment is pervasive and undeniable in administrative regulation, on the other hand, because the standards of that task are themselves set out in moral language — the language of convenience and necessity, or reasonableness, or proportionality, for example — and because it requires judges to choose among contested conceptions of economic and adrninistrative efficiency, and to fix an interaction and balance between efficiency and other moral values. The role of moral judgment is still more pervasive and less deniable in constitutional adjudication, because the pertinent constitutional standards are even more explicitly moral: they declare rights of free expression, treatment as equals, and respect for life and dignity, and sometimes make exceptions for constraints 'necessary in a democratic society', for example.".

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bém as leis mais recentes têm empregado em seus textos expressões gerais — como, e.g., boa-fé e função social do contrato24 —, de conteúdo fluido e sentido não inteiramen-te determinado. Ao utilizar conceitos jurídicos indetermi-nados e cláusulas gerais, o legislador acaba transferindo a delimitação do sentido e alcance dos enunciados normati-vos para o intérprete'.

24 Código Civil: "Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretaaos conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração.

(...) Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato.

Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé."

Código de Defesa do Consumidor: "Art. 4°. (...) III - harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170, da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores;

(...) Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que:

(...) IV - estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade." 25 AARNIO, Aulis. Reason and Authority, 1997, pp. 166 e 167: "Especially in a rapidly changing society, there is pressure to create norms that are open in a way that makes it possible to adjust them to new conditions at the application stage. (...) These norms, in the same way as weighing norms in general, transfer the focus of discretionary power in the direction of the machinery of authorities applying the law. Especially in the sphere of public administration, some norms give only information about the goals of law leaving open or scantily specified the criteria of the application. (...) It seems that in the Welfare State the traditional regulation of rights and duties is being displaced by weighing, goal and resource norms. At least in the public sector the development moves in

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Em segundo lugar, e por razões que não cabe aqui apro-fundar", os legislativos contemporâneos têm empregado técnicas variadas de delegação de competências normativas ao Poder Executivo". Essa transferência, explícita ou im-plícita, amplia igualmente o espaço da interpretação jurídi-ca própria do Judiciário, já que aos juizes caberá, em qual-quer caso, exercitar o controle das ações administrativas", empregando os parâmetros disponíveis. Quando a lei não

the direction of goal and need orientation. But also in civil law, the same tendencies are active, as is indicated by general clauses and conciliation rules. These lines of development will not, however, be further considered in the following presentation because the main emphasis will be on interpretation. In them, and in them expressly, come out the crucial questions of legal reasoning."

26 V. sobre o assunto, dentre outros, CLIVE, Clèmerson Merlin. A lei

no estado contemporâneo, Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política n° 21, 1997, pp. 124 a 138; e CLÈVE, Clèmerson Merlin. Atividade legislativa do Poder Executivo, 2000. De forma geral, a doutrina aponta algumas causas para essa transferência de poderes normativos do Legislativo para o Executivo, dentre outras: a complexidade e o caráter técnico de muitas matérias a serem disciplinadas, a necessidade de celeridade no processo decisório, a dificuldade de formação de consensos no âmbito do parlamento sobre a regulação dos aspectos específicos das matérias etc.

27 Sobre a discussão da suposta "deslegalização", v. MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Direito regulatório, 2003; e ARAGÁ0, Alexandre

Santos de. Agências reguladoras e a evolução do direito administrativo

econômico, 2002.

28 Embora o Executivo também seja um dos intérpretes da Constituição. V. HÃBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional. A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e 'procedimental' da Constituição, 1997. V. sobre o tema, na experiência brasileira, BARROSO, Luís Roberto. Poder Executivo. Lei inconstitucional. Descumprimento, Revista de Direito Administrativo n° 181/182, 1990, pp. 387 a 397; e BINENBOJM, Gustavo. A nova jurisdição constitucional brasileira, 2001, p. 203 e ss..

oferece parâmetros específicos, a validade da ação adminis-trativa acaba por ser aferida em confronto com princípios gerais, constitucionais ou infraconstitucionais, como os da razoabilidade, da eficiência, da moralidade e da economici-dade, dentre outros.

Por fim, há ainda um último elemento, agora de nature-za política, que ajuda a compor o quadro aqui descrito. O crescimento do espaço da interpretação jurídica tem sido fomentado também por um processo de transferência da discussão política para o Judiciário, em detrimento das ins-tâncias de representação política. Explica-se melhor.

A crise dos parlamentos e da legalidade é um fenômeno antigo, cuja origem é identificada pela doutrina ainda no século XIX". Ao longo do último século, esse quadro de crise não foi superado" e é possível afirmar que a relação de confiança entre o povo e sua representação parlamentar é bastante frágil. Ao mesmo tempo, no caso brasileiro, a

29 Talvez o primeiro sintoma da crise tenha surgido após a universalização do voto masculino (e posterior extensão do direito a outros grupos), quando restou claro que a lei poderia ser apenas o resultado de acordos entre os diferentes grupos parlamentares, e não fruto de uma razão universal. V. sobre o tema SALDANHA, Nelson. O Estado moderno e a separação dos poderes, 1987, p. 104 e ss.; e CLÈVE, Clèmerson Merlin. "A teoria constitucional e o direito alternativo". M: Uma vida dedicada ao direito — Homenagem a Carlos Henrique de Carvalho, o editor dos juristas, 1995, pp. 34 e 35. 30 Na verdade, ao longo do século XX a crise dos parlamentos e da legalidade parece ter se agravado em função de diversos fatores: a experiência nazista e sua relação com um status de legalidade, os variados escândalos envolvendo parlamentos e parlamentares, que são cada vez melhor percebidos pelo público por conta da liberdade de imprensa, a própria divulgação, pelos meios de comunicação, das manobras próprias do jogo político contemporâneo etc. V. FERRAJOLI, Luigi. "Pasado y futuro del Estado de derecho". In: CARBONELL, Miguel (organizador). Neoconstitucionalismo(s), 2003, p. 20 e ss..

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redemocratização recolocou o Judiciário na sua posição de poder político, dando-lhe cada vez maior visibilidade.

Nesse contexto, parte da sociedade (no Brasil e tam-bém em outros países), descrente do processo político nor-mal, alimenta a expectativa de que o Judiciário seja afinal um espaço onde possam desenvolver-se de maneira mais lisa a discussão e a definição de políticas públicas'. Esse movimento político acaba encontrando algum respaldo em disposições normativas bastante vagas, especialmente no nível constitucional, como visto acima32. A despeito do im-pacto que essa forma de visualizar o Judiciário possa ter sobre o regime democrático, a percepção desse fenômeno ajuda a entender o ambiente no qual a técnica da pondera-ção tem se desenvolvido e aplicado.

Em resumo: associando-se (i) uma sociedade plural; (ii) suas Constituições e leis — que refletem a pluralidade de

31 É certo que essa expectativa em relação ao Judiciário, ao menos no Brasil, é própria de segmentos específicos da sociedade, que têm informação e acesso ao Judiciário. Não se pode dizer que ela seja compartilhada pela maioria da população.

•32 LA TORRE, Maximo. Theories of Legal Argumentation and Concepts of Law. An Approximation, Ratio Juris, vol. 14, n°4, 2002, p. 381: "We are seeing what has been called the 'juridification' of social life, or also, in H abermas's words, the 'colonization of the life-world', but this over-production of laws and decrees, this instrumental and 'situationar use of law, does not do any good to the legislator's prestige. The mass production of laws necessarily escapes discussion of principies or pondered public debate, obeying instead more corporative, not to say clientelist, logic. The 'public reason' thus driven out of legislative assemblies is often transferred to courtrooms, and democracy — in order to escape the corrupt and corrupting logics of part clientelism and technobureaucratic opacity — tenda to become, so to speak, 'judicial' (for a comparative perspective on this phenomenon, see Guarnieri and Pederzoli 1997). It is today the judge that is put forward as the new centre of the legal system, no longer the legislative power, like it or not."

valores e fazem uso intensivo de expressões gerais, cujo sentido pode variar justamente em função de concepções valorativas ou ideológicas —, e (iii) a ascensão política do Judiciário como espaço de discussão alternativo àquele dos órgãos eleitos, tem-se a ampliação progressiva do espaço próprio da interpretação jurídica. Considerando ainda que cada intérprete dispõe de suas próprias convicções valora-tivas e políticas, não é de surpreender que sejam diagnosti-cados tantos conflitos normativos e que a ponderação seja, tão freqüentemente empregada.

Descrito sumariamente o quadro sociológico, jurídico e político no qual se insere (e no qual pode ser compreendi-do) o crescente uso da ponderação como técnica de supe-ração de conflitos normativos, volta-se ao ponto. Não é difícil perceber que a ponderação — compreendida no sen-tido estrito aqui identificado — suscita uma série de ques-tões jurídicas relacionadas sobretudo com a legitimidade e a previsibilidade das decisões que a empregam, questões essas que são tanto mais graves e urgentes quanto mais generalizado e indiscriminado se torna seu uso. É preciso, portanto, investigar o tema, e algumas perguntas podem ser suscitadas desde logo. O que é, afinal, a ponderação? O que justifica sua utilização? Por que essa ferramenta dog-mática é necessária (se é que o é de fato)? E se ela é indis-pensável, em que consiste, do ponto de vista metodológi-co? Como ela funciona, quais são seus limites e que parâ-metros devem orientar o intérprete que a utiliza? O estudo que segue pretende exatamente discutir essas questões e, com esse propósito, foi ordenado em três partes.

O objetivo daprimeira pane do estudo é responder às três perguntas iniciais: o que é a ponderação, o que justifica sua utilização e por quais razões precisamos dela, afinal. No primeiro capítulo, vão-se identificar as circunstâncias que explicam a necessidade da ponderação, delinear o sentido

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propriamente dito da técnica e distingui-la das técnicas hermenêuticas tradicionais. De forma simples, já se pode adiantar que ponderação, no conceito adotado neste estu-do, corresponde à técnica de decisão jurídica empregada para solucionar conflitos normativos que envolvam valores ou opções políticasB em tensão, insuperáveis pelas formas hermenêuticas tradicionais.

Nos capítulos segundo e terceiro serão examinadas as críticas à ponderação — que tratam sempre, com boa par-cela de razão, de sua inconsistência metodológica e do pe-rigo de arbítrio que seu uso enseja — e as técnicas alterna-tivas capazes de solucionar, segundo parte da doutrina, os mesmos problemas que a técnica da ponderação pretende resolver com menor quantidade de inconvenientes. A con-clusão a que se chega, porém, é a de que, a despeito das críticas, nenhuma das opções sugeridas pela doutrina subs-titui satisfatoriamente a ponderação e nem supera as difi-culdades metodológicas a ela imputadas. No capítulo qua-tro, ao fim desta primeira parte, se fará um breve registro de como dois sistemas jurídicos — o norte-americano e o alemão — têm lidado com a ponderação e tentado superar suas limitações.

j3 Vale esclarecer que embora a referência feita a opções políticas ou ideológicas ao longo do texto se aproxime, quanto ao conteúdo, da idéia de policy de Dworkin, não se estará trabalhando com as concepções do autor nesse particular. Como se sabe, Dworlcin distingue po/icy de

principie — DWORKIN, Ronald. "Is Law a System of Rules?". In: SUMMERS, Robert (organizador). Essays in Legal Philosophy, 1968, p. 34 e ss. —, associando a primeira expressão a objetivos políticos, econômicos ou sociais e, a segunda, a padrões valorativos ou morais vinculados ao elemento justiça, extraindo dessa distinção algumas conseqüências importantes. A Constituição brasileira de 1988, porém, incorporou a seu texto, em geral sob a forma de princípios, tanto valores como opções políticas, de modo que os dois grupos de fenômenos são, no Brasil, elementos do sistema jurídico constitucional.

A busca por respostas às perguntas subseqüentes — Em que consiste, do ponto de vista metodológico, a técnica da ponderação? Como ela funciona, quais são seus limites e que parâmetros devem orientar o intérprete que a utiliza? — é o que move a segunda e a terceira partes do trabalho. Na segunda parte, será apresentada uma proposta de or-denação metodológica da técnica da ponderação, em três fases. Já que parece indispensável ter de empregá-la em determinadas hipóteses, o propósito do estudo é organizar um percurso lógico, com etapas definidas e fundamenta-das, que seja capaz de conferir racionalidade ao processo e reduzir a arbitrariedade na sua utilização. É bem de ver, porém, que, embora a consistência metodológica seja valio-sa, a ponderação continua a ser um mecanismo instrumen-tal e vazio de conteúdo. Por isso, além da ordenação da técnica, são necessários também parâmetros que condu-zam o intérprete no momento decisório.

A terceira parte do estudo concentra-se na formulação de parâmetros capazes de orientar e balizar as decisões do intérprete no emprego da ponderação. Serão propostos, em primeiro lugar, dois parâmetros seqüenciais e de natu-reza geral: seqüenciais porque devem ser aplicados separa-damente e na ordem em que são apresentados; e de natu-reza geral porque tais parâmetros são potencialmente apli-cáveis a qualquer conflito normativo. De forma simplifica-da, os dois parâmetros podem ser enunciados nos seguintes termos: (i) as regras têm preferência sobre os princípios; e (ii) as normas que realizam diretamente os direitos funda-mentais dos indivíduos têm preferência sobre aquelas que estão relacionadas com esse fim apenas de forma indireta.

Por fim, já no último capítulo, serão propostos elemen-tos a serem considerados na concepção de parâmetros es-pecíficos, que devem ser construídos tendo em conta as características de conflitos normativos em particular. Isso

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porque, além dos parâmetros gerais, é necessário, para cada conflito-tipo, o desenvolvimento de parâmetros próprios, que possam conduzir o intérprete de maneira mais precisa.

De forma simples, o propósito geral do estudo pode ser assim resumido: considerando que o emprego da técnica da ponderação parece realmente inevitável em determinados casos, como fazer para lhe conferir maior juridicidade (isto é: vinculação à ordem jurídica) e racionalidade (a fim de reduzir o arbítrio)? A proposta de uma ordenação metodo: lógica para a técnica — operacional e acessível — e de pa-râmetros capazes de nortear as decisões a serem tomadas pretende alcançar exatamente esses objetivos".

34 O presente estudo tem a ambição de apresentar propostas operacionais, por meio das quais seja possível ligar, de forma proveitosa, o mundo da reflexão teórica e filosófica ao mundo da realização prática do Direito. É certo, no entanto, que esses dois mundos vinculam-se a funções diversas, como destaca ATIENZA, Manuel. Las razones dei derecho. Sobre la justificación de Ias decisiones judiciales, Revista Isonomia n° 1, 2004, p. 64: "Mientras que en la ciencia y en la filosofia — sobre todo, en la filosofia — las discusiones pueden proseguir indefinidamente, esto es, el proceso de argumentación es un proceso abica°, en el sentido de que no hay ninguna autoridad que tenga la última palabra, en el Derecho la argumentación está, em diversos sentidos, limitada y, en particular, existen instituciones — los órganos de última instancia — que ponen punto y final ala discusión. El que las cosas sean así se debe, naturalmente, a que Ias instituciones jurídicas — a diferencia de las científicas o filosóficas — no tiene como su función central la de aumentar nuestro conocimiento dei mundo, sino la de resolver, mejor o peor, conflictos sociales; no persiguen basicamente una finalidad cognoscitiva, sino práctica.". Por essa razão, algumas questões, discutidas em um nível mais complexo e profundo pela filosofia constitucional e pelos autores que investigam a teoria do discurso e da argumentação, serão aqui propositadamente simplificadas, já que uma abordagem completa fugiria aos propósitos do estudo. De todo modo, observações bibliográficas específicas sobre os temas serão incluídas nas notas de rodapé.

PARTE I

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I. Localizando o tema da ponderação

1.1. Ponderação, interpretação e antinomias

Ponderação (também chamada, por influência da dou-trina norte-americana, de balancing) será entendida neste estudo como a técnica jurídica de solução de conflitos nor-mativos que envolvem valores ou opções políticas em tensão, insuperáveis pelas formas hermenêuticas tradicionais. Na verdade, a simples questão do que é a ponderação exige um exame mais aprofundado, tanto porque a idéia tem sido empregada pela jurisprudência de forma generosa, e fre-qüentemente desprovida de qualquer sentido preciso, como porque outros conceitos, diversos do que se acaba de apresentar, têm sido associados pela doutrina à expressão. O conteúdo propriamente dito da técnica será objeto de análise apenas mais adiante. Assim, ainda que de maneira objetiva, e em proveito da clareza, é necessário identificar as principais formas pelas quais a ponderação tem sido compreendida ou explicada e justificar a opção que se aca-ba de fazer.

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É possível visualizar na doutrina e na prática jurídica brasileiras ao menos três maneiras diferentes de compreen-der a ponderação. Em primeiro lugar, a ponderação é des-crita por muitos autores como a forma de aplicação dos princípios. Na verdade, foi assim que a ponderação ingres-sou inicialmente nas discussões jurídicas no Brasil. A con-cepção original de Ronald Dworkin — de que os princípios operam em uma dimensão de peso, ao passo que as regras obedecem a uma lógica de "tudo ou nada"" — e as formulações mais sofisticadas de Robert Alexy" sobre o tema continuam extremamente populares na doutrina bra-sileira e internacional".

35 DWORKIN, Ronald. Taking Rights Seriously, 1977, pp. 24 a 26: "The difference between legal principies and legal mies is a logical distinction. Both sets of standards point to particular decisions about legal obligation in particular circumstances, but they differ in the character of the direction they give. Rules are applicable in an all-or-nothing fashion. If the facts a rule stipulates are given, then either the nile is valid, in which case the answer it supplies must be accepted, or it is not, in which case it contributes nothing to the decision. (...) Of course, a mie may have exceptions (...) However, an accurate statement of the mie would take this exception jato account, and any that did not would be incomplete. (...) But this is not the way the sample principies in the quotations operate. Even those which look most like mies do not set out legal consequences that follow automatically when the conditions provided are met. (...) This first difference between rules and principies entails another. Principies have a dimension that mies do not — the dimension of weight or importance. When principies intersect (...), one who must resolve the conflict has to take into account the relative weight of each."

36 ALEXY, Robert. Teoria delas derechos fundamentales, 1997, p. 86 e

ss.; e ALEXY, Robert. Colisão de direitos fundamentais e realização de direitos fundamentais no estado de direito democrático, Revista de Direito

Administrativo n° 217, 1999, p. 79 e ss.

37 V. BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional, 1999, p.

243 e ss.; GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de

Nesse sentido, e empregando a lógica de Alexy, uma vez que os princípios funcionam como comandos de otimi-zação, pretendendo realizar-se da forma mais ampla possí-vel, a ponderação é o modo típico de sua aplicação. Por meio da ponderação se vai sopesar a extensão de aplicação possível de cada princípio, considerando as possibilidades jurídicas (outros princípios contrapostos e eventualmente regras) e físicas existentes". Na verdade, em vários escri-tos recentes Alexy tem manifestado preocupação em deli-near o conteúdo da ponderação e a forma de sua utili-zação".

1988 — Interpretação e crítica, 1996, p. 92 e ss.; BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição, 2000, p. 141 e ss.; COELHO, Inocêncio Mártires. Interpretação constitucional, 1997, p. 79 e ss.; GUERRA FILHO, Willis Santiago. Processo constitucional e direitos fundamentais, 1999, p. 51 e ss.; ROTHENBURG, Walter Claudius. Princípios constitucionais, 1999; ESPÍNDOLA, Ruy Samuel. Conceito de princípios constitucionais, 1999. Na doutrina estrangeira, confiram-se CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição, 1998, p. 1034 e ss.; BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico, 1997, pp. 158 e 159 e ss.; GARCIA DE ENTEARIA, Eduardo. La cons ti tución como norma y el tribunal constitucional, 1994, pp. 98 e 99 e ss. 38 ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales, 1997, p. 86 e ss.. 39 ALEXY, Robert. Colisão de direitos fundamentais e realização de direitos fundamentais no estado de direito democrático, Revista de Direito Administrativo n° 217, 1999, p. 75: "Princípios e ponderações são dois lados do mesmo objeto. Um é do tipo teórico-normativo, o outro, metodológico. Quem efetua ponderações no direito pressupõe que as normas, entre as quais é ponderado, têm a estrutura de princípios e quem classifica normas como princípios deve chegar a ponderações. A discussão sobre a teoria dos princípios é, com isso, essencialmente, uma discussão sobre a ponderação.". Em estudo mais recente, porém, Alexy vai identificar a ponderação com o terceiro elemento da proporcionalidade — a ponderação em sentido estrito —, conferindo, aparentemente, certa

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Uma segunda maneira de compreender a ponderação é a que a visualiza, sem maiores preocupações dogmáticas, como um modo de solucionar qualquer conflito normativo, relacionado ou não com a aplicação de princípios. É nesse sentido que ela tem sido empregada em muitas decisões judiciais, que parecem identificá-la como uma técnica ge-nérica de solução de aparentes tensões normativas. A téc-nica consistiria em balancear ou sopesar os elementos em conflito para atingir a solução mais adequada"°.

Por fim, e em terceiro lugar, diversos autores ligados às

autonomia à técnica (ALEXY, Robert. Constitutional Rights, Balancing

and Rationality, Ratio Juris, vol. 16, n° 2, 2003, pp. 131 a 140). Em outro trabalho, Aleicy propõe uma fórmula para a ponderação empregando a lógica aritmética (ALEXY, Robert. On Balancing and Subsumption. A

Structural Comparison, Ratio Juris, vol. 16, n°4, 2003, pp. 433 a 449).

40 Vejam-se, exemplificativamente, os seguintes acórdãos: TRF 1' Região, AGRPSL 2000.01.00.012735-8/MG, Rel. Juiz Tourinho Neto, DJU 29.06.2000: "1. Em liminar, o juiz deve analisar, de maneira perfunctória, superficial, os pressupostos do fumus boni iuris e do periculum in mora, não devendo proceder, em princípio, a análise do fundo da controvérsia. 2. Não pode a liminar coarctar a investigação de fatos que deverão ser objeto da instrução. 3. Na ponderação dos valores em conflito, há de prevalecer o que não cause grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia publicas."; e TRF 4 Região, ApMS 77562/SC, Rel. Juiz Paulo Afonso Brum Vaz, DJU 05.06.2002: "Previdenciário. Benefício por invalidez decorrente de acidente do trabalho. Restabelecimento. Mandado de segurança. Competência da justiça estadual. A despeito da regra inscrita no inciso VIII do art. 109 da Constituição Federal, é competente a Justiça Estadual para julgar mandado de segurança que tenha por objeto a concessão ou revisão de benefício previdenciário decorrente de acidente do trabalho. Se o legislador constitucional excluiu da competência federal a matéria relacionada com acidente do trabalho, não se pode sobrepor a esse desígnio regra de natureza instrumental, ainda que tenha esta última também sede na Carta Constitucional. Na ponderação dos interesses em conflito, deve prevalecer a substância sobre a forma."

discussões sobre a teoria da argumentação compreendem a ponderação em sentido muito mais amplo, como elemento próprio e indispensável ao discurso e à decisão racionais. Ponderação, nesse sentido, é a atividade pela qual se ava-liam não apenas enunciados normativos ou normas'', mas todas as razões e argumentos relevantes para o discurso, ainda que de outra natureza (argumentos morais, políticos, econômicos etc.)42. Nesse sentido, ao aplicar a idéia ao dis-curso jurídico, a ponderação acaba por se confundir com a atividade de interpretação jurídica como um todo'''. Para esses autores, não há uma relação necessária entre a ponde-ração e a situação específica de conflito entre disposições normativas, já que toda decisão envolverá necessariamente a avaliação de razões e argumentos relevantes. Assim, inter-pretação sempre envolveria ponderação.

41 Adiante se vai discutir a diferença entre esses dois fenômenos. 42 Como se processa essa avaliação de razões é, naturalmente, uma das principais preocupações dos autores. Vejam-se, por todos, PECZENIK, Alelcsander. On Law and Reason, 1989; e ATIENZA, Manuel. As razões do direito, 2002. 43 Essa é aparentemente a posição de Humberto Ávila, v. ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios, 2003, p. 50: "Todas essas considerações demonstram que a atividade de ponderação de razões não é privativa da aplicação dos princípios, mas é qualidade geral de qualquer aplicação de normas. Não é correto, pois, afirmar que os princípios, em contraposição às regras, são carecedores de ponderação (abwãgungsbedürftig). A ponderação diz respeito tanto aos princípios quanto às regras, na medida em que qualquer norma possui um caráter provisório que poderá ser ultrapassado por razões havidas como mais relevantes pelo aplicador diante do caso concreto." Concepção semelhante é a desenvolvida pOr PECZENIK, Aleksander. On Law and Reason, 1989, p. 81: "All socially established legal norms, expressed in statutes, precedents etc., have a merely prima facie character. The step from prima facie legal rules to the all-things-considered legal (and moral) obligations, claims etc. involves evaluative interpretation, that is, weighing and balancing." (grifos no original); e HAGE, Jaap. C. Reasoning with Rides, 1997.

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Não se adotou neste estudo qualquer dos três conceitos descritos acima para a ponderação, preferindo-se um quar-to. A fundamentação analítica dessa escolha depende de temas a serem desenvolvidos ao longo do texto, mas é pos-sível apresentar desde logo um conjunto de argumentos preliminares que justificam essa decisão. Para fins didáti-cos, será útil examinar, em primeiro lugar, por que a segun-da forma de compreender a ponderação identificada acima não é adequada. Em seguida, tentar-se-á demonstrar por que tampouco foram adotadas as duas outras possibilida-des descritas.

O direito está muitíssimo acostumado aos conflitos normativos. A hermenêutica jurídica sempre conviveu com o problema das antinomias e com as diversas técnicas con-cebidas para superá-las. Os critérios temporal, hierárquico e da especialidade continuam a ser de grande utilidade e dão conta de boa parte dos problemas envolvendo conflitos normativos, aplicando-se não apenas à ordem infraconsti-tucional", mas também à constitucional". Em outra fren-

44 BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico, 1997, p. 71 e SS..

45 Como se sabe, as regras contidas no art. 100 da Constituição — disciplina geral dos precatórios — e no art. 33 do ADCT — que formula regra especial nessa mesma matéria — convivem apenas por conta da especialidade de uma em relação à outra. O mesmo se dá com o art. 15, 111 — regra geral quanto aos efeitos de condenação criminal sobre os direitos políticos — e o art. 55, VI e § 2° — que cria regra especial quando se trate de deputado federal ou senador. Emendas constitucionais revogam o texto original da Carta (quando isso seja possível) e conflitos entre as disposições antigas e as novas são resolvidos pelo critério temporal. Por fim, se uma emenda pretende alterar alguma das chamadas cláusulas pétreas, uma manifestação específica do critério hierárquico impedirá a iniciativa, já que não se admite alteração tendendo a abolir o que esteja contido em dispositivos que desfrutem desse status.

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te, os elementos clássicos de interpretação", especialmen-te o sistemático e o teleológico, também são meios herme-nêuticos empregados para adequar o sentido do texto à sua finalidade e evitar incongruências e até mesmo antinomias. Por meio desses elementos, é possível chegar a interpreta-ções extensivas ou restritivas, desenvolver raciocínios ana-lógicos, de tal forma que eventuais conflitos sejam supera-dos.

Ou seja: o problema da colisão normativa (antinomia) não é novo e, muito antes que se cogitasse formalmente da técnica da ponderação, a hermenêutica jurídica já havia de-senvolvido mecanismos variados para solucioná-lo. Uma primeira crítica à idéia de que ponderação vem a ser a téc-nica empregada para a solução de qualquer conflito norma-tivo consiste exatamente nisto: ou bem todas essas técnicas tradicionais de interpretação se transformaram subitamen-te em ponderação ou a concepção descrita acerca desta última é excessivamente abrangente.

A evidência de que a ponderação não se confunde com as fórmulas hermenêuticas tradicionais para a solução de antinomias coloca, porém, urna nova questão: em que a ponderação se particulariza, comparada com os critérios da especialidade, hierárquico ou temporal e com as demais técnicas convencionais de interpretação? A pergunta é fun-damental e tem na verdade duas respostas: há uma distin-ção metodológica entre a ponderação e essas outras técni-cas e há também uma distinção material entre os conflitos normativos de que elas se ocupam. Na verdade, a distinção material provoca, de certa forma, a metodológica. Explica-se melhor.

46 Sobre os elementos clássicos de interpretação, v. BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição, 2003, p. 124 e ss..

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-.7,11111Prr.

Todos os elementos de interpretação tradicionais refe-ridos acima operam, em última análise, sob a lógica da sub-sunção, que continua a ser a lógica ordinária de aplicação silogística do direito. O raciocínio subsuntivo aplicado ao direito pode ser descrito simplificadamente nos seguintes termos: em primeiro lugar, identifica-se uma premissa maior, composta por um enunciado normativo ou por um conjunto deles. A premissa maior incide sobre uma premis-sa menor (o conjunto de fatos relevantes na hipótese), e desse encontro entre as premissas maior e menor produz-se uma conseqüência: a aplicação de uma norma específica ao caso, extraída ou construída a partir da premissa maior". As técnicas tradicionais de solução de antinomia e a aplicação dos elementos sistemático e teleológico, dentre outras fórmulas hermenêuticas", pretendem exatamente

47 Não cabe aqui aprofundar o tema, mas fica o registro de que o processo de subsunção jurídica está longe de ser simples e unívoco. A seleção da premissa maior aplicável, a identificação dos fatos relevantes e a definição da conseqüência que se deve extrair da premissa maior são questões que se interligam e podem envolver muitas complexidades, V. REALE, Miguel. Lições preliminares de direito, 1999, p. 303: "Na realidade, porém, as coisas são bem mais complexas, implicando uma série de atos de caráter lógico e axiológico, a começar pela determinação prévia da norma aplicável à espécie, dentre as várias normas possíveis, o que desde logo exige uma referência preliminar ao elemento fático. (...) Como se vê, a norma não fica antes, nem o fato vem depois no raciocínio do juiz, pois este não raro vai da norma ao fato e vice-versa, cotejando-os e aferindo-os repetidas vezes até formar a sua convicção jurídica, raiz de sua decisão. (...) Donde podemos concluir que o ato de subordinação ou subsunção do fato à norma não é um ato reflexo e passivo, mas antes um ato de participação criadora do juiz, com a sua sensibilidade e tato, sua intuição e prudência, operando a norma como substrato condicionador de suas indagações teóricas e técnicas." 48 Sobre elementos específicos de interpretação constitucional (afora a ponderação), v. BARROSO, Luís Roberto e BARCELLOS, Ana Paula de. "O começo da história. A nova interpretação constitucional e o papel dos

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superar a antinomia, afastar a incidência de outras possibi-lidades normativas e isolar uma única premissa maior, para que a subsunção possa ter início.

Do ponto de vista metodológico, porém, a ponderação é exatamente a alternativa à subsunção", quando não for possível reduzir o conflito normativo à incidência de uma

princípios no direito brasileiro". In: BARROSO, Luís Roberto (organizador). A nova interpretação constitucional. Ponderação, direitos fundamentais e relações privadas, 2003, pp. 327 a 379. 49 ALEXY, Robert. On Balancing and Subsumption. A Structural Comparison, Ratio Juris, vol. 16, n° 4, 2003, p. 434: "It is easy to see that the application of the law is not exhausted by a deduction of this kind. There are two reasons for this. The first is that it is always possible that other norm, requiring another solution, is applicable. If this is the case, the question of precedence arises. The answer to this question may involve balancing, but it must not do so. Oftenmeta-rules like lex superior derogat legi inferiori, lex posterior derogat legi priori, or lex specialis derogat legi generali are applicable. In order to arrive at a solution, a second subsumption has to be performed under such a meta-rule. One might call this second subsumption 'meta-subsumption'. S o long as conflicts of norms are resolved by meta-subsumption, we remam n within the realm of subsumption. As soon as we resort, however, to balancing to resolve the conflict, we shift over from subsumption at the first levei to balancing at the second levei." Isso não significa que o processo de ponderação não empregue em determinados momentos o raciocínio subsuntivo, como destaca SANCH1S, Luis Prieto. "Neoconstitucionalismo y ponderación judicial". In: CARBONELL, Miguel (organizador). Neoconstitucionalimo(s), 2003, p. 145: "Pero si antes de ponderar es preciso de alguna manera subsumir, mostrar que el caso individual que examinamos forma parte dei universo de casos en el que resultan relevantes dos principios en pugna, despirás de ponderar creo que aparece de nuevo la exigencia de subsunción. Y ello es así porque, como se verá, la ponderación se endereza a la formulación de una regia, de una norma en la que, reuniendo en cuenta las circunstancias dei caso, se elimina o posterga uno de los principios para ceder el paso a otro que, superada la antinomia, opera como una regia y, por tanto, como la premisa normativa de una subsunción." (grifos no original).

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única premissa maior. Isso é o que ocorre quando há diver-sas premissas maiores igualmente válidas e vigentes, de mesma hierarquia e que indicam soluções diversas e con-traditórias. Nesse contexto, a subsunção não tem elemen-tos para produzir uma conclusão que seja capaz de conside-rar todos os elementos normativos pertinentes: sua lógica de funcionamento tentará isolar uma única premissa maior para o casos°.

Isso é o que se passa, e.g., quando várias disposições constitucionais originárias incidem sobre uma mesma hipó-tese, indicando soluções diversas: todas foram editadas ao mesmo momento, dispõem da mesma hierarquia e na maior parte dos casos inexiste qualquer relação de genera-lidade/especialidade entre elas. Ademais, não é possível simplesmente escolher uma disposição constitucional em detrimento das demais: o princípio da unidade, pelo qual todas as disposições constitucionais têm mesma hierarquia e devem ser interpretadas de maneira harmônica, não ad-mite essa soluçãom.

Situação semelhante ocorre com muitos enunciados in-fraconstitucionais que, refletindo os conflitos internos da Constituição, encontram suporte lógico e axiológico em algumas disposições constitucionais, mas parecem afrontar outras. Também aqui, a verificação da constitucionalidade

50 TORRE, Maxim° La. Theories of Legal Argumentation and Concepts of Law. An Approximation, Ratio Juris, vol. 14, n° 4, 2002, p. 380: "But the decisive problem that explains why the syllogistic model is (theoretically) in crisis is that even where a clear provision is available, appropriate to the case under consideration, and the factual elements have been adequately classified and tested, it is not always possible to reach a single correct answer." 51 Esse é o entendimento consolidado no Brasil. Veja-se, por todos, BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição, 2003, p. 196 e ss.

da ordem infraconstitucional não poderá ser resolvida por uma mera subsunção, já que várias disposições constitucio-nais devem funcionar como parâmetro para esse controle e cada uma delas parece indicar uma conclusão diversa acer-ca da validade do dispositivo legal. Pois berri: a ponderação pretende ser exatamente a técnica que conseguirá, a partir de uma lógica diversa da subsuntiva, decidir esses conflitos considerando todas as premissas maiores pertinentes.

Essa, portanto, é a primeira distinção entre a pondera-ção e as técnicas tradicionais de solução de antinomias: estas estão ligadas à subsunção, ao passo que a ponderação é uma alternativa a ela.

A segunda distinção, como referido, relaciona-se com a natureza dos conflitos normativos afinal superados pelas técnicas tradicionais e daqueles que persistem e exigem o emprego da ponderação. Embora essa forma de sistemati-zar os conflitos normativos em dois grupos não seja rigorosa e, possivelmente, não se aplique a todos os casos, ela ajuda a compreender parte importante do fenômeno examinado.

As antinomias com as quais a hermenêutica tem lidado tradicionalmente não envolvem um conflito axiológico im-portante ou uma disputa entre opções políticas, isto é, não se cuida de uma oposição de elementos igualmente rele-vantes para a ordem jurídica. Trata-se, em geral, apenas de um conflito lógico entre enunciados ou ainda de um texto que veiculou de forma não completamente satisfatória o que se pretendia. Os conhecidos conflitos aparentes entre os arts. 100 do corpo permanente da Carta de 1988 e o 33 do ADCT, bem como entre ao arts. 15, III, e 55, VI, § 2°, ambos solucionados pelo critério da especialidade, exem-plificam o ponto.

Nesse contexto, não há propriamente um conflito en-tre valores ou entre opções políticas fundamentais. No má-ximo, é possível visualizar uma resistência às interpreta-

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ções menos literais, já que, ao se afastarem do sentido mais evidente do texto, elas podem representar um risco para a segurança jurídica e a previsibilidade. Essa tensão, entre-tanto, é própria de toda e qualquer interpretação da lingua-gem e dentro de certos limites não revela um conflito valo-rativo autônomo. Em situações específicas, por outro lado, essa tensão pode dar origem a uma colisão aberta de valo-res, como se verá mais adiante.

Diversamente, os conflitos que não podem ser supera-dos pelas técnicas tradicionais refletem em geral um con-fronto entre valores ou opções políticas decorrentes da própria Constituição como um todo e dos princípios por ela previstos em particular". Conflitos entre liberdade de expressão e direito à honra e à intimidade, entre proprieda-de e sua função social, entre proteção do meio ambiente e direito à moradia, dentre muitos outros, revelam tensões entre elementos consagrados pelo próprio constituinte.

Ora, além de as técnicas tradicionais de solução de an-tinomias não serem capazes de resolver essa espécie de conflito, também os elementos clássicos de interpretação — que, ao delinearem o sentido dos elementos normativos em tensão, poderiam superar o impasse — têm aplicação limitada. É fácil entender a razão. Como se acaba de regis-trar, a definição do próprio sentido e alcance dos enuncia-dos normativos nesses casos depende de escolhas entre va-lores ou opções políticas em confronto, todos refletidos de forma mais ou menos intensa no sistema constitucional. Ocorre que, em geral, os critérios para essas escolhas não podem ser extraídos facilmente do texto ou do sistema.

52 PECZENIK, Aleksander. On Law and Reason, 1989, p. 19: "A 'hard' case, on the other hand, 'presents a moral dilemma, or at least a difficult moral determination' (Morawetz, 1980, 90)."

Qual o fundamento para decidir entre eles, então? O crité-rio teleológico tem pouca utilidade, já 'que não é possível apurar uma única finalidade com clareza. Os demais ele-mentos, como o lógico e o sistemático, igualmente enfren-tam problemas: o mesmo texto e o mesmo sistema forne-cem elementos que podem sustentar diferentes conclu-sões. Diante de hipóteses assim, a subsunção é insuficiente e a ponderação parece ser a única forma de superar o con-flito e chegar a uma decisão.

A distinção material entre os conflitos reforça ainda mais a inadequação da idéia que visualiza a ponderação como uma técnica genérica para solução de qualquer con-flito normativo. Não apenas a afirmação é imprecisa, como, pior que isso, banaliza o uso da ponderação, cujo emprego deve ser reservado apenas para as hipóteses de insuficiên-cia da subsunção, que continua a ser a forma ordinária de aplicação dos enunciados normativos.

Cabe agora examinar o primeiro conceito acerca da ponderação exposto acima: o que a identifica como a forma de aplicação dos princípios. Essa concepção não parece to-talmente adequada por algumas razões. De fato, a maioria absoluta dos conflitos normativos que exige ponderação envolve princípios, já que boa parte deles ocupa-se exata-mente de veicular valores ou opções e fins políticos. Na verdade, a incidência simultânea do conceito de pondera-ção proposto neste estudo — técnica jurídica de solução de conflitos normativos que envolvem valores ou opções políti-cas em tensão, insuperáveis pelas formas hermenêuticas tra-dicionais — e daquele que visualiza a ponderação como forma de aplicação dos princípios certamente produzirá amplas áreas de superposição. Há, porém, duas dificulda-des que não recomendam a utilização dessa última idéia.

Em primeiro lugar, os conflitos normativos não resolvi-dos pela subsunção podem, ainda que em caráter excepcio-

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nal, envolver regras". A ponderação, nesses casos, não pode ser reduzida a uma forma de aplicar princípios; trata-se na verdade de uma técnica de decisão autônoma que, embora muitas vezes envolva princípios, não se vincula a eles de maneira exclusivas'. Além disso, como se verá adiante, há princípios que não funcionam completa ou ne-cessariamente sob a lógica da ponderação (seja porque dis-põem de núcleo com natureza de regra, seja porque têm estrutura e funcionamento diversos). O ponto será retoma-do adiante.

Por fim, resta expor as razões pelas quais tampouco se adotou a terceira forma identificada acima de entender a ponderação: aquela que a descreve como elemento ineren-te e indistinto da atividade de interpretação e argumenta-ção jurídicas, já que todo o discurso racional, em última análise, depende da lógica ponderativa, por meio da qual toda sorte de argumentos, inclusive os jurídicos, pode ser avaliada.

A investigação do discurso racional em geral, e da argu-mentação jurídica em particular, é da maior relevância para o direito contemporâneo, e a discussão sobre a ponderação normativa em especial — sendo esta a que se ocupa direta-mente de elementos normativos — é apenas uma parcela de um objeto de estudo muito mais amplo. Compreender a ponderação neste sentido amplíssimo exigiria um exame aprofundado da teoria do discurso e da argumentação, mas não é esse o propósito deste estudo. Aqui se pretende ana-

53 O tema será examinado adiante, no Capítulo VIII.2. 54 Nesse sentido, RODRIGUEZ DE SANTIAGO, José Maria. La ponderación de bienes e intereses en el derecho administrativo, 2000, p. 9; e ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios, 2003, p. 35: "Com efeito, a ponderação não é método privativo de aplicação dos princípios."

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usar apenas um elemento desse universo: a ponderação propriamente dita de enunciados e normas jurídicas.

Por esta razão, sob uma perspectiva estritamente jurídi-ca e operacional, não parece muito útil trabalhar com uma noção tão ampla de ponderação, dentro da qual o problema da ponderação normativa — especialmente grave para a prática jurídica — ficaria diluído. É certo que o direito sempre envolve ponderação no sentido comum do termo: o legislador considera vantagens e desvantagens envolvidas em determinada questão e decide por um caminho. Nesse sentido, é perfeitamente possível afirmar que em toda de-cisão judicial há alguma ponderação: ao juiz são apresenta-das razões contrastantes, ambas postulando primazia, e cabe a ele decidir por uma delas ou por uma solução inter-mediária, na medida em que isso seja possível. Isto é: o julgador deverá "levar em conta", "considerar" as diferen-tes razões das partes antes de decidir. A ponderação nor-mativa propriamente dita, porém, apresenta características particulares, tem importância específica para a dogmática jurídica e merece, por isso, um estudo próprio.

Ademais, como se aprofundará a seguir, por conta da singularidade das antinomias que lhe cabe solucionar, a ponderação normativa acaba por conferir ao intérprete po-deres especialmente amplos. A afirmação genérica de que toda interpretação envolve uma ponderação (quando a ri-gor o termo ponderação estaria sendo usado em sentido amplo, e não para designar uma técnica específica de solu-ção de conflitos normativos) poderia autorizar o operador jurídico a lançar mão desses poderes em qualquer exercício da atividade interpretativa, ainda que não estivessem pre-sentes as circunstâncias que os justificam".

55 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição, 1998, pp. 1161 e 1162: "Em muitas propostas

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A despeito das críticas apresentadas, a verdade é que é possível denominar e classificar os fenômenos jurídicos como se prefira, em função da utilidade e da clareza visua-lizadas em uma ou outra fórmula. O importante realmente é que essas fórmulas sejam capazes de comunicar os con-teúdos pretendidos aos diferentes usuários dessas conven-ções. Pois bem: considerando os dois objetivos centrais deste estudo — (i) propor uma ordenação que confira maior juridicidade e racionalidade à ponderação enquanto técnica para solução de conflitos normativos e (ii) propor parâmetros capazes de orientar o emprego dessa técnica —, a noção de ponderação inicialmente adotada parece sa-tisfatória. Desse modo, para os fins deste estudo, e à guisa de conclusão deste tópico, a ponderação será compreendi-da e identificada como urna técnica jurídica de solução de conflitos normativos que envolvem valores ou opções polí-ticas em tensão, insuperáveis pelas formas hermenêuticas tradicionais.

metodológicas a ponderação é apenas um elemento do procedimento da interpretação/aplicação de normas conducente à atribuição de um significado normativo e à elaboração de uma norma de decisão. Aqui o balancing process vai recortar-se em termos autônomos para dar relevo à idéia de que no momento de ponderação está em causa não tanto atribuir um significado normativo ao texto da norma, mas sim equilibrar e ordenar bens conflituantes (ou, pelo menos, em relação de tensão) num determinado caso. Neste sentido, o balanceamento de bens situa-se a jusante da interpretação. A actividade interpretativa começa por uma reconstrução e qualificação dos interesses ou bens conflituantes procurando, em seguida atribuir um sentido aos textos normativos e aplicar. Por sua vez a ponderação visa elaborar critérios de ordenação para, em face dos dados normativos e factuais, obter a solução justa para o conflito de bens."

1.2. Direito, racionalidade e justificação: algumas notas

O tópico anterior teve por fim identificar o objeto prin-cipal de investigação deste estudo: a ponderação. Além das notas já feitas, e antes de prosseguir, parece importante também justificar os objetivos do estudo. Por que, afinal, é necessário ordenar metodologicamente a técnica da ponde-ração e formular parâmetros que orientem e limitem o seu emprego pelo intérprete? Embora a resposta a essa pergun-ta pareça bastante óbvia e quase intuitiva, há algumas observações importantes a fazer sobre o ponto.

Na verdade, e como já se mencionou, o objeto deste trabalho insere-se em uma discussão muito mais ampla, que envolve o tema da racionalidade e da justificação do direito e das decisões jurídicas, sobretudo as judiciais56. O tema é cada vez mais relevante no Brasil, pelo menos por duas razões. Em primeiro lugar, os sistemas jurídicos con-temporâneos, e em particular o brasileiro, conferem ao in-térprete um espaço de atuação e criação cada vez mais am-plo. Retomando o que se registrou na introdução, a utiliza-ção intensiva pelos enunciados constitucionais e legais de princípios e conceitos abertos ou indeterminados, dentre outros mecanismos, transfere ao Judiciário contemporâneo um amplo poder na definição do que é, afinal, o direito. Sob pena de serem acusadas de puramente arbitrárias e ilegítimas em um Estado democrático de direito57, as esco-

56 Os temas da teoria da argumentação serão abordados apenas quando isso seja necessário (e à medida que seja necessário) aos propósitos do estudo. Como já referido, o objetivo do estudo é apresentar uma proposta operacional para a técnica da ponderação e seria impossível atingir essa meta se o estudo pretendesse aprofundar as complexas questões da teoria da argumentação.

57 Para uma discussão mais profunda sobre o conceito de estado democrático de direito, v. SILVA, José Afonso da. O Estado democrático de direito, Jurisprudência Mineira n°101, 1988, p. 1 e ss..

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lhas do intérprete nesse ambiente demandam justifica- tivas".

Por outro lado, e em segundo lugar, o processo de rede- mocratização do País, nos últimos vinte anos, a reorganiza-ção da sociedade civil e a liberdade de imprensa passaram a submeter o Judiciário à crítica a que estão sujeitos todos os poderes estatais. Obviamente, a necessidade de o agente público demonstrar a legitimidade de seus atos cresce à medida que haja mais controle".

58 LA TORRE, Maximo. Theories of Legal Argumentation and Concepts of Law. An Approximation, Ratio Juris, vol. 14, n°4, 2002, p. 382: "It is today the judge that is put forward as the new centre of the legal system, no longer the legislative power, like it or not. And in the judge's view central importance inevitably attaches to the procedure by which the decision is arrived at. Here, the law is not enough, other criteria of choice have to be resorted to."; e AARNIO, Aulis. Lo racional como razonable, 1991, p. 29: "Corno se ha mencionado, el decisor ya no puede apoyarse en una mera autoridad formal. En una sociedad moderna, la gente exige no solo decisiones dotadas de autoridad sino que pide razones. Esto vale también para la administración de justicia. La responsabilidad dei juez se ha convertido cada vez más en la responsabilidad de justificar sus decisiones. La base para el uso dei poder por parte dei juez reside en la aceptabilidad de sus decisiones y no en la posición formal de poder que pueda tener. En este sentido, la responsabilidad de ofrecer justificación es, especificamente, una responsabilidad de maximizar el control público de la decisión. Así pues, la presentación de la justificación es siempre también un medio para asegurar, sobre una base racional, la existencia de la certeza jurídica en la sociedad." 59 MAIA, Antônio Cavalcanti. A importância da dimensão argumentativa à compreensão da práxis jurídica contemporânea, Revista Trimestral de Direito Público n° 8, 2001, pp. 280 e 281: "Eis que a reconstitucionalização implicou nítido alargamento nas funções dos juízes e uma maior participação do Judiciário nos problemas gerais da vida brasileira. Deste modo, cabe à comunidade dos profissionais do Direito uma reflexão mais profunda acerca destas questões, tendo em vista que a 'nova retórica' oferece novas possibilidades de reflexões no mundo do Direito e postula uma integração maior entre a produção

Além dessas razões gerais, a necessidade de racionalida-de e justificação torna-se ainda mais acentuada quando se trate de decisão que emprega a técnica da ponderação. Como exposto no tópico anterior, a técnica se destina a solucionar antinomias que, na verdade, refletem conflitos muito mais complexos, envolvendo valores e diferentes op-ções políticas. Neste contexto, as decisões jurídicas não são tomadas com base em uma subsunção simples ou facilmen-te perceptível, já que os critérios utilizados para definir a solução em cada caso não estão no texto jurídico. Sua legi-timidade, portanto, não decorre de forma evidente de enunciados normativos. Em suma: com mais razão que a existente relativamente a todas as decisões judiciais, a legi-timidade daquelas que se valem da técnica da ponderação depende fortemente de sua racionalidade e capacidade de justificação60 . Esses dois elementos — racionalidade e jus-tificação — exigem um breve comentário.

doutrinário-acadêmica e o quotidiano do juiz e do advogado. Ademais, nos últimos anos tem-se freqüentemente sustentado uma fiscalização maior da atividade do Judiciário, cogitando-se por vezes o controle externo deste poder. Trata-se de um debate difícil, complexo e delicado. (...) Entretanto, pode-se apontar urna outra forma — diferente daquela do controle externo — de procurar garantir mecanismos de fiscalização da sociedade e da comunidade dos operadores do Direito em relação ao Judiciário. Tal se daria, basicamente, a partir de uma outra perspectiva, situada numa dimensão metodológica, através de um exame mais apurado da fundamentação das decisões, à luz de todas essas cogitações de natureza teórica abertas pela démarche tópica. Neste quadro atual, onde os magistrados dispõem de uma área maior ainda de liberdade do que a tradicionalmente garantida em nossa .história jurídica, impõe-se uma atenção maior à questão concernente as justificativas pelas quais os juizes chegam às decisões que dirimem as lides a eles submetidas." 60 PECZENIK, Aleksander. On Lato and Reason, 1989, p. 31: "Why should value judgments, based on weighing and balancing of various considerations, play such a great role in legal reasoning, particularly in

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De forma simples, é possível dizer que a racionalidade na esfera das decisões jurídicas está ligada a dois elemen-tos: (i) a capacidade de demonstrar conexão com o sistema jurídico61 e (ii) a racionalidade propriamente dita da argu-

legal interpretation? The answer is based on the fact that the interpretation and application of law is to some extent rational and, for that reason, promotes legal certainty in material sense, that is, the optimal compromise between predictability of legal decisions and their acceptability in view of other moral considerations." (grifos no original); e AARNIO, Aulis. La tesis de la única respuesta correcta y el principio regulativo dei razonamiento jurídico, Revista Doxa n° 8, 1990, p. 25 e ss.. Sobre a especial necessidade de racionalidade e justificação da jurisdição constitucional, v. VILLALÓN, Pedro Cruz. "Legitimidade da justiça constitucional e princípio da maioria". In: Legitimidade e legitimação da justiça constitucional — Colóquio no 100 aniversário do Tribunal

Constitucional, 1995, p. 88; GARCIA DE ENTERRIA, Eduardo. La constitución como norma y el tribunal constitucional, 1983, pp. 234 a 236: "Es precisamente esa calificación estrictamente judicial, aplicada a una materia tan trascendental y tan sensible para el cuerpo político y social, la que exige de manera particular a las sentencias constitucionales intensificar la exigencia común de la motivación de todo fallo judicial, la de presentarse como principie, justificada de una manera detallada y explícita en principios que trasciendan la apreciación singular dei caso, principios que aqui han de ser precisamente los expresados en la Constitucion o deducibles de los mismos con claridad. (...) Se trata, en definitiva, en la expresiva dicotomia dei libro de Howard Bali, de presentar ai pueblo las decisiones constitucionales con un producto de la artesanía jurídica, a partir de los principios constitucionales, y no como ukases, como decisiones de poder que solo podrían apoyarse en las inclinaciones personales de los jueces constitucionales, inclinaciones irrelevantes para el pueblo y que carecen de cualquier legitimidad para erigirse em motivos últimos de dichas decisiones."; e TAVARES, André Ramos. Tribunal e jurisdição constitucional, 1998, p. 40 e ss..

61 Essa vinculação pode assumir variadas formas, admitindo modalidades mais ou menos diretas. A existência de disposições implícitas, construídas a partir do sistema, e de princípios gerais do direito não é uma novidade.

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mentação62, em especial nas hipóteses em que existam vá-rias conexões possíveis — e diferentes — com o sistema jurídico63. Explica-se melhor.

De forma esquemática, em um Estado de direito, repu-blicano e democrático, no qual se adota como pressuposto a igualdade de todos, a imperatividade do ordenamento jurídico decorre de contar, em última análise, com o respal-do de uma decisão majoritária, representada pela lei e/ou pela Constituição. Isto é: apenas uma decisão tomada em bases majoritárias, com a participação direta ou indireta das pessoas, pode ser considerada legitimamente obrigató-ria e capaz de desencadear os mecanismos de coerção do Estado. Nesse mesmo sentido, e deixando de lado outras considerações, a legitimidade da atuação judicial decorre. igualmente de sua vinculação a decisões majoritárias.

Superou-se há muito, é certo, a ficção de que o juiz seria um agente neutro de execução de subsunções lógicas,

62 PECZENIK, Aleksander. On Law and Reason, 1989, pp. 188 e 189. O autor registra que, além da coerência com o sistema jurídico (o que envolve inclusive a criação de parâmetros), é preciso que também o processo de argumentação e decisão seja racional e coerente. Salvo por algumas observações pontuais, este estudo ocupa-se apenas da coerência sistemática e não da argumentativa. 63 O que qualifica uma argumentação ou decisão jurídicas como racionais? Esta é uma das questões mais importantes e complexas da teoria da argumentação. Alelcsander Peczenik, por exemplo, visualiza na racionalidade três exigências principais. PECZENIK, Aleksander. On Law and Reason, 1989, p. 119: "I have also put forward three different demanda of rationality, that is, the demand that the conclusion is logically and linguistically valid (L-rationality), follows from a highly coherent set of statements (S-rationality), and would not be refuted in a perfect discourse (D-rationality).". Veja-se também TEIXEIRA, João Paulo Aliam. Crise moderna e racionalidade argumentativa no direito: o modelo de Aulis Aarnio, Revista de Informação Legislativa n° 154, 2002, pp. 213 a 227.

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não lhe cabendo qualquer papel criativo ou inovador. Se essa crença já era ilusória no século XIX e na primeira me-tade do século XX, que se dirá nos dias de hoje, tendo em conta a abertura dos sistemas jurídicos contemporâneos? A visualização mais precisa do real papel do aplicador do di-reito, no entanto, não deve conduzir o debate ao outro ex-tremo. Continua a ser vedado ao juiz, em um Estado demo-crático de direito, inovar na ordem jurídica sem fundamen-to majoritário, sob pena de usurpar a competência própria dos demais poderes estatais.

Nesse sentido, portanto, a vinculação da decisão judi-cial ao sistema jurídico em vigor é um primeiro elemento de racionalidade; ao demonstrar essa vinculação de forma consistente64, a decisão judicial se beneficia da presumida racionalidade do sistema jurídico e, sobretudo, da contida em seu elemento central: a Constituição".

Muitas vezes, porém, o próprio sistema fornece funda-mentos para diferentes decisões, e técnicas interpretativas diversas podem conduzir a resultados incompatíveis. Isto é: nem sempre o sistema indicará uma solução única e in-disputada e, nessas circunstâncias, não bastará demonstrar alguma conexão com o sistema jurídico: é necessário de-monstrar a racionalidade propriamente dita da conexão es-colhida. Será necessário responder racionalmente a ques-

64 PECZENIK, Aleksander. On Law and Reason, 1989, p. 177: "A legal justification which neither explicitly nor implicitly refers to a system is an ad-hoc justification. Neither universal nor general, it would not fulfill elementary demands of justice (MacCormick 1984, 243). Justice requires that legal justification is embedded in a fairly coherent system." (grifos no original). 65 É claro que sob uma perspectiva filosófica ou sob a ótica da teoria do discurso é possível questionar a racionalidade do sistema jurídico e da própria Constituição. Essa discussão, porém, está fora do escopo deste estudo.

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tões como as seguintes: Por que determinados enunciados estão sendo considerados e outros não? Por que uma deter-minada solução deve ser adotada e não outra, igualmente respaldada por fundamento normativo?

A justificação, por sua vez, está associada à necessidade de explicitar as razões pelas quais uma decisão foi tomada dentre outras que seriam possíveis. Na verdade, cuida-se de transformar os diferentes processos lógicos internos do aplicador, que o conduziram a uma determinada conclusão, em linguagem compreensível para a audiência". Há aqui um ponto importante que é muitas vezes negligenciado. Em um Estado republicano, no qual — repita-se — todos são iguais, ninguém tem o direito de exercer poder político por seus méritos pessoais, excepcional capacidade ou sabe-doria. Todo aquele que exerce poder político o faz na qua-lidade de agente delegado da coletividade e deve a ela satisfações por seus atos". Esse raciocínio, bastante singelo

66 É freqüente que o termo justificação seja compreendido como englobando não apenas a obrigação de apresentar a motivação das decisões, mas também de fornecer uma motivação consistente, racional e jurídica. Apenas para que fosse mais fácil visualizar os dois momentos — a apresentação da justificativa e o juízo acerca de seu conteúdo — é que se fez a distinção no texto, de modo que justificação acabou por ser associada apenas à prestação de contas por parte do intérprete. 67 BARROSO, Luis Roberto. "Promoção de magistrado por merecimento e recusa de promoção por antigüidade. Dever de voto aberto e motivado". In: PELLEGRINA, Maria Aparecida e SILVA, Jane G ranzoto Torres da (organizadoras). Constitucionalismo social — Estudos em homenagem ao Ministro Marco Aurélio Mendes de Faria Mello, 2003, pp. 194 e 195: "Assinale-se que em um Estado democrático de direito, todo poder é representativo, no sentido de que é exercido em nome do povo e deve visar à promoção do bem comum. O fato de os agentes públicos investidos de função judicial não serem escolhidos por meio de sufrágio popular não infirma a premissa estabelecida. Juízes não são eleitos por uma opção do constituinte, que reservou parcela do poder

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do ponto de vista da teoria democrática, também se aplica ao Judiciário. O juiz exerce poder político ao desempenhar uma das atividades próprias do Estado: a jurisdição. E, por-tanto, um agente delegado da sociedade, a quem deve con-tas de sua atuação. Note-se que a decisão judicial não é mero conselho: ela poderá ser imposta pela força ao jurisdi-cionado, se necessário, em uma manifestação típica do po-der de império estatal. Parece evidente que o cidadão tem o direito de saber por que um seu agente delegado decidiu em determinado sentido e não em outro".

Não se ignora o sem-número de obstáculos enfrentados pelo juiz para cumprir o dever de motivar adequadamente

político para ser exercida com base em critérios técnicos, sem submissão aos mecanismos majoritários. Aliás, o Judiciário desempenha, muitas vezes, uma função contra-majoritária, invalidando atos dos outros Poderes e protegendo os direitos fundamentais contra o abuso das maiorias políticas. Mas o constituinte não dispensou os órgãos judiciais de um conjunto importante de controles próprios do regime democrático". V. também PECZENIK, Alelcsander. On Law and Reason, 1989, p. 41: "Thus, democracy demands a legal decision making which harmonizes respect for both the wording of the law and its preparatory materiais and, on the other hand, moral rights and values, including freedom and equality. 1t also demands that the decisions are justified as clearly as possible." 68 AARNIO, Aulis. Reason and Authority, 1997, p. 193: "This is, thus, due to the fact that one of the most important properties of a mature democracy is openness. It makes the externai control of the decision-making activity possible. This holds true also as to the adjudication. The independence of the courts of justice does not mean that they are completely outside of the democratic control. The division of power guarantees the independence of the courts only in relation to the other power centres, especially to the executive power. On the other hand, the courts of justice are a part of society and of its democratic order. Also the courts must thus, in an open society, be under a societal control used by people. The only means of this control is the demand that the courts really argue for their decisions.".

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(número reduzido de juízes, grande quantidade de deman-das repetidas etc."), e igualmente as diversas propostas hoje discutidas para tentar superar esses obstáculos. O que importa destacar aqui é que o dever de motivar não decorre apenas de uma regra formal contida no texto constitucional (art. 93, IX) ou de uma exigência do direito de defesa das partes. Ele está vinculado à própria necessidade republica-na de justificação das decisões do Poder Público. Quando o juiz emprega a técnica da ponderação, essa necessidade é potencializada: se há uma variedade de soluções possíveis nesses casos, é preciso demonstrar o motivo de se escolher uma delas em detrimento das demaism.

69 Sobre esse tema, acaba de ser divulgado pelo Ministério da Justiça interessante estudo estatístico denominado Diagnóstico do Poder Judiciário, Ministério da Justiça, Brasil, 2004. De acordo com o levantamento, o país tem 7,7 juízes por 10.000 habitantes e no ano de 2003 foram distribuídos 17,3 milhões de processos ao Judiciário brasileiro. Os problemas estruturais do Judiciário brasileiro não constituem propriamente uma novidade. Há alguns anos são feitas pesquisas sobre o tema, ainda que não tão abrangentes, como observa BONAVIDES, Paulo. Do pais constitucional ao país neocolonial, 2001, p. 80 e ss. 70 Examinando a mesma questão sob uma perspectiva diversa e muito interessante, v. DWORKIN, Ronald. The Judge's New Role: Should Personal Convictions Cotou?, Joumal of Intemational Criminal Justice I, 2003, p. 11: "The new role played by judges — wielding power in service of conscience — was once played by priests and then later by politicians. (...) Priests ruled by divination from the occult (...) Democratic politicians now rule, not by the instinctive wisdom and fairness celebrated in the old parliamentary model, but by representation, which means by compromises, trade-offs and political deals that do not even aim at coherence. Neither priests nor politicians have a responsibility of justification in principie. (...) But that responsibility for articulation is the nerve of adjudication. Judges are supposed to do nothing that they cannot justify in principie, and to appeal Only to principies that they thereby undertake to respect in other contexts as well. (...) Government by

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Em suma: em um Estado de direito, republicano e de-mocrático, as decisões judiciais devem vincular-se ao siste-ma jurídico da forma mais racional e consistente possível, e o processo de escolhas que conduz a essa vinculação deve ser explicitamente demonstrado. Aprimorar a consistência metodológica da técnica da ponderação e construir pai-à--metros jurídicos capazes de orientar seu emprego são es-forços dogmáticos que podem contribuir, em primeiro lu-gar, para que a vinculação ao sistema das decisões que em-pregam essa técnica seja juridicamente mais consistente e mais racional. Em segundo lugar, e aqui apenas de forma indireta, a ordenação objetiva e clara das etapas a serem percorridas pelo intérprete no uso da ponderação poderá facilitar a demonstração pública do processo decisório no momento da motivação.

adjudication is newly appealing for a different reason as well: it seems better suited that the alternatives to the cultural and ethical pluralism that is so marked in modern political communities and associations. (...) The church as Caesar is no longer an option: we are too divided about religion, and too united in our conviction that religion and State should be separate, to permit that. We lcnow that politicians aim mainly at their next electoral success, and while it is sensible to give officials who have that prime ambition the task of benefiting the majority, it seems less sensible to ask them to be the majority's conscience as well."

II. Examinando as críticas à ponderação

Antes de apresentar uma proposta de ordenação para a técnica da ponderação, anunciada nos tópicos anteriores, é preciso enfrentar um questionamento relevante. Nos últi-mos anos, autores têm formulado críticas contundentes à propriedade da ponderação, à sua utilidade e até mesmo à sua necessidade como ferramenta da hermenêutica jurídi-ca. O exame dessas críticas (objeto deste capítulo) e das opções à ponderação concebidas pela doutrina (objeto do próximo capítulo) não atende apenas a uma necessidade de organização do estudo acadêmico. Na verdade, a despeito de se concluir ao final que a ponderação continua sendo indispensável em diversas hipóteses, o exame das críticas auxilia na identificação de inconsistências da técnica e no esforço para aprimorá-la. Como se verá, a proposta de or-denação exposta no capítulo V absorve e procura superar várias das objeções formuladas contra ,a ponderação, bem como assimila idéias lançadas pelos autores que defendem a substituição da técnica por outras opções hermenêuticas. Volte-se então ao ponto.

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Ao longo das últimas décadas, muitas críticas têm sido formuladas à ponderação. E, embora dirigida de forma ge-ral à ponderação como técnica de decisão jurídica em am-bientes de conflitos normativos, a crítica se torna especial-mente incisiva em duas situações: quando a ponderação envolve direitos fundamentais previstos constitucional-mente e quando se trata da modalidade chamada pelos nor-te-americanos de ad hoc balancingn

De forma simples, o ad hoc balancing descreve a pon-deração levada a cabo pelo juiz no caso concreto, livremen-te, isto é, independentemente de qualquer parâmetro ou standard anterior e abstrato ao qual o aplicador esteja vin-culado. Adiante se voltará a tratar mais detidamente desse fenômeno. Por motivos bastante lógicos, o tema se torna ainda mais controvertido quando a ponderação envolve di-reitos fundamentais. Em muitos países, tais direitos têm status constitucional e, em outros, até constituem cláusu-las pétreas, de sorte que nem mesmo o constituinte deriva-do pode restringi-los (no caso brasileiro, como se sabe, não podem ser aprovadas emendas tendentes a abolir tais direi-tos — art. 60, § 4°, IV). Mesmo nos Estados em que tais disposições não são qualificadas como cláusulas pétreas, a possibilidade de se restringirem por meio de decisões judi-ciais direitos assegurados constitucionalmente desperta al-guma perplexidade.

Nesse contexto, é possível sistematizar as principais críticas à ponderação nas seguintes proposições:

a) A ponderação seria uma técnica inconsistente do ponto de vista metodológico. As noções de balanceamento ou sopesamento são vagas e não veiculam uma idéia clara sobre o conteúdo da técnica. Além disso, não há parâme-

71 Veja-se, por todos, ALEINIKOFF, T. Alexander. Constitutional Law in the Age of Balancing, Yale Law Journal n° 96, 1987, p. 964 e ss..

tros racionais para a ponderação e inexiste um padrão de medida homogêneo e externo aos bens em conflito capaz de pesar de forma consistente a importância de cada um deles". A ausência de parâmetros impede até mesmo que se verifique se uma ponderação levada a cabo é ou não correta".

b) Por conta da inconsistência metodológica, a ponde-ração admite um excessivo subjetivismo na interpretação jurídica e, portanto, enseja arbitrariedade e voluntarismo.

c) A ponderação arruína as conquistas próprias do Esta-do de direito, em especial a contenção do arbítrio por meio da legalidade (enunciados gerais e abstratos) e a segurança jurídica daí decorrente, transmudando o Estado de direito em um "Estado de ponderação'.

