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POLÍTICAS SOCIAIS: práticas e desafios Kátia Maheirie 1 Tatiana Minchoni 2 Frederico Viana Machado 3 Isabel Fernandes de Oliveira 4 Kamilla Sthefany Andrade de Oliveira 5 As políticas públicas, enquanto estratégias de intervenção estatal em relação a determinados problemas sociais, incidem em diferentes frentes de atuação, na tentativa, inclusive, de viabilizar a efetivação de alguns dos direitos sociais preconizados constitucionalmente. Entre a criação de uma política pública e sua operacionalização, por meio da oferta dos serviços públicos, existe um longo percurso que se apresenta desafiante, tanto pela importância da viabilização das diretrizes das políticas, quanto pela necessidade de contemplar a realidade da população alvo. Nesse ínterim, os profissionais que executam os serviços e possuem contato direto com a população e as demandas que a mesma apresenta, necessitam inventar e reinventar práticas em meio aos desafios que uma política pública apresenta. Nesse sentido, esta mesa temática se propõe a discutir as práticas e os desafios encontrados nas atuações em políticas públicas nos setores da assistência social e da educação. Especificamente, será discutida a experiência com coletivos promovida pelas equipes dos Centros de Referência de Assistência Social (CRAS) da cidade de Florianópolis/SC, que podem se revelar como práticas potencializadoras dos contextos em que atuam; a relação que se estabelece entre as demandas educacionais e as propostas político-pedagógicas apresentadas por movimentos sociais e a execução das mesmas pelos órgãos governamentais da educação na cidade de Porto Alegre/RS; e a incorporação de ações voltadas ao rural/ruralidade a partir das deliberações da IX Conferência Estadual de Assistência Social do Rio Grande do Norte. Intenciona-se, com essa mesa, fomentar discussões acerca da absorção e incorporação das demandas apresentadas pelos movimentos sociais, seja em espaços deliberativos e/ou representativos, bem como do fazer profissional concretizado nos equipamentos, que ora são encontrados avanços, indo além das práticas tradicionais e ora negam os direitos de uma parcela da população. 1 Doutora. Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). E-mail : [email protected] 2 Mestre. Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). E-mail : [email protected] 3 Doutor. Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail : [email protected] 4 Doutora. Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). E-mail : [email protected] 5 Mestranda. Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

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Page 1: Políticas sociais: práticas e desafios€¦ · habituado a lidar: a pobreza. De acordo com Oliveira et al (2014) “o trabalho na política de Assistência Social colocou os psicólogos

POLÍTICAS SOCIAIS: práticas e desafios Kátia Maheirie

1

Tatiana Minchoni2

Frederico Viana Machado3

Isabel Fernandes de Oliveira4

Kamilla Sthefany Andrade de Oliveira5

As políticas públicas, enquanto estratégias de intervenção estatal em relação a determinados problemas sociais, incidem em diferentes frentes de atuação, na tentativa, inclusive, de viabilizar a efetivação de alguns dos direitos sociais preconizados constitucionalmente. Entre a criação de uma política pública e sua operacionalização, por meio da oferta dos serviços públicos, existe um longo percurso que se apresenta desafiante, tanto pela importância da viabilização das diretrizes das políticas, quanto pela necessidade de contemplar a realidade da população alvo. Nesse ínterim, os profissionais que executam os serviços e possuem contato direto com a população e as demandas que a mesma apresenta, necessitam inventar e reinventar práticas em meio aos desafios que uma política pública apresenta. Nesse sentido, esta mesa temática se propõe a discutir as práticas e os desafios encontrados nas atuações em políticas públicas nos setores da assistência social e da educação. Especificamente, será discutida a experiência com coletivos promovida pelas equipes dos Centros de Referência de Assistência Social (CRAS) da cidade de Florianópolis/SC, que podem se revelar como práticas potencializadoras dos contextos em que atuam; a relação que se estabelece entre as demandas educacionais e as propostas político-pedagógicas apresentadas por movimentos sociais e a execução das mesmas pelos órgãos governamentais da educação na cidade de Porto Alegre/RS; e a incorporação de ações voltadas ao rural/ruralidade a partir das deliberações da IX Conferência Estadual de Assistência Social do Rio Grande do Norte. Intenciona-se, com essa mesa, fomentar discussões acerca da absorção e incorporação das demandas apresentadas pelos movimentos sociais, seja em espaços deliberativos e/ou representativos, bem como do fazer profissional concretizado nos equipamentos, que ora são encontrados avanços, indo além das práticas tradicionais e ora negam os direitos de uma parcela da população.

1 Doutora. Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). E-mail : [email protected]

2 Mestre. Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). E-mail : [email protected]

3 Doutor. Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail : [email protected]

4 Doutora. Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). E-mail : [email protected]

5 Mestranda. Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

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COLETIVOS EM CENTROS DE REFERÊNCIA EM ASSISTÊNCIA SOCIAL: para onde apontam as práticas e seus desafios?

Kátia Maheirie 6

Tatiana Minchoni 7

O presente resumo aborda os Centros de Referência em Assistência Social – CRAS, visando compreender a experiência coletiva a partir de práticas desenvolvidas por sua equipe, tomando como base a discussão indivíduo/coletivo na base de seus fazeres. Para tanto, utilizaremos o relato de três edições das oficinas de fotografia nos CRAS do município de Florianópolis (SC. Por meio de tais informações, objetivamos compreender a experiência de trabalhos com tais coletivos, focando os avanços e recuos que encontram em suas práticas e, ao mesmo tempo, na potência destes trabalhos naqueles contextos. O material obtido nesta investigação é analisado a partir da análise de discurso, compreendido como ações situadas socialmente e na qual o texto é ponto de partida e de chegada. Procederemos na construção de “categorias” ou “unidades” a partir do próprio texto, ou seja, a posteriori, mesmo que alguns aspectos já sejam estabelecidos a priori. O “discurso”, tal como é entendido aqui, produz-se como ato, como acontecimento em um contexto específico, surgindo na relação dialógica entre posições sociais que se confrontam nos cenários da pesquisa. Destacamos algumas experiências promovidas pelas equipes atuantes nas políticas sociais, no que se refere ao trabalho com coletivos que vão além de práticas tradicionais, analisando a potência das objetivações em relação à promoção de sujeitos de direitos, dos processos de emancipação e do envolvimento comunitário. Palavras-chave: experiência coletiva, CRAS, oficinas

Collective in Reference Centers for Social Assistance: they point to the practices and challenges?

This paper discusses the Reference Centres for Social Welfare - CRAS, to understand the collective experience from practices developed by his team, based on the individual / collective discussion on the basis of their doings. Therefore, we will use the report of three editions of photography workshops in CRAS in Florianópolis (SC. Through this information, we aim to understand the experience of working with such collectives, focusing on the advances and setbacks they encounter in their practices and, at the same time, the power of these works in those contexts. The material obtained in this research is analyzed from the speech analysis, understood as situated actions socially and in which the text is the starting point and arrival. We will proceed in the construction of "categories" or "units" from the text itself, ie, a posteriori, even if some aspects are already established a priori. The "speech", as understood here, is produced as act as an event in a specific context, emerging in the dialogic relationship between social positions faced in the scenarios of the research. We highlight some experiences promoted by the teams active in social policies, with regard to working with groups that go beyond traditional practices, analyzing the power of objectivations regarding promotion subjects of rights, emancipation processes and community involvement. Keywords: collective experience, CRAS, workshops

6 Doutora. Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). E-mail : [email protected]

7 Mestre. Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). E-mail : [email protected]

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INTRODUÇÃO

O presente trabalho aborda os Centros de Referência em Assistência Social

(CRAS), visando compreender a experiência coletiva a partir de práticas

desenvolvidas por sua equipe, tomando como referência a discussão indivíduo/coletivo

na base de seus fazeres. Nesse sentido, objetiva-se compreender a experiência de

oficinas de fotografia oferecida para usuários, e realizada por psicólogas/os,

estudantes de Psicologia e um fotógrafo profissional, focando os avanços e recuos

que encontram em suas práticas e, ao mesmo tempo, na potência destes trabalhos.

As experiências foram desenvolvidas em dois CRAS da cidade de Florianópolis/SC.

A inserção das/os psicólogas/os nas políticas sociais está relacionada,

historicamente, ao questionamento às práticas tradicionalmente realizadas pelas/os

profissionais da Psicologia, as quais estavam voltadas, sobretudo, às classes média e

alta da população brasileira, configurando-se como uma Psicologia voltada para as

elites. Soma-se a isso a preocupação com os rumos que a profissão vinha tomando,

aliado ao questionamento acerca da relevância social da Psicologia. Inicia-se, assim,

um movimento no âmbito da própria profissão, que clama por um compromisso social

da Psicologia brasileira com as camadas empobrecidas da população, buscando uma

inserção social mais significativa que aquela estabelecida até então (YAMAMOTO,

2009).