72 SERNA, Pedro e TOLLER, Fernando. La interpretación constitucional de los derechos fundamentales. Una alternativa a los conflictos de derechos, 2000, p. 31: "Como explica alguna doctrina, no es posible contrapesar dos bienes sin establecer un tertium comparationis, es decir, sin sefialar un principio, un parámetro con respecto ai c-ual se pueda determinar cuál pesa más." Nesse mesmo sentido, v. ALEINIKOFF, T. Alexander. Constitutional Lato in the Age of Balancing, Yale Law Journal n°96, 1987, p. 943 e ss.. 73 ALEXY, Robert. Constitutional Rights, Balancing and Rationality, Ratio Juris, vol. 16, n° 2, 2003, p. 134 e ss.; HABERMAS, Jurgen. Direito e democracia entre facticidade e validade, vol. I, 2003, p. 241 e ss.; e CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Jurisdição constitucional democratica, 2004, p. 135 e ss.. 74 TORRES, Ricardo Lobo. "A legitimação dos Direitos Humanos e os Princípios da Ponderação e da Razoabilidade". /n: TORRES, Ricardo Lobo (organizador), Legitimação dos Direitos Humanos, 2002, p. 421 e ss.; e NOVAIS, Jorge Reis. As restrições aos direitos fundamentais não expressamente autorizadas pela Constiuição, 2003, p. 640: "O recurso à ponderação de bens no Direito Público e, designadamente, no domínio que aqui nos ocupa exclusivamente, o das restrições aos direitos fundamentais, generalizou-se, nos últimos cinqüenta anos, de uma forma tão avassaladora que pôde ser designada, criticamente, numa

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d) A lógica da ponderação transforma a aplicação do direito em um novo processo político, no qual vantagens e desvantagens serão livremente (re) avaliadas por órgãos que não têm legitimidade para exercer esse ofício, em franca violação ao princípio da separação de poderes.

e) Quando envolve a Constituição, a ponderação acaba por aniquilar a conquista da normatividade de suas disposi-ções, já que dilui a certeza e a previsibilidade que deveriam caracterizá-las, especialmente quando se trate de cláusulas pétreas. A ponderação submete tais disposições ao jogo próprio da política e à imprevisibilidade, ameaçando sobre-tudo os direitos fundamentais".

f) Na maior parte dos casos, o juiz manifestará as convicções comuns à maioria da população acerca dos dife-rentes temas constitucionais. Historicamente, porém, os direitos fundamentais têm previsão constitucional justa-mente para estarem a salvo dos humores das maiorias. Se tais direitos puderem ser livremente submetidos à ponde-ração, na prática eles estarão sendo lançados às maiorias novamente. E nem se tratará de uma maioria política, elei-

caracterização que revela a controvérsia que acompanha esse processo, como determinando uma substituição do Estado de Direito pelo Estado

da ponderação (LEISNER). Impossibilidade de colher da Constituição parâmetros materiais susceptíveis de balizar objectivamente o recurso ao método, subjectivismo, intuicionismo e arbitrariedade, transferência ilegítima de poderes do legislativo para o juiz com substituição da reserva de lei pela reserva de sentença, dissolução dos controlos típicos de Estado de Direito, corrosão da força normativa da Constituição, nivelação e indiferenciação dos direitos fundamentais, tirania dos valores e fórmula vazia, de tudo a ponderação de bens no domínio dos direitos fundamentais tem sido, e com argumentos de peso, acusada."

75 ALEXY, Robert. Constitutional Rights, Balancing and Rationality, Ratio Juris, vol. 16, n° 2, 2003, p. 134: "Habermas's first objection is that balancing approach deprives constitutional rights or their normative power."

ta, que represente os diferentes segmentos da sociedade (em particular quando se adote o sistema eleitoral propor-cional), mas apenas da opinião pessoal de um juiz ou de um grupo de juizes sobre o assunto. Ou seja: os dispositivos constitucionais sobre direitos fundamentais acabam por va-ler menos que um enunciado normativo qualquer.

É preciso reconhecer que a crítica resumida acima é em boa parte procedente. Não há como negar, considerando o estado atual da dogmática sobre o assunto, que, de fato, a ponderação é metodologicamente inconsistente, enseja ex-cessiva subjetividade e não dispõe de mecanismos que pre-vinam o arbítrio.

Por outro lado, parte da crítica resumida acima seria aplicável, ainda que em menor intensidade, à interpretação jurídica como um todo", especialmente nas hipóteses em que o intérprete está diante de princípios que veiculem valores ou opções políticas, ou ainda diante de conceitos

76 DWORKIN, Ronald. The Judge's New Role: Should Personal Convictions Count?, Journal of International Criminal Justice I, 2003, p. 5: "I know that many non-lawyers (and even some law professors, lawyers and judges) think that law is wholly independent of morality, and that judges who appeal to moral principies or ideais to support their decisions are trespassing on the roles of priests, statesmen and moralizers, and violating their responsibilities to decide cases according to what the law is, not what it should be. That positivist canon was never defensible — nor, perhaps, would any of us here defend it. it was not true even when the highest courts of modern democracies were occupied almost entirely with enforcing codes or statutes or applying the precedent decisions of the common law to new situations. The strict positivistic sources of law had fuzzy boundaries and left gaps: these had to be sharpened or filled in with interpretation, and interpretation requires judges to decide which way of continuing the story that the legislature or other judges have begun is the most satisfactory ali things considered. That is a judgment that is moral at its core."

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vagos que exijam determinação. Nessa espécie de ambien-te normativo, a subsunção, ainda que possível, está longe de ser objetiva ou rigorosamente previsível, franqueando ao intérprete amplo espaço para avaliações e escolhas".

Em qualquer caso, não são apenas os autores contrários ao uso da ponderação como uma técnica válida de solução de conflitos normativos que se ocupam de criticá-la; tam-bém aqueles que a consideram um instrumento útil para os fins a que se destina apontam problemas similares78. A di-

77 A posição de Kelsen sobre a questão é bastante conhecida, v, KELSEN, Hans. Teoria pura do direito, 1998, p. 390: "Se por 'interpretação' se entende a fixação por via cognoscitiva do sentido do objeto a interpretar, o resultado de uma interpretação jurídica somente pode ser a fixação da moldura que representa o Direito a interpretar e, conseqüentemente, o conhecimento das várias possibilidades que dentro desta moldura existem. Sendo assim, a interpretação de uma lei não deve necessariamente conduzir a uma única solução como sendo a única correta, mas possivelmente a várias soluções que — na medida em que apenas sejam aferidas pela lei a aplicar — têm igual valor, se bem que apenas urna delas se torne Direito positivo no ato do órgão aplicador do Direito." 78 NOVAIS, Jorge Reis. As restrições aos direitos fundamentais não expressamente autorizadas pela Constituição, 2003, p. 722: "Cabe, nessa altura, perguntar, com LARENZ, se a ponderação é verdadeiramente um método ou apenas a confissão da sua impossibilidade com a remissão do problema para o parecer subjectivo de um juiz que decide, não de acordo com ordens de valores inexistentes ou inoperativas, mas segundo pautas que ele próprio estabelece. Segundo a perspectiva que defendemos, só há a ganhar no reconhecimento frontal dessa debilidade. A saída para ela não reside nas propostas dos modelos que atrás criticamos e que, como vimos, não constituem alternativas plausíveis à ponderação de bens, mas em estratégias razoáveis e praticáveis — porque conscientes dos seus limites — de racionalização dos procedimentos de ponderação de bens, de redução do intuicionismo que lhe é inerente. Como diz Ossenbühl, não ha que lamentar as debilidades de um procedimento que é inevitável, mas antes que procurar racionalizar progressivamente a sua utilização."

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ferença reside nas conseqüências extraídas desse quadro pelos diferentes autores.

Para muitos, a despeito de todos os inconvenientes, os conflitos normativos que envolvem valores e/ou diferentes opções político-ideológicas de fato existem, é preciso solu-cioná-los e não há outra maneira de fazê-lo a não ser por meio da ponderação. E já que a necessidade de empregar a ponderação é inexorável, cabe tentar aprimorar a técnica com o objetivo de resolver as imprecisões que fundamen-tam as críticas79. Esse na verdade é o propósito central des-te estudo. A tentativa de ordenar a estrutura da técnica da ponderação, exposta na segunda parte do estudo, destina-se exatamente a lhe conferir maior consistência metodoló-gica. A elaboração de parâmetros, objeto da terceira parte, é um dos instrumentos para reduzir a subjetividade do in-térprete, preservar o conteúdo próprio dos elementos nor-mativos envolvidos, sobretudo os constitucionais, e assegu-rar maior previsibilidade ao processo.

Para outros autores, diversamente, as dificuldades en-volvendo a ponderação são de tal ordem que a técnica deve

79 SANCHIS, Luis Prieto. "Neoconstitucionalismo y ponderación judicial". In: CARBONELL, Miguel (organizador). Neoconstitucionalismo(s), 2003, p. 152: "Las críticas de subjetivismo no pueden ser eliminadas, pero tal vez si matizadas."; SCACCIA, Gino. 11 bilanciamento degli interessi come tecnica di controllo costituzionale, Giurisprudenza constituzionale, vol. VI, 1998, p. 3998: "Nella dottrina italiana, di giomo in giorno pià sensibile all'esigenza di delimitare gli spazi di discrezionalitá delle operazioni di bilanciamento e di ridurre una creatività talora incompatibile con il carattere giurisdizionale dell'attività espletata dalla Corte (...)."; e CISME, Clèmerson Merlin e FREIRE, Alexandre Reis Siqueira. "Algumas notas sobre colisão de direito fundamentais". In: GRAU, Eros Roberto e CUNHA, Sérgio Sérvulo da (organizadores). Estudos de direito constitucional em homenagem a José Afonso da Silva, 2003, p. 241 e ss..

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ser descartadas°. Parece também razoável investigar o terna sob esse ponto de vista, antes de se chegar a uma conclusão. Se a ponderação é tão indesejável, se suscita tantas dificul-dades e perigos, por que usá-la? A ponderação é realmente necessária? Os conflitos normativos que ela pretende solu-cionar não poderiam ser superados de outra forma, que oferecesse menor quantidade de contra-indicações? Mais que isso: esses conflitos são reais efetivamente? O próximo tópico cuida justamente de examinár a viabilidade das al-ternativas à técnica da ponderação que têm sido formula-das pela doutrina.

80 Essa é a conclusão de ALEINIKOFF, T. Alexander. Constitutional Laut in the Age of Balancing, Yale Law Journal ri° 96, 1987, pp. 992 e 1005: "If each constitutional provision, every constitutional value, is understood simply as an invitation for a discussion of good social policy, it means little to talk of constitutional theory. Ultimately, the notion of constitutional supremacy hangs in the balance. (...) In sum, balancing is not inevitable. To balance the interests is not simply to be candid about how our minds -- and legal analysis must work. It is to adopt a particular theory of interpretation that requires justification. Balancing has turned us away from the Constitution, supplying 'reasonable' policymalcing in lieu of theoretical investigations of rights, principles and structures. Constitutional law may not represent the search for truth or beauty, moral salvation or divine inspiration. But it is crucial for this political society to have a distinct way of thinking and talking about fundamental background principies of govemment — one that both connects up with, and pushes beyond past understandings. Constitutional law will have trouble helping to define the arena of politics if it is seen simply as an act of ordinary politics. This is not to suggest that constitutional law is not intensely political, rather that there is real value in seeing it as a different sort of politics."

III. Há alternativas à ponderação? Os limites imanentes, o conceptualismo

e a hierarquização

Em continuidade às críticas formuladas à ponderação, e como decorrência delas, vários autores têm procurado de-senvolver alternativas a essa técnica. Algumas das diferen-tes soluções propostas podem ser agrupadas, de forma sim-plificada'', em duas grandes categorias: (i) os que negam — total ou parcialmente — a realidade dos conflitos normati-vos que solicitam o emprego da ponderação e, por conse-qüência, afastam a própria necessidade da técnica; e (ii) os que reconhecem a realidade dos conflitos e procuram ofe-recer uma técnica alternativa. Na primeira categoria, dois conjuntos de idéias podem ser indicados desde logo: as di-

81 É bem de ver que cada autor apresenta propostas e observações particulares que o distinguem dos demais. Não há uma preocupação de refletir na exposição essas variedades com precisão. O objetivo aqui é apurar os elementos essenciais comuns aos diferentes autores, de modo a proporcionar uma visão sistemática, ainda que em certa medida simplificadora.

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ferentes teorias sobre os limites imanentes e o conceptua-lismo. Na segunda, encontra-se a proposta de hierarquiza-ção dos elementos normativos em conflito.

A idéia de limites imanentes" foi desencadeada de ma-neira particular (embora não exclusiva) a partir da seguinte concepção sobre o sistema constitucional dos direitos fun-damentais. Ao dispor sobre determinados direitos, algumas constituições autorizam o legislador a regulamentar seu exercício e definir seus contornos; em outros casos não há cláusula semelhante e o direito é aparentemente formula-do em termos absolutos. A questão que se coloca nesse contexto é bastante simples: que conseqüência atribuir a essa diferença de redação? A conclusão aparentemente mais lógica é a de que, quanto a esse segundo grupo de direitos, a Constituição teria vedado a possibilidade de restrições (tanto pelo legislador quanto, com muito mais razão, pelo aplicador do direito). A Constituição portugue-sa, como se sabe, refere de forma explícita em seu texto que a restrição a direitos não é admitida fora das hipóteses previstas pelo texto constitucional".

82 VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos. Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976, 1998; CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição, 1998, p. 1199 e ss.; e HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional da República Federal da Alemanha, 1998, p. 250 e ss.. No Brasil, v. STEINMETZ, Wilson Antônio. Colisão de direitos fundamentais e principio da proporcionalidade, 2001, p. 15 e ss.. 83 Essa é a redação do art. 18, n° 2 da Carta Portuguesa: "A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos:. Em linha semelhante, veja-se a Constituição Argentina, 1854 (com as alterações de 1994), art. 28: "Los principios, garantias y derechos reconocidos en los anteriores artículos, no podrán ser alterados por las leyes que reglamenten su ejercicio.".

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O raciocínio descrito acima, porém, embora aparente-mente lógico, acabava por gerar problemas insustentáveis de interpretação e aplicação constitucional. As exigências da vida social — preocupações urbanísticas, sanitárias, am-bientais, dentre outras — impõem sempre alguma espécie de restrição ao exercício de direitos individuais. No mesmo sentido, a convivência com outros direitos também previs-tos na Constituição não admite uma interpretação absolu-tizadora de cada um deles. Mas o que fazer com a diferença de redação das normas constitucionais ou com a própria cláusula que veda a restrição de direitos não autorizada expressamente pela Carta? Ignorá-la?

A idéia de limites imanentes de certa forma contorna o problema que se acaba de apontar". Por ela se sustenta que cada direito apresenta limites lógicos, imanentes, oriundos da própria estrutura e natureza do direito e, portanto, da própria disposição que o prevê". Os limites já estão conti-dos no próprio direito, portanto não se cuida de uma restri-ção imposta a partir do exterior". No conhecido exemplo

84 Tratando da experiência portuguesa, v. NOVAIS, Jorge Reis. As restrições aos direitos fundamentais não expressamente autorizadas pela Constituição, 2003, p. 185 e ss., 307 e ss., e 528 e ss.. Esse raciocínio também foi empregado pelo Tribunal Constitucional italiano, como descreve ZAGREBELSKY, Gustavo. "El Tribunal Constitucional italiano". In: Tribunales constitucionales europeos y derechos fundamentales, 1984, p. 413 e ss.. 85 Alguns autores sublinham que os limites imanentes decorrem da compreensão de cada direito em conjunto com elementos implícitos no sistema jurídico, como a cláusula de comunidade, a prevenção do exercício abusivo, o respeito à lei moral e a outros direitos, etc. V. STEINMETZ, Wilson Antônio. Colisão de direitos fundamentais e princípio da proporcionalidade, 2001, p. 45 e ss.. 86 A chamada teoria institucional dos direitos fundamentais parte de pressupostos semelhantes. V. NOVAIS, Jorge Reis. As restrições aos

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do Professor Vieira de Andrade, a liberdade de expressão artística não autoriza um pintor a armar seu cavalete no meio de uma via expressa para lá permanecer pintando: essa pretensão seria bloqueada por um limite imanente, lógico, contido no próprio direito87.

direitos fundamentais não expressamente autorizadas pela Constituição, 2003, pp. 310 a 312: "Já para a teoria institucional dos direitos fundamentais, que inspira a nova concepção alternativa de limites dos direitos fundamentais, não haveria mais lugar para uma compreensão de liberdade como esfera ou reserva natural a defender da intervenção do Estado, no quadro da concepção liberal de separação Estado/sociedade (...) Hoje, a liberdade só tem sentido enquanto liberdade na sociedade, enquanto liberdade normativamente conformada e ordenada; (...) Os limites não são elementos 'externos' legitimadores de intervenções ablativas no conteúdo dos direitos fundamentais, mas sim concretizações da sua substância jurídica, fronteiras do seu âmbito de garantia constitucional, reveladas a partir 'de dentro' do direito, ou seja, 'limites imanentes' aos direitos fundamentais cuja eventual positivação, na qualidade de elementos negativos da sua previsão normativa, tem um caracter meramente declarativo."

87 VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos. Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976, 1998, pp. 216 e 217: "No entanto, há 'limites imanentes' dos direitos fundamentais que s6 são determináveis por interpretação, pelo facto de estarem apenas implícitos no ordenamento constitucional. Se é fácil saber qual o bem que está protegido, já é muitas vezes difícil determinar-lhe os contornos, sobretudo quando o seu exercício se faça de modos atípicos ou em circunstâncias especiais, afectando, de uma maneira ou de outra, valores ou direitos também constitucionalmente protegidos. Estes casos são muitas vezes acriticamente considerados como de conflitos entre direitos e valores constitucionais ou como colisões de direitos. Importa, todavia, distinguir nesta matéria situações que não podem ter o mesmo tratamento jurídico. Por exemplo, poder-se-á invocar a liberdade religiosa para efectuar sacrifícios humanos ou para casar mais de uma vez? Ou invocar a liberdade artística para legitimar a morte de um actor no palco, para pintar no meio da rua, ou para furtar o material necessário à execução de uma obra de arte? (...) Nestes, como em muitos outros casos, não se deve falar propriamente de um conflito entre o direito invocado e outros

Em verdade, a doutrina não apresenta um método es-pecífico para determinar esses limites; sua percepção é considerada quase intuitiva e está relacionada com a evi-dência desses limites para o senso comum. Note-se, ainda, que toda a discussão sobre os limites imanentes repercute apenas sobre conflitos ou colisões envolvendo enunciados que afetem direitos fundamentais, e não sobre todo e qual-quer conflito normativo.

Os autores se dividem quanto às conseqüências a ex-trair da construção dos limites imanentes. Para alguns, to-dos os aparentes conflitos envolvendo direitos fundamen-tais inexistem de fato. Os limites imanentes de cada um

direitos ou valores, por vezes expressos através de deveres fundamentais. É que se trata de algo mais ou de algo menos do que isso. É o próprio preceito constitucional que não protege essas formas de exercício do direito fundamental, é a própria Constituição que, ao enunciar os direitos, exclui da respectiva esfera normativa esse tipo de situações. E a diferença é importante, como veremos melhor, já que, se entendermos que não há conflito, a solução do problema não tem que levar em conta o direito invocado, porque ele não existe naquela situação. Pelo contrário, havendo conflito, tal significaria a existência de um direito em face de outros direitos ou de outros valores (deveres) e a solução nunca poderia sacrificar totalmente o direito invocado, a não ser que se partisse do reconhecimento de uma ordenação hierárquica dos bens constitucionalmente protegidos, sacrificando-se então o menos valioso. Só que um critério de hierarquia não é sustentável e acabaria, de qualquer modo, por suscitar uma série de problemas sem solução racional. Preferimos, por isso, considerar a existência de limites imanentes implícitos nos direitos fundamentais, sempre que não seja pensável que a Constituição, ao proteger especificamente um certo bem através da concessão e garantia de um direito, possa estar a dar cobertura a determinadas situações ou formas do seu exercício, sempre que, pelo contrário deva concluir-se que a Constituição as exclui sem condições nem reservas. A idéia de limites imanentes não é nova e tem sido largamente utilizada na doutrina e jurisprudência alemãs." (grifos no original)

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dos direitos impedem O confronto. Na verdade, por conta dos limites imanentes, a abrangência de cada direito é me-nor do que se supõe inicialmente, portanto não chega a haver conflito algum. Não havendo conflito, não há neces-sidade de técnica para solucioná-lo e, destarte, a pondera-ção é desnecessária. Caberia ao intérprete apenas declarar esses limites pré-existentes, a fim de delinear o espaço do direito".

Para outros autores, diversamente, os limites imanen-tes superam de fato um conjunto importante de conflitos que são apenas aparentes". Essas supostas antinomias não existem na realidade, pois a colisão ocorreria entre manifestações hipotéticas dos direitos que se encontram fora de seus limites imanentes. Este segundo conjunto de autores admite, contudo, que podem persistir conflitos en-volvendo direitos mesmo depois de considerados os limites

88 Para uma apresentação geral sobre o tema, v. NOVAIS, Jorge Reis. As restrições aos direitos fundamentais não expressamente autorizadas pela Constituição, 2003, p. 185 e ss. e 363 e ss.. 89 ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976, 1998, p. 214: "Esse conflito não se apresenta sempre da mesma maneira e, assume, visto da perspectiva do direito limitado, formas diferentes, que convém separar. Umas vezes, a 'limitação' do direito atinge o seu próprio âmbito de protecção constitucional, de tal maneira que exclui em termos absolutos certas formas ou modos do seu exercício — fala-se então de limites imanentes. Outras vezes, a limitação resulta dos compromissos naturais entre valores constitucionais que concorrem directamente em determinados tipos de situações e que, nessas circunstâncias, reciprocamente se limitam — estamos perante as colisões de direitos ou conflitos em sentido estrito. Noutros casos, ainda, a limitação resulta de uma intervenção normativa dos poderes públicos para salvaguarda de valores constitucionais — esta intervenção é reservada ao poder legislativo e, por isso, põe-se aqui o problema das leis restritivas de direitos fundamentais."

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imanentes e, nesse particular, o único meio de saná-los se-ria realmente a ponderação90. O importante aqui é que, para tais autores, o recurso à ponderação ficará restrito a um número significativamente menor de situações, já que boa parte dos conflitos normativos seria resolvida pela ma-nipulação do conceito de limites imanentes.

Uma segunda alternativa que tem sido concebida para substituir a técnica da ponderação pode ser denominada de conceptualismo. Seus resultados práticos são semelhantes aos obtidos por aqueles que sustentam que todo e qualquer conflito normativo envolvendo direitos é na verdade um falso conflito, já que a questão pode ser solucionada com a identificação dos limites imanentes. Outra semelhança com os limites imanentes é que também o conceptualismo se ocupa basicamente dos conflitos envolvendo direitos fundamentais. A estrutura dessa opção, porém, é bastante diversa.

Os defensores do que se convencionou denominar con-

90 Quanto aos resultados obtidos, a identificação dos limites imanentes de cada direito (na modalidade que admite a necessidade de ponderação) se aproxima da idéia de definitional balancing dos norte-americanos e igualmente do esforço para a construção de parâmetros específicos objeto do último capítulo deste estudo. V. CANOTILHO, J. J. Gomes, Direito constitucional e teoria da Constituição, 1998, p. 1164: "delimitar o âmbito de proteção de uma norma constitucional, estabelecendo uma espécie de linha de demarcação entre o que entra nesse âmbito e o que fica de fora. É o que a doutrina americana designa por definitional balancing e que no esquema metódico atrás referido corresponde ao recorte do chamado 'âmbito normativo'. A linha de definitional balancing é seguida pela jurisprudência americana para precisar a esfera de proteção da norma e excluir certas dimensões. (...) Como se vê, o definitional balancing não é, em rigor, um modelo de ponderação, pois localiza-se ainda no procedimento interpretativo destinado a determinar o âmbito de proteção de normas garantidoras de direitos e bens constitucionais. Define, por via geral e abstracta, os 'campos normativos'."

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ceptualismo negam a existência de conflitos envolvendo os direitos fundamentais. Para eles, a difundida idéia de que os direitos podem colidir entre si e/ou com disposições constitucionais que consagram bens coletivos ou fins públi-cos tem origem em um pressuposto filosófico equivocado, de origem liberal e individualista, que compreende os di-reitos como poderes individuais ilimitados e desvinculados de qualquer função ou propósito9'.

Esse pressuposto filosófico liberal acaba por ter uma conseqüência hermenêutica que estimula a multiplicação dos conflitos: os direitos deixam de ser compreendidos como conceitos, isto é, como noções com sentido próprio, construídas historicamente e associadas a determinado fim, para serem identificados com o texto do enunciado normativo e todas as suas possibilidades lingüísticas. As-sim, equivocadamente, passou a ser considerada direito toda e qualquer manifestação humana que, do ponto de vista lingüístico, pudesse agasalhar-se sob a descrição con-tida no texto normativo, ainda que não guardasse qualquer relação lógica com os fins daquele direito. Esse conjunto de equívocos acabou por conferir o status de direito funda-mental a situações que simplesmente não poderiam ser classificadas dessa maneira; e, com a multiplicação desses pseudo direitos, surge o problema dos conflitos. Mantendo o exemplo do pintor na via expressa, para o conceptualis-mo, a iniciativa do pintor nada tem a ver com o direito de expressão artística, podendo ser descrita como um pseudo direito; e se não há direito, tampouco há conflito.

Para os conceptualistas, os direitos fundamentais de-

91 SERNA, Pedro e TOLLER, Fernando. La interpretación constitucional de los derechos fundamentales. Una alternativa a los conflictos de derechos, 2000; e CIANCIARDO, Juan. El conflictivismo en los derechos fundamentales, 2000.

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vem ser compreendidos não como vetores em oposição, mas de forma integrada, cada qual ocupando um espaço e desempenhando um papel na construção do bem-estar do homem dentro da sociedade. De acordo com essa concep-ção, cada direito corresponde a um conceito jurídico asso-ciado a determinados fins e fruto de uma história. Com-preendidos dessa forma, os direitos fundamentais e as exi-gências coletivas se completam e formam uma unidade ló-gica, não havendo espaço para conflito".

A conseqüência hermenêutica dessa forma de ver o problema é a seguinte: o texto normativo apenas procura captar o conceito de cada direito, mas não se confunde com ele. Isto é: o texto que prevê o direito e suas possibilidades lingüísticas não se confunde com o direito em si. A delimi-tação do conceito de cada direito deverá ter em conta os elementos referidos acima — função social e histórica do direito e seus fins lógicos —, além da própria necessidade de convivência com os demais direitos. Uma vez delinea-dos os conceitos dos diferentes direitos, não haverá confli-

92 SERNA, Pedro e TOLLER, Fernando. La interpretación constitucional de los derechos fundamentales. Una alternativa a los conflictos de derechos, 2000, pp. 40 e 41: "Como se ha expuesto más arriba, el conflicto o la colisión entre las normas relativas a derechos fundamentales — tomadas como enunciados lingüísticos — resulta prácticamente inevitable. Por outra parte, si los derechos son la expresión de la regra de coexistencia entre los individuos y sus pretensiones, los conflictos entre ellos no sólo son evitables sino que, en rigor, son imposibles. Por tanto, la primeira pauta hermeneutica para resolver los conflictos será distinguir entre derechos fundamentales y normas de derecho fundamental, y buscar la armonización en el nível de los derechos, no de las meras normas. Dicho de outro modo, se tratará de superar — en los casos de conflicto — la interpretación literal de las normas iusfundamentales, dando entrada a los derechos por via de una interpretación dirigida al fundamento de la norma, concretamente de una interpretación teleolágica y sistemática."

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tos entre eles ou entre eles e exigências associadas a algum interesse coletivo. Dito de outra forma, o problema dos conflitos deixa de existir — e também assim a necessidade da técnica da ponderação — na medida em que se estabe-leça com razoável precisão o conceito de cada um dos direi-tos e se deixe de considerá-los como o conjunto de todos os fenômenos que possam ser enquadrados lingüística e se-manticamente sob o enunciado contido no texto constitu-cional.

As teorias dos limites imanentes e do conceptualismo, como mencionado inicialmente, questionam a própria exis-tência do conflito normativo e, por isso, em maior ou me-nor grau, acabam por negar a necessidade da técnica da ponderação. Ao lado dessas duas concepções, porém, há uma terceira que igualmente rejeita o emprego da pondera-ção, mas por motivos inteiramente diversos: trata-se da hierarquização.

Para os defensores da hierarquização, os conflitos nor-mativos existem e são inexoráveis. Nada obstante, a forma de resolvê-los não deve ser a ponderação. A proposta dessa corrente de pensamento será a construção de uma tabela hierárquica ou de importância entre os enunciados norma-tivos — inclusive e especialmente os constitucionais. As-sim, diante do conflito, o intérprete disporá de um elemen-to objetivo para decidir, fornecido pelas diferentes posi-ções dos enunciados em disputa na escala hierárquica. As disposições normativas mais bem situadas nessa escala de-veriam preponderar sobre as que ocupam posições menos graduadas".

93 EKMEKDJIAN, Miguel Angel. De nuevo sobre el orden jerárquico de los derechos civiles, El Derecho n°114, p. 945 e ss., 1985 apud SERNA, Pedro e TOLLER, Fernando. La interpretación constitucional de los derechos fundamentales. Una alternativa a los conflictos de derechos,

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A hierarquização tem como fundamento último as cor-rentes filosóficas para as quais é possível escalonar os valo-res em função de sua importância essencial". Como os enunciados constitucionais, sobretudo os princípios, estão direta ou indiretamente associados a valores, a um escalo-namento de valores poderia corresponder um escalona-mento de disposições constitucionais".

2000, p. 8 e ss.; e EKMEKDJAN, Miguel Angel. "El valor dignidad y la teoria dei orden jerarquico de los derechos individuales". /72: BIDART CAMPOS, German J. e DOMINGUEZ, Andres Gil. Los valores em la Constitucion argentina, 19991 pp. 9 a 36. Para uma exposição sobre o tema, v. SERNA, Pedro e TOLLER, Fernando. La interpretación constitucional de los derechos fundamentales. Una alternativa a los conflictos de derechos, 2000, pp. 7 e 109 e ss.; e CIANCIARDO, Juan. El conflictivismo en los derechos fundamentales, 2000, p. 107 e ss..

94 Sobre a hierarquia de valores na concepção de Max Scheler, The Cambridge Dictionary of Philosophy, 1998 (verbete: Max Scheler), faz o seguinte registro (p. 714): "The core of Scheler's phenomenological method is bis conception of the objectivity of essences, which, though contained in experience, are a priori and independent of the lcnower. For Scheler, values are such objective, though non-Platonic, essences. Their objectivity is intuitively accessible in immediate experience and feelings, as when we experience beauty in music and do not merely hear certain sounds. Scheler distinguished between valuations or value perspectives on the one hand, which are historically relative and variable, and values on the other, which are independent and invariant. There are four such values, the hierarchical organization of which could be both immediately intuited and established by various public criteria like duration and independence: pleasure, vitality, spirit and religion." Veja-se também FRANCA, Pe. Leonel. Noções de história da filosofia, 1987, p. 249 e ss..

95 Esse escalonamento dependerá naturalmente de avaliações de natureza valorativa. SERNA, Pedro e TOLLER, Fernando. La interpretación constitucional de los derechos fundamentales. Una alternativa a los conflictos de derechos, 2000, pp. 7 e 8: "Por outra parte, las diferentes jerarquizaciones propuestas suelen depender de criterios y baremos que, aunque gozan de cierta justificabilidad en términos constitucionales, se encuentran fuertemente marcados por

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Concluída a breve exposição sobre essas alternativas à ponderação, cabe fazer uma análise, ainda que rápida, so-bre o exposto. Seria realmente desejável que a hermenêu-tica jurídica, em seu arsenal de técnicas, pudesse prescindir da ponderação, considerando os efeitos colaterais e riscos a ela associados. A verdade, porém, a despeito das formula-ções descritas acima, é que isso não parece possível". A afirmação de que os conflitos valorativos são fictícios não é consistente e as opções metodológicas apresentadas pelos críticos da ponderação apresentam problemas ainda maio-

condicionamientos ideológicos. Para la visión más extendida, la cláusula dei interés general o el estándar de lo necesario en una sociedad democrática determinan, por ejemplo, la supremacia de la libertad de prensa, convirtiéndola en una libertad 'preferida', 'estratégica' e 'institucional'. Otros, desde una consideración de los derechos por referencia a su mayor o menor cercania con el núcleo de la personalidad, considerarán prevalentes el honor o la vida privada frente a la información, que estaria más lejos de la persona, pues se situaria, ai menos a simple vista, en su vida de relación. A similares consecuencias se podria llegar ai enfrentar otros derechos, como la libertad de cátedra y el derecho de los titulares de los centros educativos, o el de los padres a elegir la educación de los hijos.". A despeito da crítica formulada pelos autores, dentro de certos limites, o emprego de critérios materiais na interpretação constitucional não constitui um problema metodológico, especialmente tendo em conta que as Constituições contemporâneas formulam explicitamente opções valorativas. O ponto será retomado mais adiante. V. sobre o tema SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. "Fundamentação e normatividade dos direitos fundamentais: uma reconstrução teórica à luz do principio democrático" In: MELLO, Celso de Albuquerque e TORRES, Ricardo Lobo (organizadores). Arquivos de Direitos Humanos, vol. 4, 2002, pp. 17 a 61. 96 CANOTILHO, J. J. Gomes. A principialização da jurisprudência através da Constituição', Revista de Processo n° 98, 1999, pp. 83 a 89; e NOVAIS, Jorge Reis. As restrições aos direitos fundamentais não expressamente autorizadas pela Constiuição, 2003, pp. 357 e 695 e ss..

res que os da técnica da ponderação97. Não é difícil de-monstrar essa conclusão.

A teoria dos limites imanentes não propõe qualquer método pelo qual seja possível apurar o que se encontra dentro desses limites e o que está fora deles. Como fixar, em cada caso, as coordenadas por onde deve passar a linha de fronteira entre esses dois espaços? É evidente que, se todos os envolvidos estiverem de acordo acerca dos limites de um determinado direito, a ponderação não será necessá-ria ou qualquer outra técnica sofisticada, simplesmente porque não haverá conflito e sequer será preciso discutir a questão.

Mas e se o tema for controvertido? Por qual fundamen-to uma posição acerca dos limites imanentes — a que de-fende, por exemplo, um sentido mais amplo para o direito — deve prevalecer em detrimento da outra?" Na verdade, independentemente da forma pela qual se queira denomi-nar o processo de decisão na hipótese, o intérprete não

97 Para uma critica de cunho filosófico sobre as diferentes formas de lidar com os conflitos (reais ou aparentes) de direitos, v. MORELLI, Mariano G. Los llamados "conflictos de derechos". El cálculo de bienes utilitarista y la critica de John Finnis, Revista Telemática de Filosofia dei Derecho n°7, 2004. 98 NOVAIS, Jorge Reis. As restrições aos direitos fundamentais não expressamente autorizadas pela Constiuição, 2003, p. 320: "Com efeito, sempre que num contexto argumentativo se invoca a existência de limites imanentes a um direito fundamental a decorrência prática naturalmente inevitável é a da consequente legitimação da acção restritiva do poder público. Porém, esse resultado — baseado exclusivamente na afirmação da existência imperativa de limites imanentes — é dificilmente acessível ao crivo da análise critica, já que, ao contrário do que acontecia no modelo da teoria externa, se 'esconde' o jogo de interesses opostos em disputa e das correspondentes razões e contra-razões que, na realidade, determinaram a decisão

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escapará de empregar um raciocínio ponderativo99. E, as-sim, aos problemas associados à ponderação agrega-se um novo, que é o fato de encobrir-se a ocorrência de uma pon-deração. Este é um ponto importante. Se o processo inter-pretativo corresponde a uma simples declaração de limites imanentes e pré-existentes do direito, o intérprete sente-se livre do ônus argumentativo que acompanha a pondera-ção. Há mais espaço para o arbítrio e para o abuso.

O mesmo se pode dizer acerca do conceptualismo. Na forma descrita pelos autores que tratam do tema, o proces-so de delimitação ou construção do conceito do direito identifica-se, na prática, com o emprego da própria técnica da ponderação. Valem aqui as mesmas questões postas para as teorias dos limites imanentes: como será construído o conceito do direito? Por que ele terá tais ou quais contor-nos, será mais ou menos abrangente? Afinal, o conceito de cada direito não está pronto e acabado, à disposição do intérprete; ele precisará ser construído por meio de algum processo que deverá levar em conta, além de seus fins lógi-cos e das exigências sociais, os demais direitos que com ele disputam espaçom°. Qual a diferença essencial do que se acaba de descrever para a lógica da ponderação?

99 ALEXY, Robert. Colisão de direitos fundamentais e realização de direitos fundamentais no estado de direito democrático, Revista de Direito Administrativo n° 217, 1999, p. 76; e NOVAIS, Jorge Reis. As restrições aos direitos fundamentais não expressamente autorizadas pela Constituição, 2003, p. 173: "Porém, na medida em que qualquer restrição pode ser teoreticamente configurável como limite imanente (...), os limites aos limites ficariam, na prática, sem objecto de aplicação ou, pelo menos, a exigência da sua aplicação seria manipulável de forma totalmente arbitraria."

100 O processo de definição do conceito do direito é descrito nos seguintes termos por SERNA, Pedro e TOLLER, Fernando. La interpretación constitucional de los derechos fundamentales. Una

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Talvez a principal distinção aqui decorra da circunstân-cia de os conceptualistas trabalharem a idéia de conceito de direito tanto quanto possível em abstrato, em tese, e não perante um caso concreto. Mas, como se verá adiante, a ponderação também pode e deve desenvolver-se em abs-trato ou preventivamente. Em suma: tanto a idéia de limi-tes imanentes quanto a do conceptualismo não oferecem uma metodologia alternativa para solução dos conflitos normativos que envolvem valores e opções políticas, e sua negação dos conflitos não é, afinal, consistente. Embora empregando outras denominações, essas teorias acabam por exigir o emprego da ponderação em maior ou menor medida.

Por fim, o que dizer da hierarquização? Essa proposta enfrenta obstáculos ainda maiores que as anteriores. Con-siderando o axioma da unidade da Constituição, simples-mente não é possível estabelecer uma hierarquia em abs-trato entre as disposições constitucionais de tal forma que,

alternativa a los conflictos de derechos, 2000, pp. 53 e 57: "El modo de determinar cuándo se está ante un ejercicio lícito de ciertas libertades concretas es conjugar su finalidad con la perspectiva aportada por la visión coexistencial, esto es, por los bienes jurídicos básicos afectables eventualmente por el ejercicio de esta libertad. (...) El contenido total de un derecho, su determinación completa, implica la especificación de ai menos los siguientes elementos: quién es su titular; quién debe respetar o dar efecto ai derecho de aquél; cuál es el contenido de la obligación, describiendo no solo sus actos específicos, sino también el tiempo y otras circunstancias y condiciones para su aplicación; cuáles son las condiciones en las que el titular pierde su derecho, incluyendo aquéllas — si las hubiera — bajo las cuales puede renunciar a las obligaciones relevantes; qué facultades y poderes ostenta el titular en caso de incumplimiento dei deber; y, sobre todo, quê libertades disfruta el titular que demanda el derecho, incluyendo una especificación de sus fronteras, como es el caso de la determinación de sus deberes, especialmente el deber de no interferencia con las libertades de otros titulares de ese derecho ode otros derechos reconocidos."

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perante o conflito, a melhor posicionada na escala devesse preponderar. Na verdade, esse óbice reflete um problema filosófico mais complexo: qual será o fundamento axiológi-co apto a justificar a hierarquização das disposições consti-tucionais, sobretudo quando se trate dos direitos funda-mentais? Há ainda uma outra dificuldade: como a hierar-quização poderá lidar com diferentes manifestações de um mesmo direito? Embora a simplicidade da fórmula possa ser sedutora, ela não é compatível com a realidade jurídica nem com a realidade social, que exige a convivência, tão harmônica quanto possível, de valores diversos, e não a eli-minação de uns em prol de outros'''.

A despeito da crítica que se acaba de fazer, e embora as opções à ponderação apresentadas pela doutrina não pare-çam oferecer qualquer alternativa consistente para a solu-ção de conflitos normativos envolvendo valores e opções políticas, algumas questões suscitadas por seus defensores merecem ser consideradas. Na verdade, mais que isso, es-ses questionamentos podem contribuir de forma relevante para aprimorar a própria técnica da ponderação.

101 SERNA, Pedro e TOLLER, Fernando. La interpretación constitucional de los derechos fundamentales. Una alternativa a los confnetos de derechos, 2000, p. 26: "Una jerarquia cerrada implica no tomar en serio todos los derechos, porque alguns siempre quedarán diferidos en las controversias judiciales ante la presencia de otros de rango superior. (...) Además, la jerarquización de los derechos no tiene en cuenta la complejidad de este tipo de problemas y la multiplicidad de excepciones y matices que ofrece la vida practica."; SCACCIA, Gino. II

bilanciamento degli interessi come tecnica di controllo costituzionale, G iurisprudenza constituzionale, vol. VI, 1998, p. 3962 e ss.; e STEINMETZ, Wilson Antônio. Colisão de direitos fundamentais e princípio da proporcionalidade, 2001, p. 120: "Inaceitável, juridicamente, é uma hierarquia de valores. Parece impossível fundamentar, jurídico-constitucionalmente, uma tábua de valores. Qualquer hierarquia é uma construção fundada meramente em preferências políticas, ideológicas, pessoais, de grupos etc."

Como registrado acima, a idéia de hierarquizar rigida-mente as disposições normativas, sobretudo as constitucio-nais, a fim de obter-se um critério de solução objetivo e pronto diante dos conflitos não é compatível com a ordem constitucional. Nada obstante, é cada vez mais comum na doutrina a referência a uma diferenciação axiológica entre os enunciados constitucionais Na mesma linha, fala-se também de uma espécie de hierarquização funcional: não há dúvida, por exemplo, de que os direitos fundamentais e os princípios contidos nos artigos iniciais da Carta de 1988 são axiologicamente mais relevantes que as regras, e.g., de natureza orçamentária. A própria Constituição de 1988 identifica uma categoria de preceitos fundamentais, ao criar a argüição de descumprimento de preceito fundamental (art. 102, § 10103)

Ora, as constituições contemporâneas em geral, e a bra-sileira em particular, consagram o homem, sua dignidade e seu bem-estar como centro do sistema jurídico. Se é assim, é perfeitamente possível conceber uma preferência — de caráter prima facie — para as disposições constitucionais diretamente relacionadas com esses fins constitucionais, em contraste com outras que apenas indiretamente contri-buam para a dignidade humana. Nesse sentido, ainda que não se trate de hierarquia, a preferência atribuída às nor-

102 V. BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição, 2003, p. 203; e TAVARES, André Ramos. "Elementos para uma teoria geral dos princípios na perspectiva constitucional". In: LEITE, George Salomão (organizador). Dos princípios constitucionais. Considerações em torno das normas principiológicas da Constituição, 2003, pp. 27 e 28.

103 CF/88: "Art. 102 (...) § 1° A argüição de descumprimento de preceito fundamental, decorrente desta Constituição, será apreciada pelo Supremo Tribunal Federal, na forma da lei.". O dispositivo foi regulamentado pela Lei n°9.882/1999.

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mas que diretamente produzem o bem-estar das pessoas e protegem seus direitos poderá ser um parâmetro de orien-tação para o intérprete no emprego da ponderação'". O terna será retomado adiante.

Das idéias conceptualistas é possível extrair ao menos uma contribuição particularmente valiosa que pode ser in-corporada para aprimorar a técnica da ponderação. O con-ceito de cada direito, como já se registrou, não é um ele-mento pronto, ao qual se possa recorrer para solucionar conflitos, ainda que aparentes. Na verdade, a construção do conceito já é o resultado final, obtido após a solução do problema. Por quais meios, no entanto, se terá chegado a essa solução? Se a disputa envolver valores em oposição, ou opções político-ideológicas conflitantes, não há como al-cançar esse resultado sem ponderação, mesmo que se quei-ra chamar a técnica de outro nome. Não obstante a crítica, o conceptualismo projeta luz sobre uma questão importan-

104 Na verdade, embora uma hierarquia rígida seja inviável, um sistema de preferências entre os enunciados é não apenas possível, .como desejável. V. ALEXY, Robert. Sistema jurídico, principios jurídicos y razán práctica, Revista Doxa n°3, 1988, pp. 149 a 150: "Los problemas de una jerarquia de los valores juridicamente relevantes se han discutido con frecuencia. Se ha mostrado asi que no es posible un orden que conduzca en cada caso precisamente a un resultado — a tal orden habría que llamarlo 'orden estricto'. Un orden estricto solamente seria posible si el peso de los valores o de los principios y sus intensidades de realización fueran expresables en una escala numérica, de manera calculable. El programa de semejante orden cardinal fracasa ante los problemas de una medición dei peso y de la intensidad de realización de los principios jurídicos o de los valores jurídicos, que sea más que una ilustración de un resultado ya encontrado. El fracaso de los ordenes estrictos no significa sin embargo que sean imposibles teorias de los principios que sean más que un catálogo de topoi. Lo que es posible en un orden débil que consista de tres elementos: 1) un sistema de condiciones de prioridad, 2) un sistema de estructuras de ponderación y 3) un sistema de prioridades prima facie.". O tema será retomado adiante.

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te: quanto mais a doutrina precisar os contornos de cada direito, isoladamente considerado e na convivência com outros, menor será a necessidade da chamada ponderação ad hoc (aquela levada a cabo pelo juiz no caso concreto, sem vinculação a qualquer parâmetro). Quanto maior a quantidade de parâmetros delimitando o sentido e o alcan-ce de cada enunciado normativo, menor será a discriciona-riedade e subjetividade envolvidas na ponderação'''. Mais adiante se voltará ao assunto.

105 Das teorias dos limites imanentes também é possível extrair algumas idéias para o aprimoramento da técnica da ponderação. A principal delas provavelmente se relaciona com a percepção de que há, realmente, uma quantidade importante de pseudo conflitos, que não configuram colisão normativa alguma. A dificuldade é que essa observação apenas terá utilidade prática na hipótese de todos os agentes envolvidos estarem de acordo sobre o ponto; caso contrário, apenas ao fim do processo interpretativo, e eventualmente após o emprego da ponderação, será possível chegar a essa conclusão.

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IV. Enfrentando a ponderação: Notas sobre as experiências

norte-americana e alemã

Registrados os traços gerais das principais propostas al-ternativas à ponderação, desenvolvidas basicamente na Eu-ropa e na América Latina, cabe agora fazer um rápido regis-tro sobre como o tema é tratado nas experiências norte-americana e alemã, nas quais, a despeito das objeções, a ponderação tem sido incorporada à prática judiciáriaws. O propósito deste tópico não é prover informação sobre a história da ponderação nesses países, mas sim identificar, ainda que de forma esquemática, como essas experiências têm lidado com suas limitações e fragilidades.

Na experiência norte-americana, as críticas à pondera-ção levaram em geral a movimentos de reforma da própria

106 Especialmente pelos órgãos de cúpula dos respectivos sistemas judiciários. Para uma visão geral sobre o tema, v. SERNA, Pedro e TOLLER, Fernando. La interpretación constitucional de los derechos fundamentales. Una alternativa a los conflictos de dere chos, 2000, p. 11 e ss..

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técnicam7. Na Alemanha, a despeito de desenvolvimentos teóricos que procuram substituir a ponderação por outras técnicas de decisão, há também amplo esforço doutrinário

107 ALEINIKOFF, T. Alexander. Constitutional Law in the Age of Balancing, Yale Law Journal n°96, 1987, pp. 964 a 966: "Over the past few decades, with little justification or scrutiny, balancing has come of age. Every sitting Justice on the Supreme Court has relied on balancing, and Justices Blackmun, Brennan, Marshall, Powell, and White frequently adopt a balancing approach. As a result, balancing now dominates major areas of constitutional law. In Fourth Amendment cases, the Court has balanced in determining the scope of the Fourth Amendment, the definition of a search, the reasonableness of a search, the reasonableness of a seizure, the meaning of probable cause, the levei of suspicion required to support stops and detentions, the scope of the exclusionary rule, the necessity of obtaining a warrant, and the legality of pretrial detention of juveniles. Balancing has been a vehicle primarily for weakening earlier categorical doctrines restricting governmental power to search and seize. Occasionally, however, the balance worIcs against the government. Whichever way the balance tips, the role of balancing in the law of search and seizure is clear. As the Court has stated and restated, 'the balancing of competing interests' [is] 'the key principie of the Fourth Amendment.'. Balancing has also become the central metaphor for procedural due process analysis. The rise of balancing here is closely linked with the recognition of new forms of property protected by the due process clause. The importance of "entitlements" such as welfare benefits and government employment seemed to demand procedural protections against their deprivation, but the ever-increasing size of the welfare state made imposition of procedures a costly enterprise. Balancing provided a flexible strategy that took account of both interests. By 1976, the Court hadsettled on the now familiar three-pronged test of Mathews v. Eldridge. Justice S tone introduced balancing to the dormant commerce clause cases. Since the 1970s, the Court has increasingly relied on a balancing test to decide whether state regulations impose an 'undue burden' on interstate commerce. The classic formulation is Justice Stewart's in Pike v. Bruce Church, Inc. (...) Balancing, of course, has had a long affair with the First Amendment."; e NOVAIS, Jorge Reis. As restrições aos direitos fundamentais não expressamente autorizadas pela Constituição, 2003, p. 644 e ss. e 897 e ss..

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e jurisprudencial no sentido de aperfeiçoá-la do ponto de vista metodológicoi°s. É bem de ver que os meios emprega-dos por norte-americanos e alemães na tentativa de apri-morar a ponderação são bastante diversos e, por isso mes-mo, acabam sendo complementares.

A percepção da ponderação como técnica ou método para lidar com conflitos normativos envolvendo valores ou opções políticas pode ser localizada nos Estados Unidos ao longo das décadas de 30 e 40 do Século >0<, mas foi sobre-tudo na década de 50 que o tema passou a ser mais ampla-mente debatido, tendo em conta um contexto bastante es-pecífico109. Nesse período, como se sabe, o Judiciário nor-te-americano foi confrontado por diferentes leis e atos que restringiam liberdades individuais consagradas pela Consti-tuição por conta de necessidades relacionadas com a segu-rança nacional e o combate ao comunismo.

Considerando a fórmula ampla com que os direitos fo-ram consagrados no Bill of Rights, as restrições só seriam válidas se se admitisse a ponderação dos direitos em ques-tão com outros bens considerados valiosos. É fácil perceber que, nesse primeiro momento, o debate em torno da pon-deração/balancing assumiu um contorno evidentemente político. Aqueles que consideravam válidas as restrições às liberdades individuais abraçaram o balancing como uma técnica pertinente de interpretação dos direitos, argumen-tando que o exercício dos direitos poderia ser condiciona-do em função de interesses gerais, como a segurança nacio-

108 ALEXY, Robert. Constitutiona/ Rights, Balancing and Rationality, Ratio Juris, vol. 16, n° 2, 2003, p. 134 e ss.; e NOVAIS, Jorge Reis. As restrições aos direitos fundamentais não expressamente autorizadas pela Constituição, 2003, p. 678 e ss.. 109 ALEINIKOFF, T. Alexander. Constitutional Law in the Age of Balancing, Yale Law Journal n°96, 1987, pp. 943 a 1005.

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nal. Aqueles que rejeitavam as restrições defendiam, nesse contexto, o absolutismo das cláusulas do Bill of Rights.

Na prática judicial, acabou prevalecendo o uso do balancing que, nesse ponto, assumiu os contornos do que se passou a denominar de ad hoc balancing"°. Como já referido, o ad hoc balancing identifica as situações nas quais o juiz, diante de um caso concreto, pondera livremen-te os elementos em disputa, sem qualquer parâmetro pré-vio, objetivo e público que o oriente, guiado mais pelo seu bom senso do que por qualquer outro elemento.

Com o passar do tempo, superada a intensa disputa política dos primeiros debates, os defensores originais do absolutismo retraíram-se, de certa forma, e passaram a re-conhecer que uma concepção absoluta dos direitos funda-mentais seria insustentável na sociedade contemporânea. Por outro lado, há amplo consenso na doutrina norte-ame-ricana de que o ad hoc balancing, ao ensejar excessiva sub-jetividade e discricionariedade, é altamente indesejável e deve ser tanto quanto possível evitado. A síntese dessas duas posições tem sido o desenvolvimento, associado à téc-

110 Em Car/son v. Landon, 342 U.S. 524 (1952), a Suprema Corte norte-americana decidiu que o Attorney General poderia manter preso até a decisão sobre a deportação, sem direito à fiança, estrangeiro que fosse membro do Partido Comunista dos Estados Unidos, quando houvesse indício de risco para a segurança nacional por conta da liberação por fiança, embora não houvesse dispositivo constitucional que respaldasse essa competência. Embora a decisão desrespeitasse a cláusula do devido processo legal (quinta emenda), entendeu-se que essa garantia deveria ser ponderada com a proteção da segurança nacional. Em Barenblatt v. United States, 360 U.S. 109 (1959), a Corte considerou constitucional a legislação que conferia ao Comitê de Atividades Não Americanas do Parlamento plenos poderes para investigar atividades comunistas no país, o que incluía a possibilidade de interrogar professores universitários acerca de sua participação em grupos comunistas, sob pena de prisão.

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nica da ponderação, de categorias, parâmetros, testes dog-maticamente sustentáveis e aplicáveis de forma geral e abs-trata a fim de reduzir a subjetividade do processom

No mais das vezes, a doutrina e a jurisprudência norte-americanas tratam do assunto casuisticamente, procurando construir parâmetros específicos para os diferentes confli-tos'''. O exemplo mais expressivo desse esforço é o amplo material existente sobre as várias hipóteses de tensão que envolvem a liberdade de expressão (consagrada pela Pri-meira Emendam). Há diferentes standards conforme a

111 S CHAUER, Frederick. Principies, Institutions and the First Amendment, Harvard Law Review, vol. 112, n° 1, 1998, pp. 84 a 120; e ALEINIKOFF, T. Alexander. Constitutional Law in the Age of Balancing, Yale Law Journal n° 96, 1987, p. 948: "Commentators have occasionally distinguished balancing that establishes a substantive constitutional principie of general application (labeled 'definitional' balancing by Professor Nimmer) from balancing that itself is the constitutional principie (so-called 'ad hoc balancing). New York v. Ferber is an example of definitional balancing. Ferber's holding, that the distribution of child pornography is not protected by the First Amendment, may be appliedin subsequent cases Without additional balancing. Ad hoc balancing is illustrated by the Court's approach in procedural due process cases. Under Mathews v. Eldridge, the process that the Constitution requires is determined by balancing the governmental and private interests at stake in the particular case." V. também NISHIGAI, Makato. Comment: From Categorizing to Balancing Liberty Interests in Constitutional Iurisprudence: An Emerging Sliding-Scale Test in the Seventh Circuit and Public School Uniform Policies, Wisconsin Law Review 2001, pp. 1583 a 1617.

112 Vale registrar que da experiência norte-americana não se extraem exclusivamente parâmetros para conflitos específicos. A jurisprudência construiu, por exemplo, standards gerais vedando que leis ou atos restritivos de direitos empreguem expressões excessivamente vagas ou abrangentes (vagueness ou broadness). 113 Texto da Primeira Emenda: "Congress shall make no law respecting an establishment of religion, or prohibiting the free exercise thereof; or abridging the freedom of speech, or of the press; or the right of the people

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manifestação dessa liberdade esteja relacionada a objetivos políticos, culturais ou comerciais (propaganda comercial); conforme as restrições envolvam o conteúdo da mensagem ou apenas o modo, tempo e/ou lugar como ela será divulga-da; dentre outras variações' 14 .

Na Alemanha, as discussões sobre a ponderação, a par-tir da Constituição de 1948, desenvolveram-se em um con-

texto político totalmente distinto do norte-americano e re-ceberam o influxo de idéias as mais diversas'". Seria im-possível descrever aqui com um mínimo de precisão esse complexo debate, travado sobretudo nas décadas de 50 a 70' I'. Para os fins deste capítulo, basta destacar algumas práticas já consolidadas pelo Tribunal Constitucional ale-mão1 7.

Também na Alemanha, a possibilidade de o juiz proce-der ao ad hoc balancing suscitou inúmeras críticas (muitas das quais resumidas nos tópicos anteriores), não só por for-ça da inconsistência metodológica da técnica, mas também

peaceably to assemble, and to petition the Government for a redress of grievances."

114 SCHAUER, Frederick. Principies, Institutions and the First Antendment, Harvard Law Review, vol. 112, n° 1, 1998, pp. 84 a 120; SUNSTEIN, Cass. Pornography and the First Emendment, Duke Law Journal, 1986, pp. 589 a 627; e PORTO, Brian L. The Constitution and Political Patronage: Supreme Court Jurisprudence and the Balancing of First Amendment Freedoms, Pace Law Review n° 13, 1993, pp. 87 a 139.

115 NOVAIS, Jorge Reis. As restrições aos direitos fundamentais não expressamente autorizadas pela Constiuição, 2003, p. 678 e ss..

116 V. sobre o tema, TORRES, Ricardo Lobo. "A legitimação dos direitos humanos e os princípios da ponderação e da razoabilidade". In: TORRES, Ricardo Lobo (organizador). Legitimação dos direitos humanos, 2002, p. 421 e ss..

117 RUPP, Hans G. "El Tribunal Constitucional Federal alemán". In: Tribunales constitucionales europeosy derechos fundamental es, 1984, pp. 319 a 412.

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por conta da ameaça que esse recurso hermenêutico pode-ria representar em matéria de restrições a direitos funda-mentais'''. Esse quadro foi especialmente agravado uma vez que também na Alemanha desenvolveu-se a discussão, já referida, sobre a possibilidade ou não de restringirem-se direitos (pela via legislativa ou jurisprudencial) formulados de maneira aparentemente absoluta pelo constituinte (isto é, sem qualquer cláusula autorizativa de restrição), em oposição àqueles outros direitos que contêm uma reserva de regulamentação atribuída pela Constituição ao legis-lador.

Uma técnica concebida inicialmente como alternativa à ponderação foi a chamada concordância prática'''. Por meio dela se buscaria uma otimização dos bens em conflito sem privar qualquer deles de sua garantia jurídico-constitu-cional. A doutrina registra que o principal instrumento me-todológico da concordância prática era (e é) a idéia de pro-porcionalidade, analiticamente desenvolvida em suas três fases (adequação, necessidade e proporcionalidade em sen-tido estrito) pela doutrina alemã e já amplamente incorpo-rada pela doutrina e prática judicial brasileiraslw.

118 CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Jurisdição constitucional democrática, 2004, p. 157 e ss..

119 HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional da República Federal da Alemanha, 1998, p. 65 e ss..

120 ,BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição, 2003, p. 213; ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios, 2003, p. 104 e ss.; ÁVILA, Humberto. A distinção entre princípios e regras e a redefinição do dever de proporcionalidade, Revista de Direito Administrativo n°215, pp. 151 a 179; SILVA, Luís Virgílio Afonso da. O proporcional e o razoável, Revista dos Tribunais n°798, 2002, pp. 23 a 50; e GUERRA FILHO, Willis Santiago. "Sobre o princípio da proporcionalidade". In: LEITE, George Salomão (organizador). Dos princípios constitucionais. Considerações em torno das normas

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A concordância prática foi concebida inicialmente como uma técnica alternativa à ponderação, pois se imagi-nava que a ponderação levaria sempre à preeminência de um bem constitucional sobre o outro, ao passo que a con-cordância prática procurava harmonizá-los. A fórmula de solucionar conflitos pela qual um elemento normativo pre-valecia em detrimento dos demais, àquela altura identifica-da com a própria ponderação, era objeto de acirrada crítica, especialmente tendo em conta a necessidade de manter-se a unidade da Constituição. Com o tempo, e considerando a prática do Tribunal Constitucional, a concordância práti-ca acabou por ser incorporada à ponderação como um seu ideal, e com ela os testes relacionados com a proporciona-lidade. Isto é: a ponderação deve, sempre que possível, buscar a concordância prática'".

De toda sorte, e como registra Robert Alexy, a partir de 1958 (sobretudo após o julgamento do caso Lüth'"), a

principiológicas da Constituição, 2003, pp. 237 a 253. Mais adiante será examinada a relação entre a concordância prática e a proporcionalidade. 121 Nada obstante, essa oposição entre os conceitos continua a ser defendida por alguns autores, como se percebe da observação de SERNA, Pedro e TOLLER, Fernando. La interpretación constitucional de los derechos fundamentales. Una alternativa a los conflictos de derechos, 2000, p. 34: "Es interesante observar — por lo que se dirá en el siguiente capitulo — que este 'principio de la concordancia práctica' es denominado por Scheuner 'principio interpretativo de la 'armonización', y por Lerche 'equilibrio de máximo respecto en ambas direcciones'. Desafortunadamente, el Tribunal Constitucional Federal alemán recurre a tal principio solo cuando a través de la ponderación de bienes no ha logrado establecer una jerarquia entre los bienes en conflicto, invirtiendo asi el orden que debiera ser más razonable desde su propia perspectiva." 122 O caso decidido pelo Tribunal Constitucional pode ser resumido, simplificadamente, nos seguintes termos. No fim da década de 40, Erich Lüth havia defendido publicamente o boicote geral a determinado filme produzido por cineasta que servira ao regime nazista. A produtora do

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ponderação incorporou-se definitivamente ao arsenal her-menêutico do Tribunal Constitucional alemão123. Ao longo do tempo, a jurisprudência do Tribunal elaborou diversas diretrizes sobre a matéria, especialmente quando se trate de conflitos entre direitos fundamentais e metas públicas ou bens coletivos. Algumas dessas diretrizes podem ser re-sumidas nos seguintes termos: (i) quanto maior for a inten-sidade da restrição, mais significativos devem ser os valores comunitários que a justificam; (ii) quanto maior for o peso e a premência de realização do interesse comunitário que justifica a restrição, mais intensa ela poderá ser; e (iii) quanto mais diretamente forem afetadas manifestações elementares da liberdade individual, mais exigentes devem ser as razões comunitárias que fundamentam a restrição124.

filme ajuizou demanda contra Lüth e o Tribunal estadual de Hamburgo julgou o pedido procedente, considerando a conduta de Lüth ilícita, com fundamento em disposição do Código Civil sobre bons costumes, e condenando-o a interrompenhar a campanha pelo boicote, sob pena de prisão ou multa. O Tribunal Constitucional, entretanto, reformou a decisão da Corte estadual (Sentença 7, 198, de 1958). O Tribunal Constitucional entendeu que a legislação infraconstitucional deve ser interpretada à luz do direito fundamental à liberdade de opinião e, que no caso, a liberdade constitucional de opinião protegia a conduta de Erich Lüth. Para maiores detalhes, v. SCHWABE, Jürgen, Cincuenta arios de jurisprudencia dei Tribunal Constitucional Federal Alemán, 2003, p. 132 e ss..

123 ALEXY, Robert. Constitutional Rights, Balancing and Rationality, Ratio Juris, vol. 16, n° 2, 2003, p. 134: "From a methodological point of view, the concept of balancing is the central concept in the adjudication of the Federal Constitutional Court, which has developed further the line first set out in the Lüth decision." 124 NOVAIS, Jorge Reis. As restrições aos direitos fundamentais não expressamente autorizadas pela Constituição, 2003, p. 692 e ss.; e ALEXY, Robert. Constitutional Rights, Balancing and Rationality, Raio Juris, vol. 16, n° 2, 2003, p. 131 e ss..

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Também decorre da jurisprudência do Tribunal a cons-trução que visualiza no texto constitucional uma ordem escalonada de valores, conformada pelos direitos funda-mentais, de modo que da própria Constituição se podem extrair relações de preferência condicionada ou prima facie entre seus enunciados. Mais recentemente, a doutrina ale-mã, e Robert Alexy em particular, tem procurado desen-volver uma fórmula esquemática para ordenar a ponde-ração, a fim de conferir-lhe mais racionalidade e objetivida-de'25.

Da rápida narrativa que se acaba de fazer, é interessan-te observar um ponto. Diferentemente dos Estados Uni-dos, onde a ponderação foi sendo ordenada, sobretudo por meio da elaboração casuística de standards materiais (isto é: relativos ao conteúdo específico das disposições em ten-são e por isso mesmo aplicáveis a conflitos particulares), na Alemanha, o esforço doutrinário e as próprias formulações do Tribunal Constitucional se concentram na criação de parâmetros lógicos de caráter geral, cujo objetivo é organi-zar e controlar o raciocínio jurídico levado a cabo quando se emprega a ponderação.

São mecanismos diferentes cujo propósito, em última análise, é semelhante: reduzir a discricionariedade do in-térprete, conferindo maior racionalidade e previsibilidade ao processo ponderativo. E essas duas formas de conferir à ponderação maior previsibilidade e racionalidade — isto é: standards materiais associados a conflitos específicos e construídos a partir da observação da casuística e parâme-tros gerais de natureza argumentativa e lógica — ou

125 ALEXY, Robert., On Balancing and Subsumption. A Structural Comparison, Ratio Juris, vol. 16, n°4, 2003, p. 433 e ss.. No artigo, Alexy procura organizar uma fórmula para a ponderação empregando noções de aritmética.

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combinações delas podem ser especialmente úteis para a experiência brasileira.

Em resumo desta primeira parte, é possível registrar o que se segue. A ponderação é uma técnica de solução de determinados conflitos normativos, a saber, aqueles que envolvem colisões de valores ou de opções político-ideoló-gicas. Essa técnica, embora venha se tornando cada vez mais popular, sofre hoje com a inconsistência metodológi-ca, com a excessiva subjetividade e com a banalização do discurso constitucional, dentre outras críticas.

Essas críticas são em boa parte pertinentes e devem ser enfrentadas, mesmo porque as alternativas à técnica não parecem consistentes e não superam as dificuldades impu-tadas à ponderação, apenas modificando a nomenclatura aplicável. As experiências norte-americana e alemã têm procurado aperfeiçoar a técnica através de mecanismos di-ferentes e é possível inspirar-se na experiência internacio- nal para conceber fórmulas adequadas à realidade nacio-na, 126 . O objetivo da próxima parte do estudo é exatamente propor uma ordenação para a técnica da ponderação que possa superar, ainda que parcialmente, as críticas descritas acima.

126 NOVAIS, Jorge Reis. As restrições aos direitos fundamentais não expressamente autorizadas pela Constiuição, 2003, p. 643: "Assim, enquanto que na Europa, particularmente sob influência da experiência alemã, a síntese do processo de racionalização e dessubjectivização do recurso à ponderação de bens gira em torno da sua integração e aplicação concreta nos quadros do princípio da proporcionalidade em sentido lato, nos Estados Unidos da América, sem se desconhecer, como se verá, este instituto, a síntese opera-se, sobretudo, na standardização dos procedimentos de controlo e na cristalização tendencial dos seus resultados em regras de aplicação geral e abstracta."