Na década de 1980, em processo de abertura democrática, a Psicologia em

articulação com movimentos sociais conquista espaços de trabalho no âmbito público,

os quais só se concretizarão posteriormente, a partir da operacionalização da garantia

dos direitos sociais preconizados na Constituição Cidadã, dentre eles, a Assistência

Social, a qual compõe o tripé da Seguridade Social juntamente com a Saúde e a

Previdência Social. Neste cenário, é importante destacar a mudança significativa da

concepção de Assistência Social no Brasil, que passa de práticas caritativas à direito

social, que deve ser garantido pelo Estado à toda população.

Entretanto, a efetivação deste direito será morosa, sobretudo devido à ofensiva

neoliberal, que atingiu o setor público de forma veemente, com a desmontagem de

vários setores, além de amplas privatizações (YAMAMOTO & OLIVEIRA, 2010). A Lei

Orgânica de Assistência Social só vem a ser regulamentada em 1993, o Plano

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Nacional de Assistência Social, elaborado a partir das deliberações da IV Conferência

Nacional de Assistência Social, foi aprovado somente em 2004, e este processo

culmina com a aprovação da regulamentação do Sistema Único de Assistência Social

(SUAS), em 2005, quando, de fato, começarão a ser implantados os serviços.

O SUAS é um modelo de gestão que integra os três entes federativos e atua de

maneira descentralizada e participativa, tendo como foco, em seus serviços e

programas, as famílias e seus membros, atuando com base na territorialização, na

matricialidade familiar, na proteção pró-ativa, na integração à seguridade social e às

políticas sociais e econômicas. Os serviços no âmbito do SUAS são organizados por

níveis de complexidade, quais sejam: a Proteção Social Básica (PSB) e a Proteção

Social Especial (PSE). A primeira tem como objetivo prevenir situações de risco,

desenvolvendo potencialidades de famílias, fortalecendo os vínculos familiares e

comunitários, tendo como serviço de referência o Centro de Referência em Assistência

Social. A Proteção Social Especial (PSE) abrange as situações de risco, em que

houve violação de direitos ou ameaça de, no qual o atendimento prestado varia de

acordo com o nível de complexidade, de média a alta complexidade. Na média

complexidade, a situação de violações em que os vínculos familiares e comunitários

estão mantidos, tem como serviço o Centro de Referência Especializado de

Assistência Social (CREAS). A alta complexidade, as situações em que há violação de

direitos e os vínculos familiares e comunitários foram rompidos, terá referência em

Serviços de Acolhimento Institucional; Serviço de Acolhimento em República; Serviço

de Acolhimento em Família Acolhedora e Serviço de Proteção em Situações de

Calamidade Pública e de Emergência (BRASIL, 2004).

No que tange ao CRAS, o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à

Fome (MDS) preconiza que este deve prevenir situações de violações de direitos em

função da pobreza, fortalecendo as potencialidades e os vínculos familiares e

comunitários, possibilitando a ampliação do acesso a direitos sociais e cidadania. Em

outras palavras, o CRAS é a porta de entrada do SUAS e nele devem ser geridas

territorialmente as ações da rede de proteção básica, ou seja, para o desenvolvimento

do trabalho por parte da equipe multiprofissional, é necessário o bom conhecimento do

território, das famílias que lá vivem, suas particularidades, necessidades,

potencialidades, o mapeamento das vulnerabilidades já existentes (BRASIL, 2009),

além da cultura local.

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Além disso, há uma primazia pela interdisciplinaridade nos processos de

trabalho, dada a complexidade da demanda trabalhada nos CRAS, para que

profissionais de diferentes áreas contribuam com conhecimentos distintos, visando a

prática no cotidiano dos serviços. Ainda, há a recomendação de realização de

atividades prioritariamente coletivas e contextualizadas, intervindo nos âmbitos grupal,

comunitário e familiar.

Dentre os diferentes profissionais que o SUAS integra, está a/o profissional de

Psicologia, que se depara com uma demanda que, historicamente, não esteve

habituado a lidar: a pobreza. De acordo com Oliveira et al (2014) “o trabalho na política

de Assistência Social colocou os psicólogos diante de uma demanda ainda mais

pauperizada e cujo foco de trabalho são as condições de vida das pessoas, a pobreza

estrutural” (pág. 104). Nesse sentido, as/os profissionais encontraram, e ainda

encontram, grandes dificuldades em seu campo de trabalho, principalmente para

delimitar e concretizar sua atuação.

Face a seu processo histórico e majoritário de centralização nos sujeitos com a

realização de práticas individuais e individualizantes, e tendo a Psicologia Clínica e a

psicoterapia enquanto práticas hegemônicas, o que se tem observado é que grande

parte das/os psicólogas/os têm recorrido à atividades semelhantes às da clínica

tradicional (OLIVEIRA et al, 2011; OLIVEIRA & AMORIM, 2012). No entanto, tais

práticas são incoerentes com as orientações técnicas do CRAS, que apresenta

especificamente as/aos profissionais da Psicologia, a recomendação de não utilização

da psicoterapia, tampouco a patologização dos sujeitos (Brasil, 2009).

Frente ao estranhamento das demandas de trabalho que se apresentam à

Psicologia nos serviços socioassistenciais, associada a escassez da discussão da

atuação da/o psicóloga/o em contextos de pobreza nos cursos de graduação, o

Conselho Federal de Psicologia (CFP) cria referências técnicas de atuação nos

diferentes serviços da Política Nacional de Assistência Social, ressaltando,

novamente, que a atividade psicoterápica não deve ser realizada na PSB, tampouco

categorizações, objetificações ou patologizações das pessoas atendidas. Recomenda

que as ações das/os psicólogas/os sejam realizadas com vistas ao desenvolvimento

da autonomia, da liberdade e da emancipação humana, a partir da compreensão da

“demanda e suas condições históricas, culturais, sociais e políticas de produção, a

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partir do conhecimento das peculiaridades das comunidades e do território (inserção

comunitária) e do seu impacto na vida dos sujeitos” (CFP, 2008, p. 24).

Ainda que existam dificuldades nessa breve história da atuação da Psicologia

no SUAS, destacamos que algumas práticas coletivas têm sido implementadas de

forma interessante nos CRAS em Florianópolis e, neste trabalho, elegemos as

oficinas, em especial, as oficinas de fotografia desenvolvidas em três edições, com

usuários de dois CRAS, no sul da ilha.

MÉTODO

As Oficinas com fotografia acontecem em dois Centros de Referência em

Assistência Social do município de Florianópolis/SC, localizados na região sul da ilha.

As oficinas contam com a participação de um psicólogo do CRAS, estagiários

de Psicologia e, também de um fotógrafo profissional como ministrante das mesmas.

Nas duas primeiras edições da referida oficina, o público alvo era composto por

jovens, entre 14 e 17 anos, cuja família havia sido cadastrada no Cadastro Único, no

CRAS onde a oficina era oferecida. Na segunda edição, contamos com um público de

15 a 18 anos e, na terceira edição, em um CRAS diferente dos anteriores, trabalhamos

com o público adulto que já freqüentava os grupos promovidos por aquele CRAS.

Para todas as edições das oficinas de fotografia e visando a produção de uma

discussão acadêmica, realizamos observação participativa e utilizamos diário de

campo. Além disso, um grupo na rede social Facebook era criado para cada edição e

específica para os participantes de cada oficina. Na primeira edição, realizamos

também uma entrevista coletiva, objetivando conhecer os sentidos da participação

naquelas atividades.

A primeira edição da oficina de fotografia contou com seis participantes e

aconteceu nas dependências de duas escolas da rede pública de ensino, em espaços

públicos e nas próprias dependências do CRAS. Foram compostas por 11 encontros

de 3 a 4 horas de duração e finalizada com uma exposição das fotografias produzidas

pelo grupo, expostas em diferentes espaços públicos do território.

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Na segunda edição, contamos com uma variação de cinco participantes e a

oficina ocorreu no próprio CRAS, nos mesmos moldes da primeira edição, contando

com 11 encontros, de 3 a 4 horas de duração. A finalização contou com a exposição

pública das imagens e a confecção de um calendário com as mesmas, distribuído

gratuitamente.

A terceira edição ocorreu em um CRAS diferente daquele das edições

anteriores e contou com a participação de nove a doze pessoas adultas. A finalização

pressupôs a produção de uma revista, composta pelas fotografias e um texto de

produção coletiva, focada nas imagens e sentidos dos usuários em relação ao

território em questão.