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V. A técnica da ponderação: Uma proposta em três etapas

O objetivo deste capítulo é propor um modelo de orde-nação da técnica da ponderação pelo qual seja possível identificar com maior clareza as etapas que o intérprete deve percorrer ao empregá-la. Trata-se, ao mesmo tempo, de um roteiro para o próprio intérprete e de uma forma de controlar com mais facilidade suas conclusões.

A proposta concebe a aplicação da ponderação como um processo composto de três etapas sucessivas'", que

127 ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios, 2003, propôs igualmente uma ponderação em três etapas que identifica da seguinte forma (fls. 79 e ss.): (i) a preparação da ponderação (análise o mais exaustiva possível de todos os elementos e argumentos pertinentes); (ii) a realização da ponderação (fundamentar a relação estabelecida entre os elementos objeto de sopesamento); e (iii) reconstrução da ponderação (formulação de regras de relação com pretensão de validade para além do caso). V. também BARROSO, Luís Roberto e BARCELLOS, Ana Paula de. "O começo da história. A nova interpretação constitucional e o papel dos princípios no direito brasileiro". In: BARROSO, Luís Roberto (organizador). A nova interpretação constitucional. Ponderação, direitos fundamentais e relações privadas, 2003, pp. 327 a 379.

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podem ser identificadas, muito resumidamente, nos se-guintes termos. Na primeira delas, caberá ao intérprete identificar todos os enunciados normativos que aparente-mente se encontram em conflito ou tensão e agrupá-los em função da solução normativa que sugerem para o caso con-creto. A segunda etapa ocupa-se de apurar os aspectos de fato relevantes e sua repercussão sobre as diferentes solu-ções indicadas pelos grupos formados na etapa anterior. A terceira fase é o momento de decisão: qual das soluções deverá prevalecer? E por quê? Qual a intensidade da restri-ção a ser imposta às soluções preteridas, tendo em conta, tanto quanto possível, a produção da concordância prática de todos os elementos normativos em jogo? Cada etapa exige algumas considerações específicas.

V. 1. Primeira etapa: identificação dos enunciados normativos em tensão

Parece natural que a primeira etapa da ponderação consista exatamente em identificar os enunciados normati-vos aparentemente em conflito; afinal, esta é a circunstân-cia que justifica o recurso à técnica da ponderação'". A identificação de todos os elementos normativos que devem ser levados em conta em determinado caso é vital para que

128 Na verdade, não basta o conflito aparente entre os enunciados. Como se registrou na primeira parte deste estudo, só será necessário empregar a ponderação se o conflito não puder ser superado pelas técnicas tradicionais de solução de antinomias, por envolver uma disputa grave entre valores ou opções políticas. Assim, após a identificação preliminar dos enunciados em tensão, será o caso de verificar se o conflito não pode ser solucionado por qualquer das técnicas tradicionais. Apenas se isso não for possível é que o processo de ponderação terá continuidade.

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a ponderação se desenvolva sem maiores distorções129. É

fácil perceber que, se um dispositivo — relevante para o caso — for ignorado pelo intérprete, os elementos que su-gerem uma solução contrária à que a disposição ignorada indicaria assumirão um peso artificialmente maior ao longo da arg-umentaçãom.

129 ALEXY, Robert. Colisão de direitos fundamentais e realização de direitos fundamentais no estado de direito democrático, Revista de Direito Administrativo n° 217, 1999, p. 69: "Exatamente para compreender adequadamente colisões complexas, porém, é necessário identificar claramente os elementos fundamentais dos quais elas são compostas.", e ÁVILA, Humberto, Teoria dos princípios, 2003, pp. 87 e 88: "Nessa fase devem ser analisados todos os elementos e argumentos, o mais exaustivamente possível. É comum proceder-se a uma ponderação sem indicar, de antemão, o que, precisamente, está sendo objeto de sopesamento. Isso, evidentemente, viola o postulado científico da explicitude das premissas, bem como o princípio jurídico da fundamentação das decisões, ínsito ao conceito de Estado de Direito.". 130 Um exemplo curioso desse desequilíbrio se deu no julgamento do habeas corpus 73662/MG, decidido pela 20 Turma do Supremo Tribunal Federal. Tratava-se de definir se a presunção de violência, referida no art. 213 c/c o art. 224, a, do Código Penal, que qualifica como estupro a relação sexual mantida com menor de 14 anos, era absoluta ou relativa. O voto do Ministro Marco Aurélio, relator do processo, acompanhado pela maioria, considerou que a presunção era relativa, fundado principalmente nas circunstâncias fáticas do caso, mas também por conta do art. 226 da Constituição, que trata da proteção à família. O argumento era o de que o acusado de estupro no caso, após os eventos que deram origem à ação penal, havia constituído família e sua condenação desagregaria esse grupo social que a Constituição pretendia proteger. A minoria sequer examinou esse elemento normativo, fundando-se em outro enunciado constitucional: o art. 227, § 4°, no qual se impõe ao legislador o dever de punir severamente a exploração sexual de crianças e adolescentes. O argumento da minoria era o de que compreender a presunção do art. 224, a, do Código Penal como relativa violaria o dispositivo constitucional em questão, já que bastaria a vítima — com freqüência coagida pelo agressor — afirmar que não houve violência para descaracterizar o crime. O art. 227, § 4°, da Constituição, porém, sequer foi examinado pelo voto do

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O processo se desenvolve de forma semelhante no caso de disposições infraconstitucionais cuja validade esteja em disputa por força da incidência de enunciados constitucio-nais diversos, que aparentemente indicam conclusões con-traditórias'''. Todos os elementos devem ser identificados — os que postulam a constitucionalidade do dispositivo e os que sugerem sua inconstitucionalidade — para que se possa passar à segunda fase'".

Note-se um ponto importante. Em processos subjetivos, em que há lide, pretensão e resistência, é razoável supor que cada parte tentará levar ao juiz todos os argumentos normati-vos imagináveis capazes de sustentar sua posição jurídica. Por conta do esforço das partes, o órgão competente terá melhores condições de visualizar o quadro completo de inci-dências normativas para iniciar a ponderação. O mesmo não ocorre nos processos objetivos de controle de constituciona-lidade, como é o caso da ação direta de inconstitucionalidade (ADIn) e da ação declaratória de constitucionalidade (ADECON) e, de certa forma, também da argüição de des-cumprimento de preceito fundamental (ADPF)'".

Ministro Relator. (STF, HC 73662/MG, Rel. Min. Marco Aurélio, DJU 20.09.1996). 131 As cláusulas constitucionais que tratam do devido processo legal e do direito de defesa, e.g., fornecerão suporte para um dispositivo legal que restrinja a possibilidade de concessão de providências liminares em processos judiciais. A garantia constitucional da inafastabilidade do controle judicial, no entanto, poderá indicar em sentido oposto. O tema foi enfrentado pelo Supremo Tribunal Federal na ADIn n° 223, que será examinada adiante, no capitulo VIII. 132 HAGE, Jaap C. Reasoning with Rules, 1997, p. 86 e ss.. Embora o autor compreenda a ponderação em sentido muito mais amplo e diverso do que o proposto neste estudo, seu raciocínio pode ser aplicado aqui com proveito, apenas procedendo-se a algumas adaptações. 133 O espaço para ponderação e a necessidade de emprego da técnica poderão ser mais limitados em processos abstratos e objetivos, nos quais

Não há nesses processos um contraditório propriamen-te dito, a despeito do papel reservado à Advocacia Geral da União de defender a disposição impugnada no caso da ADIn'34. Nesse contexto, a figura do amicus curiae, intro-duzida no Brasil pelo art. 70, § 2°, da Lei n° 9868/1999', poderá ser um instrumento capaz de fazer chegar ao Supre-mo Tribunal Federal percepções diversas acerca da maté-ria, das quais talvez o autor da ação, o Advogado Geral da União, o Ministério Público e os próprios Ministros não cogitasseml". Os setores da sociedade diretamente inte-

eventuais tensões normativas serão examinadas em tese. Sobre o tema, v. SANCHÍS, Luis Prieto.."Neoconstitucionalismo y ponderación judicial". /n: CARBONELL, Miguel (organizador). Neoconstitucionalimo(s), 2003, p. 155 e ss.. Nada obstante, embora tais processos sejam descritos como objetivos, pelo fato de neles se discutir a compatibilidade em abstrato de enunciado normativo com a Constituição, e não pretensões individuais, não há como ignorar que a decisão a ser tomada acerca da validade do enunciado terá sempre repercussão na esfera dos interesses subjetivos. V. BINENBOJM, Gustavo. A nova jurisdição constitucional brasileira, 2001, p. 137 e ss..

134 Note-se, ademais, que o Supremo Tribunal Federal tem dispensado o Advogado Geral da União de proceder à defesa do dispositivo impugnado, quando já houver entendimento do STF no sentido da sua inconstitucionalidade. V. STF, ADIn 2687/PA, Rel. MM. Nelson Jobim, DJU 06.06.2003; ADIn 1616/PE, Rel. Min. Maurício Correa, DJU 24.08.2001; e ADIn 2101/MS, Rel. MM. Maurício Correa, DJU 05.10.2001.

135 O STF tem considerado aplicável, por analogia, a figura do amicus curiae também no processo de argüição de descumprimento de preceito fundamental. STF, ADPF 54/DF, Rel. Min. Marco Aurélio, decisão liminar, DJU 02.08.2004.

136 A partir do segundo semestre de 2003,0 Supremo Tribunal Federal, em oposição a sua tendência inicial restritiva, ampliou as possibilidades de participação do amicus curiae, admitindo não só que ele (ou eles) apresente memoriais, como também que sustente oralmente suas razões, a juízo da Corte. Vejam-se, entre outros, os seguintes acórdãos que

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ressados nas questões discutidas muitas vezes são capazes de demonstrar incidências normativas que, em tese, talvez não fossem tão facilmente perceptíveisl". Seja no processo subjetivo, seja no objetivo — e neste de forma especial, tendo em conta os efeitos erga omnes e vinculantes de suas decisões —, o importante é que todos os enunciados nor-mativos pertinentes sejam identificados nesse primeiro momento da ponderação, ou ao menos que se tente produ-zir o quadro mais completo possível desses elementos nor-mativos. Há ainda três observações a fazer sobre essa pri-meira etapa do processo.

a) Interesses e enunciados normativos

Quando o intérprete é confrontado com um impasse jurídico, é freqüente que os interesses em oposição sejam percebidos de forma mais clara que os próprios enunciados normativos envolvidos. Em outras palavras, é comum que a primeira coisa a captar a atenção de quem esteja examinan-do o caso sejam as conveniências dos envolvidos, seus inte-

trataram da admissão do amicus curiae no STF: ADIn 1104/DF, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJU 29.10.2003; e ADIn 2540/RJ, Rel. Min. Celso de Mello, DJU 08.08.2002. 137 MORSE, Allison. Good Science, Bad Law: a "Multiple Balancing" Aproach to Adjudication, South Dakota Law Review n°46, 2000/2001, pp. 410 e 411: "This article advocates a "multiple balancing" framework in which the Court takes into consideration multiple sources of information. (...) The more information of which the Court must take notice, the more it will be forced to provide explicit reasoning why it relies on some information and not on other information. (...) In order to get the Court's biases out in the open, 'multiple balancing' calls for the Justices to follow an explicit process of adjudication. Additionally, 'multiple balancing' allows the input of other voices from different disciplines to submit amicus briefs, in order that the Justices take in account perspectives of other values."

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resses e, de forma geral, a justiça ou injustiça de suas pre-tensões. Não obstante isso, quando se vai iniciar a primeira fase da ponderação, interesses genericamente considerados só podem ser levados em conta se puderem ser reconduzi-dos a enunciados normativos explícitos ou implícitos. Um interesse que não encontre fundamento no sistema jurídico não deverá ser considerado'" e, em qualquer caso, nesta primeira fase, o que estará sendo examinado é o enunciado normativo no qual o interesse encontrou respaldo lógico, e não o interesse propriamente dito. Explica-se melhor.

A ponderação, como já se mencionou, é uma técnica de decisão jurídicam . Se o intérprete a quem cabe decidir considerar, ao lado de elementos normativos pertinentes, e no mesmo nível destes, interesses não qualificados pelos

138 Esse fundamento normativo não significa necessariamente um dispositivo explícito, já que, como se sabe, o sistema jurídico é aberto. V. CLEVE, Clèmerson Merlin e FREIRE, Alexandre Reis Siqueira. "Algumas notas sobre colisão de direitos fundamentais". In: GRAU, Eros Roberto e CUNHA, Sérgio Sérvulo da (organizadores). Estudos de direito constitucional em homenagem a José Afonso da Silva, 2003, p. 233: "Os conflitos entre direitos fundamentais e bens jurídicos de estatura constitucional ocorrem quando o exercício de direito fundamental ocasiona prejuízo a um bem protegido pela Constituição. Nesta hipótese não se trata de qualquer valor, interesse, exigência, imperativo da comunidade, mas sim de um bem jurídico. Bens jurídicos relevantes são aqueles que a Constituição elegeu como dignos de especial reconhecimento e proteção." 139 HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional da República Federal da Alemanha, 1998, p. 66: "De todo, é inadmissível dar primazia a 'bens comunitários superiores' constitucionalmente não protegidos — que se deixam sustentar discricionalmente — e, com isso, não só simplesmente ludibriar a unidade da Constituição, mas também a Constituição. Na medida em que as valorações de uma ponderação de bens são determinadas 'somente no plano constitucional', um princípio de ponderação de bens, assim entendido, aproxima-se do princípio da concordância prática." (grifos no original).

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órgãos competentes como juridicamente relevantes e dig-nos de proteção, isto é, se se admite o ingresso de meros interesses no processo, a ponderação acaba por se transfor-mar em uma avaliação puramente política. É próprio da lógica política considerar todas as vantagens e desvantagens de uma determinada decisão; não é isso, porém, que cabe fazer na ponderação de que se cuida aqui. Embora a estru-tura do raciocínio seja semelhante, na ponderação jurídica deverão ser considerados apenas os elementos normativos em conflitol". Equiparar disposições normativas e interes-ses não juridicizados é uma forma ilegítima de refazer o ofício do legislador. Alguns exemplos ajudam a esclarecer o ponto.

Suponha-se que um juiz esteja examinando um feito no qual se discute a não-cumulatividade do IPI ou do ICMS, prevista nos arts. 153, § 30, II, e 155, § 2°, I, da Constitui-ção Federal. Contra a pretensão do particular de ver reco-nhecida a não-cumulatividade e o direito à compensação tributária, a Fazenda federal ou estadual argumenta que, no caso, a não-cumulatividade produzirá uma queda impor-tante de arrecadação. É fácil perceber que o interesse gené-rico da Fazenda de incrementar a arrecadação não o trans-forma, por si só, em um elemento jurídico capaz de valida-mente se contrapor aos enunciados constitucionais referi-dos em um hipotético processo de ponderação. A Fazenda poderá demonstrar que outros elementos normativos indi-

140 HAGE, Jaap C. Reasoning with Rules, 1997, p. 90: "Practically this means that if we are engaged in a legal discussion and we collect mies to base reasons on, these mies must be legally valid. Legal conclusions must be based on legal reaons, which in their tum must be based on legal mies (or legal principies, or legal goals etc.)." O autor considera (p. 92 e ss.) que além dos enunciados legais propriamente ditos, há regras sociais (social mies) que são reconhecidas e empregadas pela comunidade como legal rides e, nesse caso, também elas devem ser consideradas.

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cam uma solução contrária ao reconhecimento do direito à compensação141, mas o mero interesse de aumentar a arre-cadação não pode ser considerado nesta primeira fase da ponderaçãoi".

Imagine-se ainda, como outro exemplo, que os vizinhos de um edifício em construção — regularmente licenciado — preferissem que nada fosse edificado no lote em ques-tão, para preservar a tranqüilidade atual da área. O simples interesse ou desejo, porém, não é um elemento normativo. Há algum fundamento jurídico capaz de respaldar esse in-teresse? O advogado do grupo talvez pudesse cogitar, na esfera constitucional, dos princípios que consagram os di-reitos difusos ao meio ambiente ecologicamente equilibra-do e à sadia qualidade de vida, previstos no art. 225 da Constituição.

Assim, um hipotético conflito entre, de um lado, as disposições normativas que regulam o direito de construir e a autorização para edificar na cidade e, de outro, o desejo dos vizinhos de não verem coisa alguma construída no local deve ser descrito, nessa primeira fase do processo pondera-tivo, como um conflito entre as disposições normativas que tutelam o direito de construir e concedem a autorização para edificar na cidade e os princípios constitucionais que tratam do meio ambiente e da qualidade de vida, inscritos no capuz- do art. 225 da Carta. Não se trata, note-se, de um

141 Como já referido, a simples existência de antinomias aparentes ou de pretensões resistidas não transforma a disputa em uma hipótese na qual a ponderação deverá ser empregada; as técnicas hermenêuticas tradicionais solucionam a maioria dos casos. O objetivo do exemplo é apenas destacar a diferença entre interesses e enunciados normativos, 142 As repercussões fáticas do acolhimento da pretensão do particular poderão ser examinadas na segunda fase da ponderação, como se verá adiante.

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conflito entre os enunciados que consagram o direito de construir e um suposto "direito à não construção do pré-dio", pois não existe disposição normativa alguma atribuin-do esse direito aos vizinhos do empreendimento. Se esse direito vier a existir, no caso, ele terá sido construído, a partir do dispositivo mencionado, após o processo de inter-pretação e, se necessário, de ponderação143. O ponto será aprofundado no tópico seguinte. Nesse momento, tudo que existe a favor dos vizinhos são os princípios do art. 225 e são eles os elementos normativos a serem identificados.

Cabe aqui uma observação importante. O que se acaba de registrar não significa que a ponderação deva orientar-se por uma lógica positivista normativista ou que interesses, bens e valores devam ser eliminados do processo pondera-tivo. E isso por um conjunto de razões. Em primeiro lugar, a questão sequer se coloca uma vez que se mantenha o debate sobre a ponderação dentro do seu contexto históri-co. Os sistemas jurídicos nos quais essa discussão se desen-volve — de que é exemplo o brasileiro — são sistemas abertos, compostos de princípios e regras, explícitos e im-plícitos, que incorporam opções valorativas e professam compromisso com a dignidade humana, com os direitos fundamentais, com a igualdade de todos e com a democra-ciai". Ou seja: na verdade, os elementos valorativos inte-gram o próprio sistema, e todas as questões discutidas nes-se estudo pressupõem esse quadro. Se, em outro ambiente

143 Supondo evidentemente, para simplificar o exemplo, que o único enunciado normativo capaz de oferecer fundamento à pretensão dos . vizinhos seja a disposição constitucional referida. 144 Aliás, como mencionado na introdução, uma das causas jurídicas imediatas da multiplicação de conflitos normativos que exigem a ponderação é justamente a ampla introdução de elementos valorativos no sistema, e sobretudo na Constituição.

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histórico ou cultural, um determinado sistema jurídico não apresenta essas características, antes de se discutir a pon-deração será necessário travar um debate acerca da legiti-midade desse sistema' 45, mas não é disso que se cuida aqui.

Em segundo lugar, associando-se a moderna hermenêu-tica a sistemas jurídicos como os que se acaba de descrever, ter-se-á tantas modalidades de vínculos entre uma preten-são e o sistema quantas a argumentação e a lógica jurídicas forem capazes de construir, desde a subsunção mais sim-ples, até os raciocínios mais sofisticados. Ou seja: interes-ses, bens, valores ou qualquer outra espécie de argumento poderão, sim, ingressar na primeira etapa da ponderação, uma vez que possam ser descritos juridicamente e encon-trem suporte em algum elemento do sistema. É certo que não basta a indicação ritualística de um enunciado norma-tivo qualquer para que se encontre satisfeita a exigência. A consistência do vínculo entre a pretensão e o ordenamento jurídico será submetida a controle argumentativo ao longo da ponderação, sobretudo tendo-se em conta que preten-sões opostas podem justificar-se a partir do mesmo sis-tema.

Na verdade, o uso exclusivo de enunciados normativos na ponderação tem por objetivo preservar o espaço de de-terminação democrática e a legitimidade da própria opera-ção ponderativa, na medida em que se exige, desde o início, que as diferentes pretensões demonstrem sua vinculação

145 A discussão acerca da legitimidade do conteúdo de um determinado sistema jurídico pode envolver parâmetros morais extraídos de consensos substantivos (apurados historicamente ou de alguma outra forma) ou pode valer-se de concepções procedimentais acerca da forma mais adequada de ordenação da sociedade. O tema é próprio da filosofia do Estado e do Direito.

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com o sistema juridico146. Os interesses que não puderem demonstrar alguma conexão com a ordem jurídica não se-rão admitidos na discussão147 . Desse modo, tenta-se redu-zir a fragilidade apontada pela crítica quando afirma que a ponderação seria um meio de politizar as decisões jurídicas e invadir, arbitrária e ilegitimamente, a esfera reservada aos órgãos majoritários. Também a crítica de que a ponderação não contaria com um parâmetro de comparação externo aos elementos em conflito perde consistência, já que o sis-tema jurídico vigente, e o constitucional em particular, for-necem esse parâmetro'".

li) Normas e enunciados normativos

A segunda observação, ainda sobre esta primeira etapa, envolve uma definição mais precisa do que seja o elemento normativo que estará sendo identificado aqui. Trata-se na verdade de fazer uma distinção da maior importância entre dois fenômenos diversos, ainda que interligados: o enuncia-do normativo e a norma.

A distinção que há entre enunciado normativo e norma não é nova'49, mas recentemente tem sido sublinhada pela doutrina150. De forma geral, o enunciado normativo corres-

146 ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica, 2001, p. 212: "A questão sobre o que distingue a argumentação jurídica da argumentação geral pratica é um dos problemas centrais da teoria do discurso jurídico. Um ponto pode ser estabelecido mesmo neste estágio: a argumentação jurídica é caracterizada por seu relacionamento com a lei válida; contudo, isso precisa ser determinado. Isso esclarece uma das mais importantes diferenças entre a argumentação jurídica e a argumentação prática geral. No contexto da discussão jurídica nem todas as questões estão abertas ao debate. Essa discussão ocorre com certas limitações." 147 AARNIO, Aulis. Reason and Authority, 1997, p. 192: "This means that one has to be able to justify every interpretation by referring to the formal law (statute; legal rule), but it must, in addition to this, fulfil the set standards of valuation. Only thus can the expectation of legal certainty be fulfilled to its maximum, and therefore legal certainty seems always to be, partially, a substantive notion." 148 ALEXY, Robert. On Balancing and Subsumption. A Structural Comparison, Ratio Juris, vol. 16, n° 4, 2003, p. 442: "The question is not the direct comparability of some entities, but the comparability of their importance for the constitution, which of course indirectly leads to their comparability. The concept of importance for the constitution contains two elements which suffice to bring about commensurability. The first is a common point of view: the point of view of the constitution. It is, naturally, possible to have a dispute about what is valid from this point of view. Indeed, this occurs regularly. It is, however, always a dispute about what is correct on the basis of the constitution. Incommensurability,

indeed, comes into being immediately, once the common point of view is given up. This would, for example, be the case if one interpreter of the constitution were to say to the other that from bis point of view the one thing is valid, and from that of the other the opposite, so that each is right from his point of view, and neither of them can be wrong or even criticized, because a common point of view from which anything couldbe proven as wrong neither exists nor could exist. Discourse which is more than empty rhetoric, that is, rational discourse about the right or correct solution, would then be impossible. Now, the opposite is valid, too. If rational discourse about what is correct on the basis of the Constitution is possible, then a common point of view is possible. It becomes real as soon as rational discourse begins which is oriented to the regulative idea of what is correct on the basis of the constitution. Whoever wants to undermine the possibiliity of evaluations by appeal to the impossibility of a common point of view must then be prepared to claim that rational discourse about evaluations in the framework of constitutional interpretation is impossible." 149 LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito, 1969, p. 270 e ss.. 150 MOI I FR, Friedrich. Métodos de trabalho do direito constitucional, Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, Edição especial comemorativa dos 50 anos da Lei Fundamental da República Federal da Alemanha, 1999, p. 45 e ss.; GUASTINI, Riccardo. Distinguendo. Studi di Teoria e Metateoria dei Diritto, 1996, pp. 82 e 83; e GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação e aplicação do direito, 2002, p. 17: "O que em verdade se interpreta são os textos normativos;

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ponde ao conjunto de frases, isto é, aos signos lingüísticos que compõem o dispositivo legal ou constitucional e des-crevem uma formulação jurídica deontológica, geral e abs-trata, contida na Constituição ou na lei, ou extraída do sistema. Quando se trate de disposições constitucionais ou legais, o enunciado normativo corresponde ao texto, mas é perfeitamente possível haver enunciados implícitos ou que decorram do sistema como um todo'''.

A norma, diversamente, corresponde ao comando es-pecífico que dará solução a um caso concreto. De forma geral, ela encontra seu fundamento principal em um ou mais de um enunciado normativo, ainda que seja perfeita-mente possível haver normas extraídas do sistema como um todol". Um exemplo ajuda a compreender o ponto.

O art. 50, inciso LXIII, da Constituição de 1988 regis-tra que "o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assis- tência da família e de advogado". Este é o enunciado nor-mativo. A norma que mais evidentemente se extrai desse enunciado produz-se nas seguintes circunstâncias, já roti-neiramente conhecidas: um indivíduo, preso e levado a jul-

da interpretação dos textos resultam as normas. Texto e norma não se identificam. A norma é a interpretação do texto normativo. (...) O conjunto dos textos — disposições, enunciados — é apenas ordenamento em potência, um conjunto de possibilidades de interpretação, um conjunto de normas potenciais [Zagrebelsky]." 151 A identificação dos enunciados implícitos ou daqueles que decorrem do sistema exige, por natural, um esforço interpretativo prévio. Antes de sua introdução formal no sistema jurídico, isso era o que se passava, por exemplo, com a razoabilidade, a boa-fé e a vedação do enriquecimento sem causa. 152 Sobre o tema, v. ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios, 2003, p. 13.

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gamento, não está obrigado a prestar esclarecimentos ou fornecer informações que lhe possam ser desfavoráveis. Ele terá direito ao silêncio e o exercício desse direito não pode-rá ser usado contra ele para reforçar sua incriminação'".

Interessantemente, em função de outras circunstâncias concretas que foram se repetindo no mundo dos fatos, doutrina e jurisprudência desenvolveram outra norma a partir desse mesmo enunciado normativo: os indivíduos convocados para prestar esclarecimentos perante Comis-sões Parlamentares de Inquérito (CPIs) — embora não se-jam, a rigor, acusados de coisa alguma e muito menos este-jam presos — podem socorrer-se do direito constitucional ao silêncio e deixar de prestar informações que considerem prejudiciais a seus interesses154. Na verdade, entende-se

153 STF, HC 80949/RJ, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJU 14.12.2001: "O privilégio contra a auto-incriminação — nemo tenetur se detegere —, erigido em garantia fundamental pela Constituição — além da inconstitucionalidade superveniente da parte final do art. 186 C.Pr.Pen. — importou compelir o inquiridor, na polícia ou em juizo, ao dever de advertir o interrogado do seu direito ao silêncio: a falta da advertência — e da sua documentação formal — faz ilícita a prova que, contra si mesmo, forneça o indiciado ou acusado no interrogatório formal e, com mais razão, em 'conversa informal' gravada, clandestinamente ou não."

154 STF, HC 79812/SP, Rel. MM Celso de Mello, DJU 16.02.2001: "O privilégio contra a auto-incriminação — que é plenamente invocável perante as Comissões Parlamentares de Inquérito — traduz direito público subjetivo assegurado a qualquer pessoa, que, na condição de testemunha, de indiciado ou de réu, deva prestar depoimento perante órgãos do Poder Legislativo, do Poder Executivo ou do Poder Judiciário. — O exercício do direito de permanecer em silêncio não autoriza os órgãos estatais a dispensarem qualquer tratamento que implique restrição à esfera jurídica daquele que regularmente invocou essa prerrogativa fundamental. Precedentes. O direito ao silêncio — enquanto poder jurídico reconhecido a qualquer pessoa relativamente a perguntas cujas

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que o enunciado contido no art. 501 LXIII reflete um enun-ciado mais geral, que vem a ser o que protege os indivíduos da auto-incriminação.

É fácil perceber que as duas normas referidas acima — a que diz respeito aos presos e a que envolve depoentes em CPIs — são distintas como conseqüência da incidência de um mesmo enunciado sobre diferentes ambientes fáticos. Ou seja: o mesmo enunciado poderá desencadear o surgi-mento de normas diversas, em função das diferentes cir-cunstâncias de fato sobre as quais incidal". A norma cor-responderá afinal ao comando, extraído ou construído a partir de enunciado(s), para incidir sobre determinada cir-cunstância de fato156. Quanto à estrutura, portanto, a nor-ma será uma regra que corresponde ao resultado final de

respostas possam incriminá-la (nemo tenetur se detegere) — impede, quando concretamente exercido, que aquele que o invocou venha, por tal específica razão, a ser preso, ou ameaçado de prisão, pelos agentes ou pelas autoridades do Estado. — Ninguém pode ser tratado como culpado, qualquer que seja a natureza do ilícito penal cuja prática lhe tenha sido atribuída, sem que exista, a esse respeito, decisão judicial condenatória transitada em julgado. O princípio constitucional da não-culpabilidade, em nosso sistema jurídico, consagra uma regra de tratamento que impede o Poder Público de agir e de se comportar, em relação ao suspeito, ao indiciado, ao denunciado ou ao réu, como se estes já houvessem sido condenados definitivamente por sentença do Poder Judiciário. Precedentes." 155 É possível cogitar de situações nas quais o mesmo enunciado pode ser apresentado por partes em conflito, cada qual pretendendo extrair dele uma norma que atenda a seus interesses. Os argumentos suscitados nos debates envolvendo aborto opõem em geral, dentre outros elementos, a dignidade da gestante e do feto. O mesmo princípio da legalidade (CF, art. 5°, II) pode ser empregado na argumentação da Administração e dos particulares em sentidos diversos e para justificar pretensões eventualmente colidentes. 156 GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação e aplicação do direito, 2002, p. 19.

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urna interpretação ou, eventualmente, de uma ponde-ração'".

A despeito do que se acaba de observar, não é possível ignorar que o termo norma tem sido usado indistintamente para significar ora o enunciado normativo, ora a norma pro-priamente dita, e que será provavelmente inútil lutar con-tra um uso lingüístico tão enraizado. Mais do que as pala-vras, porém, a distinção é importante porque terá conse-qüências práticas e não apenas teóricas. No que diz respei-to ao terna deste tópico, a conseqüência mais relevante é a seguinte: para o fim de verificar quais são os elementos normativos em tensão, o que deverá ser identificado nessa primeira fase da ponderação são os enunciados normativos, e não as normas. A observação parece óbvia e de fato o é: se a ponderação é uma técnica pela qual se vai decidir qual a solução do caso — ou seja, qual a norma que se deve extrair do conjunto de diferentes enunciados que incidem na hipó-tese —, não se pode, evidentemente, iniciar o processo a partir do fim.

É certo que o tema envolve um outro aspecto. Embora enunciado normativo e norma sejam fenômenos distintos, eles interagem ao longo de todo o processo ponderativo e antes mesmo de seu início formal. Como já se referiu, a ponderação será empregada quando se esteja diante de um conflito normativo que envolva valores ou opções políticas e que não tenha sido solucionado pelas técnicas hermenêu-ticas tradicionais. Há, portanto, um momento preliminar no qual o intérprete, tendo em conta as circunstâncias fáti-cas da hipótese e sua compreensão da realidade e do Direi-

157 ALEXY, Robert. On the Structure of Legal Principies Ratio Juris, vol. 13, n°3, 2000, p. 297 e ss.; e HAGE, Jaap C. Reasoning with Rules, 1997, p. 96.

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toi58, visualiza um conflito dessa natureza entre as normas que imagina ou intui decorrerem do sistema jurídico159.

Ora, a primeira etapa da ponderação é justamente um momento de reflexão acerca desse impulso inicial, na qual se procurará identificar se há de fato enunciados normati-vos no sistema jurídico fundamentando as normas que se imaginou estarem em conflito e, por conseqüência, se há efetivamente um conflito normativo. Essa primeira etapa serve também para que se verifique se todos os enunciados pertinentes estão sendo considerados e se eles justificam a existência de outras normas, capazes inclusive de superar o conflito visualizado inicialmente. Com efeito, após esse es-forço inicial é perfeitamente possível concluir — e quiçá essa será a hipótese mais freqüente — que não há afinal um conflito normativo ou que ele pode ser superado por meios hermenêuticos convencionais, sendo desnecessário percor-rer as etapas seguintes da ponderação. Como se vê, há aqui um movimento de ir e vir entre enunciado e normas possí-veis160, como a rigor é próprio da interpretação em geraP61.

158 Embora não caiba aprofundar o tema aqui, a interpretação não é um fenômeno externo ao objeto interpretado ou neutro em relação a ele. De certa forma, a interpretação participa da própria constituição desse objeto. Sobre o tema, v. PASQUALINL Alexandre. Hermenêutica e sistema jurídico, 1999, p. 15 e ss.; e CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e argumentação, 2001. 159 Como se verá ao longo do estudo, a ponderação pode se desenvolver também em abstrato ou preventivamente, isto é, fora de um caso concreto. Mesmo nesses casos, porém, sempre haverá circunstâncias fáticas a considerar, fruto da observação de casos pretéritos ou da imaginação dos teóricos. 160 O que inclui também, necessariamente, uma apreciação preliminar dos fatos, embora seu exame ordenado só vá ocorrer na segunda fase da ponderação. 161 REALE, Miguel. Lições preliminares de direito, 1999, p. 303: "Donde podemos concluir que o ato de subordinação ou subsunção do

Feita a digressão, e retornando ao ponto, repita-se ain-da uma vez: são os enunciados normativos em tese aplicá-veis à hipótese que devem ser indicados nesta fase, seja qual for sua estrutura (regra ou princípio). Ou seja: se o enunciado que se considera aplicável é um princípio geral (como a dignidade humana ou o princípio democrático), é ele que deverá figurar nessa fase. No exemplo do empreen-dimento imobiliário descrito no tópico anterior, são os princípios gerais que protegem o meio ambiente ecologica-mente equilibrado e a sadia qualidade de vida que deverão ser indicados nesta primeira fase.

Esse cuidado é importante a fim de evitar-se um desvio que não é incomum na argumentação jurídica. O intérpre-te, desejando — conscientemente ou não — fazer prevale-cer uma determinada solução, procede da seguinte forma nessa primeira etapa. Para fundamentar a solução que lhe é cara, ele indica uma norma construída de forma isolada a partir de apenas um ou alguns dos enunciados relevantes, sem submetê-los, dessa forma, ao confronto com os demais enunciados pertinentes; para justificar a solução oposta, porém, o intérprete apresenta os enunciados no seu nível de generalidade próprio. Por esse mecanismo, um (ou al-guns) dos enunciados "corre por fora" e se apresenta na primeira fase do processo como uma disposição muito mais concreta do que de fato é, e eventualmente com uma estru-tura diversa da sua original: em vez de princípio, ele passa a figurar como urna regra, desequilibrando a ponderação.

O exemplo a seguir, embora um tanto curioso, ajuda a

fato à norma não é um ato reflexo e passivo, mas antes um ato de participação criadora do juiz, com a sua sensibilidade e tato, sua intuição e prudência, operando a depois no raciocínio do juiz, pois este não raro vai da norma ao fato e vice-versa, cotejando norma como substrato condicionador de suas indagações teóricas e técnicas."

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esclarecer a questão. Suponha-se que uma senhora de 66 anos more em uma casa na frente da qual há um amplo e belo jardim. Infelizmente, a senhora já não tem condições de pagar o jardineiro, o jardim começa a deteriorar-se e ela decide exigir judicialmente que o Poder Público custeie a manutenção da área. Os fundamentos da demanda são o dever estatal de amparar as pessoas idosas e defender o seu bem estar (Constituição Federal, art. 230) e o fato de que a visão do jardim bem cuidado tornou-se indispensável para a sua qualidade de vida (art. 225), para sua saúde psíquica e emocional (art. 196) e, afinal, para sua dignidade (art. I°, III). Evidentemente, é possível cogitar de um conjunto grande de outros enunciados, constitucionais e infraconsti-tucionais, que se opõe à pretensão da senhora, mas não há necessidade de discorrer sobre esse ponto.

Se, porém, na primeira fase de um hipotético processo de ponderação, em vez dos princípios contidos nos referi-dos arts. 1°, III, 196, 225 e 230 da Constituição, já se concluir que deles decorre um direito a ter o jardim manti-do pelo Poder Público, haverá uma distorção no processo. Em vez de se confrontarem com os princípios que consti-tuem o vínculo da pretensão da senhora com a ordem jurí-dica, os enunciados que venham a se opor a essa pretensão terão de disputar primazia com um direito específico, construído com base nos enunciados suscitados apenas pela autora. Toda a operação hermenêutica para saber se o con-junto de enunciados alegados pela autora autoriza que se fale de um direito a ter o jardim mantido pelo Poder Públi-co terá sido subtraída do processo. Do ponto de vista estru-tural também haverá uma distorção: em vez de princípios, a pretensão autoral terá agora uma regra a seu favor'".

162 Interessante problema, semelhante ao descrito no texto, é discutido nos Estados Unidos acerca da forma mais ou menos geral como um direito

O importante a destacar aqui é que o intérprete, ao identificar os enunciados normativos em conflito na pri-meira fase da ponderação, deve ter a cautela de não intro-duzir normas obtidas com base em apenas alguns enuncia-dos de forma isolada, à margem do processo de ponderação e antes que ele possa se desenvolver. É certo que muitas

em discussão deve ser identificado. V. TRIBE, Laurence H. e DORF, Michael C.. Leveis of General ity in the Definition of Rights, University of Chicago Law Review n° 57, 1990, p. 1065: "Bowers v Hardwick illustrates the centrality of the leveis of generality question. Writing for the majority, Justice White contended that 'the issue presented is whether the Federal Constitution confers a fundamental right upon homosexuals to engage in sodomy'.. In dissent, Justice Blacicmun argued that the case was no more about 'a fundamental right to engage in homosexual sodomy' than Stanley v Georgia, 394 US 557 (1969), was about a fundamental right to watch obscene movies, or Katz v United States, 389 US 347 (1967), was about a fundamental right to place interstate bets from a telephone booth. Rather, this case is about 'the most comprehensive of rights and the right most valued by civilized men', namely, 'the right to be let alone'. Justice Blackmun may have overstated the point, since Katz involved a type of 'privacy' that 'does make the claimant's substantive conduct irrelevant; at issue [in a case like Katz] is the government's manner of discovering the conduct'. But he overstated it only a little, because the Court need not have regarded Hardwick as a case about 'homosexual sodomy' at ali. The state statute at issue drew no distinction between homosexual and heterosexual intimacies. The majority and the dissenters in Hardwick argue over how abstractly to describe the right at issue. The majority describes the right narrowly, the dissent broadly. These alternative descriptions evidently reflect the fact that the majority and dissent have reached different conclusions as to whether Hardwick's behavior is constitutionally protected. As such, we might view them as shorthand for the holding and the dissent. Yet the characterizations are the starting points for the analysis. Because the majority and dissent ask different questions, it is not surprising that they give different answers. The majority's question answers itself. Describing a claimed right in very specific terms — here, as a 'right to engage in homosexual sodomy' — disconnects it from previously established rights."

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vezes o aplicador, intuitivamente, já sabe a que resultado chegará ao fim da ponderação e haverá a tendência de ante-cipá-lol". Ora, o propósito de ordenar e explicitar as eta-pas do raciocínio ponderativo é precisamente submeter a "intuição" a controles de juridicidade e racionalidade. Se o resultado intuitivo for afinal juridicamente consistente e racional, ele resistirá a esses controles e será possível che-gar à mesma conclusão — agora fundamentadamente — após todo o percurso.

c) Situações individuais e enunciados normativos

Sobre essa primeira fase do processo ponderativo, há uma última observação a fazer, que se relaciona à anterior. Como já se repetiu várias vezes, devem ser selecionados nesta primeira fase apenas os enunciados normativos. Man-ter-se fiel a essa premissa é particularmente importante quando o caso concreto no qual o conflito se manifesta confronta situações individuais e algum tipo de política de interesse geral.

Os exemplos mais freqüentes dessa espécie de conflito ocorrem quando as chamadas leis de ordem pública pare-cem chocar-se com atos jurídicos perfeitos ou direitos ad-quiridos'64, ou ainda quando leis ou atos fundados em inte-

163 Curiosamente, o Ministro Marco Aurélio, do Supremo Tribunal Federal, não se limita a reconhecer o fato, chegando a recomendar ao magistrado essa postura, nos seguintes termos, que reproduz em alguns de seus votos: "Ao examinar a lide, o magistrado deve idealizar a solução mais justa, considerada a respectiva formação humanística. Somente após, cabe recorrer à dogmática para, encontrado o indispensável apoio, formalizá-la." (e.g., RE 111787/GO, DJU 13.09.1991, RTJ 136/1292). 164 Sobre o conflito entre o direito adquirido e a incidência das chamadas leis de ordem pública, v. PORCHAT, Reynaldo. Da

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resses coletivos pretendem restringir direitos indivi-duais'". É freqüente que nessas hipóteses o intérprete seja tentado a visualizar o problema normativo como uma opo-sição entre o interesse de um indivíduo e o interesse da coletividade como um todo. A formulação do conflito nes-ses termos, como é fácil perceber, gera um equívoco lógico que poderá produzir uma distorção inicial do processo pon-derativo em favor da solução que privilegia os interesses da coletividade.

O equívoco lógico pode ser descrito da seguinte manei-ra. Ao imaginar que o conflito se opera entre a pretensão individual e o enunciado que consagra um bem coletivo, o intérprete estará contrapondo uma norma — o direito do indivíduo — e um enunciado normativo. O desequilíbrio decorre de a contraposição se dar entre fenômenos diver-sos, já que o direito do indivíduo está fundado também em um enunciado normativo geral, que consagra determinada posição jurídica não apenas para o benefício de um indiví-duo em particular, mas para o benefício de todos que este-jam em situação equivalente.

Assim, quando um particular questiona a incidência de determinada "lei de ordem pública" sobre sua posição jurí-dica, alegando violação a direito adquirido, o conflito que

retroactividade das leis civis, 1909, p. 67: "O que convém ao applicador de uma nova lei de ordem pública ou de direito público, é verificar se, nas relações jurídicas já existentes, há ou não direitos adquiridos. No caso affirmativo, a lei não deve retroagir, porque a simples invocação de um motivo de ordem publica não basta para justificar a offensa ao direito adquirido, cuja inviolabilidade, no dizer de Gabba, é também um forte motivo de interesse publico." 165 Robert Alexy formula uma preferência abstrata dos direitos individuais sobre os interesses coletivos. V. ALEXY, Robert. Derechos, razonamiento jurídico e discurso racional, Revista Isonomia n° 1, p. 44 e ss., 1994. A esse ponto se voltará no capítulo 1X.

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pode se estabelecer não é entre a pretensão individual e o enunciado de ordem pública, mas sim entre a disposição constitucional que protege o direito adquirido contra a in-cidência da lei nova — e que certamente também pode ser descrita como de ordem pública'66 — e o enunciado legal em questão. Quando se visualiza o conflito equivocada-mente como posição individual versus enunciado de ordem pública, isso poderá conduzir o intérprete à conclusão apressada — e a rigor imprecisal" — de que o direito indi-vidual deve ceder em benefício do interesse público'''. Em

166 BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição, 2003, p. 47 e ss..

167 A moderna doutrina de direito público brasileira tem questionado e reformulado o tradicional princípio da supremacia do interesse público, tendo em conta a centralidade do indivíduo e dos direitos fundamentais no sistema jurídico, especialmente após a Carta de 1988. ÁVILA, Humberto Bergman. Repensando o princípio da supremacia do interesse público sobre o particular, Revista Trimestral de Direito Público n° 24, 1998, p. 159; e OSÓRIO, Fábio Medina. Existe uma supremacia do interesse público sobre o privado no direito administrativo brasileiro?, Revista dos Tribunais n°770) 1999, p. 53. 168 Essa assimetria entre, de um lado, pretensões de interesse público e, de outro, pretensões individuais pode ocorrer não apenas nos termos descritos no texto, mas também em conseqüência de como se interpreta cada um dos enunciados. O tema é recorrente na experiência norte-americana. V., por todos, ACKERMAN, Bruce. Exchange; Levels of Generality in Constitucional Interpretation: Liberating Abstraction, University of Chicago Law Review n°59, 1992, p. 318: "The statism of the new Republican court expresses itself in a fundamental asymmetry in its attitude toward legal abstraction. In interpreting the power-granting side of the Constitution, today's Court exhibits no hesitation about the liberating power of abstraction. It shows no serious inclination to question the New Deal transformation of a federal government with limited powers into a national government with plenary powers at home and abroad. Instead, the Court saves ali its doubts about abstract thought for the rights-granting side of the Constitution. This asymmetry — abstract powers, but particular rights — shows the authoritarian bias in the

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suma: os enunciados normativos devem ser todos aprecia-dos no mesmo nível de abstração, não se confundindo com a(s) norma(s) que cada um deles pode justificar.

Ainda nesta primeira fase, após a identificação dos enunciados pertinentes, é conveniente ordená-los em gru-pos de sentido, em função das direções que indiquem para a solução do caso concreto". Essa operação não envolverá, em geral, maiores complexidades e com essas observações já se pode avançar para a segunda fase da ponderação.

V.2. Segunda etapa: identificação dos fatos relevantes

Na segunda fase cabe examinar as circunstâncias con-cretas do caso e suas repercussões sobre os elementos nor-

emerging pattern of Supreme Court decisions. Time and again, the Court authorizes the activist state to assault fundamental constitutional rights in ways that evade the narrowing judicial focus. This asymmetry would be troubling enough if it were 'only' a matter of legal method. it is a single Constitution we are interpreting — both when it speaks about powers and when it speaks about rights. Nobody who takes interpretation seriously should feel free to split the text in two, and approach the fragments in radically different ways — unless he is prepared to tell us why."; e EASTERBROOK, Frank. H.. Exchange; Levels of Generality in Constitutional Interpretation: Abstraction and Authority, University of

Chicago Law Review n°59, 1992, pp. 349 a 380.

169 Embora seja comum a polarização dos elementos, formando dois grupos, nada impede que haja mais de dois, cada qual apontando para uma direção diversa. É possível imaginar, por exemplo, hipóteses em que diferentes enunciados constitucionais relativos à ordem econômica possam entrar em tensão, como, por exemplo, o que prevê o tratamento favorecido para empresas brasileiras de pequeno porte (art. 170, IX), o que comanda que a lei apóie e estimule o cooperativismo (art. 174, §§ 2° a 4°) e o que autoriza a exploração direta pelo Estado de atividades econômicas (art. 173).

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inativos, daí se dizer que a ponderação depende substan-cialmente do caso concreto e de suas particularidades'7°. Há algumas observações a fazer sobre a questão.

A frase "examinar as circunstâncias concretas do caso e suas repercussões sobre os elementos normativos" descre-ve, na verdade, uma operação composta de no mínimo duas partes. Em primeiro lugar, o intérprete terá que destacar, dentre todas as circunstâncias de fato que caracterizam a hipótese, aquelas que considera relevantes. E o primeiro problema que se coloca é saber o que atribui relevância a um aspecto de fato. Em segundo lugar, e as duas questões estão interligadas, os fatos relevantes terão influência sobre o peso ou a importância a ser reconhecida aos enunciados identificados na fase anterior e às normas por eles propug-nadas. Essa repercussão dos fatos sobre os enunciados tam-bém merece uma breve nota.

a) Fatos relevantes

O que leva uma determinada circunstância fática a ser considerada relevante no sentido aqui referido? Essa dis-cussão pode muitas vezes transitar pelo óbvio ou, ao con-trário, suscitar graves disputas. Nesse contexto, será útil observar que há em geral dois fundamentos que justificam a relevância atribuída aos elementos de fato. O primeiro deles é dado pelo senso comum de uma sociedade, forma-do a partir de sua história e cultura. Dessa forma, um de-terminado aspecto fático é considerado relevante se a ex-periência social assim o considera. Um segundo fundamen-

170 ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica, 2001, p. 227; SARMENTO, Daniel. A ponderação de interesses na Constituição Federal, 2000; e DERANI, Cristiane. Direito ambiental econômico, 1996 (os três primeiros capítulos).

to pelo qual se consideram relevantes determinados fatos é a existência de disposições normativas que autorizam essa conclusãom. É certo que haverá hipóteses nas quais o in-térprete identificará um elemento de fato como relevante por conta dos dois fundamentos. Alguns exemplos ajudam a ilustrar a hipótese.

Com fundamento apenas no senso comum, e conside-rando a realidade brasileira, a cor dos cabelos do indivíduo será irrelevante para a decisão acerca da maior ou menor proteção de sua vida privada, quando este bem esteja em confronto, e.g., com a liberdade de imprensa. Já mesclando o senso comum com fundamentos jurídicos, a solução des-se mesmo conflito normativo será certamente influenciada pelo fato de a pessoa envolvida ser, e.g., titular de um man-dato eletivo, de modo que este será agora um aspecto de fato relevante. As disposições normativas que tratam da democracia, da obrigação de prestar contas por parte dos agentes políticos e do princípio da publicidade qualificarão a circunstância como relevante nessa espécie de conflito.

Entretanto, nem sempre o processo de apurar a rele-vância dos fatos será simples assim, tanto quando se trate do senso comum, como quando se cuide de relevância por qualificação jurídica. Famosa decisão de tribunal estadual considerou que determinada atriz, cuja foto, na qual posava nua, foi publicada por jornal popular sem autorização espe-cífica, não tinha direito à indenização por dano moral — embora fizesse jus à reparação pela violação do direito à imagem —, pois se tratava de moça especialmente bonita e o evento não lhe teria causado sofrimento algum. Na per-cepção do órgão julgador, haveria dano moral apenas se se

171 LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito, 1969, p. 280 e ss..

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tratasse de moça feia que fosse retratada nessas condi-ções'''. O fato identificado como relevante no caso foi a beleza (ou a falta dela) da moça. Posteriormente, a juris-prudência evoluiu em sentido diverso, considerando que a beleza ou não da pessoa que tem sua imagem exposta não é relevante para o fim de configurar-se o dano moral ou a violação do direito à honra. O que será considerado humi-lhante ou vexatório para cada indivíduo dependerá de no- vas avaliações que levem em conta as circunstâncias do caso concreto173 .

172 TJRJ, Embargos Infringentes n°250/99 Rel. Des. Wilson Marques, DORJ 04.10.1999: "Só mulher feia pode se sentir humilhada, constrangida, vexada em ver seu corpo desnudo estampado em jornais ou em revistas. As bonitas, não. Fosse a autora uma mulher feia, gorda, cheia de estrias, de celulite, de culote e de pelancas, a publicação de sua fotografia desnuda — ou quase — em jornal de grande circulação, certamente lhe acarretaria um grande vexame, muita humilhação, constrangimento enorme, sofrimento sem conta, a justificar — aí sim — o seu pedido de indenização de dano moral, a lhe servir de lenitivo para o mal sofrido."

173 Ao votar no julgamento do Recurso Especial que reformou o acórdão do TJRJ acima referido, a Min. Nancy Andrighi fez o seguinte registro: "A amplitude de que se utilizou o legislador no art. 50, inc. X da CF/88 deixou claro que a expressão 'moral', que qualifica o substantivo dano, não se restringe aquilo que é digno ou virtuoso de acordo com as regras da consciência social. E possível a concretização do dano moral independentemente da conotação média de moral, posto que a honra subjetiva tem termômetro próprio inerente a cada indivíduo. (...) Por isso, a sábia doutrina concebeu uma divisão no conceito de honorabilidade: honra objetiva, a opinião social, moral, profissional, religiosa que os outros têm sobre aquele indivíduo, e honra subjetiva, a opinião que o indivíduo tem de si próprio. (...) A norma jurídica protetora da honra alcança as dores internas." (STJ, REsp 270730/RJ, Rel. Min. Nacy Andrighi, DJU 07.05.2001). Vejam-se, ainda, STJ, REsp 230268/SP, Rel. MM Antônio de Pádua Ribeiro, DJU 18.06.2001 e STJ, REsp 448604/RJ, Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, DJU 25.02.2004.

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A qualificação de fatos a partir de elementos jurídicos também poderá ensejar alguma discussão. A Constituição afirma que, salvo na hipótese de segredo de justiça, os atos processuais são públicos' 74. Isso significa que questões dis-cutidas no âmbito de processos judiciais podem ser livre-mente divulgadas pela imprensa? Esse tem sido o entendi-mento no Brasil'", ao menos na maior parte dos casos, mas não foi essa a tese vitoriosa no caso Lebach, julgado em 1973, pelo Tribunal Constitucional alemão'". Seria impos-

174 CF: "Art. 5° - (...) LX - a lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem".

175 STF, RE 208685/RJ, Rel. Min. Ellen Gracie, DJU 22.08.2003: "Direito à informação (CF, art. 220). Dano moral. A simples reprodução, pela imprensa, de acusação de mau uso de verbas públicas, prática de nepotismo e tráfico de influência, objeto de representação devidamente formulada perante o TST por federação de sindicatos, não constitui abuso de direito. Dano moral indevido. RE conhecido e provido." No mesmo sentido, v. STF, AO 770/AM, Rel. Min. limar Galvão, DJU 09.05.2003.

176 Em linhas gerais, tratava-se de decidir se um canal de televisão poderia exibir documentário sobre um homicídio que havia abalado a opinião pública alemã alguns anos antes, conhecido como "o assassinato de soldados de Lebach". A questão foi suscitada por um dos condenados, então em fase final de cumprimento de pena, sob o fundamento de que a veiculação do programa atingiria a sua honra e, sobretudo, configuraria sério obstáculo ao seu processo de ressocialização. A primeira instância e o tribunal revisor negaram o pedido de liminar formulado pelo autor, que pretendia obstar a exibição. O fundamento adotado foi o de que o envolvimento no fato delituoso o tornara um personagem da história alemã recente, o que conferia à divulgação do episódio interesse público inegável, prevalente inclusive sobre a legítima pretensão de ressocialização. Diante disso, o autor interpôs recurso constitucional (Verfassungsbeschwerde) perante o Tribunal Constitucional, alegando, em síntese, violação ao princípio da dignidade da pessoa humana, que abrigaria em seu conteúdo o direito à reinserção social. Após proceder à oitiva de representantes do canal de televisão interessado, da comunidade

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sível, por óbvio, examinar aqui a relevância das inúmeras circunstâncias de fato que podem ocorrer nos diferentes conflitos envolvendo valores ou opções políticas e nem é esse o propósito deste estudo. É bem de ver que um dos objetivos que se pretende alcançar com a construção de parâmetros específicos, sobre o que se tratará na terceira parte deste trabalho, é exatamente tabular os elementos de fato relevantes que com maior freqüência estão presentes nos diferentes tipos de conflito dessa natureza. O exame da jurisprudência será especialmente útil nesse particular.

b) Repercussões dos fatos sobre os enunciados norma-tivos

Há ainda duas observações a fazer sobre esta segunda fase da ponderação. A experiência indica que as circunstân-cias de fato podem repercutir de duas formas distintas so-bre as soluções indicadas pelos grupos de elementos nor-mativos identificados ao fim da primeira fase, descrita aci-ma. Em primeiro lugar, os fatos podem atribuir um peso maior ou menor a alguma delas. Assim, em um confronto entre as duas soluções — publicar ou não matéria jornalís-tica sobre a rede de amigos de um deputado federal —, o fato de se tratar de matéria envolvendo um deputado fede-ral atribuiria maior peso, nesse caso, ao grupo de enuncia-dos normativos que sugere a publicação da matéria.

Há outras circunstâncias de fato, porém, que não atri-

editorial alemã, de especialistas nos diversos ramos do conhecimento pertinentes, do Governo Federal e do Estado da Federação onde o condenado haveria de se reintegrar, o Tribunal reformou o entendimento dos juizos anteriores, concedendo a liminar para impedir a veiculação do programa, caso houvesse menção expressa ao interessado.

buem propriamente um peso maior ou menor a determina-da solução; diversamente, elas são responsáveis por infor-mar o grau de restrição que a escolha de cada uma das soluções possíveis pode impor sobre as demais naquele caso concreto. Essa informação será da maior utilidade para o intérprete: se a realização prática de uma das soluções importar uma restrição insignificante ao que as derhais pos-tulam, os enunciados normativos correspondentes a essa primeira solução terão um peso reforçado no caso concre-to. O chamado caso "Glória Trevi", decidido pelo Supre-mo Tribunal Federal, ilustra essa espécie de situação.

A cantora Glória Trevi, ao descobrir-se grávida na pri-são, acusou de estupro os policiais que trabalhavam na car-ceragem. Quando do nascimento da criança, os acusados apresentaram seus padrões de bNA e solicitaram que fosse realizado o exame na Criança, de modo que a veracidade das acusações formuladas pela mãe pudesse ser submetida à prova. A questão acabou sendo decidida pelo STF, que, a despeito da oposição da mãe, deferiu o pedido. A decisão do Supremo Tribunal Federal levou em conta especialmen-te a possibilidade de realizar o exame com o material da placenta, o que não importaria qualquer restrição impor-tante à integridade física da mãe ou da criançal".

Note-se que o dado fático em questão — a circunstân-cia de ser possível realizar o exame de DNA a partir de material da placenta — não confere maior importância à honra dos policiais. Ele simplesmente revela que o atendi-mento dessa peetensão no caso não causa qualquer restri-ção relevante ao outro elemento em disputa, a saber: a in-tegridade física da mãe e, sobretudo, da criança. Por outro lado, a adoção de uma norma que vedasse a realização do

177 STF, RCL 2040/DF, Rel. Min. Néri da Silveira, DJU 27.06.2003.

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teste impediria a comprovação da falsidade da acusação, meio pelo qual se poderia restaurar a honra e o bom nome dos acusados.

A última observação importante sobre esta segunda fase do processo ponderativo guarda relação com o que se acaba de registrar acerca do grau de restrição que a adoção de cada uma das soluções apuradas na Primeira fase impõe às demais. Muito freqüentemente haverá diferentes meios físicos de realizar, com mais ou menos intensidade, cada um dos conjuntos normativos em conflito. E cada uma des-sas diferentes possibilidades produzirá um equilíbrio dife-renciado entre os enunciados em tensão. Explica-se melhor com um exemplo.

Imagine-se que um indivíduo qualquer, portador de epilepsia, estivesse assistindo a uma sessão do plenário do Senado Federal e sofresse uma grave crise, necessitando de cuidados médicos. A imprensa pretende divulgar o ocorri-do e o indivíduo deseja impedir a divulgação, alegando a proteção de sua intimidade. Na realidade, não existem ape-nas as opções de divulgar e não divulgar o ocorrido. Dentro da solução que autoriza a divulgação, há diversas possibili-dades: (i) a história pode ser descrita sem referência ao nome da pessoa e sem imagens que possam identificá-la, (ii) a história pode referir o nome do indivíduo, mas sem a utilização de imagens, e (iii) por fim, a empresa de comu-nicação pode contar a história referindo o nome do envol-vido e ilustrando com imagens.

Nesta segunda fase, e sempre que isso seja possível, o intérprete deverá cogitar de todas as possibilidades fáticas por meio das quais as diferentes soluções indicadas pelos grupos normativos da primeira fase podem ser realizadas, desde a que atende mais amplamente às suas pretensões, até a que as restringe de forma importante, na linha exem-plificada acima. Cada uma dessas soluções, na verdade,

corresponde a uma norma possível, isto é, a uma possibili-dade normativa a ser extraída do conjunto de enunciados pertinentes no caso. Esses dados de fato permitirão ao in-térprete apurar se existe alguma possibilidade fática de atender a todas as soluções em um nível ótimo e, em qual-quer caso, servirão de importante subsídio para a última etapa da ponderação, como se verá adiante, especialmente para a realização, quando viável, da concordância prática.

V.3. Terceira etapa: decisão

Identificados todos os elementos pertinentes — nor-mativos e fáticos — chega-se afinal à fase de decisão. É nesta etapa que se estará examinando conjuntamente os diferentes grupos de enunciados, a repercussão dos fatos sobre eles e as diferentes normas que podem ser construí-das, tudo a fim de apurar os pesos que devem ser atribuídos aos diversos elementos em disputa'". Diante da distribui-ção de pesos — e esse o diferencial da ponderação — será

178 Lembre-se, como já se referiu, que as três fases propostas para o processo ponderativo não são estanques ou incomunicáveis. Acontece aqui, como em toda atividade hermenêutica, o movimento de ir e vir (o circulo hermenêutico) entre as diferentes premissas, fáticas e normativas, e as possíveis conclusões, até que se chegue à solução final. Em todo caso, a necessidade de fundamentação posterior impõe a ordenação do raciocínio. V. LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito, 1969, p. 371 e ss.; GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação e aplicação do direito, 2002, p. 31; CLÈVE, Clèmerson Merlin e FREIRE, Alexandre Reis Siqueira. "Algumas notas sobre colisão de direitos fundamentais". In: GRAU, Eros Roberto e CUNHA, Sérgio Sérvulo da (organizadores). Estudos de direito constitucional em homenagem a José Afonso da Silva, 2003, p. 234 e ss.; e CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e argumentação, 2001, p. 50 e ss..

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o momento de definir se é possível conciliar os diferentes elementos normativos ou se algum deles deve preponderar e, afinal, qual a norma que dará solução ao caso.

A despeito da formulação quase singela, esta é sem dú-vida a fase mais complexa de toda a operação. Na verdade, as questões que se colocam aqui são várias. Que peso deve ser atribuído a cada elemento normativo? Por que uns rece-berão um peso maior que outros? Por qual razão uma solu-ção indicada por determinados elementos normativos deve prevalecer sobre outra? A técnica da ponderação não ofere-ce respostas definitivas para essas perguntas'". Em si mes-ma, a ponderação é apenas uma técnica instrumental, vazia de conteúdo. E bem de ver que essa limitação não retira o valor de aprimorar-se a técnica da ponderação propriamen-te dita. A organização do raciocínio ponderativo facilita o processo decisório, torna visíveis os elementos que partici-pam desse processo e, por isso mesmo, permite o controle da decisão em melhores condições.

Ou seja: as etapas de exame já descritas são úteis para conduzir o raciocínio e ordenar a argumentação, mas a ver-dade é que elas não fornecem parâmetros para fundamen-tar uma escolha diante dos elementos em colisão. A cons-trução de parâmetros que auxiliem o intérprete nesse pon-to é absolutamente necessária: esse é o objeto da terceira parte deste estudo. Porém, antes de ingressar na discussão

179 ALEXY, Robert. On Balancing and Subsumption. A Structural Comparison, Ratio Juris, vol. 16, n° 4, 2003, pp. 439 e 448: "Of course, such judgments presuppose standards that are not themselves to be found in the Law of Balancing. (...) Neither the Subsumption Formula nor the Weight Formula contributes anything directly to the justification of the content of these premisses. To this extent both are completely formal. But this cannot diminish the value of identifying the lcind and the form of the premisses which are necessary in order to justify the result."

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dos parâmetros propriamente jurídicos, é possível anotar três diretrizes gerais que não só podem como devem orien-tar a atividade do intérprete nesse momento decisório.

Em primeiro lugar, o intérprete deve estar comprome-tido com a capacidade de universalização tanto dos funda-mentos empregados no processo, como da decisão propria-mente dita. Em segundo lugar, e como já referido, os esfor-ços do aplicador nesta fase devem ter por meta a concor-dância prática dos enunciados normativos em conflito. Por fim, uma terceira questão que não pode ser negligenciada nesta fase, quando ela envolva direitos fundamentais, diz respeito ao núcleo dos direitos e o limite que ele representa à ponderação. Explica-se melhor cada um desses elemen-tos.

a) Pretensão de universalidade

Para que o discurso em geral, e o discurso jurídico em particular, possa ser considerado minimamente racional, ele deve atender a um conjunto bastante amplo de exigên-cias lógicas'80. Não se vai cuidar aqui desse tema, como já sublinhado, mesmo porque ele demandaria um estudo ex-clusivo. Entretanto, dentre essas exigências, uma se desta-ca de forma particular e merece algumas notas: trata-se justamente da pretensão de universalidade'".

180 V. sobre o tema ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica, 2001; PECZENIK, Alelcsander. On Law and Reason, 1989; e MA1A, Antônio Cavalcanti e SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. "Os princípios de direito e as perspectivas de Perelman, Dworkin e Alexy". In: PEIXINHO, Manoel Messias. Os princípios da Constituição de 1988, 2001, pp. 57 a99.

181 Como já se registrou antes, o objetivo deste estudo não é expor as diferentes questões debatidas pelos teóricos da argumentação, mas apresentar uma proposta operacional de organização da técnica da ponderação e de parâmetros que possam servir-lhe de balizamento. Por

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Com a expressão pretensão de universalidade quer-se significar, na verdade, duas necessidades distintas: uma re-lacionada com a argumentação jurídica propriamente dita e outra com a decisão final do intérprete. Em primeiro lugar, espera-se do intérprete jurídico que ele empregue uma ar-gumentação universal, assim entendida aquela aceitável de forma geral dentro da sociedade e do sistema jurídico no qual ela está inserida e racionalmente compreensível por todos'82. Vale dizer: o aplicador do direito, sobretudo o

essa razão, apenas a exigência da universalidade será abordada de forma específica.

182 A exigência pode ser associada ao conceito geral de razão pública de John Rawls. É bem de ver que ao tratar da razão pública o autor desenvolve diversas outras discussões, afora a mencionada no texto. Para os fins deste estudo, basta registrar que, embora a propriedade do uso da razão pública em outras relações dentro da sociedade possa ser discutida, apenas essa espécie de razão deve ser admitida na fundamentação das decisões judiciais. RAWLS, John. Liberalismo político, 1992, pp. 204, 205 e 207: "No todas las razones son razones públicas, pues existen las razones no públicas de las Iglesias, universidades y de otras muchas asociaciones en la sociedad civil. (...) La razón pública es característica de un pueblo democrática: es la razón de sus ciudadanos, de aquellos que comparten la calidad de ciudadanía en pie de igualdad. (...) Outra característica de la razón pública es que sus limites no se aplican a nuestras deliberaciones y reflexiones personales sobre lãs cuestiones políticas, o ai razonamiento acerca de ellas por miembros de asociaciones tales como Ias Iglesias y las universidades, todo lo cual forma parte importante dei trasfondo cultural. Está claro que en esto pueden desempenar un papel apropiado las consideraciones religiosas, filosóficas y morales de muchas clases. Pero el ideal de la razón pública se aplica a los ciudadanos cuando empreenden la defensa política de algún asunto en el foro público. (...) Se aplica también, de manera especial, ai Poder Judicial y, sobre todo, a la Suprema Corte, en una democracia constitucional donde existe la revisión judicial en todas las instancias.". Para Rawls, tendo em conta sua teoria da justiça, o espaço da razão pública esta relacionado principalmente com o reconhecimento de determinados direitos e liberdades aos indivíduos em caráter prioritário e com a existência de

magistrado, não pode valer-se de argumentos ou razões que apenas façam sentido para um grupo, e não para a totalida-de das pessoas'".