Para a realização das oficinas, o fotógrafo disponibilizava uma máquina

fotográfica profissional, mas o foco do equipamento para a apropriação das técnicas e

produção das imagens era o próprio celular de cada participante, uma vez que este

seria o equipamento possível em seus cotidianos.

Para análise das informações produzidas pelos participantes, utilizamos a

Análise de Conteúdo (AC), na qual partimos do discurso dos sujeitos para criarmos

categorias de análise a posteriori (COUTINHO, DIOGO & JOAQUIM, 2008). Estas

categorias tem como foco a relação dos usuários com o território, com base na

apropriação, experiência e relação com o lugar.

DISCUSSÃO

Nas três edições da oficina, pudemos perceber que aquele espaço se

constituiu como um espaço propício para construção de laços grupais e experiências

coletivas, mediadas pela imagem fotográfica, pela sensibilidade e ampliação do olhar e

na apropriação de suas técnicas.

Trabalhar a fotografia como exercício do olhar, apropriando-se de diferentes

técnicas de enquadramento e iluminação, tinha como propósito não ignorar as

especificidades da linguagem fotográfica, recusando colocá-la como mero acessório

prático-utilitário para o exercício da Psicologia. Ao contrário, nosso propósito em

trabalhar com oficinas de fotografia em contextos de Assistência Social almeja o

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reconhecimento do respeito que a área das Artes Visuais merece ao dialogar com

outra área de conhecimento tão importante quanto ela. Sob esta ótica, entendemos o

trabalho interdisciplinar da equipe de assistência social nos centros de referência.

As três experiências com as oficinas de fotografia apontaram para a construção

de espaços coletivos nos quais os usuários se entrelaçavam em atividades estéticas

com foco na construção de laços comunitários e na apropriação do lugar e do

território. Por meio da experiência, os sujeitos puderam ressignificar lugares, serviços

e demandas. Eles puderam, também, ressignificar sua própria potência como sujeitos

trabalhadores e jovens que aspiram uma profissão.

As oficinas foram vistas como espaços que eram acolhedores e disparadores

de encontros alegres nos quais aprendiam novos desafios e apreendiam novos

olhares: “explorar um novo mundo (...) com chances de explorar por dentro das

máquinas, de expor ideias” (participante da oficina- 1ª edição).

Ao produzir imagens e se reconhecerem como produtores daquelas

objetivações, os sujeitos sentiam, pensavam e agiam como protagonistas de suas

produções, aumentando, por meio daqueles encontros, sua potência de ação

(SAWAIA, 2009) e o fortalecimento de si como sujeitos individuais e coletivos.

Na terceira edição, experimentamos uma experiência coletiva de trabalho

durante as oficinas, avançando, a nosso ver, as possibilidades de construção de laços

grupais e coletivos, ao dar visibilidade a um projeto estético em comum.

O contraponto a todos esses aspectos positivos das experiências foi a

característica baixa adesão dos usuários em atividades grupais, sendo comum

acontecer encontros com apenas três sujeitos, além da equipe coordenadora, nas três

edições das oficinas.

CONCLUSÃO

As políticas sociais no contexto da assistência social permanece no desafio de

chamar os(as) jovens a participarem das atividades e reconhecerem seus direitos. A

informação e as oportunidades se colocam como pontos importantes e encontrar as

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diferentes formas de comunicação e oferecimento de novas oportunidades de fazer,

ouvir e olhar, continua sendo uma meta possível para as equipes dos CRAS.

Possibilitar o entendimento das políticas públicas para além do bolsa família se

faz uma tarefa importante e um objetivo fundamental para não cairmos em

assistencialismos historicamente estruturados. Informá-los sobre políticas públicas e

direitos humanos é também proporcionar experiências de apropriação de olhares

voltados para a construção do NÓS e do território que pertencem e reconstroem

cotidianamente.

Reconhecemos como aspecto que favoreceu o desenvolvimento da oficina, a

experiência de saída para os espaços públicos, visitando localidades as mais diversas,

familiares ou não, como ponto importante nas três edições das oficinas. Experiências

coletivas mostram-se fundamentais para se trabalhar com objetivos a curto, médio e

longo prazo dentro do serviço da equipe dos CRAS, construindo práticas específicas

com grupos naqueles contextos de trabalho.

Superar atuações e práticas individuais e/ou voltadas ao processo

psicoterapêutico se fazem extremamente promissoras no contexto da assistência

social e, para isso, é importante reconhecer que no coletivo se constroem sentidos,

desejos e horizontes muito diferentes da soma dos sentidos, desejos e horizontes

individuais. Pela via do NÓS constroem-se características e qualidades que não se

constrói pela via do EU e esta afirmação pressupõe desafios a nós, psicólogos, que

implicam em abandonar velhas certezas e práticas que se fizeram hegemônicas na

profissão.

Faz-se imprescindível arriscar e criar, a partir de novas práticas,

estratégias de atuação na promoção da emancipação dos sujeitos que buscam e/ou

que são alvo do atendimento dos CRAS a, junto a equipe multidisciplinar destes

centros, inventar espaços de construção de laços que venham a fortalecer os coletivos

e as comunidades no território.

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REFERÊNCIAS

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Nacional de Assistência Social. Brasília: MDS, 2004.

BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome.

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Brasília: MDS, 2009.

CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Centro de Referência Técnica em

Psicologia e Políticas Públicas (CREPOP). Referências Técnicas para atuação do(a)

psicólogo(a) no CRAS/SUAS. Brasília, 2008, 60p.

COUTINHO, M. C., DIOGO, M. F., & JOAQUIM, E. P. (2008). Sentidos do

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Page 11: Políticas sociais: práticas e desafios€¦ · habituado a lidar: a pobreza. De acordo com Oliveira et al (2014) “o trabalho na política de Assistência Social colocou os psicólogos

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YAMAMOTO, Oswaldo Hajime; OLIVEIRA, Isabel Fernandes de. Política Social

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Page 12: Políticas sociais: práticas e desafios€¦ · habituado a lidar: a pobreza. De acordo com Oliveira et al (2014) “o trabalho na política de Assistência Social colocou os psicólogos

O LUGAR DO RURAL E DA RURALIDADE NA POLÍTICA DE

ASSISTÊNCIA SOCIAL DO RN

Isabel Maria Farias Fernandes de Oliveira8

Kamilla Sthefany Andrade de Oliveira 9

Resumo: As Conferências Estaduais de Assistência

Social têm sido espaços para a discussão de temas

importantes para o campo da assistência social. Uma das

questões que se destacam são as demandas relativas ao

meio rural. Portanto, o presente trabalho analisa as

demandas sobre ruralidade deliberadas e recomendadas

pelos municípios do RN, na IX CEAS. Realizou-se uma

sistematização e categorização das teses de vários

municípios e os resultados mostraram que os dispositivos

da assistência social vêm negando a garantia de direitos

a população rural.

Palavras-Chave: ruralidade; controle social; SUAS.

Abstract: Social Assistance State Conferences (SASC)

have been spaces for discussion of important issues for

social assistance field. They always provide directions for

operationalization of the Social Assistance Policy. One

important issue are the demands concerning rural areas.

Therefore, this study analyzes the demands of rurality

deliberated and recommended by the cities in RN, during

IX CEAS. The method was systematization and

categorization of thesis from several cities and results

revealed that social assistance´s equipments deny the

rights guarantee of the rural population.

Keywords: rurality; Social Assistance Policy; rights

guarantee.

8 Doutora. Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). E-mail : [email protected]

9 Mestranda. Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

Page 13: Políticas sociais: práticas e desafios€¦ · habituado a lidar: a pobreza. De acordo com Oliveira et al (2014) “o trabalho na política de Assistência Social colocou os psicólogos

1. Introdução

Se comparado ao meio urbano, ao longo do tempo, o meio Rural foi tido

como um espaço de importância primária para o conjunto da sociedade haja vista uma

maior concentração populacional, bem como sua importância para a economia em

termos produtivos. Consonante a transformação da sociedade decorrente da dinâmica

do processo histórico, tanto econômico/setorial e político-administrativo, há ao longo

desse dinamismo novas configurações dos territórios (PONTE, 2004).

Com a Revolução Industrial do século XVIII, há uma inversão na

estruturação da economia, da política e do social. A atualização e modernização da

sociedade trouxeram perspectivas de que o meio urbano se sobrepunha a vida rural.

Isso acabou gerando dicotomias e o meio Rural passou a ter feição de espaço

periférico, atrasado, ultrapassado e residual (ABRAMOVAY, 2000; PÉREZ, 2001).