Imagine-se um exemplo: uma nova seita mística susten-ta que as pedras e minérios não devem ser retirados de seus locais de origem na natureza, sob pena de todo o universo desintegrar-se. Imagine-se, ainda, que uma companhia mi-neradora ingressa em juízo disputando o direito de explora-ção de uma mina de cobre com outra empresa. Por eviden-te, o juiz não poderá adotar validamente, como um dos fundamentos de sua decisão, qualquer que seja ela, a con-cepção mística acerca dos minérios descrita acima. Por essa mesma razão, um magistrado ateu não pode fundamentar suas decisões a partir de sua própria concepção materialista do universo, assim como um religioso não pode impor aos jurisdicionados sua crença como razão de decidir. Em

meios apropriados para que todos possam desenvolver suas liberdades e oportunidades básicas. V. RAWLS, John. Liberalismo político, 1992, p. 213 e ss.. Sobre o conceito correlato de espaço público e suas diferentes concepções, v. TORRES, Ricardo Lobo. O espaço público e os intérpretes da Constituição, Revista de Direito da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro n°50, 1997, pp. 92 a 110.

183 Essa preocupação é manifestada por vários autores. Para Perelman, a racionalidade e objetividade do discurso dependem de os argumentos serem aceitáveis e convincentes para a audiência que, no caso do jurista, já não é a audiência universal própria da filosofia, mas aquela vinculada a uma comunidade social específica (PERELMAN, Logique jurídique. Nouvelle rhétorique, 1976). Na mesma linha, PECZENIK, Alelcsander. On Law and Reason, 1989, p. 189: "What matters for rationality is not actual consensus but acceptability within the relevant group of people, that is, 'audience', colleag-ues, peers, etc. These persons accept p or at least agree that p is acceptable according to the standards they accept; p is acceptable to a person."; CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e argumentação, 2001, p. 220 e ss.; e TORRE, Maximo La. Theories of LegalArgumentation and Concepts of Law. AnApproximation, Ratio Juris, vol. 14, n° 4, 2002, p. 384 e ss..

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suma: as pessoas têm ampla liberdade de convicção e práti-ca religiosa e filosófica — o que é, afinal, um precioso bem protegido por praticamente todas as Constituições con-temporâneas ocidentais' —, mas razões exclusivas de gru-pos sociais parciais não podem fundamentar decisões que devem justificar-se no espaço público'''.

Essa exigência será mais facilmente atendida quando o intérprete esteja lidando com argumentos predominante-mente jurídicos, derivados de enunciados normativos. E isso por duas razões. Em primeiro lugar, porque se presume que o conteúdo dos enunciados compartilhe de uma racio-nalidade comum a todos". E, em segundo lugar, porque o argumento em si da imperatividade própria aos dispositivos

,Y jurídicos é um elemento da racionalidade geral em um Es-tado de direito, especialmente em se tratando de um siste-ma romano-germânico. Dito de outra forma, as pessoas es-tão de acordo com a regra geral de que os enunciados nor-mativos são obrigatórios, e vinculantes e, por isso, devem ser obedecidos.

184 Razões próprias dos diferentes grupos religiosos ou filosóficos serão levadas em conta quando se trate exatamente de proteger a liberdade de crença e convicção. A rigor, porém, o fundamento de qualquer decisão nesse sentido será a própria liberdade de crença e convicção em si, e não o conteúdo de cada crença em particular. E a liberdade de crença e convicção é por certo um elemento comum à racionalidade geral, ao menos nas democracias ocidentais. Veja-se sobre o tema SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Teoria constitucional e democracia deliberativa, 2004 (ainda mimeografada).

185 É evidente que, como em todas as demais circunstâncias, o raciocínio do intérprete será influenciado por suas concepções filosóficas, ideológicas e religiosas. O controle do discurso, porém, é o meio disponível de obter-se a neutralidade possível.

186 É certo que nos sistemas que admitem o controle de constitucionaliclade das leis e atos do Poder Público essa presunção é relativa.

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A exigência de universalidade será mais sensível quan-do se trate de selecionar fatos, apreciar sua relevância e escolher os enunciados normativos em cada hipótese. A seleção inicial dos enunciados pertinentes e dos fatos que devem ser considerados são operações preliminares de di-fícil controle, determinadas, no mais das vezes, pela forma como o intérprete compreende a própria realidade, que pode variar em função de sua pré-compreensão do tema". A atribuição de relevância aos fatos, como já se viu, poderá depender de avaliações não apenas jurídicas, mas também — e principalmente — culturais, e por isso mesmo há o risco de opiniões pessoais não justificáveis publicamente dominarem o processo. Sobretudo nesses momentos, por-tanto, o raciocínio desenvolvido pelo intérprete deve utili-zar categorias comuns a todos e, nesse sentido, ser univer-sal, de modo a ser compreendido racionalmente por todos dentro de um determinado sistema jurídico".

187 V. GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação e aplicação do direito, 2002, p. 27: "Como a interpretação abrange também os fatos, o intérprete os reconforma, de modo que podemos dizer que o direito institui a sua própria realidade. Dai a importância do relato dos fatos (= narrativa dos fatos a serem considerados pelo intérprete) para a interpretação. Pois é certo que os fatos não são, fora de seu relato (isto é, fora do relato a que correspondem), o que são. O que desejo afirmar é a fragilidade do compromisso entre o relato e seu objeto, entre o relato e o relatado. Esse compromisso é, antes de mais nada, comprometido em razão (1) de jamais descrevermos a realidade; o que descrevemos é o nosso modo de ver a realidade. Além de não descrevermos a realidade, porém o nosso modo de ver a realidade, (2a) essa mesma realidade determina o nosso pensamento e, (2b) ao descrevermos a realidade, nossa descrição da realidade será determinada (i) pela nossa pré-compreensão dela (= da realidade) e (ii) pelo lugar que ocupamos ao descrever a realidade (= nosso lugar no mundo e lugar desde o qual pensamos)."

188 Isso não significa que todos deverão concordar com o intérprete, já que outros argumentos igualmente universais podem ser relevantes e

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O segundo sentido da pretensão de universalidade en-volve a decisão formulada pelo intérprete e pode ser des-crita de forma simples. A solução a que chega o intérprete deve poder ser generalizada para todas as outras situações semelhantes ou equiparáveis'" e, para isso, deve ser sub-

metida ao teste da universalização: é possível e adequado aplicar a decisão a que se chegou a todos os casos similares?

Essa exigência decorre naturalmente do dever de isono-mia aplicado à prestação da jurisdição', pelo qual todos aqueles que se encontrem em situação equivalente devem receber a mesma resposta do Poder Judiciário'''. Além dis-

conduzir a conclusões diversas. Veja-se sobre o tema AARNIO, Aulis. La tesis de la única respuesta correcta y el principio regulativo dei razonamiento jurídico, Revista Doxa n° 8, 1990, pp. 23 a 38. Embora o autor reconheça que muitas vezes é impossível apurar uma resposta única correta, ele propõe a seguinte diretriz para a argumentação jurídica (p. 37): "En• la decisión de un caso difícil se debe tratar de alcanzar una solución tal y una justificación tal que la mayoría de los miembros racionalmente pensantes de la comunidad jurídica pueda aceptar esa solución y esa justificación.".

189 ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica, 2001, pp. 186, 187 e 197: "As regras que definem o discurso prático racional são de diferentes tipos. (...) A validade do primeiro grupo de regras é urna condição prévia da possibilidade de toda comunicação lingüística que dá origem a qualquer questão sobre a verdade ou a correção: (1.1) Nenhum orador pode se contradizer. (1.2) Todo orador apenas pode afirmar aquilo em que crê. (1.3) Todo orador que aplique um predicado F a um objeto tem de estar preparado para aplicar F a todo outro objeto que seja semelhante a a em todos os aspectos importantes. (1.4) Diferentes oradores não podem usar a mesma expressão com diferentes significados. (...) Quem fizer uma afirmação normativa que pressuponha uma regra com certas conseqüências para a satisfação dos interesses de outras pessoas deve ser capaz de aceitar essas conseqüências, mesmo na situação hipotética em que esteja na situação dessas pessoas."; e PECZENIK, Aleksander. On Lato and Reason, 1989, p. 191 e ss.. Em sentido diverso, GUASTINI, Riccardo. Distinguendo. Studi de teoria e metateoria dei diria°, 1996, p. 145: "L'operazione di bilanciamento dei principi si fonda dunque su una peculiare interpretazione dei principi di cui si trattta, noncué su un soggettivo giudizio di valore (un giudizio in termini di 'giustizia') dei giudice. Cosi facendo, ii giudice sovrappone una valutazione sua propria alia valutazione dell'autorità normativa (in questo caso, l'autorità costituente). Inoltre, ii conflitto non è risoltostabilmente, una volta per tutte, facendo senz'altro prevalere uno dei chie principi

confliggenti sull'altro (como accadrebbe invece se si adottasse ii criterio 'lex specialis'); ogni soluzione dei conflitto vale solo per il caso concreto, e resta pertanto imprevedibile la soluzione deito stesso conflitto in casi futuri.' A posição de Guastini parece decorrer da importância essencial atribuída pelo autor às características de cada caso concreto para a solução da ponderação. Embora essas características sejam realmente da maior importância, isso não significa (e seria•irreal afirmá-lo) que inexistam casos equiparáveis ou semelhantes, aos quais, por um imperativo de isonomia, deva-se aplicar a mesma solução. Para uma crítica à posição de Guastini, v. MORESO, José Juan. "Conflictos entre principios constitucionales". In: CARBONELL, Miguel (organizador). Neoconstitucionalismo(s), 2003, p. 100 e ss..

190 Sobre o tema, vejam-se, dentre muitos outros: DANTAS, San Tiago. "Igualdade perante a lei e due process of law". In: Problemas de direito

público, 1953; FAGUNDES, M. Seabra. O principio constitucional da igualdade perante a lei e o Poder Legislativo, Revista dos Tribunais n° 235, 1995, p. 3; MELLO, Celso Antdnio Bandeira de. Conteúdo jurídico do

princípio da igualdade, 1993; BARROSO, Luís Roberto. "A igualdade

perante a lei". In: Temas atuais do direito brasileiro, 1987 e, do mesmo

autor, Interpretação e aplicação da Constituição, 2003, p. 230 e ss.; CASTRO, Carlos Roberto de Siqueira. O princípio da isonomia e a igualdade da mulher no direito constitucional, 1983. A construção do

sentido da cláusula constitucional equality under the lato é um dos mais recorrentes temas do direito constitucional norte-americano. Vejam-se, por todos, TRIBE, Laurence. American Constitutitional Lato, 1988, e

NOWAK, ROTUNDA e YOUNG, Constitutional Lato, 1986. Entre os autores portugueses, v. CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito

constitucional e teoria da Constituição, 1998, p. 1160 e ss..

191 STF, Mandado de Injunção n° 58, Rel. MM Celso de Mello, Revista de Direito Administrativo n° 183, p. 143: "Esse princípio [o da isonomia] — cuja observância vincula, incondicionalmente, todas as manifestações

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so, assim como se passa com a ampliação de uma imagem qualquer, ao se formular como regra geral a solução apura-da para um determinado caso, será mais fácil visualizar eventuais distorções ou vícios nela contidos'".

Vale dizer: além de empregar argumentos que possam transitar livremente no espaço público, e que façam senti-do para todos os indivíduos independentemente de suas convicções individuais, a decisão proposta ao fim da ponde-ração deve poder ser validamente universalizada para os demais casos equiparáveis193. Embora essas diretrizes lógi-cas não forneçam ao intérprete critérios materiais para orientar suas decisões, elas funcionam como controles nes-sa fase decisória.

do Poder Público — deve ser considerado, em sua precípua função de obstar discriminações e de extinguir privilégios (RDA, 55/114), sob duplo aspecto: a) o da igualdade na lei; b) o da igualdade perante a lei. A igualdade na lei — que opera uma fase de generalidade puramente abstrata — constitui exigência destinada ao legislador que, no processo de sua formação, nela não poderá incluir fatores de discriminação, responsáveis pela ruptura da ordem isonômica. A igualdade perante a lei, contudo, pressupondo lei já elaborada, traduz imposição destinada aos demais poderes estatais, que, na aplicação da norma legal, não poderão subordiná-la a critérios que ensejem tratamento seletivo ou discriminatório".

192 V. ATIENZA, Manuel. Las razones dei derecho. Sobre la justificación de las decisiones judiciales, Revista Isonomia n°1, 2004, p. 51 e ss..

193 PECZENIK, Aleksanàer. The Basis of Legal Justification, 1983, p. 63: "Whenever one reinterprets or ranks norms which are prima facie colliding with each other, one should do so in a manner which one can repeatedly use when confronted with similar collisions between other norms. One requires especially strong reasons to justify a reinterpretation or a priority order applied ad hoc that is, only in the case under consideration." (grifos no original)

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b) Busca da concordância prática

O objetivo final do processo de ponderação será sempre alcançar a concordância prática dos enunciados em tensão, isto é, sua harmonização recíproca de modo que nenhum de-les tenha sua incidência totalmente excluída na hipótese194.

Para isso, a concordância prática, na qualidade de diretriz metodológica, pode valer-se de todo o arsenal hermenêutico disponível: os elementos clássicos de interpretação, a eqüi-dade, a proporcionalidade''', as técnicas modernas de inter-

194 A concordância prática é, por certo, uma das exigências da coerência no processo de justificação jurídica. Sobre a noção de coerência, v. PECZENIK, Aleksander. On Law and Reason, 1989, p. 158 e ss.. Sobre a concordância prática propriamente: HESSE, Konrad. Elementos de

direito constitucional da República Federal da Alemanha, 1998, pp. 66 e 67: "Em conexão estreita com isso está o princípio da concordância prática; bens jurídicos protegidos jurídico-constitucionalmente devem, na resolução do problema, ser coordenados um ao outro de tal modo que cada um deles ganhe realidade. Onde nascem colisões não deve, em 'ponderação de bens' precipitada ou até 'ponderação de valor abstrata, um ser realizado à custa do outro. Antes, o principio da unidade da Constituição põe a tarefa de uma otimização: a ambos os bens devem ser traçados limites, para que ambos possam chegar a eficácia ótima. Os traçamentos dos limites devem, por conseguinte, no respectivo caso concreto ser proporcionais; eles não devem ir mais além do que é necessário para produzir a concordância de ambos os bens jurídicos." (grifo no original). O conceito de integridade, desenvolvido por Dworkin, pode ser visualizado como uma espécie de coerência máxima: DWORKIN, Ronald. O império do direito, 1999, p. 294: "O direito como integridade, então, exige que um juiz ponha à prova sua interpretação de qualquer parte da vasta rede de estruturas e decisões políticas de sua comunidade, perguntando-se se ela poderia fazer parte de uma teoria coerente que justificasse essa rede como um todo."

195 Note-se que embora concordância prática e proporcionalidade não se confundam (como registra ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios, 2003, pp. 88 e 89 e 104 a 116), os três testes da proporcionalidade (adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito) podem

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pretação constitucionall% etc. A questão, porém, nem sem-pre é simples e merece alguns comentários.

Como descrito no início deste estudo, os conflitos nor-mativos que exigem ponderação são aqueles que refletem tensões entre valores e/ou opções político-ideológicas e, muito freqüentemente, os enunciados envolvidos nessas disputas têm a estrutura de princípios'". Essa conjugação

ser úteis eventualmente na operação de tentar obter a concordância prática. Com efeito, ao verificar se uma norma possível é capaz de atender aos efeitos pretendidos pelos diferentes enunciados em disputa, faz-se um juízo de adequação. A eliminação de uma solução em favor de outra pelo fato de a primeira restringir excessiva e desnecessariamente algum dos enunciados envolve de forma evidente uma avaliação acerca da necessidade das providências. A proporcionalidade em sentido estrito, a rigor, permeia não apenas esta terceira etapa da ponderação, mas toda ela, já que o propósito aqui é exatamente racionalizar o processo de atribuição de pesos aos diferentes elementos em conflito.

196 Sobre algumas técnicas próprias da interpretação constitucional, v. MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição constitucional, 1998; do mesmo autor, Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade, 1998; e BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição, 2003.

197 Quando um aparente conflito normativo envolve valores em um nível mais abstrato há ainda a questão filosófica de delinear o sentido de tais valores. O ponto é sublinhado por Ronald Dworkin ao tratar do conflito entre liberdade e igualdade. Para o autor, é possível conciliar esses dois valores uma vez que se tenha uma adequada compreensão deles. V. DWORKIN, Ronald. Do Values Conflict? A Hedgehog's Approach, Arizona Law Review n°43, 2001, pp. 255 e 256: "We need philosophical analysis to tell us what liberty and equality really are, not what they are widely supposed to be. (...) Liberty and equality are not natural kinds, like gold and dogs, but values, and we cannot understand a value unless we understand why it is important that we respect or seek out that value, unless we understand what is good about it. (...) We have established something important: so far as the famous and celebrated conflict between liberty and equality depends on adopting the flat conceptions of these two virtues, it is a fake conflict."

de elementos resulta freqüentemente em um conflito par-cial, isto é, que não confronta de forma radical os enuncia-dos a ponto de a realização de um importar a não incidência do outro'". Explica-se melhor.

Os princípios, e a questão será examinada mais detida-mente adiante, descrevem em gerétIrn conjunto de efeitos

d itugd que pretendem ver realizados net. o dos fatos, sendo que cada um deles pode justificar con dto diversas. Nesse contexto, em um caso concreto, a disputa etilkis enunciados que apresentem a estrutura de princípios dificihnente coni 77,, fronta todos esses efeitos e condutas ao mesmo tei-srliao.í /7 .5., mais comum é que ocorram oposições parciais entre det o minados efeitos ou condutas, de modo que a colisão afeta, na prática, apenas algumas manifestações de sentido dos enunciados199. E para visualizar os aspectos realmente afe-

198 Um exemplo simples ilustra o ponto. Alegando que o rodízio de veículos, imposto por lei estadual paulista, violava a liberdade de locomoção, um indivíduo impetrou mandado de segurança pretendendo ver reconhecido o direito de circular livremente com seu veiculo. A ordem foi concedida em primeiro grau, mas o Tribunal de Justiça denegou a segurança sustentando, dentre outros fundamentos, que "o 'rodízio' não acarreta a violação ao direito de locomoção, considerando que o impetrante pode cumprir seus compromissos utilizando-se de transporte coletivo, de táxis e mesmo de outro veículo, nos dias do impedimento." (TJSP, AC 0378855/1-00, Rel. Des. Ribeiro Machado, j. 18.08.1998)

199 NOVAIS, Jorge Reis. As restrições aos direitos fundamentais não expressamente autorizadas pela Constituição, 2003, pp. 129 e 130: "Com idêntico sentido, é necessário, também, distinguir entre o direito principal — aquele que a interpretação permite concluir ser o sentido primário de garantia visado pela norma de direito fundamental, independentemente da possibilidade da sua perspectivação estilizada em cada uma das faculdades ou pretensões nele contidas — e os direitos instrumentais, ou seja, os direitos que se destinam a proteger, concretizar, tornar possível ou a garantir um exercício optimizado ou adequado do direito principal, a afastar os perigos ou ameaças que sobre ele impendem

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tados pelo conflito é necessário apurar as possibilidades de realização do efeito pretendido pelos diversos grupos de enunciados normativos e o grau de restrição que cada uma dessas possibilidades impõe sobre os diferentes enunciados envolvidos (como já se havia afirmado ao tratar da segunda fase da ponderação).

É certo que apenas conceber essas diferentes possibili-dades não soluciona o problema; cada uma delas produzirá um grau de restrição diferenciado sobre os elementos em disputa e de qualquer modo será preciso decidir qual delas deve ser escolhida. De toda sorte, a idéia de concordância prática já oferece uma diretriz geral para essa escolha, que pode ser enunciada nos seguintes termos: o intérprete deve escolher a solução que produz o melhor equilíbrio, impon-do a menor quantidade de restrição à maior parte de ele-mentos normativos em discussão.

Embora a diretriz que se acaba de enunciar seja útil em muitos casos, ela enfrenta duas limitações principais que não devem ser desconsideradas. Em primeiro lugar, dificil-

ou a reconstruir a situação anterior a uma lesão verificada no seu âmbito de protecção ou, na impossibilidade dessa reconstrução, a compensar o titular por danos sofridos. (...) Logo, na norma constitucional do art. 24° ('a vida humana é inviolável'), se, para além dos deveres jurídicos objectivos que dela resultam para o Estado, considerarmos que há também um 'direito à vida', então, o direito principal será o direito de cada um a ter uma vida. Este direito principal é integrado por um conjunto de faculdades ou pretensões como, por exemplo, a de não ver a sua vida afectada, a de não ser privado da própria vida, 'a ter' uma vida em condições mínimas de dignidade, a, eventualmente, dispor da própria vida. Qualquer uma destas pretensões ou direitos especiais encontra-se, relativamente ao direito principal, numa relação de especialidade, de concretização ou de conformação, pelo que podemos dizer constituírem, cada um deles, elementos integrantes do próprio direito principal, mas que, simultaneamente, podem ser considerados autonomamente como direitos fundamentais."

mente será possível, no mundo real, conceber uma fórmula que restrinja igualmente todos os enunciados em disputa, mesmo porque inexiste um instrumento de medida capaz de verificar se há ou não "igualdade" de restrição em rela-ção a todos os elementos normativos. Em segundo lugar, e mais importante, alguns elementos normativos poderão ter maior relevância em abstrato ou em concreto do que ou-tros, e sua restrição, mesmo que pequena, seria ainda assim inaceitável.

Retome-se o exemplo descrito no tópico anterior do rapaz epiléptico que sofre uma crise no plenário do Senado Federal. A imprensa pretende divulgar o ocorrido e surge o conflito entre a intimidade e a liberdade de informação e de imprensa. Cogitou-se, àquela altura, de várias possibili-dades de solução do conflito: (i) a proibição de divulgação da história; (ii) a divulgação da história sem menção ao nome do rapaz ou uso de qualquer imagem que pudesse identificá-lo; (iii) a divulgação contendo apenas a informa-ção do nome da pessoa; e (iv) a divulgação com nome e imagens. Aparentemente, as soluções que produzem o me-lhor equilíbrio de restrições são as duas intermediárias, isto é, aquela que autoriza que a história seja contada sem a exposição do nome ou da imagem do rapaz ou apenas com a referência ao nome.

Imagine-se agora o mesmo conflito em tese — intimi-dade versus liberdade de informação e de imprensa — mas em outra circunstância. Trata-se de Ministro de Estado que

é encontrado inconsciente e alcoolizado em uma calçada e precisa ser internado. As mesmas possibilidades de solução descritas acima se apresentam aqui, mas parece evidente que impedir o meio de comunicação de identificar a pessoa em questão nesse caso — embora se trate igualmente de intimidade — terá um peso totalmente diverso. As circuns-

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tâncias do caso, qualificadas por outros fatores jurídicos, atribuem maior relevância a alguns dos elementos em ten-são. E há ainda hipóteses em que os enunciados em conflito poderão ter uma relevância diferenciada, mesmo conside-rados em abstrato: ainda que se pudesse medir uniforme-mente a restrição a diferentes enunciados normativos, res-tringir a integridade física de um indivíduo é por certo di-ferente de restringir o princípio federativo'''.

A observação que se acaba de fazer presta-se a demons-trar que a diretriz geral puramente lógica da concordância prática — pela qual a decisão deve recair sobre a solução que produza a menor restrição possível sobre a maior parte dos elementos em conflito — não pode ser aplicada isola-damente, mas precisa ser combinada com parâmetros que apresentem fundamento normativowl, tema da terceira parte deste estudo.

Há ainda uma última nota a fazer sobre essa questão. A despeito do que se acaba de afirmar acerca da concordância prática, é necessário reconhecer que haverá hipóteses em que, depois de percorridas as etapas anteriores da pondera-ção, simplesmente não será possível obter qualquer harmo-nização dos elementos em disputa: um afastará totalmente o outro e será preciso escolher entre eles'". A não incidên-

200 ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976, 1998, pp. 222 e 223: "o principio da concordância prática não prescreve propriamente a realização óptima de cada um dos valores em jogo, em termos matemáticos. É apenas um método e um processo de legitimação das soluções que impõe a ponderação de todos os valores constitucionais aplicáveis. (...) O princípio da concordância prática executa-se, portanto, através de um critério de proporcionalidade na distribuição dos custos do conflito."

201 HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional da República Federal da Alemanha, 1998, p. 67.

202 V. ATIENZA, Manuel. I os razones dei derecho. Sobre la justificación

cia em nenhuma medida de um enunciado válido e perti-nente em determinado caso, não afastado por qualquer das exceções admitidas pela ordem jurídica, constitui uma quebra de sistema e deve, tanto quanto possível, ser evita-da. De toda sorte, quando se tratar de um resultado inevi-tável, o processo de ponderação continuará a ser uma ferra-menta importante de ordenação e fundamentação da esco-lha entre as soluções propugnadas pelos enunciados confli-tantes.

c) Construção do núcleo essencial dos direitos funda-mentais

Ainda nesta fase de decisão, uma última diretriz a ser observada pelo intérprete diz respeito ao núcleo ou conteú-do essencial dos direitos fundamentais. Como se sabe, a idéia de núcleo ou conteúdo essencial foi introduzida em várias constituições contemporâneas como uma forma de proteger os direitos contra a ação do legislador e também, de certa forma, do aplicador do direito203. Mesmo onde não

de las decisiones judiciales, Revista Isonomia n°1, 2004, p. 67 e 68. Como se verá adiante, isso acontece mais freqüentemente com regras.

203 Constituição Alemã, art. 19: "1. Quando, segundo esta Lei Fundamental, um direito fundamental for restringido por lei ou em virtude de lei, essa lei será aplicada de maneira geral e não apenas para um caso particular. Além disso, a lei deverá especificar o direito fundamental afetado e o artigo que o prevê. 2. Em hipótese nenhuma um direito fundamental poderá ser afetado em sua essência. 3. Os direitos fundamentais se aplicarão igualmente as pessoas jurídicas nacionais, na medida em que a natureza desses direitos o permitir. (...)"

Constituição Portuguesa, art. 18: "3. As leis restritivas de direitos, liberdades e garantias têm de revestir caracter geral e abstracto e não podem ter efeito retroactivo nem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais."

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há uma previsão formal nesse sentido, como no Brasil, en-tende-se que os direitos fundamentais não podem ser res-tringidos (pelo legislador ou pelo juiz) a ponto de se torna-rem invólucros vazios de conteúdo, sobretudo em sistemas onde desfrutem do status de cláusulas pétreas204.

Constituição Espanhola, art. 53: "1. Los derechos y libertades reconocidos en el Capítulo segundo dei presente Titulo vinculan a todos los poderes públicos. Sólo por ley, que en todo caso deberá respetar su contenido esencial, podrá regularse el ejercicio de tales derechos y libertades que se tutelarán de acuerdo con lo previsto en el artículo 161, I , a)."

Declaração de Direitos da África do Sul (Bill of Rights), art. 36: "(1) The rights in the Bill of Rights may be limited only in terms of law of general application to the extent that the limitation is reasonable and justifiable in an open and democratic society based on human dignity, equality and freedom, talcing into account all relevant factors, including the nature of the right; the importance of the purpose of the limitation; the nature and extent of the limitation; the relation between the limitation and its purpose; and less restrictive means to achieve the purpose. (2) Except as provided in subsection (1) or in any other provision of the Constitution, no law may limit any right entrenched in the Bill of Rights."

Constituição do Timor Leste, art. 24: "1. A restrição dos direitos, liberdades e garantias só pode fazer-se por lei, para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos e nos casos expressamente previstos na Constituição. 2. As leis restritivas dos direitos, liberdades e garantias têm, necessariamente, carácter geral e abstracto, não podem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos dispositivos constitucionais e não podem ter efeito retroactivo."

Carta dos Direitos Fundamentais da União Européia, art. 52: "1: 'Any limitation on the exercise of the rights and freedoms recognised by this Charter must be provided for by law and respect the essence of those rights and freedoms. Subject to the principie of proportionality, limitations mar be made only if they are necessary and genuinely meet objectives of general interest recognised by the Union or the need to protect the rights and freedoms of others." 204 Como é o caso da Constituição brasileira de 1988, art. 60, § 4°, IV.

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205 Ainda que com fundamento em argumentações variadas, como já se referiu ao tratar das teorias sobre os limites imanentes e o conceptualismo. Para parte dos autores que tratam do assunto, ao regulamentar o exercício do direito o legislador poderá explicitar limites imanentes, independentemente de expressa previsão constitucional. V. sobre o assunto STEINMETZ, Wilson Antônio. Colisão de direitos fundamentais e principio da proporcionalidade, 2001 ) p. 60 e ss.; NOVAIS, Jorge Reis. As restrições aos direitos fundamentais não expressamente autorizadas pela Constituição, 2003; e SERNA, Pedro e TOLLER, Fernando. La interpretación constitucional de los derechos fundamentales — Una alternativa a los conflictos de derechos, 2000. 206 Como já advertiam, com parcela de razão, os conceptualistas, para quem o conceito do direito não se confunde com o texto que o prevê, mas depende de uma elaboração teórica que leve em conta, dentre outros elementos, a formação histórica do direito, seus fins, os demais elementos do sistema jurídico etc. Veja-se mais sobre esse assunto -no Capítulo III. 207 Como já se expôs no Capítulo III, será bastante difícil distinguir, antes do fim do processo herinenêutico, o que é conformação e o que é restrição, embora alguns autores considerem a distinção relevante. V. ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976, 1998, p. 230 e ss..

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Paralelamente a essa garantia ao núcleo, admite-se cor-rentemente na prática jurídica que os direitos possam so-frer conformações205 (mesmo porque o sentido e os contor-nos precisos dos direitos não decorrem automaticamente do texto que os preveo 6) e até mesmo algum grau de restri-ção, tendo em conta conflitos específicos envolvendo direi-tos entre si ou direitos e enunciados que consagram fins coletivos207. Da conjugação desses dois elementos tem-se a seguinte conclusão: não se pode admitir que conformações ou restrições possam chegar a esvaziar o sentido essencial dos direitos, que, afinal, formam o conjunto normativo de maior fundamentalidade, tanto axiológica, quanto norma-tiva, nos sistemas jurídicos contemporâneos. Nesse senti-do, o núcleo deve funcionar como um limite último de sentido, invulnerável, que sempre deverá ser respeitado.

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Essa, portanto, é a terceira diretriz a ser observada pelo intérprete: a decisão que vier a ser apurada no processo de ponderação não poderá violar o núcleo dos direitos funda-mentais. Ou, em outras palavras, as prerrogativas contidas no núcleo ou consideradas essenciais ao direito devem ser, em qualquer caso, respeitada08. Mas a questão realmente importante aqui é a seguinte: o que é, afinal, o núcleo de cada direito fundamental? Onde encontrar a descrição des-sas prerrogativas essenciais e desses contornos?

Não cabe aqui examinar as diferentes discussões teóri-cas que o tema tem suscitado na doutrina estrangeira e nacional. Basta identificar uma distinção corrente entre dois grupos de concepções sobre o assunto209: as teorias absolutas e as teorias relativas, denominadas também, res-

208 Trabalha-se aqui com a idéia de núcleo como garantia da dimensão subjetiva dos direitos, isto é, como uma proteção do indivíduo na qualidade de titular desses direitos, e não como mecanismo de preservação do enunciado objetivo e abstrato, pelo qual seu papel seria apenas o de proteger o enunciado de modificações em sua redação. Sobre esta distinção, v. CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição, 1998, p. 430 e ss.; e ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976, 1998, p. 230 e ss.. 209 É certo que cada autor, dentro dos grupos identificados, apresenta sua concepção particular do tema, mas não há necessidade de abordar aqui as especificidades das diferentes teorias. V. sobre o tema GAVARA DE CARA, Juan Carlos. Derechos fundamentales y desarrollo legislativo. La garantia dei contenido esencial de los derechos fundamentales en la Ley Fundamental de Bonn, 1994; LOPES, Ana Maria D'Ávila. Os direitos fundamentais como limites ao poder de legislar, 2001; BARROS, Suzana de Toledo. O principio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais, 1996; e MELO, Sandro Nahmias. A garantia do conteúdo essencial dos direitos fundamentais, Revista de Direito Constitucional e Internacional n° 43. pp. 82 a97, 2003.

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pectivamente, teorias do núcleo duro e teorias do núcleo flexível.

As teorias absolutas ou do núcleo duro sustentam duas concepções principais acerca do conteúdo essencial dos di-reitos, ambas intimamente relacionadas. Para essas teorias, o núcleo de cada direito corresponde a um conteúdo nor-mativo que não pode sofrer restrição ou ser relativizado em nenhuma circunstância e, por isso mesmo, esse conteúdo deve ser delimitado em abstrato para cada direito. De acor-do com essa concepção, portanto, antes mesmo de iniciar um processo de ponderação, o intérprete já saberá que prerrogativas dos direitos envolvidos não podem ser res-tringidas, de modo que há um limite objetivo e pré-estabe-lecido para sua atuação. Os críticos apontam duas grandes objeções a essa forma de conceber o núcleo dos direitos. Em primeiro lugar, afirmam que esse núcleo abstrato não existe pronto em lugar algum, de modo que é uma ficção imaginar que o intérprete tem como conhecê-lo antecipa-damente. Ademais, a idéia do núcleo duro acabaria por desvalorizar os elementos do direito localizados fora do nú-cleo.

As chamadas teorias relativas, por sua vez, sustentam que o conteúdo essencial de um direito só pode ser visuali-zado diante do caso concreto e que, portanto, apenas de-pois da ponderação será possível identificar o que é afinal o núcleo. Não se pode falar, assim, de um conteúdo abstrato que não possa sofrer restrições; esse conteúdo será identi-ficado caso a caso, em função das circunstâncias da hipóte-se examinada. A crítica central às teorias relativas ou do núcleo flexível é a de que elas destroem a proteção dos direitos que a idéia de núcleo deveria assegurar, na medida em que ela acaba por se confundir e ser dissolvida na pró-pria noção de ponderação. Se o conteúdo essencial deveria

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funcionar como um limite à ponderação, como ele poderá ser um resultado dela?

Diante do quadro que se acaba de descrever, permane-ce a questão: qual diretriz deve ser seguida afinal pelo in-térprete na fase decisória da ponderação? De acordo com as teorias relativas, não haverá diretriz alguma, já que ape-nas após a ponderação é que se descobrirá o núcleo dos direitos fundamentais. Do ponto de vista operacional, essas teorias reduzem a pouco mais que nada o conceito de nú-cleo de direito ou conteúdo essencial, uma vez que ele já não serve de qualquer tipo de balizamento ou limite para o intérprete no momento decisório.

As teorias absolutas, por sua vez, fornecem uma dire-triz teoricamente consistente, mas a verdade é que não existe pronto, à disposição do aplicador, um manual com a descrição do núcleo de cada direito fundamental. Mais que isso, parece realmente impossível (e mesmo inconvenien-te) que se possa delinear esse núcleo de forma absoluta — "dura" — e permanente, como se fosse humanamente viá-vel formular um juízo "ali things considered"210, capaz de antever e considerar todos os elementos relevantes, ou

210 PECZENIK, Alelcsander. On Law and Reason, 1989, pp. 76 e 77: "A practical statement is definitive only if by uttering it one declares that one no longer is prepared to pay attention to reasons which justify the contrary conclusion. Our culture demands that definitive moral statements are all-things-considered moral statements. In order to state this demand more precisely, one needs the following distinction. A practical statement has the all-things-considered quality sensu stricto if and only if it has support of considerations regarding (a) ali morally relevant circumstances, that is, ali facts relevara in practical reasoning about ethics, utilitarian moralily, moral principies, rights and duties, virtues, justice etc., and (b) ali criteria of coherent reasoning. No human being has resources sufficient to formulate all-things-considered statements sensu stricto." (grifos no original)

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como se o sentido dos conceitos jurídicos não variasse em função da compreensão histórica dos fenômenos sociais.

O que se acaba de registrar, porém, não significa que a impossibilidade de se atingir o ideal das teorias absolutas condene o intérprete e os jurisdicionados às teorias flexí-veis ou relativas. E perfeitamente possível e desejável, por meio da reflexão abstrata e/ou do estudo e tabulação dos precedentes judiciais, que a doutrina se ocupe de construir os sentidos próprios de cada direito, propondo parâmetros ou standards específicos capazes de identificar o que deve ser considerado como prerrogativa essencial de cada direi-to, o que pode sofrer restrição, em que circunstâncias isso pode acontecer, dentre outros elementos necessários para a compreensão mais precisa dos direitos211. Esse esforço hermenêutico contínuo não produzirá um núcleo duro nem permanente ou não-histórico, mas fornecerá um núcleo su-ficientemente consistente para funcionar como limite à atuação do intérprete e proteger em alguma medida os di-reitos fundamentais de ações arbitrárias e abusivas. O pró-

211 Em decisão proferida em junho de 1995 a Corte Constitucional da República Sul Africana (The State v. T. Makwanyane and M. Mchunu — Case n° CCT/3/94) considerou a pena de morte incompatível com a dignidade humana e especialmente com o direito à não submissão a penas desumanas e cruéis (a Constituição Sul Africana definitiva entrou em vigor apenas em 07.02.97, mas desde 27.04.94 vigia uma Constituição Interina). Na ausência de um conjunto próprio de decisões capaz de servir de parâmetro, uma vez que o Tribunal Constitucional fora instalado apenas no fim de 1994, a Corte valeu-se do que identificou como "jurisprudência comparada dos direitos fundamentais", empregando para isso os critérios construídos pela jurisprudência do Canadá dos Estados Unidos, da Alemanha, da índia e da Corte Européia dos Direitos Humanos sobre o assunto. V. HOFFMAN, Florian. Jurisdição, processo e argumentação na Corte Constitucional da África do Sul no caso paradigma (Leading case) The State v. T. Makwanyane and M. Mchunu (1995) [Proibição da pena de morte] , 1999.

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ximo capítulo e o último retomam o tema da construção de standards específicos para os diversos enunciados normati-vos, sobretudo para aqueles que prevêem direitos, incluin-do a delimitação de seu núcleo essencial.

Em suma: após identificar os enunciados normativos em tensão e as diferentes normas que eles podem justificar (primeira fase) e selecionar os aspectos fáticos relevantes (segunda fase), o intérprete chega à etapa decisória da pon-deração. Neste momento, o aplicador precisará de parâme-tros propriamente jurídicos para orientar suas escolhas que, no entanto, não são fornecidos pela técnica da ponde-ração em si. De toda sorte, antes mesmo desses parâme-tros, três diretrizes devem ser consideradas pelo intérpre-te: (i) qualquer decisão deve poder ser generalizada para casos equiparáveis (pretensão de universalidade), assim como a argumentação empreendida deve utilizar uma ra-cionalidade comum a todos; (ii) sempre que possível o in-térprete deve produzir a concordância prática dos enuncia-dos em disputa; e (iii) a decisão a ser produzida deve res-peitar o núcleo dos direitos, ainda que um núcleo apenas consistente, e não duro.

VI. Ponderação preventiva ou abstrata e real ou concreta

Os tópicos anteriores foram ocupados com o exame de algumas críticas à ponderação e com a proposta de uma ordenação para o uso dessa técnica. Antes de prosseguir, contudo, é importante fazer um registro. Como já se obser-vou, tanto críticos como defensores da técnica discutem o tema tendo em mente a chamada ponderação ad hoc, isto é, aquela feita pelo juiz diante de um caso concreto que ele deverá decidir. E possível, no entanto, visualizar o processo

ponderativo acontecendo em um outro ambiente. Na ver-dade, mais que possível, é desejável que a ponderação se desenvolva também antes do surgimento do caso concreto. Na medida em que a ponderação vai sendo forjada em abs-trato ou preventivamente, por meio da discussão de casos hipotéticos ou passados, o juiz terá balizas pré-fixadas quando se defrontar com casos reais. Esse conjunto de idéias conduz à formulação de dois momentos para a pon-deração ou de duas modalidades de processo ponderativo, que podem ser denominadas ponderação preventiva ou abstrata e ponderação real ou concreta. Explica-se melhor.

A imagem que em geral está associada à idéia de ponde-ração no meio jurídico é a do magistrado posto diante de um complexo caso concreto para o qual não há solução pronta no ordenamento ou, pior que isso, para o qual o ordenamento sinaliza com soluções contraditórias diante das quais caberá a ele decidir o que fazer: ninguém pode ajudá-lo e não há a quem recorrer.

O cenário que se acaba de descrever corresponde, sem dúvida, a um momento da técnica da ponderação, mas ape-nas a um, ou a uma das formas possíveis de sua manifesta-ção. Tanto assim que é possível imaginar uma outra cena. Um grupo de acadêmicos se encontra para debater a tensão potencial que existe entre, e.g., a liberdade de reunião e manifestação pública212, de um lado, e bens coletivos rela-cionados com a tranqüilidade, a saúde e a livre circulação das demais pessoas, de outro. No encontro, diversos ques-tionamentos podem ser formulados na tentativa de demar-car o conteúdo específico de cada enunciado e as fronteiras de convivência entre eles. A liberdade de reunião e mani-festação pública exige que essas reuniões possam ser feitas em qualquer local da cidade (inclusive, e.g., próximo a hos-

212 Consagrada, no Brasil, no art. 5°, XVI, da Constituição.

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O exercício descrito acima é também uma forma de ponderação; apenas se trata de uma ponderação em abstra-to ou preventiva. Na verdade, muitos conflitos normativos de natureza constitucional podem ser antecipados com o auxílio de situações hipotéticas: livre iniciativa versus pro-teção do consumidor e proteção do meio ambiente; liber-dade de informação e de imprensa versus intimidade, hon-ra e vida privada, dentre muitos outros. Da mesma forma, a observação e a contínua experiência com a interpretação e aplicação desses dispositivos produz uma espécie de ban-co de dados formado por situações típicas e elementos de fato relevantes, em função dos quais é possível, mesmo em tese, isto é, independentemente de um caso concreto espe-cífico, proceder a um raciocínio de natureza ponderativa para propor parâmetros. Um exemplo ajuda a esclarecer a idéia.

30.09.1960 (Presidente da Corte o Mia Nelson Hungria), considerou válido ato de Secretaria de Segurança estadual que fixou locais onde poderiam se realizar comícios eleitorais, uma vez que a finalidade do ato seria a preservação do interesse público com a manutenção das condições de trânsito da cidade. O mesmo TSE, na Resolução n° 14526/1994, definiu que a realização de comícios não está restrita ao horário de propaganda eleitoral disciplinado pelo Código Eleitoral, devendo os partidos e coligações observarem apenas a designação dos locais adequados e a comunicação às autoridades policiais com no mínimo 24 horas de antecedência, nos termos da Lei n° 1207/1950. Autoridades de trânsito portuguesas determinaram a manifestante, que obstruía o trânsito em determinada ponte da cidade comum veículo, que retirasse o veículo do local, mas não foram obedecidos. O Tribunal de Relação de Lisboa entendeu que houve crime de desobediência na hipótese, alegando que, embora previstas na Constituição, as liberdades de manifestação e reunião não podem colidir com outros direitos fundamentais dos cidadãos, dentre os quais o de livre circulação (número do documento RL199610160007333, Rel. Diniz Alves, j. 16.10.1996). O Tribunal Constitucional da Espanha também já examinou hipóteses semelhantes (STC 59/1990 e 66/1995).

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pitais)? A autoridade pública pode definir que as manifestações públicas sejam feitas apenas em determina-dos locais? A autoridade pública pode exigir que o evento se realize em local amplo e onde haja fácil transporte, mas longe das regiões centrais da cidade? As manifestações pú-blicas podem realizar-se em qualquer horário? A autorida-de pública pode impor horários específicos para sua realiza-ção? A natureza da manifestação — se se trata de uma ma-nifestação de natureza política, artística, comercial ou de qualquer outro tipo — terá alguma influência no nível maior ou menor de restrição que se poderá admitir sobre a liberdade em questão?

O debate acadêmico pode ser enriquecido se às ques-tões descritas acima forem agregadas informações acerca dos pronunciamentos jurisprudenciais na matéria. O Su-premo Tribunal Federal, e.g., no julgamento da ADIn no 1969-4/DF (Rel. Min. Marco Aurélio, DJ 05.05.2004) sus-pendeu, em sede cautelar, decreto autônomo que proibia a utilização de carros ou aparelhagem de som em manifesta-ções realizadas em determinadas áreas do Distrito Federal (Praça dos Três Poderes, Esplanada dos Ministérios e Praça do Buriti). O voto do Relator, embora admitindo que o direito de manifestação não tem viés absoluto, considerou que a restrição pretendida esvaziaria a garantia constitucio-nal, afetando a manifestação do pensamento e as conquis-tas democráticas. O Plenário do Tribunal discutiu ampla-mente questões como limitações geográficas, uso ou não de aparelhos de amplificação de som, controle prévio ou ape-nas repressivo de abusos, a cargo de autoridades públicas, dentre outros aspectos'''.

213 Há outras decisões sobre o assunto na jurisprudência brasileira e estrangeira que podem enriquecer ainda mais o debate. Seguem alguns exemplos. O Tribunal Superior Eleitoral, em decisão proferida em

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Suponha-se o conflito entre liberdade de informação e de imprensa versus intimidade, honra e vida privada. É pos-sível examinar alguns elementos freqüentemente encon-trados nesse ambiente e formular questões diversas: (i) quem se encontra em local público está em sua esfera pes-soal de intimidade? (ii) Atos considerados criminosos per-tencem à esfera de privacidade ou podem/devem ser de-nunciados à opinião pública? (iii) A informação verdadeira e obtida de forma licita pode ser proibida? (iv) A proteção à vida privada de titulares de cargos eletivos e artistas é menor que a assegurada a cidadãos comuns?

A partir das respostas sugeridas a essas questões, pode-se então propor um conjunto de soluções ponderativas pré-fabricadas, e.g.: se a informação é verdadeira, foi obtida de forma licita, envolve a prática de crime e o indivíduo é titular de mandato eletivo, não se poderá impedir a divul-gação dos fatos invocando proteção à intimidade'''. Como é fácil perceber, esses modelos de solução foram construí-dos por meio de uma ponderação feita em abstrato ou pre-ventivamente e servem de parâmetros para o aplicador no momento em que este se debruçar sobre casos concretos.

Note-se, porém, um ponto importante. Uma vez que as circunstâncias fáticas imaginadas pela doutrina se reprodu-zam no caso real, ou se repitam hipóteses já verificadas anteriormente, o juiz terá à sua disposição modelos de so-lução pré-prontosm. Na verdade, os subsídios oferecidos

214 Sobre o tema, v. BARROSO, Luís Roberto. Colisão entre liberdade de expressão e direitos da personalidade. Critérios de ponderação. Interpretação constitucionalmente adequada do Código Civil e da Lei de Imprensa, Revista de Direito Administrativo n° 235, 2004, pp. 1 a 36.

215 SANCHIS, Luis Prieto. "Neoconstitucionalismo y ponderación judicial". In: CARBONELL, Miguel (organizador). Neoconstitucionalimo(s), 2003, pp. 145 e 146: "La ponderación se configura, pues, como un paso intermedio entre /a declaraci6n de

ao aplicador pela ponderação em abstrato acabam por transformar muitos conflitos normativos, que seriam casos difíceis, em fáceis, simplesmente porque já há um modelo de solução que lhes é aplicável. Nem sempre, todavia, os parâmetros concebidos em abstrato serão capazes de solu-cionar adequadamente um conflito normativo concreto. É perfeitamente possível imaginar situações em relação às quais modelos elaborados em abstrato não se adaptam, seja porque nenhuma das formulações em tese existentes é per-tinente, seja porque detalhes fáticos que se apresentam agora como importantes não foram cogitados antes, seja por outra razão qualquer que não se é capaz de antecipar'''.

Nesses casos, para além da aplicação dos parâmetros, será necessária uma ponderação específica, particular para aquela hipótesem: um modelo de alta costura, cosido sob

relevancia de dos principios en conflicto para regular prima facie un cierto caso y la construcción de una regia para regular en definitiva ese caso; regia que, por cierto, merced ai precedente, puede generalizarse y terminar por hacer innecesaria la ponderación en los casos centrales o reiterados."; e SCACCIA, Gino. II bilanciamento degli interessi coMe tecnica di controlo costituzionale, Giurisprudenza constituzionale, vol. VI, 1998, p. 3966 e ss.. 216 A verdade é que, algumas vezes, a complexidade de determinados conflitos concretos exigirá um exame particular. V. BUCHANAN, G. Sidney. Accommodation of Religion in the Public Schools: a Plea for Careful Balancing of Competing Constitutional Values, University of California Law Review, vol. 28, 1981, p. 1047: "Finally, as applied in the public school setting, a 'weighing of values' approach better enables courts to disentangle 'the complexity of strands' in the accommodation inquiry, thereby avoiding, in this area of constitutional law, 'the perils that are latent in 'a jurisprudence' of absolutes."

217 STEINMETZ, Wilson Antônio. Colisão de direitos fundamentais e princípio da proporcionalidade, 2001, p. 143: "Esses pressupostos indicam que a ponderação de bens deve ser uma ponderação concreta de bens. A norma de decisão não resulta de uma ponderação abstrata de bens, consistente na comparação dos direitos ou bens com base em uma

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medida, e não um modelo prêt-a-porter. Trata-se do que já se identificou aqui como ponderação em concreto ou real. Não será mais o caso de uma simples ponderação ad hoc, na qual o juiz conta apenas com o seu próprio bom senso para solucionar o conflito; ao contrário, haverá um conjunto im-portante de standards públicos a sua disposição e, mais que isso, caberá a ele justificar de forma específica por que os standards existentes não são adequados para aquele caso concreto ou merecem algum tipo de adaptação.

Aqui será útil resgatar a distinção entre norma e enun-ciado normativo, observada na primeira parte do estudo. Na verdade, a distinção ajuda a compreender a convivência da ponderação em abstrato ou preventiva com a desenvol-vida diante dos casos concretos. Em primeiro lugar, ainda no âmbito da ponderação em abstrato, é relevante perceber que a norma aplicável a um caso paradigmático ou a uma situação-tipo constitui fenômeno diverso do enunciado normativo em si. Por outro lado, já considerando a ponde-ração em concreto ou real, se as normas concebidas em tese pela doutrina e pela jurisprudência a partir dos enunciados existentes e/ou do sistema como um todo não forem capa-zes de solucionar o conflito verificado no caso concreto, este, com suas sutilezas e particularidades, vai fornecer ao aplicador subsídios para uma nova "regulagem" do processo ponderativo e, conseqüentemente, para a construção da norma adequada a ele. Lembre-se que na ponderação em abstrato a atribuição de pesos e todas as demais avaliações

hierarquia ou em uma escala prévia. Contudo, isso não impede que o operador do Direito, previamente à aplicação da ponderação concreta de bens, possa fazer uma ponderação abstrata apenas com finalidades heurísticas, como por exemplo, para verificar se há uma colisão real (autêntica) ou se há uma carga argumentativa a favor de um dos direitos em colisão."

são levadas a cabo a partir de informações padronizadas que em um caso real poderão se apresentar de maneira diversa, cabendo ao aplicador proceder aos ajustes necessá-riosn 8,

Basta retomar um exemplo já descrito para perceber a relevância das circunstâncias do caso para a ponderação. Imagine-se um esforço doutrinário para construir, em abs-trato, parâmetros capazes de balizar conflitos que se verifi-quem entre o direito à integridade física e o direito à honra. A primeira dificuldade, facilmente percebida, reside na circunstância de esse tipo de conflito não ser freqüente e, portanto, inexistirem casos típicos nos quais ele possa ser observado. De toda sorte, é possível cogitar de uma hipóte-se: um indivíduo pretende agredir fisicamente outro pelo fato de este haver ofendido sua honra de forma que julga grave. Em um exame preliminar, parece evidente que o direito à integridade física deverá prevalecer sobre a forma (agressão física) por meio da qual o ofendido pretende ob-ter a reparação pelo ataque sofrido. No caso Glória Trevi, referido acima, porém, a solução foi exatamente a inversa.

Como registrado, no caso Glória Trevi, o próprio Su-premo Tribunal Federal destacou que as circunstâncias particulares do caso — interferência diminuta na integrida-de física da mãe e do menor (o material orgânico foi retira-do da placenta) e a repercussão das acusações perpetradas pela mãe aos servidores públicos — tiveram papel decisivo no peso atribuído a cada uma das disposições constitucio-nais em confronto. Diante de outras circunstâncias, e.g., se a acusação de estupro tivesse sido conhecida por pequeno

218 PECZENIK, Aleksander. On Law and Reasan, 1989, p. 251: "The all-things-considered law is an idealisation. In practice, nobody can consider ali things. But the more the interpreted law approximates the all-things-considered law, the better the interpretation."

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grupo de pessoas ou se fosse necessário efetivamente co-lher material orgânico do recém nascido, talvez a decisão do STF — isto é, a norma própria ao caso concreto -- fosse diferente.

Uma vez que se proceda a uma ponderação em concre-to, a solução adotada no caso poderá aprimorar o modelo geral formulado pela ponderação em abstrato. Isto é, o mo-delo geral poderá incorporar os novos dados fáticos que se verificaram no caso concreto, assim como a solução a que se chegou em função deles, de tal modo que, caso eles se reproduzam em situação análoga, não será mais necessário recorrer à ponderação no caso concreto: a ponderação em abstrato já será capaz de fornecer o modelo adequado. Por natural, para que a ponderação em concreto possa alimen-tar a ponderação em abstrato de informações é preciso que as soluções adotadas em cada caso possam ser universaliza-das'''. O tema da pretensão de universalidade das decisões já foi examinado no tópico anterior.

Em suma: há, na realidade, dois níveis possíveis de aná-hse quando se trata de ponderação. É possível, primeira-mente, percorrer em abstrato ou preventivamente todas as etapas do processo descrito no capítulo anterior, isto é, considerar apenas situações-tipo de conflito (imaginadas e/ou colhidas da experiência) tanto no que diz respeito aos enunciados envolvidos, como no que toca aos aspectos de fato. Tudo isso sem que se esteja diante de um caso real. A

219 NOVAIS, Jorge Reis. As restrições aos direitos fundamentais não expressamente autorizadas pela Constituição, 2003, p. 945: "O modelo da ponderação de bens, quando os resultados obtidos não se orientarem à formulação de regras generalizáveis ou a metodologia não for estruturada segundo standards de controlo constringentes, é totalmente imprevisível (...) e acentua o subjectivismo e discricionaridade do exercício da justiça constitucional."

partir das conclusões dessa ponderação preventiva, é possí-vel formular parâmetros específicos para orientação do aplicador quando ele esteja diante dos casos concretos.

Evidentemente, o aplicador estará livre para refazer a ponderação, considerando agora os elementos da hipótese real, toda vez que esses parâmetros não se mostrarem per-feitamente adequados. De toda sorte, caberá ao intérprete o ônus argumentativo de demonstrar por que o caso por ele examinado é substancialmente distinto das situações-tipo empregadas na ponderação preventiva. Isto é: o juiz deverá mostrar por que os parâmetros por ela sugeridos — cuja legitimidade decorre de haverem sido concebidos e discu-tidos publicamente e de serem aceitos racionalmente de forma geral — não devem ser aplicados à hipótese. O obje-tivo deste tópico era apenas identificar o fenômeno da pon-deração preventiva ou abstrata, destacar suas potencialida-des e distingui-lo da ponderação real ou concreta. O tema específico dos parâmetros é objeto dos próximos capítulos.

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PARTE III

Nos tópicos anteriores procurou-se conferir melhor or-dem metodológica à ponderação na qualidade de técnica hermenêutica. Por isso se tratou das etapas que o intérpre-te deve percorrer, dos cuidados a tomar e dos elementos a considerar. Nada obstante isso, e como também já se refe-riu, a ponderação continua a ser uma técnica vazia de senti-do material, apenas um instrumento de organização do pensamento e do processo decisório, o que, embora seja importante e irti1220, não é suficiente. O objetivo desta ter-ceira parte do estudo é formular parâmetros juridicamente

220 ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica, 2001, p. 224: "No entanto, a exigência de justificação interna não é vã. No curso da justificação interna se torna claro quais premissas têm de ser externamente justificadas. Pressuposições que caso contrário permaneceriam ocultas têm de ser explicitamente formuladas. Isso aumenta a possibilidade de reconhecer erros e de criticá-los. Finalmente, articular regras universais facilita a consistência da tomada de decisão e, assim, contribui para a justiça e a segurança jurídica."

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fundamentados que, associados à técnica propriamente dita, poderão orientar o intérprete em seu ofício'. Antes de apresentar esses parâmetros, é preciso fazer duas observações preliminares, expostas nos itens que seguem.

221 TORRE, Maximo La. Theories of Legal Argumentation and Concepts of Law. An Approximation, Ratio Juris, vol. 14, n°4, 2002, p. 380: "But practical reason, the reason that justifies value judgements ar deontic statements, does not precisely coincide with theoretical reason. This is because experiential data and logical operations are not enough to supply us with indications of preference and guides to action. There is a need for a further type of premise, for criteria ar normative principies.; e ÁV1LA, Humberto. Teoria dos princípios, 2003, p. 86: "E preciso estruturar a ponderação com a inserção de critérios."

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VII. Algumas notas sobre os parâmetros

VII.!. Parâmetros preferenciais

Antes de propor qualquer espécie de parâmetro para a ponderação, cabe responder a uma pergunta relevante. Considerando a importância que os elementos do caso con-creto têm para a ponderação, e tendo em conta que muitas vezes as particularidades de cada caso é que vão determinar sua solução, é possível e/ou útil estabelecer afinal algum parâmetro? A resposta, já se adianta, é afirmativa, por um conjunto de razões.

A relação extremamente próxima que há entre a pon-deração e o caso concreto concentra, ao mesmo tempo, a força e a fragilidade dessa técnica de decisão jurídica. E sua força porque, como referido, fornece ao intérprete um ins-trumento poderoso, capaz de resolver casos para os quais não há solução pré-fabricada no ordenamento. Por outro lado, como também já se examinou nos capítulos iniciais, não parece compatível com a idéia de Estado de direito ou com a opção por uma Constituição rígida autorizar que boa

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parte da interpretação e aplicação das disposições constitu-cionais (incluindo os direitos fundamentais) seja definida em função de juízos exclusivamente pessoais (bem ou mal intencionados), puramente casuísticos e que, muitas vezes, serão contraditórios entre si.

Com efeito, se o constituinte originário, para retirar determinadas matérias do alcance das disputas políticas (matérias que idealmente correspondem a um consenso social básico), impediu que o constituinte derivado pudes-se aprovar emendas "tendentes a abolir" as cláusulas pé-

treas, dentre as quais os direitos e garantias individuais (CF, art. 60, § 4°, IV), conferir ao intérprete o poder de restringir e até mesmo afastar a aplicação de disposições constitucionais não parece coerente com o sistema consti-tucional. Aliás, não há razão alguma para supor que o intér-prete — e aqui em especial o judicial —, diferentemente dos demais órgãos do Estado, não tenderia a utilizar pode-res tão amplos de forma abusiva ou arbitrária222.

Nesse passo, se a ponderação é inevitávelm, por conta da complexidade da sociedade contemporânea, da estrutu-ra estatal e da própria Constituição, isso não condena os cidadãos a dependerem cegamente de cada intérprete e de suas concepções pessoais. Parâmetros — e aqui se estará tratando de parâmetros que possam ser juridicamente fun-damentados — não só podem como devem ser buscados para balizar e controlar a interpretação jurídica, de modo a assegurar, ao menos, a aplicação isonômica do direito.

Por outro lado, nem sempre será possível apresentar parâmetros inteiramente objetivos ou definitivos, que pos-

222 O axioma da ciência política, pelo qual se registra que o detentor de um poder sem controle ou limites tenderá a empregá-lo abusivamente, continua válido. 223 Sobre o ponto, v. os capítulos II e III.

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sam ser aplicados à moda da subsunção clássica pelo intér-prete ao caso, até por conta da natureza das hipóteses que exigem o emprego da ponderação. Quando um parâmetro normativo formulado em tese puder ser aplicado objetiva-mente, de forma generalizada e sem maiores dificuldades, já não se estará diante de um conflito normativo insuperá-vel e a ponderação em abstrato terá sido capaz de resolver a dificuldade. Mas nem sempre será assim. Repete-se, en-tão, a pergunta inicial deste tópico: é possível e útil, ainda neste ponto, construir parâmetros? A resposta continua a ser afirmativa e as observações que seguem ajudam a escla-recer o porquê.

Os modelos que se passa a discutir não pretendem fun-cionar como elementos rígidos e imutáveis, mas como pre-ferências ou parâmetros preferenciais'''. Ao modo das

224 PECZENIK, Aleksander. On Lauf and Reason, 1989, p. 80: "One may assume that individual situations may be classified into moral Pines. All situations belonging to such a type are weighed in the same way. We can then say generallv that in the situation of the tvoe Sithe value VI fulfilled to the extent ei precedes the value v2 fulfilled the extent e2; etc. Under this assumption, a general mie os a general value-statement can have a ceteris-oaribus all-things-considered character, in the following sense: if circumstances remam n unchanged, that is, nothing new and morally relevant happens, then one always ought to follow the mie. Or, if ali morally relevant circumstances remam unchanged, then an object of a certain type is good etc." (grifos no original); e ALEXY, Robert. On the Structure of Legal Principies, Ratio Juris, vol. 13, n° 3, 2000, p. 297: "The collision law expresses the fact that the priority relations between the principies of a system are not absolute but only conditional or relative. The task of optimizing is to determine correct conditional priority relations. The fact that a determination of a conditional priority relation in accordance with the collision law is always the determinations of a mie formed on the occasion of the case demonstrates that the respective leveis of principies and mies are by no means unconnected. To solve a case by weighing is to decide by means of a mie that is substantiated by

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presunções, tais parâmetros devem ser observados regular-mente pelo intérprete. Entretanto, este não estará radical-mente impedido de afastá-los em um caso concreto, por razões"' extremamente particulares que sejam capazes de ilidir a presunção contida nos parâmetros. Nessas circuns-tâncias, que muitas vezes veiculam até mesmo situações inevitáveis de ruptura do sistema, como se verá adiante, o intérprete carregará o ônus especialmente reforçado da motivação. Caberá a ele demonstrar, de forma analítica, o porquê de se estar afastando de tais parâmetros.

A despeito de seu caráter preferencial e não absoluto, a utilidade desses parâmetros parece evidente: juntamente com elementos de verificação da racionalidade do discurso jurídico226, eles são os únicos instrumentos capazes de con-trolar em alguma medida as possibilidades quase ilimitadas que a ponderação oferece. O fato de não ser possível ou adequado formular parâmetros absolutos e inderrogáveis não deve impedir a construção e o emprego daqueles que sejam possíveis e que, na maior parte dos casos, funciona-rão apropriadamente.

giving priority to the preceding principie. In this respect, principies are necessarily reasons for rules.".. 225 Sobre a idéia de "razões", v. HAGE, Jaap C. Reasoning with Rules, 1997, p. 20 e ss.. 226 Alguns desses elementos já foram expostos no texto, corno a necessidade de os argumentos utilizados serem compartilháveis pela razão pública e a pretensão de universalidade. A teoria da argumentação se ocupa do tema especificamente. Sobre o tema, no Brasil, v. MAIA, Antônio Carlos Cavalcanti. "Notas sobre direito, argumentação e democracia". In: CAMARGO, Margarida Maria Lacombe (organizadora). 1988-1998: uma década de Constituição, 1999; e SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Jurisdição constitucional, democracia e racionalidade prática, 2002.

VII.2. Parâmetros gerais e particulares

Afora o caráter preferencial, referido acima, os parâme-tros podem ser classificados em dois grupos distintos, e essa é a segunda observação a fazer sobre o tema antes de se dar início ao estudo dos parâmetros propriamente ditos. Com efeito, é possível distinguir parâmetros de natureza geral, aplicáveis a qualquer espécie de conflito ou ao menos úteis na maioria absoluta deles, e outros de natureza parti-cular, que se ocupam de colisões entre disposições especí-ficas, aos quais inclusive já se fez menção. Explica-se me-lhor.

Nos tópicos anteriores utilizaram-se vários exemplos envolvendo conflitos normativos específicos (e.g., liberda-de de imprensa e de informação versus intimidade, vida privada e honra; integridade física versus direito à honra etc.). De fato, um dos importantes trabalhos da dogmática constitucional é exatamente esse: formular parâmetros fundamentados que permitam delinear os limites de cada um dos enunciados constitucionais, especialmente nas situações em que, com maior freqüência (ou mais previsi-velmente), eles entrem em confronto uns com os outros. O estudo em abstrato desses conflitos, como descrito no Ca-pítulo VI, e os parâmetros que venham a ser propostos em decorrência dele proporcionarão maior segurança e unifor-midade à interpretação constitucional. Cuida-se aqui, por-tanto, de parâmetros particulares, que se relacionam com conflitos entre enunciados normativos específicos. O últi-mo capítulo deste estudo voltará a tratar deles.

Entretanto, ao lado desses parâmetros particulares é possível também formular parâmetros gerais. Os parâme-tros gerais decorrem de construções da metodologia jurídi-ca, estão fundados no sistema como um todo e não se ligam a qualquer circunstância de fato específica: eles servem de

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referência a ser usada pelo aplicador diante de qualquer conflito.

Nos próximos tópicos se estará discutindo exatamente a proposta de dois parâmetros gerais, que podem ser des-critos da seguinte forma: (i) em uma situação de pondera-ção, regras (constitucionais e infraconstitucionais) devem ter preferência sobre princípios; e (ii) as normas que atri-buem ou promovem diretamente direitos fundamentais dos indivíduos devem ter preferência sobre as que com elas por acaso se choquem e se liguem à realização desses direi-tos apenas de forma indireta. Em seguida, vai-se igualmen-te propor um conjunto de elementos capazes de orientar a construção de parâmetros para conflitos normativos espe-cíficos (na nomenclatura aqui adotada, parâmetros particu-lares). A ordem em que os temas são apresentados não é aleatória: como se verá, os parâmetros particulares que ve-nham a ser construídos deverão levar em conta os parâme-tros gerais na seqüência descrita.

VIII. Parâmetro geral I: Regras têm preferência

sobre princípios

O primeiro parâmetro proposto pode ser descrito nos seguintes termos: diante de uma situação que exija o emprego da ponderação, as regras (constitucionais e infra-constitucionais) têm preferência sobre os princípios (constitucionais e infraconstitucionais). Isso significa, de forma simples, que diante de um conflito insuperável pelos métodos tradicionais de interpretação (aqui já in-cluída a utilização dos princípios de interpretação especi-ficamente constitucionais e também da interpretação das regras orientada pelos princípios, dentre outras técnicas da moderna :hermenêutica constitucional), o princípio deve ceder, e não a regra, já que esta, como padrão geral, não deve ser ponderada. Lembre-se que regras e princí-pios são categorias de enunciados normativos, de modo que é de enunciados que se está cuidando quando se trata deste primeiro parâmetro.

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O parâmetro que se acaba de propor pode parecer em desarmonia com tudo o que recentemente se tem como conhecimento assentado acerca dos princípios: sua ascen-dência axiológica em relação às regras e sua centralidade no sistema'. Como se verá, no entanto, o parâmetro que in-dica a preferência das regras sobre os princípios em situa-ções de conflito não está em desacordo com qualquer des-ses pressupostos da moderna teoria dos princípios. Muito ao revés: os fundamentos desse parâmetro preferencial de-correm, na verdade, tanto de algumas distinções relevantes entre princípios e regras, que já se tornaram correntes na doutrina brasileira e estrangeira, quanto dos próprios con-ceitos de Constituição e democracia. Ainda que de forma objetiva, os próximos tópicos cuidam de revisitar essas no-ções.

VIII]. Fundamentação

a) Revendo as distinções relevantes entre princípios, sua estrutura e diferentes categorias, e regras.

Muito se tem escrito, no Brasil e no exterior, acerca da

227 Talvez o registro mais famoso sobre o tema seja o de MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Elementos de direito administrativo, 1986, p. 230: "Princípio é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas (...) Violar um princípio é muito mais grave do que transgredir uma norma. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um especifico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais."

distinção entre princípios e regras228. Não é preciso descre-ver aqui todas as discussões teóricas envolvendo o tema"' e nem seria útil reproduzir os vários critérios que têm sido empregados para extremar as duas espécies de enunciados normativos"). Bastam, para os fins aqui pretendidos, dois registros: um sobre a distinção geral entre princípios e re-

228 Na verdade, embora o tema seja hoje recorrente, a juridicidade dos princípios é uma conquista recente, mais ainda dos princípios constitucionais. V. sobre o tema, SILVA, José Afonso. Aplicabilidade das normas constitucionais, 1998; e BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional, 1999, p. 228 e ss..

229 Sobre o tema, vejam-se, dentre muitos, BONAV1DES, Paulo. Curso de direito constitucional, 1999, p. 243 e ss.; GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988 — Interpretação e crítica, 1996, p. 92 e ss.; GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação e aplicação do direito, 2002, p. 122 e ss.; BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição, 2003, p. 141 e ss.; BARROSO, Luís Roberto. "Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito constitucional brasileiro (pós-modernidade, teoria crítica e pós-positivismo)". In: BARROSO, Luís Roberto (organizador). A nova interpretação constitucional. Ponderação, direitos fundamentais e relações privadas, 2003, p. 27 e ss.; COELHO, Inocêncio Mártires. Interpretação constitucional, 1997, p. 79 e ss.; e ESPÍNDOLA, Ruy Samuel. Conceito de princípios constitucionais, 1999. Na doutrina estrangeira, confiram-se CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição, 1998, p. 1034 e ss.; ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales, 1997, p. 83 e ss.; e DWORKIN, Ronald. Taking Rights Seriously, 1977, p. 95 e ss..

230 VIGO, Rodolfo L.. Los principias jurídicos — perspectiva jurisprudencial, 2000, pp. 9 a 20. O autor apresenta um interessante panorama dos critérios distintivos entre princípios e regras já propostos pela doutrina. Pode-se encontrar um apanhado desses critérios também em BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais — O princípio da dignidade da pessoa humana, 2002, p. 40 e ss.. Confira-se também, para uma visão crítica de alguns desses critérios, SANCHIS, Luis Prieto. Sobre principios y normas. Problemas dei razonamiento juridico, 1992.

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gras e outro sobre a estrutura própria de parte dos princí-pios constitucionais"i.

Para além de outros critérios distintivos, há algum consenso acerca do fato de que princípios e regras são categorias de enunciados"' que têm estrutura diver-

231 A razão pela qual se faz referência a apenas "parte dos princípios constitucionais" é explicitada na nota n° 240. 232 Em sentido diverso, ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios, 2003, p. 26: "Enfim, é justamente porque as normas são construídas pelo intérprete a partir dos dispositivos que não se pode chegar à conclusão de que este ou aquele dispositivo contém uma regra ou um princípio. Essa qualificação normativa depende de conexões axiológicas que não estão incorporadas ao texto nem a ele pertencem, mas são, antes, construídas pelo próprio intérprete.". Para o autor, p. 56: "A distinção entre categorias normativas, especialmente entre princípios e regras, tem duas finalidades principais. Em primeiro lugar, visa a antecipar características das espécies normativas de modo que o intérprete ou o aplicador possa ter facilitado seu processo de interpretação e aplicação do Direito. Em conseqüência disso, a referida distinção busca, em segundo lugar, aliviar, estruturando-o, o ônus de argumentação do aplicador do Direito, na medida em que a uma qualificação das espécies normativas permite minorar — eliminar, jamais — a necessidade de fundamentação, pelo menos indicando o que deve ser justificado. (...) Uma análise mais atenta das referidas distinções entre princípios e regras demonstra que os critérios utilizados pela doutrina muitas vezes manipulam, para a interpretação abstrata das normas, elementos que só podem ser avaliados no plano concreto de aplicação das normas. Ao fazê-lo, elegem critérios abstratos de distinção que, no entanto, podem não ser — e com freqüência não o são — confirmados pela aplicação concreta. Com isso, a classificação, em vez de aliviar o ônus de argumentação do aplicador do Direito, elimina-o." (grifos no original) Ao registrar que só é possível falar de princípio ou regra ao fim da interpretação, o autor parece querer desvincular-se do critério de aplicação "tudo ou nada", identificado por parte da doutrina como um elemento distintivo das regras. E isso para concluir (p. 45) que "as regras também podem ter seu conteúdo preliminar de sentido superado por razões contrárias, mediante um processo de ponderação de razões.", exigindo para isso apenas um ônus argumentativo maior. Lembre-se, como já referido, que o autor

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sam, sendo que essa diferença pode ser descrita de modos variados. Uma forma bastante simples de apresentar a ques-tão é a seguinte: as regras descrevem comportamentos, sem se ocupar diretamente dos fins que as condutas descritas pro-curam realizar. Os princípios, ao contrário, estabelecem es-tados ideais, objetivos a serem alcançados, sem explicita-

compreende a ponderação em sentido amplo, como inerente a toda interpretação, e não no sentido estrito discutido neste estudo.

Como se verá na seqüência do texto, não se sustenta aqui que o "tudo ou nada" seja um traço identificador das regras e, nesse ponto, a crítica de Humberto Ávila é inteiramente procedente. Entretanto, se a classificação principio ou regra é um produto final da interpretação, já não há utilidade em empregá-la; o objetivo da distinção indicado pelo próprio autor na transcrição acima — antecipar as características da espécie normativa e facilitar o processo de interpretação — parece pressupor, como aqui se sustenta, que a qualidade de princípio ou regra é própria dos enunciados normativos e não o resultado final da interpretação (tendo em conta a distinção feita neste estudo entre enunciado e norma). Além disso, o objetivo final da interpretação não é qualificar os diferentes enunciados examinados e sim apurar a norma adequada — cuja estrutura é tipicamente a de uma regra, como já se viu — para o caso concreto. Quanto ao tema da ponderação de regras, ele será examinado de forma específica mais adiante. 233 Essa é a concepção forte da distinção entre princípios e regras que se tornou majoritária no Brasil. Há autores, porém, que sustentam haver apenas uma distinção fraca entre eles, isto é, regras e princípios teriam a mesma estrutura básica, e a diferença estaria apenas na intensidade maior ou menor de algumas características. É o caso, entre outros, de SANCHIS, Luis Prieto. Sobre principios y normas. Problemas dei razonamiento juridico, 1992, p. 132: "(...) los Ilamados principios no son nada sustancialmente distintos a las normas, caracterizándose simplemente por la posesión de ciertos rasgos (generalidad, fundamentalidad, etc.) que no se configuran a la manera de todo o nada, sino que se pueden tener, y que de hecho se tienen, en determinada medida. Consiguientemente, y desde uma perspectiva positivista, la existencia de los principios plantea los mismos problemas que la existencia de las normas.".

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associado a outros) pretende produzir efeitos sobre a reali-dade. Esses efeitos podem ser relativamente simples — impedir que menores de 18 anos trabalhem à noite — ou complexos — assegurar que a Administração Pública trate os particulares de forma isonômica. Essa complexidade, como é fácil perceber, pode decorrer das próprias caracte-rísticas do efeito e/ou da diversidade de circunstâncias de fato sobre as quais o enunciado incidirá. Seja como for, o efeito pretendido pelo enunciado é o primeiro elemento importante a ser considerado. O segundo dado fundamen-tal envolve as condutas necessárias para realização desses efeitos e que podem ser exigidas. Cada conduta que se identifique como necessária e exigível relativamente a um efeito descreve o conteúdo de uma norma construída a partir do enunciado em questão. Feito o esclarecimento inicial, volta-se ao ponto.

As regras são enunciados que estabelecem desde logo os efeitos que pretendem produzir no mundo dos fatos, efeitos determinados e específicos'''. Dependendo da complexidade do efeito pretendido, a regra pode deman-dar uma única conduta (muitas vezes descrita de forma direta no próprio enunciado), que não sofrerá alteração im-portante em decorrência dos diferentes ambientes de fato sobre os quais incidirá, ou condutas diversas, que variam em função dos fatos subjacentes, ainda que o efeito preten-dido seja sempre o mesmo.

Exemplos ajudam a esclarecer o que se afirma. A regra que proíbe o trabalho noturno, perigoso ou insalubre aos

rem necessariamente as ações que devem ser praticadas para a obtenção desses fins234.

Embora a descrição acima seja suficiente para explicar boa parte da realidade, há momentos em que ela exigirá complementação. Por vezes, e.g., além de descrever uma conduta de forma específica, uma mesma regra pode justi-ficar a exigibilidade de outras obrigações. Por conta da ge-neralidade de sua formulação e dos diferentes ambientes sobre os quais incidem, as regras podem dar origem a dife-rentes normas e, por conseqüência, ensejar condutas diver-sas. O exemplo já referido acerca do direito ao silêncio conferido ao preso (CF, art. 5', LXIII) ilustra o ponto. Trata-se de regra a partir da qual, além da norma mais evidente, relacionada ao preso, desenvolveu-se uma outra, que conferiu aos depoentes em Comissões Parlamentares de Inquérito o direito ao silêncio diante das perguntas dos parlamentares. Também quanto aos princípios, a mera afir-mação de que eles indicam fins sem definição das condutas nem sempre será o bastante. Há hipóteses em que ao me-nos algumas ações necessárias para atingir o fim proposto podem ser definidas desde logo, ao passo que os fins descri-tos no enunciado podem apresentar-se determinados ou relativamente indeterminados.

Uma outra forma de descrever a distinção entre princí-pios e regras"' depende da compreensão prévia de dois elementos"'. Todo enunciado normativo (isoladamente ou

234 ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios, 2003, p. 56 e ss..

235 Esse mesmo tema foi abordado de forma mais analítica em BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios

constitucionais — O princípio da dignidade da pessoa humana, 2002, embora no presente estudo novos elementos tenham sido agregados à discussão.

236 A distinção proposta na seqüência procura diferenciar princípios e

regras predominantemente a partir de suas características estruturais, embora se recorra, em determinado ponto, a elementos materiais. A questão será exposta com mais detalhes no texto. 237 É importante não confundir a indeterminação dos efeitos com a indeterminação de conceitos empregados na descrição da hipótese fática utilizada por muitas regras. A esse ponto se voltará adiante.

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menores de dezoito anos pretende produzir um efeito es-pecífico: nenhum menor de dezoito anos poderá realizar trabalhos noturnos, perigosos ou insalubres, mesmo que ainda seja necessária uma definição técnica sobre o que é perigoso ou insalubre. A conduta óbvia que dela decorre é a de que nenhum empregador pode contratar um menor nessas condições. Situação similar ocorre com a regra que afirma que aos sindicatos caberá a defesa, judicial ou extra-judicial, dos direitos e interesses coletivos ou individuais da categoria. O efeito pretendido pela regra é o de que o sin-dicato possa participar de uma demanda judicial, adminis-trativa, ou de qualquer outra natureza, em nome da catego-ria. Nada além disso. Aqui a regra já impõe várias condutas: o juiz ou o administrador terá de reconhecer a legitimidade do sindicato. O mesmo se diga da parte contrária na dispu-ta que, caso vencida, estará obrigada a reconhecer o benefí-cio obtido pelo sindicato relativamente a todos os seus fi-liados.

Já a regra contida no art. 37, XXI, da Constituição, pela qual se impõe que a contratação de obras, serviços, com-pras e alienações com a Administração Pública seja prece-dida de licitação, poderá dar a origem a normas e, a foniori, a condutas bastante diversas. O efeito pretendido aqui é determinado, embora muito mais complexo que nos dois exemplos anteriores, recebendo ademais o influxo de ou- tras regras e princípios. Com fundamento nessa regra, como se sabe, a Administração está obrigada, (i) antes de qualquer coisa, a licitar, salvo nas hipóteses excluídas por lei; (ii) a impor aos interessados apenas as exigências neces-sárias ao fim por ela pretendido com a licitação; (iii) a não adotar cláusulas discriminatórias, de modo que a maior quantidade de interessados possa participar do certame, etc.

De toda forma, a despeito dessa variedade de condutas,

o efeito pretendido pela regra encontra-se definido e as diversas condutas referidas decorrem logicamente dele. Este é um aspecto importante. As complexidades que a regra enfrenta no percurso entre o enunciado e sua aplica-ção concreta — isto é, entre o efeito determinado descrito no enunciado e as normas (condutas) necessárias para sua realização — decorrem da natural dificuldade que o direito em geral enfrenta para disciplinar os fenômenos sociais e são, a rigor, inelimináveis. Para produzir efeitos mais com-plexos sobre a realidade é necessário impor um conjunto variado de condutas. Além disso, é impossível prever todas as circunstâncias de fato que estarão recebendo a incidên-cia da regra, de modo que, também por conta disso, condu-tas diferentes poderão ser apuradas a partir de um mesmo enunciado normativo.

Esses elementos — efeitos e condutas/normas — e as relações entre eles se apresentam de forma diversa quando se trata de princípios. Como descrito acima, as regras enunciam desde logo efeitos determinados e o caminho que os liga às condutas por eles exigidas pode ser mais ou menos longo, mas em todo caso trata-se de um único cami-nho. Os princípios, todavia, funcionam diversamente. Para facilitar a exposição sobre os princípios, e tendo em conta razões estruturais, é possível agrupá-los em duas catego-rias.

O primeiro grupo congrega os princípios que descre-vem efeitos relativamente indeterminados, cujo conteúdo, em geral, é a promoção de fins ideais, valores ou metas políticas. E essa indeterminação, ainda que relativa, decor-re de a compreensão integral do princípio depender de concepções valorativas, filosóficas, morais e/ou de opções ideológicas.

O segundo grupo também pretende produzir efeitos associados a metas valorativas ou políticas, assim como

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acontece com o primeiro, mas os fins aqui descritos são determinados, o que aparentemente os aproximaria das re-gras. A dificuldade, porém, é que a identificação das con-dutas necessárias e exigíveis para a realização dos efeitos desses princípios não depende apenas da complexidade do próprio efeito e/ou da variedade de circunstâncias fáticas sobre as quais ele incide, como nas regras. Por conta da natureza do efeito pretendido, não se trata apenas de em-preender um raciocínio lógico-jurídico para apurar as con-dutas exigíveis; cuida-se, diversamente, de escolher entre diferentes condutas possíveis a partir de distintas posições políticas, ideológicas e valorativasm. Se há um caminho que liga o efeito às condutas no caso das regras, há uma variedade de caminhos que podem ligar o efeito do princí-pio a diferentes condutas, sendo que o critério que vai de-finir qual dos caminhos escolher não é exclusivamente jurí-dico ou lógico.

Alguns exemplos ajudam a esclarecer o que se acaba de expor. Tome-se, em primeiro lugar, o princípio da dignida-de da pessoa humana: que efeitos ele pretende produzir? O que ele significa? Ora, que as pessoas tenham uma vida digna. Sem maiores dificuldades, é possível concluir que matar indiscriminadamente as pessoas viola a dignidade e, portanto, impedir tal espécie de ação e assegurar a vida é um dos efeitos pretendidos por esse princípio. Mas que se dirá da pena de morte, da eutanásia e do aborto, para ficar apenas no aspecto 'vida' da dignidade? Muitas vezes os de- fensores e detratores de algumas dessas políticas fundam-se, em última análise, em concepções diferentes do que

238 Os dois grupos não são estanques evidentemente. Princípios cujos efeitos são relativamente indeterminados também podem depender de decisões políticas ou valorativas para a definição das condutas necessárias à realização de seus efeitos (ainda que a parte determinada deles).

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seja dignidade humana, influenciadas por posições religio-sas, filosóficas, políticas, etc. Muito provavelmente, haverá opiniões diversas sobre os efeitos da dignidade neste ponto.

O mesmo se pode dizer, e.g., do princípio da livre ini-ciativa. Certamente, um dos efeitos que tal enunciado nor-mativo pretende produzir é impedir a apropriação estatal de todos os meios de produção. Mas teria ele também o condão de impedir a existência de monopólios estatais? E empresas públicas explorando atividades econômicas? E o controle de preços por parte do Poder Público? Também nesse particular não há unanimidade. O efeito pretendido não é totalmente definido e sua definição depende de avaliações que não são propriamente jurídicas.

Fenômeno semelhante se passa quando, embora o efei-to pretendido pelo princípio sobre o mundo dos fatos seja perfeitamente definido, há uma multiplicidade de condu-tas em tese possíveis e adequadas para atingi-lo, sem que a Constituição tenha optado por qualquer uma delas239. O enunciado constitucional que determina à ordem econômi-ca a busca do pleno emprego apresenta um exemplo dessa característica. Não há propriamente indeterminação no que toca aos efeitos pretendidos pelo dispositivo: seu claro propósito é que todos tenham emprego. É essa alteração que ele deseja produzir no mundo dos fatos. Porém, esse resultado pode, em tese, ser alcançado de várias manei- ras240

.

239 Essa é a fórmula usada, em geral, para descrever as chamadas normas programáticas que, nada obstante, estruturalmente consideradas, nada mais são do que espécies de princípios.

240 ÁVILA, Humberto. A distinção entre princípios e regras e a redefinição do dever de proporcionalidade, Revista da Pós-Graduação da Faculdade de Direito da USP vol. 1, 1999, p. 43: "Essas considerações levam à seguinte conclusão: tanto as normas de conduta [regras] quanto aquelas que estabelecem fins [princípios] possuem a conduta como

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Uns dirão que a melhor forma de atingi-lo é a abertura de frentes de trabalho pelo Estado; outros, que é o incenti-vo a pequenas e médias empresas; outros, que é o aparelha-mento da infra-estrutura, que atrairá as empresas que, por sua vez, gerarão empregos. Outros ainda dirão que o Estado deve investir em turismo. Ainda que o fim seja bastante preciso, o fato é que há meios variados para alcançá-lo em função das diferentes opções político-ideológicas que po-

dem ser adotadas. O mesmo raciocínio se pode aplicar, e.g., em relação aos enunciados que propugnam a redução da desigualdade regional, a erradicação da pobreza, o in-centivo estatal à pesquisa e tecnologia etc. O dispositivo não escolhe o meio.

Os dois grupos de princípios que se acaba de descrever têm sua indefinição — no primeiro caso, indefinição de efeitos, e, no segundo, das condutas — associada a disputas entre valores diversos, concepções morais e filosóficas e/ou diferentes opções político-ideológicas, sendo que, repita-se, a escolha entre esses elementos não decorre de um juízo puramente jurídico"' . Esse quadro é bastante diverso do

objeto. A única diferença é o grau de determinação quanto à conduta devida: nas normas finalísticas, a conduta devida é aquela adequada à realização dos fins; nas normas de conduta, há previsão direta da conduta devida, sem ligação direta com fins." (grifo no original) Artigo também publicado na Revista de Direito Administrativo n°215, 1999, pp. 151 a 179. 241 A distinção descrita no texto entre princípios e regras é forte, isto é, decorre de uma diferença essencial entre eles e não apenas de grau ou intensidade relativamente a características comuns aos dois tipos de enunciados. Nada obstante, é possível agrupar em uma terceira categoria enunciados que a doutrina em geral identifica como princípios mas que, na verdade, apresentam estrutura muito mais próxima das regras e delas se diferenciam por conta da intensidade de determinadas características. Trata-se daqueles princípios que pretendem impor determinadas qualidades ou virtudes a atos jurídicos, como, e.g., os chamados princípios

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que se passa com algumas regras. Em relação a elas, a varie-dade de condutas exigíveis decorre da necessidade, própria do direito em geral, de ajuste entre o efeito previsto no enunciado e a complexidade das situações de fato que ele pretende regular ou sobre as quais vai incidir242.

Registradas as diferenças fundamentais entre princí-pios e regras, cabe um último registro acerca da indetermi-nação que, a rigor, caracteriza as duas categorias de princí-

da moralidade, da eficiência, da impessoalidade e da isonomia (em sentido formal). O efeito que esses enunciados pretendem produzir não depende de novas decisões valorativas ou políticas e a indeterminaçáo que os caracteriza decorre na realidade da multiplicidade de situações sobre as quais o enunciado vai incidir. Nesse ponto, aliás, é preciso reconhecer que, embora a distinção forte entre princípios e regras seja extremamente útil na maioria dos casos, há hipóteses em que os fenômenos se aproximam de tal forma que as discussões sobre o tema têm pouca valia. Anotam esse ponto, V. NOVAIS, Jorge Reis. As restrições aos direitos fundamentais não expressamente autorizadas pela Constiuição, 2003, pp. 344 e 345 e 350 e ss.; AARNIO, Aulis. Reason and Authority, 1997, p. 174 e ss.; SERNA, Pedro e TOLLER, Fernando. La interpretación constitucional de los derechos fundamentales. Una alternativa a los conflictos de derechos, 2000, p. 59; e CIANCIARDO, Juan. Principios y regias: una aproximación desde los criterios de distinción, Boletín Mexicano de Derecho Comparado, nueva serie, afio >0=1, n° 108, 2003, pp. 891 a 906. 242 Como se pode perceber, a distinção entre princípios e regras apresentada no texto conjuga um critério estrutural (a determinação dos efeitos e/ou a multiplicidade de meios para atingi-los) com um critério material: a circunstância de a determinação dos efeitos e/ou dos meios para atingi-los depender ou não de decisões de natureza política, ideológica ou valorativa. Em estudo anterior (A eficácia jurídica dos princípios constitucionais — O princípio da dignidade da pessoa humana, 2002) desenvolvemos apenas o critério estrutural que, no entanto, parece agora insuficiente. Nesse sentido, portanto, procedente a crítica formulada por SILVA, Virgílio Afonso da. Princípios e regras: mitos e equívocos acerca de uma distinção, Revista latino-Americana de Estudos Constitucionais n° 1, 2003, p. 623 e ss..

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pios referidas acima. Ao longo do texto, e até aqui, falou-se sempre de efeitos relativamente (e não completamente) in-determinados, e o mesmo acontece com as condutas243. E isso porque, a despeito de todas as indeterminações, é pos-sível afirmar, com freqüência, que certos efeitos estão con-tidos de forma inexorável na descrição do princípio, até por força de uma imposição lingüística, já que toda expressão haverá de ter um sentido mínimo. Esse conjunto de efeitos forma um núcleo essencial de sentido do princípio, com natureza de regra, uma vez que se trata agora de um con-junto de efeitos determinados. Igualmente, muitas vezes será possível afirmar que certas condutas são absolutamen-te indispensáveis para a realização do fim indicado pelo princípio.

Observe-se urna questão importante. Quando se afirma que é possível identificar um núcleo com natureza de regra nos princípios (seja de efeitos determinados, seja de con-dutas indispensáveis à realização de efeitos), já não se está trabalhando no plano dos enunciados normativos originais. Esse núcleo — e, a fortiori, essas regras — é apurado após um processo de interpretação e, se necessário, de pondera-ção abstrata ou preventiva244.

Um último exemplo: um empregado doméstico recebe de seu empregador a ordem de limpar a cozinha de uma residência ao longo de um determinado dia. Ao fim do dia, o empregador verifica que apenas as superfícies foram lim-

pas (chão, mesas e bancadas), ao passo que o interior dos eletrodomésticos (fogão, geladeira e microondas) não so-freu qualquer intervenção. Insatisfeito, o empregador pas-sa a entregar ao empregado uma lista de atividades especi-ficas a serem desempenhadas ao longo do dia, na qual inclui a limpeza interna dos três eletrodomésticos referidos, ob-tendo, assim, o resultado desejado.

Na primeira situação descrita, como é fácil perceber, o empregador veiculou sua ordem por meio de um princípio, ao passo que, no segundo caso, utilizou-se de regras especi-ficas. É interessante notar que as percepções dos dois indi-víduos acerca do que se pretendia com a ordem e das con-dutas necessárias para atingir esse fim (a limpeza da cozi-nha) eram diversas, embora apresentassem um núcleo co-mum (a limpeza das superfícies).

Dito de forma direta, as duas categorias de princípios podem ter sua estrutura descrita como dois círculos con-cêntricos. O círculo interior corresponderá — quanto ao primeiro grupo de princípios — a um núcleo de efeitos que acabam tornando-se determinados por decorrerem de for-ma inafastável do seu sentido e, conseqüentemente, adqui-rem a natureza de regra. Isto é: cuida-se de um conjunto mínimo de efeitos determinados (e a partir deles as condu-tas necessárias e exigíveis deverão ser construídas) conti-dos no princípio. Ainda que haja disputa sobre a existência de outros efeitos a partir desse núcleo, a idéia é a de que quanto a estes haverá consenso. O espaço intermediário entre o círculo interno e o externo (a coroa circular) será o espaço de expansão do principio reservado à deliberação democrática; esta é que definirá o sentido, dentre os vários possíveis em uma sociedade pluralista, a ser atribuído ao princípio a partir de seu núcleo.

O mesmo pode ocorrer com a segunda categoria de princípios. Embora a definição das condutas necessárias

243 A partir deste momento a distinção entre as duas categorias de princípios já não terá maior relevância. 244 Sobre o tema da ponderação abstrata ou preventiva, veja-se o Capítulo VI. Sobre o núcleo do princípio da dignidade humana relativamente a prestações materiais v. BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais — O principio da dignidade da pessoa humana, 2002.

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para realizar o efeito normativo dependa de avaliações po-líticas, em muitos casos será possível identificar condutas básicas indispensáveis para a realização do efeito indicado pelo princípio, independentemente de colorações ideológi-cas. Desse modo, a imagem de dois círculos concêntricos também aqui pode ser empregada de forma útil: o círculo interior ocupado por condutas mínimas, elementares, e exigíveis e o exterior a ser preenchido pela deliberação de-mocrática245. A estrutura que se acaba de descrever revela um dado da maior importância, descrito a seguir. Os prin-cípios em questão operam na realidade de duas formas dis-tintas: relativamente ao seu núcleo, funcionam como regras e, apenas em relação a sua área não nuclear, funcionam como princípios propriamente ditos.

Feita essa longa exposição sobre as diferenças entre re-gras e princípios e sobre a estrutura destes últimos, cabe perguntar: qual a relação entre o que se acaba de descrever e a ponderação, sobretudo tendo em conta o parâmetro da preferência das regras, anunciado logo de início? A questão não é complexa. Como visto, as regras determinam a pro-

245 A identificação do núcleo será em geral mais fácil — aqui já migrando para um exame do conteúdo dos enunciados — quando se trate de princípios que consagram direitos. Princípios que estabelecem metas ou fins públicos de natureza geral sofrem muito maior influência de concepções políticas diversas que os direitos, cuja existência lógica independe, em geral, do Direito. V. NOVAIS, Jorge Reis. As restrições aos direitos fundamentais não expressamente autorizadas pela Constituição, 2003, pp. 162 e 163. Em qualquer caso, o ideal é que os efeitos e condutas identificados no núcleo dos princípios possam ser exigidos diretamente, como acontece com a maior parte das regras, uma vez que a estrutura normativa será equivalente (eficácia positiva ou simétrica). Nada obstante, a questão da eficácia jurídica dos princípios envolve outros desdobramentos que não podem ser aprofundados aqui. Sobre o tema, v. BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais — O princípio da dignidade da pessoa humana, 2002.

dução de efeitos determinados, de maneira que a não veri-ficação desses efeitos importa violação das mesmas. Trata-se em geral de estruturas subsuntivas que, em um Estado de direito, devem ser observadas. Não é preciso alongar-se neste ponto.

A situação não será tão rígida quando se trate de princí-pios, e em particular da área não nuclear deles. Como se viu, a partir de seu núcleo, os princípios vão admitir uma realização mais ou menos ampla, dependendo da concep-ção valorativa ou política que venha a prevalecer na defini-ção do seu sentido e das condutas que se considerem ne-cessárias e exigíveis para realizá-lo. Se é assim, parece evi-dente que diante de um conflito aparentemente insuperá-vel entre uma regra (aqui incluindo-se o núcleo dos princí-pios aos quais se possa atribuir natureza de regra) e a área não nuclear de um princípio246 a regra deverá ter prefe-rência.

Nesse mesmo sentido, como já se tornou corrente, é a conclusão de Ronald Dworkin e Robert A1exy247, ainda que a distinção entre princípios e regras por eles proposta não seja exatamente a que se acaba de descrever. Na concepção desses autores, as regras têm estrutura biunívoca, aplican-do-se de acordo com o modelo do "tudo ou nada"248. Isto é,

246 Na verdade, como se verá adiante, o conflito se dará entre a regra e uma norma construída pelo intérprete a partir da área não nuclear do princípio. 247 Para uma visão crítica da distinção elaborada por Alexy entre princípios e regras v. ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios, 2003, p. 35 e ss.. 248 DWORKIN, Ronald. Taking Rights Seriously, 1977, pp. 24 a 26: "The difference between legal principies and legal rules is a logical distinction. Both sets of standards point to particular decisions about legal obligation in particular circumstances, but they differ in the character of

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dado seu substrato fático típico, as regras só admitem duas espécies de situação: ou são válidas é incidem ou não inci-dem por inválidas249. Juridicamente, uma regra vale ou não vale. Não se admitem gradações.

Ao contrário das regras, os princípios determinam que algo seja realizado na maior medida possível, admitindo uma aplicação mais ou menos ampla de acordo com as pos-sibilidades físicas e jurídicas existentes. Esses limites jurí-dicos, que podem restringir a otimização de um princípio, são (i) regras que o excepcionam em algum ponto e (ii) outros princípios opostos que procuram igualmente maxi-mizar-se, daí a necessidade eventual de ponderá-los"°. De_

the direction they give. Rules are applicable in an ai!-or-nothing fashion. If the facts a rule stipulates are given, then either the mie is valid, in which case the answer it supplies must be accepted, or it is not, in which case it contributes nothing to the decision. (...) Of course, a mie may have exceptions (...) However, an accurate statement of the mie would take this exception into account, and any that did not would be incomplete. (...) But this is not the way the sample principies in the quotations operate. Even those which look most like rules do not set out legal consequences that follow automatically when the conditions provided are met. (...) This first difference between mies and principies entails another. Principies have a dimension that mies do not — the dimension of weight or importance. When principies intersect (...), one who must resolve the conflict has to take into account the relative weight of each."

249 ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales, 1997, p. 88. V. também BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição, 2003.

250 ALEXY, Robert. Derechos, razonamiento jurídico e discurso racional, Revista Isonomia n° 1, 1994, p. 41: "Los derechos que se basan en regias son derechos definitivos. Los principios son normas de un tipo completamente distinto. Estos ordenan optimizar. Como tales, son normas que ordenan que algo debe hacerse en la mayor medida fáctica y juridicamente posible. Las posibilidades jurídicas, además de depender de regias, están esencial mente determinadas por otros principios opuestos, hecho que implica que los principios pueden y deben ser

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senvolvendo esse critério de distinção, Alexy chama as re-gras de comandos de definição e os princípios, de coman-dos de otimização251. Por isso mesmo, na hipótese de coli-são, as regras terão preferência sobre os .princípios252.

Seja como for, a repercussão para o processo pondera-tivo de tudo o que se acaba de descrever é simples: tendo-se em conta a estrutura dos enunciados normativos, as re-gras não são concebidas para serem ponderadas, pois a pon-deração significará no mais das vezes sua não aplicação, a negativa de sua vigência. Em geral, não é possível aplicar mais ou menos uma regram; ou seus efeitos determinados verificam-se ou não. Com os princípios, tudo é diferente

ponderados. Los derechos que se basan en principios son derechos prima

facie.". Confira-se sobre o tema: SCHOLLER, Heinrich. O principio da proporcionalidade no direito constitucional e administrativo da Alemanha, Revista Interesse Público n° 2, 1999, p. 93 e ss., SARMENTO, Daniel. "Os princípios constitucionais e a ponderação de bens". In: TORRES, Ricardo Lobo (organizador). Teoria dos direitos fundamentais, 1999, p. 35 e ss..

251 ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales, 1997, p. 86. Boa parte da doutrina brasileira tem trabalhado com esse critério distintivo. V. STUMM, Raquel Denize. Principio da proporcionalidade no direito constitucional brasileiro, 1995, p. 42; e PIMENTA, Patilo Roberto Lyrio. Eficácia e aplicabilidade das normas constitucionais programáticas, 1999, p. 121 e ss.

252 Em sentido diverso, GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação e aplicação do direito, 2002, p. 174 e ss., pois na concepção do autor não há antinomia entre princípios e regras, mas apenas entre princípios.

253 A afirmação não deve ser compreendida de forma rígida, já que também as regras estão submetidas à interpretação e, muitas vezes, será possível fixar um sentido mais ou menos amplo para a regra, e até mesmo evitar colisões com outros enunciados, por meio de técnicas hermenêuticas convencionais. O ponto será retomado nos tópicos seguintes.

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(lembrando sempre que, ao se falar de princípios, é preciso distinguir seu núcleo, que na verdade tem natureza de re-gra, e sua área não nuclear, que tem natureza de princípio propriamente dito). O princípio pode ser, como referido por Alexy, não só mais ou menos intensamente adimplido, mas também adimplido de formas variadas. Admite-se aqui, logicamente, compressões recíprocas, nos termos da ponderação254.

Esse é, portanto, o fundamento lógico para o primeiro parâmetro preferencial proposto para a ponderação o de que as regras têm preferência sobre os princípios255, já que a estrutura daquelas não é adequada, logicamente, para so-frer ponderações. A preferência das regras na hipótese de-corre também de outro fundamento, intimamente relacio-nado com este primeiro, mas de natureza substancial. Ele será o tema do próximo tópico.

254 Como a distinção entre regras e princípios, para Alexy, encontra-se na sua forma de aplicação, ao defrontar-se com o problema da colisão de direitos fundamentais o autor sustenta que apenas uma teoria que visualize os direitos fundamentais como princípios é capaz de solucioná-lo. V. ALEXY, Robert. Colisão de direitos fundamentais e realização de direitos fundamentais no estado de direito democrático, Revista de Direito Administrativo n° 217, 1999, p. 79: "A teoria dos princípios é capaz não só de estruturar racionalmente a solução de colisões de direitos fundamentais. Ela tem ainda uma outra qualidade que, para os problemas teórico-constitucionais que devem aqui ser considerados, é de grande significado. Ela possibilita um meio-termo entre vinculação e flexibilidade. A teoria das regras conhece somente a alternativa: validez ou não-validez.". Uma distinção estrutural entre as espécies normativas (regra e princípio) e também a percepção de suas diferentes funções não admitem a simplicidade da solução de Alexy.

255 NOVAIS, Jorge Reis. As restrições aos direitos fundamentais não expressamente autorizadas pela Constituição, 2003, p. 332 e ss..

b) Revendo as diferentes funções de princípios e regras

A diferença estrutural de princípios e regras descrita no tópico anterior não serve apenas de deleite para os teóricos e nem constitui mero capricho do legislador, que poderá escolher, em cada caso, uma fórmula ou outra (regra ou princípio) para veicular suas intenções. Há funções e pro-pósitos substanciais associados a essas diferentes estrutu-ras; na realidade, funções gerais do sistema jurídico como um todo e funções particulares, próprias da ordem consti-tucional256.

Há amplo consenso de que a ordem jurídica é uma fun-ção de dois valores principais interdependentes: de um lado, a segurança, a previsibilidade e a estabilidade das rela-ções sociais e, de outro, a justiça25'. Ambos contribuem direta ou indiretamente para o bem-estar humano, para a proteção e promoção de sua dignidade e para a criação de condições que permitam o seu pleno desenvolvimento. Um sistema que supervaloriza a segurança pode tornar-se iníquo e desconectar-se das legítimas expectativas de justi-ça. Por outro lado, uma ordem jurídica que despreza a se-gurança acaba por instituir um ambiente de imprevisão e incerteza que dificulta as relações sociais e o desenvolvi-mento pessoal dos indivíduos. Não há novidade neste -par-ticular.

Além disso, quanto maior for a possibilidade, autoriza-

256 Vale observar que, no caso da atividade legislativa, a opção entre princípio ou regra pode estar relacionada também com a maior ou menor concretização que se pretende atribuir a algum dispositivo constitucional. Nesse ponto, uma disciplina infraconstitucional insuficiente pode inclusive ser objeto de controle de constitucionalide por omissão parcial.

257 LARENZ, Karl. Derecho justo, 1985, p. 42 e ss.

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da pelo sistema, de realizar justiça no caso concreto, maior liberdade será conferida ao aplicador, crescendo na mesma proporção o risco de arbítrio e a ameaça para a isonomia, já que mais facilmente se produzirão julgamentos desiguais para casos idênticos. Por outro lado, negar ao intérprete qualquer espaço de adaptação ao caso pode inviabilizar sua atuação, em especial diante de realidades intensamente mutáveis como as contemporâneas, em que é simplesmen-te impossível regular as novas questões no mesmo ritmo em que elas surgem e são levadas ao Judiciário. Em suma: a harmonia de um sistema jurídico reside no equilíbrio efi-ciente entre segurança e justiça.

Princípios e regras desempenham cada qual um papel diferenciado, porém da maior importância para manter esse equilíbrio. Com efeito, é possível identificar uma rela-ção, no âmbito do sistema romano-germânico ocidental, entre a segurança, a estabilidade e a previsibilidade e as regras jurídicas. Isso porque, na medida em que veiculam efeitos determinados, pretendidos pelo legislador de forma específica, as regras contribuem para a maior previsibilida-de do sistema jurídico258.

A justiça, por sua vez, depende em geral de disposições mais flexíveis, à maneira dos princípios, que permitam uma adaptação mais livre às infinitas possibilidades do caso con-creto e que sejam capazes de conferir ao intérprete liberda-de de adaptar o sentido geral do efeito pretendido, muitas vezes impreciso e indeterminado, às peculiaridades da hi-pótese examinada'''. Nesse contexto, portanto, os princí-

258 Nos sistemas de common law, ao lado das hoje cada vez mais freqüentes leis positivas, muitas das quais empregando regras. a estabilidade e a segurança decorrem também da regra do precedente judicial. 259 Inclusive contribuindo para a interpretação das próprias regras.

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pios são espécies normativas que se ligam de modo mais direto à idéia de justiça ou, ao menos, são instrumentos mais capazes de produzir justiça no caso concreto.

Assim, como esquema geral, é possível dizer que a es-trutura das regras facilita a realização do valor segurança, ao passo que os princípios oferecem melhores condições para que a justiça possa ser alcançada. Esse modelo é natu-ralmente simplificador, já que há princípios que propug-nam exatamente, dentre outros, o valor segurança — como o princípio da legalidade—, da mesma forma que inúmeras regras são, na verdade, a cristalização de soluções requeri-das por exigências de justiça. Tudo isso, porém, não afasta a utilidade do modelo para esclarecer uma parcela da reali-dade.

Ora, se as regras respondem pela segurança e os princí-pios pela justiça, conclui-se que, quanto mais regras houver no sistema, mais seguro, isto é, mais previsível, mais estável ele será; porém, mais dificilmente ele será capaz de adap-tar-se a situações novas. Por outro lado, quanto mais prin-cípios existirem, maior será o seu grau de flexibilidade e sua capacidade de acomodar e solucionar situações impre-vistas. No mesmo passo, porém, também crescerão a inse-gurança, em decorrência da imprevisibilidade das soluções aventadas, e a falta de uniformidade de tais soluções, com prejuízos evidentes para a isonomia. Repete-se, portanto, o que parece bastante óbvio: uma quantidade equilibrada e apropriada de princípios e regras produzirá um sistema ju-rídico ideal, no qual haverá segurança e justiça suficientes.

Naturalmente, o equilíbrio do sistema jurídico não de-pende apenas da existência adequada de princípios e re- gras; é preciso também que eles funcionem e sejam mani-pulados pelos operadores jurídicos dentro de suas caracte-rísticas próprias. Isto significa, portanto, que, como padrão geral, as regras não foram concebidas para serem pondera-

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das. Com efeito, a ponderação corriqueira de regras fragili-zaria a própria estrutura do Estado de direito; pouco vale-riam as decisões do Poder Legislativo se cada aplicação de um enunciado normativo se transformasse em um novo processo legislativo, no qual o aplicador passasse a avaliar, novamente, todas as conveniências e interesses envolvidos na questão, bem como todos os princípios pertinentes26° para, ao fim, definir o comportamento desejável. A situa-ção oposta se coloca quando não se reconhece aos princí-pios capacidade de produzir qualquer efeito, o que acarreta acentuado desequilíbrio em detrimento dos elementos de justiça. Afora essa relação geral entre princípios e justiça e entre regras e estabilidade/segurança, comum a todo o sis-tema jurídico, é possível visualizar outra relação de nature-za substancial, mais específica, própria do ambiente consti-tucional.

Uma Constituição rígida e democrática procura reali-zar ao menos dois propósitos gerais: (i) estabelecer deter-minados consensos mínimos e colocá-los a salvo (ou prote-gê-los) das deliberações majoritárias; e (ii) preservar as

260 HAGE, Jaap C. Reasoning with Rules, 1997, pp. 170 e 171: "Rules of law are often the result of a legislative decision making process, in which a number of reasons, based on policies, goals, values, interests, principies etc. are weighed to achieve a balanced result. In many of the cases to which these rules of law can be applied, the underlying goals, principies etc. would also be relevant for the legal consequences of the case, had their application not been excluded by the applicability of the legal rule. The reasons generated by the rule replace the reasons generated by the goals and principies that underlie that mie. The role of the goals and principies was confined to their influence on the drafting of the mie. That is why I called the reasons, generated by a tule, replacing reasons. Similarly, the legal mie can be said to replace its underlying goals and principies. (...) This means that if a mie replaces a principie, the applicability of the mie to a case excludes the application of the principie to this case."

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condições para o desenvolvimento do pluralismo político, de modo que o povo, em cada momento histórico, possa fazer as escolhas que entender por bem2€1 .

Esse equilíbrio — consenso mínimo versus pluralismo político — guarda uma relação muito próxima com a estru-tura de princípios e regras observada acima. As regras cons-titucionais — aí incluído, lembre-se, o núcleo dos princí-pios — respondem em geral pelas decisões associadas àquele consenso mínimo262. Através delas, o poder consti-tuinte procura estabelecer desde logo condutas determina-das, específicas. Os princípios, diversamente, estabelecem fins gerais a serem alcançados que, para além de seu nú-cleo, poderão ser preenchidos de sentido e delineados sob formas diversas em função das diferentes concepções do intérprete.

Em uma democracia, é natural que apenas um sentido mínimo de determinado princípio seja definido constitu-cionalmente — e, portanto, seja oponível a qualquer grupo que venha a exercer o poder político —; o restante da ex-tensão possível do princípio deverá ser preenchido pela de-liberação majoritária, em função da convicção das maiorias em cada momento político: e nesse ponto ter-se-á, em es-pecial, as regras infraconstitucionais. Isto é: esse espaço de expansão do princípio fica reservado, pela Carta, à defini-ção pelos meios próprios da deliberação democrática em um ambiente de pluralismo político. Em suma: caberá ao Legislativo e ao Executivo, no exercício de suas competên-

261 MELLO, Cláudio Ari. Democracia constitucional e direitos fundamentais, 2004. 262 Fica a ressalva de que em Constituições compromissorias e elaboradas em um ambiente sujeito a pressões corporativas não é incomum encontrarem-se regras que em nada se relacionam com a idéia de consenso mínimo exposta no texto.

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cias constitucionais, formularem as opções que darão con-teúdo aos princípios para além de seu núcleo"'.

O reflexo do que se acaba de expor sobre o estudo da ponderação reforça o parâmetro proposto inicialmente: as regras (constitucionais e infraconstitucionais) devem ter preferência sobre os princípios. Isto é: em uma situação de conflito inevitável, a regra deve ser preservada e o princípio comprimido, e não o oposto.

Ao se afastar uma regra sob o fundamento de que ela se oporia a alguma conduta derivada da área não nuclear de um princípio, incorre-se em um conjunto de distorções. Em primeiro lugar, caso se trate de uma regra infraconsti-tucional, o intérprete estará conferindo à sua concepção pessoal acerca do melhor desenvolvimento do princípio maior importância do que à concepção majoritária, apurada pelos Órgãos legitimados para tanto. A situação é ainda mais grave se a regra envolvida consta da Constituição. Nesse caso, o intérprete estará afastando a incidência de uma re-gra elaborada pelo poder constituinte originário e que, como padrão, veicula consensos básicos do Estado organi-zado pela Constituição. Por fim, como a solução do caso baseou-se na percepção individual do intérprete, muito freqüentemente ela não se repetirá em circunstâncias idên-ticas, ensejando violações do princípio da isonomia.

O que se acaba de expor não significa que a área não nuclear dos princípios não pretenda produzir efeito algum e que nenhuma conduta possa ser exigida para realizar es-

263 Naturalmente que o que se acaba de descrever produz uma dificuldade que será preciso enfrentar: trata-se de definir, em relação a cada princípio ao qual a distinção seja aplicável, o que corresponde ao núcleo, e portanto tem natureza de regra, e o que diz respeito à sua área não nuclear, em relação à qual vale o que se expôs acima acerca da estrutura dos princípios.

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ses efeitos ou, ainda, que o Legislativo e/ou o Executivo estejam livres para formular quaisquer opções sob o pre-texto de estarem disciplinando a área não nuclear de um princípio constitucional. Como se sabe, aos princípios, em toda a sua extensão, se reconhecem as modalidades de efi-cácia interpretativa, negativa e, quando seja o caso, vedati-va do retrocesso264. Também não está afastado o conheci-

264 Por eficácia negativa se designa a possibilidade de exigir que atos e decisões contrárias aos efeitos pretendidos pelo princípio (isto é: que se encontrem fora do campo de atuação legítimo traçado por ele) sejam considerados inválidos. A vedação do retrocesso é uma aplicação especifica da eficácia negativa às hipóteses em que a revogação das disposições que regulamentam o exercício de direitos fundamentais torna-os inaplicáveis, configurando uma ação inconstitucional. Com fundamento na eficácia interpretativa, por sua vez, é possível exigir que, dentre as interpretações possíveis dos enunciados, o Judiciário adote aquela que melhor contribui para a realização dos princípios. V. sobre o tema geral da eficácia jurídica dos princípios, MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional, vol. 11, 1990, p. 220 e ss.; BIDART CAMPOS, German J.. La interpretacion y el control constitucionales eu la juriscliccion constitucional, 1987, p. 238 e ss.; SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais, 1998; BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas, 2003, p. 113 e ss.; e BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais — O princípio da dignidade da pessoa humana, 2002, p. 66 e ss.. Sobre a vedação do retrocesso, em particular, v. VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos. Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976, 1998, pp. 307 e 308; SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais, 1998, p. 158 e ss.; SARLET, Ingo Wolfgang. "A eficácia do direito fundamental à segurança jurídica: dignidade da pessoa humana, direitos fundamentais e proibição de retrocesso social no direito constitucional brasileiro". In: ROCHA, Carmen Lúcia Antunes (organizadora). Constituição e segurança jurídica.- direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada — estudos em homenagem a José Paulo Sepúlveda Pertence, 2004, pp. 85 a 135; MENDONÇA, José Vicente Santos de. Vedação do retrocesso: o que é e como perder o medo, Revista da Associação dos Procuradores do Novo Estado do Rio de Janeiro, vol. XII — Direitos Fundamentais, 2004, pp.

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mento, já consolidado, de que a interpretação das regras (constitucionais e infraconstitucionais) deve ser informada pelos princípios. Lembre-se, porém, que o objeto deste es-tudo — a técnica de ponderação — só entra em cena quan-do o conflito normativo não pode ser superado por nenhum desses recursos da teoria constitucional moderna.

Na verdade, retomando a imagem dos princípios como círculos concêntricos, que ocupam grandes áreas, porém de maneira difusa e com pouca densidade (com exceção de seu próprio núcleo), as regras podem ser visualizadas corno pontos de alta densidade espalhados por toda essa superfí-cie. Os princípios, para além de seu núcleo, estabelecem as fronteiras de um largo campo de atuação possível, dentro de cujos limites as opções políticas podem ser consideradas legítimas. As regras correspondem exatamente a decisões políticas específicas, de efeitos determinados, já tomadas no interior de tais fronteiras265.

205 a 236; e BAPTISTA, Felipe Derbli de Carvalho. A Constituição de 1988 e o princípio da proibição do retrocesso social: uma investigação dos limites à atividade legislativa, ainda mimeografada, 2004.

265 LEITE, George Salomão e LEITE, Glauco Salomão. "A abertura da Constituição em face dos princípios constitucionais". In: SALOMÃO, George (organizador). Dos princípios constitucionais. Considerações em torno das nonnas principiológicas da Constituição, 2003, p. 159: "A Constituição, em razão de sua incompletude, permanece aberta ao tempo. Por esta razão, na maior parte das vezes traça apenas as diretrizes, os fundamentos das matérias objeto de regulamentação normativo-constitucional, deixando o papel de integração/concretização nas mãos do legislador e dos aplicadores do Direito. A Constituição não estabelece nem determina a total ordenação da unidade política, senão limita-se apenas a consignar em seu corpo os princípios setores de uma determinada coletividade. (...) Entretanto, esta abertura e flexibilidade constitucional só se tornam possíveis em razão da presença dos princípios na Constituição. O elevado teor de abstração e a intensa carga axiológica fazem com que a Constituição acompanhe a dinâmica social sem, contudo, cair em desuso."

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Em suma: seja porque essa é a conseqüência natural das diferenças estruturais entre princípios e regras, seja por-que, considerando o contexto constitucional, as duas espé-cies de enunciados desempenham funções diferentes, o primeiro parâmetro que deve orientara ponderação é o de que as regras devem ter preferência em face dos princípios. Assim, diante de um conflito insuperável entre regra e princípio que demande a ponderação dos enunciados em choque, a regra constitucional (aqui incluído) repita-se, o núcleo dos princípios) deve ser preservada e o princípio, comprimido.

O funcionamento desse parâmetro, aplicado a um con-flito entre um princípio constitucional e uma regra infra-constitucional, pode ser observado na Ação Direta de In-constitucionalidade n°223, julgada pelo Supremo Tribunal Federal. As características do caso eram as seguintes. No pacote jurídico que acompanhou o Plano Collor foi editada a Medida Provisória n° 173, de 18.03.1990, que vedava a concessão de liminar em mandados de segurança e em a-ções ordinárias e cautelares decorrentes de um conjunto de 10 (dez) outras medidas provisórias256, bem como proibia a execução das sentenças proferidas em tais ações antes de seu trânsito em julgado. A Ação Direta de Inconstituciona-lidade n° 2232" foi proposta para o fim de ver declarada a inconstitucionalidade da MP n° 173/1990 por afronta, ge-

266 As 10 (dez) medidas provisórias (151, 154, 158, 160, 161, 162, 164, 165, 167 e 168) versavam sobre assuntos variados: extinção de entidades da Administração Pública, criação de nova sistemática para reajustes de preços e salários em geral, isenção ou redução do imposto de importação, legislação tributaria em vários pontos (imposto sobre operações financeiras e imposto de renda principalmente), dentre outros temas.

267 STF, AD1n 223 MC/DF, Rel. Min. Paulo Brossard, DJU 29.06.1990.

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nericamente, aos princípios do acesso à justiça e da inafas-tabilidade do controle judicial.

Por maioria, o Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal indeferiu a liminar solicitada na medida cautelar requerida juntamente com a ação direta de inconstitucio-nalidade, manifestando o entendimento de que, ao menos em juízo sumário, a MP n° 173/1990 seria constitucional. Nada obstante, a ementa do acórdão registra um comentá-rio incomum: a decisão que se acabava de tomar no STF não impedia que qualquer juiz, diante de um caso concre-to, considerasse a norma inconstitucional268.

268 Esta é a parte mais relevante da ementa: "Ação direta de inconstitucionalidade contra a Medida Provisória 173, de 18.3.90, que veda a concessão de 'medida liminar em mandado de segurança e em ações ordinárias e cautelares decorrentes das medidas provisórias números 151, 154, 158, 160, 162, 165, 167 e I68': indeferimento do pedido de suspensão cautelar da vigência do diploma impugnado: razões dos votos vencedores. Sentido da inovadora alusão constitucional à plenitude da garantia a jurisdição contra a ameaça a direito: ênfase a função preventiva de jurisdição, na qual se insere a função cautelar e, quando necessário, o poder de cautela liminar. Implicações da plenitude da jurisdição cautelar, enquanto instrumento de proteção ao processo e de salvaguarda da plenitude das funções do Poder Judiciário. Admissibilidade, não obstante, de condições e limitações legais ao poder cautelar do juiz. A tutela cautelar e o risco do constrangimento precipitado a direitos da parte contrária, com violação da garantia do devido processo legal. Conseqüente necessidade de controle da razoabilidade das leis restritivas ao poder cautelar. Antecedentes legislativos de vedação de liminares de determinado conteúdo. Critério de razoabilidade das restrições, a partir do caráter essencialmente provisório de todo provimento cautelar, liminar ou não. Generalidade, diversidade e imprecisão de limites do âmbito de vedação de liminar da MP 173, que, se lhe podem vir, a final, a comprometer a validade, dificultam demarcar, em tese, no juizo de delibação sobrei) pálido de sUja suspensão cautelar, até onde são razoáveis as proibiçõeS'néli imposta& enquanto contenção ao abuso do poder cautelar, e onde se inicia, inversamente, o abuso das limitações e a conseqüente afronta à plenitude

Na verdade, a leitura dos votos proferidos na ocasião revela que as discussões travadas no STF por conta da ADIN n° 223 tiveram três frentes principais: na primeira delas, discutiu-se propriamente o conflito entre a MP n° 173/1990 e o princípio constitucional do acesso à Justiça; na segunda frente, vários votos preferiram examinar o pro-blema sob o ponto de vista técnico-processual no que dizia respeito ao cabimento da liminar na hipótese; e um terceiro e interessante debate se travou acerca da posição política do STF. Vários Ministros questionaram, considerando o regime democrático e os limites do papel do STF, a perti-nência de uma decisão capaz de por em risco plano de re-cuperação econômica que contava com amplo apoio popu-lar e que seria de imediato submetido ao Congresso Nacio-nal. De toda sorte, para os fins deste estudo apenas a pri-meira das discussões é pertinente.

Os Ministros Paulo Brossard, relator do feito, Celso de Mello e Sepúlveda Pertence foram os que de forma mais direta enfrentaram a questão do conflito entre a MP n° 173/1990 e o princípio constitucional do acesso à Justiça, embora tenham chegado a conclusões diversas. O Ministro Paulo Brossard deferiu a liminar em parte, para considerar inconstitucional a restrição imposta pela MP no caso de mandados de segurança. O Ministro Celso de Mello a defe-riu completamente, por entender inconstitucional como um todo a medida. O Ministro Sepúlveda Pertence, por sua vez, indeferiu a liminar, no que acabou sendo acompa-nhado pela maioria, ainda que por razões diversas.

da jurisdição e ao Poder Judiciário. Indeferimento da suspensão liminar da MP 173, que não prejudica, segundo o relator do acórdão, o exame judicial em cada caso concreto da constitucionalidade, incluída a razoabilidade, da aplicação da norma proibitiva da liminar. Considerações, em diversos votos, dos riscos da suspensão cautelar da medida impugnada."

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A argumentação do Ministro Paulo Brossard pode ser resumida da seguinte forma. Para o Ministro, a proibição de liminares em abstrato não seria inconstitucional, tanto assim que outras disposições, jamais consideradas inconsti-tucionais pelo STF, já previam essa possibilidade. Em algu-mas circunstâncias, no entanto, essa restrição poderia se tornar grave a ponto de impedir o acesso do cidadão ao Poder Judiciário: nessas hipóteses, tais restrições seriam inválidas e não poderiam ser admitidas.

A MP, a juízo do Ministro Relator, era excessivamente ampla e geral nas restrições que impunha, podendo chegar a bloquear a atuação do Poder Judiciário na reparação de lesões e ameaças de lesões. Na tentativa de distinguir as situações — restrições aceitáveis do acesso à Justiça e restrições inaceitáveis — o Ministro Brossard criou um pa-râmetro. A MP havia impedido a concessão de liminares e a execução provisória de decisões em ações ordinárias, cau-telares e mandados de segurança; porém, afirmou o Minis- tro, o mandado de segurança é em si mesmo um direito individual tutelado pela Constituição de modo que, em relação a ele, não se poderia admitir qualquer espécie de restrição em tese269.

269 Confiram-se alguns trechos de seu voto: "Em determinadas situações, porém, a lei veda a sua concessão. De modo que, in abstracto, a proibição de liminares não chega a constituir novidade e tem sido

admitida. (fls. 05) (...) No caso vertente, o que chama desde logo a atenção é a

amplitude e generalidade da medida, que envolve nada menos de dez medidas provisórias, com mais de uma centena de dispositivos, bem como sua extensão. De chofre, por via unilateral e imperatória, sumariamente se proíbe a concessão de liminares, bem como a execução de sentença sem trânsito em julgado, em mandados de segurança, em ações ordinárias e em ações cautelares, decorrentes das dez medidas provisórias, que enumera. Desse modo, a missão reparadora de lesões de direitos, inerente ao Poder Judiciário, fica bloqueada e durante um

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O Ministro Celso de Mello, diversamente, deferiu inte-gralmente a liminar requerida por entender que a lei não poderia impor restrições à concessão de liminares, já que o poder de conferi-las é necessário para que o Estado possa adimplir sua obrigação de prestar tutela jurisdicional"°.

período relativamente longo e que se pode tornar excessivamente longo, não se pode dar a reparação judicial, ainda que a lesão seja insigne e o direito liquido e certo. (fls. 09)

(...) Em relação a algumas normas, a irreparabilidade do dano é menos clara ou mais hipotética; da medida provisória 151, por exemplo. Em relação a outras, porém, qualquer procrastinação significaria o abandono do cidadão ao arbítrio da autoridade, sem que se pudesse levantar o escudo protetor da lei maior na defesa do seu direito, condenado por medidas de duvidosa constitucionalidade ou de transparente inconstitucionalidade. (fls. 10/11)

(...) Buscando um critério objetivo e seguro, quer me parecer que na medida em que se tratar de direito individual ferido ou ameacado de lesão para cuja proteção eficaz a própria Constituição outorga, também como direito individual o mandado de segurança, não pode este ser tolhido; o mandado de segurança, na sua expressão tradicional, é um direito individual em si mesmo, tanto mais valioso quando, muitas vezes, é o mais apropriado e eficaz instrumento de defesa de outros direitos individuais exatamente pela possibilidade de proteção liminar. De modo que, permitir sua paralisia, ainda que parcial e limitada, importaria em atingir, em maior ou menor grau, além do próprio mandado de segurança, outros direitos individuais, solenemente assegurados na Constituição." (fls. 11) (sublinhado no original)

270 A linha de pensamento do Ministro pode ser facilmente compreendida pelo exame dos seguintes trechos de seu voto: "Essa correlação, que se traduz no binômio direito subjetivo ao processo / obrigação estatal de efetivação da tutela jurisdicional, não pode ser unilateralmente rompida pelo Poder Público, sob pena de configurar, o ato de sua inobservância, uma frontal ofensa ao dogma do judicial review. (fls. 02)

(...) A proteção jurisdicional imediata, dispensável a situações jurídicas expostas a lesão atual ou potencial, não pode ser inviabilizada por ato normativo de caráter infraconstitucional que, vedando o exercício liminar da tutela jurisdicional cautelar pelo Estado, enseja a aniquilação

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O Ministro Sepálveda Pertence, por sua vez, partiu do mesmo pressuposto lógico usado pelo Ministro Brossard. Também para ele não se trata de considerar inconstitucio-nal toda e qualquer restrição feita à concessão de liminares, mesmo porque o princípio do devido processo legal poderá recomendar alguma limitação nesse sentido. Entretanto, não seria possível em abstrato saber em que momento essa restrição deixa de ser adequada e necessária e afeta essen-cialmente o princípio do acesso à Justiça. Apenas diante do caso concreto será possível aferir essa inconstitucionalida-de. Por essa razão, o Ministro decidiu indeferir a liminar pleiteada, ressalvando, porém, que cada juiz poderá, diante de um caso concreto, declarar a inconstitucionalidade da norma incidentalmente. O Ministro Relator, embora venci-do, fez constar essa ressalva na parte final da ementa do acórdão"' .

do próprio direito material. O princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional representa, pelo seu caráter global e abrangente, instrumento de defesa do direito à ação de conhecimento, do direito à ação de execução e do direito à ação cautelar. Particularizar qualquer dessas situações e, em conseqüência, excluí-Ia da tutela constitucional significaria, em última análise, repudiar conquista de inegável valor político-jurídico. (fls. 08/09)

Voto, assim, tendo presentes as razões expostas, pela concessão integral da liminar postulada. (fls. 10)"

271 Confira-se a reprodução do pensamento do Ministro Pertence sobre a questão: "De tal modo, Senhor Presidente, que o que choca, realmente, na Medida Provisória 173 são a generalidade e a imprecisão. Não se trata, apenas, de proteger leis de emergências. Repito: se fez uma reforma, que eu não tenho como avaliar neste momento, as suas repercussões, uma reforma diversificada da Legislação Tributária Federal e até se chegou ao Direito Privado, ao Direito Cambial. (...) Mas, Senhor Presidente, essa generalidade e essa imprecisão, que a meu ver, podem vir a condenar, no mérito, a validez desta medida provisória, dificultam, sobremaneira agora, esse juízo sobre a suspensão liminar dos seus efeitos, nesta ação direta. Para quem, como eu, acentuou que não aceita veto peremptório, veto a

A questão discutida pelos Ministros pode afinal ser des-

priori a toda e qualquer restrição que se faça à concessão de liminar, é impossível, no cipoal, de medidas provisórias que se subtraíram ao deferimento de tais cautelares initio litis, distinguir, em tese e só assim poderemos decidir neste processo—, até onde as restrições são razoáveis, até onde são elas contenções, não ao uso regular, mas ao abuso do poder cautelar, e onde se inicia, inversamente, o abuso das limitações e a conseqüente afronta à jurisdição legítima do Poder Judiciário. (fls. -10)

(...) Por isso, Senhor Presidente, depois de longa reflexão, a conclusão a que cheguei, data venia dos dois magníficos votos precedentes, é que a solução adequada às graves preocupações que manifestei — solidarizando-me nesse ponto com as idéias já manifestadas pelos dois eminentes Pares — não está na suspensão cautelar da eficácia, em tese, da medida provisória. O caso, a meu ver, faz eloqüente a extrema fertilidade desta inédita simbiose institucional que a evolução constitucional brasileira produziu, gradativamente, sem um plano preconcebido, que acaba, a partir da Emenda Constitucional 16, a acoplar o velho sistema difuso americano de controle da constitucionalidade ao novo sistema europeu de controle direto e concentrado. Mostrei as dificuldades que vejo na suspensão cautelar da eficácia da própria lei em tese. (fls. 11)

(...) O que vejo, aqui, embora entendendo não ser de bom aviso, naquela medida de discricionariedade que há na grave decisão a tomar, da suspensão cautelar, em tese, é que a simbiose institucional a que me referi, dos dois sistemas de controle da constitucionalidade da lei, permite não deixar ao desamparo ninguém que precise de medida liminar em caso onde — segundo as premissas que tentei desenvolver e melhor do que eu desenvolveram os Ministros Paulo Brossard e Celso de Mello — a vedação da liminar, por que desarrazoada, por que incompatível com o art. 5', XXXV, por que ofensiva do âmbito de jurisdição do Poder Judiciário, se mostra inconstitucional. Assim, creio que a solução estará no manejo do sistema difuso, porque nele, em cada caso concreto, nenhuma medida provisória pode subtrair ao juiz da causa um exame da constitucionalidade, inclusive sob o prisma da razoabilidade, das restrições impostas ao seu poder cautelar, para, se entender abusiva essa restrição, se a entender inconstitucional, conceder a liminar, deixando de dar aplicação, no caso concreto, à medida provisória, na medida em que, em relação àquele caso, a julgue inconstitucional, porque abusiva. (fls. 12) "

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crita da seguinte forma: uma regra de natureza infraconsti-tucional encontra-se em aparente colisão com um princípio constitucional — o princípio do acesso à Justiça ou da ina-fastabilidade do controle judicial. Para o Ministro Celso de Mello, trata-se de um caso simples de inconstitucional ida-de: para ele há de fato uma colisão total entre a regra e o princípio constitucional, de modo que a primeira será, na-turalmente, inválida. Não há novidade neste ponto. Para os Ministros Paulo Brossard e Sepúlveda Pertence, no entan-to, a situação é diversa. Ambos reconhecem que a regra cria iestrições ao princípio. Entretanto, algumas dessas restri-ções serão aceitáveis e legítimas; outras, ao contrário, afe-tarão tão gravemente o acesso à Justiça que não podem ser consideradas válidas Ou seja: uma regra poderá valida-mente restringir o princípio até um determinado ponto, mas não além dele. De certa forma, a conclusão dos dois Ministros decorre da circunstância, registrada acima, de que muitos princípios são compostos por duas áreas de sentido: um núcleo, onde se situam seus efeitos essenciais, e uma área não nuclear, como a coroa de dois círculos concêntricos, para onde o princípio se expande quase indefinidamente, dependendo das concepções individuais acerca do tema. Caso a restri-ção produzida por uma regra incida nessa área de expansão, não haverá invalidade, ao passo que se a restrição disser respeito ao núcleo do princípio haverá inconstitucionalida-de. O interessante no caso examinado pelo STF é que as diferentes normas, produzindo diversos níveis de restrição do princípio constitucional, terão como origem o mesmo enunciado normativo, o mesmo dispositivo legal: a MP n° 173/1990.

O precedente examinado ilustra duas possibilidades em que regras estarão entrando em confronto com princí-

pios constitucionais: no primeiro caso, o choque poderá se dar com o núcleo do princípio; no segundo, com a área não nuclear do princípio. Para essas duas situações de conflito potencial já se pode apresentar soluções padronizadas: quando a regra infraconstitucional viola o núcleo essencial do princípio constitucional haverá simples inconstituciona-lidade da regra, e não ponderação. No segundo, quando a oposição se passa entre a regra e a área não nuclear de um princípio, em geral a regra permanecerá sendo considerada válida, na qualidade de opção legítima do legislador demo-cráticom, e nesse ponto se realiza o primeiro parâmetro descrito acima: as regras têm preferência sobre os prin-cípios.