Entretanto, entender o espaço Rural desta maneira acaba reforçando

dicotomias e a necessidade de “urbanização do campo”, porém, aplicar elementos

urbanos ao Rural não significa levá-lo ao progresso, na verdade, significa adaptar o

Rural às formas exigidas pelo capital (ABRAMOVAY, 2000; PONTE, 2004), muito

embora haja diferenças nesses espaços. Na verdade, essas diferenças dizem de

peculiaridades importantes para o desenvolvimento da sociedade.

O Rural, enquanto espaço geográfico é aqui entendido como uma forma

eminentemente social, é uma instância social. “[...] o espaço não pode ser apenas

formado pelas coisas, os objetos geográficos, naturais e artificiais, cujo conjunto nos

dá a Natureza. O espaço é tudo isso, mais a sociedade [...]” (SANTOS, 1992 apud

SANTOS, 2011, p. 1). Nesse sentido, o Rural é uma totalidade, totalidade esta que

assim como o urbano são produzidas através das relações sociais (SANTOS, 2011)

Para Wanderley (2000, p. 131), o Rural é uma dialética, uma vez que

“grupos e instituições o definem atribuindo sentido a estas diferenças e sua ação

notadamente política afeta estas diferenças, cria e revela outras, às quais são

atribuídos novos sentidos”. Isso diz de suas peculiaridades e de uma contínua

constituição de novas ruralidades. “O ‘rural’ não se constitui como uma essência,

imutável, que poderia ser encontrada em cada sociedade. Ao contrário, esta é uma

categoria histórica, que se transforma” (WANDERLEY, 2000, p.88).

Enquanto se permitir discursos monótonos das determinações incoerentes

do que é o Rural, compromete-se a idealização de políticas para as áreas

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consideradas atrasadas, uma vez que o Rural ficará fadado a receber políticas sociais

que compensem possíveis decadências e pobrezas (ABRAMOVAY, 2000).

No incentivo a descentralização das políticas, e em contra posição ao

regime autocrático burguês, que se caracterizava por um regime sem democracia com

políticas pública que privilegiavam o grande capital (GOHN, 2004), vê-se a

necessidade de valorização da participação dos atores da sociedade civil, a

redefinição do papel das instituições, e a importância das esferas municipais e mais

precisamente das prefeituras locais e dos atores da sociedade civil, o que suscita um

debate das transformações nas relações sociais, econômicas, ambientais e culturais

que envolvem o espaço rural (SCHNEIDER, 2004).

Com base nisso, é perceptível que o Rural apresenta uma dimensão

política de luta e de reinvindicação que vem se enlanguescendo nos últimos tempos

como uma forma de conseguir seus direitos. O Rural é campo de políticas públicas, de

propostas de políticas de desenvolvimento que comtemplem suas peculiaridades e

singularidades (PONTE, 2004). Muito embora o cenário de participação popular tenha

sofrido modificações ao longo da história ainda se percebe pouca participação cidadã

na gestão pública, na fiscalização, no monitoramento e no controle das ações da

administração pública no acompanhamento das políticas.

Apesar disso, no campo da assistência social, por exemplo, algumas

ações têm sido importantes, pois se não quebram paradigmas assistencialistas e

efetivam o Controle Social, pelo ao menos são espaços que se propõem a tais

finalidades. Um exemplo disso são as Conferências Estaduais de Assistência Social

(CEAS), as quais têm sido espaços de planejamento, avaliação e controle da política

de Assistência Social. Uma das questões que figura nesse campo são as demandas

relativas ao meio rural.

A última Conferência realizada no Rio Grande do Norte (RN), teve,

portanto, o objetivo analisar, propor e deliberar, as diretrizes para a gestão e

financiamento do Sistema Único da Assistência Social (SUAS), tomando como base

as responsabilidades de cada ente federado, de forma a propor formas de

aperfeiçoamento do SUAS (BRASIL. Lei n. 8.742, de 07 de dezembro de 1993).

Nessa direção, o objetivo deste trabalho é analisar, no campo da

assistência social, as demandas sobre ruralidade deliberadas e recomendadas pelos

municípios do RN na IX CEAS.

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2. MÉTODO

Trata-se de um trabalho exploratório e que obedeceu a alguma etapas, tais

quais: 1) acesso aos relatórios das Conferencias Municipais realizadas em 161

municípios do RN, 2) Criação de um Banco de Dados para categorização de cada tese

referente a demandas rurais; 3) Categorização das teses deliberadas e

recomendadas; 4) Análise das teses que estavam em conformidade com a proposta

deste trabalho.

Para organização das informações, inicialmente, houve treinamento da

equipe de pesquisa, a fim de sistematizar tais dados em um banco no programa Excel,

no qual constavam os eixos temáticos, o número de identificação dos municípios, o

nome dos municípios, além das recomendações e deliberações das Conferências

Municipais. Ou seja, além dos dados de identificação dos relatórios, as principais

informações analisadas foram as teses (recomendações e deliberações). De acordo

com o Informe n. 9/2013 do Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS), as

recomendações são deliberações anteriores cuja manutenção na agenda do SUAS foi

considerada pertinente nas discussões realizadas na Conferência, enfatizando-se a

importância de sua implementação. Já as deliberações são propostas novas que não

foram contempladas em nenhuma deliberação das Conferências anteriores e que

devem ser instituídas (BRASIL. Conselho Nacional de Assistência Social, 2013).

Após sistematizar todas as teses apresentadas pelos municípios do RN na

etapa municipal, cada tese foi analisada particularmente, a fim de identificar as

proposições que se referiam a ruralidade e contexto rural. Para isso, empregou-se

numa busca no banco de dados os seguintes descritores, isolados ou em combinação:

contexto rural, ruralidade, população rural, comunidades rurais, rural, itinerante,

volante, busca ativa, zona rural, interiorização, interior e integralidade. Selecionadas

as teses sobre ruralidade, procedeu-se a análise, com destaque para a acessibilidade

das populações rurais aos serviços da assistência social, considerando a crítica

marxista às políticas sociais no Estado brasileiro sob o domínio do capital.

3. RESULTADOS E DISCUSSÕES

Nestes resultados, busca-se elucidar os principais dados das

conferências municipais de 161 municípios do RN, tendo em vista a não realização da

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etapa municipal da Conferência em seis municípios. Esses resultados serão

apresentados pelos eixos temáticos que organizaram a própria Conferência.

No eixo de Cofinanciamento obrigatório da Assistência Social, que prediz a

responsabilidade de cada ente federado na execução da Política Nacional de

Assistência Social (BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate a Fome,

2004), o que leva em conta seu porte, a complexidade dos serviços prestados e as

diversidades regionais, foi perceptível que o total de dez teses, do total de 522,

referentes a demandas sobre ruralidade deliberava sobre a busca de Cofinanciamento

junto ao Estado e a União para estruturação dos serviços, estruturas físicas

adequadas, formação continuada e transportes para prestação de serviços, e um

cofinanciamento maior para os recursos humanos com intuito de qualificar e ofertar um

melhor serviço. Além disso, as deliberações se referiam a implantação de um CRAS

itinerante para atender as populações rurais; e contratação de mais profissionais.

Apesar do reconhecimento pelo poder executivo estadual das ações no

âmbito da assistência social, como anunciado na mesa de abertura da IX CEAS, e,

principalmente, do cofinanciamento como eixo estruturante da política, não há garantia

de que as necessidades que foram deliberadas nesse eixo, especialmente no tocante

à ruralidade, serão priorizadas.

Entretanto, vale ressaltar a importância de se discutir o cofinanciamento

nesta política a partir dos três entes federados, com distribuição de recursos próprios

nos fundos de assistência social por parte dos estados e dos municípios. Em segundo

lugar, é imprescindível a participação ativa dos Conselhos Municipais de Assistência

Social nos processos de elaboração, apreciação e acompanhamento da execução dos

instrumentos de planejamento, ou seja, da proposta orçamentária para a área (NATAL.

Conselho Municipal de Assistência Social, 2013).

No eixo sobre Gestão do SUAS, que deve ser descentralizado e

participativo, as 34 teses deliberadas sobre ruralidade requerem ação mais ativa da

Vigilância Socioassistencial. A Vigilância Social (ou Socioassistencial) trata de

processos ligados diretamente a identificação de indicadores de vulnerabilidade social,

de risco social e de informações relevantes sobre o território (RIZZOTI; SILVA, 2013).

A compreensão de vulnerabilidade de algumas pessoas em relação a

outras é mais do que conhecer seus comportamentos de risco ou preventivos, buscar

identificar crenças e valores compartilhados, mas é entender que a subjetividade do

sujeito se alia a objetividade e pragmatismo das realizações de programas e projetos

que o envolvem (AYRES; CALAZANS; SALETTI, 2005).