VIII.2. É possível ponderar regras?

a) Modalidades de conflitos envolvendo regras

A despeito de toda a fundamentação do parâmetro que se acaba de expor, a experiência tem demonstrado que esse modelo, adotado de forma pura, se mostra muitas vezes insuficiente diante de casos concretos. Ou seja, há hipóte-ses em que a regra, perfeitamente válida em tese e perti-nente no caso, parece desencadear um conflito insustentá-vel com outros enunciados normativos. Como resolver esse conflito? Parte da doutrina sustenta que, nesses casos, tam-

272 Salvo, por natural, se a opção do legislador for tão incompatível com os efeitos pretendidos pelo princípio que esteja fora inclusive de sua área não nuclear Nessa hipótese a regra será inválida por conta da eficácia negativa reconhecida aos princípios.

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bém a regra deve ser ponderada. Será?273 Como exposto acima, a lógica da ponderação está associada à estrutura dos princípios, de modo que é possível ponderá-los sem que isso produza a sua não aplicação absoluta274. Em outras pa-

273 Na verdade, essa parece ser a posição dos autores que concebem a ponderação (i) em sentido amplo (pela qual todos os tipos de argumentos, jurídicos e não jurídicos, são levados em consideração) e (ii) como uma atividade inerente a qualquer interpretação jurídica (vide Capítulo I). Para eles, as regras poderiam ser superadas mediante um processo de ponderação de razões: se há mais razões para a aplicação da regra, ela deve prevalecer; se, ao contrário, há mais razões para sua não incidência, não se deve aplicá-la. As normas que decorrem das regras, portanto, teriam um caráter apenas preliminar, já que poderiam ser afastadas por razões contrárias, cabendo ao julgador, em cada caso concreto, fazer essa avaliação. Nesse sentido, ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios, 2003, pp. 45 e 46: "As regras também podem ter seu conteúdo preliminar de sentido superado por razões contrárias, mediante um processo de ponderação de razões. Ademais, isso ocorre nas hipóteses de relação entre a regra e suas exceções. A exceção pode estar prevista no próprio ordenamento jurídico, hipótese em que o aplicador deverá, mediante ponderação de razões, decidir se há mais razões para a aplicação da hipótese normativa da regra ou, ao contrário, para a de sua exceção. (...) E a exceção pode não estar prevista no ordenamento jurídico, situação em que o aplicador avaliará a importância das razões contrárias à aplicação da regra, sopesando os argumentos favoráveis e os argumentos contrários à criação de uma exceção diante do caso concreto. (...) O importante é que o processo mediante o qual as exceções são constituídas também é um processo de valoração de razões; em função da existência de uma razão contrária que supera axiologicamente a razão que fundamenta a própria regra, decide-se criar uma exceção. Trata-se do mesmo processo de valoração de argumentos e contra-argumentos — isto é, de ponderação.". V. sobre o tema HAGE, Jaap C. Reasoning with Rules, 1997, p. 113 e ss.. Como se verá no texto, não se está de acordo com essa posição, ao menos não na abrangência sugerida.

274 Mesmo os autores que sustentam a possibilidade genérica da ponderação de regras reconhecem que se trata de um mecanismo excepcional, urna vez que a ponderação se aplica mais propriamente aos princípios. V. PECZENIK, Aleksander. On Law and Reason, 1989, p. 81:

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lavras, a ponderação pode conduzir a uma compressão recí-proca entre os princípios envolvidos (suas áreas não nuclea-res), que prosseguem sendo aplicados e respeitados como válidos, ainda que em intensidades diversas. Mas o que di-zer das regras?

É verdade que, por vezes, elementos contidos na pró-pria estrutura da regra conferem ao intérprete certa liber-dade na definição de seu sentido. O exemplo mais evidente dessa situação é o das regras que empregam conceitos jurí-dicos indeterminados ou cláusulas de indeterminação de outra natureza — como "mulher honesta", "relevante inte-resse social", dentre outros. Nessas hipóteses, o aparente conflito da regra com outras disposições poderá ser supera-do dependendo do sentido que se atribua ao conceito nela contido"5.

"Weighing in the law also concerns both principies and rules. All socially established legal norms, expressed in statutes, precedents etc., have a merely prima facie character. The step from prima facie legal mies to the ali-things-considered legal (and moral) obligations, claims etc. involves evaluative interpretation, that is, weighing and balancing. For that reason, one may doubt whether the distinction between rules and principies is important. To answer this question, one must evaluate the following differences between rules and principles. (The list of differences has been elaborated in cooperation with Aulis Aamio). 1. Unlike a principie, the rule in question may be obeyed or not. There are no degrees of obedience. The rule does not claim to be obeyed as much as possible. h rather claims to be obeyed in so many cases as possible. (...) In routine ('easy') cases, one ought to follow socially established legal rules without any necessity of weighing and balancing. An act of weighing and balancing is then necessary only in order to ascertain whether the case under adjudication is an easy one or not. Only if the case is not easy but 'hard', must one perform a value-laden legal reasoning, that is, an act of weighing and balancing. On the other hand, no cases of application of principies are easy." (grifos no original)

275 No HC 73662/MG (Rel. MM. Marco Aurélio, DJU 20.09.1996), já referido, o aparente conflito normativo foi resolvido por esse mecanismo.

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Nada obstante, quando não for esse o caso, é difícil conceber a aplicação mais ou menos intensa de determina-da regra. E a submissão de uma regra ao processo de ponde-ração poderá ter como resultado final a sua não aplicação no caso específico. Isto é: a ponderação de regras poderá acarretar a ruptura do sistema do Estado de direito, já que o intérprete simplesmente deixaria de aplicar uma regra válida em abstrato e que seria pertinente no caso concreto. Como lidar com essa espécie de dificuldade?

Na verdade, é importante distinguir duas modalidades bastante diferentes de situações que envolvem regras e re-lativamente às quais parece ser necessário empregar a pon-deração. A primeira delas, e por certo a mais freqüente, se dá quando a incidência da regra no caso produz uma injus-tiça tão grave que parece intolerável. Por conta do sentido relativamente indeterminado da idéia de justiça, é comum que o intérprete perceba e descreva o problema como um conflito da regra com princípios como os da razoabilidade, proporcionalidade" e até o da dignidade humana, e acabe deixando de aplicar a regra alegando que procedeu a uma ponderação. Um exemplo ajudará o entendimento.

A 2' Turma do STF dividiu-se entre conceder ou não a ordem a rapaz que havia mantido relações sexuais com menor de 14 anos por conta das circunstâncias do caso, que indicavam que a relação havia sido consentida pela moça. A decisão da maioria, pela concessão da ordem, fundou-se em uma reinterpretação da expressão presunção de violência, contida nos arts. 213 e 224, a, do Código .Penal, que foi compreendida na hipótese como consagrando uma presunção relativa, e não absoluta.

276 Embora não haja necessidade de aprofundar a discussão nesta sede, vale registrar que razoabilidade e proporcionalidade não são expressões tecnicamente fungíveis, como a doutrina contemporânea tem procurado destacar. V. sobre o tema, ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios, 2003, p. 94 e ss.; e SILVA, Luís Virgílio Afonso da. O proporcional e o razoável, Revista dos Tribunais n° 798, 2002, pp. 23 a 50.

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Em caso que obteve pouca repercussão na imprensa, a 2a Turma do Supremo Tribunal Federal, por unanimidade, sendo relator do feito o Ministro Marco Aurélio, decidiu trancar ação penal proposta com fundamento no art. 1° do Decreto-lei n° 201/196727 7, contra ex-prefeita, por contra-tação sem realização de concurso público. A hipótese pode ser resumida nos seguintes termos'.

O Município de São José de Coroa Grande, Pernambu-co, contratou sem concurso público, por um período de cerca de 9 (nove) meses (12 de abril de 1992 a 28 de janeiro de 1993), um gari. Posteriormente, o gari veio a ingressar na justiça trabalhista para ver reconhecida uma série de direitos e o Município, em sua defesa, alegou a nulidade da relação por ausência de concurso público. O Juízo trabalhista acolheu a alegação, julgou improcedente a reclamação trabalhista e determinou a remessa de peças ao Ministério Público, para que este promovesse a responsabi-lização da autoridade responsável pela contratação direta. A ação penal foi então proposta contra a ex-prefeita. O habeas corpus foi impetrado contra o acórdão do Superior

277 Decreto-Lei n°201/1967: "Art.1 — São crimes de responsabilidade dos Prefeitos Municipais, sujeitos ao julgamento do Poder Judiciário, independentemente do pronunciamento da Câmara dos Vereadores:

(...) XIII — Nomear, admitir ou designar servidor, contra expressa disposição de lei.

(...) § I° Os crimes definidos neste artigo são de ordem pública, punidos os dos itens I e II, com a pena de reclusão, de dois a doze anos, e os demais, com a pena de detenção, de três meses a três anos.

§ 2° A condenação definitiva em qualquer dos crimes definidos neste artigo acarreta a perda do cargo e a inabilitação, pelo prazo de cinco anos, para o exercício de cargo ou função pública, eletivo ou de nomeação, sem prejuízo da reparação civil do dano causado ao patrimônio público ou particular."

278 STF, Rel. Min. Marco Aurélio, HC 770034/PE, DJU 11.09.98.

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Tribunal de Justiça que confirmou o recebimento da de-núncia contra a ex-Prefeita.

A 2' Turma do Supremo Tribunal Federal, em votação unânime, concedeu a ordem de habeas corpus determinan-do o trancamento da ação penal por falta de justa causa. Não foi suscitada, nem mesmo pela impetrante (ao menos ao que consta do relatório), qualquer discussão sobre os fatos: realmente houve a contratação direta do gari, sem concurso público, pelo período referido. Em seu relatório, o Ministro Marco Aurélio reproduz afirmação do impetran-te de que a ex-Prefeita sequer conhecia o gari, mas nenhum dos votos fez qualquer consideração sobre esse ponto.

A conclusão dos Ministros para o caso foi, textualmen-te, a seguinte: insignificância jurídica do ato apontado como delituoso gerando falta de justa causa para a ação penal. Para fundamentar sua conclusão, o acórdão invoca genericamente os princípios constitucionais da razoabilida-de e da proporcionalidade e o princípio da insignificância ou da bagatela, considerando-se que "o evento isolado não tem nenhuma significação no contexto jurídico da vida de uma pessoa jurídica de direito público".

Uma última ordem de argumentação adotada no julga-mento tem natureza pragmática: "Não se coaduna com os interesses maiores da sociedade acionar-se o Judiciário, mo-vimentando-o, no que já por demais sobrecarregado, tendo presente situação concreta que nenhum prejuízo trouxe para o bem protegido pelo Decreto-lei n° 201/67.". O acórdão afirma ainda que o evento não teria causado prejuízo para a Municipalidade.

Da leitura do acórdão resta bastante claro que os Minis-tros simplesmente não estavam dispostos a atribuir uma conseqüência tão grave, como uma ação e uma possível condenação penais, a um evento tão sem importância real, embora a hipótese se enquadrasse perfeitamente na descri-

ção da regra. Em resumo, a incidência da regra no caso produzia um resultado tão injusto, que ela foi afastada. Note-se que em ponto algum se questionou a validade do art. 1° do Decreto-lei n°201/1967, a estatura constitucio-nal da exigência do concurso público ou a ilicitude de sua não observância. Apenas se considerou que, naquele caso, a conseqüência indicada pelo enunciado era grave demais.

O problema da injustiça grave que decorre da incidên-cia de uma regra é relativamente fácil de apreender, ainda que difícil de solucionar. Embora as regras tratem, em ge-ral, de condutas, sem maiores considerações sobre o propó-sito para que foram concebidas, essas condutas estão indi-retamente associadas, por evidente, a fins e a valores que buscam realizar. Daí por que se visualiza nas regras razões entrincheiradas279. Com essa expressão se pretende trans-mitir a idéia de que as regras estão ligadas a razões"° últi-

279 A expressão ("razões entrincheiradas") é de Humberto Ávila. O autor, tratando sobre a possibilidade de ponderação de regras, faz o seguinte registro: ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios, 2003, p. 58: "é preciso ponderar a razão geradora da regra com as razões substanciais para o seu não cumprimento, diante de determinadas circunstâncias, com base na finalidade da própria regra ou em outros princípios. Para fazê-lo, porém, é preciso uma fundamentação que possa superar a importância das razões de autoridade que suportam o cumprimento incondicional da regra.". Para uma abordagem geral sobre problemas envolvendo a interpretação de regras, v. SUNSTEIN, Cass R. Problems with Rules, California Law Review n°83, 1995, pp. 953 a 1023.

280 Para uma abordagem mais profunda do conceito de razão na argumentação jurídica, v. HAGE, Jaap C. Reasoning with Rides, 1997, p. 45: "Reasons are facts that derive their status of reasons from a mental disposition that a belief in the reason causes a belief in the conclusion of the reason. This means that reasons are on the one hand facts, and therefore part of the world, and on the other hand mind-dependent. The causal connection in the mind that forms the basis for the existence of reasons is dispositional. The belief in the presence of a reason need not always cause a belief in the conclusion of this reason. If a dispositional

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mas que lhes deram origem, mas a discussão sobre elas está a priori bloqueada por uma espécie de trincheira. Essa trin-cheira pode ser descrita como a necessidade de segurança jurídica e de previsibilidade das relações no âmbito do Es-tado de direito, que levam o legislador exatamente a insti-tuir determinada providência sob a forma de regra. Não é difícil perceber que o sistema seria muitas vezes mais inse-guro se a cada incidência de uma regra se reabrisse o debate acerca de seus fins e de sua justiça ou injustiça e sua aplica-ção pudesse ser afastada.

A observância fiel das regras, ainda que elas possam gerar incidências injustas ocasionais, é um meio de fortale-cer o respeito institucional pela ordem jurídica. Parece evi-dente que a flexibilização corriqueira do disposto pelas re-gras fragiliza a estrutura do Estado de direito, além de favo-recer o exercício de autoridades arbitrárias e voluntaristas. Com efeito, se cada aplicador puder afastar uma regra por-que a considera injusta no caso concreto, pouco valor terão as regras e o ofício do legislador28' . Por outro lado, será

connection between beliefs is to give rise to reasons, this connection must both be known and it must be approved of. If the causal connection between the belief in a reason and the belief in the conclusion of this reason is incidentally interrupted, there are three . the interruption is the consequence of belief in the presence of an exclusionary reason; 2. the interruption is the consequence of the belief in the presence of a reason against the conclusion; 3. the interruption is a case of irrationality."

281 HECK, Luís Afonso. "Regras, princípios jurídicos e sua estrutura no pensamento de Robert Alexy". In: LEITE, George Salomão (organizador). Dos princípios constitucionais. Considerações em torno das normas principiológicas da Constituição, 2003, p. 65: "Quem quer inserir uma exceção carrega uma carga argumentativa, que se refere não só a isto, que Sua resolução deve ser melhor que a prevista pela regra, mas também a isto, que ela deve ser tanto melhor que se justifique um desvio de algo determinado autorizadamente. Isso é um fundamento para isto, que

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adequado sacrificar o indivíduo afetado pelo caso concreto no altar do aprimoramento das instituições político-jurí-dicas?

Ou seja: além dos fins específicos para os quais a con-duta determinada pela regra pretende contribuir, a simples observância de seu enunciado realiza outros fins essenciais ao sistema jurídico, dentre os quais o da segurança e da previsibilidade282. Isso torna o debate sobre a ponderação de regras consideravelmente mais complexo, já que não se trata apenas de uma disputa entre os efeitos pretendidos pela regra e pelos outros enunciados normativos aparente-mente em colisão. Mais que isso, cuida-se de uma erupção da tensão permanente que perpassa o sistema jurídico en-tre a realização da justiça no caso concreto e o aperfeiçoa-mento institucional do Estado de direito.

Esse conflito pode ser ilustrado com um exemplo. A Constituição de 1988 prevê, de forma clara, que serão inadmissíveis no processo as provas obtidas ilicitamentem. Boa parte da doutrina:284 e da jurisprudência, e essa é a posição do Supremo Tribunal Federal, entendem que em nenhuma hipótese se poderá flexibilizar a regra constitu-

regras têm um caráter prima facie essencialmente mais forte que princípios. As regras formam, em virtude dessa qualidade, a parte dura do ordenamento jurídico. Quanto mais peso é atribuído ao princípio da vinculação no determinado autorizadamente e quanto mais é fixado por regras, tanto mais duro é o ordenamento jurídico."

282 NOVAIS, Jorge Reis. As restrições aos direitos fundamentais não expressamente autorizadas pela Constiuição, 2003, pp. 348 e 349.

283 CF : "Art. 5°. (...) LVI — são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos."

284 Para uma discussão mais ampla sobre o tema, v. GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antonio Scarance e GOMES FILHO, Antonio Magalhães. As nulidades no processo penal, 1998.

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cional285. E isso não apenas porque a regra não admite essa possibilidade, mas também porque seria catastrófico para a construção do respeito aos direitos fundamentais, obra ain-da em curso no âmbito das estruturas de investigação cri-minal, a possibilidade de se validar uma prova obtida ilici-tamente. Alguns autores, porém, como o ilustre Professor José Carlos Barbosa Moreira286, tendo em conta outros ele-mentos, entendem diversamente e admitem alguma espé-cie de flexibilização da regra constitucional diante de casos excepcionais.

Há ainda um outro aspecto a considerar. Se a aplicação da regra, embora válida em tese, gera uma situação de grave injustiça no caso concreto287, as opções políticas formula-das pelo constituinte de 1988 oferecem de fato amplo su-porte àquele que procure uma fórmula para superar a situa-ção de injustiça. Ao consagrar, e.g., a justiça, geral e social,

285 Essa é também a posição de parte da doutrina portuguesa em relação a dispositivo similar contido naquela Carta. V. NOVAIS, Jorge Reis. As restrições aos direitos fundamentais não expressamente autorizadas pela Constiuição, 2003, pp. 374 a 375: "Por exemplo, quando a nossa Constituição prescreve a nulidade de todas as provas obtidas mediante abusiva intromissão na vida privada, no domicilio, na correspondência ou nas telecomunicações (art. 32, n° 8) a essa disposição subjaz uma óbvia ponderação de bens. (...) Portanto, as proibições ou imposições decididas pelo legislador constituinte como resultado de juizos próprios de ponderação de bens são para levar a sério; por mais que tais resultados lhes desagradem ou pareçam absurdos, não podem, em consequência, legislador ordinário, Administração e poder judicial ignorá-los ou substituí-los pelas suas próprias valorações."

286 BARBOSA MOREIRA, José Carlos. A Constituição e as provas ilicitamente obtidas. Revista Forense n°337, 1997, pp. 125 a 134.

287 Note-se que para se chegar a tal conclusão terá sido necessário percorrer ao menos as duas primeiras etapas da ponderação descritas na parte anterior do estudo.

como fins da República'ss, o constituinte tornou difícil a convivência de decisões gravemente injustas dentro do sis-tema289.

Como equilibrar essas necessidades? No próximo tópi-co serão propostas três formas de lidar com o problema das incidências injustas de regras. Antecipando o que será ex-posto, é possível dizer, de forma simples, que, (i) em qual-

288 Preâmbulo, art. 30,1 e 170.

289 Diante dessa espécie de situação, G ünther sustenta que a validade e a aplicabilidade das disposições normativas formam duas questões distintas, GONTHER, Klaus. Un concepto normativo de coherencia para una teoria de Ia argumentacion jurídica, Revista Doxa n° 17-18, 1995, pp. 279 e 283: "Deseo defender la tesis de que con la fundamentación imparcial de la validez de una norma pensamos algo diferente a su aplicación imparcial en un caso particular. Deberia setialarse que a nuestra comprensión pragmática de una norma válida no pertenece la adecuación de su aplicación en cualquier caso particular, por lo que tampoco seria necesaria aquella hipótesis irrealista de que debamos estar en la situación de prever todas las colisiones pensables de intereses en todo los posibles casos particulares. (...). De cara a una situación de acción las normas válidas solo son acplicables prima facie. Este es siempre el caso si las circunstancias previstas por cilas se dan en una situación de aplicación. Las circunstancias que se mantienen iguales deben completarse, por tanto, con una descripción integra de la situación que considere también las circunstancias variables en cada situación. Dado que esta tarea no la puede atender ex definitione un discurso de validez, se necesita para elle un discurso de un tipo especial, ai que en lo sucesivo me referiré como 'discurso de aplicación'. Tan pronto como iniciamos este discurso debemos ampliar la perspectiva presupuesta con la validez de una norma a las circunstancias que se mantienen en cada situación. En el discurso de aplicación las normas válidas tienen tan solo el status de razones prima facie para la justificación de enunciados normativos particulares tipo 'debes hacer ahora p'.". A despeito da propriedade da distinção, o impacto do discurso da validade sobre o da aplicação parece excessivamente frágil, já que com muita facilidade uma disposição válida poderá ser considerada inaplicável. O ponto ficará mais claro ao longo do texto.

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quer caso, a regra deverá ser interpretada de acordo com a eqüidade; que (ii) a regra poderá deixar de ser aplicada na hipótese de ser possível caracterizar a imprevisão legislati-va; e que (iii) uma determinada norma, produzida pela in-cidência da regra, poderá ser declarada inconstitucional, ainda que o enunciado da regra permaneça válido em tese. Fora dessas hipóteses, isto é, caso (afora o uso da eqüidade) não seja razoável demonstrar a imprevisão legislativa e não se possa sustentar de maneira consistente a inconstitucio-nalidade da norma particular, não será legítimo pretender afastar uma regra a pretexto de ponderá-la.

Cabe ainda identificar, como referido acima, o segun-do tipo de situações nas quais a ponderação estaria envolvi-da com regras. Esse segundo grupo é bastante excepcional e congrega aquelas hipóteses em que há uma colisão de regras, insuperável por qualquer das técnicas tradicionais da hermenêutica jurídica. Embora pouco freqüentes, esses casos também exigem a atenção da doutrina e da jurispru-dência.

Em tais hipóteses, cuida-se na verdade de uma ruptura do sistema jurídico, pois a antinomia será de tal ordem que restará ao intérprete apenas escolher qual das regras deverá ser obedecida e qual delas, desrespeitada. A rigor, sequer se trata aqui de uma ponderação jurídica ou normativa, mas sim de uma ponderação de valores ou bens de forma mais geral. Isso porque, para escolher que regra deve ser aplica-da, será necessário ascender na escala de abstração e exami-nar os fins, as razões e os valores que, em última análise, justificam cada uma das duas regras em confronto (as pró-prias razões entrincheiradas referidas acima). De toda for-ma, nesse ambiente de disputa, será especialmente útil aplicar não só o raciocínio ponderativo descrito nos capítu-los anteriores, como também os parâmetros sobre os quais se tratará nos capítulos seguintes.

O Supremo Tribunal Federal já examinou alguns casos (similares entre si) em que essa espécie de colisão entre regras pode ser identificada. Tratava-se de hipótese em que Estado da Federação não dispunha de recursos para pagar os precatórios relativos a créditos alimentares, nos termos do art. 78 do ADCT, e cumprir, ao mesmo tempo, outras regras constitucionais que exigem investimentos específi-cos de recursos públicos, como é o caso da obrigação de aplicar determinados percentuais em prestações de saúde e educação. Como se sabe, uma das conseqüências possíveis, tanto do não pagamento dos precatórios, como da não apli-cação dos percentuais previstos na Carta em prestações de saúde e educação, é a intervenção federal (CF, art. 34, VI e VII, e).

A questão que se colocava, portanto, era a de saber se se deveria autorizar a intervenção, aplicando-se as regras que disciplinam os precatórios e, indiretamente, determi-nando o seu pagamento, ao passo que, com o mesmo ato, se estaria provocando o descumprimento de outras regras constitucionais. Ao votar em um dos casos, além das regras específicas em confronto, o Ministro Gilmar Mendes sus-citou os demais enunciados pertinentes, incluindo princí-pios, e também outros bens relevantes, como é o caso, a favor da intervenção, da necessidade de proteção das deci-sões judiciais e, em sentido oposto, o princípio da autono-mia dos Estados.

Quanto aos aspectos de fato, a Corte destacou, de um lado, a boa fé do Estado no caso, que estaria empenhando seus melhores esforços para solucionar o problema finan-ceiro. De outro, e o voto do Ministro Gilmar Mendes des-taca o ponto, a circunstância de que a insuficiência de re-cursos não seria superada pela simples presença de um in-terventor. Também ele teria de lidar não apenas com as limitações financeiras, mas também com as demais regras

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constitucionais que impõem despesas ao Estado, de modo que a intervenção na hipótese restringiria a autonomia do Estado sem qualquer proveito para o cumprimento da re-gra pretendida. Na verdade, o descumprimento das outras regras constitucionais, envolvendo as aplicações mínimas em educação e saúde, também ensejam intervenção fede-ral. Em suma: a providência seria desproporcional.

Nesse contexto, a conclusão da Corte foi a de que, na medida em que o Estado não esteja atuando dolosamente com o fim de não pagar suas obrigações — ao contrário, uma vez que seja possível aferir sua boa-fé na gestão dos recursos públicos —, a intervenção não deveria ser autori-zada, por ser desproporcional. Considerou-se ainda que en-tre a regra que impõe o pagamento dos precatórios e as regras que determinam o investimento em saúde e educa-ção, estas últimas deveriam ter preferência. Ainda que a transcrição seja um pouco longa, vale reproduzir trecho es-pecialmente interessante do voto do Ministro Gilmar Mendes, que acabou por conduzir o julgamento:

"É evidente a obrigação constitucional quanto aos pre-catórios relativos a créditos alimentícios, assim como o regime de exceção de tais créditos, conforme a disciplina do art. 78 do ADCT. Mas também é inegável, tal como demonstrado, que o Estado encontra-se sujeito a um quadro de múltiplas obrigações de idêntica hierarquia. Nesse quadro de conflito, assegurar, de modo irrestrito e imediato, a eficácia da norma contida no art. 78 do ADCT, pode representar negativa de eficácia a outras normas constitucionais. Exemplo bastante ilustrativo é a obrigação dos Estados no que se refere à educação e à saúde. Nos termos do art. 212 da Constituição, os Esta-dos estão obrigados a aplicar vinte e cinco por cento, no mínimo, da receita resultante de impostos, compreendi-

da a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino. A Constituição também pre-vê, no art. 198, § 2°, a aplicação de recursos mínimos pelos Estados na área de saúde. O descumprimento de tais obrigações, por óbvio, representaria negativa de efi-cácia a normas constitucionais, bem como implicaria a configuração de específica hipótese de intervenção fede-ral. De fato, o art. 34, VI, alínea 'e', prevê expressamente, como hipótese de intervenção, a garantia da observância da 'aplicação do mínimo exigido da receita resultante de impostos estaduais, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do en-sino e nas ações e serviços públicos de saúde'. Diante de tais circunstâncias, cumpre indagar se a me-dida extrema da intervenção atende, no caso, às três máximas parciais da proporcionalidade. É duvidosa, de imediato, a adequação da medida de intervenção. O eventual interventor, evidentemente, es-tará sujeito àquelas mesmas limitações factuais e nor-mativas a que está sujeita a Administração Pública do Estado. Poderá o interventor, em nome do cumprimento do art. 78 do ADCT, ignorar as demais obrigações cons-titucionais do Estado? Evidente que não. Por outro lado, é inegável que as disponibilidades financeiras do regime de intervenção não serão muito diferentes das condições atuais. Enfim, resta evidente que a intervenção, no caso, sequer consegue ultrapassar o exame de adequação, o que bas-taria para demonstrar sua ausência de proporcionali-dade. Também é duvidoso que o regime de intervenção seja necessário, sob o pressuposto de ausência de outro meio menos gravoso e igualmente eficaz. Manter a condução da Administração estadual sob o comando de um Go-

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vernador democraticamente eleito, com a ressalva de que esteja o mesmo atuando com boa-fé e com o inequí-voco propósito de superar o quadro de inadimplência, é inegavelmente medida menos gravosa que a ruptura na condução administrativa do Estado (...). A intervenção não atende, por fim, ao requisito da pro-porcionalidade em sentido estrito. Nesse plano, é neces-sário aferir a existência de proporção entre o objetivo perseguido, qual seja o adimplemento de obrigações de natureza alimentícia, e o ônus imposto ao atingido que, no caso, não é apenas o Estado, mas também a própria sociedade. Não se contesta, por certo, a especial relevân-cia conferida pelo constituinte aos créditos de natureza alimentícia. Todavia, é inegável que há inúmeros outros bens jurídicos de base constitucional que estariam sacri-ficados na hipótese de uma intervenção pautada por um objetivo de aplicação literal e irrestrita das normas que determinam o pagamento imediato daqueles créditos. (.. 3 Estão claros, no caso, os princípios constitucionais em situação de confronto. De um lado, em favor da inter-venção, a proteção constitucional às decisões judiciais, e de modo indireto, a posição subjetiva de particulares calcada no direito de precedência dos créditos de natu-reza alimentícia. De outro lado, a posição do Estado, no sentido de ver preservada sua prerrogativa constitucio-nal mais elementar, qual seja a sua autonomia, e, de modo indireto, o interesse, não limitado ao ente federa-tivo, de não se ver prejudicada a continuidade da pres-tação de serviços públicos essenciais, como educação e saúde. Assim, a par da evidente ausência de proporcionalidade da intervenção para o caso em exame, o que bastaria para afastar aquela medida extrema, o caráter excep-

cional da intervenção, somado às circunstâncias já ex-postas recomendam a precedência condicionada do princípio da autonomia dos Estados.

(.-.) Desse modo, enquanto o Estado de São Paulo se manti-ver diligente na busca de soluções para o cumprimento integral dos precatórios judiciais, não estarão presentes os pressupostos para a intervenção federal ora solicita-da. Em sentido inverso, o Estado que assim não proceda estará sim, ilegitimamente, descumprindo decisão judi-cial, atitude esta que não encontra amparo na Consti-tuição." 29°

A ponderação em casos como o descrito acima é capaz de orientar a decisão acerca de qual regra deve ser escolhi-da. Embora essa espécie de situação continue a representar uma quebra do sistema, o emprego da ponderação ao me-nos conferirá maior racionalidade à decisão a ser tomada. De todo modo, não se trata rigorosamente de uma ponde-

290 STF, IF 164/SP, Rel. MM. Gilmar Mendes, DJU 14.11.2003. Na verdade, o Ministro reproduziu o seu voto proferido na IF 29I5-5/SP. Em artigo doutrinário, o hoje Ministro Eros Roberto Grau examinou conflito similar e concluiu em sentido semelhante: GRAU, Eros Roberto. A emenda constitucional n° 30/00: pagamento de precatórios judiciais, Revista de Direito Administrativo n° 229, 2002, p. 98: "Assim, demonstrada ao Poder Judiciário a excepcionalidade expressa na inexistência de disponibilidades de caixa suficientes para o pagamento integral dos precatórios — e quero deixar bem claro que a existência de disponibilidades para tanto apenas poderá ser computada após a reserva dos recursos financeiros indispensáveis a assegurar a continuidade dos serviços públicos — demonstrada essa excepcionalidade, dizia, o pagamento insuficiente das quantias por ele determinadas não ensejará o seqüestro; no caso, aliás, não haverá mesmo recursos que possam ser seqüestrados sem violência ao principio da continuidade dos serviços públicos."

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ração entre as regras, isto é, entre seus enunciados norma-tivos, mas sim entre o conjunto de razões e valores que se acomodam atrás desses enunciados.

Antes de prosseguir no exame para investigar os três subparâmetros propostos relativamente à questão da inci-dência injusta de regras, convém fazer uma última observa-ção. Na parte inicial deste capítulo procurou-se demons-trar que o primeiro parâmetro para a ponderação é aquele pelo qual as regras têm preferência sobre os princípios (so-bre a área não nuclear deles, lembre-se). Mais que isso, sustentou-se que as regras não estão logicamente sujeitas à ponderação. Nada obstante, o que se acaba de registrar, e igualmente as três fórmulas que se vai discutir na seqüên-cia, revela que esse parâmetro sofre algumas limitações. E é de todo conveniente dispor de humildade intelectual para reconhecê-lo.

Os esquemas intelectuais e as concepções doutrinárias são necessários e úteis, na tentativa de ordenar e explicar os fenômenos, mas não podem ter a pretensão de abarcar toda a realidade com precisão. Nem mesmo no ambiente das ciências exatas é possível ambicionar esse resultado. Leis diferentes e contraditórias convivem na Física moderna, na medida em que cada urna delas é válida em determinado ambiente. A lei de gravitação de Newton, por exemplo, continua válida, ainda que alguns de seus pressupostos con-trariem os da Teoria da Relatividade"' . Nada obstante,

291 EINSTEIN, Albert. A teoria da relatividade especial e geral, 1999, p. 87; HAWKING, Stephen W. Uma breve história do tempo, 1995, pp. 55 a 59; ASIMOV, Isaac. Gênios da humanidade, vol. 2, 1980, pp. 590 a 592; e HART, Michael H. As 100 maiores personagens da História, 2001, pp. 58 e 100 a 103. Para Newton, diversamente do que desenvolveu Einstein mais tarde, o tempo é absoluto e não relativo, o espaço é plano, e não curvo, e massa e energia são fenômenos diferentes, e não aspectos diversos do mesmo fenômeno.

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com fundamento nas leis de Newton o homem chegou à lua e prevê com precisão os movimentos planetários, e ape-nas por conta das descobertas de Einstein foi possível de-senvolver a energia nuclear. Einstein292 passou boa parte de sua vida em busca de uma teoria geral que harmonizasse as diferentes leis cientificas, que até hoje não foi descoberta. Nem por isso suas conclusões perderam importância ou utilidade. Stephen W. Hawking, eleito para ocupar a cadei-ra de Isaac Newton em Cambridge, registra essa limitação nos seguintes termos:

"Provou-se que é muito difícil descobrir uma teoria que descreva todo o universo. Por isso divide-se o problema em diversas partes e inventam-se inúmeras teorias par-ciais. Cada uma delas descreve e prevê um número limi-tado de categorias de observação, relegando os efeitos de outras quantidades, ou os representando por conjuntos simples de números. Pode ser que esta abordagem seja completamente errada. Se tudo no universo, de maneira fundamental, depende de todo o resto, talvez seja im-possível atingir uma solução plena através da investiga-ção das partes isoladas do problema. Ainda assim, foi esta certamente a forma com que se fez progressos no passado. "293

Se é assim com a física, com muito maior razão será em temas jurídicos, cuja matéria-prima são relações sociais, sempre embebidas de toda a complexidade que caracteriza o homem294. Em suma: ainda que os parâmetros gerais aqui

292 Einstein — vida e pensamentos. Clipping, 1997, pp. 26 e 33.

293 HAWK1NG, Stephen W. Uma breve história do tempo, 1995, pp. 214 e 215.

294 A presença de quebras no sistema é, a rigor, natural. CANARIS,

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propostos devam conviver com exceções e situações ex-cepcionais, isso não lhes retira sua consistência e validade.

h) Solucionando os conflitos envolvendo regras: eqüi-dade, imprevisão e invalidade de incidência especifica da regra

Como identificado no item anterior, há hipóteses em que as regras, embora aplicáveis ao caso concreto, geram uma solução profundamente injusta e inadequada. Junte-se a isso o fato, também sublinhado, de que as opções ma-teriais da Constituição não convivem confortavelmente com a consagração de injustiças graves; princípios como o da justiça social, da razoabilidade e do próprio Estado de direito repelem essa possibilidade.

Como então lidar com essa dificuldade? Autorizar am-plamente a não aplicação das regras, na medida em que pareçam injustas ou impróprias? Ora, os argumentos que afastam essa linha de atuação já foram examinados quando

se tratou das características e das funções próprias das re-gras e não há necessidade de reproduzi-los aqui. Afinal, que legitimidade tem o aplicador para afastar uma decisão dos órgãos majoritários (isto é: a regra) em favor de sua própria concepção acerca do que é justo ou injusto, razoável ou irrazoável? Como já se anunciou, a não ser que a decisão majoritária seja de tal modo teratológica a ponto de ser considerada inconstitucional ou, ainda, que seja possível sustentar que o legislador não cogitou da circunstância con-creta em questão, não será possível afastar uma regra a pretexto de ponderação.

Em suma: afora o uso da eqüidade, que em qualquer caso respeita as possibilidades semânticas do texto, o intér-prete apenas poderá deixar de aplicar uma regra por consi-derá-la injusta se demonstrar uma de duas situações: (i) que o legislador, ao disciplinar a matéria, não anteviu a hipótese que agora se apresenta perante o intérprete: im-previsão; ou (ii) que a incidência do enunciado normativo à hipótese concreta produz uma norma inconstitucional, de tal modo que, ainda que o legislador tenha cogitado do caso concreto, sua avaliação deve ser afastada por incompatível com a Constituição. Sublinhe-se que tais fórmulas funcio-nam como exceções ao parâmetro geral da preferência das regras e, por isso mesmo, fazem recair sobre o intérprete o ônus argumentativo especialmente reforçado de moti-vação.

Feita essa introdução geral, vale fazer algumas notas sobre as três idéias expostas, por meio das quais se poderá superar o problema das regras injustas e da necessidade de ponderação dessa espécie normativa: a eqüidade, a impre-visão legislativa e a invalidade de determinada incidência de regra em tese válida.

Como já era registrado por Aristóteles, o caso concreto freqüentemente apresentará particularidades que não fo-ram previstas de forma geral pelo legislador. Assim, ao apli-

Claus-Wilhelm, Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito, 1989, pp. 199 e 200; "De facto a formação de um sistema completo numa determinada ordem jurídica permanece sempre um objectivo não totalmente alcançado. Opõe-se-lhe, invencivelmente, a natureza do Direito e isso a dois títulos. Por um lado, uma determinada ordem jurídica positiva não é uma 'ratio scripta', mas sim um conjunto historicamente formado, criado por pessoas, apresentando como tal, de modo necessário, contradições e incompletudes, inconciliáveis com o ideal da unidade interior e da adequação e, assim, com o pensamento sistemático. Mas por outro, há na própria idéia de Direito um elemento imanente contrário ao sistema e, designadamente, a chamada 'tendência individualizadora' justiça que contracenando com o pensamento sistemático — assente na 'tendência generalizadorall — tem como consequência o surgimento de normas que a priori se opõem à determinação sistemática. 'Quebras no sistema' e 'lacunas no sistema' são, por isso, inevitáveis."

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car um enunciado normativo, o juiz poderá introduzir um elemento adicional: a eqüidade, que autoriza adaptar a conseqüência a ser extraída do enunciado de acordo com as características próprias do caso. Trata-se, como se tornou corrente referir, da justiça do juiz ou da justiça do caso concreto, na expressão clássica do próprio Aristóteles29s.

295 ARISTOTELES. "Ética a Nicômaco", Livro V. In: Os pensadores, 1996, pp. 212 e 213: "A razão é que toda lei é de ordem geral, mas não é possível fazer uma afirmação universal que seja correta em relação a certos casos particulares. Nestes casos, então, em que é necessário estabelecer regras gerais, mas não é possível fazê-lo completamente, a lei leva em consideração a maioria dos casos, embora não ignore a possibilidade de falha decorrente desta circunstância e nem por isto a lei é menos correta, pois a falha não é da lei nem do legislador, e sim da natureza do caso particular, pois a natureza da conduta é essencialmente irregular. Quando a lei estabelece uma regra geral, e aparece em sua aplicação um caso não previsto por esta regra, então é correto, onde o legislador é omisso e falhou por excesso de simplificação, suprir a omissão, dizendo o que o próprio legislador diria se estivesse presente, e o que teria incluído em sua lei se houvesse previsto o caso em questão. Por isto o eqüitativo é justo, e melhor que uma simples espécie de justiça, embora não seja melhor que a justiça irrestrita (mas é melhor que o erro oriundo da natureza irrestrita de seus ditames). Então, o eqüitativo é, por sua natureza, uma correção da lei onde esta é omissa devido à sua generalidade. De fato, a lei não prevê todas as situações porque é impossível estabelecer uma lei a propósito de algumas delas, de tal forma que às vezes se torna necessário recorrer a um decreto. Com efeito, quando uma situação é indefinida a regra também tem de ser indefinida, como acontece com a régua de chumbo usada pelos construtores em Lesbos; a régua se adapta à forma de pedra e não é rígida, e o decreto se adapta aos fatos de maneira idêntica. Agora podemos ver claramente a natureza do eqüitativo, e perceber que ele é justo e melhor que uma simples espécie de justiça. É igualmente óbvio, diante disto, o que vem a ser uma pessoa eqüitativa; quem escolhe e pratica atos eqüitativos e não se atém intransigentemente aos seus direitos, mas se contenta com receber menos do que lhe caberia, embora a lei esteja do seu lado, é uma pessoa eqüitativa, e esta disposição é a eqüidade, que é uma espécie de justiça e não uma disposição da alma diferente."

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Nessa função de elemento retificador da justiça rigoro-samente legal, a eqüidade não tem o poder de afastar de todo a aplicação de um enunciado normativo pelo fato de ser inadequado ou injusto296. A imagem da régua de Lesbos é esclarecedora quanto a esse ponto: o fato de ser maleável permite que ela se adapte às diferentes reentrâncias das superfícies, sem, no entanto, deixar de ser ela mesma. Atualizando a imagem, é possível dizer que o texto de um enunciado dificilmente comporta apenas um sentido uní-voco; o mais comum é que ele descreva um campo de pos-sibilidades semânticas297. É dentro desse campo, que pode-rá ser mais ou menos amplo, mas em qualquer caso não é ilimitado, que a eqüidade poderá se desenvolver298.

296 Em outra acepção, Aristóteles admitiria que a eqüidade chegasse a corrigir o direito legislado, autorizando a não aplicação da regra injusta em face do caso concreto. V. sobre o ponto, TORRES, Ricardo Lobo. A eqüidade no processo administrativo tributário, Revista de Direito da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro n° 30, 1976, p. 82 e ss.. De toda sorte, para os fins da proposta desenvolvida neste estudo, apenas as possibilidades descritas no texto são atribuídas à eqüidade. A não aplicação de uma regra válida a um caso concreto dependerá da verificação de uma das duas hipóteses apresentadas na seqüência: a imprevisão legislativa ou a incidência inconstitucional da regra.

297 LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito, 1969, p. 369: "Se assim o critério literal na maior parte dos casos não basta como critério interpretativo, precisamente porque ainda permite diversas interpretações, já contudo o sentido literal possível, isto é, a totalidade daqueles significados que, segundo a linguagem vulgar, ainda podem estar ligados à expressão, indica o limite da interpretação (em sentido restrito)."; e BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição, 2003, p. 117 e ss.. 298 ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios, 2003, pp. 94 e 95: "A razoabilidade estrutura a aplicação de outras normas, princípios e regras, notadamente das regras." Para o autor, uma das manifestações da razoabilidade confunde-se com a eqüidade.

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A figura da eqüidade é reconhecida explicitamente pelo direito brasileiro, que inclusive prevê casos específi-cos em que a questão posta diante do magistrado deverá ser decidida com fundamento na eqüidade299. Isto é: na incon-veniência de prever critérios normativos em tese, o próprio legislador autorizou que a decisão seja tomada, em cada caso, de acordo com a concepção de justiça do juiz'°. Nada

299 Seguem alguns dispositivos a título de ilustração. No Novo Código Civil: "Art. 413. A penalidade deve ser reduzida eqüitativamente pelo juiz

se a obrigação principal tiver sido cumprida em parte, ou se o montante da penalidade for manifestamente excessivo, tendo-se em vista a natureza e a finalidade do negócio."

No Código de Defesa do Consumidor: "Art. 51 — São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas

contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que: IV — estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que

coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade"

No Código de Processo Civil: "Art. 127 — O juiz só decidirá por eqüidade nos casos previstos em

lei." Na Lei 9.099 de 26/09/1995 (Dispõe sobre os Juizados Especiais

Cíveis e Criminais e dá outras providências): "Art. 25 — O árbitro conduzirá o processo com os mesmos critérios

do Juiz, na forma dos artigos 5 e 6 desta Lei, podendo decidir por eqüidade."

No Decreto n° 1.979 de 09/08/1996 (Promulga a Convenção Interamericana sobre Normas Gerais de Direito Internacional Privado, Concluída em Montevidéu, Uruguai, em 8 de maio de 1979):

"Art. 9 — As diversas leis que podem ser competentes para regular os diferentes aspectos de uma mesma relação jurídica serão aplicadas de maneira harmônica, procurando-se realizar os fins colimados por cada uma das referidas legislações. As dificuldades que forem causadas por sua aplicação simultânea serão resolvidas levando-se em conta as exigências impostas pela eqüidade no caso concreto."

309 ALVIM, Agostinho. Da eqüidade, Revista dos Tribunais n° 132, 1941, pp. 3 a 8 (republicada no n°797, 2002, pp. 767 a 770).

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obstante essas previsões, independentemente de autoriza-ção legislativa particular, o juiz sempre poderá e deverá empregar a eqüidade em suas decisões, dando ao enuncia-do o sentido possível que aproxime, da melhor forma, a sua finalidade das circunstâncias do caso concreto301 . Na maior parte dos casos, o instrumental empregado pelo intérprete para esse desiderato são as técnicas convencionais da her-menêutica jurídica. O elemento sistemático e lógico, as interpretações extensiva e restritiva, a analogia, a interpre-tação orientada pelos princípios, dentre outras ferramen-tas, são especialmente úteis nesse particular.

A questão da incidência injusta de regras pode assim, em parte, ser reconduzida à estrutura geral da eqüidade. Apenas em parte porque, como já referido, a eqüidade, por si só, não autoriza o intérprete a negar aplicação a uma regra. Em muitas ocasiões, no entanto, a eqüidade bastará para dar solução ao caso. Em boa medida, é possível fazer uma aproximação do parâmetro da eqüidade com as técni-cas relacionadas com a interpretação conforme a Constitui-ção. Como se sabe, pela interpretação conforme a Consti-tuição o intérprete procura, empregando o instrumental hermenêutico disponível, afastar as possibilidades de inter-pretação incompatíveis com a Constituição, respeitando o limite do texto e suas potencialidades302. No caso, a eqüi-dade conduz a uma interpretação conforme a justiça do caso

301 SERPA LOPES, Miguel Maria de. Curso de direito civil, vol. I, 1988, p. 145: "Em resumo podem ser fixados os seguintes princípios: a eqüidade, como função de interpretação da norma, independe de autorização legal, pois deve ser utilizada para coadjuvar a inteligência do dispositivo interpretando, de acordo com os dados sociológicos que o envolverem e a finalidade que tiver". 302 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição, 2003, p. 185 e ss.; e MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição constitucional, 1998, p. 268 e ss..

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concreto, tendo em conta os princípios constitucionais que, direta ou indiretamente, fundamentam a exigência de jus-tiça. Ou seja: respeitado o limite do texto e suas possibili-dades, o intérprete poderá empregar uma interpretação conforme a eqüidade da regra, de modo a evitar a incidência iníqua.

A segunda forma de lidar com o problema da incidência injusta de regras é por meio de uma aplicação analógica da conhecida teoria da imprevisão. De forma bastante sim-ples, a teoria da imprevisão destina-se a reequilibrar rela-ções atingidas por eventos imprevisíveis e imprevistos pe-las partes envolvidas. Tanto em ajustes de natureza priva-da, como em contratos administrativos303, com maior ou menor liberdade, as partes prevêem as regras que discipli-narão seu relacionamento tendo em conta um cenário pre-

303 Lei n° 8666/1993: "Art. 57 — § 10 Os prazos de início de etapas de execução, de

conclusão e de entrega admitem prorrogação, mantidas as demais cláusulas do contrato e assegurada a manutenção de seu equilíbrio econômico-financeiro, desde que ocorra algum dos seguintes motivos, devidamente autuados em processo:

II — superveniência de fato excepcional ou imprevisível, estranho à vontade das partes, que altere fundamentalmente as condições de execução do contrato".

"Art. 65 — Os contratos regidos por esta Lei poderão ser alterados, com as devidas justificativas, nos seguintes casos: (...)

II — por acordo das partes: (...) d) para restabelecer a relação que as partes pactuaram inicialmente

entre os encargos do contratado e a retribuição da Administração para a justa remuneração da obra, serviço ou fornecimento, objetivando a manutenção do equilíbrio econômico-financeiro inicial do contrato, na hipótese de sobrevirem fatos imprevisíveis, ou previsíveis porém de conseqüências incalculáveis, retardadores ou impeditivos da execução do ajustado, ou ainda, em caso de força maior, caso fortuito ou fato do príncipe, configurando álea econômica extraordinária e extracontratual."

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sente e um provável cenário futuro. Se a despeito do esfor-ço e previdência das partes a relação jurídica for atingida por elementos imprevistos que alterem substancialmente o equilíbrio do ajuste, será possível alterar as regras originais para adequá-las à nova realidade.

A teoria da imprevisão pressupõe, em suma, que as par-tes teriam pactuado diferentemente se imaginassem os eventos futuros. Os dois elementos essenciais para sua in-cidência, portanto, são: (i) a imprevisibilidade do evento futuro e (ii) a alteração substancial que ele provoca no ce-nário que as partes tinham em mente (em relação ao pre-sente e ao futuro) quando pactuaram304.

304 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil, vol. III, 1997, p. 100: "Admitindo-se que os contratantes, ao celebrarem a avença, tiveram em vista o ambiente econômico contemporâneo, e previram razoavelmente para o futuro, o contrato tem de ser cumprido, ainda que não proporcione às partes o benefício esperado. Mas, se tiver ocorrido modificação profunda nas condições objetivas coetâneas da execução, em relação às envolventes da celebração, imprevistas e imprevisíveis em tal momento, e geradoras de onerosidade excessiva para um dos contratantes, ao mesmo passo que para o outro proporciona lucro desarrazoado, cabe ao prejudicado insurgir-se e recusar a prestação. Não o justifica uma apreciação subjetiva do desequilíbrio das prestações, porém a ocorrência de um acontecimento extraordinário, que tenha operado a mutação do ambiente objetivo, em tais termos que o cumprimento do contrato implique em si mesmo e por si só, no enriquecimento de um e empobrecimento do outro."; e AZEVEDO, Alvaro Villaça. Teoria da imprevisão e revisão judicial nos contratos, Revista dos Tribunais n°733, 1996, p. 109: "Em suma, a cláusula rebus sic stantibus instala-se nos contratos, para prevenir contra a alteração objetiva, imprevista e imprevisível, das situações, existentes no momento da contratação, contra a onerosidade excessiva, representada pelo desequilíbrio prestacional, e contra o enriquecimento de um dos contratantes, com prejuízo do outro, não previstos no negócio Esse acontecimento deve ser anormal (...), o que, se previsível, não teria levado as panes à conclusão do contrato."

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De certa forma, a mesma lógica se aplica ao processo legislativo. Também o legislador, ao editar qualquer espé-de de enunciado normativo, provê tendo em conta deter-minadas situações de fato ou padrões de conduta, presen-tes e futuras, que planeja regular, e nem haveria como ser diferente. É certo que diversas modificações podem ocor-rer com o tempo. Algumas vezes, novas realidades se agre-gam às anteriores, exigindo a mesma disciplina, problema que pode ser facilmente resolvido quando o dispositivo emprega uma fórmula geral em seu enunciadoms. Outra possibilidade de superação hermenêutica dessa dificuldade é a chamada interpretação evolutiva, que na verdade con-siste em uni processo informal de reforma do dispositivo, pelo qual novos conteúdos são atribuídos ao mesmo texto, sem modificação do seu teor literal306.

Há outras situações em que a realidade se altera de tal forma que a regra prevista torna-se totalmente inconve-niente e indesejável — não há solução institucional para esse problema em um Estado de direito de tradição roma-no-germânica clássica307. Na prática, é freqüente que essas regras ingressem em um estado de inércia no qual acabam

305 O art. 159 do Código Civil de 1916, por exemplo, incorporou ao longo do tempo a indenizabilidade do dano moral. A Constituição norte-americana, como se sabe, adotou uma linguagem bastante geral exatamente para preservar sua capacidade de adaptação às mudanças.

306 Sobre a idéia geral de mutação constitucional, v. SILVA, José Afonso da. Poder constituinte e poder popular, 2000, p. 291 e ss.. Especificamente sobre a interpretação evolutiva, v. BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição, 2003, p. 144 e ss.. 307 As coisas se passam de forma diferente no sistema da common law. Sobre esse tema, veja-se: CALABRESI, Guido. A Common Lato for the Age of Statutes, 1982.

por ser esquecidas: poucos se socorrem delas e pouquíssi-mos as aplicamms.

Há, no entanto, uma outra possibilidade, que é a que mais diretamente interessa aqui. Trata-se da circunstância de a regra prosseguir perfeitamente válida; porém, ela vem a incidir sobre uma hipótese particular que é substancial-mente diversa das situações-tipo para as quais foi planeja-da. Os elementos de fato que se consideram essenciais para provocar sua incidência não estão presentes naquele caso, embora do ponto de vista lingüístico o enunciado possa ser aplicado; há uma disparidade quanto aos pressupostos de fato entre aquele caso específico e as situações em geral às quais o dispositivo é aplicado comumente. Em suma: a si-tuação específica não estava nas cogitações razoáveis do legislador; não foi prevista por ele309 pois, se o tivesse sido,

308 É o que se passa, e.g., com o art. 240 do Código Penal, que tipifica como crime o adultério.

309 HAGE, Jaap C. Reasoning with Rides, 1997, pp. 109, 112 e 117: "In the law, a particularly important category of scope limitations derives from the phenomenon of rule conflicts. Legal ideology will have it that rules of law do not conflict. If two rufes seem to conflict, at least one of them is not applicable. The scopes of conflicting rules are assumed to be disjoint. This phenomenon can be explainecl if we take into account that legal mies are meant to identify reasons which replace the original reasons on which the rufes are based. The necessary weighing of reasons is considered to be the task of the legislator. The legislator so to speak oversees ali conflicting goals and principies, and determines for each possible case what is the outcome of their interaction. This outcome is 'described in the legal rufes that are laid down in legislation. (...) However, if there still are legally relevant facts that were not taken into account by the legislator, not even in the sense that they were discarded as irrelevant, these facts are not excluded by the reasons generated by the legal rule. A legal decision maker must still take these facts into account as legal reasons next to the reason identifiedby the legal tule. (...) Still, in exceptional cases, there may be some reasons that were not taken into

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a solução seria diversan°. Há aqui, como se vê, uma situa-ção de imprevisibilidade e de substancial diferença entre o cenário planejado para a aplicação do enunciado e o caso'l

Nesse sentido, a aplicação da idéia de imprevisão de-pende de ser possível responder positivamente a essas duas perguntas: (i) é consistente afirmar que o legislador não imaginou uma situação como a que se apresenta ao aplica dor? E (ii) há uma disparidade essencial e grave entre as circunstâncias de fato do caso examinado e as que caracte-rizam normalmente as hipóteses às quais o enunciado é

account by the legislator, and are therefore not excluded by the applicability of the legal nde. In that case, there still be reasons not to apply the rule, and if the rule is not applied, its conclusion does not follow." É bem de ver que o autor admite a não aplicação de regras em outras hipóteses além da referida na transcrição e que de certa forma se equipara à idéia de imprevisão descrita no texto.

310 GRAU, Eros Roberto. A emenda constitucional n° 30/00: pagamento de precatórios judiciais, Revista de Direito Administrativo n°229, 2002, p. 97: "Aristóteles observa que a lei é sempre geral e existem casos em relação aos quais não é possível estipular-se um enunciado geral que se aplique com retidão. Nos casos nos quais é necessário limitar-se o enunciado a generalidades, sendo impossível fazê-lo corretamente, a lei não torna em consideração senão os casos mais freqüentes, sem ignorar os erros que isso possa importar. Nem por isso ela é menos correta, porque a culpa não está na lei, nem no legislador, mas sim na natureza das coisas; porque, em razão de sua própria essência, a matéria das coisas da ordem prática reveste-se do caráter de irregularidade. Por isso, quando a lei expressa uma regra geral e surge algo que se coloca fora dessa formulação geral, devemos, onde o legislador omitiu a previsão do caso e pecou por excesso de simplificação, corrigir a omissão e fazer-nos intérpretes do que o legislador teria dito, ele mesmo, se estivesse presente neste momento e teria feito constar da lei se conhecesse o caso em questão." O autor faz uma nota de rodapé ao fim do trecho citado com a seguinte dicção: "Tome-se sob as devidas ressalvas a alusão à vontade ou pensamento do legislador."

311 PECZENIK, Aleksander. On Lazy and Reason, 1989, p. 76 e ss..

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aplicado? Na verdade, caso as duas perguntas acima sejam respondidas afirmativamente, tudo funciona como se a in-cidência daquela regra ao caso decorresse apenas de uma coincidência lingüística, por inexistir, na realidade, disci-plina jurídica para aquela hipótese. Não havendo enuncia-do pertinente aplicável —já que o que existe é uma mera coincidência de signos lingüísticos —, a hipótese será deci-dida nos termos do art. 4° da Lei de Introdução ao Código Civil, pelo qual, sendo omissa a lei, "o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.". Em qualquer caso, a não aplicação da regra nessas circunstâncias exigirá do julgador a demonstração analítica da presença dos elementos indispensáveis à confi-guração da imprevisão legislativa'''.

Por fim, haverá uma terceira forma de lidar com o pro-blema das regras que produzem resultados injustos. Trata-se da declaração de inconstitucionalidade da norma produzida pela incidência da regra sobre uma determi-nada situação específica. A distinção entre enunciado

normativo e norma já foi examinada no Capítulo V e não há necessidade de retomar as questões ali expostas.

É possível cogitar de situações nas quais um enunciado normativo, válido em tese e na maior parte de suas incidên-cias, ao ser confrontado com determinadas circunstâncias

312 PECZENIK, Aleksander. Ora Law and Reason, 1989, p. 342: "2. Democracy requires that the courts sufficiently respect statutes, enacted by the representatives of the people. In hard cases, an extensive and general justification is a necessary condition for making it clear that the court has actually fulfilled this requirement; 3. An extensively and generally justified decision directly fulfils the demand of intersubjective testability and thus an important principie of rational practical discourse. In other words, one knows on which grounds one may criticise it. Testability promotes objectivity of the decision, and thus legal certainty."

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concretas, produz uma norma inconstitucional. Lembre-se que, em função da complexidade dos efeitos que preten-dam produzir e/ou da multiplicidade de circunstâncias de fato sobre as quais incidem, também as regras podem justi-ficar diferentes condutas que, por sua vez, vão dar conteú-do a normas diversas. Cada uma dessas normas opera em um ambiente fático próprio e poderá ser confrontada com um conjunto específico de outras incidências normativas, justificadas por enunciados diversos. Por isso, não é de es-tranhar que determinadas normas possam ser inconstitu-cionais em função desse seu contexto particular, a despeito da validade geral do enunciado do qual derivam. Ilustra-se com um exemplo.

A possibilidade que se acaba de identificar já foi reco-nhecida pelo Supremo Tribunal Federal na ADIn n° 223, descrita acima, na qual se discutia a validade de disposições que proibiam a concessão de medidas liminares e antecipa-ções de tutela em face da Fazenda Pública. A ação direta foi julgada improcedente, como referido, já que, em tese, a restrição à concessão de providências de urgência não era inconstitucional. Admitiu-se, porém, que em circunstân-cias específicas a incidência daqueles dispositivos poderia gerar normas inconstitucionais.

É fácil perceber que o mesmo enunciado produzirá nor-mas diversas e, mais que isso, será confrontado por enun-ciados diferentes conforme a demanda judicial envolva, e.g., (i) o reenquadramento de servidores públicos ou (ii) o custeio de cirurgia urgente e indispensável à manutenção da vida do particular que deveria ter sido realizada pela rede pública de saúde, mas que, por qualquer razão, não o foi. No primeiro caso, o direito patrimonial poderá em ge-ral ser satisfeito adequadamente ao fim da demanda e, por-tanto, a norma produzida pelo enunciado apenas veda que

valores pretendidos pelo autor sejam antecipados pela Fa-zenda Pública antes de proferida a decisão final.

No segundo caso entram em jogo os enunciados relacio-nados com o direito à vida e à saúde (impertinentes no primeiro exemplo) e o grave risco de perecimento do direi-to. Nesse contexto, a norma que se extrai do mesmo enun-ciado é diversa: ela veda que o juiz autorize a realização de cirurgia sem a qual o autor poderá vir a falecer. Não é difícil concluir que essa segunda norma afeta muito mais intensa-mente o núcleo do direito de acesso ao Judiciário do que a primeira.

Os três mecanismos descritos como aptos a lidar com o problema dos conflitos normativos envolvendo regras fo-ram apresentados em ordem crescente de intervenção no sistema jurídico. No primeiro caso, a injustiça da incidência da regra pode ser superada dentro dos limites semânticos do enunciado por meio do uso da eqüidade. No segundo, a questão é solucionada uma vez que seja consistente susten-tar que a injustiça aparentemente produzida pela aplica-ção da regra não foi realmente pretendida nem pela mens legislatoris e nem pela mens legis. Trata-se de uma coinci-dência lingüística que deve ser desconsiderada por conta da imprevisão legislativa.

Por fim, o terceiro mecanismo enfrenta a hipótese na qual o legislador de fato proveu para a hipótese, mas a solução por ele concebida, em determinado caso, torna-se incompatível com a Constituição. Note-se que as observa-ções pertinentes ao controle de constitucionalidade das leis e atos normativos aplicam-se também aqui. O juízo de in-constitucionalidade é um remédio excepcional que deve ser reservado para as hipóteses em que há violação evidente e grave de disposições constitucionais e não como instru-mento de afirmação das convicções políticas pessoais do

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intérprete'''. E como em qualquer decisão em que se de-clare a inconstitucionalidade de atos do Poder Público, cabe ao juiz o dever de fundamentar de forma especial,- mente sólida suas conclusões.

O parâmetro proposto neste capítulo — a preferência das regras sobre os princípios —, juntamente com suas cláusulas de exceção identificadas acima, procuram orde-nar o processo de ponderação tendo em conta a estrutura dos enunciados normativos em disputa (se regras ou princí-pios), independentemente de seu conteúdo. É fácil perce-ber, contudo, que se dois enunciados de igual estrutura entrarem em colisão, esse parâmetro terá pouco a dizer ao intérprete. Assim, além desse parâmetro de natureza es-trutural, é preciso formular igualmente algum parâmetro substancial, que leve em consideração o conteúdo dos ele-mentos normativos e forneça balizas para a ponderação quando a preferência das regras sobre os princípios, e tudo o mais que se expôs até aqui, não for capaz de solucionar o conflito normativo. É sobre esse novo parâmetro que se passa a tratar.

313 Esse caráter excepcional da declaração de inconstitucionalidade é uma decorrência lógica da separação de poderes e do principio democrático, que dão origem à presunção de constitucionalidade dos atos do Poder Público. V. sobre o ponto BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição, 2003, p. 160 e ss..

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IX. Parâmetro geral 2: Normas que realizam diretamente

direitos fundamentais dos indivíduos têm preferência sobre normas

relacionadas apenas indiretamente com os direitos fundamentais

O segundo parâmetro preferencial a ser proposto neste estudo pode ser descrito nos seguintes termos: a norma que de forma direta promova e/ou proteja a dignidade hu-mana deve ter preferência sobre outra norma que apenas indiretamente está associada com a proteção ou promoção da dignidade humana. Promoção e proteção da dignidade humana, além de apresentarem ampla comunicação com temas filosõficos'm e históricos315, são idéias muito gerais

314 A questão da legitimação ontológica da dignidade humana sempre será uma questão de metafísica filosófica. V. sobre o tema, BARBOSA, Ana Paula Costa. "A fundamentação do princípio da dignidade humana". In: TORRES, Ricardo Lobo (organizador). Legitimação dos direitos humanos, 2002, pp. 51 a 98; e ALVES, Cleber Francisco. O princípio

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merecedoras de um exame próprio, que não poderá ser desenvolvido aqui. Para os fins deste estudo e do parâme-tro que se acaba de propor, entretanto, a proteção e a pro-moção da dignidade podem ser identificadas com a prote-ção e a promoção dos direitos fundamentais dos indiví-duos'', bem como de condições materiais necessárias para seu bem estar mínimo e para o exercício da cidadania'''.

Há duas observações preliminares a fazer sobre o parâ-metro enunciado. A primeira se relaciona com o objeto sobre o qual o parâmetro incide e o momento próprio no qual ele deve ser utilizado. A segunda observação envolve as expres-sões direta e indireta empregadas para descrevê-lo.

IX.1.0 momento e o objeto do parâmetro

A matéria-prima do primeiro parâmetro discutido nes-te estudo (o da preferência das regras sobre os princípios)

constitucional da dignidade da pessoa humana: O enfoque da doutrina social da Igreja, 2001. 315 O conteúdo da noção de dignidade tem sempre uma dimensão histórica e cultural. V. PINILLA, Ignacio Ara. /nr transfonnaciones de los derechos humanos, 1994; e MARTINEZ, G regorio Peces-Barba: Derechos sociales y positivismo jurídico, 1999. 316 Sobre a relação entre direitos fundamentais e dignidade humana, veja-se, dentre outros, SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais, 1998, p. 27 e ss.; e, do mesmo autor, Dignidade da pessoa humana da Constituição Federal de 1988, 2001. 317 A questão das condições materiais necessárias para a sobrevivência, o bem estar mínimo e o exercício da cidadania podem ser descritas como um mínimo existencial. Sobre o tema especifico, v. TORRES, Ricardo Lobo. Os direitos humanos e a tributação — Imunidades e isonomia, 1995; e BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais — O princípio da dignidade da pessoa humana, 2002. Sobre a evolução dos direitos sociais no Brasil, v. GALVÃO, Paulo Braga. Os direitos sociais nas Constituições, 1981.

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são os enunciados normativos, como referido. Cabe ao in-térprete identificar, relativamente a cada enunciado, a sua estrutura — se regra ou princípio (e se núcleo ou área não nuclear de princípio) — e, em decorrência disso, aplicar a preferência indicada pelo parâmetro. Do ponto de vista das etapas da ponderação, a preferência das regras sobre os princípios pode ser empregada já na primeira fase, pois uma vez que os enunciados em disputa tenham sido identi-ficados, a preferência já pode ser visualizada318.

O parâmetro que se acaba de enunciar — preferência das normas que de forma direta promovem os direitos fun-damentais — funciona de maneira diversa. Uma vez que ele propõe uma comparação de natureza substancial entre o conteúdo dos elementos normativos, seu objeto de inci-dência são as normas, e não os enunciados normativos. Já se demonstrou que um mesmo enunciado pode justificar a existência de variadas normas, cujo conteúdo será diverso em função das circunstâncias de fato e da confluência de outros enunciados. Isso significa, portanto, que apenas as normas autorizam a visualização precisa do conteúdo espe-cífico dos elementos normativos em cada caso.

Esta observação acerca do objeto sobre o qual deve in-cidir o parâmetro está diretamente relacionada com a nota que deve ser feita a propósito do momento próprio de sua

318 Como já se referiu, a divisão do processo ponderativo em etapas tem como objetivo ordenar o raciocínio, destacar problemas metodológicos que devem ser considerados e especialmente induzir o intérprete à justificação da decisão. Isso não significa que as três fases não se comuniquem, muito ao revés, mesmo porque esse movimento de ir e vir entre premissas e resultados possíveis é próprio da atividade hermenêutica. No caso, por exemplo, dos parâmetros envolvendo a ponderação de regras, descritos acima (eqüidade, imprevisão e inconstitucionalidade concreta), esse contato entre as diferentes etapas será a rigor indispensável.

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utilização. Se o parâmetro aqui em exame tem por objeto normas, ele só poderá ser empregado organizadamente na terceira fase da ponderação, quando já se tenham examina-do tanto os enunciados normativos como os fatos, e os di-ferentes conjuntos de elementos em conflito tenham indi-cado normas específicas para a solução do caso concreto. Explica-se melhor.

O parâmetro material que se acaba de propor não será empregado sozinho ou isoladamente, mas em conjunto ou, mais precisamente, na seqüência do primeiro parâmetro, caso este último não tenha sido capaz de solucionar o con-flito de forma satisfatória. Na primeira fase da ponderação, além de todas as demais técnicas tradicionais de herme-nêutica jurídica319, o intérprete poderá fazer uso da prefe-rência das regras sobre os princípios quando verificar con-flitos entre os enunciados pertinentes. Caso o conflito per-maneça, passa-se à segunda e terceira fases da ponderação, por meio das quais as normas que cada um dos grupos de elementos em conflito sugere como solução para o caso concreto serão identificadas com maior clareza. Neste pon-to, então, é que poderá ser empregada a preferência das normas que diretamente promovem ou protegem os direi-tos fundamentais sobre aquelas que estão ligadas a esse fim apenas de forma indireta.

Alguns exemplos ajudam a compreender as razões que fundamentam essas observações acerca do objeto e do mo-mento de aplicação do parâmetro material e as conseqüên-

319 Só será possível saber se realmente se trata de um conflito insuperável pelas técnicas hermenêuticas tradicionais uma vez que elas sejam experimentadas sem sucesso. Assim, como já se mencionou, a primeira atividade do intérprete após a identificação dos enunciados pertinentes é tentar solucionar o conflito normativo empregando essas técnicas convencionais.

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cias de sua adoção. Imagine-se um indivíduo condenado a um determinado período de reclusão por haver cometido o crime de roubo. Pergunta-se: não haveria aqui um conflito entre o princípio constitucional da dignidade humana — que será obviamente afetada pela restrição da liberdade — e a norma do Código Penal que dispõe sobre o roubo e sua pena?

Ora, se o parâmetro material for aplicado para solucio-nar o aparente conflito entre os enunciados normativos, será necessário concluir que impedir a prisão do condenado promove de forma mais direta a sua dignidade do que pren-dê-lo (ainda que a prisão possa ser relacionada com a digni-dade e segurança de vítimas futuras, potenciais, esta rela-ção será sempre indireta). Deveríamos concluir então que o condenado, na hipótese, não pode ser preso? Isto é: o aparente conflito deve ser solucionado pela preferência do princípio da dignidade humana que, no caso, imporia a li-berdade do condenado? Parece certo que a resposta aqui é negativa. Na verdade, o suposto conflito descrito não resis-te à aplicação do primeiro parâmetro já discutido neste estudo: o enunciado do Código Penal é uma regra e o ele-mento normativo em confronto corresponde à área não nu-clear de um princípio (a dignidade humananc), de modo que prevalece a regra.

Imagine-se um segundo exemplo. Suponha-se que, por conta dos enunciados que regulam o direito de vizinhan-ça"' e das posturas municipais, seja proibido abrir janelas

320 É possível discutir, do ponto de vista filosófico, se a pena privativa de liberdade é ou não compatível com o conteúdo nuclear da dignidade humana. Sob uma perspectiva puramente jurídica, porém, o problema não se coloca pois a própria Constituição de 1988 admite essa modalidade de pena.

321 NCC/02: "Art. 1301. É defeso abrir janelas, ou fazer eirado, terraço ou varanda, a menos de metro e meio do terreno vizinho.

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na face lateral dos prédios que distem menos de 1,5 m de outras construções. O proprietário de um apartamento nessa situação, porém, a despeito das regras, abre uma ja-nela. Questionado, o indivíduo alega que é alérgico e preci-sa de mais ventilação na sua residência; sustenta ainda que a providência é necessária para a promoção de sua saúde corolário direto da dignidade humana, de modo que as rei gras municipais e do Código Civil não devem prevalecer na hipótese.

A mesma estrutura de raciocínio exposta no exemplo anterior aplica-se aqui. O argumento do proprietário do imóvel parece descrever um conflito entre a dignidade hu-mana (em sua área não nuclear) e as regras em questão e, se fosse o caso de aplicar o parâmetro material isoladamente, seria possível cogitar da prevalência da dignidade na hipó-tese. Esse, entretanto, e por evidente, não é o caso. Tam-bém aqui, o suposto conflito seria facilmente superado pelo primeiro parâmetro, que cuida da estrutura dos enun-ciados, a saber: a preferência das regras sobre os princípios.

Note-se, portanto, que o parâmetro material não será empregado sem que antes a hipótese tenha sido submetida ao crivo do primeiro parâmetro. E isso porque, em decor-rência do conteúdo relativamente indeterminado dos prin-cípios, a maior parte das pretensões individuais pode ser reconduzida em última análise à idéia, e.g., de dignidade, e cada um será capaz de atribuir ao princípio o sentido que lhe pareça melhor.

§ 1° As janelas cuja visão não incida sobre a linha divisória, bem como as perpendiculares, não poderão ser abertas a menos de setenta e cinco centímetros.

§ 2° As disposições deste artigo não abrangem as aberturas para luz ou ventilação, não maiores de dez centímetros de largura sobre vinte de comprimento e construídas a mais de dois metros de altura de cada piso."

Ora, se o parâmetro material fosse empregado logo de início, antes de levar-se em conta a diferente estrutura dos enunciados normativos, praticamente nenhum outro dis-positivo resistiria quando confrontado com a dignidade, ainda que a pretensão apenas pudesse ser justificada com base em uma concepção particular do princípio e especial-mente distanciada de seu conteúdo nuclear. Por essa razão, o parâmetro material deve ser usado apenas quando há de fato um conflito insuperável entre normas, não resolvido pelas técnicas tradicionais, nem pelo primeiro parâmetro. Cabe agora fazer uma última observação da maior impor-tância, acerca das idéias de realização direta ou indireta da dignidade humana contidas na descrição do parâmetro.

O sistema jurídico não é feito apenas de princípios, quanto à estruturam, e nem apenas de enunciados que de forma direta promovem a dignidade humana, assim enten-didos aqueles que cuidam de direitos de forma ampla. Há uma série de outros enunciados que se ocupam de delinear estruturas e instituições da maior relevância e que, de for-

322 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e teoria da Constituição, 1998, p. 1088: "Um modelo ou sistema constituído exclusivamente por regras conduzir-nos-ia a um sistema jurídico de limitada racionalidade prática. Exigiria uma disciplina legislativa exaustiva e completa — legalismo — do mundo e da vida, fixando, em termos definitivos, as premissas e os resultados das regras jurídicas. Conseguir-se-ia um 'sistema de segurança', mas não haveria qualquer espaço livre para a complementação e desenvolvimento de um sistema, como o constitucional, que é necessariamente aberto. (...) O modelo ou sistema baseado exclusivamente em princípios levar-nos-ia a consequências também inaceitáveis. A indeterminação, a inexistência de regras precisas, a coexistência de princípios conflituantes, a dependência do 'possível' fáctico e jurídico, só poderiam conduzir a um sistema falho de segurança jurídica e tendencialmente incapaz de reduzir a complexidade do próprio sistema."

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ma indireta, também estão relacionadas com o bem estar humano. É fácil demonstrar o ponto.

A separação de poderes, por exemplo, é historicamente a melhor técnica de organização do exercício do poder po-lítico, e seu propósito último sempre foi conter o abuso e a arbitrariedade daqueles que exercem o poder, como forma de proteger os direitos dos indivíduos323. O mesmo se diga da legalidade e dos orçamentos, dentre vários outros exem-plos: ambos são, ao mesmo tempo, instrumentos de afir-mação democrática da vontade da maioria e formas de con-trolar a autoridade, submetendo-a à vontade geral. No mesmo sentido, as chamadas garantias institucionais exis-tem, em última análise, para assegurar o bem das pes-soas324. Direitos não propriamente individuais, como a li-berdade de imprensa, desempenham função similar: eles garantem condições para o exercício do pluralismo políti-co, da liberdade de expressão e do controle social das ações do Poder Público"'.

323 BARCELLOS, Ana Paula de. Separação de Poderes. Maioria Democrática e Legitimidade do Controle de Constitucionalidade, Revista Trimestral de Direito Público n° 32, 2000, p. 184 e ss..

324 V. sobre o tema, BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional, 1999, p. 490 e ss.; e TORRES, Ricardo Lobo. Os direitos fundamentais e o Tribunal de Contas, Revista do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro n° 23, 1992, p. 55 e ss..

325 FARIAS, Edilsom Pereira de. Colisão de direitos — a honra, a intimidade, a vida privada e a imagem versus a liberdade de expressão e informação, 2000, pp. 166 e 167: "Se a liberdade de expressão e informação, nos seus primórdios, estava ligada à dimensão individualista da manifestação livre do pensamento e da opinião, viabilizando a critica política contra o ancienrégime, a evolução daquela liberdade operada pelo direito/dever à informação, especialmente com o reconhecimento do direito ao público de estar suficientemente e corretamente informado; àquela dimensão individualista-liberal foi acrescida uma outra dimensão de natureza coletiva: a de que a liberdade de expressão e informação

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Mais que isso, já não se admite a idéia, sedutora em outros tempos, de um ditador "bom"; aquele que, livre das "formalidades" próprias à democracia — como legalidade, previsão orçamentária, negociações com o Congresso, etc. —, pudesse empregar seu poder de forma direta e eficien-te, sem dispersão de energia, em favor da promoção e pro-teção da dignidade das pessoas.

E não é apenas a Constituição de 1988 que rejeita as soluções messiânicas e consagra a democracia institucional; também do ponto de vista filosófico e histórico a opção por uma ditadura esclarecida não é mais admissivel. Do ponto de vista filosófico, essa possibilidade traz consigo a idéia intolerável de que os homens não são iguais, não são capa-zes de governar-se e dependem de um Rei-Sábio-Ditador que os conduza. Historicamente, a fórmula já mostrou ser mal sucedida inúmeras vezes. Em suma: o fim último atri-buído ao Estado, de promover e proteger a dignidade hu-mana, não é alcançado apenas através de providências dire-tas, mas também por meio de instituições que, indireta-mente, contribuem para esse mesmo objetivo.

Essa observação tem duas conseqüências principais. A primeira está associada ao registro feito acima. Não se pode aplicar isoladamente o parâmetro material na fase inicial da ponderação, antes da incidência da preferência das regras sobre os princípios, sob pena de destruírem-se todas as estruturas e instituições que, ainda que indiretamente, são indispensáveis para assegurar a dignidade humana. Como é fácil perceber, empregando apenas o parâmetro material, bastaria formular um conflito entre as regras que dão corpo

contribui para a formação da opinião pública pluralista — esta cada vez mais essencial para o funcionamento dos regimes democráticos, a despeito dos anátemas eventualmente dirigidos contra a manipulação da opinião pública."

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a essas instituições e o princípio da dignidade humana para que este último prevalecesse, já que a relação entre as instituições e a dignidade é indireta. Esse problema, no entanto, pode ser superado na medida em que se tenha o cuidado de empregar o parâmetro no momento e sobre o objeto adequados.

Por outro lado, essa observação repercute também so-bre a aplicação propriamente dita do parâmetro material. Se há de fato um conflito insuperável, e.g., entre duas re-gras (ou, como ocorre com maior freqüência, entre conjun-tos de elementos normativos que dão origem a diferentes normas), isto é, se o confronto entre elas não pode ser solucionado por qualquer técnica tradicional e/ou pela pre-ferência das regras sobre os princípios, caberá então apurar qual delas, de forma direta, promove a dignidade do indiví-duo.

Note-se, portanto, ainda que sob outra perspectiva, que as diferentes normas que o processo de ponderação venha a apurar sempre podem, em alguma medida, ser re-conduzidas à idéia de dignidade humana. O propósito do parâmetro é conferir preferência àquela que o faz de forma mais direta. Essa preferência, porém, não se funda em qualquer espécie de desprezo pelas estruturas que, indire-tamente, promovem a dignidade das pessoas, mas sim e apenas na necessidade de decidir entre uma coisa e outra.

Idealmente, as disposições que promovem a dignidade humana de forma direta (como as que cuidam dos direitos fundamentais, por exemplo) devem conviver de maneira harmoniosa com aquelas outras que, indiretamente, têm o mesmo propósito. Entretanto, se esses enunciados geram normas e elas são, em determinado ambiente, inconciliá-veis, caberá ao intérprete ponderá-las e decidir qual deverá ser aplicada e em que medida (quando isso seja possível).

Nesse contexto de conflito inexorável e necessidade de

decisão entre uma norma que promove diretamente a dig-nidade das pessoas e outra que apenas contribui para esse fim indiretamente, a primeira deve prevalecer. Há diferen-tes maneiras de fundamentar o parâmetro que se acaba de expor. Mas, antes de qualquer outra, é possível visualizar uma razão lógica bastante simples: se existem fins, e há meios para alcançá-los, e se, em determinadas circunstân-cias, os meios conflitam com os próprios fins que buscam realizar, não se deve privilegiar o meio em detrimento do fim. Do ponto de vista político-jurídico, há pelo menos três caMinhos diversos que podem ser percorridos para justifi-car a preferência das normas que diretamente promovem a dignidade humana sobre aquelas que o fazem apenas de forma indireta. É sobre eles que se passa a tratar sucinta-mente no tópico seguinte.

IX.2. Fundamentação: o direito interno e o internacional e o procedimentalismo

Empregar o conteúdo das normas em disputa como cri-tério para solucionar conflitos entre elas parece aproximar o parâmetro proposto da idéia de hierarquia normativa. Não é disso, porém, que se trata. A proposta de hierarqui-zação de disposições constitucionais já foi objeto de exame e crítica (Capítulo III) e também já se expôs a natureza preferencial — e não absoluta — dos parâmetros propostos neste estudo (Capítulo VII). De qualquer modo, não é pos-sível afastar a necessidade de, em determinadas circunstân-cias, escolher entre normas que conflitam de forma irreme-diável326. A questão a ser respondida, portanto, pode ser

326 Na verdade, estabelecer relações de prioridade em caráter prima

facie entre as normas pode agregar coerência ao sistema, na medida em

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formulada nos seguintes termos: diante de situações dessa natureza, porque se deve empregar como parâmetro a pre-ferência das normas que promovem a dignidade humana de maneira direta?

Há muitas formas de responder a essa indagação e este estudo se ocupará de três delas de forma bastante objetiva. As duas primeiras fundamentam o parâmetro a partir de consensos substantivos: uma, no âmbito do direito interno e a outra na esfera do direito internacional. Com efeito, a Constituição brasileira de 1988 formulou uma opção pre-ferencial pela dignidade humana, alçando-a a valor central do sistema jurídico. Na esfera internacional, embora haja pouco consenso sobre os diferentes meios de promover e proteger a dignidade humana, há ampla concordância teó-rica quando se trata de afirmar o bem estar do homem

que permite lidar racionalmente com conflitos aparentemente insuperáveis. V. PECZENIK, Aleksander. On Law and Reason, 1989, p.164: "Moreover, coherence of some theories depends on priority orders between reasons. Inter alia priority orders are important when one faces a collision of principies, e.g., when an individual right collides with the demand to protect the environment. The relevant question is then, How to optimalise both principles within the system? This is the question of creating coherence. The only possible answer is to establish conditional, more or less general, all-things-considered priority relations and prima-fade priority orders. This is the case regardless the fact that one can never establish an unconditional priority arder, applicable to all thinkable cases of a collision between the principies in question. To establish a conditional priority arder is the only way to avoid the risk that the system will be used to justify incoherent decisions. Incoherence would consist in the fact that though the decisions are logically compatible, their relation to each other is arbitrary." (grifos no original) Sobre a possibilidade e até mesmo a necessidade de adotar-se uma certa hierarquização axiológica no sistema jurídico, v. FREITAS, Juarez. A interpretação sistemática do direito, 1998; e PASQUALINI, Alexandre. Hermenêutica e sistema jurídico, 1999, p. 109 e ss..

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como fim máximo do Estado e reconhecer direitos básicos aos indivíduos.

O terceiro fundamento apresentado adiante para o pa-râmetro é extraído de um conjunto variado de formulações teóricas que têm em comum dois elementos. Em primeiro lugar, a crença de que em uma realidade plural como a contemporânea não é possível apurar consensos materiais, nem, conseqüentemente, empregá-los para legitimar deci-sões que afetem a sociedade política. Se é assim, essa legi-timação só poderá decorrer da correção e qualidade dos procedimentos por meio dos quais tais decisões são apura-das. De toda sorte, como se verá, a partir de uma lógica totalmente diversa da empregada nos dois fundamentos anteriores, também os procedimentalistas acabam por con-cluir que a proteção de direitos básicos do homem é pres-suposto indispensável para o funcionamento adequado dos procedimentos por eles propostos. Explica-se melhor cada uma dessas três idéias.

Do ponto de vista do direito interno, a Constituição de 198832' oferece amplo respaldo à preferência das nor-mas que promovem diretamente a dignidade humana. O axioma da unidade da Constituição, que decorre de reco-nhecer-se a todos os enunciados a mesma hierarquia, é bas-tante conhecido e não há necessidade de desenvolver aqui maiores considerações sobre o seu conteúdous. Nada obs-tante, tornou-se corrente o registro doutrinário de que de-

327 E da mesma forma diversas outras Constituições contemporâneas, especialmente após a Segunda Guelra Mundial.

328 A igualdade hierárquica entre as normas constitucionais e, conseqüentemente, a necessidade de preservação da unidade constitucional foi registrada pelo STF de forma peremptória ao rejeitar a alegação de inconstitucionalidade de normas do ADCT. V. STF, RE 160486/SP, Rel. MM Celso de Mello, DJU 09.06.1995.

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terminadas disposições desempenham funções diferentes ou são dotadas de uma "superioridade axiológica" quando comparadas com outras. Para registrar apenas um exemplo, é evidente, e na verdade até intuitivo, que o dispositivo que trata da isonomia desempenha um papel muito diverso do atribuído ao art. 236 da Carta de 1988, que cuida dos ser-viços notariais e de registro.

O próprio texto constitucional identificou, dentre to-dos os enunciados constitucionais, um grupo que conside-rou fundamentais, ao criar a argüição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF). Já se fez referência a este ponto. Embora nem a Constituição nem a Lei n° 9.882/1999 (que regulou a argüição) tenham definido quais são os preceitos considerados fundamentais, a doutri-na e a jurisprudência têm se ocupado desse mister. E em todas as listas propostas figuram como fundamentais os preceitos relacionados com a dignidade humana e com os direitos fundamentais329.

329 Sobre o tema, v. BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro — Exposição sistemática da doutrina e análise critica da jurisprudência, 2004, pp. 215 a 248; REGO, Bruno Noura de Moraes. Argüição de descumprimento de preceito fundamental, 2003; TAVARES, André Ramos. Tratado da argüição de preceito fundamental, 2001; VELOSO, Zeno. Controle jurisdicional de constitucionalidade, 1999; BINENBOJM, Gustavo. A nova jurisdição constitucional brasileira, 2001; MENDES, Gilmar Ferreira. Argüição de descumprimento de preceito fundamental e Argüição de descumprimento de preceito fundamental: demonstração de inexistência de outro meio eficaz, disponíveis em www.iusnavigandi.com.br acesso em 28.05.2004; VELLOSO, Carlos Mário da Silva. A argüição de descumprimento de preceito fundamental, Fórum Administrativo n° 24/2003; SILVA, José Afonso da, Comentário de acórdãos, Cadernos de soluções constitucionais n° I, 2003; CLÈVE, Clemerson Merlin. "Algumas considerações em torno da argüição de descumprimento de preceito fundamental". In: SAMPAIO, José Adércio Leite e CRUZ, Álvaro

Na verdade, sem que isso produza uma ruptura do prin-cípio da unidade, é apenas natural que o conteúdo material dos enunciados — e a fortiori das normas — funcione como um elemento relevante para a hermenêutica jurídica"°. Em primeiro lugar, porque há muito já se superou a modalida-de de positivismo que apenas era capaz de lidar com os invólucros dos enunciados, independentemente daquilo que eles continham. Mais que isso, quando se trata da Constituição, a questão do conteúdo das disposições assu-me importância ainda maior: como já se referiu, uma das características mais destacadas das Cartas contemporâneas

Ricardo de Souza. Hermenêutica e jurisdição constitucional, 2001; p. 18 a 49; e SARMENTO, Daniel. Apontamentos sobre a argüição de descumprimento de preceito fundamental, Revista de Direito Administrativo n° 224, 2001, pp. 95 a 116, 2001.

330 SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. "Fundamentação e normatividade dos direitos fundamentais: uma reconstrução teórica à luz do princípio democrático", In: TORRES, Ricardo Lobo e MELLO, Celso de Albuquerque (organizadores). Arquivos de direitos humanos, vol. IV, 2002, p. 19: "(...) a tendência atual é de se passar a delimitar o campo da fundamentalidade com base em argumentos materiais, e não meramente teórico-formais ou positivos. É o que se verifica, p. ex., com a atribuição de fundamentalidade material a determinados direitos sociais através de critérios decorrentes do conceito de mínimo existencial. Note-se que esta tendência específica, de se deslocar o debate do âmbito formal para o material, é somente uma das manifestações que se incluem em um cenário contemporâneo mais amplo de ressurgimento do discurso sobre a fundamentação filosófica dos direitos fundamentais. Aos antigos argumentos da positividade, se agregam argumentos situados no plano da fundamentação racional. Nessa linha, pode-se afirmar, p. ex., que as normas incluídas no âmbito do conceito de direitos fundamentais serão efetivadas já não só porque gozam de um determinado tipo de positividade, mas também porque representam verdadeiros critérios de legitimação do próprio poder criador de positividade. Supera-se, assim, a velha e já estéril dicotomia entre os planos da fundamentação e da efetividade."

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é precisamente a decisão de constitucionalizar valores ma-teriais e opções políticas"' . Ignorar as diferenças que exis-tem entre os enunciados constitucionais no que diz respei-

331 Sobre a experiência alemã, v. ALEXY, Robert. El concepto y la validez dei derecho, 1994, p. 159: "El ejemplo más importante de una posición constitticionalista lo ofrece la axiología dei Tribunal Constitucional Federal. (...) la Ley Fundamental contiene en su capitulo sobre derechos fundamentales, un 'orden objetivo de valores' que, en tanto Idecisión iusconstitucional fundamental', vale para todos los ámbitos dei derecho y del cual reciben 'directrices e impulsos' la legislación, la administración y la justicia. La suposición de que, a más de ias normas de tipo tradicional, ai sistema jurídico pertenecen también valores que, en tanto valores de range constitucional, ejercen un 'efecto de irradiación' en todo el derecho ordinario tiene amplias consecuencias. La Constitución no es ya solo base de autorización y marco dei derecho ordinario. Con conceptos tales como los de dignidad, libertad e igualdad y de Estado de derecho, democracia y Estado social, la Constitución proporciona un contenido substancial ai sistema jurídico." Na mesma linha, sobre a Carta espanhola, v. SEGADO, Franciso Fernández. La teoria jurídica de los derechos fundam entales en la Constitución Espaiiola de 1978 y en su interpretación por el Tribunal Constitucional, Revista de Informação Legislativa n° 121, 1994, p. 73 e ss.. Sobre a Carta belga, a despeito de se tratar de um texto bem mais antigo que os demais aqui referidos, v. DELPÉRÉE, Francis. "O direito à dignidade humana". In: BARROS, Sérgio Resende de e ZILVETI, Fernando Aurelio (coordenadores). Direito constitucional — Estudos em homenagem a Manoel Gonçalves Ferreira Filho, 1999, p. 151 e ss.. Na França, a dignidade humana é considerada um elemento implícito desde a Declaração de 1789. Assim tem se manifestado, reiteradamente, o Conseil Constitutionnel: "Considérant que le peuble français a, par le preambule de la Constitution de 1958, proclame solennellement 'son attachement aux droits de l'homnie et aux principes de la souveraineté nationale tels qu'ils ont été définis par la Déclaration de 1789, confirmée et complétée par le preambule de la Constitution de 1946; qu'il ressort, par ailleurs, do preambule de la Constitution de 1946 que la sauvegarde de la dignité de la personne humaine contre toute forme d'asservissement et de dégradation est un principe de valeur constitutionnelle" (Décision n°98408 DC, 22.01.1999).

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to ao seu conteúdo não faria sentido algum diante das esco-lhas do próprio constituinte originário.

Nesse contexto, a decisão de tomar como critério para a ponderação a preferência das normas que diretamente promovem a dignidade humana justifica-se amplamente com a Carta de 1988. É absolutamente tranqüilo na doutri-Ila332 e na jurisprudência que a Constituição fez uma opção material clara pela centralidade da dignidade humana e, como conseqüência direta, dos direitos fundamentais333.

332 V. sobre o tema, na doutrina nacional, SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988, 2001; SANTOS, Fernando Ferreira dos. O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, 1999; FARIAS, Edilsom Pereira de. Colisão de direitos. A honra, a intimidade, a vida privada e a imagem versus a liberdade de expressão e informação, 1996; SILVA, José Afonso da. A dignidade da pessoa humana como valor supremo da democracia, Revista de Direito Administrativo n°212, 1998, pp. 89 a 94; MENDES, Gilmar Ferreira. Os direitos fundamentais e seus múltiplos significados na ordem constitucional, Revista Brasileira de Direito Público n° 2, 2003, pp. 91 a 104; ROCHA, Carmen Lucia Antunes. O princípio da dignidade da pessoa humana e a exclusão social, Revista Interesse Público n° 4, 1999, p. 23 e ss.; NOBRE JÚNIOR, Edilson Pereira. O direito brasileiro e o princípio da dignidade da pessoa humana, Revista de Direito Administrativo n° 219, 2000, p. 237 e ss.; SANTOS, Marcos André Couto. A delimitação de um conteúdo para o direito: em busca de uma renovada teoria geral com base na proteção da dignidade da pessoa humana, Revista de Informação Legislativa n° 153, 2002, pp. 163 a 191. Na doutrina estrangeira, v. ALEXY, Robert. Discourse Theory and Human Rights, Rodo Juris, vol. 9, n° 1, 1996, pp. 209 a 235.

333 V., dentre muitos, o seguinte acórdão: STF, Ext 633/CH, Rel. Min. Celso de Mello, DJU 06.04.2001: "O fato de o estrangeiro ostentar a condição jurídica de extraditando não basta para reduzi-lo a um estado de submissão incompatível com a essencial dignidade que lhe é inerente como pessoa humana e que lhe confere a titularidade de direitos fundamentais inalienáveis, dentre os quais avulta, por sua insuperável importância, a garantia do due process of law. Em tema de direito

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Essa conclusão decorre de forma muito evidente da leitura do preâmbulo, dos primeiros artigos da Carta e do status de cláusula pétrea conferido a tais direitos'. Com efeito, não há autor, de direito público ou privado, que dão desta-que a dignidade da pessoa humana como elemento central do sistema jurídico, bem como sua superior fundamentali-dade, se comparada a outros bens constitucionais". Há, portanto, uma justificativa normativa de direito interno para o critério escolhido: a própria Constituição decidiu posicionar a dignidade humana e os direitos fundamentais como centro do sistema por ela criado". O ponto é bastan-te simples e não há necessidade de discorrer mais sobre ele.

extradicional, o Supremo Tribunal Federal não pode e nem deve revelar indiferença diante de transgressões ao regime das garantias processuais fundamentais. É que o Estado brasileiro — que deve obediência irrestrita à própria Constituição que lhe rege a vida institucional — assumiu, nos termos desse mesmo estatuto político, o gravíssimo dever de sempre conferir prevalência aos direitos humanos (art. 40, II)." 334 Não há necessidade de discutir aqui a extensão da proteção conferida pelo art. 60, § 4°, IV, da Constituição, embora esta não seja uma questão pacífica.

335 O ponto é registrado por autores de direito público (e.g., BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição, 2003, p. 149 e ss.) e de direito privado (e.g., LIRA, Ricardo Pereira. Direito amoradia, cidadania e o estatuto da cidade, Revista Trimestral de Direito Civil n° 12, 2000, p. 260).

336 SARLET, Ingo Wolfgang. "Algumas notas em torno da relação entre o princípio da dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais na ordem constitucional brasileira". In: LEITE, George Salomão (organizador). Dos princípios constitucionais. Considerações em torno das normas principiológicas da Constituição, 2003, pp. 225 e 226: "É justamente para efeitos da indispensável hierarquização que se faz presente no processo hermenêutico que a dignidade da pessoa humana (ombreando em importância talvez apenas com a vida — e mesmo esta há de ser vivida com dignidade) tem sido reiteradamente considerada como

O segundo fundamento que pode ser apresentado para o parâmetro material proposto vem do direito internacio-nal. O direito interno e as opções do constituinte nacional fundamentam suficientemente o parâmetro aqui em dis-cussão. Entretanto, na realidade contemporânea, seria pou-co consistente empregar um critério oriundo do direito in-terno de forma isolada, sem levar em conta o entendimento vigente na sociedade internacional sobre o tema, apenas sob o argumento de que se trata de uma manifestação sobe-rana do Estado". Nesse contexto, e embora não exista descompasso aqui entre o direito interno e o internacional, muito ao revés, vale examinar o tema sob a perspectiva do direito internacional, ainda que rapidamente.

Os últimos sessenta anos, e o fim da Segunda Guerra Mundial pode servir de marco inicial simbólico dessa fase, caracterizam-se por uma crescente comunicação entre o direito interno e o internacional. São exemplos dessa nova realidade a profusão de atos internacionais versando assun-tos os mais variados", a existência de novas organizações internacionais339, o fortalecimento dos blocos regionais, a

o princípio (e valor) de maior hierarquia da nossa e todas as ordens jurídicas que a reconheceram." V. também ALEXY, Robert. Discourse Theory and Human Rights, Ratio Juris, vol. 9, n° 1, 1996, pp. 209 a 235. O mesmo se pode dizer em relação a outros textos constitucionais contemporâneos, como o português, o espanhol, o alemão, o italiano, o sul-africano, etc.

337 Como já se tornou corrente, a noção histórica da soberania vem passando por ampla reformulação nas últimas décadas, tanto na sua feição interna, como na internacional, principalmente para o fim de impor-lhe limitações. V. MELLO, Celso Albuquerque. "A soberania através da História". In: Anuário direito e globalização, PIDIG 1, A soberania, 1999.

338 Dentre os assuntos mais comuns estão temas relacionados com direitos humanos, comércio, tributação, meio ambiente, cooperação jurídica etc.

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possibilidade (e a realidade) de inspeções e intervenções, até mesmo armadas, de organismos internacionais em paí-ses que desrespeitem normas consideradas fundamentais pela sociedade internacional, dentre outros exemplos.

Pois bem. Uma das questões responsáveis por boa parte desse fenômeno foi por certo, e continua a ser, o tema da proteção dos direitos hurnanos34° e o processo de interna-cionalização dessa preocupação'''. O tema justificou inclu-

339 O fenômeno da proliferação das organizações internacionais é descrito em MELLO, Celso D. de Albuquerque. Curso de direito internacional público, vol. I, 2001, p. 573 e ss.. O autor traz alguns exemplos de organizações internacionais: Organização das Nações Unidas (ONU), Organização dos Estados Americanos (OEA), Organização Mundial do Comércio (OMC), Organização Internacional do Trabalho (OIT), Fundo Monetário Internacional (FMI), Organização de Aviação Civil Internacional (OACI), Organização Mundial de Saúde (OMS), entre outras.

340 A expressão direitos humanos é mais freqüente no debate internacional que direitos fundamentais. Alguns autores, com efeito, atribuem sentidos diversos às duas expressões. Direitos humanos seria a expressão reservada ao conjunto de direitos ideais, metafísicos, derivados da natureza do homem, ao passo que os direitos fundamentais seriam apenas aqueles reconhecidos por uma ordem jurídica positiva. Por essa razão a expressão direitos humanos seria a locução mais freqüentemente empregada na esfera internacional. CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição, 1997, p. 347 e ss..

341 Nessa linha, e mesmo fora da experiência da comunidade européia, vários países já alteraram suas Constituições para consagrar a superioridade hierárquica dos tratados internacionais de direitos humanos sobre o direito interno, como é o caso da Argentina (1994), Equador (1998) e Venezuela (1999). V. TORRES, Ricardo Lobo. "Direitos humanos e tributação nos países latinos". In: TORRES, Ricardo Lobo e MELLO, Celso Albuquerque (organizadores). Arquivos de direitos humanos, vol. III, 2001, p. 112 e ss.. O Brasil segue caminho semelhante. A recente Emenda Constitucional n° 45, de 8.12.2004, introduziu os seguintes parágrafos ao artigo 5' da Carta de 1988:

"§ 3° Os tratados e convenções internacionais sobre direitos

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sive a criação de uma nova disciplina, o Direito Internacio-nal dos Direitos Humanos, já introduzida em muitos cursos universitários342. Os principais organismos internacionais rnultilaterais343, de que fazem parte considerável parcela dos países do mundo, consideram a proteção dos direitos humanos um de seus objetivos principais e contam com instrumentos institucionais para realizá-law. Há um nú-

humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.

§ 40 0 Brasil se submete à jurisdição de Tribunal Penal Internacional a cuja criação tenha manifestado adesão.".

342 CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. A proteção internacional dos direitos humanos: fundamentos jurídicos e instrumentos básicos, 1991; PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional, 2000; BONAVIDES, Paulo. "Os direitos fundamentais e a Globalização". In: LEITE, George Salomão (organizador). Dos princípios constitucionais. Considerações em torno das normas principiologicas da Constituição, 2003, pp. 165 a 179; e PIOVESAN, Flávia. "Direitos humanos e o princípio da dignidade humana". In: LEITE, George Salomão (organizador). Dos princípios constitucionais. Considerações em torno das normas principiológicas da Constituição, 2003, pp. 193 a 195: "Consagra-se, assim, a dignidade humana como verdadeiro superprincípio a orientar o Direito Internacional e o Interno. (...) É no valor da dignidade humana que a ordem jurídica encontra seu próprio sentido, sendo seu ponto de partida e seu ponto de chegada, na tarefa de interpretação normativa. (...) Assim, seja no âmbito internacional, seja no âmbito interno (à luz do direito constitucional ocidental), a dignidade da pessoa humana é princípio que unifica e centraliza todo o sistema normativo, assumindo especial prioridade."

343 Destacam-se, entre outras, a ONU, a OEA e a OMC.

344 O Conselho Econômico e Social da ONU, por exemplo, conta com uma Comissão de Direitos Humanos. O ingresso na OMC depende de uma avaliação, feita pela organização, acerca da observação pelo país dos direitos humanos.

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mero enorme de atos internacionais (tratados, declarações etc.) abordando pontos relacionados com a proteção dos direitos humanos e praticamente todas as recentes intervenções patrocinadas por organismos internacionais pretenderam legitimar-se alegando a necessidade de prote-ção dos direitos das populações locais345.

Ou seja: o direito internacional encontra-se comprome-tido com a dignidade humana e com a proteção dos direitos humanos. Não é apenas a Constituição brasileira de 1988 que consagra a dignidade humana como fim central do sis-tema jurídico e do Estado, para o qual todos os demais elementos devem convergir. Não se trata de uma idiossin-crasia nacional. Também o direito internacional comparti-lha dessa mesma opção substantiva346 e, portanto, o parâ-metro proposto neste capítulo pode contar com fundamen-tação não apenas no direito interno, mas também no direito internacional.

345 Seguem alguns exemplos de resoluções do Conselho de Segurança da ONU que autorizaram a intervenção militar em Estados membros por razões humanitárias: Resolução n° 688/1991 — Intervenção humanitária no Iraque em função da repressão aos Curdos; Resolução n° 794/1992 — Intervenção humanitária na Somália, pois o país estava em estado de anarquia decorrente da guerra civil entre várias facções; Resolução n" 929/1994 — Intervenção humanitária na Ruanda em razão das guerras étnicas entre tutsis e hutus; Resolução n° 940/1994 — Intervenção humanitária no Haiti decorrente do golpe de Estado efetuado pelos militares que levou o pais à guerra civil; Resolução n° 770/1992 — Intervenção humanitária na Bosnia-Herzegovina em razão da guerra civil separatista empreendida pelo Estado; Resolução n° 1244/1999 — Intervenção militar em Kosovo também por razões humanitárias. Os textos estão disponíveis em http://www.un.org/documents/. V. sobre o tema, RODRIGUES, Simone Martins. Segurança internacional e direitos humanos: a prática da intervenção humanitária no pós-guerra fria, 2000.

346 Sobre o tema, v. PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional, 2000.

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Neste ponto, todavia, é preciso fazer uma observação. Não se pode ignorar que o aparente consenso acerca dos direitos humanos na esfera internacional enfrenta algumas dificuldades. A primeira dificuldade está relacionada com o descompasso entre esses padrões supostamente univer-sais e a realidade institucional e cultural de muitos países, especialmente os não ocidentais ou de tradições diversas das ocidentais347.

A segunda, se desenvolve no plano teórico e, alimenta-da de certa maneira pela primeira, manifesta-se na forma de um conjunto de questionamentos: O que significa a lo-cução direitos humanos? De que direitos se está tratando afinal? A tentativa de universalizar o discurso dos direitos humanos não seria uma modalidade de imposição e domi-nação culturais de um produto tipicamente ocidental sobre culturas totalmente diferentes? O que legitima essa impo-sição? Ou, pior, o tema dos direitos humanos — até por sua fluidez — não se prestaria facilmente a operar como urna justificativa ideológica e moral para um neo-imperialismo político e econômico ocidental? Esse é o debate que opõe, de um lado, aqueles que sustentam a universalidade dos direitos humanos — os universalistas — e os que criticam esse entendimento — os culturalistas, regionalistas ou rela-tivistas. Entre esses dois extremos, por evidente, há um conjunto de posições intermediárias'''.

347 É certo que também muitos países ocidentais não implementam esses padrões, mas em geral o problema nesses casos não é de oposição cultural, mas de ineficiência político-administrativa, falta de recursos, prioridades distorcidas, ou, ainda, de uma concepção específica acerca do sentido dos direitos humanos em determinadas circunstâncias, dentre outros fatores. V. MAIA, Antônio Cavalcanti. "Direitos humanos e a teoria do discurso do direito e da democracia". In: TORRES, Ricardo Lobo e MELLO, Celso Albuquerque (organizadores). Arquivos de direitos humanos, vol. II, 2000, p. 5 e ss..

348 V. WALZER, Michael. Spheres of Justice —A Defense of Pluralism

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A questão é complexa, não admite uma resposta sim-plista e cabe aqui apenas registrá-la. Nada obstante, uma nota importante deve ser feita. Um exame dos atos inter-nacionais'49 sobre direitos humanos revela, ao contrário do que talvez se pudesse imaginar, que entre seus subscritores não se encontram apenas países ocidentais ou ocidentaliza-dos'', mas também diversos países africanos e asiáticos, de tradições culturais totalmente diversas das ocidentais"'. É certo que as formulações dos atos internacionais são muitas vezes providencialmente genéricas e que o discurso exter-no dos países não é necessariamente coerente com sua rea-lidade interna, jurídica, histórica ou cultural. Também se-ria ingenuidade ignorar que, por vezes, a subscrição de um ato internacional está mais relacionada com outros interes-

and Equality, 1983, p. 9 e ss.; e, do mesmo autor, Thick and Thin. Moral Argionent at Home and Abroad, 1994, p. 8 e ss.. 349 Aí incluídos de tratados a meras declarações. As declarações veiculam em geral valores de grande relevância e caráter duradouro e têm ampla influência nas relações internacionais, mas não possuem força jurídica impositiva imediata. Apenas após serem amplamente reconhecidas é que são consideradas fontes de direito, como é o caso da Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948. Os tratados (e também as convenções, pactos e protocolos), por outro lado, são firmados pelas pessoas de Direito Internacional com o objetivo de produzir efeitos de direito em suas relações mútuas e, em geral, passam a integrar o direito interno dos países com a ratificação. V. o Dicionário da Cidadania, disponível em www.dhnet.org.br (acesso em 12.09.2004).

350 Como, ainda que em parte, Austrália, Nova Zelândia e Israel, dentre outros.

351 O art. 4° da Carta Geral das Nações Unidas de 1945, por exemplo, admitiu como países membros, dentre outros, Afeganistão, Azerbaijão, Albânia, Coréia do Sul, Coréia do Norte, Emirados Árabes, Kuait, Nigéria, Paquistão, Somália, Tailândia, Uganda, Uzbequistão, Zâmbia e Zimbábue. Também a Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948 foi assinada por países como o Afeganistão, a China, a Etiópia, o Irã, o Iraque, o Líbano, o Paquistão e a Tailândia.

ses que com a decisão do Estado de implementar o conteú-do do ato. De todo modo, é sintomático que ainda assim os governos se sintam compelidos a expressar compromissos com a dignidade humana e com os direitos humanos.

Não há dúvida de que o debate entre universalismo e culturalismo, identificado acima, além da relevância filosó-fica, será vital no momento em que seja necessário delinear concretamente que direitos devem ser considerados direi-

tos humanos e o que pode ser feito para impor seu cumpri-mento, sobretudo em ambientes de tradição cultural e ins-titucional diversa da ocidental. Nada obstante isso, no nível teórico, é possível dizer que há confortável consenso na esfera internacional acerca da prioridade do homem e do seu bem estar.

Além disso, o objetivo deste estudo é apresentar uma proposta operacional de parâmetros para a técnica da pon-deração dirigida à realidade jurídica ocidental. Desse modo, o debate universalismo versus culturalisrno não im-pede que se afirme, para os fins aqui em vista, que também a sociedade internacional compartilha da opção material pela dignidade humana como valor fundamental da ordem jurídica, ainda que no plano teórico e talvez em extensão menor que o direito interno352. É o que basta para funda-

352 É apenas natural que haja dificuldade na construção de uma teoria universalmente válida sobre os direitos humanos, já que o direito é sempre experiência cultural e histórica. Isso não impede, ao contrário, que se formulem teorias contextualizadas e válidas nesses ambientes. V. LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito, 1969, p. 158: "A validade objectiva de qualquer experiência imediata de valores é indemonstrável. O subjectivismo judicial, por outro lado, harmoniza-se mal com a exigência de decisões uniformes e com a necessidade de segurança jurídica. Afigura-se assim que a questão dos critérios de valor não pode receber resposta satisfatória. A verdade, porém, é que a experiência demonstra que em matéria de valor é também possível um

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mentar a prioridade das normas que de forma direta pro-movem a dignidade humana quando em confronto com ou-tras que estão associadas a esse objetivo apenas de forma indireta.

Os dois elementos que se acaba de apresentar — direi-to interno e internacional — são mais do que suficientes para fundamentar o parâmetro aqui em discussão. Em pri-meiro lugar, como se acaba de sublinhar, porque o universo de trabalho deste estudo é o sistema jurídico ocidental, que comunga, tanto na esfera interna, como internacional, de consensos materiais acerca da dignidade humana e dos di-reitos fundamentais. Ademais, o risco da indefinição ou de uma ampliação excessiva do conceito jurídico de proteção e promoção da dignidade humana — real nas discussões internacionais —, é bastante reduzido no contexto da pro-posta deste estudo.

Como já exposto, o primeiro parâmetro a ser emprega-do no processo ponderativo consagra a preferência das re-gras sobre os princípios (sua área não nuclear, na verdade). Assim, no mais das vezes, o segundo parâmetro lidará ape-nas com disputas envolvendo regras353, o que restringe con-

consenso, e que há portanto critérios de valor que — pelo menos numa época e numa comunidade cultural determinadas — são reconhecidos de modo dominante. (...) Se extrairmos desta ordem 'positiva' de valores princípios jurídicos susceptíveis de fornecer orientação ao legislador e ao juiz, obteremos uma espécie de Direito natural relativo, constituído pelos valores que são objectos de experência histórica — isto é, que se dão à consciência do homem na realidade histórica de determinada época."

353 Em tese, o segundo parâmetio poderá ter de lidar com normas oriundas de um conflito do tipo regra versus regra ou do tipo área não nuclear de princípio versus área não nuclear de princípio. Esta segunda hipótese, bastante incomum, terá lugar quando a questão não seja regulada por regra alguma. Nesse caso, como já determinava a Lei de Introdução ao Código Civil, o intérprete terá de recorrer à analogia, ao costume e aos princípios afinal, ainda que em sua área não nuclear.

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sideravelmente a possibilidade de ampliação pelo intérpre-te do conceito geral de dignidade humana. É certo que resta o problema de delinear o núcleo dos princípios, que terão natureza de regra: esse tema será retomado no último capítulo.

Como referido, os dois fundamentos apresentados até este ponto para o parâmetro em questão fundam-se em consensos substanciais, isto é, opções de conteúdo valorati-vo. Não se pode, no entanto, ignorar a constante crítica filosófica e política que tem se voltado contra o emprego dessa espécie de consenso como fundamento de qualquer construção teórica ou como elemento de legitimação de estruturas sociais e jurídicas, não apenas na esfera interna-cional, mas também no âmbito do direito interno354.

O fundamento desse ceticismo acerca de consensos materiais repousa, em última análise, na percepção de uma sociedade (interna e internacional) cada vez mais plural, dividida por concepções as mais diversas acerca de defini-ções valorativas (o que é a justiça, o bem ou o belo), ten-dências políticas e ideológicas, opções pessoais de vida355, dentre tantos outros aspectos. A revisão das grandes ideo-

354 HABERMAS, Jurgen. Direito e democracia entre facti cidade e validade, vol. I, 2003; CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Jurisdição

constitucional democrática, 2004, p. 135 e ss.; POZZOLO, Suzanna. "Un constitucionalismo ambíguo". In: CARBONELL, Miguel (organizador).

Neoconstitucionalismo(s), 2003, p. 187 e ss.; e BARBEAIS, Mauro. "Neoconstitucionalismo, democracia e imperialismo de la moral". In: CARBONELL, Miguel (organizador). Neoconstitucionalismo(s), 2003, p.

259 e ss..

355 V. WALZER, Michael. Spheres of Justice —A Defense of Pluralism and Equality, 1983; ALMEIDA, Ricardo. "A critica comunitarista ao liberalismo". In: TORRES, Ricardo Lobo (coordenador). Teoria dos direitos fundamentais, 1999; e CITADINO, Gisele. Pluralismo, direito e justiça distributiva — Elementos da filosofia constitucional contemporânea, 1999, p. 159 e ss..

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logias do século XX, com a decadência do socialismo histó-rico e a crise do Estado de bem estar social, agravou ainda mais esse quadro. De acordo com esses críticos, não é pos-sível identificar um consenso material compartilhado pelos diversos grupos dentro da sociedade de modo que, por essa razão, não é possível empregar tais consensos como funda-mento legitimador de decisões ou estruturas no âmbito da sociedade política.

Já que não é viável concluir, sob urna perspectiva co-mum a todos, que determinada solução é materialmente boa ou justa, tudo o que se pode pretender é a existência de um procedimento para a tomada de decisões que, por suas características, ainda que apenas formais, possa legitimar as decisões que venham a ser apuradas. Ou seja: corno não se pode controlar o resultado produzido ao final desse proce-dimento, uma vez que isso exigiria um juízo de natureza material, os autores, a partir de diferentes pressupostos e com propósitos igualmente diversos, ocupam-se de discu-tir modelos procedimentais, suas características, seus pres-supostos e as condições necessárias para seu desenvolvi-mento.

Esse elemento procedimentalista e crítico dos consen-sos materiais, em maior ou menor intensidade, está presen-te em diferentes construções teóricas contemporâneas. John Rawls (Uma teoria da justiça e Liberalismo políti-co356) emprega o raciocínio procedimental ao discutir prin-cípios para ordenação da sociedade justa. Na formulação do autor, esses princípios são concebidos a partir de um modelo de "justiça processual pura"3" no qual, dentre ou-

tros condicionantes, indivíduos cru um estado original e sob o "véu da ignorância" firmam um novo contrato social sem saber quais serão suas convicções valorativas e ideoló-gicas na sociedade. O conteúdo do novo contrato social não pode depender das concepções materiais dos participantes e nem se justifica com base nelas; sua legitimidade está fundada na correção do procedimento por meio do qual foi possível chegar aos princípios propostos pelo autor. E certo que Rawls não adota um procedimentalismo radical: fixa-dos esses princípios no momento inicial, as deliberações

para alcançá-lo. Na justiça processual perfeita, há um padrão independente e preciso para decidir qual o resultado justo, bem como uni procedimento que garante a obtenção de tal resultado. O autor reconhece que esta situação é ideal, não se verificando na prática de forma relevante. Por outro lado, a característica da justiça processual imperfeita é que, embora haja um critério independente para determinar qual o resultado correto, não há qualquer processo prático que assegure que ele será atingido. Por fim, a justiça processual pura aplica-se quando não há critério independente para o resultado justo, mas existe um processo correto ou equitativo que, devidamente aplicado e respeitado, permite que o resultado, seja ele qual for, seja igualmente correto ou equitativo. Este é o modelo adotado pelo autor em sua teoria já que, como conseqüência da diversidade individual de projetos e concepções de vida e de justiça, Rawls entende que não há um resultado justo pré-estabelecido e consensual entre os homens. O que a sua teoria da justiça pretende é estabelecer um procedimento equitativo que conduza a um resultado, se não justo, ao menos não injusto. V. John Rawls, Uma teoria da justiça, 1993, p. 86 e ss.. V. também TORRES, Ricardo Lobo. A teoria da justiça de Rawls e o pensamento de esquerda, Revista da Faculdade de Direito da UERJ n° 5, pp. 157 a 175, 1997; BARCELLOS, Ana Paula de. "O mínimo existencial e algumas fundamentações: John Rawls, Michael Walzer e Robert Alexy". In: TORRES, Ricardo Lobo (organizador). Legitimação dos direitos humanos, 2002; e SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. "Fundamentação e normatividade dos direitos fundamentais: uma reconstrução teórica à luz do principio democrático". MELLO, Celso de Albuquerque e TORRES, Ricardo Lobo (organizadores). Arquivos de direitos humanos, vol. IV, 2002, p. 49.

356 RAWLS, John. Uma teoria da justiça, 1993; e Liberalismo político, 1992. . 357 Rawls confronta três noções correlatas: a justiça processual perfeita, a justiça processual imperfeita e a justiça processual pura. Cada uma delas vai trabalhar com dois elementos: a qualidade do resultado e o processo

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públicas posteriores (inclusive as relacionadas com o con-teúdo da Constituição e das leis) estão a eles vinculadas para o fim de aplicá-los e desenvolvê-los359.

A concepção de Jurgen Habermas acerca da razão co-municativa adota a lógica procedimental de forma muito mais abrangente359. Para Habermas, a legitimação do direi-to nas sociedades contemporâneas deve ser construída a partir do consenso obtido por meio da comunicação e diá-logo públicos, e não a partir de argumentos autoritativos ou consensos materiais prévios"°. Sendo assim, a deliberação pública está aberta a qualquer resultado final no que diz respeito ao seu conteúdo, justificando-se na medida em que o procedimento seja adequado"'.

358 Sobre esse elemento substancialista ou material da teoria de Rawls, veja-se a bela tese de doutorado de Cláudio Pereira de Souza Neto, ainda em mimeo, Teoria constitucional e democracia deliberativa, 2004. 359 Para um exame mais amplo do pensamento de Habermas sobre o ponto, v. MAIA, Antônio Cavalcanti. "Direitos humanos e a teoria do discurso do direito e da democracia". In: TORRES, Ricardo Lobo e MELLO, Celso Albuquerque (organizadores). Arquivos de direitos humanos, vol. II, 2000, pp. 3 a 80.

360 HABERMAS, Jurgen. Direito e democracia entre facticidade e validade, vol. I, 2003, p. 154 e ss.; CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Jurisdição constitucional democrática, 2004, p. 193 e ss.; e CANOTILHO, J. J. Gomes, Direito constitucional e teoria da Constituição, 1998, p. 1310 e ss..

361 MAIA, Antônio Cavalcanti. "Direitos humanos e a teoria do discurso do direito e da democracia". In: TORRES, Ricardo Lobo e MELLO, Celso Albuquerque (organizadores). Arquivos de direitos humanos, vol. II, 2000, pp. 22 a 27: "A ética do discurso pode ser caracterizada como uma ética da argumentação. (...) Além da ética do discurso apresentar-se como universalista, cognitivista e deontológica, ela também possui uma característica formalista (...) Afinal, uma ética formalista deve poder fornecer um princípio que justificadamene consiga dirimir questões prático-morais litigiosas por meio de um acordo racional motivado. Por

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Essas reflexões de cunho predominantemente filosófi-co refletem sobre a Teoria do Direito em geral e, em parti-cular, sobre a Teoria da Constituição. O chamado constitu-cionalismo procedimental trabalha justamente com a idéia de que as opções de caráter material, valorativo, devem ficar a cargo da deliberação majoritária em cada momento histórico362, cabendo à Constituição tratar apenas das re-gras e procedimentos necessários para o funcionamento das estruturas democráticas353. Embora haja nesse caso toda uma fundamentação democrático-majoritária para a teoria (que, a rigor, não deixa de ser uma opção material),

conseguinte, esta característica implica que os conteúdos morais surgirão da própria vida social, por meio dos embates travados pelos próprios interessados, os quais, seguindo a moldura argumentativa proposta pela ética do discurso, podem chegar consensualmente a acertar suas diferenças. De modo algum o teórico, dentro da perspectiva da ética comunicativa, assume a posição de quem pode indicar padrões axiológicos; o que ele sustenta é a inevitabilidade do reconhecimento de determinadas regras de argumentação provenientes de uma análise interna das propriedades da comunicação lingüística em geral. A ética do discurso é um veículo para a reflexão sistemática acerca do problema de como obter um acordo racionalmente motivado em uma sociedade pluralista."

362 Veja-se, sob uma perspectiva diversa, SUNSTEIN, Cass R. Legal Reasoning and Political Conflict, 1996.

363 ELY, John Hart. Democracy and Distrust. A Theoty of Judicial Review, 1980; VIEIRA. Oscar Vilhena. A Constituição e sua reserva de justiça, 1999, p. 213 e ss.; BINENBOJM, Gustavo. A nova jurisdição constitucional brasileira, 2001, p. 93 e ss.; PIRES, Francisco Lucas. "Legitimidade da justiça constitucional e principio da maioria". In: Legitimidade e legitimação da justiça constitucional — Colóquio no 100 aniversário do Tribunal Constitucional, 1995, p. 167 e ss.; e HAGE SOBRINHO, Jorge. "Democracy and distrust — A Theoly of judicial review" — John Hart Ely: resumo e breves anotações à luz da doutrina contemporânea sobre interpretação constitucional, Arquivos do Ministério da Justiça n°48 (186), 1995, pp. 201 a 225.

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o constitucionalismo procedimental se funda também no pressuposto de que, além de indesejável, na verdade seria inviável contar com consensos materiais permanentes.

Há, no entanto, um aspecto fundamental a ser observa-do aqui. As diferentes teorias que incorporam elementos procedimentais, e é o que acontece com os exemplos lista-dos nos parágrafos anteriores, assumem como pressuposto a igualdade de todos os indivíduos364 e, a fortiori, uma pri-meira característica legitimadora dos diferentes modelos procedimentais por eles propostos deverá ser seu caráter democrático365. Ora, a conseqüência direta desses pressu-postos — a igualdade e o caráter democrático do procedi-mento — é a necessidade de assegurar a liberdade das pes-soas para que elas possam participar do procedimento. E, para que essa liberdade possa ser exercida em condições razoáveis, exige-se também um conjunto mínimo de condi-ções materiais, como educação, alimentação, etc.

Habermas registra exatamente que o funcionamento adequado de sua proposta exige um conjunto de condições ou pré-requisitos. É necessário manter livres e desobstruí-

364 AARNIO, Aulis. Reason and Authority, 1997, p. 217 e ss.; e ALEXY, Roberto. Derechos, razonamietzto jurídico e discurso racional. Revista Isonoinia n° 1, 1994, pp. 48 e 49: "Para el argumento que quiero presentar ahora, solo necesito la idea de libertad e igualdad en los argumentos, que es la base normativa de la teoria dei discurso. La teoria del discurso sostiene que una argumentación que excluye o suprime personas o argumentos — excepto por razones pragmáticas que tienen que ser justificadas — no es una argumentación racional, y que las justificaciones que se obtienen de la misma soa defectuosas. (...)Mi tesis es que el resultado de un discurso racional seria un sistema de derechos fundamentales que incluya una preferencial prima facie de los derechos individuales sobre los bienes colectivos."

365 O que, a rigor, não deixa de ser uma opção material de caráter valorativo.

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dos os canais de participação popular, por exemplo. E, igualmente, cada indivíduo deve ter respeitado um conjun-to básico de direitos fundamentais, sem os quais ele não terá condições de exercer sua liberdade, de participar cons-cientemente do processo político democrático e do diálogo no espaço público366. Em outras palavras, o sistema de diá-logo democrático não tem como funcionar de forma mini-mamente adequada se as pessoas não tiverem condições de dignidade ou se seus direitos, ao menos em patamares mí-nimos, não forem respeitados.

Na mesma linha, o constitucionalismo procedimental reconhece que, além de regras puramente procedimentais (como a disciplina das eleições e da separação de poderes), as Constituições também devem tratar da proteção de di-reitos fundamentais367. Na verdade, o regime democrático depende de todos os cidadãos terem assegurado um con-junto mínimo de direitos que permita sua participação livre e consciente na formação da vontade majoritária. Note-se

366 HABERMAS, Jurgen. Direito e democracia entre facticidade e validade, vol. I, 2003, p. 154 e ss.; MAIA, Antônio Cavalcanti. "Direitos humanos e a teoria do discurso do direito e da democracia". In: TORRES, Ricardo Lobo e MELLO, Celso Albuquerque (organizadores). Arquivos de direitos humanos, vol. II, 2000, p. 58 e ss.; NASCIMENTO, Rogério Soares do. "A Ética do discurso como justificação dos direitos fundamentais na obra de Jürgen Habermas". In: TORRES, Ricardo Lobo

(organizador), Legitimação dos direitos humanos, pp. 451 a 498, 2002;

BINENBOJM, Gustavo. A nova jurisdição constitucional brasileira, 2001, p. 47 e ss.; e SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. "Fundamentação e normatividade dos direitos fundamentais: uma reconstrução teórica à luz do principio democrático". In: TORRES, Ricardo Lobo e MELLO, Celso de Albuquerque (organizadores). Arquivos de direitos humanos, vol. IV, 2002. 367 BAYÓN, Juan Carlos. "Derechos, Democracia y Constitución". In: CARBONELL, Miguel (organizador). N eoconstitucionalismo (s), 2003, p.

225 e ss..

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que esses direitos deverão ser respeitados quer se faça par-te da maioria ou não368. Se a maioria pudesse violar os direi-tos da minoria, ela poderia destruir o próprio sistema de-mocrático, obstruindo os canais de participação e instalan-do uma ditadura do grupo majoritário naquele momento histórico369.

368 Sobre o tema das relações democracia e direitos fundamentais, v. Landelino Lavilla. "Constitucionalidad y legalidad. Jurisdiccion constitucional y poder legislativo". In: Division de poderes e interpretacion — Hacia una teoria de la praxia constitucional, PINA, Antonio Lopes (organizador), 1997, pp. 58 a 72; QUADRA, Tomás de la; PERGOLA, Antonio La; GIL, Antonio Hernández; RODRIGUEZ-ZAPATA, Jorge Gustavo; ZAGREBELSKY; BONIFACIO, Francisco P.; DENNINGER, Erhardo e HESSE, Conrado. "Metodos y criterios de interpretacion de la constitucion". In: PINA, Antonio Lopes (organizador). Division de poderes e interpretacion — Hacia una teoria de la praxia constitucional, 1997) p. 134; e SEGADO, Francisco Femández. La teoria jurídica de los derechos fundamentales en la Constitución Espariola de 1978 y en su interpretacion por el Tribunal Constitucional, Revista de Informação Legislativa n° 121, 1994, p. 77: "(...) los derechos son, simultaneamente, la conditio sine qua non dei Estado constitucional democrático." 369 Essa observação é comum a procedimentalistas e substancialistas, como se vê da observação de um não procedimentalista como DWORKIN, Ronald. Freedom's Law. The Moral Reading of the American Constitution, 1996, pp. 17 e 18: "Democracy means govemment subject to conditions — we might call these the 'democratic' conditions — of equal status for ali citizens. When majoritarian institutions provide and respect the democratic conditions, then the veredicts of these institutions should be accepted by everyone for that reason But when they do not, or when their provision or respect is defective, there can be no objection, in the name of democracy, to other procedures that protect and respect them better. The democratic conditions plainly include, for example, a requirement that public offices must in principie be open to members of ali races and groups on equal terms. If some law provided that only mernbers of one race were eligible for public office, then there would be no moral cost — no matter for moral regret at ali — if a court that enjoyed the power to do so under a valid constitution struck down

Por fim, também Rawls reconhece que o funcionamen-to de seu modelo de justiça processual pura pressupõe logi-camente a garantia não apenas de liberdades aos indiví-duos, mas também de condições elementares de existência material. Com efeito, o autor registra que, para que o pro-cedimento decidido pelos indivíduos no estado original seja verdadeiramente eqüitativo, é necessário que eles te-nham assegurado um conjunto de direitos, que deve incluir os direitos de liberdade e condições materiais mínimas para o exercício dessas liberdades. A falta desse pressupos-to, o processo deixa de ser eqüitativo, arruinando a lógica procedimental concebida pelo autor"°.

that law as unconstitutional. That would presumably be an occasion on which the majoritarian premise was flouted, but though this is a matter of regret according to the majoritarian conception of democracy, it is not according to the constitutional conception." No mesmo sentido, v. MARTINEZ, Gregorio Peces-Barba. Derechos sociales y positivismo jurídico, 1999, p. 57: "El primer argumento pues, para defender su inclusión en la categoria genérica de los derechos fundamentales, pasa por este reconocimiento de la conexión de los derechos económicos, sociales y culturales, con la generalización de los derechos políticos. Su objetivo era la igualdad a través de la satisfacción de necesidades básicas, sin Ias cuales muchas personas no podián alcanzar los niveles de humanidad necesarios para disfrutar de los derechos individuales, civiles y políticos, para participar en plenitud en la vida política y para disfrutar de sus beneficios."; PEREZ LUNG, Antonio Enrique. Derechos humanos, Estado de derecho y Constitucion, 1999, p. 227.; e ESPADA, João Carlos. Direitos sociais e cidadania, 1999; e GARCIA, Maria. Implicações do princípio constitucional da igualdade, Revista de Direito Constitucional e Internacional n° 31, 2000, p. 109 e ss.. 370 RAWLS, John. Uma teoria da justiça, 1993, p. 221. V. também pp. 81 e 222. Mais eapercificamente, vale conferir os seguintes trechos de seu Liberalismo político, 1992,pp. 32 e 33: "En especial, el primer principio, que abarca los derechos y libertades iguales para todos, bien puede sir precedido de un principio que anteceda a su formulación, el cual exija que las necesidades básicas de los ciudadanos sean satisfechas, cuando menos en la medida en que su satisfacción es necesaria para que los ciudadanos

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Ainda que não se compartilhe inteiramente da posição descrita acima do ponto de vista filosóficom e, mais que isso, que ela não produza um impacto tão importante do ponto de vista operacional no funcionamento do parâmetro aqui em discussão (já que o estudo ocupa-se de uma pro-posta jurídica, e não filosófica, destinada a operar em um sistema constitucional que já fez uma opção material pela dignidade humana, como é o caso da Carta de 1988), há aqui um ponto que merece ser sublinhado. Mesmo concep-ções que operam com categorias essencialmente procedi-mentais acabam por reconhecer que os direitos fundamen-tais terão de ser prioritariamente respeitados, ainda que sob fundamentos diferentes e provavelmente em extensão menor do que a pretendida pelos fundamentos materiais de direito interno e internacional.

Em suma: seja por se tratar de uma opção material cla-ramente perceptível na Constituição de 1988, seja por de-correr de um consenso universal, seja pela necessidade de construir um ambiente no qual procedimentos democráti-cos e eqüitativos possam funcionar, a prioridade das nor-mas que diretamente promovem a dignidade — quando em conflito insuperável com outras cuja relação com o bem estar individual seja apenas indireta — encontra-se ampla-mente justificada do ponto de vista jurídico e racional.

entiendan y puedan ejercer fructiferamente esos derechos y esas libertades. Ciertamente, tal principio precedente debe adoptarse al aplicar el primer principio.".

371 Para urna crítica às teses procedimentalistas, v. BONAVIDES, Paulo. A constituição aberta, 1996, p. 33 e ss. (embora o autor se ocupa mais especificamente do procedimentalismo sociológico, suas reflexões podem ser generalizadas); e STRECK. Lênio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica. Unia nova crítica do direito, 2004, p. 147 e ss..

Um exemplo do emprego desse parâmetro pode ser observado na interpretação que significativa parte da dou-trina — a nosso ver com acerto—confere ao art. 213, § 1° da Constituição Federal, referente à destinação dos recur-sos públicos na educação. O dispositivo tem a seguinte dic-ção:

"§ 1° Os recursos de que trata deste artigo poderão ser destinados abolsas de estudo para o ensino fundamental e médio, na forma da lei, para os que demonstrarem insuficiência de recursos, quando houver falta de vagas e cursos regulares da rede pública na localidade da resi-dência do educando, ficando o Poder Público obrigado a investir prioritariamente na expansão de sua rede na localidade."

A leitura imediata do enunciado leva o intérprete à se-guinte conclusão: não havendo vagas suficientes na rede pública de ensino, e enquanto o Poder Executivo investe na sua expansão, caberá ao Legislativo disciplinar a concessão de bolsas de estudo para o ensino fundamental e médio para os que demonstrem insuficiência de recursos. Mas e se não houver vagas na rede pública e nem lei regulando a matéria? Poderá o Judiciário, provocado, determinar a con-cessão de bolsas de estudo?

A resposta de boa parte da doutrina à pergunta que se acaba de formular é positiva. O conflito normativo no caso pode ser desenhado, resumidamente, da seguinte forma. Os princípios da legalidade e da separação de poderes exi-gem a lei para que as bolsas de estudo sejam concedidas, já que a decisão envolve dispêndio de recursos públicos, exi-gência que afinal consta do próprio dispositivo com nature-za de regra, por meio da locução na forma da lei. De outra parte, os enunciados que consagram o direito fundamental

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à educação — no caso do ensino fundamental claramente sob a forma de regra — postulam que, de alguma forma, o indivíduo tenha acesso ao ensino fundamental e médio e possa usufruir desse direito.