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Quanto à Gestão do Trabalho, foram identificadas 530 teses, entretanto,

apenas cinco tratavam de ruralidade. O ponto chave das deliberações refere-se à

integralidade da atenção assistencial, além da implantação de serviços de

fortalecimento de vínculos.

O termo integralidade tem suas raízes já na discussão sobre os princípios

e diretrizes do Sistema Único de Saúde, quando se refere ao atendimento integral,

visando dar prioridade as atividades preventivas, sem que isso gere prejuízo dos

serviços assistenciais. Em poucas palavras, o atendimento integral trata da não

fragmentação da atenção e proteção dos sujeitos usuários das políticas,

reconhecendo, portanto, a interferência de fatores socioeconômicos, políticos e

culturais (PINHEIRO; MATOS, 2001).

O quarto eixo, Gestão dos Serviços, Programas e Projetos, composto por

530 deliberações, soma 54 teses com demandas sobre aspectos da população rural.

Essas teses tinham conteúdos que deliberavam a solicitação de programas de

qualificação e geração de emprego e renda; programas e projetos para jovens; curso

de capacitação para a população; construção de Centros de Convivência; Pró-Campo;

Academia da Terceira Idade; serviços itinerantes, como o CRAS e CREAS; realização

de palestras voltadas para a população rural; assim como a importância de trabalhar

na assistência numa perspectiva da integralidade.

Serviços como estes estão no alcance da Proteção Social Básica e

Proteção Social Especial. O primeiro visa prevenir riscos através do desenvolvimento

de potencialidades e fortalecimento de vínculos familiares e comunitários; nesse nível

deve haver o desenvolvimento de serviços, programas e projetos, locais de

acolhimento, convivência e socialização das famílias e indivíduos. Por outro lado, o

segundo nível destina-se a famílias e indivíduos em situação de risco pessoal ou

social, em que os direito foram violados ou ameaçados. O CREAS, por exemplo, tem o

papel de coordenar e fortalecer a articulação dos serviços com a rede de assistência

social e as demais políticas públicas (BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e

Combate a Fome, 2014).

As 28 teses de demanda sobre o rural que compõem o eixo de Gestão dos

Benefícios do SUAS (5o eixo) traz a tona a necessidade de efetivação da busca ativa

aliada à equipe volante ou ao CRAS itinerante. Para isso, faz-se necessário uma

equipe adicional, que integra um CRAS; esta equipe deve ter como objetivo prestar

serviços de proteção social básica no território de abrangência do CRAS, para

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atendimento a famílias que vivem em locais de difícil acesso e ou estão dispersar no

território (BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate a Fome, 2009).

Além disso, percebe-se a necessidade de os municípios e serviços

fazerem parcerias e ações de cidadania; além de questões no tocante as condições de

trabalho e previdência dos trabalhadores rurais.

Por fim, o último eixo, Regionalização, está composto por 89 teses de

demandas sobre o rural para a assistência social. As teses possuem conteúdos sobre

a necessidade de descentralização dos trabalhos do CRAS e CREAS, especialmente

de caráter itinerante, o que justifica outras teses que deliberam sobre a expansão dos

programas e serviços socioassistenciais para zona rural e áreas de difícil acesso.

No que diz respeito às Recomendações (ou seja, teses apresentadas em

Conferências anteriores, mas não executadas pela gestão pública), a IX CEAS contou

com 969 teses, sendo que dessas apenas 27 relacionam assistência social e

ruralidade, demonstrando a recenticidade da ênfase nessa questão, a despeito das

arraigadas características que acompanham a realidade social das populações rurais.

A maior parte dessas teses está concentrada nos eixos 4 e 6 (Gestão dos Serviços,

Programas e Projetos e Regionalização, respectivamente). Assim, referem-se à

ausência de ações voltadas para a renda da população rural, à ausência da busca

ativa e de equipes volantes ou CRAS itinerantes, enfatizando a necessidade de

valorização da diversidade regional. Embora a quantidade de recomendações seja

pequena, essas não destoam das deliberações apresentadas na IX CEAS: ainda que

a cobertura de serviços socioassistenciais tenha crescido, o CRAS itinerante e o

CREAS são mencionados como unidades não existentes ou que não atingem a

população rural, seja porque esse público está em locais de difícil acesso, seja pelas

condições de trabalho dos técnicos – com destaque para a ausência de infraestrutura,

especialmente veículos para cobertura de territórios extensos, e de pessoal, contando

com profissionais não capacitados para suprir as demandas dessa população, o que

se traduz na precariedade de serviços, programas e projetos.

4. CONCLUSÃO

O presente trabalho buscou analisar, no campo da assistência social, as

demandas sobre ruralidade deliberadas e recomendadas pelos municípios do Rio

Grande do Norte, na IX Conferência Estadual de Assistência Social do RN (IX CEAS).

O Rural é uma totalidade, totalidade esta que assim como o urbano são produzidas

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através das relações sociais, relações estas que podem ser incentivadores de diversos

debates, de lutas e reinvindicações.

Muito embora haja dificuldades na discussão daquilo que é peculiar das

populações rurais, é perceptível que estão sendo engendradas ações politicas,

contraditórias ou não, de maior participação popular e de caráter democrático.

Entretanto, mesmo diante dessa perspectiva, este estudo revela que as populações

rurais de alguns municípios do estado do Rio Grande do Norte estão com baixo

acesso a serviços e programas da assistência social, de modo que é possível destacar

que em todos os eixos de análise, em algum momento, o CRAS e o CREAS aparecem

como serviços que quando não existentes, estão centralizados de sobremaneira a

negar os direitos dessa população rural que geralmente está em locais de difícil

acesso; além de que não há evidências de descrições de atividades ou demandas

necessárias a serem desenvolvidas in loco nas áreas rurais.

As demandas sobre ruralidade têm sido, aos poucos, postas em questão,

como foi discutido; entretanto, não vêm sendo uma prioridade. O que é perceptível é

que o capital predomina sobre as necessidades verdadeiramente humanas, de modo a

fazer com que a reprodução social dos indivíduos e da totalidade social esteja a

serviço da burguesia. O Estado, ilusoriamente, deixa entender que através da

igualdade formal, política e jurídica, retratada neste estudo pela importância da

participação civil, do Controle Social, mantém e reproduz a desigualdade social. A

afirmação de igualdade é o objetivo velado de se manter a dominação (LESSA;

TONET, 2011).

5. REFERÊNCIAS ABRAMOVAY, R. Funções e medidas da ruralidade no desenvolvimento

contemporâneo. In Ministério do Desenvolvimento, Planejamento e Gestão/Instituto de

Pesquisas Econômicas Aplicadas (Org.), Texto para discussão n. 702. Rio de

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sobre a organização da Assistência Social e dá outras Providências. Disponível em

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PSICOPOLÍTICA DAS FRONTEIRAS ESTATAIS: análise de discursos de ativistas e gestores públicos sobre políticas de

educação na cidade de Porto Alegre

Frederico Viana Machado 10

Resumo: Apresentaremos resultados parciais de pesquisa investiga a relação entre Movimentos Sociais e Estado, tomando como foco de problematização as políticas de educação da cidade de Porto Alegre/RS. Interessa-nos compreender como as diferentes demandas educacionais e propostas político-pedagógicas forjadas no âmbito dos Movimentos Sociais são negociadas no interior do órgãos governamentais. Apresentaremos análises preliminares de entrevistas realizadas no primeiro semestre de 2015, com ativistas e com agentes públicos. Nossa análise aponta para a construção de espaços de experimentação exteriores às instituições públicas e para processos de ruptura e ressignificação política que se dão nas relações cotidianas que ocorrem nos espaços governamentais.

Palavras-Chave: Políticas de Educação; Movimentos Sociais; Estado; Subjetivação Política; Pedagogias Políticas.

Abstract: We present partial results of a research that investigates the relationship between social movements and the state, focusing the educational policies of Porto Alegre / RS. We are interested in understanding how the different educational demands, political and pedagogical proposals, forged in the context of Social Movements, are traded within the government agencies. Preliminary analysis of the interviews conducted in the first half of 2015 with activists and public agents. Our analysis indicate spaces of social experimentation out of the public institutions and processes of disruption and policy reframing that occur in everyday relationships in the government spaces. Keywords: Education Policies; Social movements; State;

Political Subjectivity; Political Pedagogies.