Qual deve ser a escolha então? Atender à regra que exige lei prevista no dispositivo, e assim manter fora da escola um indivíduo sem recursos para obter educação for-mal por outro meio? Ou obedecer à regra constitucional sobre educação fundamental e admitir a concessão de bol-sas mesmo na ausência de lei? Qual das duas normas deve prevalecer?

Em atenção à centralidade constitucional da pessoa hu-mana, de sua dignidade e dos direitos fundamentais, diver-sos autores têm concluído que é preferível restringir par-cialmente os princípios da legalidade e da separação dos poderes, que se relacionam indiretamente com o bem estar do homem no caso, e assesurar ao indivíduo o acesso à escola a fazer o inverso372. E possível cogitar-se, inclusive, para que a regra ("na forma da lei") não seja completamen-te ignorada, que ela se destina apenas ao Executivo, que não poderá, sem lei, conceder bolsas de estudo em escolas privadas, ao invés de investir na expansão da rede pública. O Judiciário, no entanto, não estará limitado por essa res-trição, mesmo porque, no momento em .que a disputa che-ga ao Judiciário, isso significa que nem o Poder Executivo ofereceu vagas na rede pública e nem o Legislativo regula-mentou a concessão de bolsas.

372 V. BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais — O princípio da dignidade da pessoa humana, 2002, p. 260 e ss.; BARROSO, Luis Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas, 2003, p. 114 e ss.; e SANTOS, Marcelo de Oliveira Fausto Figueiredo. As normas programáticas — Uma análise político-constitucional, Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política n° 16, 1996, p. 119 e ss..

Note-se um aspecto interessante. Na hipótese, não foi sequer necessário afastar a regra que exigia lei: bastou con-ferir-lhe uma interpretação capaz de acomodar a preferên-cia em favor dos direitos do indivíduo. Como registrado ao tratar da terceira etapa da ponderação, sempre que possível convém evitar que algum dos enunciados em conflito seja totalmente esvaziado.

Em resumo do que se expôs até aqui é possível registrar o seguinte. Os dois parâmetros descritos, neste capítulo e no anterior, têm natureza geral, isto é, procuram fornecer ao intérprete preferências racionais e juridicamente consis-tentes para a solução dos conflitos normativos que, por suas peculiaridades, exijam o emprego da ponderação. A prefe- rência das regras sobre os princípios orienta o intérprete na primeira fase da ponderação, quando são identificados os enunciados relevantes. A preferência das normas que pro-movem diretamente a dignidade opera na terceira fase, momento em que as normas propriamente ditas já foram apuradas

Entre a primeira e a terceira fases da ponderação, po-rém, há uma etapa intermediária, na qual são identificados os fatos relevantes, atribuídos pesos aos elementos norma- tivos e afinal construídas as normas em disputa, que conti-nua desvinculada de qualquer parâmetro objetivo. Na ver- dade, a construção de parâmetros ou standards capazes de orientar o intérprete nesse momento depende do estudo da casuística dos conflitos. Aqui será preciso construir pa- râmetros específicos para cada tipo de conflito de que se possa cogitar, seja por meio do levantamento de casos reais, e nesse sentido o estudo da jurisprudência é da maior im-portância, seja pela elaboração teórica de conflitos hipoté-ticos.

Este trabalho não se ocupa de examinar ou propor parâ-metros para conflitos específicos, já que cada um deles exi-

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ge um estudo particular e demanda uma pesquisa autôno-ma373. O objetivo do próximo capítulo é apenas propor ele-mentos que possam auxiliar a construção desses parâme-tros particulares.

373 Em importante estudo, Daniel Sarmento examina a tensão entre direitos fundamentais nas relações entre particulares e propõe dois parâmetros principais que deverão orientar o intérprete na decisão dessa espécie de conflito: (i) a desigualdade fática entre as panes da relação jurídica e (ii) a circunstância de a questão controvertida envolver opções existenciais da pessoa ou decisões de caráter patrimonial ou económico. Confira-se, SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas, 2004, pp. 375 e 376: "31. Para conferir maior previsibilidade e reduzir as margens de arbítrio na ponderação judicial de interesses ligada à aplicação de direitos fundamentais nas relações entre particulares, é importante delinear alguns standards. Todavia, nesta matéria não há como fugir completamente de uma análise tópica, voltada para as peculiaridades de cada caso concreto. 32. Um dos parâmetros importantes nesta questão liga-se ao grau de desigualdade fática entre as partes da relação jurídica. A assimetria de poder numa determinada relação tende a comprometer o exercício da autonomia privada da parte mais fraca, expondo a um risco maior seus direitos fundamentais. Por isso, quanto mais a relação for assimétrica, maior será a vinculação da parte mais forte ao direito fundamental em jogo, e menor a tutela da autonomia privada. Sem embargo, mesmo nas relações tendencialmente iguais, os direitos fundamentais incidem, para impor um mínimo de respeito à dignidade da pessoa humana, que é irrenunciável. 33. Nestas ponderações, outro fator relevante é a natureza da questão sobre a qual gravita a controvérsia. Nas questões ligadas as opções existenciais da pessoa, a proteção à autonomia privada é maior. Já nos casos em que a autonomia do sujeito de direito ligar-se a alguma decisão de cunho puramente econômico ou patrimonial, tenderá a ser mais intensa a tutela ao direito fundamental contraposto. Nestas relações patrimoniais, por sua vez, a proteção da autonomia privada será maior, quando estiverem em jogo bens considerados supérfluos para a vida humana, .e menor quando o caso envolver bens essenciais para a dignidade da pessoa."

X. Parâmetros específicos: Elementos para sua construção ou um roteiro para a ponderação preventiva ou abstrata

Os parâmetros específicos ou particulares, como já se registrou, destinam-se a orientar de forma mais precisa a solução dos conflitos a partir da análise das características próprias dos diferentes elementos normativos em disputa e das circunstâncias concretas que os envolvem. Eles não dis-pensam o uso dos parâmetros gerais; ao contrário, em seu processo de construção os parâmetros gerais devem ser in-corporados, como se verá adiante.

De forma simples, o esforço associado à definição de parâmetros específicos tem por objetivo delinear da forma mais precisa possível o sentido de cada enunciado e as prin-cipais normas que dele derivam. Para isso devem ser leva-dos em conta sua própria estrutura normativa, as circuns-tâncias de fato envolvidas em sua aplicação com maior fre-qüência, outros elementos normativos existentes no siste-ma que o limitam (ou até mesmo que com ele se chocam em determinados ambientes) e as diferentes normas que surgem nesses contextos. Uma vez que o universo de cada enunciado seja mapeado sob essa perspectiva múltipla, o

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intérprete terá a sua disposição — para sua instrução e tam-bém para o controle de sua atuação — uma quantidade importante de parâmetros e preferências abstratas374. A partir delas será mais fácil visualizar, em cada caso real, os elementos de fato relevantes e os pesos que devem ser atribuídos aos diferentes conjuntos normativos ao longo do processo de ponderação.

É certo que não se pode pretender antecipar por inteiro as complexidades da vida real para o fim de identificar todas as circunstâncias que podem interferir na aplicação de um enunciado normativo. Isso seria impossível3". En-

374 NOVAIS, Jorge Reis. As restrições aos direitos fundamentais não expressamente autorizadas pela Constituição, 2003, pp. 910 e 911: "Os resultados obtidos na categorização são, à partida, funcionalmente orientados para a formulação de regras gerais de preferência relativa entre bens ou de valoração diferenciada de modalidades concretas de exercício dos direitos fundamentais — regras que resultam de ponderações, mas que, simultaneamente, permitem a orientação e estruturação de ponderações futuras. (...) A formulação deste tipo de regras pode, ainda, desenvolver-se num nível muito mais concreto e capaz de fornecer a solução dos posteriores casos com dispensa de recurso a ponderações de caso concreto, na medida em que a máxima previamente fixada, ainda que formulada com base em anteriores ponderações, estabeleça já uma relação de prioridade concretizável através de procedimentos de mera subsunção e só infirmável através da ponderação de novos factores circunstanciais não considerados na formulação da regra em causa ou mediante novos resultados de ponderação que conduzam à alteração da regra anterior. Nessas circunstâncias, a formulação de uma regra funciona simultaneamente como orientação e quadro das futuras ponderações que devam ocorrer por força da necessidade de consideração de novos factores, mas constitui também, enquanto parâmetro substantivo que o Estado deve observar, um standard de controlo das restrições que venham a ocorrer no contexto abrangido pela regra"

375 José Juan Moreso sustenta, otimisticamente, que a construção de parâmetros pode chegar a reduzir toda a ponderação a subsunção, na medida em que sempre poderia existir um parâmetro ao qual o caso concreto se subsume. V. MORES O, José Juan. "Conflictos entre

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tretanto, o fato de não ser viável imaginar parâmetros abso-lutos ou completos (ali things consideredn não impede que se conceba aquilo que é possível para os fins desejados. A construção dos parâmetros particulares em abstrato pre-tende fornecer ao aplicador balizas para orientar sua deci-são, discutidas ampla e previamente pela doutrina, no espa-ço público'. De toda sorte, como já se registrou, os parâ-

principios constitucionales". In: CARBONELL, Miguel (organizador).

Neoconstitucionalismo(s), 2003, ppj.- 120 e 121: "En relación con la

movilidad de las jerarquizaciones ideales de nuestros principios en conflicto, hay algún grado de indeterminacion en la aplicación de los principios en conflicto, pero la movilidad no supone la incapacidad de convertir la ponderación en una operacion de subsunción. La racionalidad subsuntiva es, en mi opinión, un presupuesto necesario para la justificación de todas nuestras decisiones. Es posible, sin embargo, que no siempre estemos en condiciones de articular consistentemente nuestras evaluaciones, que nuestras intuiciones sean opacas a la articulacion, y, claramente, es también posible que no estemos interesados en justificar algunas de nuestras decisiones (...). Sin embargo, en la medida en que consigamos aislar un conjunto de propiedades relevantes, estamos en disposición de ofrecer soluciones para todos los casos, aunque dichas soluciones puedan ser desafiadas cuanto cuestionamos la adecuacion del criterio por el cual hemos seleccionado las propiedades relevantes. Ahora, bien, idealmente el juez constitucional que aplica principios constitucionales opera con un conjunto delimitado de propiedades relevantes que permiten correlacionar de manera unívoca determinados casos genéricos con sus soluciones normativas. La ponderacion consiste en la articulacion de ese conjunto de propiedades relevantes, en la explicitacion de las condiciones de aplicación que previamente eran solo implícitas. Una vez realizada esta tarea, la aplicación de los principios consiste en la subsunción de casos individuales en casos genéricos. Si la aplicación del Derecho consiste en resolver casos individuales mediante la aplicación de pautas generales, entonces — por razones conceptuales — no hay aplicación del Derecho sin subsunción."

376 PECZENIK, Aleksander. On Law and Reason, 1989, p. 76 e ss..

377 Neste ponto, a contribuição dos conceptualistas é da maior importância. Veja-se, sobre o tema, o Capítulo III.

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metros abstratos (tanto os gerais, expostos nos capítulos anteriores, como os particulares, que venham a ser cons-truídos a partir do roteiro proposto aqui) têm natureza pre-ferencial e não absoluta?". O intérprete não está impedido de afastá-los, uma vez que seja capaz de justificar sua opção satisfatoriamente, tanto do ponto da vinculação ao sistema jurídico, como da racionalidade propriamente dita'''.

Não há fórmula pronta que esclareça como construir parâmetros para os conflitos específicos, mas um conjunto de perguntas ou testes e suas respostas podem auxiliar o interessado nessa tarefa". A proposta que segue descrita de forma bastante objetiva emprega três grupos de pergun-tas com essa finalidade. As perguntas reunidas no primeiro grupo estão relacionadas de forma preponderante com a estrutura do enunciado normativo e já incorporam as preocupações do primeiro parâmetro geral (regras prefe-rem princípios).

O segundo conjunto de perguntas está associado ao con-teúdo material do enunciado: os efeitos que ele pretende produzir no mundo dos fatos, as condutas necessárias e exigíveis à realização desses efeitos e, afinal, as prerrogati-vas que ele confere. As respostas obtidas aqui, dentre ou-tras utilidades, auxiliarão o intérprete a visualizar o núcleo dos princípios e a empregar o segundo parâmetro geral pro-posto acima (preferência das normas que de forma direta

378 Tópico VII.2.

379 Veja sobre os elementos da racionalidade o tópico 1.2.

380 Algumas das idéias para a proposta descrita no texto foram colhidas em SERNA, Pedro e TOLLER, Fernando. La interpretación constitucional de los derechos fundatnentales. Una alternativa a los conflictos de derechos, 2000, p. 57 e ss.. As diretrizes sugeridas por Humberto Ávila para a análise dos princípios serão especialmente úteis no processo de construção dos parâmetros específicos. V. ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios, 2003, p. 73 e ss..

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promovem os direitos fundamentais dos indivíduos, sobre aquelas que o fazem apenas de forma indireta), caso isso seja necessário. O terceiro grupo de perguntas procura identificar circunstâncias que interferem de forma relevan-te na definição do sentido e propriamente com a aplicação do enunciado"' .

Começando pelo primeiro grupo, é possível formular resumidamente as perguntas ou testes descritos abaixo.

(i) O enunciado examinado tem natureza de princí-

pio ou de regra? Dessa informação dependerá em boa me-dida a compreensão do papel do enunciado no sistema jurí-dico e a apuração de seus efeitos e de sua eficácia jurídica, especialmente se for necessário aplicar o primeiro parâme-tro geral (regras preferem princípios — Capítulo VIII). Nem sempre a distinção será evidente e por vezes classifi-car um enunciado como regra ou princípio pode envolver um conjunto intrincado de ações hermeneuticas382. De toda sorte, alguns equívocos podem ser evitados com esse esforço. Por exemplo, a afirmação generalizante de que todo direito fundamental é um princípio não é correta na realidade constitucional brasileira, já que a Carta de 1988 veicula vários direitos sob a forma de regras'.

(ii) Caso se trate de uma regra, há elementos de indeterntinação em seu enunciado? Como se viu em vá-rios exemplos ao longo do texto, elementos de indetermi-

381 Os testes descritos no texto procuram se adequar ao maior número possível de tipos de enunciados.

382 V. nota n° 240.

383 É o que acontece) e.g., com os seguintes incisos do art. 5": "III — ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante"; "LVI — são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos:. É certo que a definição do que exatamente deve ser considerado como tratamento desumano ou degradante ou do que define uma prova como ilícita ficará a cargo da doutrina e da jurisprudência.

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nação contidos nas regras oferecem espaços para argumen-tação e muitas vezes é possível solucionar conflitos reais ou

• aparentes apenas por meio da definição de sentido dessas cláusulas384 . É certo que muitas vezes não se vislumbra na regra, examinada em abstrato, essa espécie de elemento, que acaba por surgir apenas diante de um caso concreto385 . De todo modo, é útil tentar identificar desde logo essa característica do enunciado.

(iii) O enunciado atribui um direito? Define compe-tências? Fixa metas públicas ou bens coletivos? Essa dis-tinção é particularmente relevante quando se esteja diante de princípios. Em geral, é mais fácil identificar os efeitos pretendidos, as condutas necessárias para realizá-los e até mesmo a área nuclear de princípios que consagram direi-tos; princípios que estabelecem metas públicas de caráter geral exigem uma compreensão diferenciada, já que seu sentido pode depender intensamente de decisões de natu-reza política e ideológica.

(iv) Se o enunciado atribui um direito, quem é seu titular? A resposta a essa questão ajuda a definir o espectro de abrangência do enunciado normativo. Alguns exemplos demonstram a relevância desse teste. A liberdade de ex-pressão, e.g., é um direito titularizado apenas por nacionais

384 Um dos exemplos em que isso aconteceu foi no julgamento do HC 73662/MG. Por maioria, a 2' Turma do STF considerou que a presunção de violência a que se referia o art. 213 do Código Penal, e que tipificava a relação sexual mantida com menor de 14 anos como estupro, era relativa, e não absoluta. Com essa interpretação, concedeu o habeas corpus ao agente que havia de fato mantido relação sexual com moça menor de 14 anos, tendo em conta que, no caso, teria ficado demonstrado que não ocorreu violência (STF, HC 73662/MG, Rel. Min. Marco Aurélio, DJU 20.09.1996) . 385 Foi o que aconteceu quando da interpretação do art. 213, § 1°, da Constituição, levada a cabo no fim do capítulo anterior.

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ou também por estrangeiros? Jornalistas estrangeiros estão incluídos entre seus titulares? O estrangeiro que recebeu asilo político também goza desse direito?'" Outro exem-plo. O direito a não ter sua correspondência pessoal viola-da, salvo nos termos previstos pela Constituição (CF, art. 50, XII), destina-se apenas a homens livres ou também àqueles que estejam presos?'" O direito à licença materni-dade é titularizado exclusivamente por gestantes ou tam-bém por mães adotivas, cujos filhos sejam de tenra ida-de?"'

(v) Por fim, se o enunciado atribui um direito, quem está obrigado a respeitá-lo ou dar-lhe efeito? O Estado? Os particulares? Ambos? Por quais razões? Assim como a questão anterior, identificar quem será atingido pelo enun-ciado, não pelos benefícios que outorga, mas pelos deveres que impõe, ajuda a delinear seu sentido e alcance. O deba-te sobre a chamada eficácia horizontal dos direitos funda-mentais ou a eficácia dos direitos fundamentais sobre as relações privadas tem muito a oferecer neste particular389.

386 O Decreto n° 1570/1937, trata da questão, mas resta saber se ele foi recepcionado pela Carta de 1988. 387 O STJ, no julgamento do HC 3982/RJ (Rel. Min. Adhemar Maciel, DJU 26.02.1996) e do HC 4138 (Rel. Min. Adhemar Maciel, DJU 27.05.1996), admitiu como prova a gravação, obtida ilicitamente, de conversas mantidas por presos. Um dos argumentos apresentados pelo Ministro relator foi o de que a garantia constitucional não protegeria os presos. 388 Essa discussão foi travada pelo STF, já diante de casos concretos, no RE 197807/RS, Rel. MM Octavio Gallotti, DJU 18.08.2000. O STF entendeu que o direito tinha como destinatárias apenas as gestantes. A Lei n° 10.421/2002 estendeu o beneficio também às mães adotivas, nos termos em que disciplina. 389 SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas, 2004; e PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. "Apontamentos sobre a aplicação das normas de direito fundamental nas relações jurídicas entre

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O recorrente tema que envolve a possibilidade de exigir do Estado prestações positivas também deverá ser retomado, em relação a cada enunciado, neste ponto390 .

- Cabe agora passar ao segundo grupo de testes, ligados ao conteúdo propriamente dito dos enunciados. São pro-postas apenas três perguntas, embora elas possam desdo-brar-se em outras, na medida em que a investigação se aprofunde.

(i) Que efeitos o enunciado pretende produzir no mundo dos fatos? Essa questão é fundamental para qual-quer espécie de enunciado, mas sobretudo quando se este-ja lidando com princípios, até para que seja possível, no teste seguinte, identificar seu núcleo, se for o caso. Outras questões que podem derivar desta estão relacionadas com o grau de determinação desses efeitos e com a identificação do ponto a partir do qual a definição desses efeitos depen-de da percepção individual do intérprete acerca de elemen-tos morais, valorativos ou políticos.

Uma outra informação relevante neste ponto está rela-cionada com a circunstância de os fenômenos que o enun-ciado pretende disciplinar (i) se formarem no inundo dos fatos, independentemente do direito (ex. artes, ciências, crença), (ii) serem, ao contrário, tipicamente jurídicos (ex. princípio da tipicidade penal), ou (iii) terem natureza mis-ta, combinando elementos próprios da realidade e elemen-tos jurídicos (ex. casamento, família).

A relevância dessa classificação está em que os efeitos de enunciados que envolvem fenômenos cujo surgimento e

particulares". In: BARROSO, Luis Roberto (organizador). A nova interpretação constitucional. Ponderação, direitos fundamentais e relações privadas, 2003, pp. 119a 192.

390 MASELL1, Marcos. Controle judicial das omissões administra 'as, 2003.

validade derivam da própria ordem jurídica dependem igualmente dos contornos que essa mesma ordem jurídica lhes confere. Se, diversamente, os fenômenos têm uma di-nâmica e existência praticamente independente do Direi-to, ao incorporá-los, os enunciados apenas reconhecem sua existência como elementos da realidade, tendo menor es-paço para alterar seu sentido e configuração39i . Assim, e.g.,

391 NOVAIS, Jorge Reis. As restrições aos direitos fundamentais não expressamente autorizadas pela Constituição, 2003, pp. 162 e 163: "De

acordo com esta tipologia, direitos fundamentais como as liberdades artística ou cientifica, as liberdades de crença ou de consciência são, no essencial, determinadas materialmente, ou seja, têm uma dinâmica e existência praticamente independentes do Direito: respeitam as garantias de necessidades elementares ou de complexos de acções que não se fundam no Direito, não recolhem nele os seus elementos estruturais, nem carecem de regulamentação jurídica no que se refere ao seu núcleo. Com

efeito, a crença, a consciência, a arte e a ciência situam-se numa área pré-jurídica, não sendo nem criadas nem conformadas pelo Direito; aquilo que a Constituição faz é, apenas, reconhecer estas estruturas como manifestações específicas da liberdade humana. Então, o facto de esses direitos fundamentais serem normalmente consagrados sem reservas não é a causa mas antes uma consequência da sua não determinabilidade pelo Direito, sendo a inexistência de reservas, quando muito, um indício da presença daquela característica estrutural. E a sua natureza de direitos de determinação puramente material que os torna total ou parcialmente inacessíveis à conformação do legislador ordinário. Já, por sua vez, garantias constitucionais como as da nulla poena sine lege ou da no bis in

idem ou, em geral, as garantias processuais constituem direitos que devem

o seu surgimento e validade à própria ordem jurídica. Num plano intermédio situar-se-iam direitos fundamentais, como as garantias da propriedade, da família, do casamento, da profissão, que apresentam uma estrutura mista, pois, embora não sejam produzidos juridicamente na sua totalidade, têm por objecto institutos de direito civil, instituições ou relações sociais parcialmente determinadas pelo Direito — facto de que, precisamente, a doutrina das 'garantias institucionais' procurou dar conta — e, como tal, são mais ou menos acessíveis ou carentes de uma intervenção do legislador ordinário."

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a liberdade religiosa já dispõe de um conteúdo material ao ser consagrada pelo dispositivo constitucional, ao passo que o direito ao Fundo de Garantia por Tempo de Serviço exis-te apenas nos termos definidos pela própria legislação.

(ii) Que outros enunciados estão relacionados com esse mesmo tema e, portanto, com esses mesmos efeitos?

Como é corrente, os diferentes enunciados normativos não existem isolada e autonomamente392. Eles estão inte-grados ao sistema jurídico como um todo, dentro do qual se ligam a outros enunciados, formando subsistemas temáti-cos que englobam disposições constitucionais e também infraconstitucionais. Assim, e.g., há um conjunto de enun-ciados constitucionais que tratam do tema educação — disposições que atribuem competências legislativas e admi-nistrativas para disciplina do assunto, fixam princípios ge-rais para o setor e descrevem direitos específicos — e tam-bém infraconstitucionais (Lei n° 9394/1996 — Lei de Di-retrizes e Bases da Educação Nacional; Lei n° 9424/1996 — Dispõe sobre o Fundo de manutenção e desenvolvimen-to e valorização do magistério; Lei n° 9766/1998 — Salá-rio-educação, dentre outras).

Na hipótese de um conflito aparente com outras disposições, o intérprete deverá considerar não apenas o enunciado isoladamente, mas também os demais que com ele se relacionam, e para isso será fundamental identificar os elementos desse subsistema temático. Um princípio constitucional aparentemente bastante genérico como o do

392 BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico, 19971 pp. 19 e 20: "(...) as normas jurídicas nunca existem isoladamente, mas sempre em um contexto de normas com relações particulares entre si (...) Repetimos que a norma jurídica era a única perspectiva através da qual o Direito era estudado (...) Para nos exprimirmos com uma metáfora, considerava-se a árvore, mas não a floresta."

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pluralismo político (CF, art. 1°, V) não existe sozinho no sistema jurídico brasileiro. Ele é acompanhado de uma sé-rie de outros princípios e regras que disciplinam, e.g., direi-tos políticos, liberdade de expressão, partidos e eleições, etc., e também de disposições infraconstitucionais sobre o assunto. O mesmo se diga, e.g., do princípio constitucional que trata da proteção ao meio ambiente (CF, art. 225) e de muitos outros temas.

(iii) Que condutas são necessárias e exigíveis para realizar os efeitos pretendidos pelo enunciado?

A identificação das condutas necessárias e exigíveis re-lativamente a cada enunciado é provavelmente a etapa mais complexa de toda a investigação doutrinária. Nada obstante, ela é simplesmente vital para a construção da eficácia jurídica dos enunciados, já que é neste momento que cabe identificar o que pode ou não ser exigido (judi-cialmente até, se necessário) com fundamento neles393.

Cabe aqui uma observação importante. Ao lidar com princípios, a identificação das condutas necessárias à reali-zação dos efeitos do enunciado encontrará muitas vezes o obstáculo das escolhas de natureza política. Quando exis-tam várias formas de realizar um efeito pretendido pelo enunciado, a escolha de uma ou algumas delas nem sempre poderá ser fundamentada juridicamente. Sempre restam, é bem de ver, outras formas de conduta que, mesmo indire-tamente, podem contribuir para sua realização, como, e.g., a proibição de ações que produzam efeitos contrários aos pretendidos pelo enunciado.

Além de apurar as condutas necessárias, é necessário qualificar também quais, dentre elas, são exigíveis, isto é,

393 V. BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais — O princípio da dignidade da pessoa humana, 2002, p. 59 e ss..

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podem ser de fato exigidas até mesmo pela via judicial. Novas questões podem se colocar aqui, como os limites impostos à atuação do Judiciário pela separação de poderes e as limitações orçamentárias. Como se percebe, a identifi-cação das condutas necessárias e exigíveis estará freqüente-mente em contato com o tema, referido inicialmente, do equilíbrio indispensável entre democracia e Constituição e, conseqüentemente, dos espaços a serem ocupados por cada uma das funções estatais (jurisdição, administração e legislação). Essas dificuldades, porém, precisam ser en-frentadas para que os enunciados ganhem mais consistên-cia dogmática394.

De forma específica, travam-se neste momento, no caso dos princípios, ao menos duas discussões: (i) a possibi-lidade de identificar-se, no princípio, um núcleo de sentido com natureza de regra, de modo que seja possível atribuir às condutas contidas nesse núcleo a eficácia positiva ou simétrica própria das regras (isto é: a exigibilidade direta de tais condutas); e (ii) a construção de modalidades de eficácia jurídica alternativas, como a interpretativa, a nega-tiva e a vedativa do retrocesso"s, quando não seja possível atribuir a eficácia positiva ou mesmo em conjunto com ela.

Em matéria de regras, sua eficácia jurídica típica é a positiva ou simétrica, o que em geral torna a questão mais

394 CLÈVE, Clemerson Merlin. "A teoria constitucional e o direito alternativo". Irt: Unia vida dedicada ao direito — Homenagem a Carlos Henrique de Carvalho, o editor dos juristas, 1995, pp. 37 e 38: "Mais do que isso, importa, hoje, para o jurista participante, sujar as mãos com a lama impregnante da prática jurídica, oferecendo, no campo da dogmática, novas soluções, novas fórmulas, novas interpretações, novas construções conceituais. Este é o grande desafio contemporâneo."

395 V. BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais — O principio da dignidade da pessoa humana, 2002, p. 61 e ss..

simples, mas podem surgir outras complexidades. Há enunciados que ensejam um grande conjunto de condutas, que devem, tanto quanto possível, ser identificadas. Há ainda problemas externos ao enunciado, mas que podem interferir com a sua eficácia, como acontece com os custos por acaso envolvidos nas condutas necessárias à realização de seus efeitos396.

Por fim, o terceiro conjunto de perguntas se ocupa das circunstâncias específicas que podem envolver a aplicação do enunciado e lhe agregar especificidades"'. Algumas perguntas úteis nesse contexto são descritas abaixo.

(i) Há circunstâncias relevantes que interferem com a aplicação do enunciado (como condições de modo de exercício, tempo ou lugar)?

Ao longo dos capítulos anteriores se destacou, em vá-rios momentos, a importância das circunstâncias de fato

396 GALDINO, Flávio. "O custo dos direitos". /Ir TORRES, Ricardo Lobo (organizador). Legitimação dos direitos humanos, 2002, pp. 139 a

222.

397 ALEXY, Robert. Sistema jurídico, principios jurídicos y razón

práctica, Revista Doxa n°5, 1988, pp. 145 e 146: "El que las colisiones entre principias deban resolverse mediante ponderación en el caso concreto, no significa que la solución de la colisión sea solamente significativa para el caso concreto. Antes bien, pueden establecerse, con ocasián de la decisión para casos concretos, relaciones de prioridad que son importantes para la decisión de nuevos casos. (...) Las condiciones de prioridad establecidas hasta el momento en un sistema jurídico y las regias que se corresponden con ellas proporcionan información sobre el peso relativo de los principios. Sin embargo, a causa de la posibilidad de nuevos casos con nuevas combinaciones de características, no se puede construir con su ayuda una teoria que determine para cada caso precisamente una decisión. Pero de todos modos, abren la posibilidad de un procedimiento de argumentación que no se daria sin alas. Este procedimiento, desde luego, debe ser incluido en una teoria completa de la argumentación jurídica."

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para a interpretação em geral e para a ponderação em par-ticular. É apenas natural, portanto, que a aplicação dos enunciados sofra interferência desses elementos fáticos, levantamento casuístico, e crítico, dessas interferências re-lativamente a cada enunciado (na verdade, aqui já no pro-cesso de construção da norma) facilita a identificação dos conflitos apenas aparentes e, no caso de conflitos reais, permite a visualização do grau de restrição e das possibili-dades de acomodação da disputa a que se fez referência nas segunda e terceira fases da ponderação (Capítulo V)398. Alguns exemplos ajudam a ilustrar o ponto.

Do exame da jurisprudência envolvendo o direito a prestações de saúde em face do Estado é possível listar dois elementos de fato freqüentemente indicados pelas deci-sões judiciais para fundamentar o acolhimento do pedido do autor da ação: (i) a gravidade da doença; e (ii) a possibi-lidade (ainda que remota) de eficácia do tratamento399. In-teressantemente, outras duas circunstâncias fáticas, que anos atrás eram suscitadas pelos juizes como óbices ao de-ferimento dos pedidos formulados, têm sido consideradas irrelevantes em algumas decisões mais recentes: (i) o fato de o local do tratamento ser ou não no Brasil (várias deci-sões têm determinado o custeio de tratamentos no exte-

398 NOVAIS, Jorge Reis. As restrições aos direitos fundamentais não expressamente autorizadas pela Constituição, 2003, p. 237 e ss.

399 STJ, REsp 509753/DF, Rel. MM. Teori Albino Zavascki, DJU 06.10.2003: "Em face do principio constitucional à saúde, deve prevalecer a possibilidade, ainda que remota, do tratamento a ser realizado em Cuba, por ser reconhecidamente o pais que, atualmente, vem conseguindo os melhores resultados no tratamento da retinose pigmentar." Na verdade, embora a questão de mérito tenha sido amplamente discutida, e mantido afinal o acórdão recorrido que consagrava a solução acima, a maioria entendeu que o recurso não deveria ser conhecido, pois nele se discutia matéria constitucional.

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rior)400; e (ii) constar ou não o medicamento solicitado pela parte da lista padronizada do Ministério da Salide401. Esses

400 STJ, REsp 353147/DF, Rel. Min. Franciulli Netto, DJU 18.08.2003: "O Sistema Único de Saúde pressupõe a integralidade da assistência, de forma individual ou coletiva, para atender cada caso em todos os níveis de complexidade, razão pela qual, comprovada a necessidade do tratamento no exterior para que seja evitada a cegueira completa do paciente, deverão ser fornecidos os recursos para tal empresa. Não se pode conceber que a simples existência de Portaria, suspendendo os auxílios-financeiros para tratamento no exterior, tenha a virtude de retirar a eficácia das regras constitucionais sobre o direito fundamental à vida e à saúda". Em sentido oposto, STJ, MS 8895/DF, Rel. Min. Eliana Calmon, DJU 07.06.2004: "1. Parecer técnico do Conselho Brasileiro de Oftalmologia desaconselha o tratamento da 'retinose pigmentar' no Centro Internacional de Retinoses Pigmentaria em Cuba, o que levou o Ministro da Saúde a baixar a Portaria 763, proibindo o financiamento do tratamento no exterior pelo SUS. 7. Legalidade da proibição, pautada em critérios técnicos e científicos. 3. A Medicina social não pode desperdiçar recursos com tratamentos alternativos, sem constatação quanto ao sucesso nos resultados. 4. Mandado de segurança denegado".

401 STJ, REsp 325337/RJ, Rel. MM. José Delgado, DJU 03.09.2001:3. É dever constitucional da União, do Estado, do Distrito Federal e dos Municípios o fornecimento gratuito e imediato de medicamentos para portadores do vírus HIV e para tratamento da AIDS. 4. Pela peculiaridade de cada caso e em face da sua urgência, há que se afastar a delimitação no fornecimento de medicamentos constante na Lei n° 9.313/96."; e STJ, MS 8740/DF, Rel. Min. João Otávio de Noronha, DJU 09.02.2004: "Não se pode generalizar a aplicação da norma que veda ao Estado a concessão de auxílio financeiro para tratamento fora do Pais, a ponto de abandonar, à sua própria sorte, aqueles que, comprovadamente, não podem obter, dentro de nossas fronteiras, tratamento que garanta condições mínimas de sobrevivência digna. Não havendo no País equipamento terapêutico apropriado ao tratamento da enfermidade, justifica-se que o Estado disponibilize recursos para a sua aquisição no exterior, não podendo servir de óbice às pretensões do doente, necessitado, argumentos fundados em questões burocráticas, de cunho orçamentário."

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parâmetros, formulados pela jurisprudência, são adequa-dos? Ou devem ser acrescidos outros? Seguem mais dois exemplos.

A liberdade de reunião prevista no inciso XVI do art. 50 da Constituição pode sofrer restrições em função do local em que se pretende realizar o evento? E do horário? É pos-sível impor limitações, e.g., quanto ao volume de som que pode ser utilizado?"' O estudo da jurisprudência que lida com confrontos entre o princípio da segurança jurídica e exigências decorrentes da legalidade também fornece um conjunto de informações interessantes acerca dos elemen-tos fáticos considerados pertinentes. Ao menos dois po-dem ser encontrados em quase todos os casos: (i) o trans-curso de longos períodos de tempo entre a consolidação da situação considerada ilegal e o questionamento de sua vali-dade403; e (ii) a boa-fé da parte que alega em seu favor a segurança jurídica. Um terceiro elemento, presente em muitos casos, é o argumento de que a situação, mesmo ilegal, contribuiu para a realização de algum fim constitu-cional geral, como, e.g., a promoção da educação404.

402 Como registrado anteriormente, o tema foi examinado pelo STF na ADIn 1969/DF, Rel. Min. Marco Aurélio, DJU 25.03.2004.

403 No MS 24268/MG, Rel. MM. Gilmar Mendes, j. 15.03.2004, o STF examinou caso muito interessante no qual esse ponto foi debatido. A impetrante questionava no mandado de segurança ato do TCU que havia considerado ilegal e cancelado sua pensão especial, concedida há dezoito anos, sem ouví-la previamente. O STF anulou o ato do TCU, por violação ao devido processo legal, mas o voto do Ministro Relator destacou que o princípio da segurança jurídica igualmente se aplicava na hipótese, tendo em conta, em primeiro lugar, o longo tempo transcorrido entre o ato e o seu questionamento (dezoito anos), e também a boa-fé da impetrante.

404 Este último argumento é invocado nas freqüentes disputas envolvendo alunos transferidos para universidades públicas cuja transferência é posteriormente considerada inválida. Nesse sentido,

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(ii) Há circunstâncias relevantes que interferem com a aplicação do enunciado relativamente ao titular

do direito? Esta questão pode se ligar em alguns casos àquela for-

mulada no primeiro grupo de testes, envolvendo os benefi-ciários do enunciado normativo. É possível, no entanto, co-gitar de circunstâncias transitórias que, ainda assim, podem se tornar relevantes para a aplicação de enunciados. Como já se referiu, no caso, e.g., do direito à intimidade e à vida privada, a maior parte dos autores destaca que o fato de o indivíduo ser uma pessoa pública (no sentido de notória) ou desconhecida, titular de uma função publica ou não, são elementos que conformam diferentemente a extensão do

direito"s. Note-se que estas indagações podem estar per-feitamente contidas na pergunta anterior. A separação visa apenas a facilitar a visualização das questões que podem ser úteis para a construção dos parâmetros.

(iii) Há circunstâncias relevantes que interferem com a aplicação do enunciado relativamente àqueles que estão obrigados a respeitar os direitos por ele ou-

torgados? Esta pergunta é também um desdobramento das duas

anteriores. De fato, é possível imaginar exemplos em rela-ção aos quais esse tema será relevante. Ao lidar como direi-to de imagem de alguém, um jornalista, cujo propósito é noticiar um evento, e um publicitário, que planeja produzir

dentre muitos outros, STF, MC 2900/RS, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 08.04.2003, Informativo STF ri' 310; e STJ, MC 4546/MG, Rel. Min. Luiz Fux, DJU 16.12.2002.

405 BARROSO, Luís Roberto. Colisão entre liberdade de expressão e direitos da personalidade. Critérios de ponderação. Interpretação constitucionalmente adequada do Código Civil e da Lei de Imprensa, Revista de Direito Administrativo n° 235, 2004, pp. 1 a 36.

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uma peça comercial, encontram-se em posições bastante diferentes. O jornalista poderá utilizar a imagem de um indivíduo para a notícia, dentro de certos limites, sem ne-cessidade de autorização; o publicitário por certo não po-derá fazer o mesmo em uma peça publicitária. Outro exemplo: o princípio constitucional que trata da proteção do meio ambiente (art. 225) não incide da mesma forma sobre as pessoas em geral e sobre as populações indígenas (art. 231).

(iv) Quais as finalidades lógica e histórica associa-das ao enunciado?

As finalidades lógica e histórica associadas ao enuncia-do406 contribuem para a identificação das áreas de aplica-ção do enunciado mais resistentes a qualquer espécie de restrição e outras mais sensíveis à presença de elementos normativos em oposição. No caso de enunciados que atri-buem direitos, as hipóteses de exercício abusivo também podem ser investigadas nesse mesmo contexto407. A liber-dade de expressão e de imprensa, e.g., está historicamente ligada à manifestação política, ideológica e artística e, nesse ambiente, dificilmente convive com restrições. Já a publi-cidade comercial, embora seja 'também uma manifestação da liberdade de expressão, poderá admitir limitações mais intensas.

(v) É possível identificar situações de conflito com outros enunciados? Como é possível supera-las?

A última pergunta sugerida neste roteiro se beneficia de todas as conclusões apuradas nas anteriores. Cabe agora, neste último momento, identificar as situações de conflito

406 Ainda que a definição dessas finalidades possa em si mesmo envolver alguma controvérsia. 407 BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Abuso do direito, ADV/COAD março/2003, pp. 16 a 20.

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que podem ser visualizadas entre diferentes enunciados ou grupos de enunciados (seja pela experiência, seja pela for-mulação de hipóteses) e cogitar, considerando os elemen-tos identificados nas etapas descritas até aqui, como ele deve ser superado e por quais razões, seja ou não possível chegar à concordância prática'''.

O conjunto de testes descrito acima não é por certo o único possível nem o mais abrangente que se poderia ima-ginar e nem tinha ele qualquer dessas pretensões. Seu ob-jetivo é apenas associar aos parâmetros gerais, descritos ao

408 Alguns conflitos, por sua freqüência ou repercussão, têm atraído em particular a atenção da doutrina. Sobre as tensões e limites envolvendo as liberdades de expressão e informação e outros enunciados constitucionais, vejam-se, dentre outros, SILVA, José Afonso da. Ordenação constitucional da cultura, 2001, p. 70 e ss.; MENDES, Gilmar Ferreira. Colisão de direitos fundamentais: liberdade de expressão e de comunicação e direito à honra e à imagem, Revista de Informação Legislativa n° 122,1994, pp. 297 a 301; CHAVES, Antônio, Imprensa. Captação audiovisual. Informática e os direitos da personalidade, Revista dos Tribunais n° 729, 1996, pp. 11 a 42; e LEONCY, Léo Ferreira. Colisão de direitos fundamentais a partir da Lei 6.075/97— O direito à imagem dos presos, vítimas e testemunhas e à liberdade de expressão e de informação, Revista de Direito Constitucional e Internacional n° 37, 2001, pp. 274 a 279. Na doutrina estrangeira, v. também SUNSTEIN, Cass R. Television and Public Interest, California Law Review n° 88, 2000, pp. 499 a 564. As discussões envolvendo a garantia constitucional da propriedade e sua função social também tem sido objeto de exame doutrinário, sobretudo sob a ótica do direito urbanístivo, v. SILVA, José Afonso. Direito urbanístico brasileiro, 2000, p. 68 e ss.. Sobre as possíveis oposições entre a garantia do devido processo legal e a efetividade da prestação jurisdicional, v. ZAVASCKI, Teori Albino. Os princípios constitucionais do processo e suas limitações, Revista da Escola Superior da Magistratura do Estado de Santa Catarina vol. 6, 1998, pp. 49 a 58. Acerca da necessária convivência entre os diferentes princípios constitucionais próprios ao direito tributário, v. TORRES, Ricardo Lobo. Legalidade tributária e riscos sociais, Revista Dialética de Direito Tributário n°59, 2000, pp. 95 a 112.

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longo do texto, ferramentas que possam auxiliar a constru-ção de parâmetros específicos, de tal modo que se possa fornecer ao aplicador um conjunto amplo e consistente de standards metodológicos e materiais capazes de orientá-lo quando seja necessário empregar a técnica da ponderação.

Conclusões

À guisa de conclusão, parece útil apresentar um breve resumo dos objetivos gerais do estudo, por meio dos quais se poderá ter uma visão de conjunto do trabalho, para, em seguida, compendiar de forma mais analítica as principais idéias desenvolvidas ao longo do texto.

A ambição deste estudo foi contribuir para a redução do voluntarismo no emprego da ponderação e para atingir esse objetivo duas proposições centrais foram estudadas. Em primeiro lugar, apresentou-se uma proposta de ordena-ção metodológica para a técnica da ponderação, com a indi-cação das etapas a percorrer e dos cuidados de natureza lógica ou argumentativa a tomar em cada uma delas. Em segundo lugar, foram propostos dois parâmetros gerais, ca-pazes de orientar o intérprete na generalidade dos casos em que a ponderação seja necessária e de utilização seqüencial, a saber: (i) os enunciados com estrutura de regra (aqui incluídos os núcleos de princípios que possam ser descritos dessa forma) preferem aqueles com estrutura de princípio; e (ii) as normas que promovem diretamente direitos fun-

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damentais dos indivíduos têm preferência sobre normas relacionadas apenas indiretamente com direitos.

O estudo ocupou-se ainda de dois outros temas, ambos vinculados ao mesmo propósito geral. Ao tratar do primei-ro parâmetro descrito acima, três sub-parâmetros foram sugeridos para lidar com o problema dos conflitos envol-vendo regras. Ao fim do estudo, além dos dois parâmetros gerais, produziu-se também um catálogo de elementos que podem auxiliar a construção de parâmetros específicos, destinados a fixar standards para a solução de conflitos normativos particulares.

De forma analítica, é possível compendiar as principais idéias desenvolvidas ao longo do estudo nas proposições que se seguem. Na medida do possível, elas serão apresen-tadas na ordem em que os assuntos foram tratados no tex-to.

1. O termo ponderação não é privativo do Direito. Em sentido geral, ele significa avaliar todas as vantagens e des-vantagens relacionadas com determinada situação, de modo que toda decisão humana minimamente racional en-volve algum tipo de ponderação. Não é nesse sentido am-plíssimo, porém, que o termo foi empregado neste estudo.

2. A ponderação aqui estudada pode ser descrita como a técnica jurídica de solução de conflitos normativos que envolvem valores ou opções políticas em tensão insuperá-veis pelas formas hermenêuticas tradicionais. Afastou-se a idéia de que a ponderação se destinaria a solucionar qual-quer espécie de conflito normativo, já que a maior parte deles é superado por técnicas convencionais de solução de antinomias que empregam a lógica subsuntiva. Igualmente não se incorporou aqui a noção que identifica a ponderação com a forma própria de aplicação dos princípios, já que ela também poderá ser relevante no tratamento de regras. Por fim, o estudo não adotou uma concepção abrangente- da

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ponderação, para a qual os mais diversos argumentos de-vem ser considerados, de modo que toda interpretação en-volveria sempre ponderação. O objeto deste estudo é mais restrito, mesmo porque a ponderação normativa propria-mente dita, nos termos descritos acima, apresenta tama-nhas especificidades que demanda um exame particular.

3. As hipóteses de colisão ou tensão entre enunciados normativos válidos, muitas vezes de estatura constitucio-nal, têm se tornado cada vez mais freqüentes por um con-junto de razões e exigem um estudo próprio. As sociedades democráticas contemporâneas são cada vez mais plurais e as diferentes concepções de pessoas e grupos nem sempre são harmônicas. Do ponto de vista jurídico, não só a Cons-tituição, mas também a ordem infraconstitucional empre-gam com progressiva intensidade expressões genéricas cujo conteúdo varia em função de avaliações de natureza valora-tiva ou política, transferindo para o aplicador a definição precisa de seu sentido.

4. O processo descrito no item anterior tem ampliado significativamente o espaço ocupado pela interpretação ju-rídica na definição do que é afinal o Direito. Junte-se a isso a ascensão política do Poder Judiciário, visualizada por seg-mentos importantes das sociedades em várias partes do mundo como espaço de discussão alternativo aos órgãos eleitos em geral e ao Legislativo em particular. Consideran-do que cada intérprete carrega sua própria bagagem de pré-compreensões, o cenário para a proliferação de conflitos normativos encontra-se montado.

5. Se as exigências de racionalidade e justificação são próprias a toda interpretação e decisão jurídicas, o serão ainda com maior intensidade nas hipóteses em que se pre-tenda utilizar a ponderação. Isso porque, nesses casos, a legitimidade de uma decisão ou dos critérios adotados para superar conflitos normativos não decorre de forma eviden-

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te de enunciados normativos e nem se funda em uma sub-sunção simples. A racionalidade de uma decisão judicial está ligada (i) à sua capacidade de demonstrar conexão com o sistema jurídico e, nas hipóteses em que várias conexões diferentes são possíveis, (ii) à racionalidade propriamente dita da escolha feita entre essas conexões. A justificação por sua vez, envolve a prestação de contas e a motivação d; decisão propriamente dita.

6. A técnica da ponderação e sua utilização têm sido objeto de numerosas críticas por parte da doutrina. A téc-nica seria metodologicamente inconsistente, inexistindo parâmetros racionais ou um padrão de medida externo ca-paz de pesar os elementos em conflito. Conseqüentemen-te, a ponderação ensejaria voluntarismos e arbitrariedades, transformando a aplicação do direito em um novo processo político no qual se (re)avaliam vantagens e desvantagens, em usurpação das funções próprias dos demais poderes. Nessa linha, a ponderação é uma ameaça à normatividade da Constituição e sobretudo aos direitos fundamentais.

7. As críticas resumidas no item anterior são em boa parte procedentes e, por isso mesmo, concepções alterna-tivas à ponderação têm sido propostas pela doutrina, espe-cialmente quando se trata de lidar com conflitos normati-vos envolvendo direitos fundamentais. As três principais opções concebidas, e examinadas neste estudo, são as teo-rias dos limites imanentes, o conceptualismo e a hierarqui-zação.

8. A idéia de limite imanente pode ser descrita nos seguintes termos: cada direito possui limites lógicos que decorrem de sua própria estrutura e natureza. Assim, boa parte dos conflitos envolvendo direitos fundamentais (ou todos eles) não é real, já que o suposto conflito afetaria uma manifestação do direito que se encontra fora dos limi-tes imanentes. A conclusão, portanto, seria simples: se não

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há conflito, não há necessidade de ponderação. A dificulda-de consiste exatamente em como determinar o que se en-contra dentro e o que se encontra fora de tais limites.

9. O conceptualismo, por sua vez, afirma que o sentido de cada direito corresponde a um conceito que deve levar em conta os fins próprios daquele direito, sua história, as necessidades de convivência social e os demais direitos. Delineados dessa forma, os conceitos dos diferentes direi-tos formarão uma unidade harmónica e, assim, eliminado o conflito entre eles, a ponderação torna-se desnecessária. A dificuldade, também aqui, está precisamente no processo de construção do conceito de cada direito.

10. A hierarquização, diferentemente das propostas an-teriores, reconhece que os direitos colidem em determina-das circunstâncias. Sua idéia para a solução deste proble-ma, no entanto, consiste na fixação de uma ordem hierár-quica entre os direitos de tal modo que, diante de um con-flito entre eles, aquele dotado de maior hierarquia deve preponderar sobre os demais. A sedutora simplicidade des-sa fórmula encontra diferentes obstáculos: a necessidade de manutenção da unidade da Constituição não admite a hierarquização entre seus enunciados, o fundamento axio-lógico que justificaria a escala hierárquica é questionável e o critério não é capaz de lidar com diferentes manifesta-ções de um mesmo direito.

11. Os limites imanentes, o conceptualismo e a hierar-quização ou empregam a ponderação sem explicitá-la, usando outra denominação, ou apresentam as mesmas es-pécies de limitações ou oferecem ainda maiores problemas que os apontados relativamente à técnica da ponderação. Na verdade, o recurso à ponderação parece realmente in-dispensável em determinadas hipóteses, o que não afasta a necessidade — antes a reforça — de aprimorar a técnica,

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inclusive incorporando idéias desenvolvidas pelos três con-juntos de teorias que se acaba de referir.

12. Nas últimas décadas, a ponderação tem sido empre-gada de forma explícita como técnica de decisão jurídica nas experiências norte-americana e alemã e ambas desen-volveram formas de neutralizar as limitações e as fragilida-des da técnica, a despeito das múltiplas diferenças que cer-cam ouso da ponderação e os resultados por ela produzidos nos dois países.

13. Nos Estados Unidos, doutrina e jurisprudência ocu-pam-se predominantemente de conceber standards espe-cíficos para os diferentes conflitos tendo em conta situa-ções comumente observadas. As diferentes categorias nas quais a liberdade de expressão foi subdividida pela juris-prudência norte-americana é um exemplo dessa espécie de raciocínio. Na Alemanha, a maior ênfase se concentra na criação de parâmetros lógicos de caráter geral, cujo objeti-vo é organizar e controlar o raciocínio jurídico, de que é exemplo, tão difundido no Brasil, a idéia de proporcionali-dade. Essas duas formas de conferir à ponderação maior previsibilidade e racionalidade — isto é: standards mate-riais associados a conflitos específicos e construídos a partir da observação da casuística e parâmetros gerais de natureza argumentativa e lógica — ou combinações delas podem ser especialmente úteis para a experiência brasileira. O estudo ocupou-se principalmente de conceber parâmetros gerais (não exclusivamente lógicos, mas em certa medida tam-bém dotados de conteúdo material) e uma estrutura meto-dologicamente ordenada para a própria técnica da pondera-ção. • 14. De acordo com a proposta de organização sugerida para a ponderação, o intérprete deve percorrer três etapas ao empregar a técnica. Na primeira delas lhe cabe identifi-car todos os enunciados normativos aparentemente em

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conflito na hipótese e agrupá-los em função das soluções que indiquem para o caso.

15. Há dois cuidados centrais a observar nessa primeira fase do processo de ponderação. Em primeiro lugar, meros interesses só devem ser admitidos se puderem contar com o suporte de algum elemento do sistema jurídico. Em se-gundo lugar, apenas enunciados — isto é: o conteúdo do texto dos dispositivos ou a enunciação de princípios ou regras implícitos no sistema —, e não normas, devem ser listados nesta primeira fase. A norma, como se sabe, corres-ponde ao comando específico que dá solução a um caso e é o produto final da interpretação jurídica, e bem assim da ponderação. Embora seja construída a partir de enuncia-dos, a norma não se confunde com eles, contribuindo para sua confecção outros elementos, sobretudo as circunstân-cias de fato do caso concreto, que ainda não foram exami-fiadas organizadamente nesta primeira etapa da pondera-ção.

16. Uma aplicação dessa segunda observação envolve as hipóteses de confronto entre direitos individuais e enun-ciados que consagram interesses de natureza coletiva. Não é incomum que se observe o conflito opondo ao direito individual (isto é, à norma particular) o enunciado sobre bens coletivos, o que pode desequilibrar o raciocínio crian-do uma artificial e equivocada preferência em favor do se-gundo elemento normativo.

17. Na segunda etapa do processo ponderativo, cabe ao intérprete examinar as circunstâncias concretas do caso e suas repercussões sobre os enunciados identificados na fase anterior. A relevância atribuída aos fatos, algumas vezes instintivamente, funda-se em geral em elementos jurídicos ou na experiência cultural da sociedade, ou ainda em uma mistura desses dois fenômenos, e deve ser justificada. Os fatos repercutem de duas maneiras principais sobre os gru-

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• pos de enunciados identificados na etapa anterior: (i) eles podem atribuir maior ou menor peso a alguns desses gru-pos; e/ou (ii) eles podem esclarecer o grau de restrição que cada solução (norma) possível impõe aos diferentes enun-ciados envolvidos.

18. A terceira e última etapa é o momento de decidir tendo em conta os grupos de enunciados, os fatos relevan-tes e sua repercussão sobre a hipótese e as diferentes nor-mas que podem ser construídas para a solução do conflito. A técnica da ponderação em si não oferece respostas para as questões de natureza material que se colocam neste mo-mento. Nada obstante, há três cuidados metodológicos a observar nesta etapa.

19. Em primeiro lugar, o intérprete deve estar compro-metido com a capacidade de universalização dos argumen-tos empregados no processo, que devem ser aceitáveis para a comunidade em geral, e da decisão propriamente dita, que deve poder ser generalizada para todas as situações equivalentes. Em segundo lugar, o intérprete deve escolher a solução que impõe a menor quantidade de restrição à maior parte dos elementos normativos em discussão (con-cordância prática), embora essa diretriz deva ser aplicada em conjunto com standards materiais em cada caso. Em terceiro lugar, quando a disputa envolve direitos funda-mentais, a decisão que vier a ser apurada no processo de ponderação não pode traspassar o núcleo de nenhum deles, entendido aqui não como um núcleo rígido ou absoluto, mas como o conjunto de parâmetros materiais preferen-ciais construídos pela doutrina e jurisprudência acerca do conteúdo essencial dos direitos em questão.

20. É possível falar de uma ponderação em abstrato ou preventiva e de uma ponderação em concreto ou real. A ponderação em abstrato .é a desenvolvida pela dogmática jurídica considerando a metodologia própria do direito e os

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conflitos já identificados pela experiência. A ponderação em abstrato procura formular modelos de solução pré-fa-bricados (parâmetros gerais e particulares) que deverão ser empregados pelo aplicador nos casos que se mostrem se-melhantes. Caso os modelos propostos pela ponderação em abstrato não sejam inteiramente adequados às particu-laridades do caso concreto, o intérprete deverá justificar expressamente essa circunstância e proceder a uma nova ponderação — a ponderação em concreto —, agora tendo em conta os elementos específicos da situação real (por isso diz-se que os parâmetros são apenas preferenciais). A utilidade da distinção consiste especialmente em fomen-tar, na doutrina, o estudo e a formulação de parâmetros que possam servir de norte ao aplicador, reduzindo a subje-tividade do processo ponderativo.

21. Ao longo do processo ponderativo o intérprete pode lançar mão de dois parâmetros gerais: (i) os enuncia-dos com estrutura de regra (dentre os quais os núcleos dos princípios que possam ser descritos dessa forma) têm pre-ferência sobre aqueles com estrutura de princípios; e (ii) as normas que promovem diretamente os direitos fundamen-tais dos indivíduos e a dignidade humana têm preferência sobre aqueles que apenas indiretamente contribuem para esse resultado.

22. A preferência das regras sobre os princípios (na ver-dade, sobre a área não nuclear deles) justifica-se com fun-damento em três razões principais. Em primeiro lugar, as regras estabelecem desde logo os efeitos que pretendem produzir no mundo dos fatos e é possível identificar as condutas necessárias para realizá-los independentemente de novas decisões de natureza valorativa ou ideológica. Os princípios, diversamente, descrevem efeitos relativamente indeterminados (cuja compreensão integral depende de avaliações valorativas) ou, mesmo quando se ocupam de

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efeitos determinados, a identificação das condutas neces-sárias para realizá-los pressupõe uma escolha valorativa ou 'ideológica. Assim, a não realização dos efeitos das regras envolve em geral sua violação e, em um Estado de direito, as regras devem ser obedecidas. O mesmo não ocorre com os princípios, que admitem logicamente compressões di-versas na definição de seus efeitos e das condutas próprias para sua realização. Assim, havendo um conflito entre uma regra e a área não nuclear de um princípio o primeiro terá preferência.

23. Em segundo lugar, as regras, por conta de sua pró-pria estrutura, desempenham um papel específico na or-dem jurídica ao prover previsibilidade e estabilidade, ao passo que os princípios garantem abertura e flexibilidade ao sistema. As regras correspondem ainda a decisões espe-cíficas dos poderes eleitos, gozando de considerável legiti-midade democrática. Se os princípios, além de sua função própria, ocuparem-se de afastar a incidência das regras in-discriminadamente (sendo que a aplicação da área não nu-clear dos princípios sempre vem impregnada das concep-ções valorativas e ou políticas do intérprete), haverá um incremento da insegurança, em função da imprevisibilida-de e da falta de uniformidade das decisões, com prejuízos evidentes para o equilíbrio do sistema, sobretudo no que diz respeito à isonomia e à legitimidade dessas próprias decisões.

24. Há um terceiro fundamento para o parâmetro pro-posto, uma vez que a questão se coloque no nível constitu-cional. As constituições contemporâneas procuram realizar ao menos dois propósitos gerais: estabelecer determinados consensos mínimos, que devem inclusive ser protegidos da ação das maiorias, e garantir as condições para o desenvol-vimento do pluralismo político. As regras constitucionais (aí incluídos os núcleos dos princípios) respondem em ge-

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ral pelas decisões associadas a esse consenso mínimo, ao passo que os princípios delineiam um campo de atuações possíveis, dentro de cujos limites as opções políticas po-dem ser consideradas legítimas. As regras correspondem exatamente a decisões políticas especificas, de efeitos de-terminados, já tomadas no interior de tais fronteiras.

25. Embora o parâmetro geral seja o da preferência das regras sobre os princípios, há duas situações nas quais as regras estarão envolvidas com a ponderação de certa forma: (i) quando a incidência de uma regra produz tamanha injus-tiça que a torna incompatível com as opções materiais da Constituição; e (ii) quando há uma colisão insuperável de regras.

26. Três parâmetros são capazes de lidar com o proble-ma das regras injustas sem romper com a racionalidade do parâmetro geral pelo qual as regras têm preferência sobre os princípios, a saber: (i) a interpretação conforme a eqüi-dade das regras; (ii) a caracterização da imprevisão legisla-tiva; e (iii) a inconstitucionalidade da norma produzida pela incidência da regra na hipótese concreta.

27. No caso da colisão insuperável de regras haverá de fato uma ruptura do sistema, já que alguma delas deixará de ser observada. A escolha entre elas configura uma espé- cie de ponderação entre os bens que justificam as regras. De toda forma, será útil utilizar também nesse processo decisório a proposta de ordenação da ponderação descrita acima e os parâmetros jurídicos que se mostrarem perti-nentes, especialmente o segundo parâmetro geral e os parâ-metros particulares, examinados na seqüência.

28. O segundo parâmetro geral proposto neste estudo pode ser descrito nos seguintes termos: diante de um con-flito normativo insuperável, a norma que de forma direta promova e/ou proteja os direitos fundamentais dos indiví-duos tem preferência sobre aquelas que estejam apenas

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indiretamente relacionadas com esses direitos. O objeto deste segundo parâmetro são as normas apuradas ao cabo da ponderação e ele deverá ser manejado apenas após a aplicação, se pertinente, do primeiro parâmetro geral.

29. O segundo parâmetro geral pode ser justificado a partir de duas perspectivas diversas. Em primeiro lugar, é possível falar de um consenso material acerca da prioridade do homem e de seus direitos fundamentais tanto no direito interno, especialmente após a Constituição de 1988, como na ordem internacional, ainda que neste último caso o con- senso possa ser apenas teórico em vários pontos. A opção pela norma que realize diretamente direitos fundamentais funda-se, portanto, na aplicação dessa prioridade às hipóte-ses de conflito normativo.

30. O parâmetro encontra justificativa também a partir de uma concepção procedimentalista (pela qual a legitimi- dade das decisões decorre da correção do processo delibe- rativo, já que não é possível apurar consensos materiais abrangentes na sociedade plural contemporânea), uma vez que se adote corno premissa a igualdade dos indivíduos. Se os indivíduos são iguais, qualquer deliberação pública exi-girá que a cada participante seja reconhecido um conjunto básico de direitos sem os quais o procedimento não poderá funcionar adequadamente. Esse conjunto de direitos mere-ce proteção prioritária, já que opera como condição para o próprio procedimento. Nesse sentido, ainda que o conjun-to de direitos aqui seja menor que o previsto pelo direito interno, o parâmetro descrito continua a encontrar funda-mentação consistente.

31. Além dos dois parâmetros gerais descritos nos itens anteriores, a redução do subjetivismo no uso da pondera-ção depende também da existência de parâmetros particu-lares, construídos em função de conflitos entre enunciados específicos. Alguns elementos a considerar na construção

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desses parâmetros são, por certo, as características próprias da estrutura de cada enunciado (Trata-se de um princípio? Regra? Apresenta elementos de indeterminação? Atribui di-reitos? Define competências? Fixa metas públicas? Se atri-bui direito, quem é seu titular? Quem está obrigado a res-peitar tal direito ou dar-lhe efeito?), o conteúdo de cada

enunciado (Que efeitos ele pretende produzir? Que outros enunciados guardam relação com o tema? Que condutas são necessárias e exigíveis para realizar esse efeito?) e as cir-cunstâncias que interferem com sua aplicação, inclusive situações de conflito com outros enunciados.

Ao fim desse resumo das principais idéias desenvolvi-das ao longo do texto, vale notar alguns aspectos importan-tes. O modelo sugerido de ordenação para a técnica, embo-ra não garanta por si só a previsibilidade do resultado, con-fere maior consistência metodológica à ponderação, com proveitos evidentes para a redução do subjetivismo. No momento em que a doutrina indica com maior clareza as etapas a serem percorridas pelo intérprete e os cuidados a serem por ele observados nesse percurso, não apenas o apli-cador do direito estará mais consciente do seu ofício, como o controle do processo de argumentação e decisão ficará facilitado.

Ademais, não há dúvida de que (i) demonstrar a vincu-lação das diferentes pretensões e interesses em jogo a enunciados normativos, (ii) justificar a relevância atribuída aos fatos, (iii) empregar exclusivamente argumentos que possam transitar livremente no espaço público, (iv) preser- var, na medida do possível, a integridade dos enunciados em conflito, e (v) fundamentar a possibilidade de universa-lização da decisão apurada são exigências que, dentre ou-tras, contribuem para reduzir o risco de voluntarismos e arbitrariedades no uso da ponderação.

Associado a esse esforço de organização racional da téc-

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nica, a formulação de parâmetros, tanto gerais como espe-cíficos, se destina a orientar as decisões do intérprete, ago-ra sim, tornando mais previsível o resultado da ponderação. O caráter preferencial de tais parâmetros decorre de have-rem sido discutidos publicamente pela doutrina e, por con-ta de sua fundamentação lógica e jurídica, contarem com a aceitação geral. O aplicador, por natural, não está rigida-mente vinculado a eles ou à solução por eles indicada, mas, ao desconsiderá-los, deverá demonstrar de forma específi-ca por quais razões os fundamentos que informam o parâ-metro devem ser afastados no caso concreto.

Há ainda duas observações finais a fazer. A pretensão deste estudo não foi eliminar o elemento subjetivo das de- cisões jurídicas, o que seria impossível, mas apenas reduzi - 1°4°9. Por certo haverá situações em que após aplicação da ponderação nos termos aqui propostos, juntamente com todos os parâmetros sugeridos, ainda restará espaço para avaliações e decisões puramente pessoais. De toda sorte, a previsibilidade das decisões judiciais é uma garantia pró-pria do Estado republicano, democrático e de direito e, tanto quanto seja possível, não deve ser banalizada.

Por fim, o objetivo deste trabalho foi apresentar um conjunto de propostas operacionais, que pudessem ser efe-

409 GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto, 1989, p. 33 e ss.; e TRIBE, Laurence H. and DORF, Michael C. On Reading the Constitution, 1991, pp. 18 e 19: "It should not be terribly surprising to learn that judicial deliberation, like ali legal discussion, cannot be reduced to scientific processes of deduction and induction, although some people apparently continue to be surprised by this truism. The impossibility of airtight 'proof' does not, however, translate — as some seem to believ it does — into such total indeterminacy that ali interpretations of the Constitution are equally acceptable. Nor does it follow that the only way to judge an interpretation is to ask whether it advances or retards your vision of the good society. It is possibile to do much better than that."

tivamente incorporadas ao cotidiano da interpretação jurí-dica e da prestação jurisdicional. Este é um ponto impor-tante. O debate teórico, especialmente no que diz respeito à argumentação jurídica, pode tornar-se extremamente complexo, até por conta de seu objeto de estudo, ingres-sando amplamente no terreno filosófico da justificação do discurso racional em geral e do jurídico em particular. É apenas natural e próprio que seja assim.

Nada obstante, é freqüente que, na impossibilidade de incorporar toda a sofisticação teórica ao dia-a-dia da aplica-ção do Direito, cuja compreensão, ademais, é por vezes dificultada por um certo hermetismo lingüístico, os opera-dores jurídicos simplesmente ignorem ou deixem de lado importantes contribuições desenvolvidas no âmbito da aca-demia. Assim, o que não deixa de ser irônico, os diferentes desenvolvimentos teóricos que versam justamente sobre a interpretação jurídica acabam tendo pouca ou nenhuma re-percussão na atividade concreta de interpretação e aplica-ção do Direito.

Parece fundamental, portanto, desenvolver uma outra linha de estudos que, sem prejuízo do progressivo aprofun-damento das questões no nível teórico, produza uma co-municação eficiente entre esses dois mundos. Essa comu-nicação deve ser capaz de transformar formulações teóricas em instrumentos operacionais, utilizáveis pelo juiz no dia-a-dia de sua atividade, ainda que isso imponha, em alguns momentos, a simplificação de discussões mais complexas. O presente estudo se insere nesse contexto e pretende fa-zer essa comunicação, de modo que a realidade da aplica-ção do Direito, e a vida das pessoas, afinal, possa se benefi-ciar dos avanços e elaborações da teoria jurídica.

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