10

Doutor. Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail : [email protected]

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INTRODUÇÃO

O presente trabalho apresentará os resultados preliminares de uma

pesquisa que investiga a relação entre Movimentos Sociais e Estado, tomando

como foco de problematização as políticas de educação da cidade de Porto

Alegre/RS. Desdobramos nossa investigação a partir de duas questões

norteadoras centrais e complementares: Em primeiro lugar, compreender como

as diferentes demandas educacionais e propostas político-pedagógicas

forjadas no âmbito dos movimentos sociais são negociadas no interior dos

órgãos governamentais.

Em segundo lugar, investigar quais processos de subjetivação política se

dão nos espaços estatais, como são elaborados pelos diferentes atores

políticos e qual sua relação com os conceitos de democracia, cidadania e

participação. Futuramente estas questões serão tratadas conjuntamente, pois

os discursos elaborados pelos movimentos sociais serão contrapostos aos

produzidos nos âmbitos institucionais, de modo a estabelecermos um diálogo

entre estes dois espaços de politização, suas práticas pedagógicas e propostas

educacionais.

Deste modo, o objetivo geral deste trabalho é identificar e analisar os

processos de subjetivação política que ocorrem em espaços estatais, com

enfoque nas Políticas de Educação, a partir de um diálogo entre atores

políticos institucionais e não institucionais. De modo ainda bastante preliminar,

buscou-se compreender as demandas que os movimentos sociais endereçam

ao campo educacional e os tipos de pedagogias que tais movimentos

desenvolvem, bem como mapear os diferentes sentidos atribuídos a elas e os

sentimentos de pertencimento articulados por agentes públicos. Além disso,

lançou-se luz sobre os modos como estes atribuem significado à atuação

técnica e política, atentando para a diferenciações com relação à atuação dos

agentes estatais e dos ativistas.

Para enfrentar estas questões no contexto das políticas educacionais,

abordaremos o Estado como um espaço no qual ocorrem trocas pedagógicas e

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relações formativas que se dão a partir dos conflitos entre atores e que se

constituem como pedagogias políticas. Para investigarmos as dinâmicas e os

discursos estabelecidos entre atores nos espaços estatais, considerando a

diversidade dos discursos políticos que neles se articulam, uma perspectiva

psicopolítica foi especialmente relevante.

Tal abordagem tem nos permitido abordar o Estado como um espaço de

interações sociais concretas, considerando não apenas os aspectos estruturais

das políticas públicas e órgãos governamentais – como orçamentos, conflitos

de interesses e correlações de força, fluxos institucionais, precariedades dos

estabelecimentos, entre outros elementos – mas também os aspectos

subjetivos presentes no âmbito governamental – tais como os sentimentos de

pertencimento geradores de identidades coletivas, os processos de

subjetivação política e a atribuição de significados que atravessa a formação de

discursos sobre a democracia, a política e, sobretudo, sobre o que significa

“estar” no Estado. Uma perspectiva psicopolítica, ressalta-se, compreende a

articulação entre estes âmbitos, não como uma somatória de fenômenos

paralelos, mas como um processo inseparável, complexo e reflexivo.

Uma vez que a previsão de encerramento desta pesquisa é dezembro

de 2016, Neste trabalho apresentamos as análises preliminares de entrevistas

realizadas no primeiro semestre de 2015, com cidadãos engajados em

Movimentos Sociais relevantes para a temática de estudo, bem como com

agentes do estado (Prefeitura de Porto Alegre), envolvidos na produção, gestão

e operacionalização de políticas educacionais.

METODOLOGIA

Trata-se de uma pesquisa qualitativa, na qual será utilizado o método da

Análise Sociológica do Sistema de Discursos, proposto por Álamo (2010). Este

método permite integrar, a partir da noção de níveis, diferentes abordagens da

análise de discurso. Fairclough (2001), um dos expoentes da análise crítica do

discurso, influenciada pela noção de discurso de Foucault (2007), aponta para

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um aspecto fundamental, que diz respeito à associação entre linguagem e

ação, a qual implica em uma leitura da formação de discursos como

articulações realizadas dentro de uma estrutura discursiva atravessada por

relações de poder. Deste modo, a noção de discurso utilizada neste projeto diz

respeito aos processos de significação que produzem sentido, articulando

linguagem e ação em um campo hierarquizado.

Seguindo a demanda metodológica dos objetivos delineados e da

análise de discurso, utilizaremos primordialmente metodologias qualitativas

(Klandermans, Staggenborg & Tarrow, 2003), que serão trianguladas como

forma de buscar uma aproximação maior com o campo de pesquisa (Creswell,

2003). As ferramentas metodológicas utilizadas serão:

a) Observações de Campo. Através desta técnica, busca-se captar as

dinâmicas interacionais que não sejam possíveis de acessar por meio da

análise de documentos e das entrevistas. Inclui a participação em

algumas atividades relativas aos movimentos sociais, bem como

observação do campo, durante a execução das entrevistas (local,

relações, praticas...), enriquecendo-as.

b) Entrevistas semiestruturadas com técnicos do governo e militantes de

movimentos sociais. Este instrumento foi, ate agora, o recurso mais

importante, que nos permitiu explorar melhor os objetivos específicos

desta pesquisa, ainda que seus resultados sejam preliminares.

Por meio das entrevistas, buscamos analisar os pontos de tensão entre

essas duas dimensões atuantes na produção das políticas públicas, gestores

públicos e ativistas de movimentos sociais. Para a construção dos dados,

futuramente, recorreremos também à análise de documentos e buscaremos

enriquecer os dados coletados através das entrevistas com observação de

campo no contexto dos Movimentos Sociais, bem como seu acompanhamento

através de plataformas virtuais.

As entrevistas com esses sujeitos futuramente nos permitirão investigar

a inter-relação entre três focos de tensão, que são caros a esta pesquisa: a) os

processos de mobilização e a participação política institucionalizada (Machado,

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2013); b) a política governamental e o aparelhamento das políticas públicas

(Ricci, 2010); c) o campo educacional, tensionando entre uma perspectiva

escolar e institucional e sua interpretação e inovação por movimentos sociais

diversos (Gohn, 2012; Maraschin, 2003; Sass, 2001).

Até o momento foram realizadas nove entrevistas semiestruturadas,

sendo: três pessoas envolvidas com as políticas públicas de educação,

alocadas na Secretaria Municipal de Educação de Porto Alegre (SMED), e

cinco pessoas envolvidas em movimentos sociais diversos.

Entrevistamos cinco ativistas envolvidos em grupos de cunho

autonomista voltados diretamente para o campo da educação. Entre diversas

frentes de atuação, estes ativistas trabalham em projetos como a "Universidade

Pós-desescolarizada", interessada em desenvolver estratégias pedagógicas

alternativas, o "Mobicidade", que luta por mudanças nas formas de ocupação

do espaço público, tais como a ampliação das ciclovias e o fortalecimento dos

espaços de socialização, a "Cambada de Teatro em Ação Direta Levanta

Favela", que desenvolve oficinas de teatro e apresentações de espetáculos de

cunho político e contextatório. Além dos grupos citados, estes cinco ativistas se

envolvem direta ou indiretamente com diversos coletivos de Porto Alegre, tais

como a ocupação “Utopia e Luta”, a “Ecovila Arca-verde”, a “Comuna do

Arvoredo”, o “Coletivo Massa Crítica”, o “Movimento pelo Passe Livre”, dentre

outros. Entrevistamos também uma ativista da Associação Gaúcha de Proteção

Ambiental (AGAPAN), organização não governamental fundada em 1971, com

atuação marcante na cidade de Porto Alegre.

Entrevistamos três gestores ligados às políticas públicas de educação e

cultura, sendo que um deles ainda se encontra em exercício na Secretaria de

Educação de Porto Alegre(SMED), um se desligou deste órgão dois anos atrás,

e outro foi cedido para trabalhar na câmara dos vereadores há três anos, para

trabalhar no gabinete de um parlamentar envolvido diretamente com o campo

da educação.

Os movimentos sociais que fizeram parte de nosso recorte empírico

nesta analise preliminar foram escolhidos, por um lado, por se constituírem

como movimentos sociais que foram tradicionalmente associados aos ¨novos

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movimentos sociais¨ (Gohn, 2010), como e o caso dos movimentos

ambientalistas e, por outro lado, por se encontrarem mais associados a nova

onda de protestos e aos movimentos de ocupação, que possuem uma proposta

radicalmente distribuída, sem centralidades ou logica de representação, de

cunho mais redistributivo e não-institucionalizados.

Escolhemos os movimentos ambientalistas como campo empírico por

identificarmos nestes coletivos discursos políticos que confrontam diretamente

as práticas educacionais, demandando, ao mesmo tempo, uma perspectiva

pedagógica engajada das práticas escolares (Tommasi, 2012; Carvalho, 2008)

e uma perspectiva educacional que ultrapasse a escola como espaço

privilegiado para a incidência das políticas públicas de educação (Tommasi,

2012; Carvalho, 2008; Vieira & Bredariol, 2006).

Já os movimentos que aqui chamamos de autonomistas, interessam-

nos, sobretudo, por seu viés anti-institucional (ou a-institucional, como preferiria

Abad & Cantarelli, 2013), e pela centralidade das demandas que envolvem

mudanças estruturais e redistributivas nos discursos políticos que enunciam. A

partir do mapeamento destes atores, pudemos sistematizar rápida e

preliminarmente suas demandas educacionais e práticas pedagógicas,

contrapondo as diferentes perspectivas políticas sobre o campo educacional.

ESTADO, MOVIMENTOS SOCIAIS E AS POLÍTICAS PÚBLICAS DE

EDUCAÇÃO

A relação entre o Estado e a sociedade civil deve ser contextualizada, no

campo teórico, dentro do que autores como Ortiz (2006), Tejerina (2005),

Creveld (2004), entre outros, nomearam como a “Crise do Estado Moderno”, ou

a “Crise do modelo Estado-Nação” (Eder, 2003). A noção de “Crise do Estado”

coloca inúmeras questões para as ciências humanas e sociais,, pois o Estado-

Nação foi, e em grande medida ainda é, a instituição primeira do pensamento

sociológico.

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Para além de ser o objeto empírico da ideia de sociedade da sociologia,

o Estado-Nação é também entendido como “seu molde cognitivo, o que dá

forma a nosso imaginário, o que modela as categorias com as que as ciências

sociais pensam seu objeto” (Gatti, 2005, p. 3). Entre uma infinidade de

questões políticas e teóricas, a crise do Estado coloca dificuldades para

pensarmos o cotidiano das instituições governamentais e suas políticas

públicas em termos propriamente políticos, em outras palavras, a partir de

princípios que não estejam limitados por uma perspectiva técnico-

administrativa de gestão do Estado (Abad & Cantarelli, 2013).

Abad & Cantarelli (2013) apontam que atribuir sentido ao “estar no

estado” é um problema importante nos dias de hoje, pois a carência de

“pensamento estatal” vem dificultando a “ocupação do Estado”. Segundo os

autores as subjetividades construídas no âmbito estatal contemporâneo não

tomam mais o Estado como referencial e disto se origina uma carência de

reflexões sobre o Estado e sobre as formas de ocupá-lo. Ao contrário do

anarquismo antiestatal ou do estado mínimo liberal, a ocupação do estado hoje

se orienta mais no sentido da gestão pela busca da eficácia técnica, pela

transparência e horizontalidade, típicas da lógica empresarial: “como um efeito

não calculado do desprestígio da política, a convivência comum se

transformou, pouco a pouco, em um assunto de técnicos ou moralistas” (Abad

& Cantareli, 2013 p. 28).

Embora estejam considerando o caso argentino, a análise dos autores

guarda paralelos com o contexto brasileiro. Podemos afirmar que as

concepções sobre o Estado no Brasil também transitam de um repúdio à

opressão estatal - herança de uma história repressiva e autoritária -, a um

descrédito acerca de sua capacidade de resolver os problemas sociais -

herança da jovem e vilipendiada democracia brasileira, atravessada por

governos neoliberais, persistentes relações coloniais, a difícil abordagem da

corrupção, a falta de integridade pública, a cronificação de centralismos,

personalismos e populismos (Ricci, 2010).

Para Abad & Cantarelli (2013), essa carência de pensamento estatal

está condicionada a três aspectos relacionados: a) perda de centralidade do

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Estado; b) predominância de um senso comum apolítico e aestatal; b) ausência

de uma ética estatal comum. Podemos identificar elementos desta “Crise do

Estado” no Brasil, tanto na opacidade das fronteiras partidárias e ideológicas

(Samuels, 2007; 2004), como no descrédito da população frente às instituições

públicas, bem como na dificuldade encontrada para distinguir claramente as

diferenças entre os diversos grupos políticos que disputam a ocupação do

Estado (dificuldade recorrentemente expressada por diversos participantes dos

protestos que vêm ocorrendo no Brasil, sobretudo de 2013 em diante).

Ao mesmo tempo, vemos que o Estado alcançou uma hegemonia

absoluta no plano global atual. Quase todos os territórios do planeta estão

organizados pelo modelo Estado-Nação, fruto da expansão do projeto moderno

(Eder, 2003; Wood, 2005). No Brasil, paralelamente ao ambivalente projeto

desenvolvimentista, que concilia avanços nas políticas sociais com práticas

liberais de gestão, o Estado cresceu nos últimos anos, ampliando a

abrangência das políticas públicas no campo da saúde, educação, assistência

social e outras, com destaque para um aumento das especificidades das

populações atendidas, tais como as minorias sociais e grupos vulneráveis

(Pogrebinsch, 2010)

Neste contexto, vemos que o descrédito do Estado e da política

institucional caminha lado a lado com a importância ou mesmo a urgência de

um aprimoramento estatal e de um aprofundamento da reflexão política acerca

desta instituição (Abad & Cantarelli, 2013). Em um momento no qual as

ideologias e os projetos coletivos tornam-se mais fragmentados (Hall, 2005) é

ainda mais premente investigarmos: os espaços estatais e as relações

pedagógicas e processos intersubjetivos construídos pelos diversos atores que

neles interagem, tais como gestores, agentes públicos, movimentos sociais etc.

A perspectiva psicopolítica que orienta este trabalho ressalta a

importância de investigarmos estas questões no plano concreto das relações

cotidianas que se objetivam como discursos sobre os princípios de cidadania e

democracia (Machado, 2013). Deste modo, as políticas e práticas educacionais

se constituem como um campo empírico estratégico, seja no âmbito

institucional das práticas escolares e das políticas de educação, seja no âmbito

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ampliado das pedagogias culturais11, uma vez que estamos tratando de

processos de significação dos papeis sociais de atores políticos e da

socialização política envolvida nas relações que os indivíduos desenvolvem

com as instituições.

Destaca-se que já existe uma ampla discussão acerca dos processos

pedagógicos instaurados pelos diversos movimentos sociais que interpelam o

Estado, apontando que estes atores se constituem como laboratórios para

alternativas existenciais, políticas e, até mesmo, organizacionais (Gohn, 2010,

2012; Arroyo, 2012, 2010; Jezine & Almeida, 2010). Autores como Boneti

(2010), Kauchakje (2010), Calado (2010), Souza (2010), entre muitos outros,

têm apontado que os movimentos sociais, sobretudo os movimentos populares

que escapam dos processos de institucionalização operados pelas políticas

públicas (Alvarenga, Nascimento, Nobre & Alentejano, 2012), vem

apresentando alternativas interessantes para os problemas que investigamos

nesta pesquisa, a partir de práticas e propostas pedagógicas inovadoras.

As políticas de educação, além de serem setorialmente delimitadas, o

que favorece nosso recorte metodológico, configuram-se como um campo

privilegiado para a análise dos processos políticos, pois, como argumenta

Gohn (2012), “há um elemento, um fator, de ordem educacional, na temática da

participação social por meio dos movimentos sociais”. Ora, se refletiremos

sobre a democracia, a ampliação da cidadania e as possibilidades institucionais

de transformação frente aos conflitos políticos, é importante investigarmos

exatamente o espaço estatal responsável pela elaboração de políticas públicas

que promovam, nas palavras de Sass (2000, p. 58), “a formação de um certo

tipo de personalidade social”. Estamos partindo, obviamente, de uma

concepção de educação que ultrapassa a aquisição de “conhecimentos

abstratamente adquiridos” (Sass, 2000:63). Desse modo, interpretando Sass

(2000, p. 63), uma perspectiva psicopolítica pode ajudar a repensarmos a

11

Maraschin (2003:237) retoma o conceito de “pedagogias culturais, para falar de agenciamentos sociais que funcionam como dispositivos pedagógicos, para além dos muros escolares”.

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educação, voltando-a “para a formação do indivíduo autoconsciente e

autônomo”.

Por outro lado, Robertson (2009), analisando os efeitos da reformulação

das políticas educacionais na Europa (conhecida como o processo de

Bolonha), argumenta que as articulações políticas em torno da educação estão

fortalecendo relações inter-regionais, como forma de superar problemas de

escala, postos pelo modelo Estado-Nação e a intensificação dos processos de

globalização. Para o autor, as políticas de educação fazem parte das

estratégias de construção do Estado no mercado global. Neste contexto,

compreendidas aqui na tensão entre propostas pedagógicas inovadoras

cunhadas por movimentos sociais e as pressões por conformidade dos projetos

globais de liberalização e mercadorização, as políticas de educação se tornam

um analisador privilegiado das relações políticas atuais.

Finalmente, é fundamental mencionar um documento expedido pela

CAPES em junho deste ano (Brasil, 2013), ainda no calor das manifestações

políticas daquele período, apontando que os maiores desafios no campo da

educação brasileira são a efetivação do universalismo e a qualificação da

educação básica. Este documento sinaliza o teor político das transformações

que se fazem necessárias, e aponta que o atual modelo de educação já não

atende mais às “necessidades e expectativas da sociedade”. Assim, produzir

conhecimento que contribua para a ampliação das perspectivas pedagógicas

que fundamentam as políticas educacionais é uma demanda atual e urgente da

sociedade brasileira, como vêm apontando as autoridades na área (Brasil,

2013).

O POLÍTICO E AS POLÍTICAS PÚBLICAS

No plano teórico, os problemas que compõem esta pesquisa podem ser

abordados pela discussão sobre a despolitização da esfera pública. Diversos

autores, como Alain Badiou, Jacques Rancière, Slavoj Zizek, Etienne Balibar,

entre outros, influenciados pelo pensamento deleuziano e críticos tanto ao pós-

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estruturalismo como ao relativismo pós-moderno, vêm apontando que as

últimas décadas foram marcadas por processos de despolitização bem como

de encolhimento da democracia e da esfera pública (Swyngedouw, 2011). O

argumento destes autores se desdobrará em nossa análise na “tensão entre,

de um lado, a política, que é sempre específica, particular e local, e, por outro

lado, os procedimentos universalizados da democracia política, que opera sob

os significantes da igualdade e liberdade” (Swyngedouw, 2011:371).

Neste contexto, a ideia de subjetivação12 será importante para

ampliarmos a compreensão das identidades a partir de uma perspectiva

dinâmica e tensionada. Ao trazermos esta tensão para o campo dos conflitos

políticos, o conceito de subjetivação política, elaborado por Rancière (2010),

será fundamental para nossa análise, pois a subjetivação é tomada como um

processo de desidentificação ou de desclassificação que interpela a ordem

institucional estabelecida em um determinado campo sensível, em outras

palavras, é o esforço individual e coletivo de reconhecer-se entre identidades

(Rancière, 2009). Esta noção de subjetivação política constitui o alicerce a

partir do qual articulamos os diferentes tipos de demandas (reconhecimento e

redistribuição) e pertencimentos (igualdade e diferença) na compreensão dos

discursos políticos, a partir das diversas e conflitantes leituras e concepções

das práticas pedagógicas e perspectivas educacionais que oscilam entre os

âmbitos institucionais e não-institucionais da esfera pública13.

Os movimentos sociais são, desse modo, laboratórios de ideias que

muitas vezes criam práticas educativas e pedagógicas a partir de reflexões

sobre problemas concretos do cotidiano e, mesmo que demandem do poder

público, suas propostas muitas vezes não chegam às escolas ou às políticas

12

Nas palavras de Ranciére (2006:52), “por subjetivação, entender-se-á a produção, mediante uma série de atos de uma instância e de uma capacidade de enunciação que não eram identificáveis em um campo de experiência dado, cuja identificação, portanto, corre lado a lado com a nova representação do campo da experiência”. 13

Machado (2013) analisa a relação entre Estado e sociedade civil a partir das seguintes tensões: técnica e política (que versa sobre a legitimidade dos lugares e funções); igualdade e diferença (que versa sobre a identidade dos atores, que pode enunciar dissensos ou forçar a dissipação da subjetivação política a partir da reificação identitária); e, finalmente, consenso e conflito (que analisa a qualidade dos conflitos que são legitimados nas interações sociais, apontando horizontes da transformação social e das possibilidades legítimas de interpelação democratizante).

Page 33: Políticas sociais: práticas e desafios€¦ · habituado a lidar: a pobreza. De acordo com Oliveira et al (2014) “o trabalho na política de Assistência Social colocou os psicólogos

de educação (Gohn, 2012). Um desdobramento possível é perguntarmo-nos

sobre os motivos pelos quais muitas práticas pedagógicas criadas pelos

movimentos sociais não são revertidas em políticas públicas e mudanças

institucionais efetivas. O que aconteceria com o Estado e suas instituições se

estes legitimassem estas demandas?14

Os dados nos mostram que, sobretudo os movimentos autonomistas,

diferentemente de serem simplesmente contrários às instituições

governamentais e políticas públicas de educação, buscam desenvolver suas

ações à margem destas, objetivando suas concepções políticas a partir de

ações concretas desenvolvidas coletivamente no cotidiano. Em alguns

aspectos, inclusive, fizeram uma distinção entre os aspectos legais e concretos

nas políticas públicas de educação, destacando a relação entre processos

instituídos e instituintes:

Um ponto de vista que a gente está operando depois do encontro de ontem é de operar um pouco na educação de si, uma educação em que eu confio na minha autopoiesis, e ai tudo bem, eu já estou aceitando também, vamos aceitar uma escola legalizada, com toda a regulação burocrática, aceita-se isso, mas vamos seguir na educação de si, pra poder mudar isso, poder confiar em vários processos, se ela ficar muito engessada e dura a gente faz outra coisa de novo, e quem quiser ficar no engessamento fica. (...) Outra coisa é que as políticas públicas de educação são muito boas, não são ideais, as perfeitas que eu adoraria que fossem, mas muitas políticas, a legislação já é muito boa, a prática não reflete isso, a LDB é bacana, tem muita coisa muito legal.

Se articulando a esta concepção da atuação das instituições, também

encontramos, na fala dos gestores, elementos que apontam para processos de

ressignificação das práticas organizacionais, apontando para iniciativas

autônomas no interior nas instituições públicas:

14

Estas questões, bastante pertinentes ao momento atual, podem ser desdobradas em tantas outras, tais como: o que acontece quando regimes diferenciados de saber se interpelam? O que acontece quando o índio vai para a universidade, ou quando a escola vai para a aldeia? O que acontece quando uma determinada identidade imprime sua perspectiva de conhecimento nos regimes universalistas de funcionamento institucional? Como poderíamos abordar estas questões a partir de uma perspectiva psicopolítica?

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A gente trabalha muito com mutirão. A nossa rede [Rede Municipal de Educação] hoje tem essa marca, porque tudo tem a ver com aquele pano de fundo inicial, que é o protagonismo, o trabalho em equipe, o trabalho participativo, o trabalho democrático, que vai culminar no que? Mutirão! O que é um mutirão, senão a forma mais democrática de reorganizar um lugar? Ou de planejar junto? Um mutirão.

Também apontando para processos de ressignificação institucional,

encontramos na fala de uma gestora um exemplo de processos que rearticulam

a relação entre o instituído e o instituinte:

As políticas se constituem apesar do governo. Então eu digo sempre assim, quando você consegue construir uma política de rede em rede, pode trocar secretária a vontade, pode sair e pode entrar, porque a própria rede vai exigir a continuidade. (...) Como eu digo, protagonismo e a participação. Quando eu falo de processo democrático eu falo em todos os sentidos. E um governo democrático pra mim, e eu não tenho medo de dizer, eu acho que [nome do Secretário de Educação] pra nós, muita gente critica: “ah, não botou luzes na educação ambiental”, não, ele não botou luzes, mas ele nos permitiu trabalhar. Ele permitiu a construção de um projeto e isso pra mim é tudo. Tu querer disputar... (xxx) teve politicagem, teve, teve ranger de dentes, teve, mas todo governo tem, não minta pra mim pq eu já presenciei, todos tem. Não tem um partido que não faça isso. Todos fizeram. Mas eu tive uma visão diferente desse governo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os discursos analisados até o presente momento apontam para a

construção de espaços de experimentação institucional exteriores às

instituições públicas, bem como para processos de ruptura e ressignificação

política que se dão nas relações cotidianas que ocorrem nos espaços

governamentais. Embora tratando de concepções e práticas políticas muito

distintas, identificamos alguns pontos de convergência nas concepções de

democracia e cidadania entre os atores de diferentes âmbitos de atuação.

Estes pontos de convergência podem ser importantes para teorizarmos sobre

processos de transformação social de modo a articularmos práticas

institucionais e autonomistas de disputa política.

Na medida em que os dados forem sendo mais bem analisados, como já

apontam as análises preliminares, os resultados desta pesquisa poderão nos

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ajudar a compreender melhor os modos de subjetivação política no interior das

instituições governamentais. Além disto, os discursos analisados oferecerão

subsídios para uma perspectiva mais elaborada acerca dos discursos políticos

construídos em espaços estatais, considerando a articulação dos movimentos

sociais com as políticas públicas.

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